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compilações doutrinais VERBOJURIDICO O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL ___________ DR. RICARDO AMARAL ADVOGADO verbojuridico ® ______________ SETEMBRO 2006

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compilações doutrinais

VERBOJURIDICO

O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL

___________

DR. RICARDO AMARAL ADVOGADO

verbojuridico ®

______________

SETEMBRO 2006

2 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Título: O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL

Autor: Dr. Ricardo Amaral Advogado

Data de Publicação:

Setembro de 2006.

Classificação

Direito da Família

Edição: Verbo Jurídico ® - www.verbojuridico.pt | .eu | .net | .org | .com.

Nota Legal:

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RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 3

O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL

E SUA VIOLAÇÃO PROVOCADA POR ACIDENTE DE VIAÇÃO

O “novo” rumo da jurisprudência portuguesa

relativa aos direitos de personalidade

Dr. Ricardo José de Almeida Amaral ————

TRABALHO DE PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO DA BANCA, BOLSA E DOS SEGUROS

“Os seres superiores e o homem especialmente perde-se em ilusões de outros

objectivos, julgando-se impulsionado por outras determinantes. Mas estudando cada acto

de per si, cada actividade peculiar que se desenrola, e investigando a origem e o fim

remoto ou disfarçado dos diversos fenómenos sexuais, verificamos que tudo gravita

inconscientemente em torno do fulcro da sua perpetuação.”

Egas Moniz, A Vida, pág. VII

4 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Nota prévia

Só após a conclusão deste trabalho de Pós-Graduação, em meados de Agosto do corrente

ano, é que nos chegou ao conhecimento a tese de Doutoramento, do Prof. Doutor Jorge Alberto

Caras Altas Duarte Pinheiro, Almedina, intitulada “O NÚCLEO INTANGÍVEL DA COMUNHÃO

CONJUGAL – Os Deveres Conjugais Sexuais”, que data de Julho de 2004.

Dado que, o presente trabalho já se encontrava concluído entendeu-se ser melhor solução

não alterá-lo na sua forma, mas antes incluir-lhe um Post Scriptum, a seguir à Bibliografia,

porquanto a obra referida é de menção obrigatória e indispensável para a resolução do caso, que

procurámos dissecar, visto ser impar na destrinça exegética da análise do direito sexual dos

cônjuges. Além de que, nesta obra é analisado directamente o direito à indemnização que recai

sobre terceiro, pelo facto de desrespeitar a obrigação passiva universal que aquele direito erga

omnes impõe.

Destarte, e apesar de, a referência a esta obra ser um imperativo, no entanto, não vai alterar

a substância e conteúdo de tudo quanto se disse, neste trabalho, sendo, pelo contrário, um forte

complemento que contribui de sobremaneira para consolidar a nossa modesta interpretação. Foi,

aliás, com agrado que vimos que posição por nós perfilada está em perfeita simbiose com a

brilhante tese do o recente Prof. Doutor Duarte Pinheiro.

Águeda, 22 de Setembro de 2004

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 5

ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO

DIREITOS DE PERSONALIDADE (1)

- Impotência sexual do marido

- Direito da mulher à sexualidade conjugal

- Indemnização devida à mulher

(Acórdão de 26 de Junho de 2003)

Sumário:

I- Em acidente de viação, causado pelo segurado da ré, se o marido da autora ficou a

padecer de impotência sexual, esta também se deve considerar directamente lesada com o

acidente.

II- Com efeito, a autora deixou de poder exercer a sua sexualidade com o marido, que é um

direito de personalidade protegido, não só pela lei constitucional, mas também pela lei

ordinária.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I-Relatório

Maria Costa, intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra a

companhia de Seguros mundial confiança, S.A., com sede no Largo do Chiado, nº 8-Lisboa,

pedindo a condenação desta a pagar-lhe quantia não inferior a 150.000 euros, acrescida de

juros á taxa legal a partir da citação:

Alegou, em síntese, que:

- no dia 3 de Novembro de 2000, o condutor do veículo segurado na companhia de

seguros ré embateu na traseira do veículo conduzido pelo marido da A., quando este

se encontrava parado para ceder a passagem a peão que procedia á travessia da via na

passadeira para peões.

- que em virtude do embate, o marido da A. Padece de disfunção sexual, o que

causou danos à A..

Em contestação a ré alegou, por impugnação, que os danos peticionados pela autora

não são indemnizáveis.

(1) Este Acórdão encontra-se publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano 2003, Tomo III. Pág. 200 e sgs.

6 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Em saneador sentença, seguido-se orientação perfilhada nos acórdão de 04/04/1991, CJ,

Ano 1991, Tomo 2, pág.254 e 20/11/94, CJ, Ano 1994, Tomo 4, pág. 35, decidiu-se que os

danos não patrimoniais sofridos por outrem que não o lesado, só são indemnizáveis no caso

da morte deste último.

Inconformada com o decidido a autora recorreu, tendo concluído as suas alegações pela

forma seguinte:

......................................................................................................................................

3 – Foi alegado que no dia 3 de Novembro de 2000, pelas 13h36m, na Rua do Passeio

Alegre, Foz do Douro- Porto, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes as

seguintes viaturas: veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula 90-11-EL,

conduzido por António Costa, e propriedade de Maria Costa; e o veículo automóvel, ligeiro

de mercadorias, de matricula 62-74-MC, conduzido por Fernando Borges e propriedade da

Sociedade Sousa & Santos, Lda.

Em síntese, conclui a recorrente que este acidente que descreve factualmente na petição

inicial, se deveu a culpa, única e exclusiva, do condutor Fernando Borges do veiculo ligeiro de

mercadorias, de matricula 62-74-MC ( segurado na ré, pelo contrato de seguro titulado pela

apólice nº067070789, válido à data do acidente), que circulando a elevada velocidade,

completamente desatento ao trânsito e manobrando com manifesta imperícia a falta de

destreza provocou o embate, violando, assim, frontalmente o disposto nos artigos 13º, 18º, 24º

e 25º, nº1 do Cód. da Estrada.

E, no que ora importa para analisar a questão destes autos, alegou a autora/apelante que

na sequência do acidente resultou ferido seu marido, ficando, como consequência directa do

acidente, com lesões de que passou a padecer, nomeadamente, de disfunção vésico-uretral

compatível com lesão parassimpática do motoneurónio interior, que se caracteriza por

hipossensibilidade à distentensão vesical, com hesitação inicial e prolongamento do tempo

miccional, conseguido com esforço abdominal e frequentemente necessitando de estar

sentado, não acompanhado de resposta motora contráctil significativa, sugestiva da arreflexia

do detrusor. E ficou a padecer, também de disfunção eréctil (vulgarmente designada por

impotência), caracterizada pela conservação da libido e orgasmo manifestada na

tumescência peniana, uma incompatível com penetração, a que acresce uma ejaculação

dolorosa.

4- É perante estes factos que a apelante invoca que o condutor do veiculo de matricula 62-

74-MC, Fernando Borges, violou, de forma directa, ilícita e culposa, o direito de

personalidade que se consubstancia no seu direito à sexualidade ( vide art. 483º, nº1 do Cód.

Civil) uma vez que lhe foi amputado de forma brutal, o seu exercício.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 7

5- A jurisprudência e doutrina, como é sustentado no Ac. de 04/04/ 91, ( CJ, Ano 1991,

Tomo 2, pág. 255), citado na decisão recorrida, tem entendido que a lei só prevê a obrigação

de indemnizar os danos provocados às pessoas directamente afectadas pelo acidente,

extraindo-se essa conclusão do que se dispõem no art. 495º do CC, onde só excepcionalmente se

prevê o alargamento a outras pessoas aí concretizadas.

Numa teoria geral do dano, Vaz Serra (Boletim nº 84, pág. 8 e segs.) define o dano como

todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos de carácter

patrimonial ou não.

E Pereira Coelho ( o “ Problema da causa virtual na responsabilidade civil”, pág. 250 e

segs. ) refere que « por dano pode entender-se por um lado o prejuízo real que o lesado sofreu

in natura em forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem».

Dário Martins de Almeida, a obra “Manual de acidentes de viação“ , 3ª ed. Pág. 82, dá-

nos também uma síntese das distinções feitas na doutrina entre danos patrimoniais resumindo-

as, assim:

a) dano patrimonial, aquele que é susceptível de avaliação

pecuniária, traduzido numa abstracta diminuição do património;

b) o dano não patrimonial, também conhecido na doutrina francesa

por dano moral – aquele que afecta bens não patrimoniais( bens da

personalidade) insusceptível de avaliação pecuniária ou mediada monetária

e cuja reparação só pode alcançar-se por mera compensação

Neste recurso apenas está em causa a indemnização por danos não patrimoniais. A sua

definição está bem caracterizada por Dário Martins de Almeida na ob. cit., agora a pág. 271,

onde se entende este dano não patrimonial como todo aquele que afecte a personalidade

moral, nos seus valores específicos.

Em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos, apurada a ilicitude, culpa e o nexo de

causalidade, o correspondente crédito de indemnização, tanto do dano patrimonial como do

dano não patrimonial, entronca no titular do direito ou do interesse imediatamente violados,

só excepcionalmente se estendendo a terceiros, situação que resulta das hipóteses que são

consideradas nos números do art. 495º,nº2 e 2ª parte do nº3 do art. 496º do CC.

Em princípio, e no que ora nos interessa analisar quanto aos danos não patrimoniais e

como também defende Antunes Varela- “Das Obrigações em Geral” – I Vol., pág. 547, 4ª ed.

« tem direito á indemnização o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado

com a violação da disposição legal e não o terceiro que só reflexa ou indirectamente seja

prejudicado».

Contudo o caso dos autos tem contornos de um dano directo que resulta

imediatamente do acto ilícito praticado que por isso mesmo merece uma outra vertente de

reflexão, na interpretação do direito em causa.

8 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

6- A apelante fundamenta o seu direito à indemnização por se sentir lesada afectada

directamente no seu direito à sexualidade no âmbito dos deveres conjugais, com carência

expressa ao débito conjugal.

Ao ser violado o direito do lesado vítima do acidente de viação, por virtude do seu

casamento, com a apelante fica também violado directamente o direito da autora em poder

continuar a partilhar reciprocamente o dever de coabitação na vertente do direito à

sexualidade, por força do que se dispõe no art.1672º do CC.

Nesta perspectiva, estamos, com o devido respeito na opinião contrária, em presença

de dano directo com o qual a autora foi afectada.

Assim, em termos de danos não patrimoniais a apelante não está impedida de

peticionar indemnização.

Aqui não há uma situação de dano indirecto, já que a lesão com que ficou afectado o

marido da autora, afecta-a a ela também directamente, pois que deixou de poder exercer a sua

sexualidade com o marido, com que por virtude do casamento celebrou um contrato para

constituir família mediante uma plena comunhão de vida ( art. 1577º do CC).

A apelante na conclusão 23ª invoca também uma outra situação em que ficou afectada

relacionada com a sua maternidade. Diz aí a apelante que: «É de atender, também, que na

idade da apelante lhe era, ainda, possível, em termos biológicos, ter outro(s) filho(s), o que

amputa e viola, ainda e de forma brutal, - o direito individual- de relevante valor social- da

maternidade ( cfr. Art. 68º, nº2, da C.R.P.)».

Contudo, esta vertente ora alegada pela apelante não consta da petição inicial, pelo que

embora em abstracto a mesma também possa ser configurada no direito emergente do

casamento, não temos agora que cuidar de factualidade não alegada expressamente.

7- De facto, a autora e o lesado estão vinculados pelo dever legal de coabitação e no

inerente exercício da sua sexualidade e por esta via, não pode deixar de concluir-se que foi

directamente lesada com o acidente.

Entendemos, assim, como erro, o enquadramento jurídico defendido pela apelante no

que toca a caracterizar o direito da apelante como direito de personalidade consubstanciado

no direito á sexualidade conjugal, que decorre na lei ordinária (arts. 1577º, 1671º, 1672º do

CC, conjugada com o art. 70º do mesmo código civil) no que respeita ao casamento que

celebrou com o lesado, também com apoio constitucional ( arts. 25º, nº1, 26º, 36º e 67º da

C.R.P.).

«A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua

personalidade física ou moral- art. 70º, nº1 do CC».

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 9

8- Para efeitos da aplicação desta disposição legal, refere Capelo de Sousa na sua obra “ O

Direito Geral de Personalidade”, pág. 199 que « o inventário dos elementos componentes da

personalidade humana juscivilisticamente tutelada não pode confirmar-se à arquitipização as

fórmulas jurídicas abstractas e apriorísticas antes deve reflectir o mais imediatamente possível,

nos limites ditados pela unidade do sistema jurídico, a estrutura individualizada bipolar de

cada personalidade humana, ou seja, o facto de esta coenvolver, para além de uma

particular unidade somático-psíquica, uma singular unidade funcional “eu” – mundo».

Refere ainda o mesmo autor ( pág.200) «com efeito, há desde logo em cada personalidade

humana uma organização somático-psíquica, cuja tutela encontra aliás tradução na ideia de

“personalidade física” do art. 70º do CC organização essa que é composta não só por bens ou

elementos constitutivos (v.g. a vida, o corpo e o espírito) mas também por funções (v.g. a

função circulatória e a inteligência), por estados ( p.ex. a saúde, o prazer e a tranquilidade) e

por forças, potencialidades e capacidades ( os instintos, os sentimentos, a inteligência, o nível

de edução, a vontade, a fé, a força de trabalho, a capacidade criadora, o poder de iniciativa,

etc».

É este conceito abrangente do direito de personalidade, que como direito absoluto que é,

tem consagração legal nas disposições citadas e também na lei constitucional [art. 25º, nº1,

26º, 36º e 67º].

9- O art. 70º, nº1, do Cód. Civil, estabelece, pois, e consagra o direito geral de

personalidade, pelo qual a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou qualquer

ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

10-Nesta o condutor do veículo segurado na apelada ao acusar no marido da apelante as

lesões alegadas, violou, de forma culposa, o direito à sexualidade da apelante, como

componente daquele direito de personalidade, pois que é alegado, que o mesmo ficou numa

situação de impossibilidade de cumprir o débito conjugal, comprometendo, assim, a são

convivência sexual do casal.

Cremos que não sofre dúvidas que o dano invocado pela apelante é de natureza não

patrimonial e de gravidade acentuada e se insere naqueles que afectam profundamente os

valores ou interesses da personalidade moral.

11-Como mulher do lesado em acidente de viação que foi afectado na sua capacidade de

cumprir o débito conjugal, a apelante foi também afectada no seu direito à sexualidade que

tem o direito de exigir de seu marido.

10 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Perante a situação dos autos, existe uma alegação de que pela conduta ilícita do condutor

do veículo segurado na ré, resultaram danos que implicaram directamente (em nexo de

causalidade adequada) com o direito do lesado e de sua mulher, aqui autora.

