O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORÇÃO TEÍSTA - john shelby spong

  • Upload
    cderj

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    1/10

    john shelby spongO CRISTO ORIGINAL:

    ANTES DA DISTORO TESTAFomos trados pela Bblia. Nesses ltimos cinqenta anos houve umreconhecimento tardio de que o cristianismo biblicamente fundamentado

    defendeu causas que nenhuma pessoa pensante ou consciente

    se dispe a endossar. J nos saturamos da perseguio contra judeus e

    bruxas; da justificao da escravido de negros; da represso contra

    as mulheres, o sexo e a sexualidade; e da defesa intransigente de um

    clrigo masculino dominante e que se autopromove... No podemos,

    no devemos recuar diante do compromisso com a ignorncia e a m

    interpretao que alimenta to absurdo mau uso das Escrituras.'ROBERT W. FUNK

    Diretor do Seminrio de Jesus

    Aessa altura j admitimos a possibilidade de que o Deus testaesteja morto talvez at mesmo j tenhamos tomado essa deciso.Ao chegarmos a essa concluso, percebemos que temos que renunciara essa divindade para sempre. Mas de repente, de maneiraatemorizante, nos damos conta de que, ao abandonar o tesmo, muitascoisas que nos so sagradas conceitos e crenas profundamente ligadoss definies testas - tambm vo desaparecer. Estamos diantede um profundo "efeito domin" teolgico. Ao reconhecer essas ramificaes,somos tentados a recuar por temor, mas temos que resistir aessa tentao. H apenas uma nica alternativa de afirmao da vida

    quando surge uma reforma: dar um passo firme para dentro da novaarena espiritual na qual todas as definies do passado esto abertasao debate e reformulao - e inspirar profundamente esse novoar. Esta nossa situao atual: temos que escolher entre a refutaodo passado e o revigorante frescor dos ares do futuro.Espero que nos captulos anteriores eu tenha estabelecido um parmetromarcante: ir alm das definies testas de Deus no ir almde Deus. de fato abrir nossa experincia de Deus para uma vastasrie de novas possibilidades explanatrias. E convidar as pessoas donosso mundo que esto espiritualmente famintas - embora no deum tesmo decadente - a entrar para uma nova fonte de significado. transpor as estreitas bases da abordagem ocidental de Deus comoforma de um despertar espiritual mundial, visualizando a possibilidadee trabalhando pela realidade de um dilogo que nos conduza a

    uma unio intercrenas jamais imaginada como possvel. E abraara reforma radical que ser necessria para que o cristianismo sobrevivaneste terceiro milnio e no se torne irrelevante e marginalizado,s bordas da sociedade secular. Embora seja gigantesco o passo da renncia definio testa de Deus, ele , contudo, apenas o primeiropasso. Por mais estimulante que seja, estamos apenas no incio de nossajornada.J que somos filhos do Ocidente, devemos olhar primeiro para osmbolo bsico de nossa histria de f: Jesus, chamado Cristo. Serconcebvel que possamos contar a histria de Cristo parte do conceito

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    2/10

    do Deus testa? O futuro do cristianismo e as possibilidades deuma nora reforma sero determinados, estou convencido, por nossaresposta a essa pergunta. Minha resposta imediata : podemos e devemos!Entretanto, vamos abordar primeiramente o aspecto do "devemos",pois nele que enfrentamos a desconstruo dos atualmenteinadequados conceitos religiosos do passado. Esses conceitos precisamser deixados de lado. O aspecto do "podemos" de minha resposta

