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    Revista Reflexo e Ao, Santa Cruz do Sul, v.19, n2, p.42-55, jul./dez. 2011

    O CONCEITO DE EXPERINCIA EM MICHEL FOUCAULT

    Maximiliano Valerio Lpez

    1

    Resumo

    O conceito de experincia se apresenta, na obra de Foucault, como uma constelao

    integrada por trs problemticas intimamente vinculadas entre si: os jogos de verdade, as

    relaes de poder e as formas de subjetividade s quais estes jogos do lugar. Estes

    elementos so veiculados a travs de dispositivos heterogneos (proposies cientficas,procedimentos administrativos, estruturas arquitetnicas, etc.) que abarcam tanto o mbito

    do dito como do no dito. Tais dispositivos configuram uma experincia histrica

    singular, na qual o ser (o sujeito) se pensa a si prprio e se toma como objeto de ao

    moral. No entanto, toda a obra do autor est perpassada por uma tenso entre a

    possibilidade de, por meio de minuciosos estudos histricos, estabelecer os limites dessa

    experincia histrica, e um exerccio propriamente filosfico a travs do qual se tenta fazer

    experincia do prprio limite, quer dizer, realizar uma experincia trgica capaz de colocar

    em entredito a prpria experincia e as formas de subjetividade qual ela est ligada.

    Palavras-chave: Experincia Histrica; Experincia Trgica; Poder; Saber,

    Subjetividade; Dispositivo.

    1. O conceito de experincia

    1Mr. Maximiliano Valerio Lpez. Rua Pachual Carlos Magno 103, apartamento 401. Santa Teresa. Rio de

    Janeiro. Tel. (55-21) 2507-4705. Endereo eletrnico: [email protected] [email protected] em Ciencias de la Educacin pela Universidad Nacional de Cuyo (Argentina); Especialista emEnsino da Filosofia pela Universidade de Braslia (UNB); Mestre em Educao pela Universidade do Estadodo Rio de Janeiro (UERJ) Doutorando em Educao pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Vinculoempregatcio atual: Professor assistente na Universidade Federal Fluminense (UFF).

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    Segundo uma afirmao, cada vez mais familiar no mbito da filosofia, esta

    consistiria na criao de conceitos. Esses conceitos seriam espcies de ns ou pontos de

    condensao do pensamento de cada filsofo. Pois bem, gostaria de sustentar aqui que h

    um conceito de experincia que leva a assinatura de Michel Foucault.

    Digamos junto com Gilles Deleuze e Felix Guattari que no h conceitos simples,

    que cada conceito tem componentes que podem, por sua vez, ser tomados como

    conceitos e que, por outro lado, prprio do conceito tornar os componentes inseparveis

    nele: distintos, heterogneos e, todavia, no separveis.... (DELEUZE; GUATTARI, 1992,

    p. 27-31). Cada conceito se nos apresenta ento como um composto heterogneo e

    indivisvel, um arquiplago ou uma constelao, e se define, precisamente, pela sua

    consistncia, quer dizer, pela relao intrnseca que esses elementos estabelecem entre eles.Assim, para compreender o conceito de experincia, no horizonte do pensamento de Michel

    Foucault, devemos considerar os elementos que o compem e a relao que entre eles se

    estabelece.

    Com frequncia acostuma-se organizar a obra de Michel Foucault em torno a trs

    eixos ou tpicos principais: o saber (a anlise do discurso, a experincia literria, a

    arqueologia dos sistemas de pensamento, a episteme, etc.), o poder (a genealogia dos

    dispositivos de controle social, os sistemas disciplinares, o panptico, etc.) e a

    subjetividade (os estudos acerca da maneira em que os sujeitos so levados a se colocar,

    diante de si mesmos, como objetos de saber e ao moral: os exerccios espirituais, as artes

    da existncia, etc.). Esses trs domnios delimitariam tambm trs perodos na sua obra: o

    primeiro, ligado ao saber, se desenvolve aproximadamente desde a publicao de sua

    primeira grande obra Histria da loucura (1961) at a publicao de A arqueologia do

    saber (1969), neste perodo estariam tambm includas trabalhos como O nascimento da