12-Foi com a violação estradal alegada que foram causados esses danos que afectaram um

direito absoluto da apelante, o direito de personalidade (realização pessoal da sua vida no

âmbito dos deveres conjugais- art. 67º da CRP), na vertente alegada e concreta do exercício da

sua sexualidade conjugal, que deixou de poder ser exercida. E enquanto titular deste direito

protegido pela lei constitucional e lei ordinária (dever de coabitação dos cônjuges com a

especificidade do débito conjugal) a apelante tem direito a ver-se ressarcida dos danos não

patrimoniais que invoca, cuja prova haverá ainda por ser produzida.

Esse direito foi violado pela acção do condutor causador do acidente e a sua violação

implica que nos termos dos arts. 483º e 496º, nº1 do CC haja lugar a indemnização pelos

danos não patrimoniais.

13- O nosso entendimento é, pois, o de que face ao que é alegado e configurando-se aqui

danos directos em relação à autora (a provarem-se os factos alegados na petição) existe

enquadramento jurídico nos termos acima apontados, podendo a autora pedir a indemnização

por danos não patrimoniais pelos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, nos

termos dos artigos 483º e 496º - 1 do CC.

Há, pois, lugar à revogação da decisão recorrida, assistindo, assim, razão à apelante.

III- Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação, e em consequência,

revoga-se o saneador sentença, devendo em substituição proferir-se despacho a ordenar o

prosseguimento da acção com a selecção da matéria de facto e organização da matéria assente

e da base instrutória e ulteriores termos do processo.

Custas a fixar a final.

Porto, 26 de Junho de 2003.

GONÇALO SILVANO

PINTO DE ALMEIDA

JOÃO VAZ

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 11

ANOTAÇÃO PRELIMINAR

Este trabalho de Pós-Graduação tem como principal escopo analisar o Acórdão

supra mencionado, porquanto surgem questões relacionadas com a indemnização

resultante da responsabilidade civil extracontratual que demostram uma grande

sensibilidade da actual e inovadora Jurisprudência Portuguesa (2) em relação a pessoas

que tradicionalmente, - se é que se pode apelidar a anterior Jurisprudência, outrora

claramente dominante, como tradicional - não tinham qualquer fundamento para serem

indemnizadas, e que por isso lhes era peremptoriamente negada tal pretensão, mas que

agora passam a poder accionar os meios de tutela reconstitutivos,(3), por direito próprio, o

que em larga medida se deve aos direitos de personalidade que finalmente começam a ser

encarados como verdadeiros direitos absolutos que são.

Resta saber como num futuro próximo irão as Seguradoras estar preparadas para

fazer face a uma nova vaga de obrigações de indemnização que vão muito além dos danos

que atempadamente as mesmas podem prever, com algum grau de segurança, (4) pois os

danos reclamados por terceiros - que entendem que os seus direitos de personalidade

também foram violados - não entram nessa previsibilidade, visto serem uma situação

hipotética e ainda ilíquida, na nossa ordem jurídica, nos tempos hodiernos.

Serão os direitos de personalidade um rastilho de pólvora que obrigam as

Seguradoras a pagarem indemnizações em catadupa?

Estas são algumas questões que se podem levantar caso a doutrina compaginada no

Acórdão citado ganhe alicerces sólidos na nossa ordem juridico-jurisprudencial.

(2) A questão começou a ser debatida já em 1998 num Acórdão do S.T.J. que se encontra publicado no BMJ, nº481, pág. 480, de 98, onde em anotação se diz: «O mui douto aresto sob anotação bem podia ser candeia(...)», pois entendia-se que o novo entendimento que começava então a surgir «(...) se ajusta às exigências da vida e ao sentir da nossa cultura.» (3) Os meios de tutela reconstitutivos mais não são que a reconstituição natural e o direito á indemnização quando a primeira não é possível. - BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 128. (4) O grau de previsibilidade com que as Seguradoras podem prever os riscos é absolutamente indispensável para as suas gestões, uma vez que é com base nesta previsibilidade que se irão elaborar cálculos complexos, dependentes de enumeros factores, para com eles se chegar ao valor concreto dos prémios de seguros que, posteriormente, irão ser cobrados pelas Seguradoras aos segurados e que servirão, de entre outras coisas, para cobrir os danos dos seus segurados. O Prof. Doutor CALVÃO DA SILVA chama ao prémio de seguro o “ preço de um serviço – serviço de neutralização de riscos ou áleas.”

12 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

1- DA ANÁLISE DO ACÓRDÃO EM ESPECIAL

O ponto de partida deste estudo é, como vimos, o supra transcrito Acórdão que

versa sobre uma acção de responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos, onde

figura como elemento essencial da matéria de facto um acidente de viação.

O facto – acidente de viação- provocou directamente danos ao condutor do outro

veículo, que sofreu o embate, acarretando-lhe a lesão da sua integridade física e moral. Em

relação ao marido da autora, nada se afigura oportuno referir, porquanto é matéria

perfeitamente líquida e pacífica, que não suscita quaisquer divergências ou celeumas quer

doutrinais, quer jurisprudênciais.

Já o mesmo não se pode afirmar em relação à mulher do condutor, que sofreu o

acidente, pois esta alega que o facto – acidente de viação- também lhe causou directamente

danos, apesar não viajar no veículo, aquando do acidente/sinistro.

Assim, em jeito de iniciação desta modesta anotação ao Acórdão da Relação do

Porto, e uma vez que iremos centralizar a nossa atenção no instituto jurídico da

responsabilidade civil, ter-se-á que fazer uma cuidadosa análise a fim de dissecar se os

pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos se encontram preenchidos

cumulativamente em relação à apelante/lesada.

Para que possa haver responsabilidade civil jurídica, é necessária a verificação de

certos factos danosos para que os prejuízos não sejam imputados ao lesado, mas antes a

quem os causou, ou seja ao agente, de acordo com esses critérios legais.(5)

1.1- RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTOS ILÍCITOS

- PRESSUPOSTOS:

1.1.1- Facto voluntário do lesante- É o primeiro requisito da responsabilidade civil

por factos ilícitos. Apenas uma breve referência no que respeita a este requisito, dado que

(5) Na generalidade das vezes em que há danos quem os sofre é que tem que suportar os encargos e prejuízos – casum sentit dominus – salvo, se se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil. HEINRICH E. HORSTER, in A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, pág. 70 e segs.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 13

não levanta nenhum tipo de dúvidas, quanto ao nosso caso(6), que o acidente de viação se

tratou de um facto positivo,- acção- que é controlável pela vontade, e por isso voluntário,

que acarretou a violação do dever jurídico de não ingerência na esfera jurídica da apelante

que é titular de um direito subjectivo, absoluto de personalidade, como é o direito à

sexualidade conjugal. A natureza absoluta deste direito impõe, de per si uma obrigação

passiva universal que não foi cumprida pelo condutor/lesante.

1.1.2- Ilicitude- Está presente no art.483º, nº1 do CC(«...violar ilicitamente...»).

No que tange a este requisito afigura-se necessário expor as duas formas de

ilictude:

i) Violação do direito de outrem- Comporta sobretudo a violação de direitos

subjectivos absolutos, como é o direito de personalidade - direito à sexualidade- invocado

no nosso caso.

Ninguém, nos dias de hoje, pode pôr em causa a existência, a legitimidade e a

importância deste direito de personalidade, na nossa sociedade, como meio de cada ser

humano, individualmente, realizar a sua unidade ser-no-mundo, como tão bem define o

Prof. Doutor Capelo de Sousa.

Além deste, muitos outros direitos de personalidade existem na nossa ordem

jurídica, que apesar de não estarem directamente tipificados na letra da lei, decorrem da

cláusula geral, exemplificativa, do artigo 70º do Código Civil.(7) (8)

Fundamentam os Venerandos Juizes do Tribunal da Relação do Porto que o

(...)«direito de personalidade consubstanciado no direito à sexualidade, que decorre da lei

ordinária (arts. 1577º, 1671º, 1672º do CC, conjugada com o art. 70º do mesmo CC)(...)»,

ligando assim, umbilicalmente, o direito invocado pela apelante, enquanto cônjuge, ao

casamento.

Assim, não estamos num âmbito de análise do direito à sexualidade no seu todo, id

est, latus sensus, como é a liberdade sexual; a liberdade de dispor do próprio corpo em

ordem à prática de actos sexuais; ou o direito a não ser objecto de agressões sexuais, etc...,

(6) Reportar-nos-emos, de ora em diante, deste modo, ao Acórdão que consta deste trabalho, nas páginas iniciais, para facilitar a exposição e evitar repetições desnecessárias. (7) Refere CAPELO DE SOUSA, in O Direito de Personalidade, pág.154, ...«a sistematização do bem jurídico da personalidade humana tutelado no artigo 70º do Código Civil, (...) não pode pretender-se exaustiva do homem e que, (...) , deve acompanhar a dinâmica da evolução do indivíduo e do género humano e ajustar-se sucessivamente ao estádio dos conhecimentos antropológicos a esse respeito,» (8) Não faz parte das grandes linhas de orientação desta pesquisa inculcar pormenorizadamente a origem dos direitos de personalidade, em especial, o direito à sexualidade, a fim, de assim, tolher uma eventual prolixidade desnecessária, até porque é sobejamente pacífico e inequestionável que a apelante é titular deste direito absoluto. Apenas interessa indagar se esta tem direito de crédito indemnizatório contra a Seguradora.

14 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

mas tão só nos circunscrevemos a um círculo muito mais restrito, como é o direito/ dever

(9) ao sexo exigível a um cônjuge, - pelo outro cônjuge- durante a constância do casamento

enquanto contrato de plena comunhão de vida em comum.

Nesta medida, poderíamos ainda, abstractamente, questionar se o que,

efectivamente, se violou foi um verdadeiro direito absoluto, ou se ao invés se tratava de

uma disposição legal, mormente o art. 1672º do CC, que compagina na sua ratio legis o

débito conjugal, que deriva do dever de coabitação.

Esta questão levar-nos-ia, de imediato, para o campo da segunda forma de ilicitude.

Vejamos, agora, a este respeito a segunda forma de ilicitude:

ii)violação da lei que protege interesses alheios- O direito ao débito conjugal

decorre directamente de um preceito legal destinado a proteger a plena comunhão de vida

dos cônjuges dentro do matrimónio. Está-se a falar, em especial, do art.1672º do CC que se

analisará com maior incidência.

Requisitos da segunda forma de ilicitude:(10) (11)

a) Que a lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma

legal;

b) Que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma

violada - só são invocáveis preceitos que protejam apenas ou simultaneamente interesses

particulares;

c) Que o dano registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

Reputando os dois últimos requisitos, assinalados em b) e c), facilmente se conclui que

se encontrariam preenchidos. Já no que toca ao primeiro requisito não se poderia

considerar como estando preenchido, uma vez que é necessário a não adopção do

comportamento imposto por disposição especificamente determinada.

Deste modo, não poderia o condutor do veículo, ser responsabilizado, e bem assim

a sua Seguradora, porquanto a ratio legis daquele dispositivo legal não lhe era dirigido.

(9) Os Profs. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, in anotação ao art.1672º, do Cód. Civil Anotado, chamam-lhe débito conjugal, exigido por um cônjuge ao outro, que não se poderá negar a cumprir- pelo menos continuadamente- a prática de actos sexuais, por força do dever de coabitação. É, outrossim aqui regra d´oiro o princípio «nemo potest precise coagi ad factum», pois a violência é inadmissível para exigir o débito conjugal. Neste sentido, ORLANDO DE CARVALHO, Teoria, 1970, pág.56 e 59º (10) ANTUNES VARELA, Das Obrigações Em Geral, 2ª Edição, págs. 417 e 418 (11 ) M. J. ALMEIDA COSTA, Direito da Obrigações, págs. 451 e 452.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 15

Não é, sem margem para dúvidas, o exercício da condução de veículos automóveis

que o artigo 1672º tem na sua génese. No âmbito deste artigo quem pode - e só quem pode

- violar o direito à sexualidade no casamento é o cônjuge que se recusa a ter actos sexuais.

Destarte, não poderia o condutor ser acusado de violar uma obrigação legal quando esse

mesmo comando legal não lhe era dirigido, nem tão pouco lhe impunha qualquer tipo de

comportamento específico. Através desta fundamentação as pretensões da lesada sairiam

totalmente goradas.

Contudo, apesar desta breve referência, relativamente à segunda forma de ilicitude,

convém vincar que esta possibilidade – ou fundamentação jurídica- nunca se colocou, no

nosso caso, porquanto dos autos resulta expressamente que a apelante invoca a violação de

um direito absoluto de personalidade, e não a violação de normas jurídicas, apesar de

aquele direito encontrar menção na letra da lei mormente a artigos 1577º, 1671º, 1672º do

CC, conjugada com o art. 70º , também do CC, e 25º nº1, 26º, 36º e 67º da C.R.P.

Posto isto, o que importa reter é que o requisito da ilicitude se encontra preenchido,

dado que foi violado o direito à sexualidade conjugal – direito que é reputado

pacificamente na Doutrina como sendo um direito absoluto de personalidade- da apelante,

sendo que tal violação cumpre a primeira forma de ilicitude, apresentada supra.

1.1.3- Imputação do facto ao agente. A culpa- Vem prevista no artigo 488º, nº1 do

CC «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar...)

Tem-se por imputável o condutor no momento da sinistro, porquanto nada consta

em contrário da matéria de facto resultante do Tribunal de Primeira Instância.

Nesta ordem de ideias, parte-se do pressuposto, que o condutor tinha capacidade

normal para prever os efeitos e medir o valor dos seu actos (discernimento- capacidade

intelectual e emocional) e para se determinar de harmonia com o juízo que fizesse acerca

destes (liberdade de determinação- capacidade volitiva).

Resulta, ainda, do douto Aresto, em análise, que o sinistro não se deu devido a dolo,

mas sim devido a negligência ou mera culpa. (12) (13)

A negligência pode dividir-se em consciente ou inconsciente.(14)

(12 ) Matéria teórica descrita In ANTUNES VARELA, Ob. Cit., págs.438 e sgs. (13 ) In ALMEIDA COSTA, Ob. Cit., págs. 465 e sgs. (14) Exposição teórica In CAPELO DE SOUSA, Ob. Cit., págs. 456 e 457 e ANTUNES VARELA, ob. Cit., Págs. 448 a 454.

16 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Iniciar-se-á por analisar a forma de negligência mais grave, e também aquela cuja

linha de fronteira é bastante ténue e esbatida, sendo em muitos casos difícil discernir onde

acaba a mera culpa consciente e onde começa o dolo eventual, e vice-versa.

