Dicionário Kazar - Edição Masculina

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    islamismo e o cristianismo. Pouco tempo aps a converso, o reino dos kazares sucumbiu. OkniazSviatoslav, um desses senhores russos da guerra, devorou-o, no sculo X, como se fosseuma ma, sem descer do seu cavalo. A capital dos kazares, que se encontrava na embocadura do

    Volga, s margens do mar Cspio, foi destruda em 943 pelos russos que a sitiaram durante oitodias e oito noites, inteiros, sem dormir. Do mesmo modo, o Estado kazar foi aniquilado entre

    965 e 970. As testemunhas contam que as sombras das casas da capital kazar subsistiram aindapor muito tempo depois que as construes foram destrudas. Essas sombras flutuavam no ventoe sobre as guas do Volga. Segundo uma crnica russa do sculo XII, Oleg j usa o ttulo dearconte de Kazria, em 1083, mas, no sculo XII, um outro povo, os cmanos, j se tinhaestabelecido no antigo territrio dos kazares. Os vestgios materiais da cultura kazar so muitoincompletos. No foi descoberta nenhuma inscrio, pblica ou privada, no foi encontradonenhum trao dos livros kazares dos quais fala Halevi@, nem da lngua dos kazares, emboraCirilog tenha anotado que rezavam em sua prpria lngua. A nica construo descoberta, emSuvar, no antigo territrio dos kazares, ao que parece no kazar, mas blgara. As pesquisasefetuadas em Sarkil no deram resultado, no foi nem mesmo encontrado qualquer sinal dafortaleza que Bizncio, como sabemos, construra no territrio a pedido dos kazares. Depois da

    runa do seu Estado, o nome dos kazares muito raramente pronunciado. No sculo X, umchefe hngaro convida-os a se instalarem em seu territrio. Em 1117, alguns kazares vo atKiev, ver o kniazVladmir, o Monmaco. Em 1309, em Presburgo, recusado aos catlicos odireito de se casarem com kazares e, em 1346, o papa confirma esta interdio. Isto praticamente tudo.

    O citado ato da converso, que foi decisivo para o destino dos kazares, desenrolou-se daseguinte maneira: o kaghan, o chefe kazar, como esclarecem as antigas crnicas, mandou buscar,depois de ter tido um sonho, trs filsofos vindos de diferentes lugares para interpretarem o seusonho. O assunto tinha importncia para o Estado kazar, pois o kaghan decidira adotar, comtodo seu povo, a crena do sbio que interpretasse seu sonho da maneira mais plausvel. Algumasfontes afirmam que, no dia em que o kaghan tomou essa resoluo, seus cabelos morreram em

    sua cabea e ele sabia disto, mas alguma coisa impelia-o a continuar. Na residncia de vero dokaghan encontraram-se, ento, trs delegados: um muulmano, um judeu e um cristo ou seja,um dervixe, um rabino e um monge. O kaghan ofereceu uma faca de sal a cada um, e elescomearam a polmica. Os pontos de vista dos trs sbios, o conflito entre eles a partir dosdogmas das trs religies diferentes, os atores e a concluso da polmica kazar provocaramgrande curiosidade e suscitaram julgamentos contraditrios sobre o acontecimento e suasconseqncias, os vencedores e os vencidos. Ao longo dos sculos, a polmica kazar deu origema inmeros debates nos meios hebraicos, cristos e islmicos, e isto perdura at os dias de hoje,embora os kazares tenham desaparecido h muito tempo. O interesse pela questo kazarrenovou-se subitamente no sculo XVII, pois as infindveis informaes sobre o assunto foramreunidas e publicadas na Borssia (Prssia), em 1691. Estudaram-se espcimes de moedas

    tricornes, os nomes inscritos em antigos anis, os motivos gravados em jarros de sal, acorrespondncia diplomtica, retratos de escritores tendo, ao fundo, desenhos de livros cujosttulos foram atentamente transcritos; estudaram-se os relatrios dos espies, os testamentos, as

    vozes dos papagaios das margens do mar Negro, que se acreditava falarem a lngua kazardesaparecida, as pinturas com cenas musicais nas quais decifraram-se as notas inscritas naspartituras, e at mesmo uma pele humana tatuada, sem contar os arquivos de origem bizantina,judaica e rabe. Em resumo, foi utilizado tudo o que a imaginao de um homem do sculo XVIIpodia domar e colocar a seu servio. E tudo isso foi reunido nas pginas de um dicionrio. Aexplicao desse recrudescimento do interesse pela polmica kazar, no sculo XVII, mil anosaps o evento, dada por um cronista, em algumas frases enigmticas: Cada um passeia seupensamento como se passeia um macaco na coleira. Quando ls, tens sempre dois macacos

    diante de ti: o teu e o de um outro. Ou, ainda pior, um macaco e uma hiena. V l o que darspara alimentar a um e a outro. Pois a hiena no come a mesma coisa que o macaco...

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    De todo modo, o editor de um dicionrio polons, Ioannes Daubmannus@ (ou um seudescendente com o mesmo nome), publicou em 1691 tudo que fora reunido sobre a questokazar, todos os textos policromados que, durante sculos, foram amontoados ou perdidos poraqueles que, com a pluma no brinco da orelha, faziam de suas bocas um tinteiro. Essa publicaotomou a forma de um dicionrio sobre os kazares, intitulado Lexicon Cosri. De acordo com uma

    fonte (crist), o livro foi ditado ao editor por um monge chamado Teoktist NiklskiA

    , querecolhera no campo de uma batalha entre os exrcitos austraco e turco manuscritos de origensdiferentes sobre os kazares e decorara-os. A edio de Daubmannus compreendia trsdicionrios: um glossrio separado de fontes islmicas sobre a questo kazar, um alefbetrio detextos tirados dos manuscritos e tradies hebraicas, e um dicionrio composto com base nasfontes crists.

    Essa edio de Daubmannus, o dicionrio dos dicionrios sobre o reino kazar, teve umdestino incomum.

    Um dos quinhentos exemplares desse primeiro dicionrio sobre os kazares foi impressopor Daubmannus com tinta venenosa. Esse livro envenenado, protegido por uma fechadura deouro, era acompanhado de um exemplar de controle com uma fechadura de prata. Em 1692, a

    Inquisio mandou destruir a edio de Daubmannus, s restando o exemplar envenenado e o dafechadura de prata que o acompanhava. Estes escaparam da censura. Assim, os insubmissos e osinfiis que ousavam ler o dicionrio proibido expunham-se a um perigo mortal. Aquele que abriao livro paralisava-se rapidamente, aguilhoado pelo seu prprio corao como se fosse por umalfinete. O leitor morria, efetivamente, na nona pgina, ao ler as seguintes palavras: Verbum caro

    factum est (O verbo se fez carne). O exemplar de controle permitia conhecer o momento dachegada da morte, se fosse lido ao mesmo tempo em que se lia a obra envenenada. Nesseexemplar de controle figurava a seguinte observao: Quando acordardes sem sentir nenhumador, sabereis que no estais mais entre os vivos.

    Os autos de um processo de sucesso, o da famlia Dorfmer, no sculo XVIII, provamque o exemplar de ouro (envenenado) do dicionrio era transmitido de gerao em gerao

    nessa famlia prussiana: o primognito herdava a metade do livro, e um quarto cabia a cada umdos outros filhos, ou menos, se fossem mais numerosos. A cada parte do livro correspondia umaparcela dos outros bens da herana Dorfmer: pomares, campos, prados, casas e lagos, ou gado.Durante muito tempo, no se estabeleceu nenhuma relao entre a morte das pessoas e a leiturado livro. Quando, um dia, o gado comeou a morrer e sobreveio a seca, algum disse aoshabitantes da casa que qualquer livro, assim como qualquer donzela, podia tornar-se Tmorina,uma vampira, e que ento seu esprito vagava no mundo empesteando e matando tudo ao seuredor. Era preciso, portanto, enfiar na fechadura do livro uma pequena cruz de madeira, como asque se pem na boca das donzelas metamorfoseadas em vampiras, para impedir o esprito de saire matar os habitantes da casa. Assim foi feito com o Dicionrio Kazar: enfiou-se uma cruz em suafechadura, como numa boca. Mas o desastre tomou maiores propores, e as pessoas da casa

    comearam a sufocar enquanto dormiam e a morrer. Foram ento procurar um padre: ele retiroua cruz do livro e a hecatombe terminou. Ele lhes disse: Cuidai no futuro de no enfiar uma cruzno livro, quando o esprito estiver fora, pois o medo mortal que ele tem da cruz impede-o deretornar. E ele causa devastao e mortes. Desse modo, a fechadura dourada foi trancada e oDicionrio Kazarficou sem uso sobre a prateleira, durante dcadas. Da estante onde se encontravao livro provinha, de noite, um rudo estranho que saa do dicionrio. As anotaes de um Diriomantido naquele tempo, em Lvov, esclarecem que no dicionrio de Daubmannus havia umaampulheta criada por um certo Nehama, conhecedor do Zohar e capaz de escrever e falar aomesmo tempo. Este Nehama afirmava, alis, que reconhecera em sua prpria mo o desenho daconsoante He(heh) de sua lngua hebraica, e na letra Vav(Vay) sua alma masculina. A ampulhetaque incorporara ao livro era invisvel, mas, num silncio total, podia-se escutar a areia escorrendo,

    durante a leitura. Quando toda a areia escorresse, era preciso virar a obra e continuar a l-la nosentido inverso, em direo ao comeo, o que permitia descobrir seu significado secreto. Outras

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    anotaes esclarecem, entretanto, que os rabinos no aprovavam a ateno que seu compatriotadispensava ao Dicionrio Kazar, e que o livro era freqentemente objeto de ataques por parte doseruditos do mundo hebraico. Os rabinos no colocavam em dvida a veracidade das fonteshebraicas do dicionrio, mas no concordavam com as alegaes das outras fontes. Finalmente, preciso dizer que o Lexicon Cosrino teve melhor sorte na Espanha, onde, nos meios islmicos

    mouros, o exemplar de prata foi condenado a no ser lido durante oitocentos anos. Esse prazoainda no transcorreu, e a interdio continua em vigor. Isto pode ser explicado pelo fato de que,naquela poca, na Espanha, ainda havia famlias de origem kazar. Esses ltimos kazares foiobservado tinham um estranho costume. Quando entravam em conflito com algum,precisavam, a todo custo, injuri-lo e maldiz-lo enquanto dormia, cuidando para no despert-locom os xingamentos e maldies, pois a maldio, dessa maneira agia de modo mais eficaz echegava mais depressa se o adversrio no estivesse lcido. Foi desse modo asseguraDaubmannus que as mulheres kazares amaldioaram Alexandre, o Grande. Isso confirmado,em certo sentido, pelo testemunho de Pseudocalstenes afirmando que os kazares figuram entreos povos que foram dominados por Alexandre da Macednia.

    2. Composio do DicionrioNo mais possvel saber, hoje, como era a edio de Daubmannus do Dicionrio Kazar

    (1691), pois os nicos exemplares restantes, o envenenado e o prateado (de controle), foramigualmente destrudos, cada um em um extremo do mundo. De acordo com uma fonte, oexemplar de ouro foi destrudo de uma maneira indigna. Seu ltimo proprietrio era um ancioda famlia Dorfmer, conhecido pelo dom que possua de identificar uma boa espada pelo timbreque ela emitia, como se fosse um sino. Jamais lia livros e dizia: A luz deposita seus ovos nosmeus olhos, como a mosca deposita sua saliva numa ferida. Sabe-se o que pode sair disso... Oancio no suportava os alimentos gordurosos e, sem que sua famlia soubesse, mergulhava todosos dias uma folha do Dicionrio Kazarem seu prato de sopa, para que ela absorvesse a gordura, e

    depois jogava fora a folha engordurada. Antes que sua manobra fosse descoberta, destruiu oLexicon Cosri. A mesma anotao afirma que o livro era ilustrado com gravuras que o ancio noutilizava pois elas estragavam o gosto de sua sopa. Somente essas pginas ilustradas teriam sidoconservadas, e talvez fosse possvel reencontr-las hoje tanto quanto seria possvel distinguir,num caminho, a primeira pegada das outras que a seguiram. Supe-se que um professor de

    Arqueologia e Orientalstica, um certo Doutor Isailo Sukg, possua um exemplar ou uma cpia doDicionrio Kazar, mas nada foi descoberto entre suas coisas, depois de sua morte. Dessa forma, snos restam fragmentos do dicionrio editado por Daubmannus, assim como dos sonhos s nosresta a poeira nos olhos.

