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Departamento de Direito 1 O DIREITO DE RESISTÊNCIA E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO PENSAMENTO POLÍTICO-JURÍDICO MODERNO Aluna: Gabriella Corbella Neves Fortes Orientadora: Ana Luiza Saramago Stern 1. Introdução O Direito de Resistência é um fenômeno histórico que acompanha o desenvolvimento das sociedades políticas, e se apresenta de maneira difusa de acordo com as situações políticas concretas e as experiências vivenciadas por diversos autores ao longo dos séculos. Para entender esse fenômeno da resistência é necessário compreender que o dever fundamental de cada indivíduo, inserido em um ordenamento jurídico, é o de obedecer às leis. Conforme Norberto Bobbio, “Este dever é chamado de obrigação política. A observância da obrigação política por parte da grande maioria dos indivíduos (...) é, ao mesmo tempo, a condição e a prova da legitimidade do ordenamento” 1 . Essa obediência às leis por parte da sociedade comprova a legitimidade do ordenamento jurídico e de seus governantes, e permite a convivência harmoniosa entre os indivíduos, pois estes passam a não mais temer uns aos outros e nem o próprio Estado. O consentimento popular é o responsável por conferir legitimidade a esse governo, uma vez que admite que o poder e as leis estão de acordo com a vontade do povo. Esse poder legítimo representa um governo autorizado pela vontade do povo, no qual o direito posto é concebido como justo e de acordo com o interesse público, o que estimula o dever de obediência às normas. Dessa maneira, o Direito atua como regulador de condutas e estabelece limites para a atuação do Estado, o seu cumprimento assegura a ordem social, sendo capaz de regular a relação entre indivíduo e Estado, e as relações entre os próprios indivíduos. No entanto, segundo os teóricos do direito de resistência, quando há no governo um rompimento com a legitimidade, quando o poder público passa a não mais atender aos anseios da sociedade, governando através de atos arbitrários, e o Judiciário não atende às suas funções, torna-se legítimo descumprir com a obrigação política. A desobediência civil, forma de exercício do direito de resistência, é um caminho para implementar o exercício da cidadania e reivindicar a garantia de direitos frente à insatisfação quanto as atitudes do poder público. Para os indivíduos que exercem a desobediência civil só existe a obrigação política quando as leis promulgadas são justas e constitucionais. O objetivo do descumprimento às leis injustas é evidenciar o descontentamento da sociedade com as decisões tomadas pelo governo, e dessa forma identificar as modificações necessárias para o aperfeiçoamento do Estado. 2. Objetivos O presente trabalho visa analisar as transformações ocorridas no Direito de Resistência e o surgimento da desobediência civil, desde a experiência individual como a proposta por 1 BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 11ª.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p.335.

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O DIREITO DE RESISTÊNCIA E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO

PENSAMENTO POLÍTICO-JURÍDICO MODERNO

Aluna: Gabriella Corbella Neves Fortes

Orientadora: Ana Luiza Saramago Stern

1. Introdução

O Direito de Resistência é um fenômeno histórico que acompanha o desenvolvimento

das sociedades políticas, e se apresenta de maneira difusa de acordo com as situações políticas

concretas e as experiências vivenciadas por diversos autores ao longo dos séculos.

Para entender esse fenômeno da resistência é necessário compreender que o dever

fundamental de cada indivíduo, inserido em um ordenamento jurídico, é o de obedecer às leis.

Conforme Norberto Bobbio, “Este dever é chamado de obrigação política. A observância da

obrigação política por parte da grande maioria dos indivíduos (...) é, ao mesmo tempo, a

condição e a prova da legitimidade do ordenamento”1.

Essa obediência às leis por parte da sociedade comprova a legitimidade do

ordenamento jurídico e de seus governantes, e permite a convivência harmoniosa entre os

indivíduos, pois estes passam a não mais temer uns aos outros e nem o próprio Estado. O

consentimento popular é o responsável por conferir legitimidade a esse governo, uma vez que

admite que o poder e as leis estão de acordo com a vontade do povo.

Esse poder legítimo representa um governo autorizado pela vontade do povo, no qual

o direito posto é concebido como justo e de acordo com o interesse público, o que estimula o

dever de obediência às normas. Dessa maneira, o Direito atua como regulador de condutas e

estabelece limites para a atuação do Estado, o seu cumprimento assegura a ordem social,

sendo capaz de regular a relação entre indivíduo e Estado, e as relações entre os próprios

indivíduos.

No entanto, segundo os teóricos do direito de resistência, quando há no governo um

rompimento com a legitimidade, quando o poder público passa a não mais atender aos anseios

da sociedade, governando através de atos arbitrários, e o Judiciário não atende às suas

funções, torna-se legítimo descumprir com a obrigação política.

A desobediência civil, forma de exercício do direito de resistência, é um caminho para

implementar o exercício da cidadania e reivindicar a garantia de direitos frente à insatisfação

quanto as atitudes do poder público. Para os indivíduos que exercem a desobediência civil só

existe a obrigação política quando as leis promulgadas são justas e constitucionais. O objetivo

do descumprimento às leis injustas é evidenciar o descontentamento da sociedade com as

decisões tomadas pelo governo, e dessa forma identificar as modificações necessárias para o

aperfeiçoamento do Estado.

2. Objetivos

O presente trabalho visa analisar as transformações ocorridas no Direito de Resistência

e o surgimento da desobediência civil, desde a experiência individual como a proposta por

1 BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 11ª.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p.335.

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Henry David Thoreau até as grandes manifestações coletivas como as de Gandhi e Martin

Luther King Jr. Neste diapasão visa ainda avaliar a legitimidade da desobediência civil e a

maneira como os ordenamentos jurídicos tem lidado com esse fenômeno.

3. Metodologia

A pesquisa inicialmente se deu com a análise das obras referentes ao Direito de

Resistência, com o intuito de compreender as bases teóricas que fundamentaram o

desenvolvimento da desobediência civil. Posteriormente, foi aprofundada a leitura em textos

específicos de desobediência civil, de diversos autores, em busca das características comuns

às manifestações coletivas defendidas por Gandhi e Martin Luther King. E por fim,

acrescentou-se as análises de Hannah Arendt e Herbert Marcuse apresentando uma visão

crítica mais contemporânea com relação ao tema.

4. A Servidão Voluntária de Étienne de La Boétie

As teorias acerca do direito de resistência como afirma Nelson Nery Costa, receberam

a influência de vários autores como Étienne de La Boétie, mas somente alcançaram sua

maturação teórica com os contratualistas, por meio da figura do pacto social que representa o

consentimento popular.2

A compreensão do fenômeno da resistência ocorre juntamente com as diversas

interpretação acerca do direito fundamental à liberdade, quanto ao seu significado e a

possibilidade de sua concretização, que sofre inúmeras modificações de acordo com as formas

de governo apresentadas ao longo dos séculos.

Antes do argumento contratualista, ainda no século XVI, a análise da sociedade

realizada por Étienne de La Boétie a respeito da servidão voluntária, na qual o tirano não

consegue exercer a opressão sem a tolerância dos oprimidos, é de fundamental importância

para examinar o porquê dos homens obedecerem à autoridade, mesmo que em detrimento de

sua própria liberdade, sendo a monarquia absolutista o resultado desta submissão passiva.

A obra de La Boétie evidencia o papel da liberdade como essencial para existência do

homem, e busca compreender como esta é abdicada por seus titulares, os indivíduos, em prol

do tirano, o detentor da autoridade: “É a liberdade, todavia, um bem tão grande e tão aprazível

que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois

dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão”.3

Ao observar o comportamento da sociedade com uma obstinada vontade de servir, La

Boétie questiona como é possível tantos homens e até mesmo nações inteiras se subordinarem

ao julgo de um tirano, que possui apenas o poder que os súditos lhe conferem, e que não seria

capaz de prejudicá-los, senão enquanto os mesmos apoiarem a tirania. Indaga-se La Boétie:

“infeliz ver um número de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas

tiranizadas, não tendo nem (...) a própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os

deboches, as crueldades, não de um exército, (...) mas de um só”.4

A tirania se instituía inicialmente pela força, mas o que espanta La Boétie é o que

ocorre quando os súditos vêm-se vencidos e se sujeitam, o que faz a liberdade cair em

esquecimento e a servidão voluntária se instaurar. Questiona: “Que mau encontro foi esse que

2 COSTA, Nelson Nery. Teoria e realidade da desobediência civil. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p.3 3 BOÉTIE, Étienne de La. Discurso da Servidão Voluntária, São Paulo: Brasiliense, 1999. p.15.