    envolve a reconstruo que certamente ser realizada sobre novas bases.Essa reconstruo, que acontecer logicamente no tempo apropriado,constitui a prpria essncia deste livro.Por que devemos contar a histria de Cristo parte do conceitotesta de Deus? Simplesmente porque o tesmo residual do passadoest atualmente estrangulando a prpria vida do cristianismo. O contedotesta de Deus, que desde cedo foi to fortemente amarrado emtorno de Jesus de Nazar, torna praticamente impossvel enxergarqualquer significado na pessoa de Jesus atualmente. Portanto, se nosoltarmos as amarras do tesmo que esto sobre Cristo, a morte dotesmo certamente implicar a morte do cristianismo.Se o ser sobrenatural que habita acima do cu e invade nossa vidaperiodicamente para cumprir os propsitos divinos no mais levadoem conta e j no representa uma possibilidade de crena para ohomem e a mulher modernos, conseqentemente temos que reconhecerque Jesus compreendido como encarnao dessa divindade testa igualmente sem futuro. O Jesus da entrada sobrenatural para a vidaatravs do milagre do nascimento pela virgem; o Jesus da sada sobrenaturaldeste mundo pelo milagre da ascenso csmica; o Jesus que,em sua existncia terrena, realizou atos prprios de Deus, como andarsobre a gua, acalmar a tempestade, curar os doentes, ressuscitaros mortos e alimentar uma multido com cinco pes - esse Jesus pouco mais que um retrato terreno do Deus testa em forma humana.Se hoje o tesmo est morrendo por causa da casualidade do avanodo conhecimento, ento a concepo de Jesus como encarnao dessadivindade testa tambm est mortalmente ferida.Mas Jesus s isso? Ser que ele desaparece ao serem removidassuas roupagens testas? Ainda sobra alguma coisa dele uma vez retiradaa interpretao testa de sua vida? Sempre que esse assunto abordadoem meios tradicionalmente liberais - e isso tem acontecido comcerta freqncia nos ltimos sculos - , o retrato de Jesus que resulta aquele de um grande ensinador. Um de meus professores mais estimados,Walter Russell Bowie, constantemente se refere a Jesus como"o Mestre".2 Esse ttulo o revela como bom e nobre, mas no sugereorigem externa nem valor eterno.Alm do mais, o contedo do ensinamento de Jesus nem era tooriginal. Muito do que ele falava j se encontrava nas Escrituras he-braicas que formaram sua vida. O resumo da lei - amar a Deus emprimeiro lugar e ao prximo como a si mesmo encontra-se na Tora(cf. Dt 6,5 e Lv 19,18). A lei denominada "dourada" por vezes citadanegativamente, mas est presente em muitos outros textos sagrados. Oslongos trechos de ensinamentos contidos nos Evangelhos de Marcos(10-12), Mateus (19-20) e Lucas (9,51-19,40) - que cobrem o perodo

    do trajeto de Jesus desde a Galilia at o encontro com o destino emJerusalm - so moldados, podemos argumentar, deliberadamente sobrea histria de Moiss, quando este dava as instrues finais sobrediversos assuntos a seu povo antes de sua partida, conforme relatadono livro de Deuteronmio.3 Muitas parbolas atribudas a Jesus podemser relacionadas a fontes do Antigo Testamento ou do Talmude.4Joachim Jeremias, notvel estudioso do Novo Testamento, argumentaque a nica coisa realmente nova no ensinamento de Jesus foisua utilizao do termo ntimo aramaicoAbba (Pai amado) para sereferir a Deus.5 Tudo isso sugere que o Jesus humano, entendido como

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    3/10

    professor ou sbio, mal faria jus ao significado atribudo a sua vida,e contribui para o argumento de que retirar dele a interpretao testa destru-lo como supremo ou nico pensador religioso.Robert Funk, fundador do Seminrio de Jesus, sugere que Jesusdeveria ser "rebaixado".6 Para algumas pessoas, essa chamativa frase um apelo a uma nova liberdade, mas para outras mais tradicionais um insulto e at uma ameaa. Funk, estudioso notrio e talentoso,

    d voz, com essa sugesto, ao fato de que a estrutura testa na qualJesus foi capturado no tem mais credibilidade nem atrativo para nossagerao. Ser cristo sem enfrentar esse fato estar fora da realidade.Entretanto, como tantos outros crticos do sobrenaturalismo e do pensamentotesta, Funk tambm presume que as nicas outras alternativasao sobrenaturalismo so o naturalismo e a remoo dos atributosdivinos de Jesus. Se remover as interpretaes testas de Jesus constituio rebaixamento que Funk prope, sou a favor; mas o Jesus quesobra ao final de sua empreitada mais parece um Jesus condenado judicialmente,destrudo. Essa abordagem jamais se detm em questionaro que houve de especial na vida de Jesus que justifique e d origema essas interpretaes testas.Proponho que iniciemos essa discusso pelo reconhecimento deque o tesmo apenas uma definio de Deus e que nenhuma definiode Deus eqivale a Deus. Os atributos divinos de Jesus no podemdepender de uma definio desatualizada de Deus. Ento estoudisposto a seguir a recomendao de Robert Funk na tarefa de extirparos atributos testas da vida de Jesus, mas nesse processo comeareia apontar para uma nova definio de Deus que consonante coma humanidade de Jesus.Talvez o segredo esteja na forma como os crticos do pensamentono-testa tentam fazer sua defesa contra a desconstruo de Jesus. Elesalegam que, se Jesus no a encarnao da divindade testa, ele seriaapenas um ser humano. A utilizao da palavra "apenas" me intriga.Creio que podemos expandir nosso conceito limitado do que significasermos humanos at o ponto de romp-lo, o que permitir que abracemosuma nova viso da grandiosidade e transcendncia humana.O resultado ser uma humanidade to profunda e poderosamente delineadaque a barreira artificialmente imposta entre o humano e o divinodesaparecer, e assim poderemos reconhecer que essas duas palavrashumano e divino no apontam para entidades separadas; aocontrrio, elas so como dois plos de um mesmo continuum que parecemseparados e distintos, mas, ao se viajar de um para o outro, des-obre-se que suas sombras se mesclam e se invadem mutuamente. Buscouma cristologia que preserve a divindade, mas no o tesmo sobrenatural distino freqentemente ignorada. Busco em Jesus um serhumano que, todavia, transmite e torna visvel e compulsria a Basede Toda Existncia. Lembro aos meus leitores, mais uma vez, que entreineste campo de investigao especificamente como cristo, comoalgum que acredita ter encontrado o Santo Deus em Jesus de Nazar.A primeira coisa que devemos reconhecer que os conceitos testasutilizados para capturar e interpretar Jesus de Nazar que esto emjogo nesta anlise, no a presena de Deus que esses conceitos foram