    De acordo com esses fragmentos, citados por aqueles que entraram em polmica com oautor, ou autores, do Dicionrio Kazar, evidente (como foi dito acima) que a edio de

    Daubmannus era uma espcie de enciclopdia kazar, uma compilao das biografias ouhagiografias de personagens que, de um modo ou outro, atravessaram o cu do reino kazar, comoum pardal voando por um dormitrio. A vida dos santos e a de outros participantes na polmicakazar e as vidas daqueles que a relataram ou estudaram, atravs dos sculos, constituam a matriado livro, onde tudo estava dividido em trs partes.

    Essa organizao do dicionrio de Daubmannus, subdividido em fontes hebraicas,islmicas e crists, sobre a converso dos kazares, tambm o princpio desta segunda edio. Olexicgrafo tomou esta deciso, apesar das dificuldades inauditas decorrentes da falta dedocumentos originais, depois de ter lido esta frase na enciclopdia kazar: O sonho um jardimdo diabo, e todos os sonhos deste mundo j foram h muito sonhados. Hoje, eles so apenastrocados pela realidade igualmente gasta e usada, assim como as moedas e notas so trocadas de

    mo em mo... Em tal mundo, ou, melhor dizendo, num mundo que chegou a este estgio,podia-se aceitar uma tal responsabilidade.

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    preciso, porm, no esquecer uma coisa: o editor desta segunda verso do DicionrioKazarest inteiramente consciente de que o material utilizado por Daubmannus no sculo XVIIno garantido, que ele , em grande parte, baseado em lendas, que representa o mesmo que umarefeio consumida em um sonho, e que est envolvido numa rede de iluses de diferentes eras.Seja como for, este o material aqui submetido apreciao do leitor, pois este dicionrio no

    procura apresentar um ponto de vista moderno sobre os kazares; uma tentativa de reconstituir aedio perdida de Daubmannus. Os conhecimentos atuais sobre os kazares s so utilizadoscomo complemento indispensvel aos fragmentos da fonte desaparecida.

    necessrio igualmente sublinhar que no se pde, por razes justificveis, retomar aquia ordem alfabtica do dicionrio de Daubmannus, que foi escrito em trs alfabetos e trs lnguasdiferentes: grego, hebraico e rabe, e no qual as datas correspondiam aos trs calendrios. Aqui,todas as datas esto calculadas de acordo com o mesmo calendrio, e o texto de Daubmannus,com seus verbetes, est traduzido das trs lnguas em uma nica. da mesma forma evidente quena edio do sculo XVII as palavras eram ordenadas de modo diferente e, segundo a lnguaempregada em cada um dos trs dicionrios (o hebreu, o rabe, o grego) o mesmo nome apareciaem lugares distintos, pois as letras no ocupam a mesma posio em alfabetos diferentes, assim

    tambm como no se folheiam os livros na mesma direo, e os atores principais no teatro noentram todos pelo mesmo lado do palco. Este livro, alis, no ter o mesmo aspecto em todas astradues, pois inevitavelmente a matria do Dicionrio Kazar ser ordenada diferentemente emcada lngua e em cada alfabeto, tomando os verbetes outra posio, e os nomes uma outrahierarquia. Assim, verbetes importantes, da edio de Daubmannus, como So Cirilog, YehudaHalevi@, ou Yuuf Maudi e ainda outros, esto aqui numa disposio diferente da que tiveramna primeira edio do Dicionrio Kazar. Este , sem dvida, o principal defeito desta nova verso,porque s aquele que l as diferentes partes de um livro na ordem correta pode criar o mundo denovo. Contudo no era possvel proceder de outro modo, pois a ordem alfabtica deDaubmannus no pde ser conservada.

    Todos esses defeitos, entretanto, no devem ser encarados como um grande prejuzo: o

    leitor capaz de desvendar o significado secreto do livro, lendo-o na ordem certa, h muito deixouesta terra, pois o pblico atual considera que a imaginao competncia exclusiva do escritor,no sua. Sobretudo quando se trata de um dicionrio. Para tal pblico, o livro no temnecessidade de conter uma ampulheta que indique o momento em que preciso inverter osentido da leitura; o leitor de hoje jamais modifica seu modo de ler.

    3. Modo de Usar o Dicionrio

    Apesar de todas as dificuldades, este livro conservou algumas das qualidades da primeiraedio, a de Daubmannus. Ele pode ser lido de inmeras maneiras, a exemplo do primeiro. umlivro aberto, inclusive quando o fechamos. Tambm pode ser completado: houve um primeiro

    lexicgrafo, aqui est agora o trabalho do segundo, e no futuro pode haver outros. compostode verbetes, senhas e registros, como os livros santos ou as palavras cruzadas, e para todos osnomes ou noes marcadas aqui por uma cruz, um quarto crescente, ou pela estrela de Davi, ououtro sinal, conveniente buscar no livro correspondente deste dicionrio uma informao maispormenorizada. Na prtica, para as palavras marcadas com o sinal:

    g preciso procurar no Livro Vermelho deste dicionrio (fontes crists sobre a questokazar)

    preciso procurar no Livro Verdedeste dicionrio (fontes islmicas sobre a questokazar)

    @ preciso procurar no Livro Amarelo deste dicionrio (fontes hebraicas sobre a questo

    kazar)

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    Os verbetes marcados com o sinal encontram-se nos trs dicionrios, e os marcadoscom o sinal A noApndice I, no final do livro.

    Desse modo, o leitor poder utilizar esta obra da maneira que mais lhe agradar. Unsprocuraro uma palavra ou um nome, que lhes interesse no momento, como em qualquerdicionrio; outros entendero este livro como um texto que deve ser lido do princpio ao fim, de

    uma s vez, a fim de adquirir uma viso global sobre a questo kazar e sobre os personagens,objetos e acontecimentos que a ela se relacionam. Pode-se folhear este livro da esquerda para adireita, ou da direita para a esquerda, como era folheada a enciclopdia editada na Prssia (fonteshebraicas e islmicas). Os trs livros deste dicionrio o amarelo, o vermelho e o verde serolidos na ordem escolhida pelo leitor: pode comear, por exemplo, naquele em que o dicionrio seabrir. por esta razo, sem dvida, que na edio do sculo XVII os livros eram encadernadosseparadamente, o que no seria possvel aqui, por razes tcnicas. O Dicionrio Kazarpode ser lidoigualmente em diagonal, a fim de se obter um corte atravs dos trs livros islmico, cristo ehebraico. Neste caso, a leitura mais eficaz a que procede por grupos de trs: escolhem-se, porexemplo, trs verbetes seguidos do sinal , que indica que figuram nos trs livros, como o casodas palavras Ateh, kaghan, polmica kazar ou kazares, ou ento escolhem-se trs personagens

    diferentes que desempenharam o mesmo papel no histrico da questo kazar. Pode-se assim,lendo-se trs textos em cada um dos livros, ter uma idia precisa sobre, por exemplo, osparticipantes da polmica kazar (angari, Cirilo, Ibn Kora), ou sobre os cronistas (Bekri, Metdio,Halevi), ou sobre os pesquisadores que estudaram a questo kazar no sculo XVII (Cohen,Maudi,Brnkovitch) e no sculo XX (Suk,Muaviya, Schultz). Naturalmente, preciso no esquecer, nessesgrupos de trs, dos personagens que vieram dos trs infernos: islmico, hebraico e cristo(EfrosniaLukrevitch, Sevast,Akchni). Foram eles os que percorreram o caminho mais longo parachegar at este livro.

    Quem usar este dicionrio, entretanto, no se deve deixar desencorajar por essasrecomendaes pormenorizadas. Pode, simplesmente, saltar esta introduo e ler como come:servindo-se do olho direito como se fosse um garfo, do olho esquerdo como se fosse uma faca, e

    jogando fora os ossos por sobre os ombros. o bastante. Pode ser que lhe acontea de se perderentre as palavras deste livro, como aconteceu com Maudi, um dos autores deste dicionrio, quese perdeu nos sonhos de outra pessoa sem poder encontrar o caminho de volta. Neste caso, noh outra coisa a fazer seno comear do meio, em qualquer pgina, desbravando seu prpriocaminho. Atravessar o livro como uma floresta, de sinal em sinal, orientando-se pela estrela, pelalua e pela cruz. De uma outra vez, vai l-lo como o falco que voa unicamente na quinta-feira, ouento poder vir-lo e revir-lo como se fosse um cubo mgico. Aqui, nenhuma cronologiaser necessria, nem respeitada. Desse modo, cada leitor criar seu prprio livro, como numapartida de domin ou de baralho, recebendo deste dicionrio, como de um espelho, tanto quantonele investir, pois est escrito nesta enciclopdia no se pode receber da verdade mais do quenela se investiu. Alm disso, no se obrigado a ler este livro por inteiro; pode-se percorrer

    metade dele, ou apenas uma parte, e ficar por a, como acontece geralmente com os dicionrios.Mas quanto mais se pede, mais se recebe, e o descobridor perseverante ter em suas mos todasas ligaes entre os termos deste dicionrio. O resto ficar para os outros.

    4. Fragmentos Conservados do Prefcio da Edio Original de Daubmannus, Publicada em 1691e Destruda (traduzidos do latim)

    1. O autor aconselha ao leitor s pegar este livro em caso extremo. E mesmo que se contente emapenas passar os olhos por ele, deve faz-lo no dia em que seu esprito e sua vigilncia estejammais agudas do que de hbito e que o leia como se fosse contrair a febre saltadora, essa doenaque salta um dia em cada dois e que s nos d febre nos dias femininos da semana.

    2. Imaginem dois homens que puxam uma corda em cada uma de suas extremidades, mantendo

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    desse modo um puma no meio. Se querem se aproximar simultaneamente um do outro, o pumavai atac-los, pois a corda no mais ficar esticada; preciso, ento, conservar a corda bemestendida a fim de que o puma permanea a igual distncia de cada um deles. E por esta mesmarazo que o escritor e o leitor dificilmente chegam a se aproximar: seu pensamento comum ficaamarrado por um fio que cada um puxa para seu lado. Se perguntssemos ao puma, ou seja, ao

    pensamento, como ele v os outros dois, ele poderia dizer que duas presas comestveis puxam,em cada extremidade da corda, aquele que no vo poder comer.

    3. Evita sempre, meu irmo, lisonjear demais e curvar a espinha em adulaes diante daqueles quelevam a autoridade no anel e o poder no silvo da espada. Eles esto sempre cercados por umamultido de pessoas que os cortejam de m vontade, porque so obrigadas a agirem assim. Soconstrangidas a isto porque tm uma abelha no chapu ou leo escondido sob a axila, foramapanhadas em flagrante delito, e agora pagam por isto; a liberdade delas est por um fio, estodispostas a tudo. Os de cima, que tudo governam, sabem disso bem e aproveitam-se. Cuidabastante, portanto, que no te confundam, a ti, o inocente, com os culpados. Isto suceder se tepes a lisonje-los demais ou a te curvares demais diante deles: eles vo classificar-te entre os

    fora-da-lei e os criminosos, pensando que s daqueles que tm uma mancha no olho e que tudoque fazes, no o fazes de boa vontade e com convico, mas porque s obrigado, a fim de expiartua m ao. Esse tipo de homem no merece ser respeitado; do-lhes chutes como aos ces, eso levados a cometer atos que se assemelham aos que j cometeram...