4 Ibid, p.13.

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pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo

perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retorná-lo?”5

O autor busca verificar o esquecimento do desejo de liberdade, que se dá através da

sujeição perante o tirano, e acontece de maneira tão profunda que os súditos passam a servir

como se fosse natural esse comportamento, “dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim

ganhou sua servidão”.6 Sendo assim, a primeira razão da servidão voluntária é o costume,

responsável por fazer os homens, tanto os vencidos pela força quanto aqueles que já nasceram

sob o domínio do tirano, acreditarem que este comportamento era na realidade a condição

natural, acostumando-se com a sujeição e esquecendo-se da liberdade original.

Outro ponto que assegura a servidão são os estímulos que os governantes oferecem

aos súditos, com os teatros e espetáculos, que despertam a luxúria tornando as pessoas

acovardadas, anulando o ímpeto de lutar pela liberdade. O encantamento pelas distrações

impede que os súditos se deparassem com a realidade, na qual todos esses benefícios

oferecidos pelo governo não passam de frações irrisórias daquilo que lhes imputavam.7

No entanto, segundo La Boétie, a supremacia e manutenção da tirania reside no apoio

dos próprios homens, que através da ilusão de poder se beneficiar e adquirir vantagens da

corte se submetem a subjugar os outros por estarem seduzidos pela vontade de dominar.

Dessa forma, o poder é distribuído de maneira hierarquizada, o rei cercava-se de cinco

pessoas mais próximas, que teriam os seus favores concedidos, e estes por consequência

aproximavam-se de mais seiscentos abaixo deles, que assim controlavam outros seis mil;

como exemplifica o autor: “Assim o tirano subjuga os súditos uns através dos outros e é

guardado por aqueles de quem deveria se guardar, se valessem alguma coisa”.8

Ainda segundo La Boétie, o tirano se sustenta a partir da imagem que impõe perante o

público e pela incitação à discórdia entre os homens, o que impede que estes se enxerguem

como semelhantes e impossibilita as relações diretas, assim, há uma centralização do Estado,

e um distanciamento entre os súditos. O monarca enfeitiçava com a sua imagem, vestimenta, e

buscava aparentar ter todas as qualidades almejadas, portanto, despertava nos súditos os

sentimentos de medo e cobiça.9

A ideia de igualdade entre os homens seria a responsável por possibilitar a amizade, o

afeto fraternal como se refere La Boétie, o que uniria a sociedade no movimento de se impor

frente ao domínio do soberano, na renúncia a servidão: “decide não mais servir e sereis livres;

não pretende que o empurreis ou sacudais, somente não o sustentai, e o verei como um grande

colosso, de quem subtraiu-se a base, desmanchar-se com o próprio peso e rebentar-se”.10

O Discurso da Servidão Voluntária busca refletir sobre as contradições presentes no

Estado Moderno, o monopólio da força atrelado unicamente a vontade do soberano, sem

qualquer forma de limitação, o que impede a existência da vontade dos indivíduos, que

consequentemente passam a obedecer passivamente às leis do Estado perdendo

completamente a sua liberdade.

5 BOÉTIE, Étienne de La, op. cit., p.14. 6 Ibid, p.15. 7 COSTA, Nelson Nery. op. cit. p.8 8 BOÉTIE, Étienne de La, op. cit.p.15 9 COSTA, Nelson Nery. op. cit. p.8 10 BOÉTIE, Étienne de La, op. cit.p.16.

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Para La Boétie, os homens somente conseguiriam reestabelecer sua liberdade quando

assimilassem que a amizade é o vínculo capaz de uni-los para resistir às arbitrariedades do

tirano e assim pôr fim a servidão voluntária.

5. O Direito de Resistência na Teoria de John Locke

O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil de John Locke, concebido como uma

exaltação à revolução gloriosa, apresenta diversas críticas acerca da monarquia absolutista,

ressaltando a importância do governo estar subordinado ao consentimento popular para assim

possuir legitimidade.

John Locke por ser um autor contratualista elabora sua teoria a partir do pressuposto

do estado de natureza, momento anterior à formação do Estado, no qual o indivíduo é

proprietário de si mesmo conforme a vontade do Criador, e consequentemente livre e igual

perante os demais. Como afirma Locke: “O estado de natureza é composto por um direito

natural que favorece a todos os homens. A razão que ensina a toda humanidade, (...) não

devemos fazer mal ao próximo, atentando contra sua saúde e liberdade, ou seus bens”.11

John Locke é um grande defensor do direito de propriedade, afirma que cada indivíduo

“é proprietário de si mesmo”, e que o trabalho legitima a propriedade, pois “àquilo que tira do

estado que a natureza provê e lega, ele mescla e acrescenta algo que é seu, e, assim, torna tal

coisa propriedade sua”.12 O mesmo direito natural que garante a aquisição da propriedade,

também estabelece limites com relação ao seu uso, sendo legítimo tudo aquilo que conseguir

usar de modo a facilitar sua vida, sem desperdícios.

O estado de natureza como define o autor é: “condição natural de todos os homens;

(...) condição de perfeita liberdade que os possibilite ditar suas ações, e dispor de seus bens e

pessoas como bem entenderem, e dentro dos limites do direito natural”.13 Esse estado é

essencialmente marcado pela liberdade, sendo assim, o indivíduo pode dispor de sua

propriedade de acordo com a sua vontade. No entanto, deve obedecer o direito natural, dado

que o indivíduo, que atente contra a lei da natureza, poderá ser punido por todos os homens, já

que todos têm o poder executivo.

Há no estado de natureza um impasse, no qual não existe uma garantia que assegure

efetivamente a paz e a preservação da humanidade, pois a execução do direito natural está nas

mãos de cada homem, e segundo Locke: “em um estado de perfeita igualdade, não havendo

superioridade nem jurisdição de uma pessoa sobre a outra, o que alguém fizer em busca de

justiça também poderá ser feito por todos”14. O problema ocorre quando os indivíduos

movidos por suas paixões exageram em suas punições e passam a agir com parcialidade e

violência, para coibir essas inconveniências o melhor remédio é o governo civil.

Para a instituição do governo civil é necessário a formulação do pacto social entre os

indivíduos, no qual estes abrem mão do seu poder executivo individual em prol da sociedade

política, com o intuito de assegurar a tranquilidade e garantir sua propriedade. Os indivíduos

ao decidirem realizar o pacto se unem em um corpo único composto por homens livres e

racionais, que buscam solucionar os conflitos existentes no estado de natureza, os quais

11 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. 1ª.ed. São Paulo: EDIPRO, 2014. p.30.

