O Dicionário Kazar - Edicao Masculina

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  • O Dicionrio Kazar

    (Edio Masculina) Milorad Pavitch

  • Aqui jaz o leitor Que jamais abrir este livro. Aqui, ele est morto para sempre.

    OBSERVAES PRELIMINARES SEGUNDA EDIO RECONSTITUDA E

    AMPLIADA O autor atual deste livro garante que o leitor no ser condenado a morrer depois de t-lo

    lido, como foi o destino dos seus predecessores, em 1691, quando o Dicionrio Kazar ainda estava em sua primeira edio e quando o seu primeiro autor ainda vivia. A propsito dessa primeira edio necessrio fornecer algumas explicaes, mas, a fim de no se estender inutilmente, o lexicgrafo prope um acordo ao leitor: ele escrever suas observaes antes do jantar, e o leitor as ler depois das refeies. Assim, a fome impulsionar o escritor a ser breve e o leitor, saciado, no achar a introduo demasiado longa.

    1. Histrico do Dicionrio Kazar O acontecimento histrico estudado neste dicionrio ocorreu l pelos sculos VIII ou IX

    de nossa era (ou ento ocorreram vrios eventos semelhantes). Na literatura especializada, o assunto habitualmente tem o nome de polmica kazar. Os kazares constituram uma tribo poderosa e independente, um povo guerreiro e nmade, vindo do Oriente em uma poca incerta, impulsionado por algum silncio ardente. Habitaram, do sculo VII ao sculo X, um territrio situado entre o mar Cspio e o mar Negro. Sabe-se que os ventos que os trouxeram eram ventos machos, aqueles que nunca trazem a chuva - ventos sobre os quais cresce a relva, relva que levam como uma barba atravs do cu. Uma fonte mitolgica do Eslavo Tardio evoca um mar de nome Koziye, o que leva a pensar que houve um mar chamado Kazar, pois os eslavos denominavam os kazares kozari. Sabe-se, igualmente, que entre esses dois mares (Cspio e Negro) os kazares tinham criado um reino poderoso e praticaram uma religio atualmente desconhecida. As mulheres kazares, aps a morte de seus maridos em combate, recebiam cada uma um travesseiro a fim de nele recolher as lgrimas derramadas em memria desses guerreiros. Os kazares entraram na Histria atravs de suas guerras contra os rabes e de sua aliana com o imperador bizantino Heraclius, em 627, mas sua origem permanece desconhecida, do mesmo modo como desapareceram todos os traos que nos pudessem indicar sob qual nome e em qual povo preciso procurar hoje em dia os kazares. Deixaram um cemitrio s margens do Danbio, do qual, alis, no se sabe se verdadeiramente kazar, e uma srie de chaves que, guisa de aro, possuem uma moeda tricorne de ouro ou de prata uma moeda cunhada pelos kazares, de acordo com Daubmannus@. Os kazares desapareceram da cena histrica no mesmo momento que o seu reino, logo depois do acontecimento que estar no centro deste livro porque se converteram de sua antiga religio, que nos permanece desconhecida, para uma (novamente no se sabe qual) das trs religies praticadas tanto naqueles tempos como atualmente o judasmo, o Um repertrio da literatura sobre os kazares foi publicado em Nova York (The Khazars, a Bibliography, 1939); o russo M. I. Artamnov forneceu, em duas ocasies, monografias sobre a histria dos kazares (Leningrado, 1936 e 1962), e D. M. Dunlop escreveu a Histria dos Kazares Judeus (History of Jewish Kazars, Princeton, 1954).

  • islamismo e o cristianismo. Pouco tempo aps a converso, o reino dos kazares sucumbiu. O kniaz Sviatoslav, um desses senhores russos da guerra, devorou-o, no sculo X, como se fosse uma ma, sem descer do seu cavalo. A capital dos kazares, que se encontrava na embocadura do Volga, s margens do mar Cspio, foi destruda em 943 pelos russos que a sitiaram durante oito dias e oito noites, inteiros, sem dormir. Do mesmo modo, o Estado kazar foi aniquilado entre 965 e 970. As testemunhas contam que as sombras das casas da capital kazar subsistiram ainda por muito tempo depois que as construes foram destrudas. Essas sombras flutuavam no vento e sobre as guas do Volga. Segundo uma crnica russa do sculo XII, Oleg j usa o ttulo de arconte de Kazria, em 1083, mas, no sculo XII, um outro povo, os cmanos, j se tinha estabelecido no antigo territrio dos kazares. Os vestgios materiais da cultura kazar so muito incompletos. No foi descoberta nenhuma inscrio, pblica ou privada, no foi encontrado nenhum trao dos livros kazares dos quais fala Halevi@, nem da lngua dos kazares, embora Cirilog tenha anotado que rezavam em sua prpria lngua. A nica construo descoberta, em Suvar, no antigo territrio dos kazares, ao que parece no kazar, mas blgara. As pesquisas efetuadas em Sarkil no deram resultado, no foi nem mesmo encontrado qualquer sinal da fortaleza que Bizncio, como sabemos, construra no territrio a pedido dos kazares. Depois da runa do seu Estado, o nome dos kazares muito raramente pronunciado. No sculo X, um chefe hngaro convida-os a se instalarem em seu territrio. Em 1117, alguns kazares vo at Kiev, ver o kniaz Vladmir, o Monmaco. Em 1309, em Presburgo, recusado aos catlicos o direito de se casarem com kazares e, em 1346, o papa confirma esta interdio. Isto praticamente tudo.

    O citado ato da converso, que foi decisivo para o destino dos kazares, desenrolou-se da seguinte maneira: o kaghan, o chefe kazar, como esclarecem as antigas crnicas, mandou buscar, depois de ter tido um sonho, trs filsofos vindos de diferentes lugares para interpretarem o seu sonho. O assunto tinha importncia para o Estado kazar, pois o kaghan decidira adotar, com todo seu povo, a crena do sbio que interpretasse seu sonho da maneira mais plausvel. Algumas fontes afirmam que, no dia em que o kaghan tomou essa resoluo, seus cabelos morreram em sua cabea e ele sabia disto, mas alguma coisa impelia-o a continuar. Na residncia de vero do kaghan encontraram-se, ento, trs delegados: um muulmano, um judeu e um cristo ou seja, um dervixe, um rabino e um monge. O kaghan ofereceu uma faca de sal a cada um, e eles comearam a polmica. Os pontos de vista dos trs sbios, o conflito entre eles a partir dos dogmas das trs religies diferentes, os atores e a concluso da polmica kazar provocaram grande curiosidade e suscitaram julgamentos contraditrios sobre o acontecimento e suas conseqncias, os vencedores e os vencidos. Ao longo dos sculos, a polmica kazar deu origem a inmeros debates nos meios hebraicos, cristos e islmicos, e isto perdura at os dias de hoje, embora os kazares tenham desaparecido h muito tempo. O interesse pela questo kazar renovou-se subitamente no sculo XVII, pois as infindveis informaes sobre o assunto foram reunidas e publicadas na Borssia (Prssia), em 1691. Estudaram-se espcimes de moedas tricornes, os nomes inscritos em antigos anis, os motivos gravados em jarros de sal, a correspondncia diplomtica, retratos de escritores tendo, ao fundo, desenhos de livros cujos ttulos foram atentamente transcritos; estudaram-se os relatrios dos espies, os testamentos, as vozes dos papagaios das margens do mar Negro, que se acreditava falarem a lngua kazar desaparecida, as pinturas com cenas musicais nas quais decifraram-se as notas inscritas nas partituras, e at mesmo uma pele humana tatuada, sem contar os arquivos de origem bizantina, judaica e rabe. Em resumo, foi utilizado tudo o que a imaginao de um homem do sculo XVII podia domar e colocar a seu servio. E tudo isso foi reunido nas pginas de um dicionrio. A explicao desse recrudescimento do interesse pela polmica kazar, no sculo XVII, mil anos aps o evento, dada por um cronista, em algumas frases enigmticas: Cada um passeia seu pensamento como se passeia um macaco na coleira. Quando ls, tens sempre dois macacos diante de ti: o teu e o de um outro. Ou, ainda pior, um macaco e uma hiena. V l o que dars para alimentar a um e a outro. Pois a hiena no come a mesma coisa que o macaco...

  • De todo modo, o editor de um dicionrio polons, Ioannes Daubmannus@ (ou um seu descendente com o mesmo nome), publicou em 1691 tudo que fora reunido sobre a questo kazar, todos os textos policromados que, durante sculos, foram amontoados ou perdidos por aqueles que, com a pluma no brinco da orelha, faziam de suas bocas um tinteiro. Essa publicao tomou a forma de um dicionrio sobre os kazares, intitulado Lexicon Cosri. De acordo com uma fonte (crist), o livro foi ditado ao editor por um monge chamado Teoktist NiklskiA, que recolhera no campo de uma batalha entre os exrcitos austraco e turco manuscritos de origens diferentes sobre os kazares e decorara-os. A edio de Daubmannus compreendia trs dicionrios: um glossrio separado de fontes islmicas sobre a questo kazar, um alefbetrio de textos tirados dos manuscritos e tradies hebraicas, e um dicionrio composto com base nas fontes crists.

    Essa edio de Daubmannus, o dicionrio dos dicionrios sobre o reino kazar, teve um destino incomum.

    Um dos quinhentos exemplares desse primeiro dicionrio sobre os kazares foi impresso por Daubmannus com tinta venenosa. Esse livro envenenado, protegido por uma fechadura de ouro, era acompanhado de um exemplar de controle com uma fechadura de prata. Em 1692, a Inquisio mandou destruir a edio de Daubmannus, s restando o exemplar envenenado e o da fechadura de prata que o acompanhava. Estes escaparam da censura. Assim, os insubmissos e os infiis que ousavam ler o dicionrio proibido expunham-se a um perigo mortal. Aquele que abria o livro paralisava-se rapidamente, aguilhoado pelo seu prprio corao como se fosse por um alfinete. O leitor morria, efetivamente, na nona pgina, ao ler as seguintes palavras: Verbum caro factum est (O verbo se fez carne). O exemplar de controle permitia conhecer o momento da chegada da morte, se fosse lido ao mesmo tempo em que se lia a obra envenenada. Nesse exemplar de controle figurava a seguinte observao: Quando acordardes sem sentir nenhuma dor, sabereis que no estais mais entre os vivos.