    4. No que vos diz respeito, a vs, os escritores, pensai sempre no seguinte: o leitor um cavalode circo ao qual preciso ensinar a esperar, aps cada tarefa bem feita, um pedao de acarcomo recompensa. Se o pedao de acar falta, nada sobra da lio. Quanto aos que julgam umlivro, os crticos literrios, so como os maridos trados: sempre os ltimos a ficarem sabendo...

    O LIVRO VERMELHOFONTES CRISTS SOBRE A QUESTO KAZAR

    ATEH (sculo IX) Princesa kazar, cuja participao no debate que precedeu aconverso dos kazares foi decisiva. Seu nome significa entre os kazares os quatro estados doesprito. De noite, usava em cada uma das plpebras uma letra, como aquelas que se inscrevemnas plpebras dos cavalos antes da corrida. Essas letras pertenciam ao alfabeto kazar proibido,cujas letras matam logo depois de lidas. As letras eram traadas por cegos e, pela manh, antes datoalete, as criadas atendiam a princesa com os olhos fechados. Assim, ela ficava protegida de seusinimigos durante o sono. Para os kazares, o sono era o momento em que o homem mais

    vulnervel. Ateh era muito bela e pia, as letras assentavam-lhe perfeitamente; sobre sua mesa

    havia sempre sete espcies de sal, e cada vez que ela queria comer um pedao de peixemergulhava antes seus dedos em um sal diferente. Era sua maneira de orar. Diz-se que possuasete rostos, como havia sete espcies de sal. Segundo uma lenda, todas as manhs ela apanhavaum espelho e sentava-se para se retratar: um ou uma escrava, nunca duas vezes o mesmo, vinhaposar. E a cada manh ela fazia de seu rosto um novo rosto, jamais visto anteriormente. Deacordo com outras lendas, Ateh absolutamente no era bela, mas compunha os traos de seurosto diante do espelho de tal modo que conseguia dar-lhe uma expresso que a tornava bela.Para obter esta beleza fictcia, era preciso despender um imenso esforo fsico, e a princesa, assimque se encontrava sozinha, distendia-se, e sua beleza se espalhava como o sal. Seja como for, umimperador bizantino do sculo IX chamou o clebre filsofo e patriarca Fotios de rosto kazar,o que podia significar ou que este patriarca tinha um lao familiar com os kazares, ou que tinha

    um ar hipcrita.Segundo Daubmannus@, nenhuma das duas hipteses. Pela expresso rosto kazar

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    espelhos com os olhos fechados e morreu imediatamente. Sucumbiu entre duas batidas deplpebra, mais exatamente no momento em que leu pela primeira vez as letras mortais inscritasem suas plpebras. Ela piscara no momento precedente e no momento seguinte, e os espelhosrefletiram isso. Morreu, fulminada ao mesmo tempo pelas letras do passado e pelas do futuro.

    BRNKOVITCH, AVRAM1

    (1651-1689) Um dos autores deste livro. Diplomatamercenrio em Edirna e junto Sublime Porta de Constantinopla, chefe militar nas guerrasaustro-turcas, sabe-tudo e erudito. O retrato de Brnkovitch como benfeitor foi pintado numadas paredes da Igreja de Santa Paraskeva, em Kupinik, na propriedade da famlia Brnkovitch.Foi representado em companhia dos seus prximos, no momento em que oferecia a igreja deSanta Paraskeva, numa espada, sua trisav: a dspota e santa srvia, a muito pia Me Angelina.

    Avram Brnkovitch pertence a uma famlia que, aps a queda do imprio srvio sob adominao turca, deixa o sul para se instalar na plancie do Danbio pode-se ler no relatriosecreto de Nikon Sevast, dirigido Corte de Viena. Os membros dessa famlia, arrastados pelomovimento de emigrao que despovoou as regies cadas nas mos dos turcos, chegam nosculo XVI Lpora e regio Inova. Desde ento, diz-se dos Brnkovitch da Transilvnia que

    mentem em valquio, calam-se em grego, contam em aromeno, cantam em russo na Igreja, so osmais sbios em turco e s pronunciam o srvio, sua lngua materna, quando vo matar. Sooriginrios da regio Trbinie, na Hrtzegovina ocidental, mais precisamente da localidade deKorentchi, perto de Lastva, em Grnie Plitze de onde lhes vem o segundo sobrenome:Korentchi. Desde que chegaram, os Brnkovitch gozam de boa reputao na Transilvnia, e hmais de duzentos anos tm o melhor vinho da Valquia, donde o ditado: Eles podem teembriagar com suas lgrimas. Enquanto distinguia-se nos combates no entroncamento de doissculos e de dois Estados o turco e o hngaro , a famlia Brnkovitch forneceu tambm umalinhagem de conhecidos homens de Igreja, em sua nova ptria beira do rio Mrich, emIenoplie, em Lpova e em Pankota. Moiss Brnkovitch foi, sob o nome de bispo Matei, ometropolita de Inova, e a casca de noz que ele lanava no Danbio chegava mais rpido ao mar

    Negro do que qualquer outra noz. Seu filho Salomo, tio do conde Djordje Brnkovitch, que,enquanto bispo de Ienova tomou o nome de Sava I, dirigiu a eparquia de Inova e de Lpova semdescer de seu cavalo e s bebia montado, at que Lpova foi libertada do jugo turco em 1607. OsBrnkovitch garantem que so da linhagem dos grandes senhores feudais srvios do mesmonome, mas difcil saber de onde vm os seus bens. Um ditado garante: tudo o que os aromenos,de Kavala at Zemun, ganham em sonho vai, na realidade, para os bolsos dos Brnkovitch. Suasjias so frias como a serpente, um pssaro no pode sobrevoar todas as suas terras, e as canespopulares associam-nos s famlias reinantes. Os Brnkovitch so protetores de mosteiros na

    Valquia e no monte Atos, na Grcia, constroem cidadelas e igrejas como as de Belgrado, deKupinik ou da localidade de Teus. O conde Zsigmond Rkoczi doou vilarejos, terrenos e ttulosde nobreza aos membros femininos dos Brnkovitch e, como os Brnkovitch so ligados pela

    parte feminina aos Szkely da Transilvnia, uma parte de seus bens vem da, sob a forma de dote. preciso dizer que na famlia dos Brnkovitch a herana partilhada segundo a cor das barbas.Todos os herdeiros de barba ruiva (a barba ruiva vem da linhagem feminina, pois os Brnkovitchse casam com mulheres ruivas) desistem em proveito dos que tm a barba negra, pois a barba

    Fontes: os dados sobre Avram Brnkovitch esto espalhados nos relatrios de informantes austracos,especialmente os que foram preparados para o prncipe de Baden e o general Veterani por Nikon Sevastg, um dosdois escribas de Brnkovitch. Na sua crnica valquia, assim como nas suas vastas crnicas srvias, empassagens que esto, infelizmente, perdidas hoje em dia, o conde Djordje Brnkovitch (1645-1711) fala umpouco de seu primo Avram Brnkovitch. Os ltimos dias de Brnkovitch foram descritos por seu criado emestre-de-armas Averkiye Skilag.Pode-se estabelecer de maneira precisa a cronologia da vida e da atividade de Brnkovitch, recorrendo-se

    confisso que seu segundo escriba Teoktist NiklskiA

    dirigiu da Polnia ao patriarca de Ptch; bem como a umcone que representava os milagres do profeta Elias, pois a cada cena da vida do profeta, Brnkovitch adaptavaos acontecimentos de sua prpria vida, cujos detalhes anotava no verso da imagem.

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    negra a prova de que so herdeiros do sangue masculino. O valor dos bens dos Brnkovitch estimado atualmente em 27.000 florins aproximadamente, e sua renda anual em mais de 1.500florins. Se sua rvore genealgica no est estabelecida com certeza, sua riqueza, emcompensao, segura e slida, como a terra sobre a qual galopam a cavalo. E h mais deduzentos anos, nem as menores moedas de ouro escaparam de seus cofres.

    Avram Brnkovitch chegou manco em Constantinopla, com um sapato de calcanharreforado, e desde ento circula a histria de como ele ficou aleijado. Quando tinha apenas seteanos diz-se , os turcos entraram de surpresa na propriedade de seu pai, no momento em que omenino passeava acompanhado por alguns domsticos. vista dos turcos, todos os servidoresfugiram, com a exceo de um velho que permaneceu para proteger Avram. Com a ajuda de umlongo basto, respondeu ao ataque dos cavaleiros turcos at que o chefe atirou nele uma setinhaque guardava entre os dentes, escondida num canudo. Atingido, o velho caiu, e Avram, que tinhatambm um basto na mo, ps-se a bater com todas as suas foras nas botas do turco.Entretanto todo o desespero e todo o dio que ps nos seus golpes no bastaram. O turco riu edepois partiu em seu cavalo, ordenando que se queimasse a aldeia. Os anos passaram comotartarugas. Avram Brnkovitch cresceu e o acontecimento foi esquecido, porque houve nesse

    nterim outros combates, e Brnkovitch montava agora frente de seus soldados, levando umabandeira nas luvas e um canudo com uma setinha envenenada na boca. Certo dia, encontraramno caminho um espio inimigo, acompanhado de seu jovem filho. Ambos viajavam com caras deinocentes, armados somente de um basto cada um. Um dos soldados reconheceu o velho eatacou-o com seu cavalo, tentando captur-lo. Mas o velho defendeu-se com seu basto, to bemque os outros acreditaram que o basto continha uma mensagem secreta. Ento, Brnkovitchlanou a setinha envenenada e o velho caiu morto. O menininho que o acompanhava ps-se abater em Brnkovitch com seu basto. Mal deveria ter uns sete anos e, apesar de toda a fora doseu dio e seu amor no pde, na verdade, machucar Brnkovitch. No entanto, Brnkovitch riue, no mesmo instante, tombou como partido por uma foice.

    Depois deste golpe de basto, ficou manco, deixou o ofcio de soldado e seu parente, o

    conde Djordje Brnkovitch, introduziu-o nos negcios diplomticos em Edirna, em Varsvia eem Viena. Aqui, cm Constantinopla, Brnkovitch trabalha para o embaixador ingls, mora numatorre espaosa, entre a de Ioroz Kalchi e a de Karatach, sobre o Bsforo. No primeiro andardessa torre, Brnkovitch mandou construir a metade exata da igreja dedicada Mae Angelina, suatrisav, proclamada santa pela Igreja Ortodoxa, enquanto a outra metade se encontra na

    Transilvnia, no pas natal do pai de Brnkovitch.Avram Brnkovitch um homem cuja aparncia atrai o olhar: tem o trax largo como

    uma jaula para grandes pssaros ou pequenas feras e, freqentemente, alvo do ataque deassaltantes, pois uma cano popular diz que seus ossos so de ouro.