    Clnica (1963) e As palavras e as coisas (1966); o segundo perodo, ligado questo do

    poder, estender-se-ia desde princpios dos anos 70 at 1976 e incluiria Vigiar e punir(1975) e o primeiro volume da Historia da sexualidade, intitulado, A vontade de saber

    (1976); o terceiro e ltimo perodo, ligado a subjetividade, compreenderia o segundo e

    terceiro volume da Histria da sexualidade, intitulados, respectivamente, O uso dos

    prazeres e O cuidado de si, ambos de 1984. Embora essa classificao tenha um

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    indiscutvel valor didtico acaba muitas vezes dando a impresso de que, na obra de

    Foucault, um domnio v substituindo outro, assim como, a nvel metodolgico, o mtodo

    genealgico substituindo o mtodo arqueolgico. Mas, se levarmos em considerao a

    anlise retrospectiva que o prprio Foucault lana sobre a sua obra nos ltimos anos, parece

    mais adequado compreender estes deslocamentos temticos e metodolgicos como

    dimenses de um mesmo e nico projeto.

    Numa entrevista com Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, de 1983, o autor declara:

    Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo de meu trabalho nosltimos vinte anos. No foi analisar o fenmeno do poder nem elaborar osfundamentos de tal anlise. Meu objetivo, ao contrario, foi criar uma histria dosdiferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se

    sujeitos. Meu trabalho lidou com trs modos de objetivao que transformam osseres humanos em sujeitos. O primeiro o modo da investigao, que intentaatingir o estatuto de cincia, como, por exemplo, a objetivao do sujeito dodiscurso na gramaire gnrale, na filologia e na lingstica. Ou, ainda, aobjetivao do sujeito produtivo, do sujeito que trabalha, na anlise das riqueza eda economia. Ou, um terceiro exemplo, na objetivao do simples fato de estarvivo na histria natural e na biologia. Na segunda parte de meu trabalho, estudeia objetivao do sujeito naquilo que eu chamarei de prticas divisoras. O sujeito

    dividido no seu interior e em relao aos outros. Este processo o objetiva.Exemplos: o louco e o so, o doente e o sadio, os criminosos e os bonsmeninos. Finalmente, tentei estudar meu trabalho atual- o modo pelo qual umser humano torna-se um sujeito. Por exemplo: eu escolhi o domnio dasexualidade como os homes aprendem a se reconhecer como sujeitos de

    sexualidade. Assim, no o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral deminha pesquisa. (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 231-232).

    no interior desta perspectiva mais abrangente que devemos situar a anlise do

    conceito foucaultiano de experincia. Se cada conceito est composto por elementos, que

    por sua vez podem ser tomados como conceitos, digamos ento, que os trs motivos em

    questo (o saber, o poder e a subjetividade) podem ser considerados elementos do conceito

    de experincia.

    importante destacar tambm que todo conceito remete a um problema sem o qual

    careceria de sentido e que, ao mesmo tempo, um problema s se torna perceptvel em

    funo do conceito que o faz emergir. Existe uma solidariedade ntima entre conceito e

    problema. Digamos por tanto, que se o conceito de experincia se define estruturalmente

    em relao aos conceitos de saber, poder e subjetividade, o problema ao qual eles se

    vinculam formulado por Foucault na citao que acabamos de ler da seguinte maneira:

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    entender os diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se

    sujeitos(DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 231-232).

