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1 O DIREITO ADMINISTRATIVO REGULADOR E A BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Mártin M. Szinvelski 1 Resumo O presente artigo visa investigar se é possível afirmar que as agências reguladoras são estruturas de consecução e de efetivação do direito à boa administração pública no contexto do Direito Administrativo Regulador. Para isso, analisamos a intervenção estatal na atividade econômica e traçamos linhas gerais sobre o modelo de agências reguladoras inserido no Brasil após o movimento internacional de desregulação econômica e de reforma administrativa da década de 90, período em que o Estado deixou de ser o protagonista na execução de determinados serviços, passando a exercer funções propriamente regulatórias. Para fins de cotejo, analisamos o conceito de boa administração pública e selecionamos três pontos de análise para responder se as agências reguladoras são estruturas que privilegiam o direito à boa administração pública. Sumário I- Introdução II- Breves comentários sobre a intervenção na atividade econômica III- Agências Reguladoras e modelo brasileiro de regulação IV- Um conceito de direito à boa administração pública i. Dever de motivação e o controle da discricionariedade ii. Dever de sustentabilidade estrutural e decisional iii. Dever de vinculação às diretrizes constitucionais V- Conclusões I. Introdução Aman Jr. 2 , ao analisar os processos de desregulação iniciados pelo avanço industrial e o incremento na competitividade entre corporações com a globalização econômica, lançou duas premissas importantes para a compreensão da viabilidade prática da desregulação econômica: (i) a desregulação somente é verossímil em um ambiente em que a competição é possível e (ii) os argumentos que sustentam a desregulação somente encontram lastro quando o mercado está 1 Estudante de Direito, Graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Bolsista de Iniciação Científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Alfred C. Aman Jr., Administrative Law in a Global Era: Progress Deregulatory Change and the Rise of the Administrative Presidency, 73 Cornell L. Rev. 1101 (1988).

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O DIREITO ADMINISTRATIVO REGULADOR E A BOA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Mártin M. Szinvelski1

Resumo

O presente artigo visa investigar se é possível afirmar que as agências

reguladoras são estruturas de consecução e de efetivação do direito à boa

administração pública no contexto do Direito Administrativo Regulador. Para isso,

analisamos a intervenção estatal na atividade econômica e traçamos linhas gerais

sobre o modelo de agências reguladoras inserido no Brasil após o movimento

internacional de desregulação econômica e de reforma administrativa da década de

90, período em que o Estado deixou de ser o protagonista na execução de

determinados serviços, passando a exercer funções propriamente regulatórias. Para

fins de cotejo, analisamos o conceito de boa administração pública e selecionamos

três pontos de análise para responder se as agências reguladoras são estruturas que

privilegiam o direito à boa administração pública.

Sumário

I- Introdução

II- Breves comentários sobre a intervenção na atividade econômica

III- Agências Reguladoras e modelo brasileiro de regulação

IV- Um conceito de direito à boa administração pública i. Dever de motivação e o controle da discricionariedade ii. Dever de sustentabilidade estrutural e decisional iii. Dever de vinculação às diretrizes constitucionais

V- Conclusões

I. Introdução

Aman Jr. 2, ao analisar os processos de desregulação iniciados pelo

avanço industrial e o incremento na competitividade entre corporações com a

globalização econômica, lançou duas premissas importantes para a compreensão da

viabilidade prática da desregulação econômica: (i) a desregulação somente é

verossímil em um ambiente em que a competição é possível e (ii) os argumentos que

sustentam a desregulação somente encontram lastro quando o mercado está

1 Estudante de Direito, Graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Bolsista de

Iniciação Científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Alfred C. Aman Jr., Administrative Law in a Global Era: Progress Deregulatory Change and the Rise

of the Administrative Presidency, 73 Cornell L. Rev. 1101 (1988).

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funcionando e encontrando resultados politicamente aceitáveis3. Notório, portanto,

é que na era da internacionalização do comércio mundial, criou-se uma pressão para

que os países buscassem um denominador comum do que poderia ser regulado e o

quanto poderia ser regulado, respeitadas as características dos países. A referida

pressão atuou [e continua atuando] como substitutivo das forças políticas que

dominaram o período posterior ao New Deal e serviu como instrumento de

inclusão/exclusão ao mercado mundial.