Há negligência consciente, como bem explica o Prof. Antunes Varela, sempre que

o responsável - no nosso caso é o condutor do veículo automóvel- tenha previsto a

produção do facto ilícito, como de possível realização, mas por leviandade, incúria,

precipitação ou desleixo tenha crido na sua não verificação, e só por isso não tenha

tomado providências necessárias para evitar a consumação do facto voluntário que irá

causar danos na esfera jurídica dos lesados.

Dos autos, mormente no que respeita à matéria de facto, é dito claramente que o

condutor do veículo causador do sinistro circulava a elevada velocidade, completamente

desatento ao trânsito e manobrando com manifesta imperícia e falta de destreza o veículo

automóvel em que seguia.

Só por estas indicações teóricas (juízos de valor) que constam da matéria de facto é

impossível fazer um juízo rigoroso e meticuloso, porquanto há outros factores, como o

local do acidente (e suas características), que são fundamentais para uma resposta final que

afirme se há negligência, e em que grau.

No entanto, de uma leitura à vista desarmada, resulta que a atitude do condutor,

aquando da realização de uma actividade perigosa (condução de veículos automóveis que

exige um dever de cautela e de diligência acentuados), e da qual retira proveito, não era a

mais adequada a um bonus pater familias(15), advindo desse facto fortíssimos indícios de

negligência consciente.

Era de prever abstractamente, sem grande esforço, por qualquer bonus pater

familias ou bonus civis que aquele tipo de condução era conducente a um acidente de

viação. Aliás, de forma cauta e sábia, diz o povo que um automóvel pode ser uma arma

letal nas mãos de qualquer pessoa.

Deste modo, recai sobre o condutor um juízo de censurabilidade relativo ao seu

comportamento, pois quem conduz com excesso de velocidade tem forçosamente que ter a

consciência - até porque o condutor era imputável - que poderia causar acidentes de viação.

De vincar contudo, como se disse acima, que esta conclusão não assenta numa

inspecção ao local que dissiparia dúvidas como a existência ou não de sinais de trânsito;

qual o traçado das faixas; se a via era recta ou se descrevia curva; se essa curva era

acentuada; se o condutor que veículo que sofreu o embate também tinha culpa; etc..., etc... (15) O Código Civil Português adaptou a apreciação da culpa em abstracto como resulta do artigo 487º, nº 2. In ALMEIDA COSTA, ob. cit. pág.470 e ANTUNES VARELA, ob. cit. pág. 451 e 452.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 17

São questões que importam indagar para se concluir, no caso concreto, se havia

possibilidade de prever a produção do facto ilícito.

A negligência inconsciente, não é muito diferente da anterior forma de mera culpa,

diferindo como o nome indica na falta de previsibilidade do facto ilícito por imprevidência,

descuido, imperícia ou inaptidão do lesante que, por outras palavras, não concebeu a

realização do facto lícito porque não usou da diligência devida. Ou seja, se usasse dessa

mesma diligência como se de um bonus pater familias, ou de um bonus civis se tratasse,

conseguia objectivamente(16) prever e evitar a realização do facto lícito. Existe,

assim, um juízo de censurabilidade em torno do comportamento do condutor que conduzia

em excesso de velocidade.(17)

Apesar de tudo parece que do juízo de valoração que resulta dos autos é de crer que

haverá mera culpa consciente, pelas razões ora explanadas. Assim, se dúvidas existem

quanto à verificação da negligência consciente (que apesar da escassez de elementos nos

parece preenchida), já quanto à negligência inconsciente - caso aquela não se achar

preenchida- parece-nos indiscutivelmente enquadrada com os autos, sendo de concluir que

o requisito da mera culpa está preenchido, numa ou noutra modalidade.

Uma vez que estamos perante responsabilidade civil por factos ilícitos que advém

de mera culpa do lesante o cálculo da indemnização terá em conta o art. 494º ex vi do art.

496º, pois a indemnização além de ressarcir visa também sancionar o lesante, para evitar

futuras violações (função preventiva), sendo tal sanção maior em caso de dolo pois aí o

juízo de censurabilidade é mais grave.

1.1.4- Dano - Como é evidente, só faz sentido falar em direito à indemnização (cuja

primeira função é reparadora, daí a etimologia da palavra ser indemne, que significa

retirar o dano) se houver danos, como decorre do art. 483º, nº1 do CC que impõe ao lesante

a obrigação de «...indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»

No nosso caso, verificou-se que a actuação do lesante/condutor originou um dano

no direito à sexualidade da apelante que, contudo, é terceira, dado que quem foi

(16) Em relação à apreciação da culpa, In ALMEIDA COSTA, Ob. Cit. Pág.470 «Desde que a lei não consagre outro critério (presunções de culpa), a culpa será apreciada, em face das circunstâncias de cada caso, pela diligência de um bom pai de família ou homem médio(...)» (17) Neste sentido, AMÉRICO MARCELINO, Acidentes De Viação E Responsabilidade Civil, pág. 145, (...) «quando o resultado não é previsível, não pode haver culpa, pois não poderia haver juízo de censura em que ela se traduz »

18 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

directamente atingido pelo sinistro foi o seu cônjuge. Relativamente a esta constatação não

há quaisquer controvérsias doutrino-jurisprudênciais.

Questão assaz mais complexa, mas também mais estimulante, prende-se com o

facto de o dano invocado pela apelante, se enquadrar, ou não, na categoria dos danos

directos por violação de direito próprio. Os Venerandos Juizes Desembargadores do douto

Tribunal da Relação do Porto entenderam que se tratava de um dano directo.(17a)

Mas constituirão os danos, invocados pela apelante, provenientes da violação do

seu direito à sexualidade na constância do matrimónio, um dano directo ou apenas um

dano reflexo da lesão directamente sofrida pelo seu marido?

Importa, para responder a esta questão, explanar sumariamente a estrutura da

relação jurídica que está na génese do contrato de casamento. Será uma breve reflexão em

linhas bastantes gerais, até para tolher alguma prolixidade porquanto esta é uma parte do

direito não muito apelativa.

Para começar e, bem assim, nos localizarmos no espaço jurídico dir-se-á que o

direito à sexualidade de ambos cônjuges provém do chamado dever de coabitação. Este

dever está previsto no art. 1672º do CC e implica comunhão de leito, mesa e tecto. Ora,

interessa-nos essencialmente a comunhão de leito. É dessa comunhão que nasce o débito

conjugal, ou seja o dever que um cônjuge está sujeito, quando contrai matrimónio, para ter

relações sexuais com o outro cônjuge.(17b) Contudo, como é bom de ver, não se trata de

um dever absoluto porque se assim fosse poderia colidir com os direitos de integridade

física e de liberdade de dispor do próprio corpo.

A relação jurídica que emana do contrato de casamento é múltipla ou complexa,

contudo interessa analisar, tão só, restritivamente a figura jurídica do débito conjugal.

Após este breve intróito é o que nos irá ocupar de seguida.

Os sujeitos da relação jurídica seriam ambos os cônjuges. Sendo um o sujeito

activo (titular do direito subjectivo) e o outro o sujeito passivo (titular da obrigação).

O facto jurídico seria o contrato de casamento celebrado pelos cônjuges.

(17a) Após o início da elaboração deste trabalho surgiu o Acórdão do S.T.J que se pronunciou, como instância de recurso, sobre este caso, decidindo contudo, ao invés da Relação, que os danos sofridos pela apelante são um mero reflexo dos danos directos sofridos pelo seu marido. Tal Acórdão encontra-se, neste trabalho, em anexo. (17b) In Código Civil Anotado pelos Profs. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, em anotação ao art. 1672º, pág.257 e sgs; Prof. PEREIRA COELHO, Curso de Direito da Família, Coimbra, 1986, pág.392 e 393; BRANDÃO FERREIRA PINTO, Almedina, Coimbra, Causas de divórcio, 1980, págs.71 e sgs; Prof. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, 1991, págs. 40, FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, volume I, 2º edição, Coimbra Editora, pág.356.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 19

O objecto imediato seria o próprio débito conjugal, isto é o poder de exigir do outro

cônjuge a actividade sexual. Já o objecto mediato seria o corpo do outro cônjuge. O

cônjuge activo passaria a deter direito sobre o corpo do outro cônjuge.(17c)

Por fim, o vinculo jurídico seria composto pela obrigação que corresponde ao

direito subjectivo. Na verdade, o direito á sexualidade conjugal seria um direito subjectivo

de personalidade que se traduziria na faculdade ou poder de exigir do outro cônjuge um

determinado comportamento positivo, ou seja, o exercício de práticas sexuais, vulgo

juridicamente denominado de débito conjugal.

No entanto, no que diz respeito ao matrimónio, a relação jurídica sofre algumas

limitações fruto da sua especificidade. Assim, um decalcar superficial do débito conjugal

relativamente à estrutura da relação jurídica, como acabámos de fazer, conduzir-nos-ia

indefectivelmente para conclusões erróneas que não têm em conta a natureza sui generis

do contrato de casamento. É preciso não perder de vista que estamos no campo do direito

da família onde habitam princípios próprios.

Desde logo, seria aberrante que o Homem fosse objecto de direitos. Como ensina o

Prof. Doutor Heinrich Ewald Horster,(17d) “o homem não pode fazer parte de uma relação

jurídica senão na condição de sujeito”, prossegue ainda dizendo, “ flui daquilo que ficou

dito no âmbito do direito da família a pessoa não é objecto de direitos subjectivos de uma

outra”. Apesar da estrutura dos direitos familiares pessoais serem direitos relativos não

pode “um cônjuge ser objecto de outro”, uma vez que este tipo de direitos não possuem um

objecto para, deste modo, se coadunarem com a relação jurídica fundamental(17e), como

afirma o mesmo autor na pág.255 da mesma obra.

Destarte, o débito conjugal, por se enquadrar nos direitos familiares pessoais, em

especial os que derivam do casamento, tem que ser entendido à luz do princípio da plena

comunhão de vida -1601º C.C.- que marca de forma vincada aquele instituto jurídico. Não

pode, levianamente, pretender-se coarctar, de régua e esquadro, o que é o direito à

(17c) O Prof. Doutor CAPELO DE SOUSA, in ob. cit. págs. 260 e 265, nas notas de rodapé 629 e 606 usa a expressão «ius in corpus» para ilustrar o direito de cônjuge de exigir práticas sexuais, mas isto não quer dizer que o cônjuge titular do direito (que não é absoluto) possa usar de meios para que a todo o custo consiga os seus intentos. Não pode, portanto, este dever ser exigível por execução específica - 827º do CC -, nem um cônjuge tem que se sujeitar aos caprichos sexuais do outro (BRANDÃO FERREIRA PINTO, Almedina, Coimbra, Causas de divórcio, 1980, págs.72), e muito menos se poderá usar de força para obrigar ao cumprimento de deste dever (In Código Civil Anotado pelos Profs. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, em anotação ao art. 1672º). Se um cônjuge não cumprir o débito conjugal resta ao outro pedir o divórcio. Veja-se, ainda, o que se disse neste trabalho na supra nota 9. (17d) In A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, pág.175. (17e) LARENZ define a relação jurídica fundamental como a necessidade de ” cada um é respeitado e tratado pelos outros como um ser livre” sic. Todas as relações jurídicas que se estabeleçam na vida corrente têm que observar a relação jurídica fundamental.

20 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

sexualidade de um cônjuge, e o que é do outro, como se duas coisas estanques se

tratassem. Contudo, esta parece ter sido a linha seguida pelo S.T.J., embora em bom rigor

não se possa vislumbrar com clareza qual foi o entendimento daquele Tribunal porquanto a

fundamentação do Acórdão é manifestamente vaga deixando transparecer, de forma

notória, todas as dúvidas que também os Venerandos Conselheiros sentiram ao prolatarem

o Acórdão. Não será ousado dizer que a fundamentação é inexistente no que diz respeito à

questão mais difícil de decidir, id est, quanto aos danos directos. Ora, esta fundamentação

parcimoniosa não é coadunante com a novidade, delicadeza e complexidade das matérias

tratadas que exigiriam, em nome dessa novidade, uma vertente pedagógico-esclarecedora

dos tribunais superiores, apesar deste não ser a sua principal função.

Seguindo a linha de pensamento que começámos por expor supra, constatamos que

com a celebração do contrato de casamento cada cônjuge, de per si, adquire o direito à

sexualidade conjugal (que por se tratar de um direito de personalidade é inerente à pessoa

humana, e por isso exclusivo, incomunicável e intransmissível). Contudo, este direito

subjectivo individual constitui uma relação jurídica, que a doutrina apelida de débito

conjugal, inserida no seio do matrimónio e da subjacente plena comunhão de vida. No

fundo a envolvência sexual permite a ambos cônjuges viverem intimamente de modo a

serem duos in carne una(17f) como forma de realização da ideia de plena comunhão de

vida (interesse comum a ambos os cônjuges) que promana do contrato de casamento, pelo

que para realizar este ideal só fará sentido que a relação jurídica (débito conjugal) seja

detida por eles em comunhão, porquanto o interesse é uno e comum aos dois.

É, assim, dever de ambos os cônjuges se relacionarem sexualmente, traduzindo-se

tal dever no já amiudado referido debitum conjugale. Este dever existe não só para “dar

realização morigerada ao instinto sexual de cada um” dos cônjuges, “...mas também para

assegurar a fecundidade do lar, dando ao casal os filhos cuja criação e educação,...”

garantirá a “...perpetuação do seu sangue”(17g). Relativamente à parte final do que ora se

acabou de dizer Brandão Ferreira Pinto, Antunes Varela e Pires de Lima referem mesmo,

que este dever é de interesse e ordem pública.

A plena comunhão de vida implica uma envolvência física, sexual, intelectual e

afectiva, de modo a que ambos os cônjuges se possam realizar e atingir um padrão de

felicidade em vários níveis. Com a celebração do matrimónio os cônjuges adquirem o

direito de personalidade de sexualidade na constância do matrimónio(17h), aliás cujo

(17f) In Brandão Ferreira Pinto, Almedina, Coimbra, Causas de divórcio, 1980, págs.71. (17g) In Código Civil Anotado, págs.258. (17h) In Capelo de Sousa, ob. Cit. págs. 264 e 265, nota 629.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 21

interesse é público, passando a vida sexual de ambos os cônjuges a ser uma só (carne una),

no interesse de ambos, sendo por isso de difícil entendimento que qualquer dano que

provenha, de forma superveniente, possa afectar directamente, de forma estanque, um só

cônjuge.

Quando o débito conjugal passar a realizar o interesse exclusivo de só um cônjuge é

sinal de que o interesse na plena comunhão de vida se quebrou.