    Na introduo de O uso dos prazeres(segundo volume daHistria da sexualidade),

    publicado um ano aps a mencionada entrevista, o autor volta mais uma vez sobre suas

    pegadas para dar conta das peripcias de seu projeto mais recente. Uma srie de problemas

    tinha atrasado oito anos a publicao do livro e destas dificuldades, e das mudanas que

    acarretaram, de que fala na introduo. A histria que me propunha escrever, diz o autor,

    no pretendia ser nem uma histria dos comportamentos nem uma histria das

    representaes, mas uma historia da sexualidade como experincia (FOUCAULT, 1984,

    p. 10-11).

    Tratava-se de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais modernas,constituiu-se uma experincia2tal, que os indivduos so levados a reconhecer-se como sujeitos de uma sexualidade queabre para campos de conhecimento

    bastante diversos, e que se articulada em um sistema de regras e coeres. Oprojeto era, portanto, o de uma histria da sexualidade enquanto experincia, seentendemos por experincia a correlao, em uma cultura, entre campos de saber,tipos de normatividade e formas de subjetividade. [...] Falar da sexualidadecomo uma experincia historicamente singular suporia, tambm, que pudessedispor de instrumentos suscetveis de analisar, em seu prprio carter e em suascorrelaes, os trs eixos que a constituem: a formao dos saberes que a ela sereferem, os sistemas de poder que regulam sua prtica e as formas pelas quais osindivduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade.(FOUCAULT, 1984, p. 10-11).

    Deste modo Foucault evoca o conceito de experincia para dar conta da correlao,

    dentro de uma cultura, entre os trs eixos j mencionados: o saber, o poder e a

    subjetividade. A experincia histrica (neste caso, da sexualidade) no outra coisa que a

    trama de discursos e prticas por meio dos quais se d forma quilo que somos. essa

    trama a que constitui nossa experincia possvel em cada lugar e cada momento. A

    experincia no aqui a experincia em geral, mas a experincia concreta, histrica e

    culturalmente situada. No se trata de determinar as condies de possibilidade daexperincia humana, colocando como apriorium sujeito transcendental ou universal, seno

    de tornar visveis as condies concretas que tem permitido a conformao de um particular

    tipo de experincia. precisamente essa experincia histrica a que cria o sujeito, no um

    2As aspas se encontram no original.

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    sujeito universal, mas uma singular forma de sujeito: uma subjetividade. No h primeiro

    um sujeito transcendental, a partir do qual possam se explicar as condies de possibilidade

    da experincia, ao contrrio, a experincia histrica a que explica a emergncia de um

    tipo particular de subjetividade. No se trata ento de descobrir a verdade a partir do

    sujeito, mas de estudar, os jogos de verdade e as prticas concretas com base nas quais o

    sujeito se constitui historicamente. Os estudos foucaultianos nos falam de um particular uso

    da histria:

    Uma histria que no seria aquela do que poderia haver de verdadeiro nosconhecimentos; mas uma anlise dos jogos de verdade, dos jogos entre o

    verdadeiro e o falso, atravs dos quais o ser se constitui historicamente comoexperincia, isto , como podendo e devendo ser pensado. (FOUCAULT, 1984,

    p. 13).

    2. Uma ontologia do presente: a questo da Aufklrung

    Poder-se-ia dizer que Foucault trousse para o interior da filosofia um olhar

    etnogrfico, como aquele que Lvi-Strauss e outros antroplogos contemporneos tinham

    desenvolvido em relao a culturas alheias. A filosofia de Michel Foucault , em certo

    sentido, uma etnografia da prpria cultura europia, o que pressupe olhar a prpria

    tradio como se ela fosse estranha, tentando escapar de todos aqueles apriorisantropolgicos e de todos aqueles universalismos caractersticos do etnocentrismo europeu;

    aquele mesmo etnocentrismo que substancializou os traos contingentes de sua prpria

    tradio. nesse sentido, que Foucault contrape a analtica da verdadeprpria da

    filosofia tradicional, quilo que ele denomina uma ontologia histrica do presente, no

    intuito de desenvolver uma filosofia da cultura refratria a qualquer pretenso de

    universalidade. precisamente desde essa perspectiva que ir recuperar, a sua maneira, a

    famosa interrogao que em 1784 lanara o filsofo alemo Immanuel Kant: Was heisst

    Aufklrung? [o que a ilustrao?], ou seja, o que nos acontece hoje, nesse preciso

    momento da histria? Ou, nos termos de Foucault: quem somos ns, hoje? No quem

    somos ns em geral (universalmente), mas quem somos ns, agora, neste singular momento

    histrico, e no interior das fronteiras desta experincia cultural que a nossa?

