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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ZILDA ANDRADE LOURENÇO DOS SANTOS O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE TÓPOI E ARGUMENTOS RETÓRICOS NA CONSTRUÇÃO DAS EPÍSTOLAS DE SÊNECA E PAULO VITÓRIA 2017

O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE

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Page 1: O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIacuteRITO SANTO

CENTRO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E NATURAIS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS

ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS

O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE

TOacutePOI E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO

VITOacuteRIA

2017

ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS

O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE TOacutePOI E

ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA

E PAULO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espiacuterito Santo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Orientadora Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite

VITOacuteRIA

2017

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-publicaccedilatildeo (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espiacuterito Santo ES Brasil)

Santos Zilda Andrade Lourenccedilo dos 1947- S237d O discurso constituinte como determinante no uso de toacutepoi e argumentos retoacutericos na construccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Zilda Andrade Lourenccedilo dos Santos ndash 2017 335 f Orientador Leni Ribeiro Leite Tese (Doutorado em Letras) ndash Universidade Federal do Espiacuterito Santo Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais 1 Secircneca 2 Paulo Apoacutestolo Santo 3 Epiacutestola latina 4 Anaacutelise do discurso literaacuterio 5 Literatura antiga 6 Histoacuteria antiga I Leite Leni Ribeiro 1979- II Universidade Federal do Espiacuterito Santo Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais III Tiacutetulo

CDU 82

ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS

O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE TOacutePOI E

ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E

PAULO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espiacuterito Santo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Orientadora Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite

COMISSAtildeO EXAMINADORA

______________________________________ Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite Universidade Federal do Espiacuterito Santo Orientadora

______________________________________ Prof Dr Gilvan Ventura da Silva Universidade Federal do Espiacuterito Santo

______________________________________ Profordf Drordf Juacutelia Maria Costa de Almeida Universidade Federal do Espiacuterito Santo

______________________________________ Prof Dr Deacutecio Orlando Soares da Rocha Universidade Estadual do Rio de Janeiro

______________________________________ Prof Dr Faacutebio da Silva Fortes Universidade Federal de Juiz de Fora

______________________________________ Prof Dr Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho Universidade Federal do Espiacuterito Santo ______________________________________ Profordf Drordf Isabella Tardin Cardoso Universidade Estadual de Campinas

In memoriam

Aos meus pais

Que partiram cedo e natildeo chegaram agrave uacuteltima estaccedilatildeo da vida mas deixaram como legado uma bagagem de valores

insubstituiacuteveis

Pr Oliveira de Arauacutejo

Viveu lutou e partiu haacute trecircs meses Ensinou uma grande liccedilatildeo

Vale a pena sonhar

AGRADECIMENTOS

Gratidatildeo a Deus pela renovaccedilatildeo diaacuteria da capacidade fiacutesica mental e emocional

como condiccedilotildees baacutesicas para a produccedilatildeo deste trabalho Em momentos de fraqueza

e desacircnimo um texto biacuteblico muito inspirador e reconfortante funcionou como uma

forccedila de recarga do acircnimo e coragem ldquoNatildeo temas porque eu sou contigo natildeo te

assombres porque eu sou teu Deus eu te fortaleccedilo e te ajudo e te sustento com a

destra da minha justiccedilardquo (Isaias 4110) Agrave Capes pela ajuda financeira que me

permitiu a realizaccedilatildeo das viagens natildeo somente atraveacutes dos textos mas a

oportunidade de visitar lugares historicamente marcados pela Antiguidade claacutessica

e tambeacutem a participaccedilatildeo no congresso internacional na Faculdade de Letras do

Porto Agrave coordenaccedilatildeo e funcionaacuterios do PPGL pelos serviccedilos prestados e a atenccedilatildeo

aos alunos do programa Agrave minha orientadora profordf Drordf Leni Ribeiro Leite por

depositar confianccedila nas possibilidades do meu desempenho na academia o

incentivo pontual as leituras cuidadosas e orientaccedilotildees na minha produccedilatildeo textual O

estiacutemulo acadecircmico na promoccedilatildeo e coordenaccedilatildeo dos encontros e debates do grupo

de pesquisa fato que contribuiu para a construccedilatildeo das minhas ideias em partes

cruciais da pesquisa Aos professores Dr Gilvan e Drordf Juacutelia pela excelecircncia na

ministraccedilatildeo das aulas nas quais participei na poacutes-graduaccedilatildeo As valiosas

contribuiccedilotildees em minha qualificaccedilatildeo e as observaccedilotildees pertinentes ajudaram nortear

o meu trabalho Aos professores Dr Deacutecio Rocha e Dr Faacutebio Fortes que

atenciosamente aceitaram o convite para composiccedilatildeo desta banca

Agraves colegas Kaacutetia e Marihaacute pela ministraccedilatildeo das aulas de latim como suporte para

lidar com os textos latinos Ao professor Fernando por compartilhar seus

conhecimentos do grego claacutessico Ao professor Kosmaacutes por abrir as portas do

Centro de Cultura Grega e oferecer a oportunidade de introduccedilatildeo aos estudos do

grego koineacute base indispensaacutevel para identificaccedilatildeo de palavras gregas nos textos

receptus das epiacutestolas do apoacutestolo Paulo Aos colegas do grupo de pesquisa Ana

Camilla Natan Marihaacute Kaacutetia Luiza Alessandro Bruno Iana Fabrizia Mariane

Baacuterbara e Irlan por formarem uma equipe tatildeo coesa e amiga responsaacutevel e alegre

Ao meu esposo Paulo companheiro fiel e dedicado com sua forccedila sustentadora agrave

minha irmatilde parceira atuante na realizaccedilatildeo das viagens em 2013 e 2016 ao mundo

claacutessico aos meus familiares e amigos pela expectativa incentivadora do meu

desempenho neste compromisso acadecircmico assumido

Natildeo chegaraacute aos nossos ouvidos o que os pocircsteres diratildeo de noacutes mas decerto nas suas palavras embora sem o sentirmos continuaremos a ser uma presenccedila Secircneca (Ep 7918) Porque agora vemos por espelho em enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecido Paulo (1Cor 132)

