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O CONCEITO DE AMOROSIDADE EM FREIRE E A RECUPERAÇÃO DO SENTIDO DE EDUCAR NASCIMENTO, Lizandra Andrade 1 ; AZEVEDO, Gilmar 2 ; GHIGGI, Gomercindo 3 RESUMO: Este artigo discute o conceito de amorosidade na obra de Paulo Freire. Nosso objetivo é salientar a importância dessa temática em nossos dias. Partiremos da análise dos elementos envolvidos na crise na educação, os quais comprometem a qualidade do processo de ensino e aprendizagem, desenvolvido nas escolas, e exigem a busca de novas respostas diante de questões como a violência escolar, a crise de autoridade dos professores, o baixo desempenho dos estudantes na aquisição de conceitos e pré-requisitos básicos nos distintos componentes curriculares e, consequentemente, na compreensão do mundo, dentre outros. Contra esse pano de fundo, percebemos no conceito de amorosidade de Paulo Freire a possibilidade de recuperação do sentido do educar, enquanto acolhida das novas gerações e a sua inserção na cultura. O conceito de amor mundi, apresentado por Hannah Arendt, corrobora esta concepção, defendendo que o professor precisa responder pelo mundo, dando a ele um novo nascimento, para inspirar nos educandos o amor pelo mundo e a atitude de cuidado com relação às obras das distintas gerações. PALAVRAS-CHAVE: Paulo Freire. Amorosidade. Diálogo. Sentido do Educar. Refletir sobre a Educação como Prática de Liberdade, num fecundo momento comemorativo dos 50 anos da experiência de Angicos, concebendo a educação como ato de amor, supõe recuperar o sentido de educar em um mundo em que a autoridade e a tradição estão em crise, destacando a importância de que o educador assuma a posição de quem apresenta e de quem representa o mundo diante das novas gerações, demonstrando que é necessário preservar o que há de bom, e, o mesmo tempo, tornar-se autor de suas próprias histórias, desenvolvendo a capacidade de pensar, de julgar e de cuidar do mundo. Para Paulo Freire, a “educação é um ato de amor”, sentimento em que homens e mulheres vêem-se como seres inacabados e, portanto, receptivos para aprender, sendo que “não há diálogo [...] se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que o funda [...]. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (FREIRE, 1987, p. 79-80). A relação pedagógica quando perpassada pela afetividade, pela amorosidade e pela dialogicidade, oportuniza o desenvolvimento da educação como prática de liberdade e de humanização. Tais dimensões humanas aparecem interligadas, uma vez que não é possível exercer a docência, de forma autêntica e comprometida, sem vivenciar o afeto pelos educandos e pelo mundo, sem dialogar com os outros indivíduos (alunos, pais, colegas 1 Aluna do Programa Especial de Formação Pedagógica de Docentes da UERGS – Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] 2 Docente no PEFPD da UERGS. 3 Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel.

O Conceito de Amorosidade Em Freire e a Recuperação Do Sentido de Educar

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Discutindo Paulo Freire

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  • O CONCEITO DE AMOROSIDADE EM FREIRE E A RECUPERAO DO SENTIDO DE EDUCAR

    NASCIMENTO, Lizandra Andrade1; AZEVEDO, Gilmar2; GHIGGI, Gomercindo3

    RESUMO: Este artigo discute o conceito de amorosidade na obra de Paulo Freire. Nosso objetivo salientar a importncia dessa temtica em nossos dias. Partiremos da anlise dos elementos envolvidos na crise na educao, os quais comprometem a qualidade do processo de ensino e aprendizagem, desenvolvido nas escolas, e exigem a busca de novas respostas diante de questes como a violncia escolar, a crise de autoridade dos professores, o baixo desempenho dos estudantes na aquisio de conceitos e pr-requisitos bsicos nos distintos componentes curriculares e, consequentemente, na compreenso do mundo, dentre outros. Contra esse pano de fundo, percebemos no conceito de amorosidade de Paulo Freire a possibilidade de recuperao do sentido do educar, enquanto acolhida das novas geraes e a sua insero na cultura. O conceito de amor mundi, apresentado por Hannah Arendt, corrobora esta concepo, defendendo que o professor precisa responder pelo mundo, dando a ele um novo nascimento, para inspirar nos educandos o amor pelo mundo e a atitude de cuidado com relao s obras das distintas geraes.

    PALAVRAS-CHAVE: Paulo Freire. Amorosidade. Dilogo. Sentido do Educar.