    Ele chegou em Constantinopla montado num grande camelo que alimenta com peixe, esempre viaja desta maneira. O animal galopa to suavemente sob o dono que no entorna o copo

    de vinho preso no seu cabresto. Desde sua mais tenra infncia Brnkovitch nunca dorme noite,ao contrrio de todo homem que possui olhos, mas somente durante o dia; porm ningum sabedizer desde quando ele encurtou os cabelos e trocou o dia pela noite. Mas mesmo noite quandoest acordado, ele no pode ficar muito tempo parado no mesmo lugar, como se tivesseempanzinado com lgrimas alheias. Por isso, preparam-lhe sempre dois pratos, duas cadeiras edois copos, para que possa saltar subitamente de seu assento e mudar de lugar no meio darefeio. Da mesma forma, ele no se contenta durante muito tempo com uma nica lngua,muda de lngua como se muda de amante, falando alternadamente valquio, hngaro ou turco, ecomeou a aprender com um papagaio a lngua kazar. Conta-se que fala espanhol em sonho, maseste seu saber dissipa-se assim que acorda. Recentemente, num sonho, algum lhe cantou umacano numa lngua incompreensvel. Ele a memorizou e tivemos que procurar algum que

    conhecesse as lnguas ignoradas por Brnkovitch, para interpretar seu sonho. Assim,encontramos um rabino e Brnkovitch lhe recitou os versos que tinha decorado. No eram

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    muitos e diziam:

    2

    Assim que ouviu o comeo, o rabino interrompeu Brnkovitch e recitou a continuao.Depois, escreveu o nome do autor. O poema tinha sido escrito no sculo XII por um certo

    Yehuda Halevi@. Desde ento, Brnkovitch aprende tambm o hebreu. Sua atividade cotidiana ,entretanto, absolutamente prtica. Pois um homem de vrias facetas, e seu sorriso umaalquimia entre os outros saberes e dons que possui.

    Toda noite, assim que se levanta, treina para o combate. Aperfeioa a rapidez dos seusreflexos em companhia de um clebre mestre-de-armas. Este esgrimista um copta de nome

    Averkiye Skila. Kyr Avram contratou-o como criado. Averkiye tem um olho gordo e um outromagro, e todas as rugas do seu rosto formam um n entre suas sobrancelhas. Possui o catlogomais completo e mais ilustrado de todos os movimentos feitos com espada at os nossos dias, eantes de anotar um novo movimento no seu manual, verifica-o pessoalmente sobre carne viva. Osenhor Brnkovitch e o copta fecham-se numa grande sala onde foi estendido um tapete dotamanho de um pequeno prado e, na escurido total, exercitam-se com a espada. Skila segura,com a sua mo esquerda, a extremidade de uma correia de conduzir camelos; Kyr Avram segura aoutra ponta e, com a mo direita, carrega uma espada to pesada quanto a que leva do outro lado,na escurido, Averkiye Skila. Vo enrolando lentamente a correia ao redor dos cotovelos e, assimque sentem que esto prximos um do outro, golpeiam-se mutuamente sem piedade, nessaescurido ensurdecedora. Os menestris celebram a velocidade de Brnkovitch, e eu o vi, noltimo outono, em p sob uma rvore, com a espada desembainhada, esperando que o ventocomeasse a soprar. Quando o primeiro fruto caiu, ele cortou-o em dois ainda na queda. Tem olbio leporino e, para escond-lo, deixa crescer o bigode, mas onde existe a falha possvel ver-lhe os dentes, quando se cala. Tem-se a impresso de que ele no tem lbios e que seu bigodecresce sobre os dentes.

    Os srvios dizem que ele ama seu pas e que sal e vela para os seus, mas possuiestranhos defeitos que no coadunam com sua posio. No sabe como pr fim numaconversao e nunca sente o momento em que preciso levantar-se e partir. Por isso, ele sempre inoportuno, deixando os outros ainda mais confusos no final do encontro do que nocomeo. Fuma o haxixe que um eunuco de Kavala lhe prepara e ningum mais. Mas,estranhamente, no sempre dependente da droga e, para se manter assim, envia, s vezes, acaixa de haxixe selada at Pest, por intermdio de um mensageiro, e ela lhe retorna, dois meses

    Traduo do poema:

    Meu corao pulsa l no Leste,Eu c estou nos confins do Ocidente.Como saborear meus bocados,Como fartar-me,Como saldar promessas e dvidas?Sio repousa l no Edom,

    Eu c estou no extremo Ocidente.Vejo: deixar na Hispnia a ventura fcilQuanto precioso fitar as terras do Santurio derribado

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    mais tarde, sempre com o mesmo selo, no momento em que previra que teria necessidade dela.Quando no est viajando, sua grande sela de camelo com guizos colocada na vasta biblioteca eserve-lhe de mesa em que pode ler e escrever em p. Nos seus aposentos privados h pilhas deobjetos domsticos que parecem intimidadores, mas no h nem haver jamais perto dele duascoisas idnticas. Cada objeto, cada animal, cada homem deve provir de uma aldeia diferente.

    Entre seus servidores domsticos encontram-se srvios, romenos, gregos e coptas, erecentemente contratou como criado de quarto um turco da Anatlia. Kyr Avram tem duascamas, uma grande e uma pequena, e quando repousa (o que s acontece de dia) passa de umapara outra. Enquanto dorme, seu criado de quarto, o anatlio Yuuf Maudi, observa-o com umolhar capaz de fazer carem os pssaros. E quando acorda, Kyr Avram senta-se em seu leito e,com um ar temeroso, entoa cnticos sacros para seus ancestrais canonizados pela igreja servia.

    difcil dizer a que ponto ele se interessa por mulheres. Sobre sua mesa est colocadoum macaco de madeira de tamanho natural, de ccoras, com um sexo enorme. Kyr Avram por

    vezes emprega o ditado: Uma mulher sem bunda como uma cidade sem igreja! e tudo.Uma vez por ms, o senhor Brnkovitch vai at Gaiata ver a mesma vidente que, segundo umamaneira antiga e muito lenta, l o seu destino nas cartas. Ela tem em sua casa uma mesa reservada

    para Brnkovitch e, toda vez que o vento muda de direo, joga sobre ela uma nova carta. Ovento que sopra determina que carta vai cair, e assim tem sido h anos. Na ltima Pscoa, assimque atravessamos a soleira da porta, o vento sul se ergueu e a vidente fez a Kyr Avram novaspredies:

    O senhor sonha com um homem que tem um bigode cuja metade prateada. Ele jovem, seus olhos so vermelhos e suas unhas so de vidro, ele est se dirigindo paraConstantinopla, e ambos se encontraro em breve...

    Esta notcia agradou de tal forma a meu senhor que ele ordenou que me pusessem umaargola de ouro no nariz, e tive muita dificuldade para escapar desta gentileza.

    Conhecendo o grande interesse que a Corte de Viena tem em relao aos projetos do

    Senhor Brnkovitch, posso dizer que ele faz parte desses homens que cuidam do seu futuro comuma ateno e zelo particulares, como se cultiva uma horta. No dos que atravessam a vidacorrendo. Povoa seu futuro lentamente e com cuidado. Descobre-o aos poucos, como sedescobre uma terra desconhecida, primeiro desbrava-a, depois constri no melhor stio e, nestaconstruo, finalmente, arranja demoradamente a disposio dos objetos. Esfora-se para que seufuturo no diminua o passo ou o alento, mas cuida tambm para no se precipitar e ir todepressa que o seu futuro no possa mais passar adiante dele. uma espcie de corrida. O maisrpido perde. Neste momento, o futuro de Kyr Avram como um jardim semeado, e ningum,salvo ele mesmo, sabe o que brotar nele. No entanto, uma histria que transmitida em vozbaixa nos permite, talvez, entrever o objetivo de Brnkovitch.

    A HISTRIA DE PETKTIN E KALINAGrgur Brnkovitchg, filho mais velho de Kyr Avram Brnkovitch, ps bem cedo o p no

    estribo e desembainhou sua espada recoberta de estrume de camelo. Suas roupas de rendasmanchadas de sangue eram regularmente enviadas de Djula, onde vivia com sua me, paraConstantinopla, para serem lavadas e passadas, sob a vigilncia de seu pai, para secarem ao ventoperfumado do Bsforo e corarem sob o sol grego, antes de serem reenviadas com a primeiracaravana que partisse para Djula.

    O segundo filho de Avram Brnkovitch, mais jovem, nesta poca estava deitado, emalgum lugar em Btchka, atrs de um fogareiro multicor, na forma de uma igreja, e sofria.Contava-se que o diabo mijara nele, e que o rapaz se levantava de noite, saa de casa e limpava as

    ruas. Pois, de noite, Mora, a vampira, sugava-lhe o sangue, mordia-lhe o calcanhar, e o leitemasculino corria dos seios dele. Enfiaram um garfo na porta, benzeram os seios do rapaz,

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    cuspindo sobre o polegar. Em vo! Finalmente, uma mulher aconselhou-o a dormir tendo ao seulado uma faca anteriormente mergulhada no vinagre e, assim que Mora chegasse, deveriaoferecer-lhe sal, antes de transpass-la. E assim ele fez: quando Mora veio para sug-lo, ele lheofereceu sal e enfiou-lhe a faca no corpo; no mesmo instante, ouviu um grito que lhe recordouuma voz familiar. Trs dias mais tarde, de manh, sua me chegou em Btchka, vinda de Djula,

    pediu-lhe sal do umbral da porta e tombou morta. Encontraram em seu corpo um ferimento faca e, ao lamberem a chaga, perceberam que era cida... A partir desse dia, o rapaz ficouaterrorizado, seus cabelos comearam a cair, e com cada fio (foi o que os curandeiros disseram aBrnkovitch) ele perdia um ano de sua vida. Enviavam para Brnkovitch as mechas de cabelos deseu filho embrulhadas na juta, ele as colava no espelho mole onde estava desenhado o rosto domenino, e sabia desse modo quantos anos o filho ainda tinha a viver.

    Quase todo o mundo ignorava, porm, que Kyr Avram tinha tambm um terceiro filho,um filho adotivo, se assim se pode dizer. Este no tinha me; Brnkovitch tinha-o feito de lama elera o quadragsimo salmo para anim-lo e insuflar-lhe vida. Quando chegou s palavras: Pormuito tempo esperei o Senhor e Ele se inclinou sobre mim. E ouviu meus gritos. E me retirou dagrota murmurante e da lama, e pousou meus ps sobre uma pedra e tornou meus passos

    slidos..., os sinos da igreja de Daly tocaram trs vezes, e o jovem mexeu-se, dizendo: Na primeira badalada do sino, eu estava na ndia; na segunda, em Leipzig; e na terceiracheguei ao meu corpo...

    Ento, Brnkovitch fez um n de Salomo nos cabelos dele, amarrou numa das mechasuma colher feita de espinheiro, deu-lhe o nome de Petktin e soltou-o no mundo. Depois,Brnkovitch passou ao redor do seu prprio pescoo uma corda com uma pedra na extremidadee assim, com a corda no pescoo, assistiu liturgia dominical do jejum pascal.

    Para que tudo fosse como entre os vivos, o pai introduziu tambm a morte no peito dePetktin. Este embrio do fim, esta morte, ainda pequena e imatura no peito do seu filho, era aprincpio temerosa e um pouco tola. Tinha pouco apetite e seus membros eram atrofiados. Mastornou-se infinitamente alegre ao ver Petktin crescer, e este crescia to rpido que suas mangas

    floreadas logo tornaram-se bastante largas para que um pssaro pudesse ali voar. Todavia a morteem Petktin tornava-se mais viva e mais inteligente do que ele, e era a primeira a perceber osperigos. Ento, ela teve uma rival da qual se falar mais adiante. Mostrou-se impaciente eciumenta, e chamava ateno sobre si, provocando uma coceira no joelho de Petktin. Ele searranhava, e sua unha escrevia em sua pele letras que podiam ser decifradas. Assim, eles secorrespondiam. O que a morte no tolerava acima de tudo, eram as doenas de Petktin. O paitivera, entretanto, de dot-lo de doenas, para que ele se parecesse o mais possvel com os seres

    vivos, porque as doenas so para eles uma espcie de olho. Brnkovitch tudo fizera para que asdoenas de Petktin fossem as mais benignas possveis, e ofereceu-lhe a febre florida, aquela quese manifesta na primavera, quando as ervas brotam em espigas e as flores espalham seu plen ao

    vento e sobre as guas.