Cada país seguiu um modelo de desregulação econômica, o que, em

alguns casos, foi seguida pela reforma estatal no sentido de descentralizar serviços,

seja ele por meio da atuação de agências reguladoras, com poderes quase-judiciais4 e

independentes, ou pela regulamentação submetida ao que se convencionou chamar

de big-government, o super-Estado, já que o processo regulatório não significa o

retorno ao modelo de Estado laissez-faire5, mas sim uma equalização em torno do

“interesse público” e de quais objetivos econômicos e sociais determinado país

almeja.

O Brasil não ficou de fora desse influxo reformador6. Na década de

90, diferentes agências reguladoras foram criadas com a finalidade de oferecer uma

maior credibilidade regulatória, seja na área de infraestrutura, seja na área social – o

que permitiu ao governo se desonerar de decisões impopulares e afastar o núcleo do

governo de rotinas burocráticas específicas7. Notadamente, houve uma adaptação

do modelo norte-americano das “regulatory agencies"8, especialmente pela percepção

de que o Estado não dispunha de recursos financeiros suficientes para prestar um

serviço público de qualidade, revelando-se, inclusive, um mau administrador na

gestão e na consecução das políticas públicas. Nesse contexto, o Estado deixa de ser

o principal protagonista na prestação de determinados serviços, passando a exercer a

função de planejamento, regulação e fiscalização, porém conservando suas

3 “Deregulation is thus more likely if real competition is possible. The arguments favoring deregulation

become doubly powerful when a market is working and reaching politically acceptable results”. Alfred

C. Aman Jr., Administrative Law in a Global Era: Progress Deregulatory Change and the Rise of the

Administrative Presidency, 73 Cornell L. Rev. 1101 (1988). p.1193. 4 Richard A. Posner, The Rise and Fall of Administrative Law, 72 Chicago-Kent Law Review 953 (1997).

p.995. 5 Cfr., sobre o papel do Estado contemporâneo, Gilberto Bercovici, A problemática da constituição

dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro, Revista Informação Legislativa, Brasília, a. 36,

n. 142, abr./jun., 1999. 6 Nesse sentido, Luís Roberto Barroso, explica o processo iniciado pós-constituição: “Após a Constituição

de 1988 e, sobretudo, ao longo da década de 90, o tamanho e o papel do Estado passaram para o centro do

debate institucional. E a verdade é que o intervencionismo estatal não resistiu à onda mundial de

esvaziamento do modelo no qual o Poder Público e as entidades por ele controladas atuavam como

protagonistas do processo econômico”. Luís Roberto Barroso, Agências Reguladoras. Constituição,

Transformações do Estado e Legitimidade Democrática, R. Dir. Adm., Rio de Janeiro. 229, Jul./Set.,

2002, p.288.

7 Regina Silvia Pacheco, Regulação no Brasil: Desenho das Agências e Formas de Controle. Rio de

Janeiro 40(4):523-43, Jul./Ago. 2006, p. 530. 8 Há especificidades que distinguem cada modelo, não se podendo inferir que o modelo brasileiro é uma

transposição do modelo americano; entretanto, não é correto afirmar que a inspiração não é norte-

americana.

3

responsabilidades e deveres em relação à correta prestação, tendo-se em conta a

conservação da natureza pública dos serviços9.

Quase que no mesmo período, promulgou-se em Nice, na França, a

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2001), que dispôs, entre outros

temas, sobre o direito à (ou princípio da) boa administração pública – objeto e

resultado de inúmeras discussões acadêmicas e da construção de uma doutrina que

delimitou ou ampliou o sentido incialmente proposto de mera diretriz político-

administrativa. Com Sabino Cassesse10, se pode afirmar que o nascimento e

desenvolvimento desse novo conteúdo normativo é resultado de um processo de

legalização da administração pública.