    designados a comunicar. A viso primordial que busco estabelecer que a interpretao testa de Jesus aparentemente no original. Defato, se estudarmos bem os textos, conseguiremos observar como otesmo foi sendo introduzido na histria de Jesus, crescendo at o pontode exclui qualquer outra possibilidade.Amelhor forma de engajar-se nessa viso atravs da leitura do NovoTestamento, no na ordem apresentada nas nossas Bblias atuais, masna ordem cronolgica em que os livros foram escritos. De acordo coma maioria dos estudiosos da Bblia, isso significa que devemos comearpelos dois registros mais antigos do Novo Testamento: Paulo e o chamado

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    4/10

    "documento Q". Alguns acrescentariam lista o Evangelho deToms, descoberto recentemente. Examinemos brevemente todos eles.Vamos iniciar pelo documento Q, pois o menos conhecido e aindasujeito a vigoroso debate. Q abreviao da palavra alem Quelle,que significa "fonte". Foi assim denominado pelos estudiosos alemesque descobriram o material no sculo XIX, e o nome que escolheramficou. A teoria Q derivou de uma comparao entre os Evangelhos

    de Mateus e Lucas. E evidente que ambos utilizaram o livro deMarcos para a construo de seus textos. Mateus utilizou 90% do textooriginal de Marcos, acrescentando no incio uma "genealogia" (cf.Mt 1,1 -17), uma narrativa da natividade (1,18-2,23), uma histria expandidado batismo (3,1-17), uma verso expandida das tentaes (4,1-11),um longo trecho denominado Sermo da Montanha (5-7) e mais algummaterial. Do captulo 13 em diante, Mateus rastreia cuidadosa efielmente o texto de Marcos.O autor do Evangelho de Lucas menos dedicado fonte de Marcos,mas segue sua forma bsica, tambm com acrscimos significativosno comeo e no fim. Nesse processo, Lucas incorpora mais decinqenta por cento do texto de Marcos. Portanto, Mateus e Lucasclaramente se utilizaram de uma fonte comum. Desse modo, podemoscomparar os Evangelhos dos dois, mas, ao retirar deles toda aparte baseada em Marcos, surge uma nova percepo: os livros deMateus e de Lucas contm bastante material comum, de outra origemque no Marcos.Analisando esse material isoladamente, podemos deduzir, pelassemelhanas, que havia um documento anterior, perdido, ao qualtanto Mateus como Lucas tiveram acesso. Essa teoria fascinante inspirouestudiosos como Burton VIack a escrever sobre "o Evangelhoperdido".7 Outros dedicaram a lida ao estudo do material Q.8 Volumesteolgicos sobre o documento passaram a ser escritos.A data atribuda ao material Q, de acordo com os estudiosos, meados do primeiro sculo.10 Se isso for verdade, Q torna-se testemunhaprimria da investigao sobre Jesus. Estudiosos srios do assunto,como aqueles do Seminrio de Jesus, consideram o materialQ como chave para seus esforos, pois os remete ao ponto mais prximodo Jesus histrico que qualquer outro documento.A elevao do Evangelho de Toms ao cnone de escritura peloSeminrio de Jesus11 e a tentativa de fixar a data desse documento nosprimrdios da histria do cristianismo provm da necessidade de demonstrarque as concluses dos estudos so baseadas em documentosantigos. De fato, a descoberta de um texto, praticamente completo,da traduo compilada do Evangelho de Toms em Nag Hammadi,no Egito, em 1945, foi considerada confirmao da autenticidade dodocumento Q e da antigidade de sua origem. Nessas premissas, essadescoberta demonstra que coletneas dos ensinamentos de Jesus, comoessas duas fontes documento Q e Evangelho de Toms , ocorreramnos primrdios da histria do cristianismo.Se aceitarmos a validade e a data de origem da hiptese Q e doEvangelho de Toms, poderemos ressaltar, para os propsitos de nossainvestigao, que no h histrias de milagres nesses documentos.