A relação jurídica presente no casamento não é similar às banais relações que se

estabelecem no dia a dia para que se possam circunscrever, de forma estanque, os direitos e

os deveres das partes. Nas relações jurídicas banais, na generalidade das vezes, os

interesses do sujeito activo e passivo são diferentes. Ambos têm interesses diversos mesmo

que estejam de acordo. Veja-se o caso do contrato de compra e venda. O vendedor quer

vender e receber o preço. Já o comprador quer adquirir a coisa.

No casamento não é assim. O débito conjugal provém de um direito familiar

relativo que tem como escopo realizar a plena comunhão de vida dos cônjuges (além do

interesse público), que é um interesse comum a ambos, sendo que para realizar esse fim

comum só faz sentido que o débitos conjugal pertença a ambos os cônjuges em conjunto.

Até porque era impossível, como é bom de ver, que qualquer cônjuge realizasse o direito

ao sexo no casamento só de per si, de forma incomunicável. A envolvência sexual dos

cônjuges visa realizar o interesse de ambos, em igual medida e em plena comunhão, que

encontra descrição impar na expressão duos in carne una. É, portanto, uma relação jurídica

sui generis, em que os cônjuges têm, em comum, ou em comunhão, o mesmo interesse.

Este é, estamos em crer, salvo o devido respeito por douta e melhor opinião, a

solução que estará mais em simbiose com a especificidade do direito da família.

A ser assim, a apelante sofreu, directamente,(2) um dano real, de ordem não

patrimonial(3), pois ficou impedida de exercer o débito conjugal, que detinha em

comunhão com o seu marido, assistindo-lhe então o direito a uma compensação.(4)

(2) A lesada é titular do débito conjugal, em comunhão como o seu marido, pelo que esse direito ao ser violado em relação ao seu cônjuge, também o é directamente – por directamente leia-se na sua substância e materialidade- em relação à lesada, porquanto o seu cônjuge não é titular absoluto de tal direito. O débito conjugal não é estanque para que possamos dividir a violação do débito conjugal em dois compartimentos incomunicáveis e pertencentes a dois titulares distintos. (3) Quanto à distinção de danos não patrimoniais e danos morais veja-se o que refere CAPELO DE SOUSA, in Ob. Cit., pág.458, nota 1269 - «A qualificação de danos como «não patrimoniais» é mais rigorosa e abrangente do que como «morais», pois aqueles incorporam estes, mais os danos biológicos, estéticos, afectivos, etc.» e ALMEIDA COSTA, in Ob. Cit., pág. 478 e 484 e ANTUNES VARELA, in Ob. Cit., pág. 482, «(...) O Código Civil (art.496º) chama-lhes, como maior propriedade, danos não patrimoniais.» (4) Ultrapassada está questão de saber se os danos não patrimoniais são, ou não, indemnizáveis pois, em tempos, parte da doutrina defendia que a natureza irreparável destes danos não lhes permitia retirar o dano (indemne). Nos tempo hodiernos, até porque o art. 496º, nº1 do CC prevê que são ressarcíveis os «danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito», é pacífico que se pode accionar os meios

22 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Em jeito de conclusão, dir-se-á que devido às graves lesões físicas resultantes do

acidente que vitimou o marido da lesada, este ficou impotente sexualmente, o que lhe

acarretou directamente a violação do seu direito à sexualidade, no seu todo (quer dentro

quer fora do casamento), afectando consequentemente, o débito conjugal que lhe pertence

em comunhão com sua mulher. Com efeito, a apelante, invoca a violação do seu direito

próprio de personalidade (direito à sexualidade conjugal), uma vez que a sua relação

jurídico-familiar, que pertencente a ambos em comunhão (débito conjugal), ter sido

directamente afectada supervenientemente, por facto danoso, provocado por terceiro. Isto

porque, como vimos, a vida sexual dos cônjuges é uma só, in duos in carne una.

1.1.5- Nexo de causalidade entre facto e dano - Também este requisito resulta da

letra da lei, nomeadamente dos arts. 483º, nº1 («...pelos danos resultantes da violação») e

563º («A obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado

provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.»), ambos do Código Civil.

Da leitura do art.563º do CC resulta que a ideologia adoptada pelo legislador, e que

por isso figura no seio do Código Civil Português, relativamente ao nexo de causalidade é

a teoria da causalidade adequada(5). É o que resulta de forma clara dos trabalhos

preparatórios do C.C., como relembra o Prof. Doutor Antunes Varela.

Deste modo, o lesante só será obrigado a reparar os danos que não se teriam

verificado sem a ocorrência do facto ilícito que praticou e que, abstraindo deste, seria de

prever que não tivessem produzido.(6)

A teoria da causalidade adequada compagina duas formulações – uma positiva e

outra negativa – as quais importam referir dado que apresentam um alcance diferenciado.

de tutela reconstitutivos para ressarcir os danos não patrimoniais, - como a compensação- que pode ser em dinheiro, pese embora, não retire o dano visa compensar e atenuar os danos sofridos, porquanto sabe-se que a composição pecuniária pode servir para satisfazer as mais variadas necessidades, quer grosseiras e imorais, quer de elevada espiritualidade, dependendo, claro está do uso que se lhe prover. Em relação a esta questão, ALMEIDA COSTA, Ob. Cit., págs. 483 e sgs e ANTUNES VARELA, págs. 483 e sgs. (5) In ANTUNES VARELA, Ob. Cit., pág. 754 e CAPELO DE SOUSA Ob. Cit., pág.460. (6) ANTUNES VARELA, Ob. Cit., pág.756. Contudo, a letra da lei - artigo 563º- não foi a mais correcta para exprimir o pensamento do legislador. Refere, o Prof. Doutor A. Varela que este artigo em relação às duas formulações (positiva e negativa) da causalidade adequada nada diz, ou seja, «Não há nenhuns elementos seguros, nem na letra, nem no espírito da disposição, que indiquem uma opção por parte da lei.», por isso, prossegue o autor, «(...) o intérprete goza da liberdade de movimentos necessária para optar por aquela solução que, em tese geral, se mostre a mais defensável, «dentro de espírito de sistema» (art.10º, n3)». Não termina a sua exposição, este douto autor, sem antes demostrar clara preferência para a formulação negativa, como já o tinha feito anteriormente a págs. 747 e segs. É que, na sua opinião, o facto de o art. 494º fazer com que a indemnização tenha uma função repressiva ou sancionatória, além da reparatória, apoia a formulação negativa, que é mais abrangente que a formulação positiva.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 23

Comecemos pela:

- Formulação positiva: um facto é causa adequada de um dano sempre que este

constitua uma consequência normal ou típica daquele, id est, sempre que, verificado o

facto, se possa prever(7) o dano como uma consequência natural ou como um efeito

provável dessa verificação(8). Com efeito, esta formulação impõe ao intérprete um juízo,

abstracto, de prognose que assenta em previsões e probabilidades baseadas em

antecedentes históricos.

Será a violação do direito ao sexo da apelante uma consequência natural e típica do

acidente de viação?

As regras da experiência da vida corrente e o próprio curso ordinário das coisas

revelam que a condução de veículos automóveis é causa adequada a provocar lesões a

terceiros, sejam eles automobilistas ou peões. É causa adequada mesmo que o condutor use

de conduta diligente e observe todas as regras estradais. Sendo, por esse facto, considerada

uma actividade perigosa que fica sujeita ao instituto da responsabilidade civil objectiva.

Desses danos, que podem recair sobre terceiros, o mais grave de todos é o dano da morte

pois é aquele que «(...)absorve todos os outros danos não patrimoniais(...)»(9).

Causa alguma estranheza, pela novidade da questão(10), que um cônjuge venha

peticionar direito a indemnização por violação do seu debitum conjugale provocado pela

impotência sexual do seu marido, que se ficou a dever a um acidente de viação causado

culposamente por um terceiro.

Quanto ao dano sofrido pelo marido da apelante dúvidas não se colocam, pois se o

julgador efectuar um juízo de prognose abstracto, concluirá que é causa adequada - leia-

se consequência normal e típica- do sinistro. Com efeito, a impotência sexual do marido é

apenas uma das formas de incapacidade física (violação directa da personalidade física,

apesar de neste caso também se poder falar em violação da integridade moral, atendendo

às mudanças de comportamento e humor que poderão advir desta delicada limitação, uma

(7) Esta previsibilidade não diz respeito ao lesante. Este não tem de prever que com o seu comportamento, que desencadeia um facto, vai cometer determinado tipo de danos. Está-se agora a falar da responsabilidade baseada na culpa onde a previsibilidade do facto jurídico ilícito é fundamental para averiguar se há ou não negligência, mas mesmo aqui não se exige que a previsão dos danos subsequentes, senão a exclusão da responsabilidade poderia ser bastante facilitada. O juízo de previsibilidade de que a formulação positiva fala é destinado ao julgador. É o que defende o Prof. ANTUNES VARELA, ob. Cit. pág.751. (8 ) ANTUNAS VARELA, Ob. Cit., pág.746 cita a expressão elucidativa de TIRCIER, para explicar que o acto praticado pelo lesante for o adequado a provocar o dano que sofreu, «d´après le cours ordinaire de choses et l´expérience courante de la vie.» (9) In comentário do Prof. Doutor LEITE DE CAMPOS, no BMJ365º, pág. 15, intitulado, A vida, a morte e a sua indemnização. (10) É precisamente esta novidade e inovação, da doutrina e jurisprudência, que afasta o julgador dos antecedentes históricos, típicos e normais, uma vez que não os há.

24 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

vez que a personalidade humana é uma organização somático-psíquica), (11) que são

causa típica dos acidentes de viação.

Mas o que importa aferir é a causalidade adequada relativamente à apelante/esposa.

Assim, aquela limitação física sofrida pelo marido da apelante vai impedi-lo de realizar

uma das formas de plena comunhão de vida, através do direito ao sexo conjugal na

constância do matrimónio causando directamente, com isso, um dano no seu cônjuge (ora

apelante) que se vê impossibilitado de realizar, também, o débito conjugal/interesse

comum que pertence a ambos em comunhão. Foi o sinistro (facto) que causou (causalidade

adequada) debilidades físicas ao marido da apelante, debilidades essas que o impedem de

reger com normalidade a sua vida, sendo um dos danos (impossibilidade para o exercício

do débito conjugal), comum a ambos os cônjuges, e que pela sua gravidade poderá afectar

a plena comunhão de vida dos cônjuges.

Se o marido, em consequência do sinistro, ficasse, além de impotente, paralisado

numa cadeira de rodas devido a uma atrofia grave nos membros inferiores, que o impedisse

de realizar quaisquer movimentos, poderíamos constatar que a incapacidade física

provocada em causalidade adequada pelo acidente de viação, materializava-se numa

incapacidade de movimentos motores e também numa incapacidade sexual. Seguindo

ainda este exemplo o lesado poderia ser ressarcido pela violação da sua integridade física

(art. 70º do C.C.), onde deveriam ser computados os seus direitos absolutos de

personalidade, como o direito à sexualidade no seu todo (pois fica dele privado para todo

o sempre, e não apenas dentro do matrimónio), o direito à liberdade de movimentação

corporal e de circulação, se fosse caso disso o direito de liberdade de actividade da força

de trabalho e o direito de desfrutar plenamente da paternidade (caso tivesse filhos), ou

seja, ficava privado de fazer coisas tão triviais como, ensinar o seu filho a jogar à bola,

ensiná-lo a andar de bicicleta, etc... Estes são apenas alguns exemplos, a que se fazem

referência, entre muitos outros de que ficou privado.

Assim, as limitações como andar, impotência sexual (que nos interessa para o

caso), ver, ouvir, etc... são manifestações (danos) da lesão da integridade física de que é

causa adequada os acidentes de viação.

Para finalizar, e respondendo à questão que colocámos no início, os acidentes de

viação são causa adequada para a violação do débito conjugal, um vez que a impotência

sexual é uma das formas de materialização da violação da integridade física, por isso

parece estar cumprida esta forma, mais restrita, de causalidade. Se bem que esta

(11) In, CAPELO DE SOUSA, ob cit. pág. 200.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 25

formulação de causalidade por ser mais restrita é mais fácil de afastar. Neste caso o

julgador poderia ser influenciado pela novidade das matérias tratadas e ter reservas em dar

como preenchido este requisito da responsabilidade civil por factos ilícitos, o que desde

logo, de per si, era suficiente para afastar este instituto jurídico, porquanto os requisitos são

cumulativos. Interessa por isso analisar a outra forma de causalidade adequada.

Segue-se, assim, a última formulação da causalidade adequada:

- Formulação negativa: Esta formulação é mais lata que a anterior e, por isso,

abarca um maior número de situações da vida. Nesta concepção o facto só deixará de ser

considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em

todo indiferente para a verificação do dano; tendo-o provocado só por virtude das

circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no

caso concreto.

Da leitura prima facie desta forma de causalidade partida levantam-se menos

questões quanto ao seu preenchimento, dado que o dano nunca teria ocorrido se não tivesse

existido o acidente de viação (facto que se situa no processo causal) que vitimou o marido

da lesada, e nesta se repercutiu também. Por isso o acidente não é, nem se conhecem no

nosso caso alguma circunstância excepcional, anormal, extraordinária ou anómala para

afastar o nexo de causalidade. Com uma formulação da causalidade adequada deste tipo,

mais alargada, torna-se mais difícil afastar a responsabilidade civil.

Também este requisito da responsabilidade civil se encontra preenchido, embora de

forma mais ostensiva quanto à última formulação.

26 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

2- A Indemnização

No título anterior, procedeu-se à análise dos requisitos da responsabilidade civil

extracontratual por factos ilícitos e pôde-se concluir que, de uma forma geral, os mesmos

estão preenchidos, exceptuando- como se tentou demonstrar- o requisito do dano que

parece originar algumas dúvidas(12).

Dada a natureza cumulativa destes requisitos, criados pela Doutrina relativamente

ao artigo 483º do CC, bastaria que um deles não se encontrasse preenchido para que a

Seguradora – para quem havia sido transferido o risco/álea válida e eficazmente - se

eximisse da obrigação de indemnização exigida pela lesada.

Já se referiu, neste trabalho, embora telegraficamente, as finalidades da

indemnização. Aquela que nos ocuparemos em escassas linhas é a função reparadora da

indemnização.

Esta função tem como escopo colocar a lesada na situação em que estaria,

presentemente, se o seu direito não tivesse sido violado de forma ilícita e censurável,

causando-lhe o dano da impossibilidade ao débito conjugal.(13) Não se trata, portanto, de

reconstituir a situação anterior à lesão, mas sim aquela que hipoteticamente ou

provavelmente existiria se não tivesse ocorrido o dano.

A nossa lei, no que respeita a indemnizar (retirar o dano, ou tornar indemne), opta,

em primeiro lugar, pela reconstituição natural, como se depreende do art. 566º, nº1 do

Código Civil.