    Brnkovitch instalou Petktin na sua propriedade de Daly, uma casa cujos cmodosestavam sempre cheios de galgos mais apressados para matar do que para comer. Uma vez porms os domsticos escovavam os tapetes com cardas, jogando fora punhados de longos peloscoloridos parecidos com os rabos dos ces. Os quartos que Petktin ocupava, com o tempotomavam as mesmas cores especiais que permitiam que seus aposentos fossem reconhecidosentre milhares de outros. As impresses gordurosas que ele e seu suor deixavam nas maanetasde vidro das portas, nos travesseiros, nas cadeiras e nos parapeitos, nos cachimbos, nas facas enas canecas formavam um arco-ris de nuanas que lhe era bem peculiar. Tudo isso compunhauma espcie de retrato, de cone ou de assinatura. s vezes, Brnkovitch surpreendia Petktinnos espelhos dessa vasta casa, construda no silncio verde. Ele lhe explicava como proceder paraharmonizar interiormente o outono, o inverno, a primavera e o vero com a gua, a terra, o fogo

    e o vento, que o homem tambm carrega em si. O imenso trabalho que deveria ser feito exigiamuito tempo. Petktin teve calos em seus pensamentos, os msculos de sua memria incharam a

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    ponto de estourar, e Brnkovitch ensinou-o a ler uma pgina de um livro com seu olho esquerdoe a outra com seu olho direito, a escrever em srvio com a mo direita e em turco com a moesquerda. Depois ensinou-lhe noes de literatura, e Petktin logo encontrou influncias daBblia em Pitgoras; ele escrevia seu nome to rpido quanto se pega uma mosca.

    Em suma, Petktin tornou-se um jovem erudito, mostrando s s vezes, por sinais

    dificilmente perceptveis, que no era feito como os outros. Assim, por exemplo, ele podia numasegunda-feira de noite escolher um de seus dias futuros para utilizar no dia seguinte, ao invs datera-feira. E, quando chegava no dia j consumido, ele pegava, para substitu-lo, a tera-feira quedeixara de lado, e desse modo a conta dava certo. Para dizer a verdade, nesses casos, as costurasentre os dias no encaixavam exatamente, e havia falhas no tempo, mas isto servia apenas paradistrair Petktin.

    O mesmo no acontecia com seu pai. Este alimentava uma permanente dvida sobre aperfeio de sua obra, e assim que Petktin atingiu a idade de vinte e um anos decidiu test-lo e

    verificar se seu filho podia rivalizar em todas as coisas com os verdadeiros seres humanos. Diziapara si mesmo: Os vivos puseram-no prova; preciso que os mortos tambm o faam. Poissomente se os mortos se enganarem e tomarem Petktin por um homem verdadeiro, em carne e

    osso, que salga antes de morder, pode dizer-se que a experincia teve sucesso. Tendo assimconcludo, ele encontrou uma noiva para Petktin.Como os suseranos da Valquia tm sempre a seu servio um guarda de corpo e um

    guarda de alma, Brnkovitch tambm agia assim, ocasionalmente. Entre seus guardas de almaencontrava-se um aromeno que costumava dizer que tudo neste mundo se tornou verdade, etinha uma filha de grande beleza. Ao nascer, tomara tudo que a me tinha de belo, de maneiraque esta, depois do parto, ficou feia para sempre. Quando a menina chegou idade de dez anos,sua me ensinou-a, com suas prprias mos outrora belas, e amassar o po, e seu pai, antes demorrer, chamou-a e disse-lhe que o futuro no gua. A jovem chorou torrentes de lgrimas, detal modo que as formigas podiam subir pelo curso dgua at o rosto da donzela. Agora ela estavarf, e Brnkovitch agiu de modo a que ela encontrasse Petktin. Ela se chamava Kalina, sua

    sombra cheirava a canela, e Petktin descobriu que ela se apaixonaria pelo homem que comessefrutos do corniso em maro. Ele esperou o ms de maro, fartou-se com os frutos e props aKalina que dessem um passeio beira do Danbio. No momento de se separarem, ela tirou oanel do dedo e jogou-o no rio.

    Quando nos acontece algo de agradvel disse a Petktin, preciso temper-lo comum leve desagrado; assim, lembraremos dele melhor. Pois o homem sempre lembra-se por maistempo dos momentos desagradveis do que dos momentos agradveis...

    Em resumo, Petktin agradou a ela, e ela agradou a Petktin. Seu casamento foi celebradonaquele mesmo outono e com grande alegria. As testemunhas da cerimnia beijaram-se emdespedida, pois no deviam rever-se antes de longos meses; depois comearam a rondar os tonisde aguardente. Quando chegou a primavera, finalmente saram da bebedeira, olharam ao seu

    redor e, depois dessa longa embriaguez invernal, reconheceram-se de novo uns aos outros.Depois voltaram para Daly e acompanharam os jovens casados ao costumeiro piquenique daprimavera, dando tiros de fuzil. preciso que se saiba que os jovens de Daly fazem piqueniquesna primavera, em runas antigas, onde h bancos de pedra e uma obscuridade grega mais espessado que qualquer outra obscuridade, da mesma forma que o fogo grego mais luminoso do quetodos os outros fogos. Foi para l que se dirigiram Petktin e Kalina. De longe, parecia quePetktin conduzia uma parelha de cavalos negros mas, assim que espirrava, devido ao perfume dealguma flor, ou estalava o chicote, uma nuvem de moscas negras voava e podia-se ver que oscavalos eram brancos. Mas isto em nada perturbava a Petktin ou a Kalina.

    Eles se apaixonaram naquele inverno. Comiam com o mesmo garfo, cada um de uma vez,e ela bebia vinho da boca de Petktin. Ele a acariciava to bem que a alma dela murmurava no

    seu corpo, e ela o adorava e pedia-lhe que urinasse dentro dela. Ela dizia, rindo, s amigas, quenada coa melhor do que uma barba de homem de trs dias, crescida no amor. E ela pensava

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    seriamente, no fundo de si mesma: Os instantes de minha vida morrem como moscas engolidaspor peixes. Como torn-los bastante nutritivos para a sua fome? Ela lhe implorou que mordesseum pedao de sua orelha e o comesse, e nunca fechava as gavetas e as portas atrs de si a fim deno interromper a felicidade. Ela era silenciosa porque crescera no mutismo das interminveisleituras paternas de uma nica e mesma orao, em torno da qual tecia-se sempre o mesmo

    silncio. E agora que estavam indo para o piquenique, era quase igual, e isso lhe agradava.Petktin pusera as rdeas em volta do pescoo e lia um livro, enquanto Kalina falava. Jogavamum jogo. Se ela pronunciasse uma palavra no mesmo instante em que ele a lesse no livro, elestrocariam de papel, e ela passaria a ler o livro e ele a falar. Quando ela apontou com o dedo umcarneiro no pasto, e ele declarou que havia justamente lido a palavra carneiro, ela mal acreditoue apanhou o livro, para verificar. Com efeito o texto dizia:

    Quando invoquei por votos e precesessas tribos de mortos,

    peguei os animais: ovelha e carneiro,e lhes cortei a garganta sobre a

    fossa,

    e o sangue negro escorria,as almas dos mortos se reuniamno fundo do rebo;

    jovens noivas, jovens homens,velhos sobrecarregados de provaes,ternas virgens levando no corao seu

    primeiro luto,Tendo acertado, Kalina continuou a leitura:

    e quantos guerreiros feridos pordardos de bronze,vtimas de Ares, com suas armas

    ensangentadas!Vinham em multido de todas as partesao redor da fossa,elevando um prodigioso clamor,e o plido temor apoderou-se de mim...

    Eu, que tirei do lado da minha coxa minha espada aguda,permanecia ali e impedia que os mortos,sombras dbeis,se aproximassem do sangue, antes que eu tivesseinterrogado Tirsias.

    No mesmo instante em que ela lia a palavra sombras, Petktin viu a sombra que o

    teatro romano lanava sobre a estrada. Tinham chegado.Entraram pela porta dos artistas, colocaram sobre a pedra no meio do palco a garrafa devinho, os cogumelos e o chourio que tinham trazido e retiraram-se rapidamente para a sombra.Petktin ajuntou esterco seco de bfalo, alguns gravetos recobertos de lama endurecida, colocoutudo sobre o palco e acendeu o fogo. Ouviu-se claramente o rudo de slex at o lugar maisdistanciado no mais alto degrau da platia do teatro, enquanto l fora, onde as ervas selvagens eos perfumes de murta e de louros se espalhavam, no se percebia nada do que se passava nointerior. Petktin jogou sal no fogo, para dissipar o odor de esterco e lama, depois lavou oscogumelos com vinho antes de coloc-los com o chourio sobre as brasas. Sentada, Kalinaolhava o sol poente que, caminhando sobre os degraus, aproximava-se da sada do teatro.Petktin passeava no palco e, ao perceber os nomes dos antigos proprietrios dos lugares,

    inscritos na frente dos degraus, comeou a soletrar antigos nomes desconhecidos: Caius Veronius Aet... Sextus Clodius Cai filius, Publilia tribu... Sorto Servilio... Veturia

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    Aeia... No invoque os mortos! advertiu-o Kalina. No os chame, seno eles viro!Assim que o sol deixou o teatro, Kalina retirou os cogumelos e o chourio do fogo e

    comearam a comer. A acstica era perfeita, a cada mordida o rudo de sua mastigao ressoavacom a mesma fora em cada um dos lugares do teatro, do primeiro ao oitavo degrau, mas sempre

    de maneira diferente, antes de voltar ao meio do palco. Era como se os espectadores cujo nomeestava escrito na frente dos degraus comessem em companhia dos jovens esposos, ou pelomenos mastigassem com avidez, e ruidosamente, cada uma das mordidas deles. Cento e vintepares de ouvidos mortos escutavam com grande ateno, e o teatro inteiro mastigava emconcerto com o casal, cheirando com gula o odor do chourio. Assim que paravam, os mortostambm paravam, como se os alimentos estivessem entalados em suas gargantas, e, crispados,esperavam os gestos seguintes dos jovens. Nesses momentos, Petktin tomava cuidado para nose machucar ao cortar a comida, pois tinha o sentimento de que o cheiro do sangue humanopoderia perturbar a serenidade dos espectadores. Rpidos como a dor, poderiam se precipitar daplatia sobre ele e Kalina e, impulsionados por sua sede duas vezes milenar, despeda-los.

    Sentindo um calafrio, puxou Kalina para seus braos e beijou-a. Ela devolveu-lhe o beijo

    e neste momento ouviram-se cento e vinte pares de lbios beijando-se ruidosamente, como se osocupantes da platia se amassem.Depois da refeio, Petktin jogou o resto do chourio no fogo que apagou regando com

    vinho, e o chiado do fogo foi acompanhado por um abafado Psssssst que vinha da platia. Noinstante em que guardava a faca na sua bainha, o vento soprou de repente, salpicando o palco deplen. Petktin espirrou e neste instante cortou a mo. O sangue caiu na pedra quente,espalhando seu odor...

    As cento e vinte almas mortas, gritando e berrando, precipitaram-se sobre o jovem casal.Petktin desembainhou sua espada, mas no pde impedir que estraalhassem Kalina, pedaopor pedao, at que seus gritos se confundissem com os dos mortos, e ela prpria se juntasse aofestim, devorando com gulodice os restos de seu prprio corpo.

    Petktin ignorava quantos dias j tinham transcorrido, quando compreendeu onde seencontrava a sada do teatro. Vagava sobre o palco, ao redor do braseiro apagado e dos restos dojantar, quando um ser invisvel apanhou sua capa e jogou-a sobre os ombros. A capa vaziaaproximou-se dele e falou com a voz de Kalina.

    Aterrorizado, Petktin envolveu-a com os braos, mas sob a pele e no fundo daquela voznada via alm do forro prpura de sua capa.