RESUMO

Esta pesquisa foi elaborada a partir da construccedilatildeo de um paralelo entre a produccedilatildeo

das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo durante o primeiro seacuteculo de nossa era O

discurso constituinte eacute o elemento determinante na forma de conduccedilatildeo da trajetoacuteria

do gecircnero epistolar Secircneca se direciona pelos caminhos do discurso filosoacutefico

enquanto Paulo respalda seu texto com base no discurso religioso Como ponto de

partida conta-se com o apoio de Foucault em suas investigaccedilotildees sobre a escrita de

si como um ingrediente na receita do cuidado de si na Antiguidade Nota-se que a

epistolografia exerce um papel fundamental naquele momento histoacuterico funcionando

natildeo somente como meio de comunicaccedilatildeo entre remetente e destinataacuterio mas

tambeacutem como uma forma de exposiccedilatildeo da subjetividade que se revela pela

aquisiccedilatildeo dos discursos verdadeiros Estes discursos manifestam-se no modo de

agir do indiviacuteduo determinando a posiccedilatildeo discursiva ocupada pelo ethos na

enunciaccedilatildeo Os pressupostos da anaacutelise do discurso de base enunciativa na

abordagem de Maingueneau e outros pesquisadores nessa mesma linha fornecem

suporte teoacuterico para as anaacutelises Na cena geneacuterica da enunciaccedilatildeo ocorre a

construccedilatildeo do gecircnero do discurso e este requer uma cenografia discursiva que o

direciona no ato enunciativo revelando o ethos do enunciador responsaacutevel pelo

discurso A epiacutestola como gecircnero na escrita de Secircneca e Paulo fornece espaccedilo

para que cada um desenvolva suas argumentaccedilotildees segundo os fundamentos

baacutesicos da retoacuterica antiga A partir dos discursos constituintes filosoacutefico e religioso

estes autores recorrem a determinados toacutepoi lugares comuns e argumentos

retoacutericos que satildeo desenvolvidos na construccedilatildeo de suas epiacutestolas Nas fronteiras dos

discursos filosoacutefico literaacuterio e religioso encontram-se as influecircncias da cultura

heleniacutestica que contribuem para aproximaccedilatildeo destes discursos constituintes

exercendo um efeito de entrecruzamento causando o fenocircmeno do interdiscurso

Assim as posiccedilotildees discursivas de Secircneca e Paulo ora se aproximam ora se

afastam tendo em vista os discursos constituintes que as direcionam

Palavras-chave Secircneca e Paulo discurso constituinte gecircnero epistolar ethos

toacutepoi

ABSTRACT

This research was elaborated from the construction of a parallel between the

production of the epistles of Seneca and Paul during the first century of our era

The constituent discourse is the determining element in the way of conducting the

trajectory of the epistolary genre Seneca is guided by the paths of philosophical

discourse while Paul supports his text based on religious discourse As a starting

point one counts on the support of Foucault in his investigations on the writing of

itself like an ingredient in the prescription of the care of itself in the Antiquity It is

noted that epistolography plays a fundamental role in that historical moment

functioning not only as a means of communication between the sender and

recipient but a form of exposition of the subjectivity that is revealed by the

acquisition of the true discourses These discourses are manifested in the

individuals way of acting determining the discursive position occupied by the ethos

in the enunciation The assumptions of discourse analysis with an enunciative

basis in Maingueneaus approach and other researchers in this same line provide

theoretical support for the analyzes In the generic scene of the enunciation occurs

the construction of the discourse genre and this requires a discursive scenography

that directs it in the enunciative act revealing the ethos of the enunciator

responsible for the discourse The epistle as genre in the writings of Seneca and

Paul provides space for each one to develop their arguments according to the

basic foundations of ancient rhetoric Starting from the constituent discourses

philosophical and religious these authors resort to certain topoi commonplace and

rhetorical arguments that are developed in the construction of their epistles At the

frontiers of philosophical literary and religious discourses are the influences of

Hellenistic culture that contributes to the approximation of these constituent

discourses exerting an effect of intercrossing causing the interdiscourse

phenomenon Thus the discursive positions of Seneca and Paul sometimes come

closer together and sometimes departing in view of the constituent discourses that

direct them

Keywords Seneca and Paul constituent discourse epistolary genre ethos topoi

RESUMEN

Esta investigacioacuten fue elaborada a partir de la construccioacuten de un paralelo entre la

producioacuten de las epiacutestolas de Seacuteneca y Pablo durante el primer siglo de nuestra

era El discurso constituyente es el elemento determinante en el modo de la

conduccioacuten de la trayectoria del geacutenero epistolar Seacuteneca se vuelve a los caminos

del discurso filosoacutefico mientras Pablo sigue con su texto basado en el discurso

religioso Como punto de partida se cuenta con el apoyo de Foucault en sus

investigaciones sobre la escrita de si como ingrediente en el cuidado de siacute en la

Antiguumledad Se observa que la epistolografiacutea desempentildea un papel clave en ese

momento histoacuterico actuando no soacutelo como un medio de comunicacioacuten entre el

remitente y el receptor pero tambieacuten una forma de exposicioacuten de la subjetividad que

se revela por la aquisicioacuten de los discursos verdadeiros Estos se manifiestan en los

actos individuales determinando la posicioacuten discursiva ocupada por el ethos en la

enunciacioacuten Los supuestos del anaacutelisis del discurso de la base enunciaciativa en el

enfoque de Maingueneau y otros investigadores en esta misma linea de ideas

proporcionan soporte teoacuterico para el anaacutelisis En la escena de la enunciacioacuten ocurre

la construccioacuten del geacutenero del discurso y esto requiere una cenografia discursiva

que lo direciona en el acto enunciativo revelando el ethos del enunciador

responsable por el discurso La epiacutestola como geacutenero en la escritura de Seacuteneca y

Pablo proporciona espacio para cada uno exponer sus argumentos seguacuten los

fundamentos baacutesicos de la retoacuterica antigua A partir de los discursos constituyentes

filosoacutefico y religioso estos autores recurren a determinados toacutepoi lugares comunes

y argumentos retoacutericos que se desarrollan en la construccioacuten de sus epiacutestolas En

las fronteras de los discursos filosoacutefico literaacuterio y religioso estaacuten presentes las

influeacutencias de la cultura heleniacutestica que contribuyen para la aproximacoacuten de los

discursos constituyentes ejerciendo un efecto de entrecrusiamento entre los

discursos causando el fenoacutemeno del interdiscurso Asiacute las posiciones discursivas

de Seacuteneca y Pablo ora se aproximan ora se apartan en vista de los discursos

constituyentes que las dirigen

Palabras-clave Seacuteneca y Pablo discursos constituyentes geacutenero epistolar toacutepoi ethos