    Os autos de um processo de sucesso, o da famlia Dorfmer, no sculo XVIII, provam que o exemplar de ouro (envenenado) do dicionrio era transmitido de gerao em gerao nessa famlia prussiana: o primognito herdava a metade do livro, e um quarto cabia a cada um dos outros filhos, ou menos, se fossem mais numerosos. A cada parte do livro correspondia uma parcela dos outros bens da herana Dorfmer: pomares, campos, prados, casas e lagos, ou gado. Durante muito tempo, no se estabeleceu nenhuma relao entre a morte das pessoas e a leitura do livro. Quando, um dia, o gado comeou a morrer e sobreveio a seca, algum disse aos habitantes da casa que qualquer livro, assim como qualquer donzela, podia tornar-se Tmorina, uma vampira, e que ento seu esprito vagava no mundo empesteando e matando tudo ao seu redor. Era preciso, portanto, enfiar na fechadura do livro uma pequena cruz de madeira, como as que se pem na boca das donzelas metamorfoseadas em vampiras, para impedir o esprito de sair e matar os habitantes da casa. Assim foi feito com o Dicionrio Kazar: enfiou-se uma cruz em sua fechadura, como numa boca. Mas o desastre tomou maiores propores, e as pessoas da casa comearam a sufocar enquanto dormiam e a morrer. Foram ento procurar um padre: ele retirou a cruz do livro e a hecatombe terminou. Ele lhes disse: Cuidai no futuro de no enfiar uma cruz no livro, quando o esprito estiver fora, pois o medo mortal que ele tem da cruz impede-o de retornar. E ele causa devastao e mortes. Desse modo, a fechadura dourada foi trancada e o Dicionrio Kazar ficou sem uso sobre a prateleira, durante dcadas. Da estante onde se encontrava o livro provinha, de noite, um rudo estranho que saa do dicionrio. As anotaes de um Dirio mantido naquele tempo, em Lvov, esclarecem que no dicionrio de Daubmannus havia uma ampulheta criada por um certo Nehama, conhecedor do Zohar e capaz de escrever e falar ao mesmo tempo. Este Nehama afirmava, alis, que reconhecera em sua prpria mo o desenho da consoante He (heh) de sua lngua hebraica, e na letra Vav (Vay) sua alma masculina. A ampulheta que incorporara ao livro era invisvel, mas, num silncio total, podia-se escutar a areia escorrendo, durante a leitura. Quando toda a areia escorresse, era preciso virar a obra e continuar a l-la no sentido inverso, em direo ao comeo, o que permitia descobrir seu significado secreto. Outras

  • anotaes esclarecem, entretanto, que os rabinos no aprovavam a ateno que seu compatriota dispensava ao Dicionrio Kazar, e que o livro era freqentemente objeto de ataques por parte dos eruditos do mundo hebraico. Os rabinos no colocavam em dvida a veracidade das fontes hebraicas do dicionrio, mas no concordavam com as alegaes das outras fontes. Finalmente, preciso dizer que o Lexicon Cosri no teve melhor sorte na Espanha, onde, nos meios islmicos mouros, o exemplar de prata foi condenado a no ser lido durante oitocentos anos. Esse prazo ainda no transcorreu, e a interdio continua em vigor. Isto pode ser explicado pelo fato de que, naquela poca, na Espanha, ainda havia famlias de origem kazar. Esses ltimos kazares foi observado tinham um estranho costume. Quando entravam em conflito com algum, precisavam, a todo custo, injuri-lo e maldiz-lo enquanto dormia, cuidando para no despert-lo com os xingamentos e maldies, pois a maldio, dessa maneira agia de modo mais eficaz e chegava mais depressa se o adversrio no estivesse lcido. Foi desse modo assegura Daubmannus que as mulheres kazares amaldioaram Alexandre, o Grande. Isso confirmado, em certo sentido, pelo testemunho de Pseudocalstenes afirmando que os kazares figuram entre os povos que foram dominados por Alexandre da Macednia.

    2. Composio do Dicionrio No mais possvel saber, hoje, como era a edio de Daubmannus do Dicionrio Kazar

    (1691), pois os nicos exemplares restantes, o envenenado e o prateado (de controle), foram igualmente destrudos, cada um em um extremo do mundo. De acordo com uma fonte, o exemplar de ouro foi destrudo de uma maneira indigna. Seu ltimo proprietrio era um ancio da famlia Dorfmer, conhecido pelo dom que possua de identificar uma boa espada pelo timbre que ela emitia, como se fosse um sino. Jamais lia livros e dizia: A luz deposita seus ovos nos meus olhos, como a mosca deposita sua saliva numa ferida. Sabe-se o que pode sair disso... O ancio no suportava os alimentos gordurosos e, sem que sua famlia soubesse, mergulhava todos os dias uma folha do Dicionrio Kazar em seu prato de sopa, para que ela absorvesse a gordura, e depois jogava fora a folha engordurada. Antes que sua manobra fosse descoberta, destruiu o Lexicon Cosri. A mesma anotao afirma que o livro era ilustrado com gravuras que o ancio no utilizava pois elas estragavam o gosto de sua sopa. Somente essas pginas ilustradas teriam sido conservadas, e talvez fosse possvel reencontr-las hoje tanto quanto seria possvel distinguir, num caminho, a primeira pegada das outras que a seguiram. Supe-se que um professor de Arqueologia e Orientalstica, um certo Doutor Isailo Sukg, possua um exemplar ou uma cpia do Dicionrio Kazar, mas nada foi descoberto entre suas coisas, depois de sua morte. Dessa forma, s nos restam fragmentos do dicionrio editado por Daubmannus, assim como dos sonhos s nos resta a poeira nos olhos.

    De acordo com esses fragmentos, citados por aqueles que entraram em polmica com o autor, ou autores, do Dicionrio Kazar, evidente (como foi dito acima) que a edio de Daubmannus era uma espcie de enciclopdia kazar, uma compilao das biografias ou hagiografias de personagens que, de um modo ou outro, atravessaram o cu do reino kazar, como um pardal voando por um dormitrio. A vida dos santos e a de outros participantes na polmica kazar e as vidas daqueles que a relataram ou estudaram, atravs dos sculos, constituam a matria do livro, onde tudo estava dividido em trs partes.

    Essa organizao do dicionrio de Daubmannus, subdividido em fontes hebraicas, islmicas e crists, sobre a converso dos kazares, tambm o princpio desta segunda edio. O lexicgrafo tomou esta deciso, apesar das dificuldades inauditas decorrentes da falta de documentos originais, depois de ter lido esta frase na enciclopdia kazar: O sonho um jardim do diabo, e todos os sonhos deste mundo j foram h muito sonhados. Hoje, eles so apenas trocados pela realidade igualmente gasta e usada, assim como as moedas e notas so trocadas de mo em mo... Em tal mundo, ou, melhor dizendo, num mundo que chegou a este estgio, podia-se aceitar uma tal responsabilidade.

  • preciso, porm, no esquecer uma coisa: o editor desta segunda verso do Dicionrio Kazar est inteiramente consciente de que o material utilizado por Daubmannus no sculo XVII no garantido, que ele , em grande parte, baseado em lendas, que representa o mesmo que uma refeio consumida em um sonho, e que est envolvido numa rede de iluses de diferentes eras. Seja como for, este o material aqui submetido apreciao do leitor, pois este dicionrio no procura apresentar um ponto de vista moderno sobre os kazares; uma tentativa de reconstituir a edio perdida de Daubmannus. Os conhecimentos atuais sobre os kazares s so utilizados como complemento indispensvel aos fragmentos da fonte desaparecida.

    necessrio igualmente sublinhar que no se pde, por razes justificveis, retomar aqui a ordem alfabtica do dicionrio de Daubmannus, que foi escrito em trs alfabetos e trs lnguas diferentes: grego, hebraico e rabe, e no qual as datas correspondiam aos trs calendrios. Aqui, todas as datas esto calculadas de acordo com o mesmo calendrio, e o texto de Daubmannus, com seus verbetes, est traduzido das trs lnguas em uma nica. da mesma forma evidente que na edio do sculo XVII as palavras eram ordenadas de modo diferente e, segundo a lngua empregada em cada um dos trs dicionrios (o hebreu, o rabe, o grego) o mesmo nome aparecia em lugares distintos, pois as letras no ocupam a mesma posio em alfabetos diferentes, assim tambm como no se folheiam os livros na mesma direo, e os atores principais no teatro no entram todos pelo mesmo lado do palco. Este livro, alis, no ter o mesmo aspecto em todas as tradues, pois inevitavelmente a matria do Dicionrio Kazar ser ordenada diferentemente em cada lngua e em cada alfabeto, tomando os verbetes outra posio, e os nomes uma outra hierarquia. Assim, verbetes importantes, da edio de Daubmannus, como So Cirilog, Yehuda Halevi@, ou Yuuf Maudi e ainda outros, esto aqui numa disposio diferente da que tiveram na primeira edio do Dicionrio Kazar. Este , sem dvida, o principal defeito desta nova verso, porque s aquele que l as diferentes partes de um livro na ordem correta pode criar o mundo de novo. Contudo no era possvel proceder de outro modo, pois a ordem alfabtica de Daubmannus no pde ser conservada.

    Todos esses defeitos, entretanto, no devem ser encarados como um grande prejuzo: o leitor capaz de desvendar o significado secreto do livro, lendo-o na ordem certa, h muito deixou esta terra, pois o pblico atual considera que a imaginao competncia exclusiva do escritor, no sua. Sobretudo quando se trata de um dicionrio. Para tal pblico, o livro no tem necessidade de conter uma ampulheta que indique o momento em que preciso inverter o sentido da leitura; o leitor de hoje jamais modifica seu modo de ler.

    3. Modo de Usar o Dicionrio

    Apesar de todas as dificuldades, este livro conservou algumas das qualidades da primeira

    edio, a de Daubmannus. Ele pode ser lido de inmeras maneiras, a exemplo do primeiro. um livro aberto, inclusive quando o fechamos. Tambm pode ser completado: houve um primeiro lexicgrafo, aqui est agora o trabalho do segundo, e no futuro pode haver outros. composto de verbetes, senhas e registros, como os livros santos ou as palavras cruzadas, e para todos os nomes ou noes marcadas aqui por uma cruz, um quarto crescente, ou pela estrela de Davi, ou outro sinal, conveniente buscar no livro correspondente deste dicionrio uma informao mais pormenorizada. Na prtica, para as palavras marcadas com o sinal:

    g preciso procurar no Livro Vermelho deste dicionrio (fontes crists sobre a questo

    kazar) preciso procurar no Livro Verde deste dicionrio (fontes islmicas sobre a questo

    kazar) @ preciso procurar no Livro Amarelo deste dicionrio (fontes hebraicas sobre a questo

    kazar)

  • Os verbetes marcados com o sinal encontram-se nos trs dicionrios, e os marcados com o sinal A no Apndice I, no final do livro.

    Desse modo, o leitor poder utilizar esta obra da maneira que mais lhe agradar. Uns procuraro uma palavra ou um nome, que lhes interesse no momento, como em qualquer dicionrio; outros entendero este livro como um texto que deve ser lido do princpio ao fim, de uma s vez, a fim de adquirir uma viso global sobre a questo kazar e sobre os personagens, objetos e acontecimentos que a ela se relacionam. Pode-se folhear este livro da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda, como era folheada a enciclopdia editada na Prssia (fontes hebraicas e islmicas). Os trs livros deste dicionrio o amarelo, o vermelho e o verde sero lidos na ordem escolhida pelo leitor: pode comear, por exemplo, naquele em que o dicionrio se abrir. por esta razo, sem dvida, que na edio do sculo XVII os livros eram encadernados separadamente, o que no seria possvel aqui, por razes tcnicas. O Dicionrio Kazar pode ser lido igualmente em diagonal, a fim de se obter um corte atravs dos trs livros islmico, cristo e hebraico. Neste caso, a leitura mais eficaz a que procede por grupos de trs: escolhem-se, por exemplo, trs verbetes seguidos do sinal , que indica que figuram nos trs livros, como o caso das palavras Ateh, kaghan, polmica kazar ou kazares, ou ento escolhem-se trs personagens diferentes que desempenharam o mesmo papel no histrico da questo kazar. Pode-se assim, lendo-se trs textos em cada um dos livros, ter uma idia precisa sobre, por exemplo, os participantes da polmica kazar (angari, Cirilo, Ibn Kora), ou sobre os cronistas (Bekri, Metdio, Halevi), ou sobre os pesquisadores que estudaram a questo kazar no sculo XVII (Cohen, Maudi, Brnkovitch) e no sculo XX (Suk, Muaviya, Schultz). Naturalmente, preciso no esquecer, nesses grupos de trs, dos personagens que vieram dos trs infernos: islmico, hebraico e cristo (Efrosnia Lukrevitch, Sevast, Akchni). Foram eles os que percorreram o caminho mais longo para chegar at este livro.