    No h histrias de nascimento sobrenatural nem de ascenso sobrenatural.No h narrativas de crucificao nem de ressurreio. Noh parbolas. No h nada que apresente Jesus na linguagem teolgicasobrenatural que posteriormente o cercou. Ele citado como umsbio, um professor erudito e s vezes at um cmico.Portanto, essas fontes nos apresentam um Jesus de Nazar que noera uma divindade visitante, nem a encarnao de um Deus sobrenatural,nem um taumaturgo. Ao menos isso indica que a armadurasobrenatural que depois foi colocada em Jesus no original. Entretanto,no nos fornece muito alm de retratar um homem sbio e um

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    5/10

    professor respeitado o suficiente para que seus ensinamentos fossemdignos de preservao.Caso no aceitemos a veracidade desses documentos e suas datasde origem, testam-nos os textos bblicos como fontes mais antigas paranossa anlise.12 O primeiro escritor dos textos cannicos do NovoTestamento foi Paulo. Embora esse fato seja notrio e reconhecidonos meios acadmicos, pouco conhecido das pessoas nos bancos das

    igrejas, talvez porque o Novo Testamento comece com os Evangelhos,seguidos de Atos, e a sim vm as epstolas de Paulo. Paulo descreve avida aps o tempo de Jesus, enquanto os Evangelhos relatam as coisasque Jesus disse e fez. O resultado que as pessoas tm a tendncia,at inconsciente, de ler Paulo pela perspectiva dos Evangelhos.Entretanto, o fato que Paulo foi convertido, batizado, tornousemissionrio, comprometeu-se com a tarefa controvertida de definira f crist contra opositores poderosos como Pedro e Tiago aquem ele chamou "irmo do Senhor" , completou todas as suas viagens,escreveu suas epstolas e foi preso e executado em Roma antesde serem escritos quaisquer dos quatro Evangelhos cannicos. Noh evidncias de que Paulo tenha tido acesso a algum Evangelho nema suas citaes, caso eles j tivessem sido de fato escritos. As epstolasde Paulo datam do perodo entre 50 e 64d.C. O Evangelho mais antigo,o de Marcos, geralmente atribudo aos anos entre 65 e 75 d.C,mas prefiro dat-lo em torno do ano 72 d.C, como explicarei adiante." O importante que temos em Paulo a testemunha indiscutivelmentemais antiga da histria de Jesus.Isolar Paulo e deliberadamente tentar no ler seus textos pela perspectivados Evangelhos posteriores nos traz revelaes fascinantes.14Por exemplo, no h em Paulo nenhuma referncia natividade miraculosa;ele apenas diz: "Jesus nascido de mulher, nascido sob a lei"(Gl 4,4)-No h insinuao do conceito de virgindade na utilizaodo termo mulher. Aparentemente ele se refere a um nascimento normal,que no difere do de qualquer outra pessoa. Mais tarde ele dizque Jesus "veio da descendncia de Davi segundo a carne" (Rm 1,3),e isso nodenota nenhum milagre. Alm do mais, nos escritos de Paulono consta nenhuma histria de milagres.Tambm no h nos escritos de Paulo indicao de que ele entendessea ressurreio de Jesus como uma ressurreio fsica, emboracertamente lesse a ressurreio como realidade. Ele argumenta que,"se Cristo no ressuscitou, v nossa f" (I Cor 15,14), mas isso nadatem a veicom corpo e sangue -Paulo tem uma profunda percepode Jesus vivo, uma presena divina contnua. Em Filipenses (2,5-11)ele retrata Jesus como a vida na qual Deus derramou a natureza divina.Em II Corntios (5,19), indica sua convico de que nos comprometemoscom Deus no momento em que encontramos Cristo, queele considera o retrato humano do ato divino da reconciliao. EmRomanos (1,1-4) ele diz que Jesus foi designado Filho de Deus pelaressurreio, que pode ser interpretada como o momento no qual Deusadotou Jesus em sua presena eterna e talvez at em sua divindade.A viso de Paulo sobre a ressurreio aparentemente sugere queaquilo que posteriormente a Igreja dividiu em dois eventos distintos -