12 Ibid, p.44. 13 Ibid, p.29 14 Ibid, p.31.

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tornam o exercício de seus direitos inconstantes e sujeitos a violação dos demais homens. Para

Locke: “sempre que houver um grupo de homens unidos em uma única sociedade, sendo que

cada um renuncie seu poder executivo em favor do direito natural, e o submeta ao público,

(...) haverá uma única sociedade civil ou política”.15

O homem nasce com direito à liberdade, à propriedade e à vida, e com o poder inato

de preservar esses direitos em face de quem atentar contra eles. Com a formação da sociedade

civil os homens renunciam a esse poder executivo resultante do direito natural, deixando-o

nas mãos da sociedade. A principal função da elaboração do pacto é a busca pela preservação

desses direitos fundamentais. Dessa maneira, o que garante a legitimidade do governo para

Locke, é o pacto social elaborado a partir da manifestação de consentimento dos homens

livres: “Quando um grupo de homens, com o consentimento de seus indivíduos, forma uma

comunidade, está formando também um corpo único, com poder de representar a vontade e

determinação da maioria; pois uma comunidade age somente com o consentimento da maioria

de seus indivíduos”.16

A sociedade civil tem como principal objetivo a preservação dos bens de todos os

membros da comunidade. Isso ocorre por meio do legislativo e do executivo, que devem

julgar conforme as leis, os crimes cometidos na medida em que devem ser punidos. O marco

de passagem do estado de natureza para a sociedade civil é a determinação de um magistrado

local, que deve ser investido de autoridade, devido a renúncia dos homens em executar

individualmente seu direito natural, submetendo-o ao público. Esse magistrado terá

autoridade para ajuizar ações sobre todas as controvérsias, e corrigir as ofensas, promovendo

a justiça: “Aqueles que estão unidos em uma sociedade e têm leis e justiça devidamente

estabelecidas às quais apelar, com autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os

transgressores, estão em plena sociedade civil”. 17

Locke realiza uma forte crítica à monarquia absolutista, ao afirmar que nessa forma de

governo não há espaço para uma sociedade civil, visto que sua função é justamente evitar a

subjetividade autoritária do soberano, na qual não há juiz imparcial, não cabe apelar a outra

autoridade que decida de forma justa e também não há garantia que assegure a proteção dos

direitos naturais. Sendo assim, Locke afirma que o absolutismo: “sem a existência de leis, e

de um juiz comum ao qual possam apelar para arbitrar contendas de direito (...), ali eles ainda

estão no estado de natureza”.18

Os cidadãos estão obrigados a obedecer o governo, na medida que este não abuse de

suas prerrogativas e não interfira nos direitos individuais. Assim, o modelo proposto por

Locke busca assegurar a estabilidade do governo que cumpre com a sua função, mas também

garantir aos indivíduos o direito de resistência contra aquele que demonstre tendências

arbitrárias. “O legislativo não é exercido de forma absoluta e arbitrária sobre as vidas e o

destino do povo, (...) sendo ele o poder conjunto de cada membro da sociedade que renunciou

em favor da pessoa ou da assembleia que legisla, ele não pode exceder o que aquelas pessoas

tinham quando no estado de natureza”.19

A obrigação política desaparece quando o governo descumpre o que foi acordado

anteriormente no pacto, dando lugar ao exercício do direito de resistência: “Sempre que os

legisladores planejam tomar e destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão por

15 LOCKE, John. op. cit. p. 79 16 Ibid, p.85 17Ibid, p. 78 18 Ibd, p.80 19 Ibid, p.108

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um poder arbitrário, eles ficam em estado de guerra com o povo, que por causa disso, fica

isento de qualquer obediência”.20

Na elaboração do pacto os indivíduos renunciaram apenas ao direito de executar a

punição, por essa razão o Estado deve proteger os direitos naturais que os homens já gozavam

desde o estado de natureza. Segundo Nelson Nery, o pacto social defendido por Locke

representa os compromissos fundamentais do Estado liberal: “garantia dos direitos

elementares de cidadania e limites e responsabilidades do governo”.21

O diferencial na teoria de Locke, como sintetiza a autora Maria Garcia é que: “O povo

é, assim, soberano, pois não abdicou de todos os direitos que lhe são inerentes em favor de

nenhuma pessoa ou assembleia. Pelo contrato social, não se despojou do poder, cujo exercício

apenas delegou”.22 Dessa maneira, o indivíduo pode retomar esse poder uma vez que o

governo descumpra o pacto, o que consequentemente gera a perda da sua legitimidade.

Portanto, sempre que o governo descumpra a sua função de assegurar os direitos

fundamentais e extrapole suas prerrogativas, perde o poder que o povo lhe concedeu, e este

retorna para a sociedade política que tem o direito de retomar sua liberdade e instituir novos

representantes para desempenhar as funções estabelecidas. Segundo Locke: “A comunidade

detém de forma contínua um poder supremo capaz de salvá-la das garras de qualquer um, até

mesmo dos seus legisladores, sempre que forem tolos ou fracos a ponto de legislar contra as

liberdades e propriedades de um indivíduo”.23

No entanto, para que a resistência seja legítima é essencial observar três requisitos;

que o poder exercido de maneira arbitrária esteja colocando os indivíduos em situações que

efetivamente causem maus-tratos; que o motivo não se baseie em apenas uma infração, mas

em uma longa sequência de infrações; e que os indivíduos não utilizem a força para resistir,

pois estariam correndo o risco de serem considerados rebeldes. Essas ressalvas impedem que

o direito de resistência culminasse em instabilidade e possíveis estados de guerra.24

O direito de resistência aparece como um instrumento político que proporciona o

aperfeiçoamento do Estado, visto que não rompe completamente com as instituições, mas

possibilita a escolha de novos representantes, mudanças no processo legiferante e também

quanto ao sufrágio. O direito de resistência seria um método excepcional de restauração da

ordem política, que deveria ser utilizado somente quando se esgotassem todos os meios

legais, e os processos institucionais fossem insatisfatórios.

O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil de Locke é uma obra essencial para o

modelo liberal, no qual a análise acerca do consentimento do povo como o responsável por

conferir legitimidade ao governo, e possibilitar o rompimento com a monarquia absolutista, e

as arbitrariedades do soberano, o que assegurou a existência de uma nova ordem, através da

figura do parlamento e da limitação ao poder dos governantes.

20 LOCKE, John. op. cit. p.162. 21 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.10.

22 GARCIA, Maria. Desobediência civil. Direito fundamental. SP: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p.144.

23 LOCKE, John. op. cit. p. 119 24 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.14.

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6. A Desobediência Civil

O desenvolvimento das teorias a respeito da resistência proporcionou consideráveis

modificações na sociedade política, pois conferiu ao povo um instrumento adequado para

confrontar os atos arbitrários dos governantes. Por intermédio da resistência o indivíduo

começou a tomar ciência de seu papel na vida política, mediante a busca por assegurar seus

direitos fundamentais e a necessidade de fiscalizar o funcionamento do Estado, efetivando a

sua cidadania.

No entanto, o direito de resistência era compreendido somente como a expressão da

vontade da maioria, conforme apresentou Locke em seus ensaios. Caso o governo cometesse

infrações apenas contra um súdito, sem afetar os demais membros da sociedade, cabia a eles

continuar prestando obediência às instituições. Posto que, a manutenção do Estado civil ainda

era considerada mais benéfica para a maioria, por trazer segurança e estabilidade superiores à

experimentada no estado de natureza.

A determinação do direito de resistência como uma expressão necessariamente

coletiva, suscitava inúmeras dificuldades para sua implementação enquanto garantia jurídica

de cidadania. Essa limitação gerada pela obrigatoriedade da atuação coletiva, dificultava a

efetivação do movimento de resistência, tornando os homens mais propensos a optar pela

revolução radical como meio de alcançar suas reivindicações frente às instituições.

Outro aspecto que impedia a ampla realização das reivindicações era a retirada da

legitimidade das minorias, enquanto participantes das manifestações de resistência. As

minorias não podiam manifestar suas insatisfações para com o governo, e nem pleitear os seus

direitos, mesmo que estes fossem assegurados pelo pacto social, já que não eram considerados

legitimados para exercer o direito de resistência.

A institucionalização dos Estados, mediante a influência da Independência dos

Estados Unidos e das experiências revolucionárias burguesas, transformou a participação do

indivíduo na vida política, assim como a sua maneira de externalizar suas insatisfações. Essa

transformação tornou-se evidente por meio da teoria da Desobediência Civil proposta pelo

jovem autor norte-americano Henry David Thoreau.

Na desobediência civil o autor ampliou a atuação da cidadania e tornou o direito de

resistência uma ferramenta mais maleável e acessível, ao romper com a obrigatoriedade da

resistência ser uma expressão da vontade da maioria. A obra de Thoreau foi inspirada no

direito natural à vida, à propriedade e à liberdade, também defendido por Locke; e

fundamentou-se com base na busca pela liberdade presente na Declaração de Independência

dos Estados Unidos, de Thomas Jefferson.

Outros autores que realizaram colaborações essenciais para a desobediência civil no

século XX, foram Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. Gandhi incorporou o conceito

da não-violência nas grandes manifestações que realizou na luta pela independência indiana.