Cassesse, em Il diritto amministrativo e suoi principi 11, assevera que a boa

administração pública evoluiu de um princípio a um direito. Assumia, em sua

primeira veste, um caráter programático, um objetivo fixado constitucionalmente e

vinculador da atuação do legislador ordinário – restando, portanto, no interior da

burocracia estatal. Em sua segunda concepção, a boa administração se projeta sobre

sociedade, conferindo um direito à pessoa e um dever para administração pública.

Nessa nova abordagem, o conteúdo da boa administração se sobrepõe a diferentes

deveres impostos à administração pública, dotando o direito de uma riqueza de

conteúdo e permitindo o controle de conformidade dos atos administrativos com o

direito nacional.

Temos, portanto, como propósito deste artigo analisar o seguinte

problema: é possível afirmar que as agências reguladoras são estruturas de consecução

e da efetivação do direito à boa administração pública?

II. Breves comentários sobre a intervenção na atividade econômica

É possível sistematizar12, de acordo com critérios distintos, as formas

de intervenção no domínio econômico por meio dos tradicionais modelos

simbolizados pelo poder de polícia (disciplinador), pelo fomento econômico (apoio

à iniciativa privada) e pela atuação direta no domínio econômico, seja pela prestação

de serviços, seja pelo exercício de atividade econômica. Como já sedimentado

doutrinariamente, a prestação de serviços pode se dar de forma direta, por meio da

atuação de entes federados; ou indireta, com a criação de pessoas jurídicas de direito

público (autarquias e fundações públicas) ou de direito privado (sociedade de

economia mista e empresas públicas), sempre seguindo o pilar mestre da autorização

legislativa (legalidade), em especial no que se refere à outorga da prestação do

9 Luís Roberto Barroso, Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade

Democrática, R. Dir. Adm., Rio de Janeiro. 229, Jul./Set., 2002, p.293. 10 Sabino Cassesse, Il diritto alla buona amministrazione, European Review of Public Law, vol. 21, n. 3,

2009, pp. 1037-1047. O texto é o mesmo da palestra proferida na “Giornata sul diritto alla buona

amministrazione” per il 25° anniversario della legge sul “Sindic de Greuges” della Catalogna –

Barcellona, em 27 de março de 2009). 11 Sabino Cassesse, Il diritto amministrativo e suoi principi, in Istituzioni di diritto amministrativo,Sabino

Cassesse (a cura di), Giuffré Editore, p.16. 12 Luís Roberto Barroso, Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade

Democrática, R. Dir. Adm., Rio de Janeiro. 229, Jul./Set., 2002,p.291.

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serviço. Não se pode confundir, à evidência, o processo descrito acima com a

delegação de serviços públicos (prevista no artigo 175 da Constituição da República)

e o exercício da atividade econômica – que não é serviço público – que ocorrem

subsidiariamente e de acordo com as previsões constitucionalmente delimitadas no

artigo 173 da Lei Maior.

Por outra leitura, é possível categorizar a intervenção estatal de acordo

com o exercício das atividades: (i)sancionatórias, (ii) regulatórias, (iii) relativas à

defesa da concorrência e (iv) relativas ao exercício de atividade econômica por meio

de monopólio. Com efeito, com o advento das agências reguladoras, se acentua o

papel fiscalizador do Estado (regulador), tanto no que pertine às atividades

propriamente públicas quanto na regulação de atividades eminentemente privadas,

mas que estão sujeitas à fiscalização. Há uma elevação da visibilidade da atividade

regulatória - ou de poder de polícia administrativa - como veremos, mas a regulação,

é bom lembrar, não se resume a mera normatização, podendo ampliar seu âmbito de

atuação por diferentes tarefas executivas, decisórias e normativas (Estado regulador

latu sensu).