    a ressurreio e a ascenso - eram, para ele, os dois lados da mesmamoeda, ou seja, Deus havia ressuscitado Jesus da morte trazendo-o asua presena e ao verdadeiro significado de Deus. No entender de Paulo,foi do lugar celestial para onde Jesus foi elevado que o Cristo ressuscitadose revelou a algumas testemunhas escolhidas.Ratificando essa idia, h o fato de Paulo ter relatado sua prpriaexperincia de converso como uma apario da ressurreio semelhantea todas as outras que ele descreve, sendo a sua em ltimo lugar(cf. I Cor 15,1-10). No h em Paulo referncia alguma a tmulovazio, o que indica seu desconhecimento desse fato.15 Ele utiliza a

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    6/10

    simbologia dos "trs dias" ao se referir ressurreio (cf. I Cor 15,4), oque denota sua conexo com a tradio segundo a qual o primeirodia da semana reservado para celebrar a ressurreio; mas esse olimite mximo de sua ligao com as tradies que se desenvolveramposteriormente.Em duas ocasies Paulo diz que est repassando algo que lhe foipassado, terminologia que sugere a existncia de uma tradio anterior.A

    o analisarmos esses casos, podemos postular algumas conclusesinteressantes. Uma das referncias em questo seu relato doseventos que atualmente associamos Quinta-Feira Santa e instituioda ceia eucarstica na Igreja (I Cor 11,23-26). Nesse texto, Paulousa a palavra grega que literalmente significa "entregue" ou "passadoadiante", nas que tambm pode significar "trado", como foi tradicionalmentetraduzida na Bblia. interessante observar, entretanto,que Paulo no menciona que essa "entrega" tenha sido feita por umdos doze discpulos, o que poderia indicar que a histria da traiode Judas tambm foi acrescentada posteriormente.Essa idia reforada pela leitura da segunda passagem paulina,que se refere a passar adiante um entendimento preestabelecido, umatradio anterior referente aos eventos finais da vida de Jesus (cf.I Cor 15,1-10). Nesse trecho, Paulo diz que Jesus foi morto e sepultado,ressuscitou ao terceiro dia e foi visto por diversas testemunhas.Aps a primeira apario a Cefas (Pedro), diz Paulo, o Cristo ressuscitado"se manifestou aos doze", grupo que certamente inclua JudasIscariotes. Mais uma vez, podemos deduzir que Paulo no tinha ouvidofalar do relato que posteriormente sugeriria que um dos doze,Judas, teria sido o autor da "entrega" - ou seja, trara Jesus. Aps aentrada da histria de Judas na tradio crist, autores como Mateuscontam que Jesus apareceu a apenas onze discpulos.Essas passagens de Paulo comeam a abrir nossa mente possibilidadede que muitos fatos da narrativa da Paixo, incluindo a histriado traidor e a elaborada tradio funerria, sejam lenda desenvolvida.Portanto, em Paulo pouco encontramos da estrutura testa e dosobrenaturalismo imposto que se desenvolveu posteriormente. Mas,ao mesmo tempo, a leitura de Paulo nos passa uma poderosa sensaode que, para esse judeu culto, pupilo de Gamaliel, Deus estava,de alguma forma, intensamente presente em Cristo. Havia em Paulouma percepo real de que a histria da ressurreio significava a elevaode Jesus por Deus esfera divina, tornando-se um com Deus,e que jamais esse Jesus poderia ser compreendido parte do Deus quefoi revelado nele.At o prprio Deus parecia incompleto para Paulo se separado deJesus (cf.Fl 2,9-11 e Rm 1,4). Esse foi um testemunho notvel e nodeve ser subestimado, apesar de no ter sido entendido na linguagemtesta da invasora divindade sobrenatural. Talvez o judasmo de Paulofosse to profundo que no lhe permitiu imaginar, nem definir, nemmesmo abraar intelectualmente o Deus que ele adorava, ou mesmoo Deus