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    Trata-se de fazer a historia da constituio da experincia de si dos povos

    europeus, com todas as suas contingncias culturais e histricas, recusando qualquer idia

    de origem transcendental ou divina, qualquer privilegio em relao a outras tradies,

    estudando a contingncia histrica de aquilo que aparece na tradio europia como

    universal e necessrio. Estudando a maneira como o ser humano tem sido levado em

    ocidente, a se experimentar a si prprio no interior de uma srie de jogos de verdade e de

    relaes de fora. Em outras palavras, tentar fazer uma historia da experincia de sie

    seus acidentes.

    Por isso o problema no ser tanto a verdade ou a falsidade, num sentido genrico,

    quanto as condies estratgicas nas quais uma verdade tem se tornado possvel e operante,

    adquirindo a capacidade de modelar a vida e os afetos. Por isso no se tratar de interrogara verdade em si mesma, mas o valor, o efeito e o sentido estratgico dessas verdades num

    determinado momento, questionando, ao mesmo tempo, as prticas que a ela esto

    vinculadas.

    3. Experincia e dispositivo

    O conceito de experincia se encontra intimamente vinculado ao conceito de

    dispositivo. Como disse no principio comum distinguir em Foucault um perodo

    arqueolgico, ligado a descrio das epistemes, e um perodo genealgico, ligado a

    descrio dos dispositivos. Poder-se-ia afirmar, como o faz Edgardo Castro (CASTRO,

    2004, p.98) que a episteme , nesse sentido, um caso particular de dispositivo. O

    dispositivo um conjunto heterogneo de discursos, instituies, estruturas arquitetnicas,

    decises regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientficos, proposies

    filosficas, morais e filantrpicas, em resumo: tanto o dito como o no dito. O dispositivo

    a rede que se estabelece entre estes elementos, tem uma funo estratgica e est sempreinscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que

    derivam desse e, na mesma medida, condicionam-no. Assim, o dispositivo : um conjunto

    de estratgias de relaes de fora que condicionam certo tipo de saber e por ele so

    condicionados. Como se v o dispositivo tem um sentido muito prximo ao que, no prlogo

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    de O uso dos prazeres Foucault d ao conceito de experincia, ou seja, assinala o

    entrecruzamento dos mecanismos de saber e de poder que do forma experincia de si.

    Em 2005, Giorgio Agamben proferiu no Brasil uma conferncia publicada anos

    mais tarde com o ttulo O que um dispositivo? onde oferece uma breve genealogia do

    conceito de dispositivo. No final dos anos sessenta, assinala o filsofo italiano, Foucault

    no utiliza ainda, o termo dispositivo para definir seu objeto de pesquisa, em seu lugar

    emprega o termo positivit, etimologicamente muito prximo. Agamben confessa ter-se

    perguntado muitas vezes de onde Foucault poderia ter tirado esse termo, at que, releu um

    ensaio de Jean Hyppolite intitulado Introdution La philosophie de lhistoire de Hegel 3.