    Refletir sobre a Educao como Prtica de Liberdade, num fecundo momento

    comemorativo dos 50 anos da experincia de Angicos, concebendo a educao como ato de

    amor, supe recuperar o sentido de educar em um mundo em que a autoridade e a tradio

    esto em crise, destacando a importncia de que o educador assuma a posio de quem

    apresenta e de quem representa o mundo diante das novas geraes, demonstrando que

    necessrio preservar o que h de bom, e, o mesmo tempo, tornar-se autor de suas prprias

    histrias, desenvolvendo a capacidade de pensar, de julgar e de cuidar do mundo.

    Para Paulo Freire, a educao um ato de amor, sentimento em que homens e

    mulheres vem-se como seres inacabados e, portanto, receptivos para aprender, sendo que

    no h dilogo [...] se no h um profundo amor ao mundo e aos homens. No possvel a

    pronncia do mundo, que um ato de criao e recriao, se no h amor que o funda [...].

    Sendo fundamento do dilogo, o amor , tambm, dilogo (FREIRE, 1987, p. 79-80).

    A relao pedaggica quando perpassada pela afetividade, pela amorosidade e pela

    dialogicidade, oportuniza o desenvolvimento da educao como prtica de liberdade e de

    humanizao. Tais dimenses humanas aparecem interligadas, uma vez que no possvel

    exercer a docncia, de forma autntica e comprometida, sem vivenciar o afeto pelos

    educandos e pelo mundo, sem dialogar com os outros indivduos (alunos, pais, colegas

    1Aluna do Programa Especial de Formao Pedaggica de Docentes da UERGS Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] Docente no PEFPD da UERGS.3 Docente no Programa de Ps-Graduao em Educao da UFPel.

  • professores, enfim, com todos) e oportunizar a preservao do legado cultural da humanidade,

    por meio do acesso ao saber.

    O relevo atribudo por Freire amorosidade tambm est presente na obra Professora

    Sim, Tia No (1999, p. 38), em que o autor afirma que [...] preciso juntar humildade com

    que a professora atua e se relaciona com seus alunos, uma outra qualidade, a amorosidade,

    sem a qual seu trabalho perde o significado. E amorosidade no apenas aos alunos, mas ao

    prprio processo de ensinar. [...] no acredito que, sem uma espcie de amor armado, como

    diria o poeta Tiago de Melo, educadora e educador possam sobreviver s negatividades de seu

    que-fazer.

    A amorosidade e o dilogo constituem-se como elementos indispensveis para que

    ocorra, no processo educativo, o encontro amoroso entre os homens que, mediatizados pelo

    mundo, o pronunciam, isto , o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a

    humanizao de todos (FREIRE, 1992, p. 43).

    Caracterizando o amor como uma intercomunicao ntima de duas conscincias que

    se respeitam, onde cada um tem o outro como sujeito, no propriedade, de seu amor, Paulo

    Freire, relaciona amorosidade e dilogo com outros elementos, tais como o respeito, a

    humildade, a f e a esperana, afirmando que impossvel dialogar, em sentido autntico, sem

    um profundo amor aos outros homens e ao mundo.

    Conforme Andreola (2000), a defesa de Freire no se inspira num sentimentalismo

    vago, mas na radicalidade de uma exigncia tica. No se trata, portanto, de um amor romati

    zado, permissivo, sufocante. Ao contrrio, este amor liberta, sem ser dominador, constituindo-

    se como compromisso entre os seres humanos.

    A amorosidade em Freire, como prope Andreola (2000) deve ser pensada:

    [...] sem esquecer as perspectivas da inteligncia, da razo, da corporeidade, da tica e da poltica, para a existncia pessoal e coletiva, enfatiza tambm o papel das emoes, dos sentimentos, dos desejos, da vontade, da deciso, da resistncia, da escolha, da curiosidade, da criatividade, da intuio, da estecidade, da boniteza da vida, do mundo, do conhecimento. No que tange s emoes, reafirma a amorosidade e a afetividade, como fatores bsicos da vida humana e da educao (ANDREOLA, 2000, p. 22).

    Amorosidade e dilogo oportunizam aos indivduos viver em plenitude o processo de

    humanizao e de estabelecimento de sua presena no mundo e na teia de relaes com os

    demais. Isso porque, segundo Freire (1987, p. 79-80), a pronncia do mundo s possvel

    quando existe amor, na condio de fundante e decisivo para que a ao humana seja

    comprometida com o outro.