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 13

PARTE I

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE O QUADRO TEOacuteRICO 30

2 CONTRIBUICcedilOtildeES DE FOUCAULT PARA OS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE 35

21 A ESCRITA DE SI 43

22 SUJEITO E AUTORIA 50

3 A RETOacuteRICA NA ANTIGUIDADE 54

31 CONTRIBUICcedilOtildeES DE GREGOS E ROMANOS PARA A RETOacuteRICA 55

32 O TOacutePOS NA RETOacuteRICA E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA 66

33 PARRESIacuteA E RETOacuteRICA 74

4 A ANAacuteLISE DO DISCURSO E SUA RELACcedilAtildeO COM A RETOacuteRICA 82

41 DISCURSOS CONSTITUINTES 83

42 GEcircNERO DO DISCURSO 86

43 CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO 91

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE I 97

PARTE II

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CENA DA ENUNCIACcedilAtildeO NAS

EPIacuteSTOLAS DE PAULO E DE SEcircNECA 99

2 A EPISTOLOGRAFIA SEU LUGAR NA ANTIGUIDADE E SUA

CONTINUIDADE NA HISTOacuteRIA 102

21 PAULO E SUAS EPIacuteSTOLAS AgraveS IGREJAS 123

22 SEcircNECA E AS EPISTULAE MORALES 129

23 CONJECTURAS SOBRE A TROCA DE CORRESPONDEcircNCIA ENTRE

PAULO E SEcircNECA 134

3 FORMACcedilAtildeO JUDAICO-HELENIacuteSTICA DE PAULO E SEU POSICIONAMENTO

DISCURSIVO NAS EPIacuteSTOLAS 138

31 MANUAL DE INSTRUCcedilOtildeES DE PAULO Agrave IGREJA DE CORINTO 154

32 ETHOS DISCURSIVO DE PAULO DIANTE DE SEUS LEITORES 159

4 FILOSOFIA LITERATURA E POLIacuteTICA NA TRAJETOacuteRIA DE SEcircNECA E A

CONSTITUICcedilAtildeO DA CENOGRAFIA EM SUAS EPIacuteSTOLAS 166

41 CONSTRUCcedilAtildeO DA CENOGRAFIA COMO TRATADO FILOSOacuteFICO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA 180

42 ETHOS DE SEcircNECA DE ACORDO COM SUA POSICcedilAtildeO DISCURSIVA 186

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE II 194

PARTE III

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CONSTITUICcedilAtildeO DO DISCURSO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO 198

2 TOacutePOS FILOSOacuteFICOMORAL E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NAS

EPIacuteSTOLAS 209

21 TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL ldquoFALAR FRANCOrdquo 210

211 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 213

212 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto 216

22 O EXEMPLO COMO RECURSO RETOacuteRICO 220

221 Exemplos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 221

222 Exemplos nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto 230

23 CITACcedilOtildeES E ENTRECRUZAMENTO DE DISCURSOS CONSTITUINTES 238

231 Citaccedilotildees de maacuteximas e versos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 240

232 Citaccedilotildees de Paulo nas epiacutestolas aos Coriacutentios 248

24 USO DE METAacuteFORAS RETIRADAS DE UM LUGAR COMUM 257

241 A imagem do atleta em diferentes epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 262

242 A metaacutefora do atleta na primeira epiacutestola aos Coriacutentios 265

3 O TEMPO NAS CONCEPCcedilOtildeES FILOSOacuteFICAS DE SEcircNECA 269

31 O VALOR DO TEMPO 271

32 O TEMPO Eacute CIRCULAR 275

33 FLUIDEZ DO TEMPO 279

4 O TEMA O AMOR NAS EPIacuteSTOLAS DE PAULO 283

41 A ORIGEM DO AMOR 284

42 O AMOR PROMOVE A UNIAtildeO 288

43 A GRANDEZA DO AMOR 295

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE III 302

CONCLUSAtildeO 305

REFEREcircNCIAS 314

13

INTRODUCcedilAtildeO Pois assim que o nosso pensamento encontra as palavras ele jaacute natildeo eacute interno nem estaacute realmente no acircmago da sua essecircncia Quando comeccedila existir para os outros ele deixa de viver em noacutes como o filho que se desliga da matildee ao iniciar a proacutepria existecircncia

Arthur Schopenhauer (2005 p14)

Esta pesquisa visa atender os interesses dos estudos da Antiguidade claacutessica

colocando em cena dois personagens de relevacircncia na histoacuteria do impeacuterio romano

Por um lado Secircneca eacute representativo no campo da filosofia poliacutetica e literatura no

contexto do Principado na vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era Por outro lado

no mesmo periacuteodo destaca-se a figura de Paulo no campo da religiatildeo judaico-cristatilde

fortalecendo os primoacuterdios do cristianismo atraveacutes de sua missatildeo evangelizadora e

iniciativa de orientaccedilatildeo agraves igrejas por ele formadas por meio do recurso do gecircnero

epistolar Em especial o ponto comum entre esses dois autores eacute o uso do gecircnero

epistolograacutefico o que tambeacutem contribui para a hipoacutetese de contato entre eles

Ebbeler (2001 p1) informa que na obra de Jerocircnimo De Viris Illustribus (392 dC) eacute

mencionada a suposta correspondecircncia entre Seneca o filosoacutefo estoico e o

apoacutestolo Paulordquo A tentativa de aproximaccedilatildeo entre Secircneca e Paulo tambeacutem levanta

questotildees sobre a relaccedilatildeo entre estoicismo e cristianismo Para Candiotto (2012 p

106-108) uma das contribuiccedilotildees dos estudos de Foucault com foco na Antiguidade

eacute estabelecer de forma indireta oposiccedilotildees entre a praacutetica do cuidado de si entre

estoicos e cristatildeos Pode-se dizer indireta porque Foucault aponta diferenccedilas entre

os estoicos dos dois primeiros seacuteculos dC e o cristianismo institucionalizado que

naquele momento histoacuterico ainda natildeo havia se estabelecido se comparado agrave

antiguidade institucional do estoicismo

A primeira indagaccedilatildeo que se instaura inicialmente eacute que relevacircncia esta pesquisa

pode oferecer para os estudos acadecircmicos Necessariamente uma pesquisa

comparativa coloca em evidecircncia um paralelo entre pontos de vista diferenciados