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    7/10

    at o terceiro cu" (II Cor 12,2-5). O que estou afirmando que alinguagem da encarnao e da trindade de um tesmo mais avanadoainda no havia sido incorporada a Jesus, embora a experincia de Deusj lhe tivesse sido atribuda. Meu argumento que, se essa linguagemtesta no estava originalmente com Jesus, significa que era temporal,portanto no eterna. E Paulo a primeira testemunha cannica a apoiaressa viso, juntamente com o documento Q e Toms para aqueles

    que aceitam a veracidade destes - , na formao de um testemunhodiferente.Na poca em que Marcos escreveu seus textos (65 a 75 d.C), j seiniciava a interpretao testa de Jesus, embora ainda no fosse dominante,nem sequer nesse primeiro Evangelho. Marcos abre sua histriacom a assertiva de que aquele o "Princpio do Evangelho de JesusCristo, Filho de Deus" (1,1), e faz com que Deus ratifique essadefinio com uma voz celeste no relato do batismo de Jesus (cf. 1,11).Mas a histria de Marcos trata do esprito de Deus derramado emJesus, designando-o como Deus-presente, um ser humano impregnadodo esprito de Deus, e no uma divindade testa mascarada de serhumano.Entretanto, aparecem algumas histrias de milagres no texto deMarcos. Jesus capaz de curar os enfermos, incluindo os aleijados(cf. 1,40-2,12) e os cegos (cf. 8,22-26), alm de expulsar demnios (cf.1,21-28). Ele no relata casos especficos de cura de surdos, mas registraque isscocorreu (cf. 7,32 e 37), o que confirmado nos Evangelhosposteriores (cf. Mt 11,5 e Lc 7,22). Em Marcos, Jesus tambm retratadocomo possuidor de poderes sobre as foras da natureza (cf. 6,45-53).Ele alimentou multides com uma mera poro de cinco pes e doispeixes (cf. 6,30-44), por exemplo.Mas devemos observar que em Marcos no h histria de nascimentomilagroso, e a me de Jesus retratada de forma at um pouconegativa, pois ela acompanha os irmos de Jesus quando vo prend-lo (cf. 3,20-35 e 6,1-6); essas duas passagens transmitem a idia deque os membros da famlia de Jesus o consideravam mentalmente perturbadoe que ele se tornara um constrangimento para seu cl. Convenhamosque essa no seria a atitude de uma me virgem que tivesserecebido a visita de um anjo para inform-la que seria portadorado filho de Deus (cf. Lc 1,26-35). Claramente Marcos no conhecia atradio do nascimento milagroso, e para ele esse no seria um ingredientenecessrio na constatao da experincia do Deus-presente, queele percebia como o real significado de Jesus de Nazar. Ele atribui aPedro a confisso de que Jesus o Cristo, o Messias, o Deus-presente(cf. 8,27-30).Marcos tambm incorpora alguns smbolos do pensamento apocalpticojudaico histria da crucificao de Jesus. A escurido quecobriu a terra, o smbolo dos trs dias e a Pscoa no primeiro dia dasemana so bastante utilizados pelos escritores da literatura apocalptica.E estranho notar, entretanto, que no relato de Marcos sobre a ressurreioh um mnimo de sobrenaturalidade, e essa foi a primeiranarrativa bblica desse evento. O Jesus ressuscitado, por exemplo, noconsta ern seu texto. Em vez disso h a histria das mulheres que visitaram

    o tmulo na madrugada do primeiro dia da semana, seguidada cena do tmulo vazio e da palavra do mensageiro, ainda no descritocorno anjo, que conta s mulheres sobre a ressurreio de Jesuse lhes pede para irem contar aos discpulos e a Pedro que Jesus iriaantes deles para a Galilia, onde os encontraria (cf. 16,1-8). Marcosdiz que, em vez de repassar o recado, elas fugiram possudas de temore "nada disseram a ningum" (16,8). E nesse tom que terminao Evangelho de Marcos.Posteriormente os cristos acharam esse desenlace to desconcertante, luz do surgimento da onda de imagens sobrenaturais e testas,