Martin Luther King Jr. introduziu a noção de ação direta e a necessidade de atrair a

mobilização da sociedade, sendo capaz de dar visibilidade ao movimento negro americano

com a resistência pacífica.

6.1. Henry David Thoreau e a Desobediência Individual

Thoreau inicia sua obra observando a democracia americana que, segundo ele, estaria

doente devido à atuação do governo que se distanciou do que foi almejado na época da

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independência, ao manter a escravidão e ao invadir o território mexicano com os seus

soldados. Logo, Thoreau concorda com a afirmação de Thomas Jefferson sobre o melhor

governo ser aquele que governa menos, e ainda admite: “O melhor governo é aquele que não

governa”.25 A intenção de Thoreau com essa declaração não é extinguir o governo, apenas

deseja que este funcione de forma mais rápida e sistemática.

O autor condiciona a atuação do governo ao comportamento da sociedade, sendo este

composto pela somatória das individualidades. O governo é tido como meio, através do qual o

povo executa sua vontade: “O governo em si, que é apenas o modo que o povo escolheu para

executar a sua vontade, é igualmente suscetível de ser abusado e pervertido antes que o povo

possa agir por meio dele”.26

A principal função do governo, segundo o autor, é assegurar a liberdade, conforme

estabelecido na Constituição americana. No entanto, encontra-se passível de ter sua finalidade

desviada, quando preocupa-se apenas com sua permanência no poder. Em razão dessa

manutenção do controle, o governo se sobrepõe ao real interesse da sociedade para atuar em

benefício próprio, descumprindo a sua finalidade e afastando-se de sua integridade.27

O autor entende que a maioria governa por possuir mais força, e não necessariamente

por ser correta e justa, o que torna impossível assegurar a justiça no governo que se sustenta

apenas pela vontade da maioria, “não há como um governo ser baseado na justiça quando, em

todos os casos, ele é comandado pela maioria”.28

Thoreau valoriza a individualidade e questiona o modelo proposto pela doutrina

liberal, no qual a minoria deveria se submeter a vontade da maioria, capaz de decidir em

nome de todos, para que assim a sociedade política se mantivesse coesa. Nelson Nery afirma:

“Para Thoreau, porém, o argumento liberal da necessidade de preservar a comunidade de

rupturas não significava que fosse o mais justo, pois se tratava somente de um cálculo de

interesse, não de um critério de justiça”.29

A lei está à mercê da vontade do legislador, que representa apenas a vontade da

maioria, portanto, este pode elaborar leis injustas, que não estão fundamentas na justiça.

Sendo assim, Thoreau defende que ser correto e justo está acima do respeito às leis injustas.

Se a lei é injusta, o homem justo e bem intencionado ao respeitá-la estará consequentemente

sendo injusto: “A lei nunca tornou os homens um pouco mais justos; e, por meio de seu

respeito a ela, mesmo os bem-intencionados são diariamente agentes da injustiça”.30

Se o indivíduo deixa de lado a sua consciência e obedece cegamente as leis postas pelo

governo, acaba perdendo sua humanidade e torna-se objeto a serviço dos governantes, como

pondera Thoreau: “Acredito que, antes de sermos súditos, devemos primeiramente ser

homens. Não é desejável cultivar um respeito maior pela lei do que um respeito pelo que é

correto. A única obrigação que tenho o direito de aceitar é fazer a qualquer momento o que eu

acredito ser correto”.31

Os homens que se deixam conduzir pelo governo em detrimento de sua própria

consciência, normalmente são reconhecidos como bons cidadãos. No entanto, perdem a

25 THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. 1ª. ed. São Paulo: EDIPRO, 2016. 26 Ibid, p.48 27 Ibid, p.49 28 Ibid, p.50 29 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.27 30 THOREAU, Henry David. op. cit. p.50 31 Idem

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capacidade de exercer sua moral e tornam-se vulneráveis ao apoiar qualquer governo, o justo

ou o injusto, ainda que não percebam. Já os homens que servem ao Estado, mas não

abandonam sua consciência, e resistem ao governo quando necessário, recebem o título de

inimigos. Thoreau define o direito de resistência da seguinte maneira: “o direito de recusar

lealdade e de resistir ao governo quando sua tirania ou sua ineficiência são grandes e

insuportáveis”.32

Em sua obra Thoreau faz uma forte crítica às atitudes do governo americano,

demonstrando que são contraditórias com relação a sua finalidade, uma vez que, sua

Constituição defende a liberdade, e existem instrumentos legais com o intuito de legitimar a

escravidão e a guerra no México. Os grandes opositores ao fim da escravidão, são os

comerciantes e agricultores, que se beneficiam dela e estão mais interessados no lucro do que

na humanidade, o que faz da justiça algo indesejável.

O processo eleitoral é compreendido como uma espécie de jogo, com uma pequena

participação da moral, sem que o caráter dos eleitores corresse risco. Os cidadãos podiam

lançar seus votos sem se preocupar de fato com o resultado, dispostos a aceitar a decisão da

maioria. Essa atitude é criticada por Thoreau, dado que a maioria controla o governo, então,

deixar que a situação seja decidida somente através dos votos é o mesmo que não se

posicionar: “Um homem sábio não deixa o correto à mercê do acaso, nem deseja que ele

prevaleça pelo poder da maioria. Há pouca virtude na ação das massas”.33

Thoreau defende que o dever do indivíduo honesto é ao menos não oferecer seu apoio

prático para o governo tirânico e injusto. Quando o indivíduo oferece dinheiro ao governo,

por meio da figura dos impostos, estaria oferecendo o seu apoio tacitamente: “O maior e mais

permanente erro necessita da mais desinteressada virtude para que possa se sustentar”.34

A falta de atitude dos indivíduos com relação as ações do governo possibilita a

manutenção da vontade da maioria, ainda que seus efeitos sejam considerados injustos por

uma parcela da população. Para Thoreau, é somente através das ações que as mudanças

acontecem, mesmo que de maneira lenta e gradual. A democracia para funcionar plenamente

deveria ser participativa, na qual o voto somente teria significado enquanto motivado pelo

interesse público e consciência individual.

Thoreau percebe que normalmente a sociedade prefere respeitar às leis até que a

maioria seja persuadida e decida mudá-las. Isso ocorre devido ao medo de resistir e tornar a

situação pior. Mas, acredita que se for necessário descumprir uma lei para que a mudança

aconteça e a justiça seja feita, então é melhor transgredi-la. O Estado não oferece outras

alternativas para lidar com uma lei injusta, e esperar até que a maioria seja persuadida levaria

muito tempo, logo, quando a modificação na legislação fosse realizada já não importaria

mais.35

Ainda segundo o autor, o governo manipulava e iludia a sociedade, principalmente

com a imprensa, fazendo os indivíduos acreditarem que os benefícios adquiridos fossem o

suficiente para não se importarem com a opressão, situação bastante semelhante à descrita por

La Boétie tantos séculos antes ao observar a servidão voluntária. A Igreja anteriormente

ocupava esse papel agora comandado pela imprensa, na manipulação da vontade social, como

32 THOREAU, Henry David. op. cit, p.52 33 Ibid, p.55 34 Ibid, p.57 35 Ibid, p.55

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corrobora Nelson Nery: “A imprensa, para desempenhar sua função essencial de sustentar os

governos, não se importava de utilizar qualquer meio para garantir tal intento”.36

A desobediência civil decorre do direito de cidadania, e sempre deve ser empregada

quando o governo extrapole suas prerrogativas. Um grande diferencial na obra de Thoreau é a

importância que ele confere a atuação da minoria, que antes não era considerada participante

legítimo para o exercício do direito de resistência, como na teoria de Locke. Para Thoreau, a

ação de um homem honesto pode influenciar o comportamento dos demais: “Pois mesmo que

comece de forma muito pequena, o que se faz bem uma vez, está feito para sempre”.37

A maioria no entanto, não era considerada uma potencial praticante da desobediência

civil, pois nos governos liberais ela já representava o funcionamento do poder, com os votos

majoritários nas eleições dos representantes, e também por ser facilmente manipulável pelo

governo e pela imprensa.38

As mudanças no governo somente tornam-se possíveis mediante a ação: “Uma

minoria é impotente enquanto se conforma à maioria e, então, não é nem uma minoria; mas é

irresistível quando ela entope as tubulações com todo o seu peso”.39 A minoria encontra na

desobediência civil a única solução para manifestar suas reivindicações, romper com o estado

de inércia em que se encontrava ao se submeter a vontade da maioria.