    Quem usar este dicionrio, entretanto, no se deve deixar desencorajar por essas recomendaes pormenorizadas. Pode, simplesmente, saltar esta introduo e ler como come: servindo-se do olho direito como se fosse um garfo, do olho esquerdo como se fosse uma faca, e jogando fora os ossos por sobre os ombros. o bastante. Pode ser que lhe acontea de se perder entre as palavras deste livro, como aconteceu com Maudi, um dos autores deste dicionrio, que se perdeu nos sonhos de outra pessoa sem poder encontrar o caminho de volta. Neste caso, no h outra coisa a fazer seno comear do meio, em qualquer pgina, desbravando seu prprio caminho. Atravessar o livro como uma floresta, de sinal em sinal, orientando-se pela estrela, pela lua e pela cruz. De uma outra vez, vai l-lo como o falco que voa unicamente na quinta-feira, ou ento poder vir-lo e revir-lo como se fosse um cubo mgico. Aqui, nenhuma cronologia ser necessria, nem respeitada. Desse modo, cada leitor criar seu prprio livro, como numa partida de domin ou de baralho, recebendo deste dicionrio, como de um espelho, tanto quanto nele investir, pois est escrito nesta enciclopdia no se pode receber da verdade mais do que nela se investiu. Alm disso, no se obrigado a ler este livro por inteiro; pode-se percorrer metade dele, ou apenas uma parte, e ficar por a, como acontece geralmente com os dicionrios. Mas quanto mais se pede, mais se recebe, e o descobridor perseverante ter em suas mos todas as ligaes entre os termos deste dicionrio. O resto ficar para os outros.

    4. Fragmentos Conservados do Prefcio da Edio Original de Daubmannus, Publicada em 1691

    e Destruda (traduzidos do latim)

    1. O autor aconselha ao leitor s pegar este livro em caso extremo. E mesmo que se contente em apenas passar os olhos por ele, deve faz-lo no dia em que seu esprito e sua vigilncia estejam mais agudas do que de hbito e que o leia como se fosse contrair a febre saltadora, essa doena que salta um dia em cada dois e que s nos d febre nos dias femininos da semana. 2. Imaginem dois homens que puxam uma corda em cada uma de suas extremidades, mantendo

  • desse modo um puma no meio. Se querem se aproximar simultaneamente um do outro, o puma vai atac-los, pois a corda no mais ficar esticada; preciso, ento, conservar a corda bem estendida a fim de que o puma permanea a igual distncia de cada um deles. E por esta mesma razo que o escritor e o leitor dificilmente chegam a se aproximar: seu pensamento comum fica amarrado por um fio que cada um puxa para seu lado. Se perguntssemos ao puma, ou seja, ao pensamento, como ele v os outros dois, ele poderia dizer que duas presas comestveis puxam, em cada extremidade da corda, aquele que no vo poder comer. 3. Evita sempre, meu irmo, lisonjear demais e curvar a espinha em adulaes diante daqueles que levam a autoridade no anel e o poder no silvo da espada. Eles esto sempre cercados por uma multido de pessoas que os cortejam de m vontade, porque so obrigadas a agirem assim. So constrangidas a isto porque tm uma abelha no chapu ou leo escondido sob a axila, foram apanhadas em flagrante delito, e agora pagam por isto; a liberdade delas est por um fio, esto dispostas a tudo. Os de cima, que tudo governam, sabem disso bem e aproveitam-se. Cuida bastante, portanto, que no te confundam, a ti, o inocente, com os culpados. Isto suceder se te pes a lisonje-los demais ou a te curvares demais diante deles: eles vo classificar-te entre os fora-da-lei e os criminosos, pensando que s daqueles que tm uma mancha no olho e que tudo que fazes, no o fazes de boa vontade e com convico, mas porque s obrigado, a fim de expiar tua m ao. Esse tipo de homem no merece ser respeitado; do-lhes chutes como aos ces, e so levados a cometer atos que se assemelham aos que j cometeram... 4. No que vos diz respeito, a vs, os escritores, pensai sempre no seguinte: o leitor um cavalo de circo ao qual preciso ensinar a esperar, aps cada tarefa bem feita, um pedao de acar como recompensa. Se o pedao de acar falta, nada sobra da lio. Quanto aos que julgam um livro, os crticos literrios, so como os maridos trados: sempre os ltimos a ficarem sabendo...

    O LIVRO VERMELHO FONTES CRISTS SOBRE A QUESTO KAZAR

    ATEH (sculo IX) Princesa kazar, cuja participao no debate que precedeu a

    converso dos kazares foi decisiva. Seu nome significa entre os kazares os quatro estados do esprito. De noite, usava em cada uma das plpebras uma letra, como aquelas que se inscrevem nas plpebras dos cavalos antes da corrida. Essas letras pertenciam ao alfabeto kazar proibido, cujas letras matam logo depois de lidas. As letras eram traadas por cegos e, pela manh, antes da toalete, as criadas atendiam a princesa com os olhos fechados. Assim, ela ficava protegida de seus inimigos durante o sono. Para os kazares, o sono era o momento em que o homem mais vulnervel. Ateh era muito bela e pia, as letras assentavam-lhe perfeitamente; sobre sua mesa havia sempre sete espcies de sal, e cada vez que ela queria comer um pedao de peixe mergulhava antes seus dedos em um sal diferente. Era sua maneira de orar. Diz-se que possua sete rostos, como havia sete espcies de sal. Segundo uma lenda, todas as manhs ela apanhava um espelho e sentava-se para se retratar: um ou uma escrava, nunca duas vezes o mesmo, vinha posar. E a cada manh ela fazia de seu rosto um novo rosto, jamais visto anteriormente. De acordo com outras lendas, Ateh absolutamente no era bela, mas compunha os traos de seu rosto diante do espelho de tal modo que conseguia dar-lhe uma expresso que a tornava bela. Para obter esta beleza fictcia, era preciso despender um imenso esforo fsico, e a princesa, assim que se encontrava sozinha, distendia-se, e sua beleza se espalhava como o sal. Seja como for, um imperador bizantino do sculo IX chamou o clebre filsofo e patriarca Fotios de rosto kazar, o que podia significar ou que este patriarca tinha um lao familiar com os kazares, ou que tinha um ar hipcrita.

    Segundo Daubmannus@, nenhuma das duas hipteses. Pela expresso rosto kazar

  • entendia-se o dom, comum a todos os kazares, inclusive princesa Ateh, de acordar a cada manh metamorfoseado, com um rosto novo e desconhecido, o que dificultava o reconhecimento da pessoa mesmo entre os parentes mais prximos. Os viajantes observam que, pelo contrrio, todos os rostos kazares so idnticos e no se modificam nunca, donde a dificuldade e os riscos de confuso. De todo modo, o resultado o mesmo: o rosto kazar um rosto difcil de se lembrar. Isto permite explicar a lenda segundo a qual Ateh tinha um rosto diferente para cada um dos participantes da polmica kazar na Corte do kaghan, ou mesmo que existiam trs princesas Ateh uma para o missionrio e caador de sonhos muulmano, uma outra para o cristo e uma terceira para o judeu. Sua presena na Corte kazar no , entretanto, assinalada num manuscrito cristo da poca, escrito em grego e traduzido para o eslavo (A vida de Constantino de Salnica So Cirilog). Mas, de acordo com o Dicionrio Kazar, havia uma espcie de culto princesa Ateh nos meios monsticos gregos e eslavos em certa poca. Isso se liga crena de que Ateh venceu, durante a polmica, o telogo judeu, e converteu-se ao cristianismo, em companhia do kaghan, do qual no se sabe se era seu pai, seu esposo ou seu irmo. Duas oraes da princesa Ateh foram conservadas numa traduo grega, e no foram jamais consagradas, mas Daubmannus as cita como o Pai Nosso e a Ave Maria da princesa kazar. Eis o texto da primeira:

    Sobre nosso barco, meu Pai, os marinheiros ativam-se como formigas; lavei-o hoje de manh com meus cabelos; eles sobem pelos mastros limpos e carregam as velas verdes para seus formigueiros, como tenras folhas de vinha; o timoneiro tenta arrancar o leme e levant-lo em suas costas como se fosse uma presa que lhe permitiria comer e viver por toda uma semana; os mais fracos puxam o cordame salgado e guardam-no no ventre de nossa casa flutuante. s o nico, meu Pai, que no tens direito a uma fome semelhante. Enquanto eles devoram a velocidade, a ti, meu corao, tu que s meu nico Pai, que pertence a parte mais rpida. Tu te alimentas do vento despedaado.

    A segunda orao da princesa Ateh parece explicar a histria de seu rosto kazar: Aprendi de cor a vida de minha me e, todas as manhs, durante uma hora, interpreto-a diante dos

    espelhos, como no teatro. Isso continua dia aps dia, h anos. Uso seus vestidos e seu leque e penteio-me como ela, tranando meus cabelos em forma de touca de l. Imito-a tambm na presena dos outros e at no leito do meu bem amado. Nos momentos de paixo, no existo mais, sou ela apenas. Imito-a to bem, ento, que minha paixo desaparece, deixando lugar dela. Desse modo, ela antecipadamente me roubou todas as carcias do amor. Mas no a censuro por isso, porque sei que tambm ela foi pilhada da mesma forma por sua me. Se algum me perguntasse agora de que serve tal fogo, responderia: tento colocar-me no mundo de novo, tornando-me, porm, melhor...

    Sabe-se que a princesa Ateh jamais conseguiu morrer. Existe, entretanto, uma inscrio entalhada em uma faca adornada com pequenos furos que fala da sua morte. Esta lenda, que nica e pouco confivel, -nos transmitida por Daubmannus@, no como uma histria da verdadeira morte da princesa, mas de como esta morte poderia ter acontecido, se ela tivesse sido capaz de morrer. Citar semelhante lenda no pode fazer mal, assim como o vinho no faz embranquecer os cabelos. Aqui est ela:

    O ESPELHO RPIDO E O ESPELHO LENTO

    Em certa primavera, a princesa Ateh disse: Acostumei-me aos meus pensamentos como

    aos meus vestidos. Tm sempre a mesma cintura e vejo-os por toda parte, at nas esquinas. O pior que me escondem o cruzamento dos caminhos.

    Para distra-la, seus criados trouxeram-lhe, certo dia, dois espelhos. No eram muito diferentes dos outros espelhos kazares. Ambos eram feitos de sal polido, no entanto um era rpido e o outro lento. O que o espelho rpido tirava do futuro ao refletir o mundo, o espelho lento devolvia, pagando a dvida do primeiro, pois este atrasava em relao ao presente tanto quanto avanava o outro. Quando trouxeram os espelhos para a princesa Ateh, ela ainda estava no leito, e as letras inscritas nas suas plpebras ainda no tinham sido apagadas. Ela viu-se nos

  • espelhos com os olhos fechados e morreu imediatamente. Sucumbiu entre duas batidas de plpebra, mais exatamente no momento em que leu pela primeira vez as letras mortais inscritas em suas plpebras. Ela piscara no momento precedente e no momento seguinte, e os espelhos refletiram isso. Morreu, fulminada ao mesmo tempo pelas letras do passado e pelas do futuro.

    BRNKOVITCH, AVRAM1 (1651-1689) Um dos autores deste livro. Diplomata

    mercenrio em Edirna e junto Sublime Porta de Constantinopla, chefe militar nas guerras austro-turcas, sabe-tudo e erudito. O retrato de Brnkovitch como benfeitor foi pintado numa das paredes da Igreja de Santa Paraskeva, em Kupinik, na propriedade da famlia Brnkovitch. Foi representado em companhia dos seus prximos, no momento em que oferecia a igreja de Santa Paraskeva, numa espada, sua trisav: a dspota e santa srvia, a muito pia Me Angelina.