    No terceiro captulo, que leva o ttulo deRaison et histoire. Les ides de positivit et destin,

    Hyppolite analisa uma obra de Hegel titulada A positividade da religio crist [DiePositivitat des chistliche Religion] e comenta que nela o termo dispositivoencontra seu

    lugar prprio na oposio entre religio natural e religio positiva: enquanto a religio

    natural diz respeito imediata e geral relao da razo humana com o divino, a religio

    positiva ou histrica compreende o conjunto das crenas, das regras e dos ritos que numa

    determinada sociedade e num determinado momento histrico so impostos aos indivduos

    pelo exterior. Uma religio positiva, escreve Hegel, numa passagem que Hyppolite cita,

    implica sentimentos que vm impressos nas almas por meio de uma coero e

    comportamentos que so o resultado de uma relao de comando e obedincia e que so

    cumpridos sem um interesse direto. (HYPPOLITE, 1983, p. 43. Apud AGAMBEN, 2009,

    p. 30-31). A oposio entre natureza e positividade corresponde, nesse sentido, dialtica

    entre liberdade e coero e entre razo e histria. Positividade , segundo Hyppolite, o

    nome que Hegel d ao elemento histrico, com toda sua carga de regras, ritos e instituies

    impostas aos indivduos por um poder externo, mas que se torna, por assim dizer,

    interiorizada nos sistemas das crenas e dos sentimentos. Na opinio de Agamben, Foucault

    toma emprestado ento este termo (que se tornar mais tarde dispositivo),para pensar umproblema decisivo, que tambm o seu problema mais prprio: a relao entre os

    indivduos como seres viventes e o elemento histrico, entendendo com este termo o

    3E importante lembrar a forte relao que vinculava Foucault e seu mestre Hyppolite, quem fora seu

    professor no liceuHenri IVe depois nacole Normale.

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    conjunto das instituies, dos processos de subjetivao e das regras em que se concretizam

    as relaes de poder. O objetivo ltimo de Foucault, esclarece Agamben, no , porm,

    como em Hegel, reconciliar os dois elementos nem mesmo enfatizar o conflito entre eles.

    Trata-se antes, para ele, de investigar os modos concretos em que as positividades (ou os

    dispositivos) agem nas relaes, nos mecanismos e nos jogos de poder (AGAMBEN, 2009,

    p. 32-33).

    Quando Foucault se pergunta, como os seres humanos se tornaram (historicamente)

    sujeitos, o que tenta destacar a maneira como os corpos sensveis foram capturados,

    subjetivados, moldados a partir de uma srie de discursos, instituies, estruturas

    arquitetnicas, leis, medidas administrativas, enunciados cientficos, proposies

    filosficas, morais e filantrpicas, etc. Em outras palavras, como a partir de estesdispositivos, foi possvel uma determinada experincia de sie do outro.

    A novidade que aporta a perspectiva foucaultiana do poder em relao a anlises

    anteriores (como a de Hegel, por exemplo) reside em que, no seu caso, os dispositivos no

    se apresentam como contrrios liberdade. Eles capturam, conduzem e governam as almas

    sem transformar os sujeitos, porm, em meros alvos de um poder repressivo. Dai que todo

    dispositivo implica um processo de subjetivao, sem o qual no atuaria como dispositivo

    de governo, mas como mera coao externa. Como fica exposto em Vigiar e punir, por

    exemplo, numa sociedade disciplinar os dispositivos visam a criao de corpos dceis e

    produtivos, mas livres. Quer dizer, corpos que assumem a sua liberdade e a sua identidade

    de sujeitos no prprio processo de seu assujeitamento.

    Os dispositivos no so contrrios liberdade, nem um acidente produto do azar ou

    a maldade humana, mas a maneira pela qual os corpos se tornam sujeitos. Sempre sujeitos

    histricos e espacialmente situados, mas tambm, sempre sujeitos assujeitados. Por traz do

    dispositivo foucaultiano no est o sujeito livre e autnomo, o sujeito esclarecido e

    universal que a tradio europia imaginou. O que h ento para alm dos dispositivos? Oque h para alm da experincia histrica que os dispositivos conformam?

    4. O contra-dispositivo ou a experincia trgica

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    A resposta a esta interrogao pulsa j nos primeiros escritos de Foucault, o que

    refora a hiptese de que na sua obra os assuntos no se ordenam numa sucesso

    cronolgica simples, mas se integram e se dobram, uns sobre outros, numa composio

    densa e integrada.