  • Na educao, a amorosidade se materializa no estabelecimento de relaes de ensino e

    de aprendizagem dialgicas e respeitosas, onde a construo de conhecimentos e a insero

    crtica na cultura se conectam com a vivncia de valores e com o acolhimento do outro,

    aliando os processos de humanizao e de desenvolvimento cognitivo. Para tanto:

    [...] preciso que a escola progressista, democrtica, alegre, capaz, repense toda essa questo das relaes entre corpo consciente e mundo. Que reveja a questo a questo da compreenso do mundo, enquanto produzindo-se historicamente no mundo mesmo e tambm sendo produzida pelos corpos conscientes em suas interaes com ele. Creio que desta compreenso resultar uma nova maneira de entender o que ensinar, o que aprender, o que conhecer [...] (FREIRE, 2001, p. 73).

    A construo desta nova compreenso do ato de educar, concebendo ensinar e

    aprender no como mera aquisio de um conjunto de saberes e de prticas, mas como

    possibilidade de conhecer e superar vises ingnuas e fragmentadas, ampliando a capacidade

    de leitura crtica do mundo em interao com as distintas vises dos outros, demanda um

    duplo compromisso: com a cultura e o mundo e com os educandos.

    A seriedade e o rigor esto implcitos na prtica pedaggica baseada na amorosidade e

    no dilogo, posto que, dialogar e demonstrar amor pelos estudantes no significa infantizar ou

    docilizar a educao, nem assumir o papel de bonzinho. O professor que assume seu amor

    pelo mundo e pelos educandos, o demonstra por meio da seriedade no planejamento de suas

    aulas, da busca constante de prticas que promovam a aprendizagem, do estabelecimento de

    vnculos afetivos saudveis, em que todos se sintam acolhidos e, portanto, convidados a se

    expressar.

    Para Freire (1996, p. 159-160):

    Essa abertura de querer bem no significa, na verdade, que, porque professor, me obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira igual. Significa, de fato, que a afetividade no me assusta, que no tenho medo de express-la. Significa, esta abertura ao querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar meu compromisso com os educandos, numa prtica especfica do ser humano. Na verdade, preciso descartar como falsa a separao radical entre seriedade docente e afetividade. No certo, sobretudo do ponto de vista democrtico, que serei to melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais distante e cinzento me ponha nas minhas relaes com os alunos, no trato dos objetos cognoscveis que devo ensinar. A afetividade no se acha excluda da cognoscibilidade.

    A amorosidade, caracterstica da postura do educador, o auxiliar no estabelecimento

    de uma relao equilibrada e mediada pela afetividade, primando pelo estudo srio dos

    contedos, pela formao humanista, pela convivncia saudvel, em que os indivduos so

  • acolhidos e o egosmo recusado. Ou seja, o amor se manifesta no desejo de formar pessoas,

    empenhando-se em faz-lo da melhor forma possvel.

    preciso, [...] reinsistir em que no se pense que a prtica educativa vivida com afetividade e alegria, prescinda da formao cientfica sria e da clareza poltica dos educadores ou educadoras. A prtica educativa tudo isso: afetividade, alegria, capacidade cientfica, domnio tcnico a servio da mudana ou, lamentavelmente, da permanncia do hoje (FREIRE, 1996, p. 161).

    O processo educativo conduzido com afetividade e seriedade volta-se para a

    aprendizagem como humanizao e como possibilidade de ser mais, oportunizando aos

    indivduos avanos em direo quilo que podem ser, desenvolvendo potencialidades,

    conhecimentos e capacidade de assumir seu lugar junto aos demais.

    Para Calado (2001, p. 52):

    Feito para o ser mais, o ser humano ontologicamente chamado a desenvolver, nos limites e nas vicissitudes de seu contexto histrico, todas as suas potencialidades materiais e espirituais, buscando dosar adequadamente seu protagonismo no enorme leque de relaes que a vida lhe oferece, incluindo as relaes no mundo e com o mundo, as relaes intrapessoais, interpessoais, estticas, de gnero, de etnia e de produo.

    A humanizao, enquanto vocao ontolgica, oportuniza reinventar o mundo, buscar

    sua boniteza nas relaes consigo e com os demais. Este , para Freire (2005), o objetivo

    central da educao libertadora, cujo desafio maior repousa na esperana de reinventarmos o

    mundo.

    Tal concepo nos aproxima do conceito arendtiano de amor mundi, posto que, para

    Hannah Arendt (1972), a educao expressa tanto o nosso amor pelas crianas como pelo

    mundo, cabendo tarefa educativa uma atitude de conservao do mundo. O educador precisa

    responder pelo mundo, dando a ele um novo nascimento.