Além de viabilizar a participação da minoria, Thoreau também defende a ação de um

único indivíduo, sendo o próprio autor um exemplo dessa atuação isolada, quando o mesmo

foi levado a prisão ao se recusar a pagar os impostos que segundo ele, financiavam a

manutenção da escravidão e a invasão do território mexicano. O não pagamento do imposto é

uma ação que visa demonstrar a insatisfação para com o governo.

Para Thoreau, o dinheiro desse imposto é o responsável por financiar a guerra e apoiar

a escravidão, ao não pagá-lo, recusa-se a oferecer sua lealdade ao Estado: “Eu

silenciosamente declaro guerra ao Estado do meu jeito”.40 O ato individual realizado por

Thoreau, é uma forma de resistência pacífica, que não fere a integridade moral do participante

e tem por objetivo questionar pontos específicos do governo, sem ter a intenção de romper

radicalmente com todas as instituições.

Os desobedientes, entretanto, deveriam sempre estar preparados para lidar com as

consequências de seus atos, como no caso de Thoreau que culminou em sua prisão. Contudo,

quando o governo age injustamente a prisão de forma alguma atingiria a moral desse

indivíduo, pois conforme Thoreau: “Em um governo que aprisiona qualquer um injustamente,

o verdadeiro lugar de um homem justo também é a prisão”.41 Se submeter a um governo

injusto somente por medo de sua força superior é o mesmo que lhe entregar sua consciência,

algo que para Thoreau pode ser comparado a morte.

Portanto, a desobediência civil é o caminho para democratizar o Estado liberal,

aperfeiçoando-o com modificações especificas e periódicas: “O governo não tem qualquer

direito puro sobre minha pessoa e meus bens, exceto aqueles que lhe concedo. O progresso de

36 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.28 37 THOREAU, Henry David. op. cit. p.60 38 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.28 39 THOREAU, Henry David. op. cit,, p.60 40 Ibid, p.67 41 Ibid, p.60

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uma monarquia absoluta para uma limitada, de uma monarquia limitada para uma democracia

é o progresso em direção ao verdadeiro respeito ao indivíduo”.42

A teoria de Thoreau, limita a atuação do governo ao cumprimento de sua finalidade,

contribui para a análise do poder político enquanto meio de viabilizar melhores condições de

vida para a sociedade, mas nunca como um fim em si mesmo. Dessa maneira, a democracia

representa o modo mais adequado e capaz de permitir a participação popular nas questões de

interesse público.

6.2. Mahatma Gandhi e a Não-Violência

Mahatma Gandhi, “Grande Alma”, dedicou a sua vida em função do processo de

formação do Estado indiano. Formou-se em advocacia na Inglaterra, e iniciou sua carreira na

África do sul como defensor dos interesses dos emigrantes da Índia. Logo, começou a se

dedicar às atividades políticas. Liderou o movimento contra um projeto legislativo que

limitaria os direitos civis dos indianos, no qual realizou uma petição que alcançou o número

de dez mil assinaturas para entregar ao secretário britânico das colônias. Desde então, tornou-

se uma das personalidades de maior prestígio.

Gandhi deparou-se com a “Desobediência Civil”, de Henry David Thoreau, o que

influenciou a construção de sua estratégia política em busca da efetivação dos direitos dos

indianos, e mais tarde a independência perante a metrópole. A ação desobediente de Gandhi

consistia em duas táticas: a satyâgraha, que representa a resistência pacífica exercida através

de manifestações não-violentas, que pleiteavam os direitos civis e políticos; e a asahayoh, a

não-cooperação, na qual os indivíduos boicotavam a compra de alguns produtos para impactar

os produtores capitalistas, visando a conquista dos direitos sócias.43

A princípio Gandhi procurou assegurar os direitos civis dos indianos sem romper

completamente com o Império Britânico, realizou a “Marcha do Transvaal” com mais de dois

mil manifestantes, de forma pacífica, sem armas ou violência. Mesmo Gandhi sendo preso, as

desordens que ocorreram no estado acabaram modificando a legislação que prejudicava os

imigrantes.

Gandhi envolveu-se na defesa dos trabalhadores frente os conflitos sociais, na qual

definiu os requisitos para que uma greve obtivesse sucesso: nunca recorrer à violência, não

depender da caridade pública, não desanimar mesmo a greve se estendendo por um longo

período. A filosofia de Gandhi fundamentava-se na não-violência, ahimsa, que era apontada

como o único caminho efetivo para implementação de qualquer mudança social, em um

mundo infestado de violência e abusos.44

A não-violência é a responsável por garantir a honra e a integridade dos indivíduos,

contudo, para exercer a desobediência civil é fundamental a preparação dos participantes para

que pudessem se abster de reagir, mediante a provável repressão com o emprego de força

pelos adversários. Para Gandhi, a possibilidade de desobedecer às leis, é uma ferramenta

indispensável da cidadania, visto que almeja modificar, de maneira pacífica, a legislação e as

políticas do governo.

42 THOREAU, Henry David. op. cit, p.72 43 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.34 44 Ibid, p.35

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A resistência pacífica para o autor: “é o meio mais eficaz de exprimir a angústia da

alma e o mais eloquente para protestar contra a manutenção no poder de um Estado nocivo”.45

A desobediência civil permite que os indivíduos, as minorias e inclusive as maiorias

oprimidas, como a Índia naquele momento frente ao Império Britânico, passem a participar de

forma direta do processo político.

Gandhi liderou o movimento indiano com o propósito de obter autonomia política

através de inúmeras campanhas de desobediência civil, como a famosa caminhada pelo sal,

uma marcha com mais de setenta mil pessoas até a praia. Essa marcha pretendia extinguir o

imposto do sal, que era monopólio dos britânicos. A resistência pacífica juntamente com a

prática do jejum individual, realizado por Mahatma Gandhi, foram responsáveis na

constituição do Estado nacional, finalmente livrando a Índia da dominação exercida pela

metrópole.46

A obra de Mahatma Gandhi estruturou-se na ação política, através do exercício da

desobediência civil, responsável por renovar aspectos teóricos do movimento proposto

inicialmente por Thoreau, devido à sua natureza concreta e eficaz. Suas manifestações não-

violentas, e os boicotes da não-cooperação serviram de exemplo para comprovar que a

resistência pacífica realmente possui a capacidade de proporcionar transformações estruturais

no Estado.

6.3 Martin Luther King e a Ação Coletiva

A discriminação racial, na sociedade norte-americana, ainda existia mesmo tendo se

passado quase um século da violenta Guerra Civil (1861-1865) pelo fim da escravidão; no

qual o Sul agrícola e o Norte industrializado se dilaceraram em prol da hegemonia política,

sem integrar o negro na produção e nem nos benefícios sociais.47

Essa discriminação aos negros ocorria com a negação dos direitos civis e políticos, nos

estados sulistas, e também com a marginalização econômica, a restrição à aquisição de

posses, ou então, o abandono por parte do Estado nos guetos das grandes metrópoles. Nesse

cenário de negligencia do governo, as manifestações não-violentas despontaram como a

ferramenta adequada para a comunidade negra norte-americana reivindicar os seus direitos.

Conforme afirma Nelson Nery: “A desobediência civil situava-se como a opção entre

a obediência passiva e a militância revolucionária”.48 Nesse momento a sociedade estava

dividida entre duas perspectivas, os complacentes com a situação, englobando os próprios

oprimidos e a classe média insensível aos problemas coletivos; e a outra composta pelos

grupos nacionalistas negros, que se apropriavam da violência como mecanismo capaz de

solucionar o impasse existente.

Assim como na ação desobediente defendida por Thoreau, o movimento negro

liderado por Martin Luther King Jr., resistia a determinadas leis injustas e segregacionistas,

mas continuavam a obedecer à legislação geral, visto que o objetivo da manifestação não era

romper com o governo, mas lutar pela garantia e efetivação de seus direitos.