No entanto, no nosso caso, a natureza não patrimonial (logo indelével) do dano

sofrido pela apelante (32) origina uma impossibilidade natural, inviabilizando, desta feita, a

reconstituição natural pelo que se terá que optar por uma compensação, como é regra

nestes casos.(15)

Contudo, este meio reconstitutivo poderá observar o disposto no art. 494º ex vi do

496º, nº3 ambos do CC, dado que o lesante usou de negligência, e por isso, o juízo de

censurabilidade, que recai sobre o seu comportamento, será menor do que aquele que se

faria se tivesse existido dolo - por óbvias razões de retribuição e prevenção. (12) Incertezas compartilhadas pela jurisprudência uma vez que os Tribunais da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça têm visões divergentes. (13) É o que resulta da leitura do artigo 562º do Código Civil - « Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (14) Vd supra nota 20. (15)Vulgarmente denominada indemnização pelos profissionais forenses, o que não é rigorosamente correcto. No entanto, será um erro desculpável porquanto o legislador também lhe chama indemnização no artigo 496º, nº1 quando se reporta a danos não patrimoniais.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 27

A nossa ordem jurídica só prevê a obrigação de indemnizar quando a lesão seja

grave. Ora, parece que também este requisito está preenchido, uma vez que a apelante se

viu privada de exercer um direito absoluto de personalidade, que inclusive é de interesse

público. Por isso, desde logo, se vê a importância deste direito, em que cuja violação

acarreta danos graves atendendo a que é uma das formas de realização Humana e de

perpetuação da espécie. Não é por acaso que o direito à sexualidade conjugal é

fundamental para realização da plena comunhão de vida, contribuindo ainda para a

concretização daquilo que o Prof. Doutor Capelo de Sousa apelida de “unidade da

existência ou unitário ser-no-mundo de cada homem”.(16) A apelante vê-se, contra a sua

vontade, privada do seu débito conjugal detido em comunhão com o seu marido, que

afectará de sobremaneira a plena comunhão de vida em comum do casal, nomeadamente

no(s) direito(s) de maternidade (e paternidade), que ora não importam indagar porquanto

não foram mencionados na Petição Inicial.

Destarte, a gravidade da violação deste direito leva a que a apelante possa ser

compensada do dano que sofreu, pois a realidade fáctica subsume-se na letra do art. 496º,

nº1 que exige o preenchimento do conceito indeterminado(17) de gravidade.

Posto isto, terá o tribunal que fixar segundo os juízos da equidade uma justa

indemnização para ressarcir a lesada, o que não será certamente tarefa fácil chegar a um

valor justo destinado a compensá-la, atendendo à complexidade e mensurabilidade deste

dano, bem como à novidade destas questões na jurisprudência.

Neste trabalho tem-se reportado amiudadas vezes, por própria qualificação dos

acórdão analisados, ao nosso caso como sendo uma novidade. Usou-se esta denominação

porque, na maioria das vezes, os terceiros que peticionavam indemnizações e não eram

directamente afectados, mas sim reflexamente, faziam-no à luz do art. 496º, nº2 do CC.

Aliás, esta foi a estratégia de defesa da Seguradora que veio afirmar que os danos

peticionados não cabiam no artigo 496º, nº2, não sendo, por isso, indemnizáveis por não

haver morte da pessoa directamente lesada.

O STJ(18) que se pronunciou, como Instância superior jurisprudêncial, sobre os

autos em análise, entendeu que não seria de dar provimento à pretensão da lesada. Desse

Acórdão consta uma fundamentação que se reporta demoradamente aos danos reflexos, e

termina em breves linhas afirmando que apesar de a lesada invocar danos próprios, na

(16 ) In CAPELO DE SOUSA ob. cit. pág. 244, nota 552. (17) In, BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág.113 e 114. (18) Ac. do STJ, publicado em www.dgsi.pt/nstj, proc. O3B4298, nº convencional:JSTJ000, Relator: Duarte Soares, de 26/02/2002.

28 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

opinião unânime dos Venerandos Conselheiros, os danos são um mero reflexo da lesão

directa do sinistrado, marido da lesada. Esta foi a opinião final daquele tribunal. Contudo,

procurou-se, no título anterior, demostrar outra posição, que se baseia no facto de o direito

ao débito conjugal ser possuído por ambos cônjuges em comunhão, sendo por isso de

rejeitar - na nossa modesta opinião, sempre ressalvado, é claro, douta e melhor opinião

contrária - a fundamentação do douto Aresto prolatado pelo STJ.

Apesar das fundamentações de ambas Instâncias de recurso serem antagónicas

quanto à solução final, ambas demonstram uma grande subtileza na análise do nosso caso,

denotando atentas cautelas na elaboração do Acórdão. Merece, neste contexto, especial

atenção a decisão do Venerando S.T.J. que não consegue rebater os argumentos da

apelante, mormente aquele que levanta maiores dúvidas, como é o requisito do dano,

furtando-se, ao longo da fundamentação, a uma preocupação pedagógica como seria de

esperar relativamente à novidade destas matérias, pelo que a conclusão final não é, salvo

melhor opinião, nem esclarecedora, nem convencedora. Indo, aliás, contra a anotação ao

Ac. do STJ de 25-11-98, in BMJ 481 (1998), que relata um caso juridicamente semelhante

- no qual são também invocados direitos de personalidade próprios, de terceiros - onde se

sugere que esse acórdão ...”bem podia ser candeia...” demonstrando clara posição de que a

jurisprudência, no futuro, deveria seguir o mesmo exemplo não obstante da novidade das

questões. Contudo, esta anotação parece demonstrado um anseio isolado, pois o mesmo

tribunal não adoptou, no nosso caso, esta posição, deixando com isso de munir com azeite

a sua própria candeia.

No que tange à posição do STJ, esta fica bastante arreigada às concepções

tradicionalistas, como o próprio as apelida.

Em bom rigor, não se poderá qualificar como existindo uma posição tradicionalista

em contraposição com uma posição inovadora, dado que são duas visões e

fundamentações diferentes relativamente a realidades também elas assimétricas. É errado,

no nosso entendimento, falar em evolução doutrino-jurisprudencial porque ambas as

posições são diferentes e continuam a sê-lo, - em nada se confundem -, e mais ainda, não

se pode afirmar que a nova posição venha suplantar a antiga.

Mas vejamos. A lesada não vem invocar um dano reflexo, pelo que a suposta

posição tradicional que anteriormente se invocava para negar fundamento continua a ser

válida e predominantemente aceite pela Doutrina e Jurisprudência. Esta posição, no fundo,

é a relatada nos argumentos que a Seguradora invocou, como já se referiu supra.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 29

O que a lesante vem é invocar um direito próprio pelo que se trata de outra

fundamentação/visão diversa, mantendo-se, assim, imutável e actual- por ser correcta- a

suposta posição tradicional, que em nada se mistura com a suposta teoria inovadora.

Mas, afinal, o que é que a jurisprudência apelida de Doutrina Tradicional?

No fundo é a que interpreta à letra o artigo 496º do CC. Ou seja, esta doutrina só

reconhece como ressarcíveis os danos sofridos reflexamente por terceiros em caso de morte

do lesado directamente.

Muitas interpretações e querelas surgiram na Doutrina quanto á interpretação deste

artigo.(19)

Ao invés, há outra franja da Doutrina e da Jurisprudência, nomeadamente

AMÉRICO MARCELINO(20), que defende que o critério que releva é a gravidade do dano

não patrimonial sofrido, por ricochete, pelos terceiros lesados. Id est, defende este autor,

que por maioria, ou pelo menos por identidade de razão, deverão as pessoas previstas no

art. 496º, nº2 serem compensadas, mesmo que o lesado directo não vier a falecer, sempre

que tenham sofrido um dano grave.

Apesar de merecer aplauso a intenção de corrigir a visão puramente positivista do

art. 496º, em nome de uma maior justiça e equidade, é difícil de conciliar esta posição com

a nossa ordem jurídica. Em primeiro lugar, porque a restrição que o art. 496º impõe aos

terceiros lesados (reflexamente), ou seja de só serem indemnizados em caso de morte do (19) O Ac. Do STJ cita muitos autores que defendem que os lesados reflexamente também tinham direito a indemnização. Neste sentido, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, VAZ SERRA, RIBEIRO DE FARIA, AMÉRICO MARCELINO. Cita com especial incidência o Dr. A. Abrantes Geraldes, « “são ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões da natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do art.496º, nº1 do CC, designadamente quando fique gravemente prejudicado na sua relação com o lesado...”» , « Tal direito deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº2 do art.496º.», « ...os danos não patrimoniais sofridos pelos cônjuges e familiares próximos das vítimas, são, não raras vezes, de bem maior intensidade do que estes suportam-» É frequente, estes autores, citarem o exemplo de um pai que vê o seu filho ficar bastante defeituoso devido a acidente, feito num “ frangalho ou perenemente amarrado a um carrinho de rodas” para realçarem a injustiça de não ser alargado a estes pais o direito a uma compensação se os tribunais interpretarem literalmente o art. 496º do CC. Ainda no que respeita a idênticas situações há um Ac. do STJ, de 13-1-70, citado por AMÉRICO MARCELINO, in Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, págs. 381 que ilustra lucidamente a posição cautelosa da jurisprudência e que vai ao encontro da Doutrina dominante, « Evidente é que o desgosto pelo aleijão se repercute no pai mas também se repercutirá na mãe, nos irmãos e mais parentes. Todavia, a lei não permite atender a tal repercussão... Só no caso de o lesado falecer é que a lei manda indemnizar por danos morais os parentes do ofendido, e não todos...» Um caso semelhante, é o que contém o Ac. do STJ, publicado no BMJ, nº481 (1998), em que uma criança ficou bastante desfigurada e os pais foram compensados, embora por direito próprio pois os seus direitos de personalidade de paternidade e maternidade foram violados. O que vem reforçar a ideia que não há posições inovadoras e tradicionais. Pois se viessem exigir compensação por danos que reflexamente os tivessem atingido, a mesma seria de imediato recusada. O que começa a surgir, como é exemplo o nosso caso, são novos caminhos - leia-se fundamentações e visões – que os lesados passaram a explorar fazendo-se valer dos seus esquecidos direitos de personalidade. Portanto não se pode inovar o que são duas visões diferentes. O que foi inovador- e isso pode-se afirmar- é a actual fundamentação em direitos próprios que os lesados estão a invocar. (20) Neste sentido, AMÉRICO MARCELINO, Ob. Cit., págs. 379 e segs.

30 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

lesado directamente, foi feita de forma deliberada e consciente pelo legislador, que na

época reprovou – nos trabalhos preparatórios do Código Civil – a tese, em sentido

contrário, do ilustre Prof. Doutor VAZ SERRA. Não há assim qualquer obscuridade ou

ambiguidade na letra da lei, para que a Doutrina alargue - contra o pensamento do

legislador (art.9º do CC) - a obrigação de compensação aos reflexamente lesados com

gravidade, porquanto se extravasará, desta feita, o princípio da separação dos poderes,

pois uma interpretação, assim, tão extensiva iria invadir o campo da competência

legislativa.(21)

Além do argumento supra referido, convém vincar que a regra geral é a de que só o

directamente lesado deve ser compensado. Assim, é já uma excepção, que o legislador

tenha previsto expressamente, a possibilidade de em caso de morte os terceiros lesados

serem compensados por ricochete em vez do malogrado directamente lesado. O que afasta,

desde logo, que o nº2 do art. 496º possa comportar aplicação analógica, porquanto, como

dispõe o art. 11º do CC, «As normas excepcionais não comportam aplicação

analógica(...)»(22).

Ainda que a lesada invocasse – o que não o fez – um direito reflexamente violado,

mesmo assim, como acabámos de ver, teria uma parte da Doutrina a apoiá-la. Contudo, no

nosso modesto entendimento, um Aresto nesse sentido iria muito além da ratio legis que o

legislador quis consagrar no artigo 496º do CC.

Mas coloquemos as querelas de parte.

A lesada limitou-se, tão só, a invocar legitimamente a violação de um direito de

personalidade (próprio), não usando, assim, a construção jurídica que acabámos de expor.

Ou seja, utilizou apenas uma fundamentação há muito prevista no Código Civil que nada

tem de vanguardista. A única novidade que começa a despertar é a consciência da enorme

panóplia de direitos de personalidade que a C.R.P. contém e que são abarcados pelo artigo

70º do C.C., graças à interpretação que é feita pelo artigo 9º do mesmo diploma que manda

atender à evolução do tempo e dos valores da sociedade, em constante mutação. É, por

isso, com alguma estranheza que nos deparamos com a fundamentação do Acórdão do

S.T.J. que dedica a sua quase totalidade na explicação da doutrina preconizada por Vaz

Serra (e seus pares), quando esta nem sequer está na base da construção jurídica

apresentada pela apelante. Esta nunca mencionou qualquer interpretação extensiva ou

analógica do art.496º do C.C.. Aliás, o próprio STJ reconhece a oito linhas do final do

(21) Neste sentido Ac. do STJ, já citado, publicado em www.dgsi.pt/nstj, proc. O3B4298, nº convencional:JSTJ000, Relator: Duarte Soares, de 26/02/2002. (22) Neste sentido Ac. do STJ, publicado no BMJ, nº481 (1998), pág.478.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 31

Acórdão que o que a lesada invoca são danos próprios e não indirectos, mas logo conclui

apressadamente, em apenas cinco esparsas linhas, que o dano sofrido pela apelante é um

dano reflexo do seu cônjuge, pelo que não se deve alargar o âmbito da aplicação do

art.496º. É caso para dizer que aos “alhos” pedidos pela apelante o STJ responde com

“bugalhos”. A lesada fala em direito de personalidade e é-lhe respondido que não deve ser

alargado o âmbito do art.496º do CC.

Mantendo a coerência com a posição demonstrada no título (23) anterior a apelante terá

direito a ser compensada pelo dano sofrido uma vez que se encontram preenchidos,

relativamente a si, todos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos e a acção

parece ter sido tempestiva.

3- Responsabilidade do Comitente

Com o intuito de uma maior facilidade de exposição das ideias, neste estudo, nos

títulos anteriores, não se dissociou, a figura do condutor/lesante que causou o sinistro das

demais pessoas(24) que estão, em princípio, sujeitas à obrigação de compensar a lesada

pelo dano que sofreu. Esta obrigação advém da indemnização(25) que, por ser fonte de

obrigações atribui à lesada um direito de crédito sobre aquelas pessoas.

Durante a análise do Acórdão, conseguida até aqui, sempre se olvidou,

propositadamente, o facto de o condutor que originou o acidente, conduzir um veículo que

era propriedade da Sociedade Sousa & Santos, Lda, e que portanto não lhe pertencia.