    Almeida (2009) salienta que, para Arendt:

    O amor mundi trata o mundo que se forma como tempo-espao, assim que os homens esto no plural [...], em que construmos nossas casas, nos instalamos, querendo deixar algo permanente. O mundo ao qual pertencemos, porque somos no plural, em que permanecemos eternamente estrangeiros porque somos no singular, cuja pluralidade, e somente ela, nos permite estabelecer nossa singularidade.

    A atitude de amor mundi, definida, por Arendt, como admirao pela obra das

    geraes humanas passadas e de desejo que tal obra seja preservada para as geraes que

    ainda viro. Essa atitude de preservao e de amor a ele, o educador dever inspirar em seus

  • alunos na escola, capacitando-os a compreender que este mundo o lar comum de mltiplas

    geraes, percebendo a importncia de sua relao com geraes passadas e vindouras: tal

    relao se dar, primeiro, no sentido de preservar o tesouro das geraes passadas, isto , no

    sentido de a gerao do presente tomar o cuidado de trazer a esse mundo sua novidade sem

    que isso implique a alterao, at ao no reconhecimento, do prprio mundo, da construo

    coletiva do passado (FRANCISCO, 2007, p. 35).

    Com o rompimento da tradio, a tarefa do educador encontra-se ameaada. Por tal

    razo, torna-se imprescindvel que o professor e os adultos, de maneira geral, se reconciliem

    com o mundo, expressando o desejo de que esse continue a existir para as futuras geraes. a

    quebra da tradio significa o rompimento do fio que liga as diferentes geraes. A tarefa de

    preservar o passado sem auxlio da tradio e contra os modelos e interpretaes tradicionais

    a mesma para toda a civilizao ocidental (...). O fio da tradio est rompido e temos que

    descobrir o passado por ns mesmos isto , ler seus autores como se ningum os houvesse

    jamais lido antes (ARENDT, 1972, p. 256-257).

    Sendo assim, o professor dever permitir o acesso ao antigo, interligando-o ao novo. Como o mundo sempre mais velho do que aqueles que nele nascem, preciso ensinar-lhes mais do que lhes

    inculcar uma arte de viver. Releva, pois, dirigir seus olhares, fascinados pelo presente, em direo ao

    passado, reintroduzindo o passado no presente atravs de narrativas (COURTINE-DENAMY, 2004, p.

    176).

    [...] a perda da permanncia e da segurana do mundo que politicamente idntica perda da autoridade no acarreta, pelo menos no necessariamente, a perda da capacidade humana de construir, preservar e cuidar de um mundo que nos pode sobreviver e permanecer um lugar adequado vida para os que vm aps (ARENDT, 2005, p. 132).

    A atitude de cuidado com o mundo, de admir-lo e preserv-lo, de exercitar livremente nosso

    gosto, ou seja, a capacidade de responder pelo mundo, se relaciona com a recuperao da faculdade de

    agir, de pensar sobre o que fazemos e de produzir histrias e narrativas, uma vez que assumir

    compromisso com o mundo implica em conhec-lo e encontrar aspectos merecedores de cuidado e

    preservao, pensando e agindo em defesa da constituio de uma esfera adequada vida digna de

    todos os indivduos que partilham este espao.

    Inspirar nos educandos o amor pelo mundo requer que o professor exera a tarefa de

    apresentar, [...] e de representar o mundo diante dos forasteiros. Como representante deste,

    sua tarefa proteg-lo e conserv-lo, mostrando sua relevncia para os novos. Se sua

    qualificao consiste em seu conhecimento, sua autoridade frente aos recm-chegados reside

  • nesse seu ofcio de representante que o autoriza a introduzi-los neste lugar (ALMEIDA, 2009,

    p. 31).

    Por mais antagnico que possa parecer a amorosidade vincula-se autoridade, uma

    vez que por amor s novas geraes, o educador dever se posicionar diante deles como

    algum capaz de proteg-las da exposio a situaes para as quais ainda no estejam

    preparadas e de proporcionar-lhes o contato com a bagagem cultural da humanidade,

    apropriando-se dela e introduzindo-se neste espao-tempo.

    O exerccio da autoridade do educador se alicera, de acordo com Almeida (2009, p.

    32), nos saberes, nos valores e nos princpios do mundo comum e da instituio escolar que

    ele representa. o lugar que ele ocupa e a as tarefa especfica que lhe conferem autoridade

    que, contudo, no se estende a outras esferas fora da escola.

    Freire (1996, p. 99) considera que o estabelecimento da autoridade configura as bases

    da disciplina em sala de aula, pois: [...] resultando do equilbrio entre autoridade e liberdade,

    a disciplina implica necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assuno de

    que ambas so feitas de limites que no podem ser transgredidos.

    A autoridade do educador e as qualificaes do professor no so a mesma coisa.