45 GANDHI, Mahatma, Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade, Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro,

1968, p.252 apud COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.36 46 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.35 47 Ibid, p.37 48 Ibid, p.36

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A principal característica da desobediência civil em Martin Luther King Jr. é a atuação

em massa, que se mantém organizada de maneira não-violenta. Com a ação de massas, o

número de pessoas atraia a atenção dos não participantes e tornava impossível a prisão de

todos os manifestantes, como ocorreu em Birminghan. Nesse episódio, o foco do protesto era

criticar a não integração das instalações públicas, que culminou na prisão de três mil

manifestantes pelas autoridades, superlotando os presídios, enquanto outros quatro mil

continuaram marchando pacificamente.49

As táticas de resistência pacífica utilizadas por Luther King Jr. foram o boicote, como

em Montgomery, no Alabama, com os boicotes aos transportes públicos onde havia

segregação. Os negros se locomoveram a pé durante vários meses evitando os ônibus

esperando que a discriminação cessasse. O sit-in que ocorre quando os manifestantes ocupam

um local, onde se sentam e permanecem como forma de protesto. E também a marcha, em

todas essas maneiras de exercer a resistência pacífica os indivíduos mantêm-se indiferentes à

repressão violenta, e sempre se abstêm de reagir.

A não-violência para Martin Luther King Jr., era de fundamental importância, pois

sempre que os presídios ficassem lotados com os participantes, o significado do movimento

ficaria mais evidente para a sociedade. Sobre a não-violência afirmava: “é uma arma poderosa

e justa. Ela é uma arma sem igual na história porque corta sem ferir e enobrece quem a

utiliza”.50

Assim como a experiência de Gandhi, os atos de desobediência civil deveriam ser

iniciados somente após uma longa preparação: coletar as informações do local e das causas

que seriam reivindicadas; sempre tentar a solução primeiramente por meio de negociação,

disciplinar os manifestantes para aceitar a punição; e ao final a ação direta para forçar a

abertura de conversações.

A resistência pacífica colocava o Estado em contradição, caso deixassem os

manifestantes atuarem, acabavam concordando tacitamente com as reivindicações, mas se

proibissem evidenciavam a injustiça cometida pelo governo. Esse impasse ficou perceptível

em Selma, onde os manifestantes protestavam de forma organizada e pacífica ignorando a

extrema brutalidade da repressão policial, o que sacudiu a opinião pública a favor do

movimento negro.

A ação não-violenta busca gerar uma empatia na sociedade, como analisa Nelson

Nery: “A violência da polícia recebida com passividade pelos manifestantes visava

sensibilizar os setores sociais indiferentes, brancos e negros, pela cobertura nacional da

imprensa. A mensagem pressionava as autoridades públicas, que tendiam a abrir concessões

pela impossibilidade de derrotarem pela força os movimentos pacíficos”.51

A resistência pacifica triunfou quando a Suprema Corte negou validade às leis que

impedissem a garantia dos direitos civis e políticos, eliminando as discriminações. No

entanto, a luta pelos direitos sociais ainda estava em seu início, e encontraria obstáculos quase

intransponíveis. Os protestos pacíficos passaram a sofrer ataques dos meios de comunicação,

não obtendo mais os mesmos resultados iniciais, consequentemente os movimentos radicais,

que se pautavam pelo uso da força, ganharam espaço causando perturbações.

49 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.37 50 KING, Martin Luther. “Why We Can’t Wait”, New York, The American Library, 1996, p.26 apud COSTA,

Nelson Nery. op. cit. p. 38

51 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p. 39

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Martin Luther King Jr. pretendia com a desobediência civil realizar transformações na

legislação segregacionista, com as reivindicações procurando assegurar as liberdades

individuas, os direitos políticos e o exercício da cidadania, para depois lutar pelos direitos

sociais.

Assim como Thoreau, Luther King distingue a lei justa da injusta, as primeiras devem

ser obedecidas, contudo, a lei injusta já estaria em desacordo com o direito natural, a moral do

indivíduo, logo deve ser descumprida. A desobediência civil justifica-se ao afirmar os valores

dos indivíduos em contra ponto às distorções causadas pelos governos.

Em sua obra Martin Luther King Jr., traz novas contribuições para a desobediência

civil, como a implementação da resistência com as minorias, através da ação de massa; assim

como Gandhi, defende a não-violência e a sujeição às sanções como consequência de seus

atos, o que pode gerar uma publicidade positiva para o movimento; e fundamenta a

justificativa à resistência a um conteúdo moral.

6.4 A Tolerância Repressiva de Herbert Marcuse

Herbert Marcuse analisa a ideia de tolerância na sociedade industrial, e conclui que os

governos, em sua maioria, não conseguem concretizá-la em suas ações. Sendo assim, a

tolerância torna-se um propósito político, no qual acaba contribuindo para a conservação da

opressão. Os governos distorcem o significado da tolerância em seu benefício, e cabe aos

estudiosos buscarem referências na história da humanidade, que comprovem essa falta de

efetiva tolerância, a fim de quebrar a concretude da opressão.52

O autor defende que a tolerância é um fim em si mesmo, e compreende a eliminação

da violência, que visa proteger o homem da crueldade e da opressão, como um requisito

essencial para instituição de uma sociedade mais humanizada. Embora, não acredite ainda na

existência dessa sociedade, visto que percebe um movimento crescente nos governos em

escala global, de práticas de violência e supressão de direitos.

Essas práticas são promulgadas e defendidas tanto por governos democráticos, quanto

por autoritários, nos quais a sociedade é educada a reproduzir determinado tipo de

comportamento com o intuito de preservar o status quo. Sendo assim, a tolerância estimularia

atitudes na população, que não são almejados pelos governantes, pois dificultaria a

manutenção da opressão.53

A tolerância tem mudado seu significado no campo da política, passando a representar

uma total complacência da sociedade para com as autoridades constituídas. A ideia de

tolerância aparece permeada de diversos valores imputados pelo próprio governo, que

representa a desigualdade institucionalizada, e visa atender apenas os seus interesses.

A liberdade para Marcuse, deve ser buscada mesmo na mais livre das sociedades

existentes. A tolerância é um requisito para que se possa alcançar a liberdade de expressão e

de pensamento. No entanto, o autor diferencia a tolerância indiscriminada, aquela semelhante

ao respeito a conteúdos diversos em conversas e debates inofensivos, da tolerância que

deveria estar presente na sociedade.54

52 MARCUSE, H. Repressive Tolerace. In: WOLFF, R.P. MOORE, B. MARCUSE, H. A Critique of Pure

Tolerance. Boston: Beacon Press, 1965. p.81

53 Ibid, p.82 54 Ibid, p.87

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Para o autor, a sociedade não pode utilizar a tolerância de maneira indiscriminada,

pois há certas ideias, políticas e comportamentos que não devem ser aceitos, uma vez que

transformam a tolerância em um instrumento de manutenção da servidão.55

A liberdade de expressão, mesmo a defendida pelos autores liberais, parte do

pressuposto do indivíduo ter a capacidade de aprender e desenvolver seus próprios

pensamentos, inclusive contra a autoridade estabelecida e opiniões divergentes. Sendo assim,

a tolerância indiscriminada torna-se questionável quando não assegura esse propósito. Nesse

caso, a tolerância será utilizada para manipular e doutrinar os indivíduos a reproduzirem as

opiniões do governo como se fossem suas, consequentemente a heteronomia passa a ser

internalizada pela sociedade.56

Marcuse direciona o foco de sua análise à tolerância com relação às maiorias e às

autoridades estabelecidas, sendo possível apenas nas sociedades democráticas, nas quais o

povo participa da política. Essa análise não poderia ser realizada perante os sistemas

autoritários, devido aos indivíduos não tolerarem as práticas do governo, senão estarem

submetidos a elas.57

Nos sistemas constitucionais, nos quais a liberdade e os direitos civis são assegurados,

a oposição ao governo é tolerada, a menos que utilize a violência. Então, conclui-se que as

sociedades estabelecidas usufruem da liberdade, e qualquer aperfeiçoamento no Estado,

mesmo provocando modificações na estrutura e nos valores sociais, ocorreriam conforme o

procedimento natural, previsto na Constituição ou obtido por meio de debates com a

população.58

Marcuse faz uma ressalva ao afirmar que essas modificações provavelmente seriam na

direção dos interesses particulares, que possuíssem maior influência na atuação do governo.