    Avram Brnkovitch pertence a uma famlia que, aps a queda do imprio srvio sob a dominao turca, deixa o sul para se instalar na plancie do Danbio pode-se ler no relatrio secreto de Nikon Sevast, dirigido Corte de Viena. Os membros dessa famlia, arrastados pelo movimento de emigrao que despovoou as regies cadas nas mos dos turcos, chegam no sculo XVI Lpora e regio Inova. Desde ento, diz-se dos Brnkovitch da Transilvnia que mentem em valquio, calam-se em grego, contam em aromeno, cantam em russo na Igreja, so os mais sbios em turco e s pronunciam o srvio, sua lngua materna, quando vo matar. So originrios da regio Trbinie, na Hrtzegovina ocidental, mais precisamente da localidade de Korentchi, perto de Lastva, em Grnie Plitze de onde lhes vem o segundo sobrenome: Korentchi. Desde que chegaram, os Brnkovitch gozam de boa reputao na Transilvnia, e h mais de duzentos anos tm o melhor vinho da Valquia, donde o ditado: Eles podem te embriagar com suas lgrimas. Enquanto distinguia-se nos combates no entroncamento de dois sculos e de dois Estados o turco e o hngaro , a famlia Brnkovitch forneceu tambm uma linhagem de conhecidos homens de Igreja, em sua nova ptria beira do rio Mrich, em Ienoplie, em Lpova e em Pankota. Moiss Brnkovitch foi, sob o nome de bispo Matei, o metropolita de Inova, e a casca de noz que ele lanava no Danbio chegava mais rpido ao mar Negro do que qualquer outra noz. Seu filho Salomo, tio do conde Djordje Brnkovitch, que, enquanto bispo de Ienova tomou o nome de Sava I, dirigiu a eparquia de Inova e de Lpova sem descer de seu cavalo e s bebia montado, at que Lpova foi libertada do jugo turco em 1607. Os Brnkovitch garantem que so da linhagem dos grandes senhores feudais srvios do mesmo nome, mas difcil saber de onde vm os seus bens. Um ditado garante: tudo o que os aromenos, de Kavala at Zemun, ganham em sonho vai, na realidade, para os bolsos dos Brnkovitch. Suas jias so frias como a serpente, um pssaro no pode sobrevoar todas as suas terras, e as canes populares associam-nos s famlias reinantes. Os Brnkovitch so protetores de mosteiros na Valquia e no monte Atos, na Grcia, constroem cidadelas e igrejas como as de Belgrado, de Kupinik ou da localidade de Teus. O conde Zsigmond Rkoczi doou vilarejos, terrenos e ttulos de nobreza aos membros femininos dos Brnkovitch e, como os Brnkovitch so ligados pela parte feminina aos Szkely da Transilvnia, uma parte de seus bens vem da, sob a forma de dote. preciso dizer que na famlia dos Brnkovitch a herana partilhada segundo a cor das barbas. Todos os herdeiros de barba ruiva (a barba ruiva vem da linhagem feminina, pois os Brnkovitch se casam com mulheres ruivas) desistem em proveito dos que tm a barba negra, pois a barba Fontes: os dados sobre Avram Brnkovitch esto espalhados nos relatrios de informantes austracos, especialmente os que foram preparados para o prncipe de Baden e o general Veterani por Nikon Sevastg, um dos dois escribas de Brnkovitch. Na sua crnica valquia, assim como nas suas vastas crnicas srvias, em passagens que esto, infelizmente, perdidas hoje em dia, o conde Djordje Brnkovitch (1645-1711) fala um pouco de seu primo Avram Brnkovitch. Os ltimos dias de Brnkovitch foram descritos por seu criado e mestre-de-armas Averkiye Skilag. Pode-se estabelecer de maneira precisa a cronologia da vida e da atividade de Brnkovitch, recorrendo-se confisso que seu segundo escriba Teoktist NiklskiA dirigiu da Polnia ao patriarca de Ptch; bem como a um cone que representava os milagres do profeta Elias, pois a cada cena da vida do profeta, Brnkovitch adaptava os acontecimentos de sua prpria vida, cujos detalhes anotava no verso da imagem.

  • negra a prova de que so herdeiros do sangue masculino. O valor dos bens dos Brnkovitch estimado atualmente em 27.000 florins aproximadamente, e sua renda anual em mais de 1.500 florins. Se sua rvore genealgica no est estabelecida com certeza, sua riqueza, em compensao, segura e slida, como a terra sobre a qual galopam a cavalo. E h mais de duzentos anos, nem as menores moedas de ouro escaparam de seus cofres.

    Avram Brnkovitch chegou manco em Constantinopla, com um sapato de calcanhar reforado, e desde ento circula a histria de como ele ficou aleijado. Quando tinha apenas sete anos diz-se , os turcos entraram de surpresa na propriedade de seu pai, no momento em que o menino passeava acompanhado por alguns domsticos. vista dos turcos, todos os servidores fugiram, com a exceo de um velho que permaneceu para proteger Avram. Com a ajuda de um longo basto, respondeu ao ataque dos cavaleiros turcos at que o chefe atirou nele uma setinha que guardava entre os dentes, escondida num canudo. Atingido, o velho caiu, e Avram, que tinha tambm um basto na mo, ps-se a bater com todas as suas foras nas botas do turco. Entretanto todo o desespero e todo o dio que ps nos seus golpes no bastaram. O turco riu e depois partiu em seu cavalo, ordenando que se queimasse a aldeia. Os anos passaram como tartarugas. Avram Brnkovitch cresceu e o acontecimento foi esquecido, porque houve nesse nterim outros combates, e Brnkovitch montava agora frente de seus soldados, levando uma bandeira nas luvas e um canudo com uma setinha envenenada na boca. Certo dia, encontraram no caminho um espio inimigo, acompanhado de seu jovem filho. Ambos viajavam com caras de inocentes, armados somente de um basto cada um. Um dos soldados reconheceu o velho e atacou-o com seu cavalo, tentando captur-lo. Mas o velho defendeu-se com seu basto, to bem que os outros acreditaram que o basto continha uma mensagem secreta. Ento, Brnkovitch lanou a setinha envenenada e o velho caiu morto. O menininho que o acompanhava ps-se a bater em Brnkovitch com seu basto. Mal deveria ter uns sete anos e, apesar de toda a fora do seu dio e seu amor no pde, na verdade, machucar Brnkovitch. No entanto, Brnkovitch riu e, no mesmo instante, tombou como partido por uma foice.

    Depois deste golpe de basto, ficou manco, deixou o ofcio de soldado e seu parente, o conde Djordje Brnkovitch, introduziu-o nos negcios diplomticos em Edirna, em Varsvia e em Viena. Aqui, cm Constantinopla, Brnkovitch trabalha para o embaixador ingls, mora numa torre espaosa, entre a de Ioroz Kalchi e a de Karatach, sobre o Bsforo. No primeiro andar dessa torre, Brnkovitch mandou construir a metade exata da igreja dedicada Mae Angelina, sua trisav, proclamada santa pela Igreja Ortodoxa, enquanto a outra metade se encontra na Transilvnia, no pas natal do pai de Brnkovitch.

    Avram Brnkovitch um homem cuja aparncia atrai o olhar: tem o trax largo como uma jaula para grandes pssaros ou pequenas feras e, freqentemente, alvo do ataque de assaltantes, pois uma cano popular diz que seus ossos so de ouro.

    Ele chegou em Constantinopla montado num grande camelo que alimenta com peixe, e sempre viaja desta maneira. O animal galopa to suavemente sob o dono que no entorna o copo de vinho preso no seu cabresto. Desde sua mais tenra infncia Brnkovitch nunca dorme noite, ao contrrio de todo homem que possui olhos, mas somente durante o dia; porm ningum sabe dizer desde quando ele encurtou os cabelos e trocou o dia pela noite. Mas mesmo noite quando est acordado, ele no pode ficar muito tempo parado no mesmo lugar, como se tivesse empanzinado com lgrimas alheias. Por isso, preparam-lhe sempre dois pratos, duas cadeiras e dois copos, para que possa saltar subitamente de seu assento e mudar de lugar no meio da refeio. Da mesma forma, ele no se contenta durante muito tempo com uma nica lngua, muda de lngua como se muda de amante, falando alternadamente valquio, hngaro ou turco, e comeou a aprender com um papagaio a lngua kazar. Conta-se que fala espanhol em sonho, mas este seu saber dissipa-se assim que acorda. Recentemente, num sonho, algum lhe cantou uma cano numa lngua incompreensvel. Ele a memorizou e tivemos que procurar algum que conhecesse as lnguas ignoradas por Brnkovitch, para interpretar seu sonho. Assim, encontramos um rabino e Brnkovitch lhe recitou os versos que tinha decorado. No eram

  • muitos e diziam:

    2 Assim que ouviu o comeo, o rabino interrompeu Brnkovitch e recitou a continuao.

    Depois, escreveu o nome do autor. O poema tinha sido escrito no sculo XII por um certo Yehuda Halevi@. Desde ento, Brnkovitch aprende tambm o hebreu. Sua atividade cotidiana , entretanto, absolutamente prtica. Pois um homem de vrias facetas, e seu sorriso uma alquimia entre os outros saberes e dons que possui.

    Toda noite, assim que se levanta, treina para o combate. Aperfeioa a rapidez dos seus reflexos em companhia de um clebre mestre-de-armas. Este esgrimista um copta de nome Averkiye Skila. Kyr Avram contratou-o como criado. Averkiye tem um olho gordo e um outro magro, e todas as rugas do seu rosto formam um n entre suas sobrancelhas. Possui o catlogo mais completo e mais ilustrado de todos os movimentos feitos com espada at os nossos dias, e antes de anotar um novo movimento no seu manual, verifica-o pessoalmente sobre carne viva. O senhor Brnkovitch e o copta fecham-se numa grande sala onde foi estendido um tapete do tamanho de um pequeno prado e, na escurido total, exercitam-se com a espada. Skila segura, com a sua mo esquerda, a extremidade de uma correia de conduzir camelos; Kyr Avram segura a outra ponta e, com a mo direita, carrega uma espada to pesada quanto a que leva do outro lado, na escurido, Averkiye Skila. Vo enrolando lentamente a correia ao redor dos cotovelos e, assim que sentem que esto prximos um do outro, golpeiam-se mutuamente sem piedade, nessa escurido ensurdecedora. Os menestris celebram a velocidade de Brnkovitch, e eu o vi, no ltimo outono, em p sob uma rvore, com a espada desembainhada, esperando que o vento comeasse a soprar. Quando o primeiro fruto caiu, ele cortou-o em dois ainda na queda. Tem o lbio leporino e, para escond-lo, deixa crescer o bigode, mas onde existe a falha possvel ver-lhe os dentes, quando se cala. Tem-se a impresso de que ele no tem lbios e que seu bigode cresce sobre os dentes.

    Os srvios dizem que ele ama seu pas e que sal e vela para os seus, mas possui estranhos defeitos que no coadunam com sua posio. No sabe como pr fim numa conversao e nunca sente o momento em que preciso levantar-se e partir. Por isso, ele sempre inoportuno, deixando os outros ainda mais confusos no final do encontro do que no comeo. Fuma o haxixe que um eunuco de Kavala lhe prepara e ningum mais. Mas, estranhamente, no sempre dependente da droga e, para se manter assim, envia, s vezes, a caixa de haxixe selada at Pest, por intermdio de um mensageiro, e ela lhe retorna, dois meses

    Traduo do poema: Meu corao pulsa l no Leste, Eu c estou nos confins do Ocidente. Como saborear meus bocados, Como fartar-me, Como saldar promessas e dvidas? Sio repousa l no Edom, Eu c estou no extremo Ocidente. Vejo: deixar na Hispnia a ventura fcil Quanto precioso fitar as terras do Santurio derribado

  • mais tarde, sempre com o mesmo selo, no momento em que previra que teria necessidade dela. Quando no est viajando, sua grande sela de camelo com guizos colocada na vasta biblioteca e serve-lhe de mesa em que pode ler e escrever em p. Nos seus aposentos privados h pilhas de objetos domsticos que parecem intimidadores, mas no h nem haver jamais perto dele duas coisas idnticas. Cada objeto, cada animal, cada homem deve provir de uma aldeia diferente. Entre seus servidores domsticos encontram-se srvios, romenos, gregos e coptas, e recentemente contratou como criado de quarto um turco da Anatlia. Kyr Avram tem duas camas, uma grande e uma pequena, e quando repousa (o que s acontece de dia) passa de uma para outra. Enquanto dorme, seu criado de quarto, o anatlio Yuuf Maudi, observa-o com um olhar capaz de fazer carem os pssaros. E quando acorda, Kyr Avram senta-se em seu leito e, com um ar temeroso, entoa cnticos sacros para seus ancestrais canonizados pela igreja servia.

    difcil dizer a que ponto ele se interessa por mulheres. Sobre sua mesa est colocado um macaco de madeira de tamanho natural, de ccoras, com um sexo enorme. Kyr Avram por vezes emprega o ditado: Uma mulher sem bunda como uma cidade sem igreja! e tudo. Uma vez por ms, o senhor Brnkovitch vai at Gaiata ver a mesma vidente que, segundo uma maneira antiga e muito lenta, l o seu destino nas cartas. Ela tem em sua casa uma mesa reservada para Brnkovitch e, toda vez que o vento muda de direo, joga sobre ela uma nova carta. O vento que sopra determina que carta vai cair, e assim tem sido h anos. Na ltima Pscoa, assim que atravessamos a soleira da porta, o vento sul se ergueu e a vidente fez a Kyr Avram novas predies:

    O senhor sonha com um homem que tem um bigode cuja metade prateada. Ele jovem, seus olhos so vermelhos e suas unhas so de vidro, ele est se dirigindo para Constantinopla, e ambos se encontraro em breve...