Por essa razatildeo este trabalho estaacute investido na busca de observar como os

discursos filosoacutefico e literaacuterio funcionam como direcionamento na produccedilatildeo das

epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e a determinaccedilatildeo do discurso religioso na conduccedilatildeo

14

da produccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo dirigidas agrave igreja de Corinto Assim ao situar as

produccedilotildees de Secircneca no campo da literatura e filosofia as investigaccedilotildees contribuem

para as reflexotildees e descobertas tanto na aacuterea da literatura quanto na aacuterea da

filosofia nos estudos claacutessicos Quanto agraves produccedilotildees de Paulo no campo religioso

e literaacuterio as contribuiccedilotildees desta pesquisa visam atender os interesses das

investigaccedilotildees histoacutericas no campo da religiatildeo e os estudos teoloacutegicos e

hermenecircuticos voltados para o Novo Testamento visto ser esta uma literatura de

amplitude popular

Outro marco de relevacircncia neste trabalho eacute o interesse em compreender a escritura

da correspondecircncia na Antiguidade aproveitando as contribuiccedilotildees de Michel

Foucault na uacuteltima fase de suas pesquisas em especial o foco dado por ele ao

estoicismo dos dois primeiros seacuteculos de nossa era Ainda a escolha do quadro

teoacuterico da anaacutelise do discurso francesa de base enunciativa oferece categorias de

anaacutelise1 que podem ser produtivas nos estudos claacutessicos de acordo com postulados

desenvolvidos por Maingueneau

O interesse nesta tese em comparar a escrita das epiacutestolas de Secircneca e a de Paulo

surgiu a partir de um trabalho elaborado como requisito para a conclusatildeo do curso

Literatura e Histoacuteria em 2011 Ao analisar as possibilidades de possiacuteveis inter-

relaccedilotildees entre os discursos de Secircneca e Paulo no contexto histoacuterico do primeiro

seacuteculo de nossa era foram observadas certas manifestaccedilotildees de estrateacutegias

retoacutericas como forma de aproximaccedilatildeo entre posiccedilotildees discursivas entre esses dois

autores Este foi o ponto inicial que possibilitou o interesse na ampliaccedilatildeo dessa

investigaccedilatildeo como resultado das persistentes indagaccedilotildees por que pesquisar o

gecircnero epistolar na escritura de Secircneca e Paulo Que implicaccedilotildees resultam do uso

do gecircnero epistolograacutefico em tipos de discursos distintos como o filosoacutefico e o

1 Discurso constituinte gecircnero do discurso cenografia e ethos satildeo categorias de anaacutelise oferecidas

pela anaacutelise do discurso que atendem aos interesses de anaacutelise desta pesquisa Como registrado no Dicionaacuterio de anaacutelise do discurso Charaudeau e Maingueneau (2008 p 126) informam que a noccedilatildeo de discurso constituinte foi introduzida por Maingueneau e Cossutau (1995) para delimitar um conjunto de discursos que servem de alguma forma como fiadores de outros discursos e que natildeo tendo eles mesmos discursos que os validem devem gerir em sua enunciaccedilatildeo seu estatuto de alguma maneira ldquoauto-fundadordquo A escolha do gecircnero do discurso eacute definida pelo enunciador no direcionamento do modo de conduccedilatildeo do seu discurso Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008 p 96) a cenografia eacute imposta pelo gecircnero de discurso mas eacute instituiacuteda pelo proacuteprio discurso sendo validada pela proacutepria enunciaccedilatildeo Portanto o discurso se desenvolve a partir da cenografia que se estabelece sem modificar o gecircnero do discurso Na definiccedilatildeo de Amossy (2005 p 127) o ethos eacute compreendido como o conjunto das caracteriacutesticas que se relacionam agrave pessoa do orador e a situaccedilatildeo na qual esses traccedilos se manifestam e permitem construir sua imagem

15

religioso Aleacutem destes questionamentos iniciais no transcorrer da pesquisa outros

pontos de interrogaccedilatildeo foram se apresentando em relaccedilatildeo agrave identificaccedilatildeo do uso da

epistolografia Observou-se a importacircncia de identificar a retoacuterica e seus efeitos na

escritura epistolar situar os argumentos retoacutericos orientados a partir de Aristoacuteteles

entendido como recurso estrateacutegico na argumentaccedilatildeo congregar a noccedilatildeo de toacutepos

sugerida por Aristoacuteteles agrave praacutetica do uso do lugar comum na literatura latina no

sentido amplo da produccedilatildeo do texto escrito

Como hipoacutetese inicial pleiteou-se dar um tratamento indistinto entre o uso dos

termos carta e epiacutestola na Antiguidade Poreacutem ao deparar-se com as discussotildees

sobre a diferenccedila entre carta e epiacutestola em que Deissmann (1927 p 218) eacute ponto

de referecircncia nota-se uma preocupaccedilatildeo em classificar os tipos de correspondecircncia

pelas caracteriacutesticas que as diferenciam por meio de seus conteuacutedos Para

Deissmann a principal distinccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo literaacuteria e natildeo literaacuteria ou seja uma

relaccedilatildeo direta com os objetivos da correspondecircncia em termos de privado e puacuteblico

Entatildeo a noccedilatildeo de literaacuteria estaacute interligada agrave ideia de publicaccedilatildeo enquanto a natildeo

literaacuteria se reveste de um interesse particular entre os parceiros na correspondecircncia

A partir desta abordagem a correspondecircncia literaacuteria eacute designada como epiacutestola e a

natildeo literaacuteria como carta De acordo com esta posiccedilatildeo Paulo teria escrito carta por

ser caracterizada como natildeo literaacuteria e Secircneca teria escrito epiacutestola pelo caraacuteter

literaacuterio com vistas agrave publicaccedilatildeo Prosseguindo nas leituras e diversas comparaccedilotildees

de autores que lideram as abordagens desse tema foi necessaacuteria uma tomada de

posiccedilatildeo Oserva-se que na Antiguidade independente do objetivo da

correspondecircncia o termo de uso corrente era epiacutestola tanto no grego quanto no

latim e o uso dos termos carta ou letter referentes agrave correspondecircncia eacute posterior agrave