Contudo, as minorias que desejassem ter seus interesses atendidos, encontrariam certa

dificuldade em prevalecer frente a esmagadora maioria, que luta contra modificações no

status quo.

Com a liberdade de expressão assegurada pela democracia, todos os pontos de vista

podem ser exprimidos e longamente defendidos em debates organizados pelos meios de

comunicação. Marcuse critica o fato de discursos equivocados serem tratados da mesma

maneira que os coerentes, e das informações mentirosas serem disseminadas como

verdadeiras pela mídia.

A defesa dessa livre difusão de ideias dá-se por intermédio do argumento democrático

utilizando a tolerância indiscriminada criticada por Marcuse. Desse modo, nenhum indivíduo

ou grupo possuiria a verdade absoluta, não sendo capaz de determinar o que é bom ou mau, e

todas as discussões deveriam ser submetidas às deliberações da população.59

Todavia, já havia afirmado Marcuse, que na democracia o povo deve ser capaz de

refletir e tomar decisões com base na autonomia, e para isso, precisa ter acesso às informações

autênticas. Através dessa reflexão, o argumento democrático que justifica essa tolerância

abstrata tende a ser invalidado, o que expõe as falhas ocorridas nessa democracia.60

55 MARCUSE, H. op. cit, p.88 56 Ibid, p.90 57 Ibid, p.92 58 Idem 59 Ibid, p.94 60 Ibid, p.95

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A experiência democrática possibilita a representação da pluralidade de opiniões e de

setores da sociedade, o que permite diferentes configurações de governo e manifestações

culturais pelo mundo. No entanto, a crescente concentração econômica e política nas mãos de

grupos sociais fortes, que se apropriam da tecnologia como instrumento de dominação,

colocam em risco a representatividade, que não consegue mais cumprir com sua finalidade de

garantir os interesses distintos.

Há casos em que a democracia fica sujeita a organizações autoritárias, de modo que

grupos da sociedade unem-se para utilizar o monopólio dos meios de comunicação, que está

sob o seu domínio, para manipular a mentalidade dos indivíduos. Essa manipulação dá-se

através do controle ao acesso de informações, o que constitui a opinião pública. Ao moldar o

pensamento da sociedade sem que essa perceba, conseguem estabelecer conceitos pré

determinados acerca da definição do que é certo ou errado, a partir do interesse fundamental

de conservar a opressão.61

Nessa sociedade manipulada apenas as opiniões pertencentes a esses grupos, a maioria

conservadora, seriam consideradas coerentes e válidas, enquanto qualquer discurso

minimamente de oposição não mereceria atenção. Essa manipulação é responsável por

conceder um sentido próprio aos conceitos e valores. Dessa forma, a tolerância indiscriminada

não poderia ser aplicada, pois os indivíduos não teriam a capacidade de raciocinar para além

dos valores incutidos pela dominação.

Sendo assim, a liberdade de expressão não alcança sua plenitude, já que os discursos,

mesmo os concebidos pelos opositores, seriam baseados nos valores induzidos por meio da

manipulação. Diante disso, a complacência expressada pela sociedade apenas funcionaria

como instrumento de opressão, causando a ampliação da intolerância e da repressão por parte

do governo.

Esses indivíduos manipulados não poderiam ser considerados “tábula rasa”, uma vez

que são influenciados pelas condições às quais estão submetidos, perdendo a capacidade de

raciocinar empiricamente. Portanto, são privados de sua autonomia estando vinculados aos

ideais ditados pelo governo. Para que haja a efetiva liberdade de expressão é necessária uma

ruptura desses valores estipulados previamente, que são responsáveis por constituir a opinião

pública, e consequentemente aprisionam a sociedade.62

Quando a tolerância somente auxilia a preservação de uma sociedade repressiva, por

meio da anulação dos opositores, entende-se que esta foi pervertida. No momento em que essa

tolerância corrompida entra no inconsciente do indivíduo, os interesses almejados pelos

opressores tornam-se maiores que seus próprios desejos, impedindo que este se depare com a

sua servidão.63

Ainda segundo o autor, para romper com essa opressão é essencial combater o foco do

problema, as falsas informações que são oferecidas pelos manipulados meios de comunicação.

A percepção dessa falsa consciência, que foi implantada sistematicamente nos indivíduos pelo

governo, ocorrerá de forma lenta e gradual, mas representa a chance de cessar a dominação.

O progresso rumo a liberdade deve ser iniciado no campo da consciência, libertar a

mente manipulada da alienação que transforma a população em um objeto para as ações do

governo. Essa libertação da consciência dá-se através da educação, essa instrução busca

61 MARCUSE, H. op. cit. p.97 62 Ibid, p.98 63 Ibid, p.111

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afastar o ensino neutro e sem valor imposto pelos opressores, o que possibilita ao indivíduo a

compreensão dos fatos verdadeiros, e da dominação na qual esta inserido.64

Marcuse acredita ser improvável a criação de um direito específico que assegure a

possibilidade de resistir nos governos constitucionais sustentados pela maioria da sociedade.

No entanto, considera a existência de um direito natural de resistência, que possa ser usado de

forma extralegal pelas minorias oprimidas, quando todos os demais meios legais tornaram-se

ineficientes.65

O autor defende que a lei e a ordem sempre estarão a serviço da autoridade

estabelecida, sendo assim, seria sem sentido utilizá-la contra a minoria que está subordinada a

ela, mas busca maneiras de alcançar a sua dignidade. Para Marcuse, caso essa minoria

subjugada utilize violência como forma de resistência, uma vez que conhece os riscos e

mesmo assim está disposta a aceitá-los, não estaria desencadeando o ato violento, mas apenas

lutando para romper com a violência já estabelecida pelo governo.66

6.5 A Crise da Representatividade em Hannah Arendt

Hannah Arendt inicia suas considerações acerca da desobediência civil a partir do

pressuposto de uma crise instaurada nos governos representativos. Essa crise reflete a perda

dos meios de participação efetiva dos cidadãos na política, juntamente com o obstáculo da

burocratização e da extrema tendência ao bipartidarismo, que fortalece apenas a máquina

partidária sem conseguir representar ninguém.

Segundo Hannah Arendt, essa falta de representação culmina no: “desprezo pela

autoridade estabelecida, religiosa e secular, social e política, como um fenômeno mundial. (...)

Não se poderia imaginar evidência mais exposta, nem sinais mais explícitos da instabilidade e

vulnerabilidade interiores dos governos e sistemas legais”.67 A desintegração dos sistemas

políticos, corresponde a incapacidade de atuar adequadamente devido às leis parecerem ter

perdido seu poder, o que faz surgir nos cidadãos questionamentos quanto a legitimidade desse

governo.