    Esta notcia agradou de tal forma a meu senhor que ele ordenou que me pusessem uma argola de ouro no nariz, e tive muita dificuldade para escapar desta gentileza.

    Conhecendo o grande interesse que a Corte de Viena tem em relao aos projetos do

    Senhor Brnkovitch, posso dizer que ele faz parte desses homens que cuidam do seu futuro com uma ateno e zelo particulares, como se cultiva uma horta. No dos que atravessam a vida correndo. Povoa seu futuro lentamente e com cuidado. Descobre-o aos poucos, como se descobre uma terra desconhecida, primeiro desbrava-a, depois constri no melhor stio e, nesta construo, finalmente, arranja demoradamente a disposio dos objetos. Esfora-se para que seu futuro no diminua o passo ou o alento, mas cuida tambm para no se precipitar e ir to depressa que o seu futuro no possa mais passar adiante dele. uma espcie de corrida. O mais rpido perde. Neste momento, o futuro de Kyr Avram como um jardim semeado, e ningum, salvo ele mesmo, sabe o que brotar nele. No entanto, uma histria que transmitida em voz baixa nos permite, talvez, entrever o objetivo de Brnkovitch.

    A HISTRIA DE PETKTIN E KALINA

    Grgur Brnkovitchg, filho mais velho de Kyr Avram Brnkovitch, ps bem cedo o p no

    estribo e desembainhou sua espada recoberta de estrume de camelo. Suas roupas de rendas manchadas de sangue eram regularmente enviadas de Djula, onde vivia com sua me, para Constantinopla, para serem lavadas e passadas, sob a vigilncia de seu pai, para secarem ao vento perfumado do Bsforo e corarem sob o sol grego, antes de serem reenviadas com a primeira caravana que partisse para Djula.

    O segundo filho de Avram Brnkovitch, mais jovem, nesta poca estava deitado, em algum lugar em Btchka, atrs de um fogareiro multicor, na forma de uma igreja, e sofria. Contava-se que o diabo mijara nele, e que o rapaz se levantava de noite, saa de casa e limpava as ruas. Pois, de noite, Mora, a vampira, sugava-lhe o sangue, mordia-lhe o calcanhar, e o leite masculino corria dos seios dele. Enfiaram um garfo na porta, benzeram os seios do rapaz,

  • cuspindo sobre o polegar. Em vo! Finalmente, uma mulher aconselhou-o a dormir tendo ao seu lado uma faca anteriormente mergulhada no vinagre e, assim que Mora chegasse, deveria oferecer-lhe sal, antes de transpass-la. E assim ele fez: quando Mora veio para sug-lo, ele lhe ofereceu sal e enfiou-lhe a faca no corpo; no mesmo instante, ouviu um grito que lhe recordou uma voz familiar. Trs dias mais tarde, de manh, sua me chegou em Btchka, vinda de Djula, pediu-lhe sal do umbral da porta e tombou morta. Encontraram em seu corpo um ferimento faca e, ao lamberem a chaga, perceberam que era cida... A partir desse dia, o rapaz ficou aterrorizado, seus cabelos comearam a cair, e com cada fio (foi o que os curandeiros disseram a Brnkovitch) ele perdia um ano de sua vida. Enviavam para Brnkovitch as mechas de cabelos de seu filho embrulhadas na juta, ele as colava no espelho mole onde estava desenhado o rosto do menino, e sabia desse modo quantos anos o filho ainda tinha a viver.

    Quase todo o mundo ignorava, porm, que Kyr Avram tinha tambm um terceiro filho, um filho adotivo, se assim se pode dizer. Este no tinha me; Brnkovitch tinha-o feito de lama e lera o quadragsimo salmo para anim-lo e insuflar-lhe vida. Quando chegou s palavras: Por muito tempo esperei o Senhor e Ele se inclinou sobre mim. E ouviu meus gritos. E me retirou da grota murmurante e da lama, e pousou meus ps sobre uma pedra e tornou meus passos slidos..., os sinos da igreja de Daly tocaram trs vezes, e o jovem mexeu-se, dizendo:

    Na primeira badalada do sino, eu estava na ndia; na segunda, em Leipzig; e na terceira cheguei ao meu corpo...

    Ento, Brnkovitch fez um n de Salomo nos cabelos dele, amarrou numa das mechas uma colher feita de espinheiro, deu-lhe o nome de Petktin e soltou-o no mundo. Depois, Brnkovitch passou ao redor do seu prprio pescoo uma corda com uma pedra na extremidade e assim, com a corda no pescoo, assistiu liturgia dominical do jejum pascal.

    Para que tudo fosse como entre os vivos, o pai introduziu tambm a morte no peito de Petktin. Este embrio do fim, esta morte, ainda pequena e imatura no peito do seu filho, era a princpio temerosa e um pouco tola. Tinha pouco apetite e seus membros eram atrofiados. Mas tornou-se infinitamente alegre ao ver Petktin crescer, e este crescia to rpido que suas mangas floreadas logo tornaram-se bastante largas para que um pssaro pudesse ali voar. Todavia a morte em Petktin tornava-se mais viva e mais inteligente do que ele, e era a primeira a perceber os perigos. Ento, ela teve uma rival da qual se falar mais adiante. Mostrou-se impaciente e ciumenta, e chamava ateno sobre si, provocando uma coceira no joelho de Petktin. Ele se arranhava, e sua unha escrevia em sua pele letras que podiam ser decifradas. Assim, eles se correspondiam. O que a morte no tolerava acima de tudo, eram as doenas de Petktin. O pai tivera, entretanto, de dot-lo de doenas, para que ele se parecesse o mais possvel com os seres vivos, porque as doenas so para eles uma espcie de olho. Brnkovitch tudo fizera para que as doenas de Petktin fossem as mais benignas possveis, e ofereceu-lhe a febre florida, aquela que se manifesta na primavera, quando as ervas brotam em espigas e as flores espalham seu plen ao vento e sobre as guas.

    Brnkovitch instalou Petktin na sua propriedade de Daly, uma casa cujos cmodos estavam sempre cheios de galgos mais apressados para matar do que para comer. Uma vez por ms os domsticos escovavam os tapetes com cardas, jogando fora punhados de longos pelos coloridos parecidos com os rabos dos ces. Os quartos que Petktin ocupava, com o tempo tomavam as mesmas cores especiais que permitiam que seus aposentos fossem reconhecidos entre milhares de outros. As impresses gordurosas que ele e seu suor deixavam nas maanetas de vidro das portas, nos travesseiros, nas cadeiras e nos parapeitos, nos cachimbos, nas facas e nas canecas formavam um arco-ris de nuanas que lhe era bem peculiar. Tudo isso compunha uma espcie de retrato, de cone ou de assinatura. s vezes, Brnkovitch surpreendia Petktin nos espelhos dessa vasta casa, construda no silncio verde. Ele lhe explicava como proceder para harmonizar interiormente o outono, o inverno, a primavera e o vero com a gua, a terra, o fogo e o vento, que o homem tambm carrega em si. O imenso trabalho que deveria ser feito exigia muito tempo. Petktin teve calos em seus pensamentos, os msculos de sua memria incharam a

  • ponto de estourar, e Brnkovitch ensinou-o a ler uma pgina de um livro com seu olho esquerdo e a outra com seu olho direito, a escrever em srvio com a mo direita e em turco com a mo esquerda. Depois ensinou-lhe noes de literatura, e Petktin logo encontrou influncias da Bblia em Pitgoras; ele escrevia seu nome to rpido quanto se pega uma mosca.

    Em suma, Petktin tornou-se um jovem erudito, mostrando s s vezes, por sinais dificilmente perceptveis, que no era feito como os outros. Assim, por exemplo, ele podia numa segunda-feira de noite escolher um de seus dias futuros para utilizar no dia seguinte, ao invs da tera-feira. E, quando chegava no dia j consumido, ele pegava, para substitu-lo, a tera-feira que deixara de lado, e desse modo a conta dava certo. Para dizer a verdade, nesses casos, as costuras entre os dias no encaixavam exatamente, e havia falhas no tempo, mas isto servia apenas para distrair Petktin.

    O mesmo no acontecia com seu pai. Este alimentava uma permanente dvida sobre a perfeio de sua obra, e assim que Petktin atingiu a idade de vinte e um anos decidiu test-lo e verificar se seu filho podia rivalizar em todas as coisas com os verdadeiros seres humanos. Dizia para si mesmo: Os vivos puseram-no prova; preciso que os mortos tambm o faam. Pois somente se os mortos se enganarem e tomarem Petktin por um homem verdadeiro, em carne e osso, que salga antes de morder, pode dizer-se que a experincia teve sucesso. Tendo assim concludo, ele encontrou uma noiva para Petktin.

    Como os suseranos da Valquia tm sempre a seu servio um guarda de corpo e um guarda de alma, Brnkovitch tambm agia assim, ocasionalmente. Entre seus guardas de alma encontrava-se um aromeno que costumava dizer que tudo neste mundo se tornou verdade, e tinha uma filha de grande beleza. Ao nascer, tomara tudo que a me tinha de belo, de maneira que esta, depois do parto, ficou feia para sempre. Quando a menina chegou idade de dez anos, sua me ensinou-a, com suas prprias mos outrora belas, e amassar o po, e seu pai, antes de morrer, chamou-a e disse-lhe que o futuro no gua. A jovem chorou torrentes de lgrimas, de tal modo que as formigas podiam subir pelo curso dgua at o rosto da donzela. Agora ela estava rf, e Brnkovitch agiu de modo a que ela encontrasse Petktin. Ela se chamava Kalina, sua sombra cheirava a canela, e Petktin descobriu que ela se apaixonaria pelo homem que comesse frutos do corniso em maro. Ele esperou o ms de maro, fartou-se com os frutos e props a Kalina que dessem um passeio beira do Danbio. No momento de se separarem, ela tirou o anel do dedo e jogou-o no rio.

    Quando nos acontece algo de agradvel disse a Petktin, preciso temper-lo com um leve desagrado; assim, lembraremos dele melhor. Pois o homem sempre lembra-se por mais tempo dos momentos desagradveis do que dos momentos agradveis...