    Embora certa qualificao seja indispensvel para a autoridade, a qualificao, por maior que

    seja, nunca engendra por si s autoridade. A qualificao do professor consiste em conhecer o

    mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porm sua autoridade se assenta na

    responsabilidade que ele assume por este mundo. Face criana, como se ele fosse um

    representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo criana: - Isso

    o nosso mundo (ARENDT, 1972, p. 239).

    Freire (1996, p. 102-103) acrescenta que a competncia tcnica, sozinha, no

    configura a autoridade docente. Alm do domnio de contedos, das especificidades do

    processo de esninar e aprender, dos movimentos da Pedagogia e das propostas didticas

    coerentes com as demandas educativas atuais, o educador necessita promover a generosidade

    em sala de aula, estabelecendo um equilbrio entre autoridade e liberdade, orientando os

    estudantes para a assuno de responsabilidades, para a tomada de decises e para a

    construo da autonomia.

    Educamos sempre para um mundo que criado e serve de lar para mortais, e, portanto,

    deve ser constantemente posto em ordem. Arendt (1972, p. 243) lembra que: Nossa

    esperana est pendente sempre do novo que cada gerao aporta, mas sem nos basearmos

    somente nisso sob pena de destruirmos sua trajetria ao tentar ditar sua aparncia futura. Por

    esta razo, educar no sinnimo de inculcao (ou de domesticao, nos termos de Freire).

  • Por outro lado, a escola no lugar de recreao, onde no exista disciplina ou tarefas a

    cumprir.

    Exatamente em benefcio daquilo que novo e revolucionrio em cada criana que a

    educao precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo

    novo em um mundo velho, que, por mais revolucionrio que possa ser em suas aes,

    sempre, do ponto de vista da gerao seguinte, obsoleto e rente destruio (ARENDT, 1972,

    p. 243).

    Em virtude disso, Arendt (1972, p. 245-246) considera que o desafio da educao

    manter a autoridade e a tradio e, ao mesmo tempo, caminhar em um mundo que no

    estruturado pela autoridade nem mantido coeso pela tradio. Isso requer que os adultos

    (professores e todos os demais) tenham uma relao com a criana diferente da que tm uns

    com os outros, divorciando o mbito da educao dos demais, aplicando a ele o conceito de

    autoridade e o respeito ao passado necessrio.

    A crise da autoridade na educao est ligada crise da tradio, com a crise de nossa

    atitude face ao mbito do passado. difcil ao educador arcar com esse aspecto da crise

    moderna, pois cabe ao educador ser o mediador entre o velho e o novo, por isso, deve ter um

    grande respeito pelo passado (ARENDT, 1972, p. 243-244).

    Nas circunstncias atuais, torna-se imprescindvel buscar novas respostas aos impasses

    e demandas que chegam escola, j que as aes decorrentes das teorias modernas da

    Pedagogia e da Psicologia contriburam para aprofundar a crise instaurada na educao,

    implicando na perda da autoridade do educador diante dos alunos e na transformao do

    ensino em uma prtica superficial, onde os contedos so negligenciados.

    Para aprender a criana necessita desse amadurecimento, desse progressivo abandono

    do comportamento infantil, para que possa se dedicar tarefa de aprender. Atividade que,

    conforme Arendt (1972, p. 231), foi seriamente prejudicada pela assuno do paradigma do

    pragmatismo na educao, segundo o qual s possvel conhecer e compreender aquilo que

    ns mesmos fazemos, substituindo-se o aprendizado pelo fazer.

    Disso resultou o empobrecimento do processo formativo dos educadores, relegando-se

    a segundo plano o domnio em relao sua matria, para lev-los ao exerccio da atividade

    de aprendizagem, de tal modo que ele no transmitisse conhecimento petrificado, mas, ao

    invs disso, demonstrasse constantemente como o saber produzido.

    Sob a alegao de que a escola tem de inovar e no pode transmitir contedos e

    conhecimentos petrificados, professores e especialistas em educao passam a buscar

    receitas de como ensinar, o que gera um inflacionamento das criaes pedaggicas. Nunca

  • como hoje devem ter havido tantos cursos de psicopedagogia. Nunca como hoje devem ter se

    produzido tantas dissertaes e teses preocupadas com a educao, bem como preenchido

    questionrios e proves. No entanto, nunca como hoje algum pde chegar e at sair da

    prpria universidade carecendo de toda disciplina intelectual (LAJONQUIRE, 2002, p. 27).