    Os dispositivos de captura, nos quais os seres humanos so, ao mesmo tempo,

    objetivados e subjetivados, dependem em grande medida do que Foucault chamou de

    pratiques divisantes[prticas divisoras] por meio das quais ocidente cria uma ciso entre o

    que considera o prprio (aquilo que lhe d sua identidade e sua continuidade histrica) e o

    alheio. Assim aparece o louco como o oposto do sujeito de razo, os anormais como

    opostos ao cidado integrado, mas tambm toda uma gama de alteridades perante as quais o

    sujeito europeu se constitui como uma identidade (o oriente, o homossexual, o selvagem,etc.). Essa ciso, esse traado de limites, essa criao de fronteiras, diz Foucault, definem

    ao sujeito ocidental, tanto ou mais, que seus valores. Porque, enquanto os valores cada

    sociedade os recebe da sua tradio cultural, na continuidade da histria, esses gestos de

    diviso so como o nascimento mesmo de sua histria. Pois a histria, como corrente de

    causas e efeitos, s faz sentido aps a diviso.

    em direo a esse gesto silencioso, que no interior de uma cultura define a

    identidade e a alteridade, que Foucault enderea sua pesquisa.

    Em direo a que poderia ento conduzir-nos uma interrogao que no seguiriaa razo em seu devir horizontal, mas buscaria retraar no tempo essaverticalidade constante que, ao longo da cultura europia, a confronta com o queela no , medindo-a em sua prpria desmedida? [...] Uma regio, sem dvida,onde se trata mais dos limites do que da identidade de uma cultura. [...] Interrogaruma cultura sobre suas experincias-limites question-la, nos confins dahistria, sobre um dilaceramento que como o nascimento mesmo da suahistria. Ento, encontram-se confrontados, em uma tenso sempre prestes adesenlaar-se, a continuidade temporal de uma analise dialtica e o surgimento,s portas do tempo, de uma estrutura trgica. (FOUCAULT, 1999, p. 142).

    Confrontam-se ento duas anlises possveis: por um lado um tipo de anlise que

    Foucault chama dialtica, anlise horizontal, que visa reconstruir os encadeamentos causais

    que explicam o surgimento do real. Nesta dimenso encontraramos a historia interna, por

    assim dizer, do pensamento. Por outro lado, encontraramos o que ele denomina de uma

    anlise trgica, anlise vertical, que confrontaria a razo e o discurso com um fundo sem

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    sentido, um murmrio delirante que percorreria a histria por baixo, quase

    imperceptivelmente. Na anlise dialtica trata-se de estabelecer, no plano do sentido, as

    relaes que vinculam as proposies entre si (logicamente) e os fatos entre si

    (empiricamente) e, tambm, o vnculo entre essas proposies e esses fatos. Mas, na anlise

    trgica se busca compreender a relao entre os discursos e esse fundo sem sentido que,

    sendo palavra ainda no discurso, tendo acontecido ainda no histria; esse fundo que

    ameaa uma vez por outra desmoronar as pilastras de toda a obra da razo e da histria.

    Para contextualizar o referido contraste entre uma experincia histrica e uma

    experincia trgica tenho que me referir, brevemente, ao problema do trgico, que dominou

    a cena durante o sculo XIX na Alemanha e que pela mo de Friedrich Nietzsche,

    introduzido depois no cenrio francs dos anos sessenta. Como assinala Roberto Machadoem seu livro O nascimento do trgico (MACHADO, 2006), h que distinguir o trgico,

    enquanto problema filosfico, dos estudos poetolgicos sobre a tragdia grega. Estes

    ltimos procedem da antiguidade e tem na Poticade Aristteles sua referencia principal.