Este dado da matéria de facto acarreta novas considerações jurídicas que só agora

importam indagar, porque antes de nos prendermos com as questões específicas que agora

nos vão ocupar, era imperioso, antes demais, saber se o condutor corria em

responsabilidade, ou se, pelo contrário, dela estava ilibado. Depois de apurar isoladamente

a responsabilidade do lesante, esta vai servir de medida para que outras pessoas respondam

com ele - ou em vez dele - no cumprimento da obrigação de indemnização.

Sendo, como se viu, o condutor juridicamente responsável pelo dano que causou

iremos procurar encontrar, quais as pessoas que a lesada pode accionar, em abstracto, para

(23) Título que se reporta à análise dos requisitos da responsabilidade extracontratual civil por factos ilícitos. (24) Está-se a falar de pessoas singulares, como o comitente ou detentor do veículo, e de pessoas colectivas como a Seguradora. Também o comitente e o detentor do veículo podem ser pessoas colectivas, mas as seguradoras não podem ser pessoas singulares. (25)Refiro-me a indemnização em latus sensus, ou seja num sentido em que abarque a compensação, que é o que está em causa no nosso caso.

32 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

a compensarem do dano que sofreu. Será, como se disse, apenas uma análise em abstracto,

uma vez que os únicos dados que possuímos são aqueles que resultam da matéria de facto,

sumariamente descrita no Ac. da Relação, pelo que é manifestamente impossível apontar

numa direcção concreta e definida para o caso que nos vem ocupando.

Com efeito, o facto de o condutor conduzir um veículo que pertencia a uma

sociedade (pessoa colectiva), faz emergir, prontamente, a hipótese de se estar perante uma

relação de comissão.

A responsabilidade do comitente é uma das formas de responsabilidade pelo risco e

vem regulada no art.500º do CC.

Para haver responsabilidade do comitente pelos actos do seu comissário é

necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: I - existência de

uma relação de comissão;(26)(27) II – recair sobre o comissário a obrigação de

indemnizar(28); III – prática do facto danoso no exercício da função confiada.(29)

Partir-se-á do princípio - dado a escassez de elementos de facto - que estes três

requisitos estão preenchidos. A ser assim, a lesada poderia accionar directamente o

comitente pelo acto culposo do seu comissário, que no nosso caso era o condutor causador

do sinistro.

A figura do comitente surge na nossa ordem jurídica como um garante(30) da

compensação devida aos terceiros lesados da actos dos seus comissários. Destarte, e em

jeito de conclusão, a lesada, tinha a faculdade de intentar acção directamente contra o

condutor/comissário (acção principal), com fundamento no art. 483º do CC, ou então, se

assim o entendesse (se pretender uma garantia patrimonial mais forte), directamente contra

o comitente (acção acessória)(31), com fundamento no art.500º, respondendo este na

mesma medida em que responderia o comissário.

(26) Não é objecto deste estudo a destrinça pormenorizada e detalhada de cada requisito para saber se, no nosso caso, verdadeiramente se está perante uma relação de comissão. A hipótese de haver uma comissão apenas se coloca para melhor complemento deste trabalho pois há indícios dessa relação se verificar. (27) In ANTUNES VARELA, Ob. Cit., pág. 515 a 518; ALMEIDA COSTA, , Ob. Cit., pág. 497 A 478; ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, in Código Civil Anotado, na anotação ao art. 500º e AMÉRICO MARCELINO, Acidentes De Viação E Responsabilidade Civil, pág.197 e sgs. (28) In ANTUNES VARELA, Ob. Cit., pág.519 a520; ALMEIDA COSTA, Ob. Cit., pág.498 a 499. (29) In ANTUNES VARELA, Ob. Cit., pág. 518 a 519; ALMEIDA COSTA, Ob. Cit., pág.500. (30) Esta posição de garante advém de o comitente se servir do comissário para realizar tarefas no seu interesse e sob a sua direcção, funcionando como uma longa manus do comitente; e por outro lado é justo que a insuficiência do património do comissário- que trabalha por conta doutrem – recaia sobre quem o escolheu e dele retira vantagens de actividade alheia no seu interesse – ubi commoda ibi incommoda - deve suportar os prejuízos correlativos. (31) Diz-se acessória apenas porque ao comitente aproveitam os meios de defesa do comissário. Contudo, pode-se accionar directamente o comitente não sendo necessário intentar acção prévia ou simultânea contra o comissário. Neste sentido ANTUNES VARELA, ob. Cit., pág. 515, nota de rodapé nº3.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 33

Para que o comitente responda objectivamente, como acabámos de ver, é necessário

que em relação ao comissário estejam cumpridos os requisitos do art. 483º, ou seja, o

comissário/lesante tem que responder com culpa.

Apesar da responsabilidade do comitente, prevista no art.500º do CC, ser objectiva

não são aplicados ao comitente os limites do art. 508º, pois a ratio deste artigo é garantir

(função de garantia) à lesada a indemnização que o comissário estaria obrigado a

satisfazer.(32) Ora, sendo a responsabilidade do comissário baseada na culpa não pode o

comitente beneficiar daqueles limites.

Após ter exercido a sua função de garante o comitente, caso não tenha tido conduta

culposa, pode exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, como dispõe o

nº3 do art. 500º do CC, através do direito de regresso que funciona no seio das relações

internas comitente/comissário.

No nosso caso, é forte a grande a possibilidade de estarmos perante o que o Prof.

Doutor ANTUNES VARELA chamava de duplo fundamento(33) na responsabilidade do

comitente.

Dizia este ilustre autor que havia um duplo fundamento sempre que houvesse culpa do

condutor/comissário, pois o comitente/detentor era chamado a responder:

i) como comitente - como acabámos de analisar, e também

ii) como detentor do veículo – É o que iremos procurar esmiuçar no título seguinte.

(32) Poder-se-ia criar outra hipótese fruto da nossa falta de factos, como seria o caso de haver concorrência de culpas entre o comissário(483º) e o comitente (que então responderia subjectivamente) pela culpa in eligendo; culpa in instruendo ou pela culpa in vigilando levando ambos a responderem solidariamente na proporção das devidas culpas. (33) Neste sentido ANTUNES VARELA, Ob. Cit., pág. 533 e sgs e Código Civil Anotado, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, em anotação ao art.503º e AMÉRICO MARCELINO, ob. cit. pág. 295 citando o Prof. Doutor VAZ SERRA. O facto da haver duplo fundamento não leva a que o comitente responda com base em ambos fundamentos. Só vai responder uma vez pelo fundamento que a lesada decidir accionar. Contudo, convém fazer alusão às duas diferentes fundamentações legais na Petição Inicial, porquanto se se enveredar apenar por uma delas, e o réu conseguir alguma causa de exclusão, haverá lugar à absolvição do pedido gorando as expectativas da lesada.

34 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

4- Responsabilidade pelo Risco

A responsabilidade objectiva tende a realizar a ideia de socialização do risco. A

responsabilidade pelo risco representa a mais importante e vasta categoria de hipóteses de

responsabilidade objectiva e funda-se na teoria do risco cuja pedra angular assenta na ideia

de que aquele que exerce uma actividade criadora de perigos especiais deve responder

pelos danos, advindos dessa actividade, que ocasione a terceiros, independentemente de

culpa, dado que retira partido da actividade perigosa. Funciona como uma contrapartida

social, que o beneficiário tem de suportar em virtude de exercer actividade perigosa, ainda

que lícita (socialmente útil ou pelo menos não reprovada pela sociedade). É o caso da

condução de veículos automóveis prevista no art. 503º e sgs. do Cód. Civil.

Poderia então, à primeira vista, parecer estranho que a apelante, enquanto autora,

não tivesse deduzido o seu pedido cível, nem articulado os factos e pedido, de acordo com

a responsabilidade pelo risco, já que desta forma, o condutor responderia sempre

independentemente de culpa.(34) No entanto, há uma maior preferência pela

responsabilidade por factos ilícitos em detrimento da responsabilidade objectiva, porque

assim os montantes da indemnização não ficam sujeitos aos limites máximos do artigo

508º do C.C. Estes limites derivam do princípio da justiça, pois seria injusto que alguém

respondesse objectivamente, id est sem culpa, de forma ilimitada pelos danos que deu

causa. A este respeito, surgiram grandes querelas na doutrina e jurisprudência, relativas aos

limites dos arts. 508º do CC e 6º do D.L. 522/85, mas que agora, parece pacífico considerar

aquele artigo foi parcialmente revogado de forma tácita (arts. 9º, nº1 e 7º, nº2 do CC), pelo

último, valendo assim os limites do art. 6º do D.L 522/85, com a redacção é do D.L 3/96,

de 25 de Janeiro. Não seria justo considerar o artigo revogado na sua totalidade, pois isso

acarretaria o fim da diferenciação da responsabilidade objectiva da subjectiva, o que

levaria o lesante a ser condenado a ressarcir integralmente os danos mesmo que não tivesse

culpa( 53). À apelante interessa provar a culpa para que o condutor, ou melhor a

Seguradora, - pois havia contrato de seguro válido e eficaz à data do sinistro- responda

(34) Responde sempre independentemente de culpa, salvo se houver culpa da lesada. Como ensina o Prof. Doutor CALVÃO DA SILVA, na Anotação ao Acórdão do STJ de 1 de Março de 2001, publicada na RLJ, nºs 3924 e 3925 págs. 102 e segs, - Esta responsabilidade só é afastada quando o acidente for provocado unicamente pelo próprio lesado ou a terceiro, ou pelas situações doa art. 505º do CC.. No entanto, no nosso caso a questão não se coloca pois a lesada não teve qualquer influência no sinistro. (53) Neste sentido, ALBUQUERQUE MATOS, in BFD 77 (2001), pág.402 e sgs., Anotação de CALVÃO DA SILVA ao Acórdão do STJ de 1 de Março de 2001, publicada na RLJ, nºs 3924 e 3925 págs. 102 e segs e AMÉRICO MARCELINO, Ob. Cit., págs. 616 a 619.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 35

ilimitadamente, na medida dessa culpa pelos danos que causou, beneficiando apenas da

redução prevista no artigo 494º do CC.

A finalizar o título anterior, e em jeito de introdução do presente, falou-se em duplo

fundamento da responsabilidade civil do comitente(54). Isto acontece porque a Sociedade

Sousa & Santos, Lda além de poder ser demandada, pela apelante, para responder nos

termos da art. 500º do C.C., como já vimos em tempo oportuno, pode também responder à

luz do preceituado no art. 503º, nº1 do C.C.. Esta é, contudo, uma conclusão baseada no

campo teórico das hipóteses, uma vez que há uma acentuada escassez de elementos

fácticos do nosso caso. Por essa razão não se pode afirmar com segurança que a empresa

citada tivesse a direcção efectiva e utilizasse o veículo no próprio interesse(55)(56) embora

haja essa forte possibilidade. A escolha da fundamentação com que a Sociedade irá

responder não é inocente por parte da apelante: Pois se responder pelo art. 503º, nº1 irá

beneficiar dos limites do art.508º, se pelo contrário responder pelo art. 500º, nº 3 não

beneficiará desses limites sendo, por isso, o montante da indemnização atribuída à

apelante, em abstracto, superior.

Esta exposição, que ora terminámos, diz respeito ao comitente ou aquele que tem a

direcção efectiva do veículo. Pelo contrário o artigo 503º, nº3 tem a sua ratio dirigida ao

condutor/comissário. Como se viu é do nosso entendimento que o lesante responde

civilmente pelos danos que causou à luz do art. 483º do C.C., ou seja, através de culpa

provada. No entanto, se a lesada não conseguisse provar a culpa do lesante/condutor, como

impõe o art. 342º, nº1 do C.C., este seria absolvido do pedido. Por isso, a apelante aquando

da elaboração da sua Petição Inicial, à cautela, deveria fazer menção ao nº3 do art. 503º,

pois caso não fosse provada a culpa do lesante, o mesmo responderia pelo risco. Este artigo

contém uma presunção de culpa que recai sobre o condutor/lesante uma vez que este, por

conduzir um veículo por conta de outrem, responderá sempre pelos danos que causar, salvo

se provar que não teve culpa. Existe, assim, uma presunção que inverte o ónus da prova

(344º, nº1 do C.C.), pelo que agora é o condutor que vai ter que ilidir a sua culpa (57), caso

(54) Supra página 30 e nota 51. (55) Não se irá analisar pormenorizadamente os requisitos do artigo 503º do C.C., uma vez que não dispomos de factos suficientes para encontrar a solução concreta para os autos. Ao fazê-lo estar-se-ia a criar hipóteses sobre hipóteses o que acarretaria uma prolixidade desmedida. Limitamo-nos tão só a expor algumas hipóteses que com probabilidade possam existir no nosso caso, procurando deste modo, indicar as soluções que a apelante poderá escolher, mas sem a profundidade do conhecimento da realidade fáctica concreta. (56) Esta matéria consta pormenorizadamente nos manuais de ANTUNES VARELA, Ob. Cit., págs.529 e sgs. ALMEIDA COSTA, Ob. Cit., págs.505 e sgs e no Cód. Civil Anotado, pelos Profs. ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, in anotação ao art.503º do C.C. (57) Sempre que existe uma colisão entre dois veículos e não for possível apurar a culpa de nenhum, e se um deles for um condutor comissário, é sobre ele que irá recair a presunção de culpa como dispõem o art. 503º, nº3. Se o comissário não conseguir ilidir a presunção que sobre ele impende responderá com base nela.

36 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

contrário responderá subjectivamente através de culpa presumida, que o coloca numa

posição agravada, mas que contudo não é ainda uma responsabilidade objectiva. A lei não

distingue o tratamento do condutor em responder por culpa provada ou presumida, pelo

que, se remete para o que já se demonstrou supra, e também no título anterior,

nomeadamente quanto à fundamentação com duplo fundamento e à responsabilidade

solidária.

Para finalizar, resta a hipótese prevista no nº3, in fine, do art. 503º, de o condutor

conduzir o veículo fora das funções de comissão. Percebe-se bem a ratio legis deste artigo,

uma vez foi com o intuito de realizar o fim (leia-se o objectivo da relação de comissão)

que levou que o condutor utilizasse o veículo no interesse do detentor do

veículo/comitente. Se o comissário/condutor extravasa esse fim já não há razões para o

comitente responder, pois não se verifica nesse caso o ubi commoda ibi incommoda para

este responda objectivamente. Deverá por isso ser o condutor a assumir o risco (responder

objectivamente) da utilização do veículo no seu próprio interesse e da direcção efectiva do

veículo pois passa a gozar ou usufruir “as vantagens dele, e a quem, por essa razão,

especialmente cabe controlar o seu funcionamento”.(sic. Ac. S.T.J., 12 de Julho de 1979,

no B.M.J., nº289, pág.298 e sgs.)