III. Agências Reguladoras e modelo brasileiro de regulação

As agências reguladoras foram inseridas no quadro da Administração

Pública brasileira como autarquias especiais, dotadas de personalidade jurídica de

direito público, criadas por lei específica e com prerrogativas especiais, notoriamente

com a dotação de maior autonomia e independência em face da figura do Poder

Executivo. Fala-se, portanto, apenas da separação do poder partidário, do contrário

teríamos um visão de “neutralidade”, “objetividade” e “apoliticidade” que

representariam uma falsa visão de impermeabilidade do círculo político. Com efeito,

as agências reguladoras devem atender especificamente, segundo Antonio La Spina,

os requisitos de (i) poder regulativo incisivo e focalizado, (ii) alta competência

especializada e (iii) e de uma importante independência de pressões políticas ou

oriundas do setor privado13. No Brasil, o intuito legislativo buscou atender tais

requisitos, positivando a independência, a ausência de subordinação hierárquica,

mandato fixo e estabilidade dos dirigentes, com vistas a reduzir interferências e

ingerências políticas no seu âmbito de atuação das agências14. Além disso, os

conselheiros e diretores são indicados pelo Presidente da República, com aprovação

do Senado Federal, de acordo com critérios específicos15. No que se refere à

autonomia econômico-financeira, as agências reguladoras recebem dotações

13 Antonio La Spina, Lo Stato Regolatore, Bolonha, Il Mulino, p.194. 14 Veja-se como exemplo o artigo 8, §2, da Lei 9472/97, que organiza os serviços de telecomunicações e a

criação e funcionamento do órgão regulador – a ANATEL, dispondo que “A natureza de autarquia

especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de

subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira”. 15 Veja-se, mais uma vez à título de exemplo, o critérios elencados pela Lei 9472/97, no artigo 23: “Os

conselheiros serão brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no

campo de sua especialidade, devendo ser escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados,

após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art. 52 da Constituição

Federal”.

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orçamentárias na Lei de Orçamento Anual (LOA), além de taxas de regulação que

eventualmente possam auferir, não elidindo a hipótese de que determinadas agências

possam ser custeada por recursos do ente fiscalizado16.

O Estado Regulador, no sentido lato ou híbrido17, assinala Juarez

Freitas, “intervém de modo indireto, conformando (isto é, restringindo, limitando

ou modulando) as relações de propriedade, de consumo e de liberdade (sem violar o

núcleo essencial de tais direitos)”. Antonio La Spina explica que o controle exercido

pelo Estado “non si riduce all’adozione di un atto legislativo, ma è un proceso continuo di

osservazione dell’atività regolanda, valutazione degli interessi in gioco, aggiustamento o

riaggiustiamento delle regolle alle circosntanze”18.Portanto, a competência regulativa,

embora restrita pelo setor de atuação, incorpora em sua essência o dever de

adaptação das circunstâncias presentes e futuras, uma vez que os serviços regulados

ou possuem utilidade pública (como transporte, comunicações e energia) ou podem

acarretar enormes custos sociais (como nas áreas de recursos hídricos, vigilância

sanitária e no mercado financeiro) caso negligente ou insuficientemente fiscalizados.

Advém dessa particularidade – os diferentes níveis de atuação – há

conveniência de classificar as agências reguladoras de acordo com a atividade que

possam desempenhar, quais sejam (i) executivas, (ii) normativas e (iii)decisórias19.

No âmbito do exercício da atividade executiva, as agências são responsáveis pela implementação de políticas públicas, de acordo com os regramentos basilares instituídos pelo legislador, compreendendo, inclusive as atividades de fiscalização e sancionamento, na hipótese do setor regulado (público ou privado) descumprir disposições impositivas. A segunda atividade típica – a normativa – é uma das mais polêmicas. Embora a legislação tenha outorgado poderes normativos às agências, se critica a delegação indevida de poderes propriamente legislativos para o âmbito de atuação das agências reguladoras, em face do princípio da separação dos poderes (CF, artigo 2º) e da disposição que revogou todas as delegações de competências do Congresso Nacional ao Poder Executivo, entre elas as normativas (ADCT, artigo 25). A terceira atividade desempenhada pelas agências reguladoras refere-se à solução de conflitos em que figuram os agentes regulados ou que versam sobre matérias relativas à prestação do serviço aos consumidores. As decisões tomadas em sede do contencioso administrativo podem ser revisadas pelo Poder Judiciário, ante a inafastabilidade do

acesso à jurisdição (CF, artigo 5, XXXV), desde apresentem nulidades pelo desatendimento de requisitos do ato administrativo ou que o mérito seja maculado pela desproporção, imoralidade administrativa ou pelo comprometimento da eficiência, situações em que se permite a revisão da atividade discricionária exercida

pelo Poder Público.