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    8/10

    que compuseram novos desenlaces para o que consideraram um Evangelhoincompleto. Esses desenlaces - um mais longo e outro mais resumido foram incorporados Bblia na verso de King James e aorodap de outros textos.18 Estudiosos do Novo Testamento, entretanto,no tm dvida de que a autenticidade do Evangelho de Marcos atualtermina no versculo 8 do captulo 16, mas no so unnimes em afirmarque a inteno de Marcos era terminar nesse ponto, e alguns chegam

    a especular que o final original tenha se perdido. Pessoalmentesuponho que Marcos concluiu mesmo seu livro no versculo 8 do captulo16, porque ainda no havia captado plenamente as definiestestas de Deus que comeavam a envolver a histria de Jesus.Na verdade, creio que ainda se detecta em Marcos a influncia doscultos praticados nas sinagogas judaicas. Isso significa que muitashistrias que aparentemente refletem um entendimento testa e sobrenaturalde Jesus so de fato a tentativa de Marcos de interpretarJesus nos termos dos smbolos tradicionais da f judaica.Paulo se referiu a Jesus como "nosso cordeiro pascal" (I Cor 5,7),fazendo urna analogia com o animal sacrificado no ritual judaico dacomemorao pascal. Marcos torna essa referncia mais explcita quandoconta a histria da morte de Jesus nos termos da Pscoa judaica(cf. 14,1-15,42). Quando encadeamos cronologicamente a histria damorte de Jesus com o sacrifcio do cordeiro pascal e voltamos paratrs no Evangelho de Marcos, sobre o resto do calendrio litrgicojudaico, descobrimos uma espantosa confluncia de semelhanas. Comeaa evidenciar-se que Marcos estabeleceu uma correlao entre suanarrao da histria da vida de Jesus e as celebraes litrgicas do judasmodo primeiro sculo.Por exemplo, a histria da transfigurao de Jesus colocada porMarcos (cf.9,2-8) no momento do calendrio litrgico em que os judeuscomemoravam a Festa das Luzes. Nessa festa, os judeus celebramo tempo em que a luz de Deus foi restaurada no Templo. Agora, dizMarcos, com o Templo destrudo (como ocorreu no ano 70 d.C.),19temos em Jesus o novo templo, o novo ponto de encontro entre Deuse a vida humana. Em sua narrao da transfigurao, a luz de Deus derramada no sobre o Templo, mas sobre Jesus, no momento emque os dois pilares da adorao judaica - Moiss, o pai da lei, e Elias,o pai dos profetas - se tornam testemunhas da supremacia de Jesus(cf. 9,2-8).Retrocedendo mais um pouco no calendrio judaico, chegamos Festa dos Tabernculos, a comemorao da colheita, que durava oitodias. Exatamente nesse ponto do Evangelho, Marcos retrata Jesuscontando parbolas sobre a colheita, revelando poder divino sobre anatureza (cf. 4,1-41), com material suficiente para cobrir os oito dias.Continuando nessa correlao, voltemos ainda mais um pouco eencontramos o Yom Kippur, o Dia do Perdo. Exatamente nesse pontoJesus retratado por Marcos curando os enfermos, curando os paralticospelo perdo dos seus pecados, convidando o impuro cobradorde impostos, Levi, ao discipulado e falando sobre o jejum (cf. 1,21 e2,22). Naquela poca acreditava-se que a doena era causada por pecados,portanto a purgao no Dia do Perdo restauraria a sade das

    vtimas. Expulsar demnios tambm era tarefa divina de Jesus, j queo reino de Deus iniciava sua entrada na histria atravs dele, e as forasdemonacas eram inimigas do reino. Demnios eram a interpretaosobrenatural do primeiro sculo para anormalidades como epilepsia,doenas mentais, surdez e mudez. Essa srie de episdios claramentetinha um sabor de Yom Kippur.Finalmente, ainda voltando para trs no pergaminho de Marcos,descobrimos que ele inicia sua histria de Jesus na poca do Ano-Novojudaico, o Rosh Hashanah. Esse certamente seria um ponto de partidaapropriado caso o Evangelho de Marcos tivesse sido escrito com

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    9/10

    o objetivo de fornecer leituras crists para aumentar ou enriquecer ascelebraes das principais festas do ano litrgico judeu na sinagoga,do Ano-Novo Pscoa. O Rosh Hashanah chamava o povo ao arrependimentopela expectativa da proximidade do reino de Deus; Marcoscoloca essa mensagem na boca de Joo Batista, associando-o sconhecidas palavras litrgicas utilizadas nas celebraes do Ano-Novona sinagoga: "Preparai o caminhe do Senhor, endireitai suas veredas"