Antiguidade Portanto eacute necessaacuterio identificar as distinccedilotildees inerentes ao gecircnero

epistolar e classificar os subgecircneros que se enquadram na epistolografia Assim fica

estabelecido no tratamento desta tese o uso exclusivo do termo epiacutestola2 mediante

a conclusatildeo de que na Antiguidade o vocaacutebulo carta natildeo era considerado sinocircnimo

de epiacutestola no mesmo campo semacircntico

Outra questatildeo polecircmica eacute a concepccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca como tratado ou

ensaio e natildeo como gecircnero epistolar como explorado por grupos especializados em

2 Neste trabalho foi definido o uso do vocaacutebulo epiacutestola mas a maioria das traduccedilotildees e comentaacuterios

dos textos antigos usa o termo carta e letter e neste caso nas citaccedilotildees satildeo mantidos os vocaacutebulos estabelecidos pelos tradutores

16

estudos sobre ensaios Uma das contribuiccedilotildees favoraacuteveis agrave tomada de posiccedilatildeo

quanto ao gecircnero da correspondecircncia de Secircneca se deve agrave anaacutelise das epiacutestolas

pelo vieacutes da anaacutelise do discurso de base enunciativa Na enunciaccedilatildeo da primeira

epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio como abertura da coleccedilatildeo de epiacutestolas a constituiccedilatildeo

da cenografia se instaura como tratado filosoacutefico mas o gecircnero de discurso eacute

identificado em suas caracteriacutesticas como gecircnero epistolograacutefico Wilson (2001

2007) Inwood (2007) e Ebbeler (2001) satildeo pesquisadores voltados para a

Antiguidade concordantes de que Secircneca usa o gecircnero epistolograacutefico para seus

questionamentos filosoacuteficos Portanto estes autores servem de apoio para a decisatildeo

assumida em considerar as epiacutestolas de Secircneca como gecircnero epistolar filosoacutefico e

as de Paulo como gecircnero epistolar de aconselhamento

A concepccedilatildeo de retoacuterica na Antiguidade eacute outra questatildeo a ser tratada visto que

tanto Secircneca quanto Paulo se negam a assumir eloquecircncia e rebuscamento da

linguagem em suas epiacutestolas Como entatildeo situar a concepccedilatildeo de retoacuterica naquele

momento histoacuterico para compreender o posicionamento de Secircneca e de Paulo No

dizer de Alexandre Jr (2005 30) pode-se distinguir uma tendecircncia para a retoacuterica

filosoacutefica e outra para a retoacuterica poeacutetica No periacuteodo Heleniacutestico os estoicos

Cleantes e Crisipo defendiam a retoacuterica como a arte do bem dizer privilegiando o

componente esteacutetico-estiliacutestico Quintiliano (Institutio Oratoacuteria V 10 54) tambeacutem

assume uma posiccedilatildeo semelhante ao referir-se agrave retoacuterica como a arte de falar bem

Diante das divergecircncias de posicionamentos no modo de conceber a atuaccedilatildeo da

retoacuterica Secircneca e Paulo tendem a privilegiar a retoacuterica que se aproxima da filosofia

com sua origem em Platatildeo tendo continuidade e redefiniccedilatildeo em Aristoacuteteles e sendo

redimensionada em alguns de seus aspectos a partir do periacuteodo Heleniacutestico Com

base nessas consideraccedilotildees procura-se observar a retoacuterica como desenvolvida

pelos gregos e romanos como tambeacutem os sentidos que advecircm do uso de toacutepoi3 na

Antiguidade Tais preceitos satildeo evidenciados na cultura greco-romana e

reelaborados por Ciacutecero no contexto da filosofia e literatura latina sendo tambeacutem

identificados nas concepccedilotildees e produccedilotildees de Quintiliano na vigecircncia do primeiro

seacuteculo dC

3 Na obra Retoacuterica de Aristoacuteteles toacutepoi eacute um termo grego com a ideia de lugares que funcionam

como arquivos de onde satildeo retirados os toacutepicos como recursos retoacutericos na argumentaccedilatildeo

17

A partir do propoacutesito de comparaccedilatildeo entre os dois autores aqui em foco esta

pesquisa se empenha em observar analisar e comparar as epiacutestolas de Secircneca a

Luciacutelio com as de Paulo aos Coriacutentios procurando identificar os lugares comuns que

os aproximam e o posicionamento singular que cada um assume em seu discurso

de acordo com os discursos constituintes que os direcionam como tambeacutem os

efeitos da retoacuterica em suas produccedilotildees Essa comparaccedilatildeo se justifica por algumas

razotildees pertinentes aos interesses para os quais se voltam este trabalho Secircneca e

Paulo viveram e produziram seus discursos no transcorrer do primeiro seacuteculo dC

tendo como referecircncias as bases da retoacuterica em evidecircncia naquele periacuteodo mesmo

sem assumir a totalidade de suas implicaccedilotildees Observa-se que Secircneca e Paulo

apresentam maior disposiccedilatildeo em optar pela retoacuterica filosoacutefica em detrimento da

retoacuterica poeacutetica Kennedy (1994 p 173) analisa algumas epiacutestolas4 de Secircneca e

nota que ele natildeo pretende recorrer aos recursos da retoacuterica para transmissatildeo de

seus preceitos filosoacuteficos da mesma forma que estes eram aplicados agrave oratoacuteria

As argumentaccedilotildees de Secircneca sobre a transmissatildeo dos ensinamentos da filosofia

contribuem para certa distinccedilatildeo entre o tipo de retoacuterica adequado agrave aplicaccedilatildeo no

exerciacutecio da oratoacuteria e o tipo de retoacuterica ideal para compartilhar os preceitos

filosoacuteficos O papel da retoacuterica na oratoacuteria tem certas peculiaridades que evidenciam

diferenccedilas de sua funccedilatildeo e uso na escrita do gecircnero epistolar do qual Secircneca e