16 Vide, a respeito, a doutrina de Marcos Juruena Villela Souto, Agências reguladoras, RDA 216/125, p.

143. 17 Diogo Figueiredo Moreira Neto, Direito Regulatório, Renovar, 2002. 18 Antonio La Spina, Lo Stato Regolatore, Bolonha, Il Mulino, p.194. 19 Luís Roberto Barroso, Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade

Democrática, R. Dir. Adm., Rio de Janeiro. 229, Jul./Set., 2002, p. 301.

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Ante os comentários sobre as agências reguladoras no Brasil, passamos a abordar, para os exclusivos fins à que se destinam o artigo, sobre o direito à boa administração pública.

IV. Um conceito de direito à boa administração pública

Para Juarez Freitas20, o direito à boa administração pública atua como

síntese de um somatório de direitos subjetivos públicos. Compreende, portanto, os direitos a uma administração “eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas”21. Não somente estão incluídos direitos processuais e garantias das pessoas em face dos atos administrativos realizados pela administração22, mas outros direitos deles decorrentes. Para Beatriz Tomás Mallén, se trata de um direito de um “novo cunho”, devendo ser entendida como “una formulación autónoma que dota de unidad a diversos derechos reconocidos de manera dispersa en el orden nacional”23. Portanto, ante a amplitude de subdireitos que o direito à boa administração condensa, em especial frente à Administração, faz-se necessário recortar três elementos plenamente aplicáveis às agências reguladoras: (i) o dever de motivação e de controle da discricionariedade administrativa inerente à decisão motivada, (ii) o dever de sustentabilidade estrutural e decisional e (iii) o dever de vinculação às diretrizes constitucionais.

i. Dever de motivação e o controle da discricionariedade

A motivação dos atos administrativos é imposição do direito público e

da legalidade própria do Estado Constitucional. Ao longo do processo histórico, se superou a vontade pessoal do governante cuja decisão possuía força de lei24, por um modelo em que o administrador não possui vontade25, mas sim é a legalidade que o autoriza a prática de todo ato administrativo. Por isso mesmo, a administrador deve indicar nos atos vinculados e discricionários que pratica, o suporte fático e jurídico

20 Juarez Freitas, Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 2014,

p.21. 21 Juarez Freitas, Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 2014,

p.21. 22 Conferir o estudo de Diana-Urania Galetta, Il diritto ad una buona amministrazione fra diritto Ue e

diritto nazonale e le novità dopo l’entrata in vigore del Trattato di Lisbona, in Diritti fondamentali e

politiche dell'Unione Europea dopo Lisbona, Stefano Civitarese Matteucci, Fausta Guarriello,Paola Puoti

( a cura di), Maggioli Editore, 2013, p.71 e s. 23 Beatriz Tomás Mallén, El derecho fundamental a una buena administración, Madrid, Instituto

Nacional de Administración Pública, 2004, p.41-42. 24 Célebre é a citação do Digesto (I, 4, 1): “Quod principi placuit, legis habet vigorem” - O que agrada o

príncipe, tem força de lei. 25 Sabiamente, Hely Lopes Meireles ministrava: “No direito público, o que há de menos relevante é a

vontade do administrador. Seus desejos, suas ambições, seus programas, seus atos não têm eficácia

administrativa, nem validade jurídica, e não estiverem alicerçados no direito e na lei”. Hely Lopes

Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 12ªed., 1986, p.156. Há que se notar, com profundo

destaque, que Hely Lopes Meirelles sustentava que nos atos discricionários bastava-se indicar a

competência e a conformação com o interesse público, posição esta vencida na atualidade. Para maiores

aprofundamentos, ver: Hugo de Brito Machado, Motivação dos atos administrativos e interesse público,

Interesse Público, n. 3, ano 1999.