    Em resumo, Petktin agradou a ela, e ela agradou a Petktin. Seu casamento foi celebrado naquele mesmo outono e com grande alegria. As testemunhas da cerimnia beijaram-se em despedida, pois no deviam rever-se antes de longos meses; depois comearam a rondar os tonis de aguardente. Quando chegou a primavera, finalmente saram da bebedeira, olharam ao seu redor e, depois dessa longa embriaguez invernal, reconheceram-se de novo uns aos outros. Depois voltaram para Daly e acompanharam os jovens casados ao costumeiro piquenique da primavera, dando tiros de fuzil. preciso que se saiba que os jovens de Daly fazem piqueniques na primavera, em runas antigas, onde h bancos de pedra e uma obscuridade grega mais espessa do que qualquer outra obscuridade, da mesma forma que o fogo grego mais luminoso do que todos os outros fogos. Foi para l que se dirigiram Petktin e Kalina. De longe, parecia que Petktin conduzia uma parelha de cavalos negros mas, assim que espirrava, devido ao perfume de alguma flor, ou estalava o chicote, uma nuvem de moscas negras voava e podia-se ver que os cavalos eram brancos. Mas isto em nada perturbava a Petktin ou a Kalina.

    Eles se apaixonaram naquele inverno. Comiam com o mesmo garfo, cada um de uma vez, e ela bebia vinho da boca de Petktin. Ele a acariciava to bem que a alma dela murmurava no seu corpo, e ela o adorava e pedia-lhe que urinasse dentro dela. Ela dizia, rindo, s amigas, que nada coa melhor do que uma barba de homem de trs dias, crescida no amor. E ela pensava

  • seriamente, no fundo de si mesma: Os instantes de minha vida morrem como moscas engolidas por peixes. Como torn-los bastante nutritivos para a sua fome? Ela lhe implorou que mordesse um pedao de sua orelha e o comesse, e nunca fechava as gavetas e as portas atrs de si a fim de no interromper a felicidade. Ela era silenciosa porque crescera no mutismo das interminveis leituras paternas de uma nica e mesma orao, em torno da qual tecia-se sempre o mesmo silncio. E agora que estavam indo para o piquenique, era quase igual, e isso lhe agradava. Petktin pusera as rdeas em volta do pescoo e lia um livro, enquanto Kalina falava. Jogavam um jogo. Se ela pronunciasse uma palavra no mesmo instante em que ele a lesse no livro, eles trocariam de papel, e ela passaria a ler o livro e ele a falar. Quando ela apontou com o dedo um carneiro no pasto, e ele declarou que havia justamente lido a palavra carneiro, ela mal acreditou e apanhou o livro, para verificar. Com efeito o texto dizia:

    Quando invoquei por votos e preces essas tribos de mortos, peguei os animais: ovelha e carneiro, e lhes cortei a garganta sobre a fossa, e o sangue negro escorria, as almas dos mortos se reuniam no fundo do rebo; jovens noivas, jovens homens, velhos sobrecarregados de provaes, ternas virgens levando no corao seu primeiro luto,

    Tendo acertado, Kalina continuou a leitura: e quantos guerreiros feridos por dardos de bronze, vtimas de Ares, com suas armas ensangentadas! Vinham em multido de todas as partes ao redor da fossa, elevando um prodigioso clamor, e o plido temor apoderou-se de mim... Eu, que tirei do lado da minha coxa minha espada aguda, permanecia ali e impedia que os mortos, sombras dbeis, se aproximassem do sangue, antes que eu tivesse interrogado Tirsias.

    No mesmo instante em que ela lia a palavra sombras, Petktin viu a sombra que o teatro romano lanava sobre a estrada. Tinham chegado.

    Entraram pela porta dos artistas, colocaram sobre a pedra no meio do palco a garrafa de vinho, os cogumelos e o chourio que tinham trazido e retiraram-se rapidamente para a sombra. Petktin ajuntou esterco seco de bfalo, alguns gravetos recobertos de lama endurecida, colocou tudo sobre o palco e acendeu o fogo. Ouviu-se claramente o rudo de slex at o lugar mais distanciado no mais alto degrau da platia do teatro, enquanto l fora, onde as ervas selvagens e os perfumes de murta e de louros se espalhavam, no se percebia nada do que se passava no interior. Petktin jogou sal no fogo, para dissipar o odor de esterco e lama, depois lavou os cogumelos com vinho antes de coloc-los com o chourio sobre as brasas. Sentada, Kalina olhava o sol poente que, caminhando sobre os degraus, aproximava-se da sada do teatro. Petktin passeava no palco e, ao perceber os nomes dos antigos proprietrios dos lugares, inscritos na frente dos degraus, comeou a soletrar antigos nomes desconhecidos:

    Caius Veronius Aet... Sextus Clodius Cai filius, Publilia tribu... Sorto Servilio... Veturia

  • Aeia... No invoque os mortos! advertiu-o Kalina. No os chame, seno eles viro! Assim que o sol deixou o teatro, Kalina retirou os cogumelos e o chourio do fogo e

    comearam a comer. A acstica era perfeita, a cada mordida o rudo de sua mastigao ressoava com a mesma fora em cada um dos lugares do teatro, do primeiro ao oitavo degrau, mas sempre de maneira diferente, antes de voltar ao meio do palco. Era como se os espectadores cujo nome estava escrito na frente dos degraus comessem em companhia dos jovens esposos, ou pelo menos mastigassem com avidez, e ruidosamente, cada uma das mordidas deles. Cento e vinte pares de ouvidos mortos escutavam com grande ateno, e o teatro inteiro mastigava em concerto com o casal, cheirando com gula o odor do chourio. Assim que paravam, os mortos tambm paravam, como se os alimentos estivessem entalados em suas gargantas, e, crispados, esperavam os gestos seguintes dos jovens. Nesses momentos, Petktin tomava cuidado para no se machucar ao cortar a comida, pois tinha o sentimento de que o cheiro do sangue humano poderia perturbar a serenidade dos espectadores. Rpidos como a dor, poderiam se precipitar da platia sobre ele e Kalina e, impulsionados por sua sede duas vezes milenar, despeda-los.

    Sentindo um calafrio, puxou Kalina para seus braos e beijou-a. Ela devolveu-lhe o beijo e neste momento ouviram-se cento e vinte pares de lbios beijando-se ruidosamente, como se os ocupantes da platia se amassem.

    Depois da refeio, Petktin jogou o resto do chourio no fogo que apagou regando com vinho, e o chiado do fogo foi acompanhado por um abafado Psssssst que vinha da platia. No instante em que guardava a faca na sua bainha, o vento soprou de repente, salpicando o palco de plen. Petktin espirrou e neste instante cortou a mo. O sangue caiu na pedra quente, espalhando seu odor...

    As cento e vinte almas mortas, gritando e berrando, precipitaram-se sobre o jovem casal. Petktin desembainhou sua espada, mas no pde impedir que estraalhassem Kalina, pedao por pedao, at que seus gritos se confundissem com os dos mortos, e ela prpria se juntasse ao festim, devorando com gulodice os restos de seu prprio corpo.

    Petktin ignorava quantos dias j tinham transcorrido, quando compreendeu onde se encontrava a sada do teatro. Vagava sobre o palco, ao redor do braseiro apagado e dos restos do jantar, quando um ser invisvel apanhou sua capa e jogou-a sobre os ombros. A capa vazia aproximou-se dele e falou com a voz de Kalina.

    Aterrorizado, Petktin envolveu-a com os braos, mas sob a pele e no fundo daquela voz nada via alm do forro prpura de sua capa.

    Diga-me falou Petktin, apertando Kalina em seus braos , tenho a impresso de que me aconteceu aqui, h mil anos, uma coisa terrvel. Algum foi despedaado e devorado, e o sangue continua ainda sobre o cho. No sei se isto aconteceu, nem quando aconteceu. Quem foi devorado? Voc ou eu?

    Nada lhe aconteceu, no foi voc o devorado respondeu Kalina. E isto aconteceu h pouco, e no h mil anos.

    Mas no a vejo. Quem de ns dois est morto? Voc no me v, jovem, porque os vivos no vem os mortos. Entretanto, pode ouvir

    minha voz. Quanto a mim, ignoro quem voc e no saberei reconhec-lo enquanto no saborear uma gota do seu sangue. Mas eu o vejo, fique tranqilo, vejo bem. E sei que voc est vivo.

    Kalina gritou, ento. Sou eu, seu Petktin, no me reconhece? H poucos instantes, se esse h pouco realmente existiu, voc me beijava.

    Qual a diferena entre h pouco e h mil anos, agora que as coisas so como so? Ouvindo essas palavras, Petktin tirou sua faca, aproximou seu dedo do lugar onde

    acreditava que estavam os lbios invisveis de sua mulher e cortou-se. O cheiro do sangue se espalhou, mas a gota no caiu sobre a pedra, porque Kalina a tinha

    recolhido com seus lbios vidos. Ela gritou, reconhecendo Petktin, e despedaou-o como se

  • fosse uma carnia, bebeu avidamente seu sangue e lanou seus ossos para a platia de onde os outros j se precipitavam.

    No mesmo dia em que isso aconteceu a Petktin, Kyr Avram Brnkovitch anotou as

    seguintes palavras: A experincia com Petktin foi coroada de sucesso. Ele desempenhou to bem seu papel que conseguiu enganar tanto os vivos quanto os mortos. Agora, posso empreender a parte mais difcil. Passar da pequena para a grande experincia. Do homem a Ado.

    Desse modo, chegamos aos projetos de Kyr Avram Brnkovitch. Estes projetos, que so a base do seu futuro, esto ligados a duas personagens-chaves. Uma seu ilustre primo, o conde Djordje Brnkovitch, sobre quem a Corte de Viena sabe, sem dvida, mais do que ns. O segundo algum que Kyr Avram chama de Kuros (o que, em grego, significa rapaz) e cuja chegada aqui em Constantinopla ele espera assim como os judeus esperam pelo Messias. At onde podemos saber, Brnkovitch nunca o encontrou, ignorando at seu nome (por isto, o apelido em grego, sinal de ternura), e s o v em sonho. Mas esse Kuros aparece-lhe regularmente em sonho e, quando Brnkovitch dormita, com ele que sonha. Segundo a descrio que faz dele, trata-se de um homem jovem, com a metade do bigode prateada, com as unhas de vidro e os olhos vermelhos. Brnkovitch espera encontr-lo um dia e, com sua ajuda, espera descobrir ou realizar uma coisa que muito preza. Em seus sonhos, Brnkovitch aprendeu com o Kuros a ler da direita para a esquerda, da maneira judia, e a sonhar sonhos do fim para o comeo. Estes sonhos extraordinrios, onde Kyr Avram se transforma em Kuros ou, se assim preferem, em judeu, comearam h muito tempo. O prprio Brnkovitch diz que isso lhe veio inicialmente sob a forma de uma angstia que, atirada como uma pedra em sua alma, caa atravs dela durante dias, s parando de noite, quando a alma tambm caa junto com a pedra. Depois, esse sonho dominou completamente sua vida, e ele se tornava duas vezes mais jovem em sonho do que na realidade. Primeiramente, os pssaros desapareceram de seus sonhos para sempre, depois seus irmos, e finalmente seu pai e sua me. Depois, todos os rostos e cidades de sua vizinhana ou sua memria foram-se sem deixar sinais, e finalmente ele prprio desapareceu desse mundo de sonhos totalmente alienado, como se, durante a noite, enquanto sonhava ele se transformasse em algum outro homem cujo rosto, percebido num espelho do sonho, o aterrorizava, como se sua me ou sua irm tivessem deixado crescer a barba. Esse outro tinha os olhos vermelhos, a metade do bigode prateada e as unhas de vidro.