Paulo lanccedilam matildeo para elaborar suas ideias por meio da correspondecircncia A esse

respeito Segurado e Campos5 (1991 p XVII) comenta sobre o posicionamento de

Secircneca quanto ao uso dos recursos da retoacuterica mostrando que seu texto apresenta

certa ausecircncia do rigor da tradiccedilatildeo retoacuterica fato que provoca a criacutetica de Quintialiano

(Inst Or X 1130) ao seu estilo de escritor

Foucault (2010a 2010b) compreende a despreocupaccedilatildeo de Secircneca com o rigor

retoacuterico tradicional na produccedilatildeo de suas epiacutestolas por voltar-se para questotildees

sobre a parresia o falar franco e sincero Este ponto eacute comum entre Secircneca e

Paulo pelo proacuteprio caraacuteter do uso do gecircnero epistolar Tal fato eacute apontado por

Muhana (2000 p 341) pois a epiacutestola requer veracidade e sinceridade na

4 Na epiacutestola 404 Secircneca diz ldquoos filosoacutefos devem transmitir preceitos aos disciacutepulosrdquo Nesta mesma

epiacutestola Secircneca acrescenta ldquoo estilo filosoacutefico deve ter forccedila mas sem perder a moderaccedilatildeordquo (Ep 408) 5 Joseacute Antocircnio Segurado e Campos eacute o tradutor para o portuguecircs do texto latino Annae Senecae ad

Lucilium epistulae morales segundo o texto da Oxford University Press 1965 intitulado em portuguecircs de Portugal Cartas a Luciacutelio Luacutecio Aneu Seacuteneca

18

revelaccedilatildeo da primeira pessoa do remetente no discurso epistolar o que natildeo

aconteceria por exemplo em uma obra exclusivamente filosoacutefica

Secircneca produziu textos optando por diferentes gecircneros como trageacutedia saacutetira e

tratado e a epistolografia representa sua escolha de fechamento de suas

produccedilotildees Ele foi favorecido pelo gecircnero epistolar nos objetivos de sua escrita

filosoacutefica pela liberdade de expressatildeo e organizaccedilatildeo do discurso que este gecircnero

possibilita A produccedilatildeo da escrita de Secircneca6 na obra L Annaei Seneccae ad

Lucilium Epistulae Morales forma um conjunto de cento e vinte quatro epiacutestolas

distribuiacutedas em vinte livros caracterizando a organizaccedilatildeo das epiacutestolas como

coleccedilatildeo

Quanto agraves hipoacuteteses de um destinataacuterio fictiacutecio nessa correspondecircncia Paul Veyne

(1995 p 253) defende que a figura de Luciacutelio natildeo eacute simplesmente representativa ou

ficcional visto que a seacuterie de epiacutestolas aponta situaccedilotildees reais de encontros viagens

e a proacutepria adesatildeo de Luciacutelio em atendimento aos conselhos de Secircneca7 Paul

Veyne (1995 p 255) pondera que as epiacutestolas dirigidas a Luciacutelio natildeo satildeo de caraacuteter

privado visto que Secircneca declara sua intenccedilatildeo de publicaccedilatildeo8 Secircneca assumiu sua

correspondecircncia com Luciacutelio natildeo exclusivamente pelas necessidades deste mas

as de seus leitores incluiacutedos como destinataacuterios

Os textos da produccedilatildeo de Paulo satildeo referentes essencialmente agraves sete epiacutestolas9

do Novo Testamento reconhecidas como de sua autoria Young (2004 p 10) atribui

importacircncia agraves contribuiccedilotildees de Foucault em suas formulaccedilotildees de questotildees sobre

as funccedilotildees do autor fato este que interfere nas discussotildees relacionadas ao

processo de formaccedilatildeo do cacircnon neotestamentaacuterio Segundo Young (2004 p 10) as

teorias criacuteticas da poacutes-modernidade com sua ecircnfase na morte do autor procuram

enfocar a natureza dos textos originaacuterios de comunidades do cristianismo primitivo

6 As epiacutestolas de Secircneca que formam o corpus de anaacutelise foram selecionadas de acordo com a

identificaccedilatildeo da cenografia e o tema recorrente na enunciaccedilatildeo o uso do toacutepos falar franco e dos argumentos retoacutericos como exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas 7 Veyne (1995 p253-254) aponta que em epiacutestolas anteriores Secircneca aconselhou Luciacutelio a retirar-se

da vida puacuteblica Tempos depois Secircneca escreve ldquoEstou de acordo com a tua decisatildeo abriga-te no teu oacutecio mas coloca o teu oacutecio ao abrigo dos deusesrdquo (Ep 681) O oacutecio refere-se ao retiro das atividades puacuteblicas a aposentadoria e para Secircneca essa era uma oportunidade para dedicaccedilatildeo agrave filosofia 8 ldquoO mesmo que Epicuro prometeu ao seu amigo eu to prometo a ti Luciacutelio a posteridade haacute de

recordar-se de mim hei de fazer com que alguns nomes perdurem por estarem ligados ao meurdquo (Ep 215) 9 As epiacutestolas consideradas pseudo-paulinas satildeo Efeacutesios Colossenses 2 Tessalonicenses e as

pastorais Tito e 1 e 2 Timoacuteteo

19

sem identificaccedilatildeo de autoria e que buscam credibilidade no nome do apoacutestolo

Paulo Esse fenocircmeno resulta no surgimento das pseudos epiacutestolas paulinas e

outros textos apoacutecrifos do mesmo periacuteodo Diante dessa posiccedilatildeo Young pondera

que reflexotildees sobre essa concepccedilatildeo atual de sujeitoautor como tratada nas

formulaccedilotildees de Foucault influenciaram a tomada de posiccedilatildeo que se tornou

determinante para o estabelecimento das questotildees de autoria relativas agraves epiacutestolas

paulinas

Para estabelecer uma comparaccedilatildeo entre a produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e de