Por outro lado, se o condutor conduzir fora das sua funções de comissário e causar

culposamente um sinistro, responde ao seu lado – por ser responsabilidade subjectiva (483º

do C.C.)-, o comitente/detentor do veículo com duplo fundamento á luz dos dispostos nos

artigos 500º e 503º, nº1, ambos do C.C..

O Comissário está numa posição agravada que se justifica na douta opinião do S.T.J., expressa no Assento nº7/94, de 28-04-1994, D.R. – I Série-A, porquanto, de uma maneira geral os condutores por conta de outrem, por se tratarem de condutores profissionais tem de ter deveres especiais de diligência, pois a omissão destes causará perigo a terceiros. Além disso utilizam veículos que sofrem um grande desgaste, e por isso mais propensos a acidentes de viação. Por norma os comissários conduzem em longos períodos de tempo, onde a fadiga e o cansaço são maiores. São, portanto, vários os conjuntos de factores que obrigam os comissários a ter um dever de cautela acrescido, até porque o facto de serem condutores profissionais exige uma maior perícia e diligência da sua parte. AMÉRICO AMRCELINO, in Ob. Cit. Pág. 310 diz ” tratando-se de um preceito todo dirigido especialmente à circulação rodoviária, é lógico que alerte duma forma especial quem mais directamente está em contacto com a máquina: o condutor.” Este Assento termina, com o S.T.J afirmar que os limites do art. 508º não são de aplicar ao art. 503º, nº3,

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 37

5- Contrato de Seguro Automóvel

Como resulta dos autos, a apelante intentou acção declarativa sob a forma de

processo ordinário directamente contra a Companhia de Seguros Mundial Confiança, S.A.

Já analisámos que quem cometeu o dano foi o condutor, sendo por isso, em

primeira linha, ele o responsável para ressarcir a lesada dos danos que sofreu. Contudo, a

condução de veículos automóveis está sujeita a seguro obrigatório(35) dada a natureza de

actividade perigosa e potencialmente causadora de danos - quer patrimoniais, quer não

patrimoniais - muito graves, cujos montantes indemnizatórios assumem, por vezes, valores

astronómicos que poderiam hipotecar para sempre o futuro de qualquer pessoa sobre a qual

recaísse a obrigação de indemnizar. Por esta razão existe o seguro obrigatório que visa, por

um lado, evitar a esvaziamento do património do sujeito passivo da indemnização, e por

outro lado, garantir ao sujeito activo da indemnização uma massa patrimonial certa e

exigível para o ressarcir da violação dos seus direitos.(36)

O contrato de seguro(37) automóvel é o meio adequado para o segurado transferir,

por via contratual, para a seguradora a obrigação de indemnizar - quer se trate de

responsabilidade subjectiva, quer objectiva - pelos danos que causar advindos de acidente

de viação (sinistro).

Parece resultar dos autos que o seguro à data dos sinistro era válido e eficaz pelo

que a responsabilidade havia sido transferida correctamente para a seguradora Mundial

Confiança.

Tudo indica que sendo a Sociedade Sousa & Santos, Lda proprietária do veículo

automóvel de matricula 62-74-MC, conduzido pelo lesante, terá sido esta a celebrar o

contrato de seguro com a Seguradora, pois a obrigação de segurar é uma obrigação legal

que impende sobre o proprietário do veículo (art. 2º, nº1 do D.L.522/85).

O contrato de seguro tem natureza pessoal, uma vez que a obrigação de

indemnizar recai sobre uma pessoa concreta. Aliás o artigo 1º, nº1 do D.L 522/85 diz

“Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos(...)”.

(35) Regulado pelo Decreto lei 522/85, de 31 de Dezembro. (36) Neste sentido, HENRICH EWALD HORSTER, ob. cit., pág. 75 “Protecção contra os encargos em consequência de danos causados a outrem oferecem-na os seguros, sempre indicados quando os riscos danosos não podem ser suportados individualmente, sendo eles em parte obrigatórios (p. ex. o seguro automóvel) para preservar o lesante de indemnizações que ultrapassam as suas capacidades económicas (...)” o que significa “(...) uma colectivização dos danos –e da responsabilidade, deixando esta de ser individual.” (37) O contrato de seguro automóvel é aleatório (depende de facto futuro e incerto), sinalagmático (gera obrigações para o tomador e para a seguradora), formal (derroga o princípio da consensualidade expresso no art.219º do CC), oneroso e de adesão.

38 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Contudo, os efeitos do contrato de seguro não abrangem apenas o tomador que é parte no

contrato com a seguradora, como demonstra o artigo 8º, do já citado Diploma. Aliás, o nº1

desse artigo prevê expressamente a possibilidade de a seguradora responder pelos danos

causados pelo condutor do veículo, que não tem, necessariamente, que ser o tomador do

seguro. Deste modo os danos provenientes da condução do lesante/comissário, nos autos

objecto deste estudo, estão cobertos pelo seguro automóvel celebrado entre o comitente e a

seguradora.

No nosso caso, a acção foi intentada apenas contra a Seguradora dado que o valor

peticionado como indemnização, pela apelante, era inferior ao limite do valor do seguro

obrigatório (arts. 29º, nº1, al.a e 6º, nº1 do D.L. 522/85).

A novidade da questão e a extrema complexidade em mensurar o dano invocado

não nos permite – nem é nossa intenção fazê-lo – avaliar sobre a razoabilidade do pedido.

Contudo, parece difícil que o dano da violação do direito à sexualidade possa alguma vez

ser superior a € 150.000 (que já parece, de per si, ser bastante excessivo); caso contrário,

qual seria o valor da indemnização a atribuir ao marido da apelante que ficou privado do

seu direito à sexualidade (ou melhor da sua liberdade sexual, dado que o seu impedimento

sexual é absoluto), para todo o sempre, quer dentro, quer fora (caso se viesse a divorciar)

do seu matrimónio?!

Sendo o valor do pedido de indemnização inferior a € 600.000 não se pode

demandar conjuntamente com a seguradora, o condutor/lesante, o comitente, ou o detentor

do veículo (figuras que observámos nos títulos supra 1.4 e 1.5). Já o inverso aconteceria se

aquele valor fosse extrapolado, como aliás, resulta da al.b) do artigo 29º, nº1 do Decreto

Lei amiúde referido.

Como já tivemos ocasião de referir, as regras do Código Civil são indispensáveis para

se apurar quem é juridicamente responsável pelos danos. Mas não servem só para esse fim.

O seguro automóvel não é incompatível com o artigo 500º apesar de ambos terem a mesma

finalidade. Continuando assim, este preceito legal, perfeitamente actual, dado que a sua

ratio legis é fazer com que o comitente - com o seu património - sirva de garante (tal como

o contrato de seguro) ao lesado, para o ressarcir dos danos provocados pelo seu

comissário, que via de regra é mais desfavorecido economicamente.

Se é certo que o seguro automóvel também tem o mesmo escopo, no entanto, só

realiza parcialmente essa pretensão de garantia (até € 600.000), sendo que se o responsável

civil responder com culpa, o valor da indemnização poderá extrapolar o valor do capital

mínimo obrigatório. É aqui, na parte do montante da indemnização que extravasa os €

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 39

600.000, que o comitente volta a exercer a sua função de garante para bom grado do

terceiro lesado. Neste caso, vale o que se disse no título 3 quanto ao direito de regresso

caso não haja responsabilidade solidária devido a culpa do comitente.

Estas são algumas das breves considerações que se acharam pertinentes fazer, dado a

grande incerteza e novidade do dano peticionado. Contudo, reafirma-se, que é ínfima a

probabilidade de futuro em casos semelhantes algum lesado ouse pedir um valor

indemnizatório superior aos € 600.000.

Para finalizar, no nosso caso, responderá apenas a seguradora na medida da culpa do

condutor/lesante.

40 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Considerações Finais

Os autos que procurámos analisar causaram alguma divergência na jurisprudência,

mormente no que respeita ao S.T.J. e à Relação (em particular do Porto). É, de facto, uma

matéria que não é pacífica nem unânime, quer na doutrina, quer nos tribunais. Estamos a

falar de terceiros lesados que vendo os seus direitos próprios directamente violados, com

gravidade, accionam os meios de tutela reconstitutivos.

É nosso entender que não se deva falar, em bom rigor, de doutrina inovadora, como se

procurou demonstrar no título 2. Contudo, pondo de parte a exegese jurídica, o avanço e a

conquista de um espaço próprio na nossa ordem jurídica, por parte desta doutrina, causará

grande sobrecarga e prejuízo ao sector dos Seguros, que - a par da Banca e da Bolsa

constituem um núcleo nevrálgico da nossa economia - se rege por normas apertadas de

supervisão que transparecem todo o interesse público destes mercados. Aliás, estes três

mercados têm vindo cada vez mais a interpenetrar-se mutuamente, e assim invadirem

espaços anteriormente estanques, mas que agora se confundem, através dos fenómenos

bancassurance, assurbanque e assurfinance. Isto, apesar de no últimos dias ser ter

assistido ao divórcio entre o Grupo BCP as suas seguradoras.

A novidade destas questões poderá apanhar as seguradoras(38) desprevenidas, o que

seria preocupante porquanto a sobrevivência das seguradoras consiste sobretudo em prever

os riscos/áleas através de cálculos complexos que se baseiam nos sinistros e demais

circunstâncias pertinentes transitadas dos anos anteriores.(39)

Se esta doutrina criar raízes sólidas as seguradoras ver-se-ão na obrigação de

indemnizar os lesados directamente afectados e também os terceiros lesados directamente

nos seus direitos próprios, o que leva a que um facto ilícito acarrete obrigações em

catadupa, sobrecarregando de sobremaneira as seguradoras. Sendo que, as situações

relativas aos terceiros lesados, fundamentadas em direitos de personalidade, podem dizer

respeito a uma infinidade de situações, que nem sempre são previstas pelas seguradoras,

obrigando-as a deterem um maior quantidade de capitais de reserva, destinado a fazer face,

de imediato, a situações imprevisíveis.(40) Uma das soluções passaria por aumentar os

(38) Falamos das seguradoras que operam no ramo não vida, porque são essas que respondem através da responsabilidade civil. (39) Supra nota 4. (40) Estamos numa época de transformação no sector económico dos seguros, por isso não seria nada benéfico surgirem situações imprevistas para as seguradoras. Transformações que dizem respeito aos movimentos de fusões e aquisições (favorecidos devido à pequena dimensão do território e o consequente problema das seguradoras em conseguir uma escala mínima) e à necessidade (como disse o Dr. Rui Leão

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 41

prémios de seguro. Outra, seria a titularização dos ditos prémios de seguros, de acordo

com o preceituado no art. 4º, nº5 do D.L. 303/2003, de 5 de Dezembro, o que permitiria

realização imediata de liquidez (evitando, com isto, aumentos de capital ou de reservas, ou

mesmo recurso a crédito). Claro, que no que respeita às Seguradoras, de um modo geral, os

seus prémios de seguros são sempre líquidos, e existem frequentes entradas de capital

quando a obrigação se vence. Contudo, reportamo-nos ao facto de haver necessidade

extrema de fundo de maneio para fazer face a obrigações imprevisíveis que sujam no

imediato. Neste caso, as Seguradoras poderão se servir do mecanismo previsto no nº3, do

art.4º do diploma, ora citado, e assim titularizar prémios de seguro futuros.

Apesar de se compreender que esta posição acarreta um fardo pesado sobre o sector

dos Seguros, indo criar, com isso, grandes cautelas nesta área da economia, contudo do

ponto de vista jurídico esta doutrina merece forte aplauso, porquanto encara os direitos de

personalidade, pertencentes aos terceiros lesados, como verdadeiros direitos absolutos

com efeitos erga omnes, cuja violação provoca, danos não patrimoniais graves que

deverão ser indemnizados (art.496º, nº1 do CC). Não se tratam de terceiros que invocam

danos reflexos provindos da violação do direito do directamente lesado pelo sinistro, mas

que pelo contrário fundamentam o seu pedido de indemnização em direitos próprios.

Assim, temos o exemplo do Acórdão do STJ, anteriormente citado, de 25 de Novembro de

1998, que atribuiu indemnização a uma criança, enquanto directamente lesada na sua

integridade física, bem como aos seus pais, enquanto titulares de um direito absoluto de

paternidade, direito aliás que decorre do art. 68º, n.º1 da Constituição da Republica

Portuguesa: um mesmo facto deu origem a duas obrigações de indemnização diferentes.

Com esta fundamentação, as indemnizações sucedem-se em catadupa ou em cascata.

Constituiria, sem dúvida, uma situação aflitiva para as seguradoras, porquanto os

direitos de personalidade são muito numerosos (veja-se a obra citada do Prof. Doutor

Capelo de Sousa) e estão presentes nas mais variadas situações da vida corrente. O único

travão que esta fundamentação sofre é o conceito indeterminado de gravidade, previsto no

art. 496º, n.º1 do CC. Contudo, a posição vanguardista perfilada sofreu um forte recuo no

nosso caso, pois o STJ entendeu que o dano sofrido pela apelante não era um dano directo,

e por isso não deveria ser compensada.

Martinho, no Colóquio Internacional da Instituição) de algumas empresas de aumentarem o seu capital para satisfazer os requisitos impostos pelas novas regras prudenciais para o sector segurador, conhecidas por Solvência II. Isto numa época, em que Denis Duverne, administrador do grupo Axa, afirma que no futuro próximo « existirá uma maior pressão dos mercados de capitais e dos reguladores sobre a capacidade de geração de valor», o que vai obrigar as companhias mais fracas a realizar mudanças na gestão ou serem alvo de aquisição.

42 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Sendo o STJ o órgão superior do poder judicial, que contribui para a pacificação da

ordem jurídica, pela sua independência e imparcialidade, está, sem dúvida, imune às

pressões dos grandes lobbies económicos. Mas tal não impede este tribunal de ser sensível

aos efeitos “bola de neve” que as suas decisões provocam, e do impacto que daí advêm.

Deste modo, a fixação e consolidação desta jurisprudência, a que nos temos reportado,

causariam forte abalo num dos importantes sectores da nossa economia, que nem as

normas prudênciais ou supervisão poderiam prever (no imediato). Poderá ter sido esta a

razão do recuo do STJ em relação à posição adoptada em 25 de Novembro de 1998.

Posto isto, e como nota final de tudo o que procuramos desenvolver neste trabalho,

fazendo a análise do ponto de vista estritamente jurídico (que não jurídico-económico da

B.B.S.), a fundamentação baseada nos direitos de personalidade parece ser, no que

respeita à exegese jurídica, inatacável, razão pela qual, no nosso entender, fosse de arbitrar,

no nosso caso, o direito à compensação (vulgo indemnização) por direito próprio à

apelante, pela violação do seu direito à sexualidade.