    Diga-me falou Petktin, apertando Kalina em seus braos , tenho a impresso deque me aconteceu aqui, h mil anos, uma coisa terrvel. Algum foi despedaado e devorado, e osangue continua ainda sobre o cho. No sei se isto aconteceu, nem quando aconteceu. Quem foidevorado? Voc ou eu?

    Nada lhe aconteceu, no foi voc o devorado respondeu Kalina. E isto aconteceu

    h pouco, e no h mil anos. Mas no a vejo. Quem de ns dois est morto? Voc no me v, jovem, porque os vivos no vem os mortos. Entretanto, pode ouvir

    minha voz. Quanto a mim, ignoro quem voc e no saberei reconhec-lo enquanto nosaborear uma gota do seu sangue. Mas eu o vejo, fique tranqilo, vejo bem. E sei que voc est

    vivo. Kalina gritou, ento. Sou eu, seu Petktin, no me reconhece? H poucos instantes,

    se esse h pouco realmente existiu, voc me beijava. Qual a diferena entre h pouco e h mil anos, agora que as coisas so como so?Ouvindo essas palavras, Petktin tirou sua faca, aproximou seu dedo do lugar onde

    acreditava que estavam os lbios invisveis de sua mulher e cortou-se.

    O cheiro do sangue se espalhou, mas a gota no caiu sobre a pedra, porque Kalina a tinharecolhido com seus lbios vidos. Ela gritou, reconhecendo Petktin, e despedaou-o como se

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    fosse uma carnia, bebeu avidamente seu sangue e lanou seus ossos para a platia de onde osoutros j se precipitavam.

    No mesmo dia em que isso aconteceu a Petktin, Kyr Avram Brnkovitch anotou asseguintes palavras: A experincia com Petktin foi coroada de sucesso. Ele desempenhou to

    bem seu papel que conseguiu enganar tanto os vivos quanto os mortos. Agora, possoempreender a parte mais difcil. Passar da pequena para a grande experincia. Do homem aAdo.

    Desse modo, chegamos aos projetos de Kyr Avram Brnkovitch. Estes projetos, que soa base do seu futuro, esto ligados a duas personagens-chaves. Uma seu ilustre primo, o condeDjordje Brnkovitch, sobre quem a Corte de Viena sabe, sem dvida, mais do que ns. Osegundo algum que Kyr Avram chama de Kuros (o que, em grego, significa rapaz) e cujachegada aqui em Constantinopla ele espera assim como os judeus esperam pelo Messias. Atonde podemos saber, Brnkovitch nunca o encontrou, ignorando at seu nome (por isto, oapelido em grego, sinal de ternura), e s o v em sonho. Mas esse Kuros aparece-lheregularmente em sonho e, quando Brnkovitch dormita, com ele que sonha. Segundo a

    descrio que faz dele, trata-se de um homem jovem, com a metade do bigode prateada, com asunhas de vidro e os olhos vermelhos. Brnkovitch espera encontr-lo um dia e, com sua ajuda,espera descobrir ou realizar uma coisa que muito preza. Em seus sonhos, Brnkovitch aprendeucom o Kuros a ler da direita para a esquerda, da maneira judia, e a sonhar sonhos do fim para ocomeo. Estes sonhos extraordinrios, onde Kyr Avram se transforma em Kuros ou, se assimpreferem, em judeu, comearam h muito tempo. O prprio Brnkovitch diz que isso lhe veioinicialmente sob a forma de uma angstia que, atirada como uma pedra em sua alma, caa atravsdela durante dias, s parando de noite, quando a alma tambm caa junto com a pedra. Depois,esse sonho dominou completamente sua vida, e ele se tornava duas vezes mais jovem em sonhodo que na realidade. Primeiramente, os pssaros desapareceram de seus sonhos para sempre,depois seus irmos, e finalmente seu pai e sua me. Depois, todos os rostos e cidades de sua

    vizinhana ou sua memria foram-se sem deixar sinais, e finalmente ele prprio desapareceudesse mundo de sonhos totalmente alienado, como se, durante a noite, enquanto sonhava ele setransformasse em algum outro homem cujo rosto, percebido num espelho do sonho, oaterrorizava, como se sua me ou sua irm tivessem deixado crescer a barba. Esse outro tinha osolhos vermelhos, a metade do bigode prateada e as unhas de vidro.

    Nesses sonhos onde se despedia de todas as pessoas que o cercavam, Brnkovitch viamais demoradamente sua irm defunta, mas ela perdia, a cada vez, um pouco do aspecto queBrnkovitch conhecia, certas partes do seu corpo eram substitudas por outras que pertenciam aum corpo desconhecido e estranho. Ela trocou inicialmente sua voz com essa pessoa annima daqual assumia a aparncia, depois a cor dos cabelos e os dentes e, enfim, de seu restaram apenas osbraos que apertavam Brnkovitch com uma paixo crescente. Todo o resto j no era ela. Ento,

    numa noite to breve que dois homens, estando um na tera-feira e outro na quarta-feira, podiamapertar-se as mos, ela lhe apareceu completamente transformada e to bela que amedrontava aspessoas. Ela se lanou ao seu pescoo, envolvendo-o com seus braos, e suas mos tinham cadauma dois polegares. Brnkovitch quis a princpio fugir, deixar seu sonho, mas logo cedeu ecolheu um dos seus seios como se colhe um pssego. A seguir, como se colhesse seus dias delacomo de uma rvore, ela lhe oferecia sempre um fruto diferente, cada um mais doce que oprecedente, e ele dormia de dia com ela em seus diferentes sonhos, como outros homensdormem de noite com suas amantes nos bordis. Quando uma das mos com dois polegaresaparecia nesses abraos, ele era incapaz de dizer qual mo ela usava para acarici-lo, pois nohavia diferena entre elas. No entanto, esse amor sonhado esgotava-o to real e completamenteque ele quase se derramava dos seus sonhos em seu leito. Ento, ela veio pela ltima vez e lhe

    disse: Aquele que amaldioa com a alma amarga ser ouvido. Ns nos encontraremos de

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    novo, talvez, em algum lugar, numa outra vida.E Brnkovitch nunca soube se ela se dirigira a ele, Kyr Avram Brnkovitch, ou a seu

    duplo do sonho, que tinha a metade do bigode prateada, esse Kuros no qual Brnkovitch setransformava em sonho. Pois j h muito que ele no se reconhecia mais enquanto dormia como

    Avram Brnkovitch. Tornou-se o outro, o de unhas de vidro. Nos seus sonhos, j h anos no

    manca mais como na realidade. De noite, ele sente como se estivesse sendo acordado pela fadigade um outro, e de manh sente que vai adormecer, pois um outro, em algum lugar, despertasentindo-se plenamente descansado. Suas plpebras fecham-se, enquanto alhures se abrem osolhos de um outro. Ele e o desconhecido tm vasos comunicantes de energia e sangue, quepassam a fora de um para o outro, assim como se passa o vinho de um vaso a outro para queno se transforme em vinagre. Enquanto um, durante a noite e no seu sonho, repousa e recuperasuas foras, esta mesma fora deixa o outro, levando-o ao cansao e ao sonho. O mais grave que Kyr Avram adormece subitamente na rua, no como se casse em sono, mas como se fosse oeco do despertar sbito de um outro. Aconteceu-lhe, recentemente, enquanto observava umeclipse lunar, de cair num sono to subitamente que sonhou no mesmo instante que ochicoteavam, sem dar-se conta de que se havia ferido ao cair, no mesmo lugar da testa onde o

    chicote o tocara em sonho. Minha opinio que todo esse caso que envolve esse Kuros eesse Yehuda Halevi tem ligao direta com a tarefa qual Kyr Avram e ns, seus servidores,nos consagramos h muitos anos. Trata-se de um glossrio, ou de um abecedrio que se poderiachamar de Dicionrio Kazar. Ele trabalha nisso sem trgua nem repouso, e com um desgniopreciso. Brnkovitch mandou vir de Viena e da regio de Zarand para Constantinopla oitocamelos carregados de livros, e esto chegando ainda outros, de modo que agora ele estseparado do mundo por muralhas de dicionrios e de velhos manuscritos. Eu, que sou dotadopara as cores, a tinta e as letras, reconheo cada tipo impresso pelo cheiro, durante as noitesmidas, deitado no meu canto, leio, ento, com meu olfato, pginas inteiras desses rolos seladosque jazem em algum lugar no sto da torre. Kyr Avram prefere ler no frio, em manga de camisa,expondo seu corpo aos arrepios, e diz que, da sua leitura, apenas aquilo que atravessa os arrepios

    e chega at sua conscincia merece ser lembrado e anotado. O arquivo de Brnkovitch, instaladoperto da biblioteca, compreende milhares de pginas sobre diferentes assuntos: desde umcatlogo de suspiros e exclamaes nas preces em eslavo antigo at um repertrio de sais e chs;ele possui tambm uma enorme coleo de cabelos, de barbas e de bigodes das mais diversasformas e cores, que pertenceram a mortos e vivos de todas as raas, e que cola em garrafas de

    vidro, constituindo assim uma espcie de museu de penteados antigos. Seus prprios cabelos,entretanto, no fazem parte dessa coleo, mas ele ordenou que fossem utilizados para bordar,em todos os seus casacos, seu braso com a guia de um olho e a divisa: Todo senhor ama suaprpria morte.

    Brnkovitch trabalha todas as noites em seus livros, colees e arquivos, mas consagrauma ateno particular, e isto no maior dos segredos, elaborao de um dicionrio sobre a

    converso dos kazares

    um povo desaparecido outrora das margens do mar Negro e queenterrava seus mortos em barcas. uma espcie de compilao de biografias, o repertriodaqueles que; h algumas centenas de anos, participaram da converso dos kazares aocristianismo, e outros personagens que deixaram posteriormente anotaes sobre esseacontecimento. Somos os nicos, Teoktist Niklski, e eu, seus dois escribas, a ter acesso aoDicionrio Kazarde Avram Brnkovitch. Essa precauo explica-se provavelmente, pelo fato deBrnkovitch estudar diferentes heresias, no somente crists, mas tambm judias e muulmanas,e, se tivesse sabido, nosso patriarca de Ptch seguramente ter-lhe-ia reservado um dos seusantemas, que ele conta e reconta todos os anos, no ms de agosto, no dia da Ascenso deSant'Ana. Brnkovitch dispe de todos os dados acessveis sobre Cirilog e Metdiog, missionriose santos da cristandade, que participaram do lado grego da converso dos kazares. Brnkovitch

    encontra, contudo, as maiores dificuldades para incluir no seu dicionrio os delegados judeu erabe que igualmente participaram da polmica sobre a converso kazar na Corte do kaghan.

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    Nada sabe sobre esse judeu e esse rabe, exceto que existiram, nem sequer lhes conhece osnomes, e nenhuma fonte grega sobre os kazares, entre todas que pde consultar, fala deles. Seusenviados percorrem os mosteiros valquios e os pores de Constantinopla, buscandodocumentos hebraicos e rabes sobre a converso kazar. Ele mesmo veio aqui, a Constantinopla,de onde Cirilo e Metdio partiram outrora para a capital dos kazares para convert-los, a fim de

    encontrar os manuscritos e os homens que os estudam. Mas no se limpa uma fonte com lama, eele nada conseguiu. Ele no acredita que seja o nico a se interessar pelos kazares, ou queningum no passado tenha se interessado, salvo os missionrios cristos que, de So Cirilo atnossos dias, deixaram anotaes sobre o assunto. Deve certamente existir ele assegura pelomenos um dervixe e um rabino que conheam detalhes da vida e da atividade dos participantesrabe e judeu na polmica, mas ele no encontra nem um nem outro, ou ento so estes que noquerem dizer o que sabem. Supe que existam, sobre a mesma questo e o mesmo povo, almdas fontes crists, fontes rabes e judias detalhadas, mas que algum obstculo impede as pessoasde se encontrarem e trocarem suas informaes que, reunidas, forneceriam um quadro claro ecompleto a respeito de tudo que se vincula a essa questo.