Paulo torna-se imprescindiacutevel a identificaccedilatildeo do funcionamento do gecircnero epistolar

da Antiguidade claacutessica ateacute a praacutetica do uso deste gecircnero nos primeiros seacuteculos de

nossa era Fato que ajuda compreender a razatildeo da existecircncia das pseudos epiacutestolas

paulinas A escolha das duas epiacutestolas10 de Paulo dirigidas agrave igreja de Corinto

definidas como corpus principal de anaacutelise se justifica por estas fazerem parte da

composiccedilatildeo do cacircnon paulino de acordo com o consenso da academia Outro fato

relevante para esta escolha eacute a formaccedilatildeo judaico-heleniacutestica de Paulo e sua

identificaccedilatildeo cultural com a comunidade de Corinto tendo a liacutengua grega como meio

de comunicaccedilatildeo Estas questotildees apontadas formam um conjunto que favorece a

aproximaccedilatildeo de Paulo com a cidade de Corinto Outro ponto favoraacutevel em escolher

as epiacutestolas aos Coriacutentios para comparaccedilatildeo com as epiacutestolas de Secircneca eacute a

identificaccedilatildeo do caraacuteter de aconselhamento o uso dos toacutepoi e a ocorrecircncia de

recursos retoacutericos O aconselhamento como toacutepos no protocolo do gecircnero epistolar

eacute uma questatildeo que possibilita certa proximidade com a forma de tratamento tanto

nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio quanto nas de Paulo aos Coriacutentios

A organizaccedilatildeo desta tese requer uma divisatildeo em partes pelo caraacuteter de

comparaccedilatildeo entre dois autores na realizaccedilatildeo da composiccedilatildeo dos textos Assim a

primeira parte estaacute destinada agraves contribuiccedilotildees e formulaccedilotildees teoacutericas que servem de

base para as investigaccedilotildees e anaacutelises Inicialmente conta-se com a colaboraccedilatildeo de

Foucault em suas investigaccedilotildees sobre sujeito e verdade na Antiguidade focalizando

o cuidado de si como constituiccedilatildeo do sujeito A escrita de si eacute um fator que contribui

para o enriquecimento da compreensatildeo sobre o funcionamento do gecircnero epistolar

nos dois primeiros seacuteculos de nossa era Ligadas agrave noccedilatildeo de sujeito algumas

10

As traduccedilotildees das epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios satildeo retiradas da Biacuteblia ediccedilatildeo Almeida Corrigida e revisada fiel

20

questotildees sobre autoria satildeo levantadas por Foucault em uma fase que se pregava a

morte do autor

Com um foco na Antiguidade observa-se a funccedilatildeo da retoacuterica a partir dos gregos

identificando-se a releitura sobre a retoacuterica claacutessica realizada pelos romanos

Aritoacuteteles efetivou a inclusatildeo dos toacutepicos como recursos retoacutericos na argumentaccedilatildeo

e este funcionamento se estabeleceu na retoacuterica romana em alguns de seus

aspectos expandido para aplicaccedilotildees no campo da oratoacuteria e da literatura Segundo

Rezende (2009 p 29) a retoacuterica na Antiguidade se constituiacutea como um programa

abrangente que visava atender agrave oratoacuteria capacitando o cidadatildeo para seu

desempenho na vida puacuteblica por esta razatildeo seu objetivo era contribuir para o bom

desempenho do orador Nessa mesma perspectiva Foucault (2010a p 462-463)

observa que a retoacuterica em Roma voltava-se para a preparaccedilatildeo do cidadatildeo romano e

era defendida como arte que se ensina Segundo Foucault (2010a p 463) ldquoo que

define a retoacuterica para Ciacutecero para Quintiliano eacute essencialmente como sabemos o

assunto tratadordquo Nesse aspecto a retoacuterica como teacutecnica orienta sobre a

pertinecircncia do que deve ser dito e o modo como se deve expressar

Foucault observa que no periacuteodo Heleniacutestico a parresiacutea como falar franco e

honesto entra em concorrecircncia com a retoacuterica tradicional contribuindo para a

aproximaccedilatildeo entre retoacuterica e filosofia Segundo Foucault Filodemo11 tem destaque

nesta contribuiccedilatildeo ao considerar que ldquoo homem saacutebio e filoacutesofo aplica o franco-falar

(a parresiacutea) na medida em que raciocina conjecturando por meio de argumentos

plausiacuteveis e sem rigidezrdquo (FOUCAULT 2010a p 347) A aproximaccedilatildeo entre retoacuterica

filosofia e parresiacutea eacute tambeacutem observada por Foucault (2010a p 137) por meio da

escrita de uma epiacutestola de Pliacutenio12 o Jovem (Ep I1-10) em seu elogio a Eufrates

11

Segundo Foucault (2010a p 347) Filodemo era um filoacutesofo epicurista que se instalara em Roma bem no final da Repuacuteblica e era o conselheiro filosoacutefico o conselheiro privado de Lucius Piso Filodemo foi muito importante quer pelo conteuacutedo significativo de seus escritos quer por ter sido um dos fundadores um dos inspiradores do movimento epicurista do final do seacuteculo I ac - ou logo no comeccedilo do seacuteculo I dC Foucault analisa a influecircncia de Filodemo por meio de fragmentos de sua obra Peri Parresiacutea 12

Pliacutenio elogia o filoacutesofo Estrabatildeo na epiacutestola dirigida Ao amigo Aacutecio Clemente ldquoSe alguma vez nossa cidade floresceu por causa das artes liberais ela agora floresce em seu maacuteximo 2 Haacute muitos e ilustres exemplos apenas um seria suficiente Eufrates o filoacutesofo 5 Ele argumenta tecircnue seacuteria e elegantemente aleacutem disso com frequecircncia aplica aquela sublimidade e grandeza de Platatildeo Seu discurso eacute copioso e variado agradaacutevel principalmente de modo que move e conduz ateacute mesmo os relutantesrdquo (PLIacuteNIO Ep I 125) Traduccedilatildeo de Kaacutetia Regina Giesen ldquoSobre o elogiado sabe-se que era um filoacutesofo estoacuteico natural de Tiro rival de Apolocircnio de Tiana e disciacutepulo de Musocircnio Rufordquo (GIESEN 2016 p 132)

21

filoacutesofo estoico pela forma como este ministrava seus ensinos filosoacuteficos valendo-

se de recursos retoacutericos Outra questatildeo que se extrai da praacutetica da parresiacutea na

Antiguidade eacute o uso do toacutepos ldquofalar francordquo que eacute identificado nas epiacutestolas de