    Nesses sonhos onde se despedia de todas as pessoas que o cercavam, Brnkovitch via mais demoradamente sua irm defunta, mas ela perdia, a cada vez, um pouco do aspecto que Brnkovitch conhecia, certas partes do seu corpo eram substitudas por outras que pertenciam a um corpo desconhecido e estranho. Ela trocou inicialmente sua voz com essa pessoa annima da qual assumia a aparncia, depois a cor dos cabelos e os dentes e, enfim, de seu restaram apenas os braos que apertavam Brnkovitch com uma paixo crescente. Todo o resto j no era ela. Ento, numa noite to breve que dois homens, estando um na tera-feira e outro na quarta-feira, podiam apertar-se as mos, ela lhe apareceu completamente transformada e to bela que amedrontava as pessoas. Ela se lanou ao seu pescoo, envolvendo-o com seus braos, e suas mos tinham cada uma dois polegares. Brnkovitch quis a princpio fugir, deixar seu sonho, mas logo cedeu e colheu um dos seus seios como se colhe um pssego. A seguir, como se colhesse seus dias dela como de uma rvore, ela lhe oferecia sempre um fruto diferente, cada um mais doce que o precedente, e ele dormia de dia com ela em seus diferentes sonhos, como outros homens dormem de noite com suas amantes nos bordis. Quando uma das mos com dois polegares aparecia nesses abraos, ele era incapaz de dizer qual mo ela usava para acarici-lo, pois no havia diferena entre elas. No entanto, esse amor sonhado esgotava-o to real e completamente que ele quase se derramava dos seus sonhos em seu leito. Ento, ela veio pela ltima vez e lhe disse:

    Aquele que amaldioa com a alma amarga ser ouvido. Ns nos encontraremos de

  • novo, talvez, em algum lugar, numa outra vida. E Brnkovitch nunca soube se ela se dirigira a ele, Kyr Avram Brnkovitch, ou a seu

    duplo do sonho, que tinha a metade do bigode prateada, esse Kuros no qual Brnkovitch se transformava em sonho. Pois j h muito que ele no se reconhecia mais enquanto dormia como Avram Brnkovitch. Tornou-se o outro, o de unhas de vidro. Nos seus sonhos, j h anos no manca mais como na realidade. De noite, ele sente como se estivesse sendo acordado pela fadiga de um outro, e de manh sente que vai adormecer, pois um outro, em algum lugar, desperta sentindo-se plenamente descansado. Suas plpebras fecham-se, enquanto alhures se abrem os olhos de um outro. Ele e o desconhecido tm vasos comunicantes de energia e sangue, que passam a fora de um para o outro, assim como se passa o vinho de um vaso a outro para que no se transforme em vinagre. Enquanto um, durante a noite e no seu sonho, repousa e recupera suas foras, esta mesma fora deixa o outro, levando-o ao cansao e ao sonho. O mais grave que Kyr Avram adormece subitamente na rua, no como se casse em sono, mas como se fosse o eco do despertar sbito de um outro. Aconteceu-lhe, recentemente, enquanto observava um eclipse lunar, de cair num sono to subitamente que sonhou no mesmo instante que o chicoteavam, sem dar-se conta de que se havia ferido ao cair, no mesmo lugar da testa onde o chicote o tocara em sonho. Minha opinio que todo esse caso que envolve esse Kuros e esse Yehuda Halevi tem ligao direta com a tarefa qual Kyr Avram e ns, seus servidores, nos consagramos h muitos anos. Trata-se de um glossrio, ou de um abecedrio que se poderia chamar de Dicionrio Kazar. Ele trabalha nisso sem trgua nem repouso, e com um desgnio preciso. Brnkovitch mandou vir de Viena e da regio de Zarand para Constantinopla oito camelos carregados de livros, e esto chegando ainda outros, de modo que agora ele est separado do mundo por muralhas de dicionrios e de velhos manuscritos. Eu, que sou dotado para as cores, a tinta e as letras, reconheo cada tipo impresso pelo cheiro, durante as noites midas, deitado no meu canto, leio, ento, com meu olfato, pginas inteiras desses rolos selados que jazem em algum lugar no sto da torre. Kyr Avram prefere ler no frio, em manga de camisa, expondo seu corpo aos arrepios, e diz que, da sua leitura, apenas aquilo que atravessa os arrepios e chega at sua conscincia merece ser lembrado e anotado. O arquivo de Brnkovitch, instalado perto da biblioteca, compreende milhares de pginas sobre diferentes assuntos: desde um catlogo de suspiros e exclamaes nas preces em eslavo antigo at um repertrio de sais e chs; ele possui tambm uma enorme coleo de cabelos, de barbas e de bigodes das mais diversas formas e cores, que pertenceram a mortos e vivos de todas as raas, e que cola em garrafas de vidro, constituindo assim uma espcie de museu de penteados antigos. Seus prprios cabelos, entretanto, no fazem parte dessa coleo, mas ele ordenou que fossem utilizados para bordar, em todos os seus casacos, seu braso com a guia de um olho e a divisa: Todo senhor ama sua prpria morte.

    Brnkovitch trabalha todas as noites em seus livros, colees e arquivos, mas consagra uma ateno particular, e isto no maior dos segredos, elaborao de um dicionrio sobre a converso dos kazares um povo desaparecido outrora das margens do mar Negro e que enterrava seus mortos em barcas. uma espcie de compilao de biografias, o repertrio daqueles que; h algumas centenas de anos, participaram da converso dos kazares ao cristianismo, e outros personagens que deixaram posteriormente anotaes sobre esse acontecimento. Somos os nicos, Teoktist Niklski, e eu, seus dois escribas, a ter acesso ao Dicionrio Kazar de Avram Brnkovitch. Essa precauo explica-se provavelmente, pelo fato de Brnkovitch estudar diferentes heresias, no somente crists, mas tambm judias e muulmanas, e, se tivesse sabido, nosso patriarca de Ptch seguramente ter-lhe-ia reservado um dos seus antemas, que ele conta e reconta todos os anos, no ms de agosto, no dia da Ascenso de Sant'Ana. Brnkovitch dispe de todos os dados acessveis sobre Cirilog e Metdiog, missionrios e santos da cristandade, que participaram do lado grego da converso dos kazares. Brnkovitch encontra, contudo, as maiores dificuldades para incluir no seu dicionrio os delegados judeu e rabe que igualmente participaram da polmica sobre a converso kazar na Corte do kaghan.

  • Nada sabe sobre esse judeu e esse rabe, exceto que existiram, nem sequer lhes conhece os nomes, e nenhuma fonte grega sobre os kazares, entre todas que pde consultar, fala deles. Seus enviados percorrem os mosteiros valquios e os pores de Constantinopla, buscando documentos hebraicos e rabes sobre a converso kazar. Ele mesmo veio aqui, a Constantinopla, de onde Cirilo e Metdio partiram outrora para a capital dos kazares para convert-los, a fim de encontrar os manuscritos e os homens que os estudam. Mas no se limpa uma fonte com lama, e ele nada conseguiu. Ele no acredita que seja o nico a se interessar pelos kazares, ou que ningum no passado tenha se interessado, salvo os missionrios cristos que, de So Cirilo at nossos dias, deixaram anotaes sobre o assunto. Deve certamente existir ele assegura pelo menos um dervixe e um rabino que conheam detalhes da vida e da atividade dos participantes rabe e judeu na polmica, mas ele no encontra nem um nem outro, ou ento so estes que no querem dizer o que sabem. Supe que existam, sobre a mesma questo e o mesmo povo, alm das fontes crists, fontes rabes e judias detalhadas, mas que algum obstculo impede as pessoas de se encontrarem e trocarem suas informaes que, reunidas, forneceriam um quadro claro e completo a respeito de tudo que se vincula a essa questo.

    No compreendo ele diz freqentemente. Provavelmente, eu sempre interrompo minha reflexo cedo demais, e ento esses pensamentos permanecem em mim formados apenas pela metade e se mostrando s at a cintura....

    Em minha opinio, no difcil explicar o entusiasmo de Kyr Avram por um assunto to insignificante. Kyr Brnkovitch interessa-se pelos kazares por razes muito egostas. Ele est, de fato, tentando se curar, escapar dos sonhos dos quais prisioneiro. O Kuros dos seus sonhos tambm interessa-se pela questo kazar, e Kyr Avram sabe disto melhor do que ningum. A nica maneira que tem de libertar seus sonhos da escravido encontrar esse estrangeiro, mas s poder conseguir isto atravs dos documentos kazares, nica pista que o levar ao outro. Creio que este outro pensa da mesma forma. O encontro deles , portanto, inevitvel, como o do carcereiro e seu prisioneiro. Desse modo, no surpreendente que Kyr Avram esteja se preparando com um tal ardor, ajudado por seu mestre de esgrima. Odeia tanto seu Kuros que seria capaz de engolir os olhos dele como se fossem ovos de pssaro. Assim que o apanhar... Isto apenas uma suposio. Se isto no, acontecer, ento ser preciso lembrar das palavras de Avram Brnkovitch sobre Ado, e sua experincia bem sucedida com Petktin. Neste caso, Brnkovitch ser um homem perigoso, e seu projeto ter conseqncias incomensurveis; seu Dicionrio Kazar apenas a preparao livresca de uma grande ao...

    Com estas palavras termina o relatrio de Nikon Sevast sobre Avram Brnkovitch. Sobre

    o desenrolar dos ltimos dias da vida do seu senhor, Sevast no pde informar ningum, pois senhor e servidor foram mortos juntos, numa quarta-feira coberta de brumas, em algum lugar da Valquia. Este acontecimento foi relatado por um outro criado de Brnkovitch, o mestre-de-armas j citado, Averkiye Skila. Parece que anotou sua narrativa com a ponta de sua espada mergulhada em tinta, numa folha de papel jogada no cho, que segurava com sua bota.

    Na ltima noite em Constantinopla, antes da partida escreveu Averkiye Skila Papas Avram reuniu-nos na sala que dava para os trs mares. Ventos verdes sopravam do mar Negro, ventos azuis e transparentes do mar Egeu, e ventos secos e amargos da margem do Jnio. Quando entramos, nosso senhor estava lendo, em p, recostado na sela de seu camelo. As moscas antlicas picavam, anunciando a chuva, e ele se protegia, aoitando com destreza suas costas no lugar exato da picada. Naquela noite, h pouco tnhamos acabado nosso habitual exerccio de esgrima, e se eu no tivesse levado em conta sua perna aleijada, ele ter-me-ia feito em pedaos na escurido. De noite ele era sempre mais rpido do que de dia. Agora ele estava usando, no p do lado da perna doente, um ninho de pssaros como se fosse um calado, pois o ninho aquece melhor.

    Sentamo-nos, os quatro que framos convocados, eu, os dois escribas e Maudi, o criado de quarto, que j havia preparado num saco verde seus objetos para viagem. Como de costume,

  • comemos uma colherada de gelia de cerejas com pimenta, bebemos um copo de gua do poo que fica na sala mas ressoa em algum lugar no poro, afogando nossas vozes. Papas Avram pagou-nos ento e declarou que, se desejssemos, podamos permanecer. Todos os outros partiriam com ele para a guerra, no Danbio.

    Pensvamos que isso era tudo que ele tinha para nos dizer e no nos reteria mais. Mas Brnkovitch tinha uma particularidade: era ao deixar seu interlocutor que sempre se mostrava mais sbio. Fingia, ento, ser desajeitado e despedia-se de sua companhia um pouco depois do que seria devido. Sempre passava da hora quando tudo j estava dito, hora em que os outros j abandonavam suas mascaras e tomavam as feies que possuem quando esto a ss consigo mesmos. Retardou-se dessa vez tambm, da mesma forma. Enquanto apertava a mo do anatlio, observava todos os outros, de esguelha. E foi neste exato momento que um dio terrvel surgiu como um raio entre Maudi e Nikon Sevast, um dio at ento cuidadosamente dissimulado pelos dois lados. Isto aconteceu porque Maudi disse a Papas Avram:

    Senhor, antes de nos separarmos, gostaria de agradecer-lhe os seus presentes. Vou dizer-lhe uma coisa que lhe dar prazer porque h muito tempo o senhor deseja ouvi-la. Aquele com quem sonha se chama Samuel Cohen@.