    No compreendo ele diz freqentemente. Provavelmente, eu sempre interrompo

    minha reflexo cedo demais, e ento esses pensamentos permanecem em mim formados apenaspela metade e se mostrando s at a cintura....Em minha opinio, no difcil explicar o entusiasmo de Kyr Avram por um assunto to

    insignificante. Kyr Brnkovitch interessa-se pelos kazares por razes muito egostas. Ele est, defato, tentando se curar, escapar dos sonhos dos quais prisioneiro. O Kuros dos seus sonhostambm interessa-se pela questo kazar, e Kyr Avram sabe disto melhor do que ningum. A nicamaneira que tem de libertar seus sonhos da escravido encontrar esse estrangeiro, mas spoder conseguir isto atravs dos documentos kazares, nica pista que o levar ao outro. Creioque este outro pensa da mesma forma. O encontro deles , portanto, inevitvel, como o docarcereiro e seu prisioneiro. Desse modo, no surpreendente que Kyr Avram esteja sepreparando com um tal ardor, ajudado por seu mestre de esgrima. Odeia tanto seu Kuros que

    seria capaz de engolir os olhos dele como se fossem ovos de pssaro. Assim que o apanhar... Isto apenas uma suposio. Se isto no, acontecer, ento ser preciso lembrar das palavras de AvramBrnkovitch sobre Ado, e sua experincia bem sucedida com Petktin. Neste caso, Brnkovitchser um homem perigoso, e seu projeto ter conseqncias incomensurveis; seu Dicionrio Kazar apenas a preparao livresca de uma grande ao...

    Com estas palavras termina o relatrio de Nikon Sevast sobre Avram Brnkovitch. Sobreo desenrolar dos ltimos dias da vida do seu senhor, Sevast no pde informar ningum, poissenhor e servidor foram mortos juntos, numa quarta-feira coberta de brumas, em algum lugar da

    Valquia. Este acontecimento foi relatado por um outro criado de Brnkovitch, o mestre-de-armas j citado, Averkiye Skila. Parece que anotou sua narrativa com a ponta de sua espada

    mergulhada em tinta, numa folha de papel jogada no cho, que segurava com sua bota.Na ltima noite em Constantinopla, antes da partida escreveu Averkiye Skila PapasAvram reuniu-nos na sala que dava para os trs mares. Ventos verdes sopravam do mar Negro,ventos azuis e transparentes do mar Egeu, e ventos secos e amargos da margem do Jnio.Quando entramos, nosso senhor estava lendo, em p, recostado na sela de seu camelo. Asmoscas antlicas picavam, anunciando a chuva, e ele se protegia, aoitando com destreza suascostas no lugar exato da picada. Naquela noite, h pouco tnhamos acabado nosso habitualexerccio de esgrima, e se eu no tivesse levado em conta sua perna aleijada, ele ter-me-ia feito empedaos na escurido. De noite ele era sempre mais rpido do que de dia. Agora ele estavausando, no p do lado da perna doente, um ninho de pssaros como se fosse um calado, pois oninho aquece melhor.

    Sentamo-nos, os quatro que framos convocados, eu, os dois escribas e Maudi, o criadode quarto, que j havia preparado num saco verde seus objetos para viagem. Como de costume,

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    comemos uma colherada de gelia de cerejas com pimenta, bebemos um copo de gua do pooque fica na sala mas ressoa em algum lugar no poro, afogando nossas vozes. Papas Avrampagou-nos ento e declarou que, se desejssemos, podamos permanecer. Todos os outrospartiriam com ele para a guerra, no Danbio.

    Pensvamos que isso era tudo que ele tinha para nos dizer e no nos reteria mais. Mas

    Brnkovitch tinha uma particularidade: era ao deixar seu interlocutor que sempre se mostravamais sbio. Fingia, ento, ser desajeitado e despedia-se de sua companhia um pouco depois doque seria devido. Sempre passava da hora quando tudo j estava dito, hora em que os outros jabandonavam suas mascaras e tomavam as feies que possuem quando esto a ss consigomesmos. Retardou-se dessa vez tambm, da mesma forma. Enquanto apertava a mo do anatlio,observava todos os outros, de esguelha. E foi neste exato momento que um dio terrvel surgiucomo um raio entre Maudi e Nikon Sevast, um dio at ento cuidadosamente dissimuladopelos dois lados. Isto aconteceu porque Maudi disse a PapasAvram:

    Senhor, antes de nos separarmos, gostaria de agradecer-lhe os seus presentes. Voudizer-lhe uma coisa que lhe dar prazer porque h muito tempo o senhor deseja ouvi-la. Aquelecom quem sonha se chama Samuel Cohen@.

    Ele mente! gritou ento Sevast e, subitamente, apanhou o saco verde de Maudi elanou-o ao fogo.Impassvel, Maudi virou-se para PapasAvram e disse-lhe, apontando Nikon Sevast:

    Olhe-o, senhor, s tem uma narina no nariz. E mija com sua cauda, como todos osdemnios.

    Kir Avram pegou o papagaio que segurava uma lanterna entre suas garras e o abaixou.Sob essa iluminao, efetivamente, o nariz de Nikon Sevast s tinha uma narina, uma nica, negrae sem septo no meio, como acontece com os demnios. Ento PapasAvram lhe disse:

    Ento, s desses que no ousam mudar de sapato? verdade, meu senhor, mas no sou daqueles cujas fezes fedem a medo. No nego ser

    Sat confessou, sem hesitar. Digo apenas que perteno ao mundo subterrneo dos cristos,

    aos maus espritos da terra grega e ao inferno do rito ortodoxo. Pois imagem do cu acima dens que dividido entre Jeov, Al e Deus Pai, o mundo subterrneo dividido entre Asmodeu,Iblis e Sat. A sorte quis que eu fosse descoberto em solo do atual imprio turco, mas isto noautoriza Maudi nem outros representantes do Isl a me julgarem. Este direito pertence aosrepresentantes da liturgia crist cuja jurisdio , para mim, a nica vlida. Seno, os tribunaiscristos ou judaicos podem comear a julgar os membros do inferno muulmano cados em suasmos. Que nosso Maudi reflita sobre esta advertncia.

    PapasAvram replicou: Meu pai, Ioankie Brnkovitch, teve alguma experincia com os de tua espcie. Todas as

    nossas casas na Valquia sempre tiveram suas pequenas feiticeiras domsticas, seus pequenossats e lobisomens, com quem jantvamos. Envivamos contra eles matadores de vampiros e

    filhos do Sab; dvamos-lhes uma peneira para que contassem os seus furos e encontrvamossuas caudas arrancadas ao redor da casa; colhamos amoras em sua companhia, amarrvamo-loss portas, ou a um boi, e os chicotevamos para puni-los antes de jog-los nos poos. Certa noite,em Djula, meu pai encontrou um enorme boneco de neve sentado no buraco da latrina. Bateunele com sua lanterna, matou-o e foi jantar. O jantar compunha-se de sopa de repolho e javali.Comeou a comer e, de repente, paf, sua cabea caiu dentro do prato. Ele beijou sua prpriaimagem que o fitava de baixo, e se afogou na sopa de repolho. Isto se passou diante de nossosolhos, e no tivemos tempo de compreender coisa alguma. Lembro-me ainda que, enquanto elese afogava na sopa, como num abrao amoroso, envolvia o prato com seus braos, dir-se-ia queabraava, ao invs do javali, a cabea de um outro ser. Em suma, ns o enterramos como se oarrancssemos de um forte abrao... Jogamos suas botas no Morich, para que ele no se tornasse

    vampiro. Se tu s Sat, e tu s, dize-me ento o que significou a morte de meu pai IoankieBrnkovitch.

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    O senhor aprender o significado sozinho, sem minha ajuda respondeu Sevast , masvou-lhe dizer outra coisa. Sei as palavras que seu pai ouviu antes de morrer. So estas: Umpouco de vinho para lavar minhas mos! Essas palavras ressoavam em seus ouvidos nomomento em que deixou este mundo. E agora, ainda uma outra coisa, para que o senhor no digaque chupei tudo isso de meus ossos ocos, pois tenho os ossos ocos. O senhor trabalha h vrias

    dcadas no Dicionrio Kazar, ento permita-me contribuir tambm com o seu abecedrio. Escute,portanto, o que ignora. Os trs rios do antigo mundo dos mortos o Aqueronte, o Piriflguetone o Ccito pertencem atualmente aos infernos do isl, do judasmo e do cristianismo; corremsob o solo do antigo pas kazar, separando os trs infernos o Guehen, o Hades e o infernoglacial dos maometanos. A, nesse trplice lugar, encontram-se os trs mundos dos mortos: oreino ardente de Sat, os nove crculos do inferno cristo, com o trono de Lcifer e as bandeirasdo rei do inferno; o mundo subterrneo islmico, com o reino dos sofrimentos glaciais de blis; eo domnio de Guebur, do lado esquerdo do Templo, onde esto sentadas as potncias do mal,da volpia e da fome, o Guehen judeu dominado por Asmodeu. Esses trs subterrneos no seconfundem, a fronteira entre eles traada por uma charrua de ferro, e ningum tem o direito detransgredi-la. Alis, a maneira como vocs representam esses infernos falsa, pois falta-lhes

    experincia. No de Belial, o inferno judeu, o reino dos anjos das trevas e dos pecados, no ardemos judeus, contrariamente ao que acreditam. L queimam aqueles que se parecem com vocs, ouseja, rabes e cristos. Do mesmo modo, no h cristos no inferno cristo a so jogados aofogo os maometanos e os adeptos da religio de Davi, enquanto no inferno islmico de blis s seencontram cristos e judeus, nem um nico turco ou rabe. Imagine, agora, Maudi, que temtanto medo de seu terrvel mas familiar inferno muulmano, chegando no Chel judeu ou noHades cristo onde estarei esperando por ele! Ao invs de blis, comparecer diante de Lcifer.Imaginem o cu cristo sobre o inferno onde expia um judeu!

    Considere isto como uma grande e suprema advertncia, meu senhor! Como a maisprofunda das sabedorias. No tenha nenhum contato aqui na terra com coisas que envolvem ostrs mundos, o isl, o cristianismo e o judasmo, para que no tenhas nenhuma relao com os

    seus subterrneos! Pois aqueles que se odeiam no so o problema neste mundo. Eles sempre separecem. Os inimigos so sempre idnticos, ou assim se tornam com o tempo, ou ento noseriam inimigos. Os que so realmente diferentes uns dos outros que representam o maiorperigo. Esforam-se para se conhecerem, pois as diferenas no os incomodam. So os piores.Unindo nossas foras com as de nossos inimigos, acertaremos as contas com todos aqueles quenos concedem o direito de sermos diferentes deles, sem que isto lhes perturbe o sono:acertaremos as nossas contas unindo nossas foras s de nossos inimigos e os destruiremos detrs lados ao mesmo tempo...

    Kyr Avram declarou, ento, que em tudo isso havia alguma coisa que lhe escapava eperguntou:

    Neste caso, por que isto ainda no foi feito, e se no cabe a ti agir, tu que ainda no

    perdeste a cauda, ento por que os mais idosos, os mais experimentados, no tentaram nada? Queesperam, enquanto construmos a casa para Nosso Pai?