    Arendt (1972, p. 232-233) exemplifica a conexo entre a substituio da

    aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar por meio do ensino de lnguas, em que a

    criana deve aprender falando, assim como aprendeu sua prpria lngua, no atravs do estudo

    da gramtica e da sintaxe. Esse processo tenta infantilizar a criana. Sendo o hbito de

    trabalhar o que prepara, progressivamente, a criana para o mundo dos adultos, este

    substitudo pelo brincar, sob o pretexto de respeitar a autonomia do mundo da infncia.

    A conexo entre fazer e aprender, e, a frmula pragmtica aplicada educao, ao

    modo de aprendizagem da criana, torna absoluto o mundo da infncia, excluindo-se a criana

    do mundo dos adultos e mantendo-a artificialmente no seu prprio mundo. Esta reteno da

    criana artificial porque extingue o relacionamento natural entre crianas e adultos, o qual,

    entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta o fato de que a

    criana um ser humano em desenvolvimento, de que a infncia uma etapa temporria, uma

    preparao para a condio adulta (ARENDT, 1972, p. 233).

    Certamente, a experincia de escolarizao deve ser prazerosa e proporcionar aos

    estudantes o encantamento necessrio para que desejem no apenas ingressar, mas

    permanecer na escola. Todavia, o objetivo central da escola no a recreao, mas a

    aquisio de pr-requisitos para compreender o mundo e a preparao para a vida adulta.

    Com base no pensamento arendtiano, verificamos que a superao da crise na

    educao requer a adoo de medidas como: a conduo do ensino com autoridade; a

    interrupo do brinquedo durante as horas de aula; o deslocamento da nfase das habilidades

    extracurriculares para os conhecimentos prescritos pelo currculo; a transformao do

    currculo dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se

    converterem em negligentes para com as crianas. necessrio, pois, reformular os currculos

    das escolas secundrias e elementares de modo a prepar-las para as exigncias inteiramente

    novas do mundo de hoje.

    O que importa aqui a dupla questo: - quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional, isto , quais so os motivos reais para que, durante dcadas, se pudesse dizer e fazer coisas em contradio to flagrante com o bom senso? Em segundo lugar, o que podemos aprender dessa crise acerca da essncia da educao no no sentido de que sempre se pode aprender, dos erros, o que no se deve fazer, mas sim refletindo

  • sobre o papel que a educao desempenha em toda civilizao, ou seja, sobre a obrigao que a existncia de crianas impe a toda a sociedade humana? (ARENDT, 1972, p. 234)

    Assim somos instigados a pensar nos significados da aprendizagem nos dias de hoje,

    que longe de visar mera aquisio de habilidades e competncias, como vem sendo

    defendido amplamente nos discursos psicopedaggicos, implica na capacidade de entender o

    mundo adulto, inserindo-se nele coerentemente. Portanto, no se pode negligenciar o ensino

    de contedos, a partir dos quais as crianas possam ampliar suas capacidades de compreenso

    do mundo.

    So indispensveis ao educador: uma base slida de conhecimentos; o domnio da

    disciplina com a qual trabalha e; acima de tudo, a responsabilidade diante do mundo ao qual

    trazemos nossas crianas. Isso porque, de acordo com Arendt (1972, p. 247), a educao

    revela o quanto amamos nosso mundo e desejamos evitar que ele seja destrudo pela chegada

    dos novos e a consequente introduo da novidade. E, ao mesmo tempo, expressa nosso amor

    pelas crianas, de maneira que possamos acolh-las em um mundo formado por objetos e

    fatos dignos de serem cuidados e preservado.

    Do mesmo modo que, para Arendt (1972) a escola no local para a recreao, Freire

    (1999, p.83) diferencia aprender e entretenimento, afirmando que a disciplina permeia a

    experincia de aprendizagem. Ao estabelecer a disciplina, em sala de aula, cria-se um clima

    propcio ao ato de estudar, de aprender, de conhecer, de ensinar, distinto do puro

    entretenimento.

    A prtica educativa, conforme Freire (1999), difcil, exigente, no pode ter "regras

    frouxas", no entanto, tambm no pode ser um ato insosso, desgostoso, enfadonho, deve ser

    prazeroso. H alegria embutida na aventura de conhecer, de descobrir, sem a qual o ato

    educativo pode se tornar desmotivador. Mesmo assim, "Estudar , realmente um trabalho

    difcil. Exige de quem faz uma postura crtica, sistemtica. Exige uma disciplina intelectual

    que no se ganha a no ser praticando-a" (FREIRE, 1982, p. 9). a postura ativa, criativa,

    crtica, necessria para a construo da autonomia, que a disciplina tpica da educao

    bancria abafa e a disciplina respeitosa da educao dialgica promove.