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que o justifica, expressando de forma suficiente, coerente e consistente as razões de conveniência e oportunidade que orientaram sua decisão26. Com efeito, “nas relações administrativas, os juízos de conveniência e oportunidade encontram-se limitados pelo direito à boa administração pública, sob pena de abuso de poder”27, já que não é dado ao administrador um cheque em branco, o autorizando a praticar atos não precedidos de motivação explícita28.

No que pertine às agências reguladoras, no exercício dos poderes normativos, executórios e decisórios, o cumprimento do dever de motivação torna-se elementar: não só porque decorre da lei que às instituiu e dos princípios que norteiam sua atuação, mas também porque a natureza dos serviços regulados ou prestados é de interesse social. A motivação, portanto, permite o controle político e o controle social. O controle político é institucional, próprio do esquema de freios e contrapesos, e que merece análise mais detida. Primeiro, porque no âmbito do controle do poder executivo, tradicionalmente, se realiza o controle hierárquico. Tal modalidade não é cabível no caso de agência reguladora, eis que o sistema legal foi forjado especialmente para evitar tal influência, ressalvadas as possibilidades de nomeação e destituição de diretores e conselheiros. Portanto, a motivação dos atos encontra campo para o controle nas searas legislativa e judicial. Entretanto, o exercício do controle por parte do Poder Legislativo, ainda que auxiliado pelo Tribunal de Contas, não pode invadir a função específica da agência reguladora. Do mesmo modo, sob o ângulo do controle judicial, cabe ao juiz tão somente examinar os contornos externos do ato, identificando sua inserção e conformidade no sistema jurídico vigente. O juiz não é um revisor da política a ser executada ou do fato a ser regulado, mas obstáculo à supressão de garantias nos processos administrativos que tramitam na burocracia das agências, cujas decisões devem ser externadas de forma explícita e clara. ii. Dever de sustentabilidade estrutural e decisional

A título de introdução, lembramos que a postura que encampa a boa administração pública é pautada por uma ideia de sustentabilidade, que, por sua vez, não se restringe à esfera ambiental, e pode ser entendida como standard de atuação estatal no que concerne à correta e concreta prestação dos serviços públicos. Nesse sentido, Cass Sustein defende um modelo de governo simples, em que o exercício da regulação se dê em favor empreendimentos produtivos, descomplicando a vida

26 Juarez Freitas, Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 2014,

p.69-70. 27Juarez Freitas, Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 2014,

p.72. 28 Nesse sentido, vale a pena notar: “Existe hoje um tendência irreprimível a considerar que a

Administração Pública está vinculada antes ao Direito do que propriamente à lei. Juristas eminentes

chegam até mesmo a tirar do princípio da legalidade a conclusão de inexistência do poder discricionário,

pois os atos que os expressam estão, como os demais atos administrativos, destinados à realização do

interesse público e acham-se conformados por esse fim, ficando, pois, sempre aberta não só a

possibilidade de sindicar a existência de interesse público, como também se a providência concretamente

adotada é que mais adequadamente o atende”. Almiro Couto e Silva, Os princípios da legalidade da

administração pública e da segurança jurídica no Estado contemporânea, RPGE, Porto Alegre, 18(46),

1988, p.20.

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das pessoas e desassociando do Poder Público das tradicionais burocracias29. Seguindo a mesma trilha, Juarez Freitas propõe um modelo de regulação sustentável vinculada à garantia da promoção das prioridades constitucionais, “com o permanente escrutínio das escolhas e de seus custos diretos e indiretos, quantitativos e qualitativos, tudo de ordem a assegurar, [...] intervenções estatais propiciatórias de duradouro bem-estar multidemensional”30.