    Esperamos o bom momento, meu senhor. Alm disso, ns, os demnios, s podemosdar um passo depois de vocs, os homens. Cada um de nossos passos deve pisar na pegada deum dos seus passos. Estamos sempre um passo atrs de vocs, s comemos quando vocsterminaram de jantar e, como vocs, no vemos o futuro. Portanto, vocs primeiro, ns a seguir.Mas gostaria de lhe dizer, meu senhor, que ainda no deu o passo que nos levaria a persegui-lo.Se o senhor um dia der o passo, o senhor ou algum dos seus descendentes, ns o apanharemosno dia da semana cujo nome no pronunciado. Mas, no momento, tudo est em ordem pois osenhor no encontrar seu Kuros de olhos vermelhos, mesmo que ele venha aqui, emConstantinopla. Se ele sonha com o senhor como o senhor sonha com ele, se ele constri nosonho dele a sua realidade, e o senhor a dele no seu sonho, ento no podem olhar-se nos olhosum do outro, pois nunca esto acordados ao mesmo tempo. Apesar de tudo, no se coloque

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    diante da tentao. Creia-me, senhor, mais perigoso compor um dicionrio sobre os kazares, apartir de palavras espalhadas, nesta torre pacfica, do que ir guerrear no Danbio onde j sebatem turcos e austracos; bem mais perigoso esperar aqui, em Constantinopla, uma apariosurgida dos sonhos do que correr ao assalto com o sabre desembainhado, o que o senhor sabefazer to bem. Pense nisto e parta para onde tinha decidido, sem se inquietar, e no d ouvidos a

    esse anatlio que mergulha sua laranja no sal... Quanto ao resto, meu senhor concluiu Sevast , pode, claro, entregar-me ao poderespiritual cristo e fazer-me julgar pelo Tribunal Eclesistico que persegue feiticeiras e demnios.Mas, antes disso, permita que lhe faa uma nica pergunta: o senhor cr que sua Igreja existirainda daqui a 300 anos e poder julgar como faz hoje?

    claro que creio respondeu PapasAvram. Ento, prove-o: em 293 anos exatamente vamos encontrar-nos de novo, nesta mesma

    estao do ano, aqui, em Constantinopla, no desjejum, e o senhor me julgar ento como mejulgaria hoje...

    PapasAvram riu, disse que estava de acordo e matou uma mosca com a ponta de seuchicote.

    Ao alvorecer, cozinhamos gros de trigo com nozes e acar, embrulhamos o bolo comsua frma numa almofada e o colocamos no saco de viagem, a fim de que aquecesse PapasAvramquando repousasse. Pegamos o barco, atravessamos o mar Negro e subimos o delta do Danbio.

    As ltimas andorinhas voavam de costas, e seus reflexos no Danbio mostravam seus dorsosnegros ao invs de seus ventres brancos. Penetramos em nevoeiros que transportavam, atravsdas florestas e do Djerdap, o duro silncio que ensurdece e para o qual confluem todos os outrossilncios. No quinto dia, perto de Kldovo, fomos acolhidos na outra margem do rio por umatropa de cavaleiros da Transilvnia, cobertos por uma acre poeira romena. Assim que nosencontramos no campo do prncipe de Baden, soubemos que o conde Guerguie estava tambmno combate, que os generais Haydersheim, Veterani e Haisel preparavam-se para atacar asposies turcas, e que h dois dias os barbeiros corriam em volta deles para barbe-los e pente-los, pois marchavam sem parar. Nesta mesma noite fomos testemunhas da inacreditvelhabilidade de nosso senhor.

    A estao mudava, as manhs estavam frias, mas as noites ainda quentes era vero atmeia-noite, e outono pela manh. PapasAvram escolheu sua espada, foi selado seu cavalo, e docampo srvio chegou uma tropa de cavaleiros que traziam pombos vivos em suas mangas.Cavalgando, fumavam compridos cachimbos, e encaixavam crculos de fumaa nas orelhas deseus cavalos. Quando Brnkovitch montou, recebeu tambm um cachimbo aceso, e todos, assimfumando, partiram para o acampamento do general Veterani para receber suas ordens. Foi entoque se ouviram vozes no campo austraco:

    Srvios nus esto chegando!Efetivamente, atrs dos cavaleiros surgiu uma tropa de soldados de infantaria que no

    usavam nada alm dos seus barretes. Nus, atravessaram a luz dos fogos do campo como seatravessa um portal e, atrs deles, um pouco mais rapidamente, passaram suas sombras nuas, duas

    vezes mais velhas do que eles. Vocs no esto pretendendo atacar na escurido? perguntou Veterani, acariciando

    seu co, to grande que podia bater com a cauda na boca de um homem. Vamos atacar, sim respondeu Kyr Avram , os pssaros nos mostraro o caminho.Acima das posies austracas e srvias elevava-se o monte Rs, onde a chuva nunca cai;

    em seu cimo erguia-se uma fortaleza turca com seus canhes. H trs dias, no conseguiamaproximar-se dele por nenhum lado. O general disse a Brnkovitch para atacar essa fortaleza.

    Se conseguir conquistar a posio inimiga, faa um fogo verde com galhos de bordo acrescentou o general , para que possamos nos orientar.

    Os cavaleiros receberam a ordem e partiram, fumando seus cachimbos. Pouco tempo

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    depois, vimos voar os pombos em fogo sobre as posies turcas um, dois, trs; depois ouviu-seuma crepitao de armas, e Papas Brnkovitch e seus cavaleiros voltaram ao campo, semprefumando seus compridos cachimbos. Surpreso, o general perguntou-lhes por que no atacaramos canhes, e Kyr Avram silenciosamente indicou-lhe com seu cachimbo o monte: uma fogueira

    verde estava ardendo e os canhes turcos estavam calados. A fortaleza tinha sido tomada.

    Na manh seguinte, PapasAvram repousava em sua tenda, depois do combate noturno,enquanto Maudi e Nikon Sevast jogavam dados. H trs dias Nikon perdia somas considerveis,mas Maudi no queria interromper o jogo. Deviam ter razes muito boas para permanecerassim, como um alvo, quando comeou a chuva de balas: Brnkovitch em seu sonho e eles emseu jogo. Em todo caso, suas razes eram mais fortes do que as minhas: pus-me em um abrigoseguro. Nesse instante, cavaleiros turcos surgiram em nossa trincheira e comearam a partir aomeio tudo que se mexia, seguidos de perto por Sbliak-pax de Trbinie, que olhava os mortos,mas no os vivos. Atrs deles um jovem plido chegou ao campo de batalha, a metade de seubigode era prateada, como se tivesse envelhecido pela metade. No casaco de seda de PapasAvramadormecido, estava bordado o braso dos Brnkovitch, com uma guia de um olho. Um soldadoturco enfiou sua lana na ave bordada com tal fora que se ouviu o ferro, depois de ter

    transpassado o peito do adormecido, bater na pedra sob ele. Acordando em sua morte,Brnkovitch ergueu-se nos cotovelos e a ultima coisa que percebeu em vida foi o jovem de olhosvermelhos, unhas de vidro e a metade do bigode prateada. Ento Brnkovitch ps-se a transpirar,e dois rios de suor encontraram-se no seu pescoo. O brao sobre o qual se apoiava comeou atremer tanto que para acalm-lo Papas Avram deitou-se sobre ele com todo o peso. O braotremeu ainda por alguns instantes, cada vez mais fracamente, como uma corda que se tange e,quando ficou completamente imvel, Kyr Avram tombou sem dizer uma palavra. No mesmoinstante, o jovem caiu em sua prpria sombra, como que ceifado pelo olhar de Brnkovitch, e osaco que levava ao ombro escorregou e caiu por terra.

    Gohen morreu? gritou o pax, e os soldados, acreditando que um dos jogadores dedados tinha atirado no jovem, imediatamente cortaram Nikon Sevast em dois, os dados ainda nas

    mos. Depois, viraram-se para Maudi, mas ele gritou algumas palavras em rabe ao pax, paraavis-lo que o jovem no tinha morrido, apenas adormecido. Isto prolongou por um dia a vida deMaudi, pois o pax ordenou que s o executassem no dia seguinte, o que foi feito.

    Sou um esgrimista Averkiye Skila assim concluiu sua nota sobre Avram Brnkovitch esei bem que, quando se mata, diferente a cada vez, como na cama com uma nova mulher. Sque depois tu te esqueces de algumas delas, e de outras no. Do mesmo modo, alguns dos quemataste e algumas mulheres que possuste no te esquecem jamais. A morte de Kyr AvramBrnkovitch era daquelas das quais nos lembramos. Eis o que aconteceu: os homens do paxsurgiram com uma tina de gua quente, nela banharam Kyr Avram e confiaram-no a um velhinhoque carregava no pescoo um terceiro sapato cheio de perfumes, blsamos e cnhamo. Penseique fossem tratar dos ferimentos de PapasAvram, mas o velho passou ruge e p-de-arroz no seu

    rosto, barbeou-o, penteou-o, e transportou-o assim tenda de Sbliak-pax. A est mais um srvio nu pensei.Na manh seguinte, ele morreu na tenda. Isto se passou em 1689, segundo o calendrio

    ortodoxo, no dia do mrtir Santo Eustquio. No momento em que Avram Brnkovitch entregavasua alma, Sbliak-pax saiu de sua tenda e pediu um pouco de vinho para lavar suas mos.

    BRNKOVITCH, GRGUR Ver Estilita

    CAADORES DE SONHOS Seita kazar cuja protetora era a princesa Ateh. Sabiamler os sonhos de outros, viver e morar neles e, percorrendo-os, caar a presa que quisessem homem, objeto ou animal. Uma nota escrita pelo mais velho dos caadores de sonhos foi

    conservada e diz: Num sonho, sentimo-nos como um peixe dentro dgua. De tempos emtempos, emergimos do sonho, lanamos uma olhadela s margens do mundo, depois tornamos a

  • 7/31/2019 Dicionrio Kazar - Edio Masculina

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    mergulhar rpida e avidamente, pois s nos sentimos bem nas profundezas. Durante essas curtassadas, percebemos em terra um ser bizarro, mais lento do que ns, que respira de um mododiferente do nosso, colado com todo o seu peso terra, privado da paixo que habitamos comoem nosso prprio corpo. Porque aqui embaixo a paixo e o corpo so inseparveis, so um s.Esse ser de fora, somos ns tambm, mas daqui a um milho de anos e, alm desses anos, h

    entre ns e ele uma terrvel calamidade que o vitimou porque ele separou o corpo da paixo...Um dos mais clebres caadores de sonhos, segundo uma lenda, era Mokadaa Al Safer.Conseguia entrar no mais profundo dos segredos, domesticar peixes nos sonhos alheios, abrirportas nas vises alheias, e tinha ido to fundo, to mais fundo do que qualquer outro antes dele,que chegara at Deus, pois no fundo de cada sonho est Deus. Depois, de repente, ele no sabiamais ler os sonhos. Durante muito tempo, acreditara que chegara ao limite e que no se podia irmais longe nessa arte mstica. Aquele que chega ao final do caminho no precisa mais docaminho, e o caminho no se apresenta mais para ele. Mas os outros, sua roda, no pensavamassim. Foram aconselhar-se com a princesa Ateh que lhes explicou o caso de Mokadaa Al Safer:

    Uma vez por ms, na festa do sal, os partidrios do kaghan kazar batem-se at morte, nas cercanias denossas trs capitais, contra vocs, meus partidrios e defensores. Quando a noite cai, no momento em que se

    enterram os mortos dele nos cemitrios judeus, rabes e gregos, e os meus nos cemitrios kazares, o kaghan abrecalmamente a porta de cobre do meu quarto, iluminando-se com uma vela cuja chama perfuma e treme com a suapaixo. Nesses momentos, no o olho, pois ele se parece com todos os amantes do mundo cujas faces foram tocadaspela felicidade. Passamos a noite juntos, mas ao alvorecer, quando ele se vai, olho o reflexo do seu rosto no cobrebrilhante de minha porta, e leio em seu cansao o que ele tem inteno de fazer, de onde vem e quem ele .

    O mesmo acontece com seu caador de sonhos. Sem dvida alguma, ele chegou ao pice de sua arte, rezounos templos dos sonhos alheios, e morreu inmeras vezes na conscincia dos sonhadores. Conquistou tamanhosucesso que a mais bela matria que exist