    Educar , portanto, oportunizar momentos de construo de conhecimento, em que

    professor orienta os alunos em suas interaes em sala de aula e no processo de apropriao

    da cultura e dos contedos, os quais permitem que se situem neste mundo e desenvolvem suas

    potencialidades.

  • Por isso, a autoridade do educador temporria (ARENDT, 1972, p. 246), cuja

    durao equivale ao tempo que as novas geraes necessitam para conhecer o mundo,

    construindo os subsdios de que necessitam para estabelecer sua presena neste mundo e, para

    que, quando adultos, possam exercer a cidadania, agindo politicamente junto aos demais.

    Uma relao amorosa e dialgica se embasa no respeito dignidade dos sujeitos,

    assegurando espao para que cada um possa expressar-se, sem, contudo, abrir mo da

    autoridade, enquanto educador. Trata-se, pois, de constituir um espao adequado construo

    de conhecimentos, sem cair nem no extremo da permissividade e da licenciosidade, nem no

    extremo do autoritarismo. Este espao, como descreve Freire (1996, p. 99), baseia-se na

    disciplina, que [...] resultando do equilbrio entre autoridade e liberdade, implica

    necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assuno de que ambas so feitas

    de limites que no podem ser transgredidos. Relaes justas e generosas geram um clima em

    que a autoridade do professor e a liberdade do aluno se assumem em sua eticidade (FREIRE,

    1996, p. 102-103).

    Assim como a escola no pode doutrinar os alunos, formando para a servilidade, ela

    no pode abrir mo da rigorosidade, da qualidade das prticas, a fim de possibilitar a efetiva

    aprendizagem e a ampliao dos entendimentos sobre o mundo e sobre a realidade.

    Nas palavras de Freire (1996, p. 102-103), a educao dever contribuir para a

    superao da heteronomia, uma vez que todas as decises so tomadas pelo professor, sem

    que os estudantes participem do processo decisrio. No outro extremo, se o professor adota

    uma postura licenciosa, os alunos ficaro por conta prpria, sem referenciais seguros para

    compreender o mundo e nele se situar. O melhor para a promoo da autonomia, que a

    liberdade possa se constituir assumindo seus limites criticamente. O confronto com as demais

    liberdades e com a autoridade dos pais, professores, do Estado, bom e necessrio, pois

    amadurece a liberdade, ela descobre que no absoluta, mas cerceada por outras liberdades

    e pela autoridade, e sua autonomia no absoluta ou auto-suficiente.

    A representao do mundo defendida por Arendt (1972), em Freire ganha o sentido de

    testemunho, a partir do qual o educar estimula os educandos a tomarem decises e a

    assumirem responsabilidades. A construo da autonomia requer a prtica do dilogo, por

    meio da qual se exercita o escutar e o falar com os outros (FREIRE, 1996, p. 127).

    Arendt (1972, p. 247) alerta que no se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar;

    uma educao sem aprendizagem vazia; portanto, degenera, com muita facilidade, em

    retrica moral e emocional. muito mais fcil, porm, ensinar sem educar, e pode-se

    aprender durante o dia todo sem por isso ser educado. A escola precisa, dessa forma,

  • promover o estabelecimento de uma relao de ensino e aprendizagem, na qual o educador

    conduz o aluno aquisio de saberes significativos que o auxiliem a compreender a

    realidade do mundo em que est se inserindo.

    Ser professor exige a estima e o respeito necessrios para dedicar-se ao ensino,

    esquecendo de si e buscando a promoo do outro, no sentido de contribuir para o seu

    amadurecimento e aquisio de saberes e competncias. Exige, tambm, que o educador se

    constitua como um dos referenciais de que as crianas e jovens necessitam para guiar-se em

    sua insero no mundo, apreendendo os elementos culturais acumulados ao longo do tempo.

    Para inspirar confiana, o professor deve demonstrar profundidade em termos de

    conhecimento e responsabilidade como cidado. Como afirma Arendt (1972), um dos

    problemas da educao reside na negligncia na formao dos professores em sua prpria

    matria, no raro encontrando-se apenas um passo frente de sua classe em conhecimento.

    A fonte legtima da autoridade do professor como a pessoa que sabe mais e pode fazer mais

    que ns, torna-se ineficaz. Dessa forma, o professor no autoritrio, que gostaria de se abster

    de todos os mtodos de compulso por ser capaz de confiar apenas em sua prpria autoridade,

    no pode mais existir (1972, p. 231).