Por isso, a sustentabilidade na intervenção regulatória deve levar em consideração a necessidade de desburocratização progressiva dos processos regulatórios, assim como guardar um planejamento estratégico que contemple conformação entre o meio ambiente e o progresso econômico, em vista dos possíveis impactos sociais e sistêmicos que possam acarretar uma regulação deficitária. Além disso, a organização normativa é um fator de sustentabilidade e de segurança jurídica a ser enfrentado, haja vista a credibilidade que as agências reguladoras precisam transparecer, além de uma atuação fiscalizatória que efetivamente promova a coibição de desvios das normas reguladoras.

iii. Dever de vinculação às diretrizes constitucionais

Não só a execução das políticas públicas deve estar ancorada às

diretrizes constitucionais. No âmbito interno das agências reguladoras, a obrigatoriedade do respeito ao processo administrativo (Lei 9784/99) com todas suas garantias (due process) é um elemento que legitima a atuação regulatória. Isso porque, como vimos, nem todas as agências executam serviços ou tem funções eminentemente normativas. Determinadas autarquias especiais exercem funções fiscalizatórias com o poder sancionador, ainda que não levem o nome de “agências”. Cite-se, por exemplo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica e a Banco Central do Brasil. Eis, portanto, a importância de seguir uma atitude eticamente constitucional de respeito ao processo legal.

Com efeito, é sabido que as políticas públicas não devem ser tratadas como programas de governos específicos, como se fosse possível conceber um modelo de política pública oriundo exclusivamente da discricionariedade do governante. Notadamente, já é consolidada a noção de políticas públicas não são programas episódicos de governo31, estando mais próximas de prioridade vinculativas estabelecidas constitucionalmente. Nesse ponto, as agências reguladoras tem uma fundamental importância, especialmente por serem dotadas de competência especializada e por uma reduzida influência partidária, que podem garantir a estabilidade e o cumprimento das diretrizes que o legislador constitucional e ordinário buscou implantar. Isso porque, sob a óptica de sistema, devem ser

29 Cass Sunstein, Simpler, Nova York, Simon and Shuster, 2013, p.1: “This is a book about making things

simpler. In particular, is about how governments can be much better, and do much better, if they make

people’s lives easier and get rid of unnecessary complexity. […] I am not saying that government should

be smaller. I do believe that in some domains, smaller is better, and government should shrink. But is not

my topic here. To have a simple government, you need to have a government. The term user-friendly isn’t

exactly user-friendly, but simplicity is friendly, and complexity is not. True, complexity has its place, but

in the future, governments, whatever their size, have to get simples”. 30 Juarez Freitas, Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 2014,

p.153. 31 Juarez Freitas, Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 2014,

p.33.

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mantidos certos pilares inerentes à estabilidade da ordem constitucional, como (a) a consecução das prioridades da sociedade, (b) a coerência das prioridades com os meios empregados na sua consecução, (c) direcionamento e o controle da efetividade das prioridades escolhidas e (d) a prestação de contas (accountability) dos responsáveis pela condução do processo. O papel de controle do real implemento dos citados pilares constitui uma das prioritárias funções das agências e de outros órgãos de regulação estatal e que deve ser enfrentada, sob pena de frustrar o direito à boa administração pública, pelo descumprimento dos deveres impostos e pela ineficiência tanto na prestação quanto no controle.

V. Conclusões

Retornamos, portanto, ao problema inicialmente exposto: é possível

afirmar que as agências reguladoras são estruturas de consecução e da efetivação do direito à boa administração pública? Para responder o objetivo da nossa investigação, propomos algumas teses: (a) as agências reguladoras são autarquias especiais, dotadas de prerrogativas e com competências específicas que, quando guardarem relação e compromisso com as prioridades constitucionais, efetivarão o direito à boa administração pública; (b) o respeito ao dever de motivação das decisões no âmbito das agências reguladoras permite o controle político-institucional de possíveis ilegalidades e abusos de poder, mas tal controle não poderá se imiscuir nas funções primordiais de controle das agências, sob pena de violação do direito à boa administração pública, no aspecto relativo à conservação da eficiência e do cumprimento dos deveres; (c) a adoção de medidas de sustentabilidade estrutural e na tomada de decisões, implementa o direito à boa administração pública; (d) as agências reguladoras cumprem uma função de manutenção dos pilares das prioridades eleitas (ante ao interesse público dos setores regulados) ante ao exercício das funções fiscalizatórias, sancionadoras, normativas e decisórias, por isso, em tese, resguardam a boa administração pública.