    (Mc 1,1-11). Esse tema enfatizado em Mateus, em que Joo proclamaa mensagem essencial do Rosh Hashanah: "Arrependei-vos, porqueest prximo o reino dos cus" (Mt 3,2).Se pudermos estabelecer que o ano litrgico judaico, pelo menosdo Rosh Hashanah (Ano-Novo) Pscoa (a histria da libertao),tenha sido o princpio organizador e, portanto, o esquema bsico doEvangelho de Marcos, a concluso lgica que o primeiro Evangelhoa ser escrito foi designado a contar a histria de Jesus de formaque pudesse ser lida nas celebraes sabticas de adorao corporativana sinagoga, culminando com a narrativa da ressurreio, que coincidiacom o sbado posterior Pscoa. Dessa forma, fica demonstradoque o Evangelho de Marcos no uma biografia, como supe a maioriadas pessoas, mas um texto litrgico que posteriormente foi malinterpretado como uma biografia histrica.No Rosh Hashanah, os judeus, medida que oravam pela vindado reino de Deus, tambm ensaiavam os sinais que acompanhariamesse evento. Esses sinais tinham origem primeiramente no captulo35 de Isaas, leitura comum durante esse festival. Naquela passagemo profeta escreve que na chegada do reino de Deus os cegos vero, ossurdos ouviro (cf. 35,5), os coxos andaro e os mudos falaro (cf. 35,6).Certamente pode-se argumentar que, sob a influncia dos escritos deMarcos, Joo Batista tornou-se o shofarhumano, a trombeta de Deus,tocada no Rosh Hashanah para reunir o povo e anunciar o despontardo reino de Deus. Jesus foi considerado o instrumento para trazero reino e os primeiros frutos desse reino, portanto sua vida fora marcadapelos sinais da presena do reino. Assim o Evangelho de Marcosfoi interpretado literalmente por leitores posteriores que no compreendiama utilizao dos smbolos judaicos. Em vez de esses episdios milagrosossetem vistos como sinais do reino de Deus atribudos a Jesus,eles foram entendidos como uma invaso do Deus testa no percursoda histria humana; conseqentemente, Jesus foi interpretadocomo a encarnao de um poder testa sobrenatural. Ele era taumaturgo,diziam, e demonstrava seu poder sobrenatural curando os enfermos,cegos e surdos.A meu ver, essas histrias de cura, como utilizadas por Marcos,no eram mrrativas de milagres, como os povos ocidentais as tm tradicionalmenteinterpretado, mas apenas a forma teolgica que Marcosencontrou de atribuir vida de Jesus os sinais da presena do reinode Deus. A transformao da interpretao teolgica em milagres literaisno foi exatamente uma conquista testa, embora tenha se prestadoa isso posteriormente.Portanto, as primeiras testemunhas de Jesus - Paulo, talvez Q, Tomse at Marcos - retratam um Jesus cuja vida ainda no tinha sido

    enquadrada no molde testa, embora fosse visto como Deus-presente,uma vida atravs da qual o reino de Deus se introduz na histria humana. nele e atravs dele que Deus se torna visvel. Essa a experinciaque precisamos abraar. Jesus foi uma vida humana atravs da qualas pessoas experienciaram a presena de Deus, e essa experincia documentadaantes do tempo em que as explicaes testas lhe foram acrescentadas.Essas explicaes podem ser postas de lado, como de fato tmsido em nossa gerao, mas a experincia permanece intacta. Temos quepercorrer um fio interpretativo delicado para separar a experincia daexplicao. Mas um Cristo vivo, visto como origem de um novo cristianismo

  • 8/8/2019 O CRISTO ORIGINAL: ANTES DA DISTORO TESTA - john shelby spong

    10/10

    para um novo mundo, exige que o faamos.Vale lembrar que Marcos termina sua histria da crucificao comas palavras do centurio: "Verdadeiramente, este homem era Filho deDeus" (cf. 15,39). Desvencilhando Jesus dos conceitos moribundos dotesmo, talvez possamos ratificar essa frase em nossos dias com poderrenovado e autntico. Pelo menos vale notar que, nos registros maisantigos de nossa histria de f, Jesus no vtima de uma distoro

    testa total. Essa distoro no nrdou, como veremos adiante, masno original; foi acrescentada a um retrato anterior de Jesus. Por tersido acrescentada, tambm pode ser retirada: a interpretao testa deJesus no precisa ser eterna. O tesmo pode morrer.De qualquer modo, algo nesse Jesus fez com que fosse essencialque em sua poca a linguagem testa fosse utilizada para explic-lo.Esse "algo", esse Deus-presente, o que buscamos. Esse "algo" precedea dominao testa e por isso mesmo talvez no tenha que morrer junrocom o teano quando este entrarem colapso. Por enquanto, registremose arquivemos esse insight, ao qual retornaremos no captulo VIII,completando essa anlise bblica.

    Extrado do livro Um novo Cristianismo Para um Novo Mundo -

    John Sheley Spong/ Editora Verus/ pag 95 a 110.