A quebra da confiança no processo legal, devido à falta de consequências perante os

atos ilícitos, ocasiona um grave problema a respeito do sistema jurídico, no qual as

instituições mantenedoras da lei não conseguem assegurar o cumprimento delas:

A verdade simples e assustadora é que sob circunstâncias de permissividade social e legal as

pessoas se entregarão ao mais ultrajante comportamento criminoso; pessoas estas que em

circunstâncias normais talvez pensassem em tais crimes, mas nunca teriam realmente

considerado a possibilidade de cometê-los.68

Hannah Arendt faz uma forte crítica à resposta dada pelo governo, na qual passam a

compreender que a lei é violada da mesma maneira, tanto pelos criminosos, quanto pelos

manifestantes que exercem a desobediência civil. “Embora seja verdade que os movimentos

radicais (...) atraem elementos criminosos, não seria nem correto nem inteligente identificar os

64 MARCUSE, H. op. cit, p.101 65.Ibid, p.116 66 Ibid, p.117 67 ARENDT, Hannah. Crises da República. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. p.64

68 Ibid, p.65

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dois. Os criminosos são tão perigosos para os movimentos políticos quanto para a sociedade

em geral”.69

Segundo a autora, o único meio utilizado pelos contestadores civis que justificaria a

alcunha de “rebeldes” seria a violência. Sendo assim, é fundamental dentre as características

da desobediência civil a necessidade dos atos serem públicos e não-violentos. A

complexidade em estabelecer a distinção entre os revolucionários e os contestadores civis

ocorre devido a ambos os movimentos almejarem mudanças no governo. No entanto, as

transformações pretendidas pelos contestadores civis são específicas em busca do

aperfeiçoamento do Estado, enquanto os revolucionários ambicionam romper com todas as

instituições.70

A velocidade com que as transformações ocorrem atualmente foi objeto de análise

para Hannah Arendt:

“A transformação é constante, inerente à condição humana, mas a rapidez da transformação

não o é. (...) dificilmente se poderia dizer que o apetite do homem pela mudança cancelou sua

necessidade de estabilidade. É perfeitamente sabido que o mais radical dos revolucionários se

tornará um conservador no dia seguinte à revolução”.71

Um dos fatores estabilizantes da sociedade são os sistemas legais, que são mais

duradouros que modas, costumes e tradições. “Eis a razão porque a lei parece, numa época de

rápidas transformações, inevitavelmente uma “força repressiva, e desta forma uma influência

negativa num mundo que admira a ação positiva”.72 Apesar dos inúmeros ordenamentos

jurídicos existentes, todos têm algo em comum, terem sido planejados para assegurar a

estabilidade.

Quando não há estabilidade quanto às normas impostas pelo governo, sobrevindo

constantemente novas alterações na validade destas, modificando completamente o seu

conteúdo, nos deparamos com a ilegalidade. De acordo com a teoria de Arendt: “A lei

realmente pode estabilizar e legalizar uma mudança já ocorrida, mas a mudança em si é

sempre resultado de ação extralegal”.73

A autora exemplifica essa situação através da 14ª Emenda da Constituição dos Estados

Unidos, que deveria garantir constitucionalmente as transformações ocorridas no período da

guerra civil norte-americana, mas os estados sulistas continuaram a aplicar as leis

segregacionistas durante cem anos; violando a Constituição sem que a Suprema Corte se

manifestasse. Esta somente se pronunciou após os atos de desobediência civil do movimento

negro.74

Ao examinar a obrigação política, Hannah Arendt afirma: “O compromisso moral do

cidadão em obedecer às leis, tradicionalmente provém da suposição de que ele, ou deu seu

consentimento a elas, ou foi o próprio legislador; sob o domínio da lei, o homem não está

sujeito a uma vontade alheia, está obedecendo a si mesmo”.75

A crise no governo representativo é o resultado da quebra desse consentimento tácito

da sociedade para com as ações tomadas pelos governantes, em parte devido a não

69 ARENDT, Hannah. op. cit, p.68 70 Ibid, p.70 71 Ibid, p. 71 72 Ibid, p.72 73 Ibid, p.73 74 Ibid, p.74 75 Ibid, p.76

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participação da população na política, e a burocratização da máquina partidária através do

bipartidarismo. Consequentemente, instaura-se uma crise constitucional, em virtude dos

constantes ataques à Constituição pelo governo, o que gera a perda da confiança da população

pelos processos democráticos ao não sentir-se representada pelos governantes.

O consentimento é o instrumento fundamental capaz de organizar as ações individuais

presentes na sociedade em forma de associações voluntárias que agem conjuntamente em

benefício de um interesse comum. Defende Arendt: “Associações voluntárias não são partidos

políticos; são organizações que perseguem objetivos a curto prazo e desaparecem quando o

objetivo é atingido”.76

Hannah Arendt, assim como Tocqueville, reconhece a associação entre os indivíduos

como a ampliação do interesse pela política, o que serve como garantia frente a possibilidade

de dominação pela maioria. Dessa maneira, a desobediência civil como apresenta a autora é

composta por: “minorias organizadas, que se levantam contra maiorias supostamente

inarticuladas, embora nada silenciosas”.77

Para a autora a desobediência civil é um instrumento essencial capaz de resgatar o

verdadeiro sentido da democracia, viabilizando a oportunidade das minorias se expressarem

diante do Estado. Os contestadores civis são minorias organizadas em benefício de uma

opinião comum, que se posicionam contra atos específicos praticados pelo governo, mesmo

que estes sejam endossados pela maioria.78

Hannah Arendt compreende a dificuldade dos ordenamentos jurídicos em incorporar a

desobediência civil, pois seria incompatível instituir uma norma que assegure a violação da

lei. No entanto, admite o papel crucial que a desobediência civil possui nos processos

democráticos ao garantir a manifestação do pluralismo político.79

7. Conclusão

A pesquisa possibilitou um maior entendimento acerca do exercício da cidadania

como característica fundamental para existência de um governo legítimo. Por meio desse

estudo, verificou-se o desenvolvimento do direito de resistência como um movimento que

ocorreu paralelamente à formação do Estado de Direito, agindo como ferramenta crucial para

assegurar as liberdades individuais.

Essa análise também permitiu a compreensão das características essenciais para a

atuação dos que exercem a desobediência civil, na qual a não-violência e a publicidade das

ações são imprescindíveis para alcançar a garantia dos direitos pretendidos. Constatou-se o

questionamento existente quanto à legitimidade dessas resistências pacíficas, e a dificuldade

do ordenamento jurídico em incorporar leis positivas, que assegurem o exercício desse direito.

A obra de La Boétie contribuiu para a análise do comportamento da sociedade com a

concepção da servidão voluntária, na qual os súditos esquecem o desejo pela liberdade em

decorrência da sujeição perante o tirano. John Locke, autor contratualista liberal, influenciado

por esse pressuposto, apresentou a noção do consentimento do povo como real fonte de

legitimidade para constituição do estado civil. Em Thoreau o direito de resistência teve sua

aplicabilidade ampliada, visto que diferentemente de Locke, defendeu a viabilidade das ações

76 ARENDT, Hannah. op. cit, p.84 77 Ibid, p.87 78 Ibid, p.89 79 Ibid, p.88

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individuais. Para Thoreau, o indivíduo sozinho seria capaz de manifestar sua insatisfação

frente ao governo, dando origem a desobediência civil. Mahatma Gandhi e Martin Luther

King, inspirados pela obra de Thoreau, conceberam novas características ao movimento, com

a premissa da não-violência, e da ação coletiva. Esses autores também observaram a

necessidade de organização prévia das manifestações, com o intuito de ensinar aos

participantes a submissão diante da repressão violenta do governo.

Seguindo o estudo quanto à legitimidade do governo, Marcuse apresentou o

argumento da tolerância enquanto, instrumento de manutenção da opressão nas sociedades

alienadas por organizações autoritárias. Já Hannah Arendt, demonstrou a crise instaurada nos

governos representativos, devido à quebra do consentimento popular e da falta de confiança

nas leis positivas. Da análise de todos os autores citados é possível identificar em quais

aspectos e fundamentos se desenvolve a desobediência civil como mecanismo capaz de

efetivar a busca pela democracia e aperfeiçoar o funcionamento do Estado.

8. Referências

1 – ARENDT, Hannah. Crises da República. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.

2 – ______________. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

3 – BOÉTIE, Étienne de La. Discurso da Servidão Voluntária, São Paulo: Brasiliense,

1999.

4 - BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 11ª.ed. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 1998.

5 – BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência constitucional. Rio de Janeiro:

América Jurídica, 2002.

6 – COSTA, Nelson Nery. Teoria e realidade da desobediência civil. 1ª. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1990.

7 – GARCIA, Maria. Desobediência civil. Direito fundamental. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 1994.

8- LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. 1ª.ed. São Paulo: EDIPRO,

2014.

9 – MARCUSE, H. Repressive Tolerace. In: WOLFF, R.P. MOORE, B. MARCUSE, H. A

Critique of Pure Tolerance. Boston: Beacon Press, 1965.

10 – THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. 1ª. ed. São Paulo: EDIPRO, 2016.