    Ele mente! gritou ento Sevast e, subitamente, apanhou o saco verde de Maudi e lanou-o ao fogo.

    Impassvel, Maudi virou-se para Papas Avram e disse-lhe, apontando Nikon Sevast: Olhe-o, senhor, s tem uma narina no nariz. E mija com sua cauda, como todos os

    demnios. Kir Avram pegou o papagaio que segurava uma lanterna entre suas garras e o abaixou.

    Sob essa iluminao, efetivamente, o nariz de Nikon Sevast s tinha uma narina, uma nica, negra e sem septo no meio, como acontece com os demnios. Ento Papas Avram lhe disse:

    Ento, s desses que no ousam mudar de sapato? verdade, meu senhor, mas no sou daqueles cujas fezes fedem a medo. No nego ser

    Sat confessou, sem hesitar. Digo apenas que perteno ao mundo subterrneo dos cristos, aos maus espritos da terra grega e ao inferno do rito ortodoxo. Pois imagem do cu acima de ns que dividido entre Jeov, Al e Deus Pai, o mundo subterrneo dividido entre Asmodeu, Iblis e Sat. A sorte quis que eu fosse descoberto em solo do atual imprio turco, mas isto no autoriza Maudi nem outros representantes do Isl a me julgarem. Este direito pertence aos representantes da liturgia crist cuja jurisdio , para mim, a nica vlida. Seno, os tribunais cristos ou judaicos podem comear a julgar os membros do inferno muulmano cados em suas mos. Que nosso Maudi reflita sobre esta advertncia.

    Papas Avram replicou: Meu pai, Ioankie Brnkovitch, teve alguma experincia com os de tua espcie. Todas as

    nossas casas na Valquia sempre tiveram suas pequenas feiticeiras domsticas, seus pequenos sats e lobisomens, com quem jantvamos. Envivamos contra eles matadores de vampiros e filhos do Sab; dvamos-lhes uma peneira para que contassem os seus furos e encontrvamos suas caudas arrancadas ao redor da casa; colhamos amoras em sua companhia, amarrvamo-los s portas, ou a um boi, e os chicotevamos para puni-los antes de jog-los nos poos. Certa noite, em Djula, meu pai encontrou um enorme boneco de neve sentado no buraco da latrina. Bateu nele com sua lanterna, matou-o e foi jantar. O jantar compunha-se de sopa de repolho e javali. Comeou a comer e, de repente, paf, sua cabea caiu dentro do prato. Ele beijou sua prpria imagem que o fitava de baixo, e se afogou na sopa de repolho. Isto se passou diante de nossos olhos, e no tivemos tempo de compreender coisa alguma. Lembro-me ainda que, enquanto ele se afogava na sopa, como num abrao amoroso, envolvia o prato com seus braos, dir-se-ia que abraava, ao invs do javali, a cabea de um outro ser. Em suma, ns o enterramos como se o arrancssemos de um forte abrao... Jogamos suas botas no Morich, para que ele no se tornasse vampiro. Se tu s Sat, e tu s, dize-me ento o que significou a morte de meu pai Ioankie Brnkovitch.

  • O senhor aprender o significado sozinho, sem minha ajuda respondeu Sevast , mas vou-lhe dizer outra coisa. Sei as palavras que seu pai ouviu antes de morrer. So estas: Um pouco de vinho para lavar minhas mos! Essas palavras ressoavam em seus ouvidos no momento em que deixou este mundo. E agora, ainda uma outra coisa, para que o senhor no diga que chupei tudo isso de meus ossos ocos, pois tenho os ossos ocos. O senhor trabalha h vrias dcadas no Dicionrio Kazar, ento permita-me contribuir tambm com o seu abecedrio. Escute, portanto, o que ignora. Os trs rios do antigo mundo dos mortos o Aqueronte, o Piriflgueton e o Ccito pertencem atualmente aos infernos do isl, do judasmo e do cristianismo; correm sob o solo do antigo pas kazar, separando os trs infernos o Guehen, o Hades e o inferno glacial dos maometanos. A, nesse trplice lugar, encontram-se os trs mundos dos mortos: o reino ardente de Sat, os nove crculos do inferno cristo, com o trono de Lcifer e as bandeiras do rei do inferno; o mundo subterrneo islmico, com o reino dos sofrimentos glaciais de blis; e o domnio de Guebur, do lado esquerdo do Templo, onde esto sentadas as potncias do mal, da volpia e da fome, o Guehen judeu dominado por Asmodeu. Esses trs subterrneos no se confundem, a fronteira entre eles traada por uma charrua de ferro, e ningum tem o direito de transgredi-la. Alis, a maneira como vocs representam esses infernos falsa, pois falta-lhes experincia. No de Belial, o inferno judeu, o reino dos anjos das trevas e dos pecados, no ardem os judeus, contrariamente ao que acreditam. L queimam aqueles que se parecem com vocs, ou seja, rabes e cristos. Do mesmo modo, no h cristos no inferno cristo a so jogados ao fogo os maometanos e os adeptos da religio de Davi, enquanto no inferno islmico de blis s se encontram cristos e judeus, nem um nico turco ou rabe. Imagine, agora, Maudi, que tem tanto medo de seu terrvel mas familiar inferno muulmano, chegando no Chel judeu ou no Hades cristo onde estarei esperando por ele! Ao invs de blis, comparecer diante de Lcifer. Imaginem o cu cristo sobre o inferno onde expia um judeu!

    Considere isto como uma grande e suprema advertncia, meu senhor! Como a mais profunda das sabedorias. No tenha nenhum contato aqui na terra com coisas que envolvem os trs mundos, o isl, o cristianismo e o judasmo, para que no tenhas nenhuma relao com os seus subterrneos! Pois aqueles que se odeiam no so o problema neste mundo. Eles sempre se parecem. Os inimigos so sempre idnticos, ou assim se tornam com o tempo, ou ento no seriam inimigos. Os que so realmente diferentes uns dos outros que representam o maior perigo. Esforam-se para se conhecerem, pois as diferenas no os incomodam. So os piores. Unindo nossas foras com as de nossos inimigos, acertaremos as contas com todos aqueles que nos concedem o direito de sermos diferentes deles, sem que isto lhes perturbe o sono: acertaremos as nossas contas unindo nossas foras s de nossos inimigos e os destruiremos de trs lados ao mesmo tempo...

    Kyr Avram declarou, ento, que em tudo isso havia alguma coisa que lhe escapava e perguntou:

    Neste caso, por que isto ainda no foi feito, e se no cabe a ti agir, tu que ainda no perdeste a cauda, ento por que os mais idosos, os mais experimentados, no tentaram nada? Que esperam, enquanto construmos a casa para Nosso Pai?

    Esperamos o bom momento, meu senhor. Alm disso, ns, os demnios, s podemos dar um passo depois de vocs, os homens. Cada um de nossos passos deve pisar na pegada de um dos seus passos. Estamos sempre um passo atrs de vocs, s comemos quando vocs terminaram de jantar e, como vocs, no vemos o futuro. Portanto, vocs primeiro, ns a seguir. Mas gostaria de lhe dizer, meu senhor, que ainda no deu o passo que nos levaria a persegui-lo. Se o senhor um dia der o passo, o senhor ou algum dos seus descendentes, ns o apanharemos no dia da semana cujo nome no pronunciado. Mas, no momento, tudo est em ordem pois o senhor no encontrar seu Kuros de olhos vermelhos, mesmo que ele venha aqui, em Constantinopla. Se ele sonha com o senhor como o senhor sonha com ele, se ele constri no sonho dele a sua realidade, e o senhor a dele no seu sonho, ento no podem olhar-se nos olhos um do outro, pois nunca esto acordados ao mesmo tempo. Apesar de tudo, no se coloque

  • diante da tentao. Creia-me, senhor, mais perigoso compor um dicionrio sobre os kazares, a partir de palavras espalhadas, nesta torre pacfica, do que ir guerrear no Danbio onde j se batem turcos e austracos; bem mais perigoso esperar aqui, em Constantinopla, uma apario surgida dos sonhos do que correr ao assalto com o sabre desembainhado, o que o senhor sabe fazer to bem. Pense nisto e parta para onde tinha decidido, sem se inquietar, e no d ouvidos a esse anatlio que mergulha sua laranja no sal...

    Quanto ao resto, meu senhor concluiu Sevast , pode, claro, entregar-me ao poder espiritual cristo e fazer-me julgar pelo Tribunal Eclesistico que persegue feiticeiras e demnios. Mas, antes disso, permita que lhe faa uma nica pergunta: o senhor cr que sua Igreja existir ainda daqui a 300 anos e poder julgar como faz hoje?

    claro que creio respondeu Papas Avram. Ento, prove-o: em 293 anos exatamente vamos encontrar-nos de novo, nesta mesma

    estao do ano, aqui, em Constantinopla, no desjejum, e o senhor me julgar ento como me julgaria hoje...

    Papas Avram riu, disse que estava de acordo e matou uma mosca com a ponta de seu chicote.

    Ao alvorecer, cozinhamos gros de trigo com nozes e acar, embrulhamos o bolo com

    sua frma numa almofada e o colocamos no saco de viagem, a fim de que aquecesse Papas Avram quando repousasse. Pegamos o barco, atravessamos o mar Negro e subimos o delta do Danbio. As ltimas andorinhas voavam de costas, e seus reflexos no Danbio mostravam seus dorsos negros ao invs de seus ventres brancos. Penetramos em nevoeiros que transportavam, atravs das florestas e do Djerdap, o duro silncio que ensurdece e para o qual confluem todos os outros silncios. No quinto dia, perto de Kldovo, fomos acolhidos na outra margem do rio por uma tropa de cavaleiros da Transilvnia, cobertos por uma acre poeira romena. Assim que nos encontramos no campo do prncipe de Baden, soubemos que o conde Guerguie estava tambm no combate, que os generais Haydersheim, Veterani e Haisel preparavam-se para atacar as posies turcas, e que h dois dias os barbeiros corriam em volta deles para barbe-los e pente-los, pois marchavam sem parar. Nesta mesma noite fomos testemunhas da inacreditvel habilidade de nosso senhor.

    A estao mudava, as manhs estavam frias, mas as noites ainda quentes era vero at meia-noite, e outono pela manh. Papas Avram escolheu sua espada, foi selado seu cavalo, e do campo srvio chegou uma tropa de cavaleiros que traziam pombos vivos em suas mangas. Cavalgando, fumavam compridos cachimbos, e encaixavam crculos de fumaa nas orelhas de seus cavalos. Quando Brnkovitch montou, recebeu tambm um cachimbo aceso, e todos, assim fumando, partiram para o acampamento do general Veterani para receber suas ordens. Foi ento que se ouviram vozes no campo austraco:

    Srvios nus esto chegando! Efetivamente, atrs dos cavaleiros surgiu uma tropa de soldados de infantaria que no

    usavam nada alm dos seus barretes. Nus, atravessaram a luz dos fogos do campo como se atravessa um portal e, atrs deles, um pouco mais rapidamente, passaram suas sombras nuas, duas vezes mais velhas do que eles.

    Vocs no esto pretendendo atacar na escurido? perguntou Veterani, acariciando seu co, to grande que podia bater com a cauda na boca de um homem.

    Vamos atacar, sim respondeu Kyr Avram , os pssaros nos mostraro o caminho. Acima das posies austracas e srvias elevava-se o monte Rs, onde a chuva nunca cai;

    em seu cimo erguia-se uma fortaleza turca com seus canhes. H trs dias, no conseguiam aproximar-se dele por nenhum lado. O general disse a Brnkovitch para atacar essa fortaleza.

    Se conseguir conquistar a posio inimiga, faa um fogo verde com galhos de bordo acrescentou o general , para que possamos nos orientar.

    Os cavaleiros receberam a ordem e partiram, fumando seus cachimbos. Pouco tempo

  • depois