    Amorosidade e autoridade tornam-se as bases de um processo educativo no-

    autoritrio, que se distingue da permissividade e da licenciosidade. A disciplina organiza as

    situaes de ensino e de aprendizagem sem conduzir ao autoritarismo, mas, ao contrrio,

    garantindo espao para o dilogo e para a liberdade, para a participao e para a partilha de

    saberes e percepes.

    O autoritarismo e a licenciosidade so rupturas do equilbrio tenso entre autoridade e liberdade. O autoritarismo a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade; e a licenciosidade, a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade. Autoritarismo e licenciosidade so formas indisciplinadas de comportamento que negam o que venham chamando a vocao ontolgica do ser humano. Assim como inexiste disciplina no autoritarismo ou na licenciosidade, desaparece em ambos, a rigor, a autoridade ou a liberdade. Somente nas prticas em que autoridade e liberdade se afirmam e se preservam enquanto elas mesmas, portanto no respeito mtuo, que se pode falar de prticas disciplinadas como tambm em prticas favorveis vocao para o ser mais (FREIRE, 1996, p. 99).

    O compromisso com a aprendizagem dos contedos se expressa numa relao

    amorosa e dialgica entre professor e estudantes, aliando os referenciais afetivos, humanos,

    cientficos, epistemolgicos e ticos.

  • Na realidade contempornea, a lacuna entre o passado e o futuro, marcada pela ruptura

    da tradio e da autoridade, nos desafia a buscar a recuperao do sentido do educar,

    apostando na capacidade humana de iniciar o novo.

    Essa transmisso revela, tambm, o compromisso de fomentar a autoria. Isso ,

    mobilizar nos estudantes a capacidade de assumir a autoria, de emancipar-se pelo

    conhecimento, posto que, como destaca Arendt (1972, p. 233) no se pode infantilizar as

    crianas, negando o carter temporrio da infncia e a sua importncia na preparao para a

    condio adulta. Bem como, Paulo Freire (1996, p. 121) ressalta o respeito autonomia e

    dignidade de cada um como um imperativo, enquanto amadurecimento do ser para si,

    processo, vir a ser, estimulando a deciso e a responsabilidade.

    Toniolo (2010, p. 68) indica como fundamental no processo educacional que educador

    e educando compreendam a relao que envolve o ato de conhecer enquanto abertura ao novo,

    ao dilogo, indagao, curiosidade impulsionadora da busca pelo conhecimento. No

    entendimento freireano: o fundamental que o professor e os alunos saibam que a postura

    deles [...] dialgica, aberta, curiosa, indagadora e no apassivada, enquanto fala ou enquanto

    ouve. O que importa que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos

    (FREIRE, 1996, p. 96).

    Desse modo, educar no transmitir informaes de forma bancria, nem ser

    licencioso. Educar , sim, propiciar situaes de ensino e aprendizagem, por meio das quais,

    os educandos possam ter acesso ao conhecimento sistematizado, desenvolver suas

    potencialidades e ampliar suas compreenses acerca da realidade em que se inserem,

    tornando-se, assim, progressivamente, capazes de assumir seu espao no mundo, associando-

    se aos demais, por meio da palavra e da ao, e traduo da conscincia do pertencimento ao

    mundo comum. Numa educao com estes contornos reside nossa esperana na transformao

    da realidade e na escrita de histrias dignas e felizes.

    REFERNCIAS:

    ALMEIDA, Vanessa Sievers. Amor mundi e educao. Reflexes sobre o pensamento de Hannah Arendt. So Paulo: USP, 2009.

    ANDREOLA, Balduno Antonio. Carta-prefcio a Paulo Freire. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignao: cartas pedaggicas e outros escritos. So Paulo: UNESP, 2000.

    ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. So Paulo: Editora Perspectiva, 1972.

  • CALADO, Alder Jlio Ferreira. Paulo Freire: sua viso de mundo, de home e de sociedade. Caruaru: FAFICA, 2001.

    FRANCISCO, Maria de Ftima Simes. Preservar e renovar o mundo. Hannah Arendt Pensa a Educao. REVISTA EDUCAO. Especial: Biblioteca do Professor. So Paulo: Editora Segmento, 2007.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

    _____. Comunicao e Extenso. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. _____. Educao como prtica de liberdade. 22. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

    _____. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. 7. ed. So Paulo: Paz e Terra, 1996.

    _____. Professora SIM, tia NO: cartas a quem ousa ensinar. 11. ed. So Paulo: Olho dgua, 1999.

    TONIOLO, Joze Medianeira dos Santos de Andrade. Dilogo e amorosidade em Paulo Freire: princpios s atitudes na formao de professores. Santa Maria (RS): UFSM, 2010.