    O trgico, ao contrrio, um problema filosfico surgido entre fines do sculo XVIII e

    princpios do XIX, na Alemanha, a partir da reinterpretao ontolgica que poetas/filsofos

    alemes fizeram da tragdia grega luz do pensamento kantiano; sobre tudo no que diz

    respeito a sua distino entre o sentimento do belo e do sublime. Essa releitura ontolgica

    consiste em ver na tragdia tica um exemplo paradigmtico da condio humana, a qual

    estaria sempre tensionada entre duas dimenses antagnicas: uma ligada s formas

    (necessariamente limitadas) e outra ao argico e ilimitado.

    Segundo o refere Kant (1990) na sua Crtica do juzo, o sentimento do belo se

    experimenta fundamentalmente como uma sensao de calma tranqilidade na

    contemplao de objetos que possuem formas definidas quando o entendimento e a

    imaginao (as duas faculdades que compem a razo) podem se exercer de forma

    coordenada e harmoniosa. O sentimento sublime, ao contrrio, se experimenta como umsentimento contraditrio, mistura de dor e prazer, de atrao e repulsa, nas ocasies em que

    a mente se depara com um espetculo desmesurado, carente de contornos e limites

    definidos. Nestes ltimos casos, a imaginao, por no encontrar limites, no pode se

    exercer e claudica, no entanto o entendimento continua a operar, de modo que, esta

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    particular situao, em que se pode compreender sem, contudo, conseguir imaginar, produz

    o desencontro das faculdades e o sentimento contraditrio. A partir desta distino

    kantiana, Schiller conceber a tragdia grega como uma espcie de dispositivo capaz de

    apresentar de forma sensvel o supra-sensvel, ou seja, capaz de representar o

    irrepresentvel ou como uma forma capaz de apresentar numa forma finita o absoluto. A

    tragdia passar ento a constituir para ele, e para os pensadores romnticos que continuam

    a se debruar sobre este assunto, uma maneira privilegiada de representar o drama

    constitutivo da existncia humana, a tenso permanente entre o finito e o infinito.

    Os seres humanos, s conseguem perceber e representar formas, mas estas formas

    emergem sempre por diferenciao de um fundo ilimitado e a ele podem voltar a qualquer

    momento. Este fundo o que no podemos pensar nem ordenar maneira de um sistema.Este fundo o absolutamente outro, o que se furta a nosso saber e a nosso poder e, por isso

    mesmo, ameaa-nos constantemente. Nossa identidade pessoal, nossa subjetividade (para

    usar um termo foucaultiano) flutua, como o refere Nietzsche em A origem da tragdia,

    sobre um mar desatado que levanta e abate montanha de ondas cheias de espuma. Nossa

    subjetividade no mais do que uma forma sempre preste a se desmanchar no infinito.

    Assim, dir Foucault, no prlogo daHistria da loucura(FOUCAULT, 1999, p. 140-148),

    a obra da razo (as formas de contornos ntidos que Nietzsche chamava de apolneas)

    sempre ameaada por um rumor surdo que percorre o tempo na forma de delrio (de canto

    dionisaco, na linguagem nietzscheana). A modernidade erigiu um muro para se proteger

    desse fundo indiferenciado e o chamou de doena mental, mas o que aterra da loucura e

    que, em definitiva, sabemos que ela no uma anomalia, mas o fundo infinito (o sem-

    fundo) no qual se abisma toda obra da razo.