Já não aceitaríamos este resultado se a apelante viesse peticionar o ressarcimento dos

danos não patrimoniais nos termos do artigo 496º, nºs 1 e 2, lançando mão de uma

interpretação extensiva e analógica, como defendem os Drs. Américo Marcelino, Abrantes

Geraldes, Vaz Serra e Ribeiro de Faria, porque tal, como já demostramos oportunamente,

no nosso entender, iria muito para além da ratio legis do artigo 496º.

Este representa, salvo douta e melhor opinião, o nosso modesto entendimento.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 43

ANEXO

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

REVISTA

CONCEDIDA A REVISTA

I- A mulher casada com vítima de acidente de viação causador de lesões que provocaram

disfunção eréctil, não tem direito de reclamar, do responsável, indemnização por danos não

patrimoniais.

II- A decorrente impossibilidade do marido cumprir o débito conjugal não constitui, para o

respectivo cônjuge, dano directo do evento danoso mas apenas uma sua consequência mediata ou

indirecta.

III- O universo das pessoas não lesadas directamente com direito à indemnização por danos

morais são apenas as previstas na norma do nº. 2 do artº. 496º do CC e apenas no caso de morte

da vítima.

Não pode aplicar-se essa norma, extensivamente, ou por analogia, a outras situações para além

da morte da vítima porque a restrição em vigor constitui uma opção consciente do legislador.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A instaurou acção ordinária contra "Companhia de Seguros B" pedindo a condenação

desta a pagar-lhe uma indemnização de montante não inferior a € 150.000 com juros de mora

desde a citação, que é o valor dos danos não patrimoniais que sofreu em consequência de

acidente de viação entre os veículos MC, seguro na Ré, e o EL, conduzido por seu marido. O

acidente deveu-se a culpa exclusiva do condutor do MC e dele resultaram lesões para o seu

marido que ficou a padecer de disfunção sexual o que é causa de danos directos para si.

Contestou a Ré sustentando que os danos alegados não são indemnizáveis.

Logo no saneador, conhecendo de mérito, o Mmo. Juiz julgou a acção improcedente por

entender que os danos não patrimoniais sofridos por outrem que não o lesado, não são

indemnizáveis.

Conhecendo da apelação interposta pela A, a Relação do Porto julgou-a procedente

revogando o saneador sentença e ordenando o prosseguimento da acção.

Pede agora revista a Ré que, nas alegações, conclui assim:

44 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

1 - A responsabilidade civil invocada pressupõe a violação do direito da A ou de

norma legal destinada a proteger o seu interesse, o que não ocorre.

2 - A Autora não interveio no acidente pelo que não é lesada directa para efeitos de titular

um direito a indemnização.

3 - Os danos não patrimoniais reflexos, causados indirectamente pelo lesante a terceiros

apenas são indemnizáveis quando ocorra previsão legal o que não se verifica nesta hipótese.

Contra alegou a recorrida batendo-se pela confirmação do acórdão.

Foram colhidos os vistos. Cumpre decidir.

A 1ª instância, louvando-se nas normas dos artºs. 495º, nº. 2 e 3, e 496º, nº. 3, do CC,

e na jurisprudência largamente dominante e em amplos sectores da doutrina, decidiu, logo no

saneador, por julgar improcedente o pedido com o fundamento de que os factos alegados logo

demonstram que a Autora não sofreu danos directos com o acidente dos autos.

A Relação, por sua vez, configurando a situação da A, enquanto cônjuge da vítima directa

do acidente, como titular de um direito de personalidade no que concerne ao seu direito ao

exercício e uma sexualidade sã, concluiu que tal direito foi directamente violado pela conduta

danosa do segurado da R pois, do acidente resultou a incapacidade da vítima cumprir para

com a Autora um dos deveres essenciais que assumiu no casamento.

Não pode pôr-se em causa que numa situação como esta, bem como nos casos em que

ocorram lesões graves em acidentes, podem ser, e são-no frequentemente, muito graves os

danos colaterais suportadas por quem não sofreu o impacto directo da ofensa.

Mas é evidente o propósito do legislador no sentido de delimitar ou circunscrever o

âmbito dos titulares do direito a indemnização.

Tal propósito é o que se revela, a contrario, das referidas normas dos artºs. 495º, nº. 2, e

496º, nº. 3 do CC quando definem as pessoas, para além da vítima directa do acidente, com

direito à indemnização.

E, como foi dito, não tem havido divergências nas decisões judiciais que, de modo

praticamente uniforme, têm entendido que, por mais grave que seja o dano reflexamente

suportado, não há lugar a indemnização para além dos casos previstos naquelas normas.

No notável estudo com que participou na homenagem ao Professor Inocêncio Galvão

Telles, o Dr. António Abrantes Geraldes analisa, em profundidade, o tema da ressarcibilidade

dos danos não patrimoniais de terceiros em caso de lesão corporal (ed. LA Almedina 2003), e

concluiu que á luz do nosso direito positivo "são ressarcíveis os danos não patrimoniais

suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza

física ou psíquica graves, nos termos gerais do artº. 496º, nº. 1 do CC, designadamente

quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 45

neste grave dependência ou perda de autonomia. Tal direito deve ser circunscrito às pessoas

indicadas no nº. 2 do artº. 496º.

No percurso que seguiu para chegar a esta conclusão, o autor considerou, em geral, a

realidade de todos conhecida de que, nas mais variadas circunstâncias, os danos não

patrimoniais sofridos pelos cônjuges e familiares próximos das vítimas, são, não raras vezes,

de bem maior intensidade do que o que estas suportam.

E no sentido do alargamento da norma de modo a abranger tais danos invocou a doutrina

de vários autores, designadamente a de Vaz Serra, Ribeiro de Faria e Américo Marcelino.

As razões que recomendam tal alargamento são de tal modo evidentes, relevando de

modo impressionante, os danos sofridos pelos pais de uma criança vítima de acidente que

ficou para sempre incapacitada com sequelas irreversíveis, psíquicas e físicas, que não é

razoável defender-se que o legislador não os previu.

Acresce, quanto a Vaz Serra - com participação activa nos trabalhos preparatórios do

Código Civil - que foi rejeitada a proposta que então formulou relativamente à norma em

questão que foi a de que (vide BMJ nº. 83 pgs. 96) no caso de dano que atinja uma pessoa de

modo diferente do previsto no 2º (morte) têm os familiares dele direito de satisfação pelo dano

a eles pessoalmente causado.

Não pode, assim, razoavelmente invocar-se, como já foi dito, a falta de previsão do

legislador quanto às situações que, fundadamente, reclamam o alargamento da aplicação da

norma.

A restrição que ela impõe foi, e é, uma opção consciente do legislador e, face aos

princípios gerais em matéria de interpretação da lei (artº. 9º do CC) que elegem como critério

último a reconstituição do pensamento do legislador, não estando sequer em causa uma

eventual obscuridade ou ambiguidade do texto normativo, não é legítimo alargar o campo da

sua aplicação nos termos pretendidos, sob pena de estarem os tribunais a invadir áreas que lhe

estão vedadas e de violarem o princípio constitucional da separação dos poderes.

É certo que o acórdão recorrido configura os danos cuja indemnização a Autora reclama

como danos próprios pois o invocado direito a uma sã sexualidade foi directamente atingido

pela conduta do segurado da R.

No entanto, sem embargo de se reconhecer que terá ficado comprometido o cumprimento,

pelo seu marido, de um relevante dever conjugal, há que reconhecer que, em rigor, o

correspondente direito da A só reflexamente terá sido atingido.

Conclui-se, pois, que não existem fundados motivos para alargar o âmbito da aplicação da

norma do artº. 396º do CC no sentido pretendido pela A pelo que procedem, no essencial, as

conclusões do recurso

46 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Nestes termos, concedendo a revista, revogam o douto acórdão recorrido para que prevaleça o

decidido na primeira instância.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2004

Duarte Soares

Ferreira Girão

Luís Fonseca (votei a decisão)

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 47

BIBLIOGRAFIA

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STJ de 1 de Março de 2001, publicada na RLJ;

- ALBUQUERQUE MATOS, in BFD 77 (2001);

48 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

Jurisprudência :

- Acórdão da Relação de Coimbra de 26 de Junho de 2003, publicado na Colectânea

de Jurisprudência, ano 2003, Tomo III. Pág. 200 e sgs;

- Acórdão do S.T.J de 26/06/2003 Ac. Do STJ, publicado em www.dgsi.pt/nstj, proc.

O3B4298, nº convencional:JSTJ000, Relator: Duarte Soares, de 26/02/2002;

- Acórdão do S.T.J de 25 de Novembro de 1998, publicado no BMJ, nº481, pág.470

e sgs;

- Acórdão do S.T.J de 17 de Dezembro de 1985, publicado no BMJ, nº352, pág.329 e

sgs;

- Acórdão do S.T.J de 21 de Março de 1995, publicado no BMJ, nº445, pág.488 e

sgs;

- Assento nº7/94 do S.T.J de 28 de Abril de 1994, publicado no Diário da República

– I Série- A, pág.2061;

Legislação :

- Código Civil Português;

- Constituição da República Portuguesa;

- Decreto –Lei nº522/85 de 31 de Dezembro;

- Decreto-Lei nº 303/2003, de 5 de Dezembro.

RICARDO AMARAL O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL : 49

POST SCRIPTUM

Como já tivemos oportunidade de referir, mormente na Nota Prévia, só após a

conclusão do presente trabalho tivemos conhecimento da recente obra(41) da autoria do

Prof. Doutor Duarte Pinheiro.

Trata-se de uma obra de estudo minucioso, detalhado e completo sobre o tema, a

que nos propusemos modestamente aflorar, relativo aos Acórdãos que constam neste

trabalho. Por esta razão, a alusão à nova tese de Doutoramento é imperativa, não só pela

profundidade das reflexões doutrinais, mas também porque o autor aborda directamente a

responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, quanto aos danos provocados por

terceiro que não respeita a obrigação erga omnes.

Desta feita, procederemos, quando necessário, a algumas citações que ilustrem o

pensamento deste autor sobre situações análogas ao nosso caso.(42)

Na obra, amiúde citada, o autor reserva o subtítulo denominado “A responsabilidade

delitual do terceiro por interferência na relação conjugal”(43) para expor a sua posição

sobre situações da vida e do direito, em tudo idênticas ao nosso caso. Iniciando a sua

dissertação baseando-se nas experiências Norte Americanas (E.U.A)(44) e Italianas até

chegar ao direito Português. É essencialmente sobre este último que nos ocuparemos de

seguida, sem mais, por razões pragmáticas.

Começa por dizer, em jeito de iniciação, o Prof. Doutor Duarte Pinheiro, que quando

um cônjuge falece, por acção de terceiro, a lei é clara em arbitrar ao cônjuge do malogrado,

ou outras pessoas posicionadas por grau de preferência, direito a indemnização, como

(41)Referimo-nos à tese de Doutoramento do Prof. Doutor Jorge Alberto Caras Altas Duarte Pinheiro, intitulada “O NÚCLEO INTANGÍVEL DA COMUNHÃO CONJUGAL – Os Deveres Conjugais Sexuais”, Almedina, datada de Julho de 2004. (42) Por “nosso caso” deverá entender-se o significado que atribuímos na nota 6 deste trabalho de Pós-Graduação. (43) Págs. 714 e sgs, sendo contudo, de analisar com especial incidência as págs. 729 e segs ob. cit.. (44) Nas pág. 734 e 734 é relatado uma decisão jurisprudêncial Norte Americana – Hitaffer v. Argone Co., Inc. – que atribui compensação à mulher de um trabalhador, que devido a acidente de trabalho ficou impossibilitado de ter relações sexuais. O trabalhador foi indemnizado directamente por acidente de trabalho – por direito próprio -, enquanto que a sua mulher foi compensada por “loss of consortim” (expressão que abarca a “perda de relações sexuais”- pág.733). Este exemplo serve para, mais um vez demonstrar, como já o fizemos na Nota Final – pág. 37- que os direitos de personalidade estão presentes nas mais variadas situações da vida, dado o seu grande raio de acção, que cobre uma infinidade de situações da vida corrente. Neste caso concreto falava-se em acidentes de trabalho.

50 : O DIREITO À SEXUALIDADE CONJUGAL VERBOJURIDICO

resulta dos arts. 496º, 2 e 3 do Código Civil. “Contudo, a lei não é tão explícita quanto aos

direitos que cabem aos familiares de uma pessoa vítima de lesão corporal. Assim sendo,

há que aplicar a regra geral: o terceiro incorre em responsabilidade civil se tiver violado

um direito que lhe era oponível.” (sic)

“Ora, o acto ilícito de terceiro que impossibilita uma pessoa casada de ter relações

sexuais viola direitos de duas pessoas que são eficazes erga omnes: o direito à integridade

física, de que é titular a “vítima principal”, e o direito de coabitação sexual, pertencente

ao cônjuge da vítima da lesão corporal. Ou seja, um único acto causa simultaneamente

dois danos indemnizáveis(...)(sic)”. “E o segundo é, tal como o primeiro, um dano

directo. A privação do direito conjugal de coabitação sexual de uma parte constitui um

efeito necessário da incapacidade sexual da outra parte, ocorrendo na mesma altura em

que se produz esta incapacidade.” (sic).(45)

Prossegue, ainda, o autor afirmando que para haver responsabilidade civil

extracontratual por factos ilícitos é necessário que haja culpa. E no que a isto respeita, para

que o terceiro/lesante responda perante o cônjuge do “lesado principal”, que vê seu direito

de sexualidade conjugal violado, não necessita, nem tem que saber, qual o estado civil

desta pessoa.(46) “É suficiente a prova do dolo ou negligência no plano do resultado.”( sic)

Seguido a linha de raciocínio do autor, até aqui exposta, concluímos que também no

nosso caso a apelante/lesada teria direito à compensação por violação do seu direito de

personalidade- direito à sexualidade conjugal.

No fundo, como podemos observar, a junção deste Post Scriptum serve para

consolidar, e enriquecer com maior rigor, tudo quanto se disse anteriormente, na

elaboração do trabalho, razão pela qual não se viu necessidade de reelaborar tudo de novo.

(45) Optamos pela transcrição fiel de parte do texto compaginado na pág.737 da ob. cit., porquanto a capacidade de síntese do Prof. Doutor Duarte Pinheiro, neste ponto é absolutamente notável, e porque uma adaptação do texto traria repetição desnecessária de fundamentos, já esgrimidos anteriormente, o que não se pretende neste Post Scriptum. (46) É aliás o que resulta dos pressupostos da responsabilidade civil, em particular da culpa, como explicamos a págs. 11 e sgs, onde se afirmou que o lesante tem apenas que saber que do seu comportamento ilícito pode advir um facto ilícito.