    A arte trgica no outra coisa que a experincia desse abismo, uma experincia

    capaz de colocar em questo a prpria identidade. Se a experincia histrica, e os

    dispositivos que lhe do forma, produzem no seu exerccio uma subjetividade, aexperincia trgica atua como um contra-dispositivo de dessubjetivao, um poder capaz de

    liberar o sujeito da sua prpria identidade e das amarras que ela traz consigo. Compreende-

    se ento por que, naquela entrevista com Dreyfus e Rabinow com a que iniciamos este

    trabalho, Foucault pode dizer

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    Talvez, o objetivo hoje no seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos.Temos que imaginar e construir o que poderamos ser para nos livrarmos desteduplo constrangimento poltico, que a simultnea individualizao e

    totalizao prpria s estruturas do poder moderno. A concluso seria que oproblema poltico, tico, social e filosfico de nossos dias no consiste em tentarliberar o individuo do Estado nem das instituies do Estado, porm nosliberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualizao que a ele se liga.Temos que promover novas formas de subjetividade a travs da recusa deste tipode individualidade que nos foi imposta h vrios sculos. (DREYFUS;RABINOW, 1995, p. 239).

    Se por uma parte os estudos foucaultianos se endeream, por meio de um trabalho

    genealgico, a traar os limites da experincia de si (limites histricos e culturais), por

    outra parte, possvel reconhecer no trabalho da filosofia o que poderamos denominar uma

    experincia do limite ou, em outras palavras, uma experincia trgica. Essa tenso entre

    um estudo histrico dos limites da experincia e um exerccio filosfico que se constitui

    como experincia do limite, percorre toda sua obra. No prlogo de O uso dos prazeres,

    podemos ler nesse sentido:

    Os estudos que se seguem, assim como outros que anteriormente empreendi, soestudos de histria pelos campos que tratam e pelas referncias que assumem;mas no so trabalhos de historiador. O que no quer dizer que eles resumam

    ou sintetizem o trabalho feito por outros; eles so se quisermos encar-los doponto de vista de sua pragmtica o protocolo de um exerccio que foi longo,hesitante, e que freqentemente precisou se retomar e se corrigir. Um exercciofilosfico: sua articulao foi a de saber em que medida o trabalho de pensar sua

    prpria histria pode liberar o pensamento daquilo que pensa silenciosamente, epermitir-lhe pensar diferentemente. (FOUCAULT, 1984, p. 16).

    A verdade e a liberdade que Foucault parece praticar no possuem um contedo

    especfico. A experincia trgica, capaz de colocar em questo os limites da experincia

    histrica e suspender os dispositivos no interior dos quis temos chegado a ser o que somos,

    no uma experincia de algo, mas uma experincia da prpria experincia. Uma

    experincia de nosso ser histrico e poltico, uma experincia da contingncia da prpria

    experincia de si.

    EL CONCEPTO DE EXPERIENCIA EN MICHEL FOUCAULT

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    Resumen

    El concepto de experiencia se presenta, en la obra de Foucault, como una

    constelacin integrada por tres problemticas ntimamente vinculadas entre s: los juegos de

    verdad, las relaciones de poder e las formas de subjetividad a las cuales estos juegos dan

    lugar. Estos elementos son vehiculados a travs de dispositivos heterogneos

    (proposiciones cientficas, procedimientos administrativos, estructuras arquitectnicas, etc.)

    que abarcan tanto el mbito de lo dicho como el de lo no dicho. Tales dispositivos

    configuran una experiencia histrica singular, en la que el ser (el sujeto) se piensa a s

    mismo e se toma como objeto de accin moral. Sin embargo, toda la obra del autor est

    atravesada por una tencin entre, la posibilidad de, por medio de minuciosos estudioshistricos, establecer los lmites de esa experiencia histrica, y un ejercicio propiamente

    filosfico a travs del cual se intenta hacer experiencia del propio lmite, es decir, realizar

    una experiencia trgica capaz de colocar en entredicho la propia experiencia y las formas de

    subjetividad a la que esta est ligada.

    Palabras clave: Experiencia Histrica; Experiencia Trgica; Poder; Saber,

    Subjetividad; dispositivo.

    Referncias

    CASTRO, E. El vocabulrio de Michel Foucault. Universidad Nacional de Quilmes,2004.

    DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetria filosfica. Rio deJaneiro: Forense Universitria, 1995.

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    Data de recebimento: 15/10/2011Data de aceite: 21/11/2011