Secircneca e Paulo perceptiacutevel mediante a constituiccedilatildeo da cenografia que se instaura a

partir de partes das epiacutestolas que introduzem o discurso de acordo com o gecircnero

epistolar Foucault (2010a p 344) afirma que ldquoem textos de Secircneca encontramos

particularmente na carta setenta e cinco uma verdadeira teoria do franco-falarrdquo

Alguns postulados da retoacuterica antiga se mantiveram e a anaacutelise do discurso

francesa de base enuncitiva resgatou de Aristoacuteteles (Ret I 2 1356a) as trecircs

provas teacutecnicas do discurso que se efetivam pela accedilatildeo do orador ecircthos reaccedilatildeo do

ouvinte paacutethos e pela realizaccedilatildeo do discurso loacutegos Para Maingueneau (2005

p69-74) a noccedilatildeo oradorauditoacuterio expande-se para a de textoleitor e no texto o

ethos emite uma voz silenciosa atraveacutes do enunciador que alcanccedila o pathos isto eacute

a recepccedilatildeo do co-enunciador Nesta abordagem enunciativa dos discursos

Maingueneau desenvolve alguns postulados teoacutericos que favorecem a identificaccedilatildeo

do discurso a partir de sua proacutepria constituiccedilatildeo Os discursos filosoacutefico religioso

literaacuterio e cientiacutefico apresentam caracteriacutesticas de independecircncia e autossuficiecircncia

pois cada um destes se sustenta sem depender do outro A esse fenocircmeno

Maingueneau (2008 p 38) designou de discursos constituintes Estes datildeo origem e

direccedilatildeo aos gecircneros do discurso que a eles estatildeo ligados Para expansatildeo e

desenvolvimento do gecircnero do discurso eacute acionada a cenografia que conduz a

enunciaccedilatildeo recorrendo agraves cenas validadas na memoacuteria do leitor ou ouvinte A

definiccedilatildeo da cenografia no discurso direciona as escolhas linguiacutesticas no ato

enunciativo e a proacutepria enunciaccedilatildeo valida o papel da cenografia e tambeacutem eacute

validada por ela

A determinaccedilatildeo do quadro de fundamentaccedilatildeo teoacuterica na primeira parte eacute seguida na

segunda parte pelas categorias de anaacutelise fornecidas pelos postulados da anaacutelise

do discurso cenografia e ethos13 tendo como pano de fundo o contexto histoacuterico em

que Secircneca e Paulo se situam no momento da produccedilatildeo de suas epiacutestolas A partir

do gecircnero do discurso epistolar como praticado na Antiguidade algumas questotildees

satildeo levantadas colocando em discussatildeo a concepccedilatildeo baacutesica do uso do termo

13

Os vocaacutebulos ethos pathos e logos referidos na anaacutelise do discurso natildeo satildeo acentuados seguindo a forma da transcriccedilatildeo recorrente na escrita em textos da liacutengua portuguesa

22

epiacutestola em oposiccedilatildeo ao termo carta Na sequecircncia os debates sobre as pseudo

epiacutestolas de Paulo satildeo contemplados de acordo com as vertentes de posiccedilotildees

favoraacuteveis e contraacuterias agrave autoria de Paulo em relaccedilatildeo agraves treze epiacutestolas integrantes

no Novo Testamento O ponto seguinte destaca as opiniotildees que se formulam em

torno das consideraccedilotildees sobre o enquadramento das epiacutestolas de Secircneca no

gecircnero epistolar Ainda focalizando o gecircnero epistolograacutefico na Antiguidade alguns

comentaacuterios satildeo mostrados sobre as conjecturas de suposta troca de

correspondecircncia entre Paulo e Secircneca

Para situar o momento em que Paulo e Secircneca produzem suas epiacutestolas um

panorama histoacuterico contribui para localizaacute-los no tempo e espaccedilo de suas atuaccedilotildees

e os efeitos discursivos na produccedilatildeo de seus discursos Algumas partes de textos

das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e de Paulo aos Coriacutentios satildeo usadas como forma

de citaccedilatildeo ao longo da primeira e segunda parte desta tese no desenvolvimento e

aplicaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo teoacuterica

Para identificaccedilatildeo da constituiccedilatildeo da cenografia na segunda parte foram

selecionados a primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio e o primeiro capiacutetulo de cada

epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios como corpus de anaacutelise A cenografia constituiacuteda

nas epiacutestolas de Secircneca se apresenta como um tratado filosoacutefico em que o tema ldquoo

tempordquo eacute introduzido e se torna recorrente em toda a coleccedilatildeo das epiacutestolas no

acontecimento da enunciaccedilatildeo A construccedilatildeo da cenografia nas epiacutestolas de Paulo

explora o tema ldquoo amorrdquo que eacute revalidado em toda a cena enunciativa no conjunto

das duas epiacutestolas Ainda na segunda parte eacute colocado em pauta alguns aspectos

da manifestaccedilatildeo do ethos observado na constituiccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e

Paulo

Na continuidade da pesquisa na terceira parte o foco eacute para o terceiro elemento do

meio de prova ou seja o loacutegos entendido como o raciociacutenio desenvolvido e

expressado por meio da linguagem na formaccedilatildeo do discurso No segundo capiacutetulo

procura-se identificar o toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas selecionadas como lugar

comum entre os dois autores Na sequecircncia verifica-se a ocorrecircncia dos mesmos

argumentos retoacutericos tanto nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio quanto em capiacutetulos

das duas epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios servindo como paracircmetro de

comparaccedilatildeo delimitados como exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas Tal proposta

constitui-se como uma ferramenta para uma possiacutevel identificaccedilatildeo do uso dos

23

argumentos retoacutericos determinados pela conduccedilatildeo do discurso constituinte de base

na enunciaccedilatildeo A comparaccedilatildeo entre o uso dessas estrateacutegias contribui para a

observaccedilatildeo de aproximaccedilotildees e afastamentos de posiccedilotildees discursivas entre Secircneca

e Paulo No terceiro capiacutetulo o criteacuterio para delimitaccedilatildeo das epiacutestolas a serem

analisadas eacute o desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo que se estabelece a partir da

construccedilatildeo da cenografia Nas epiacutestolas de Secircneca o tema direcionador eacute o tempo e

nas de Paulo eacute o amor analisado no quarto capiacutetulo A partir da recorrecircncia ao toacutepos

ldquofalar francordquo ligado agrave parresia eacute possiacutevel identificar este toacutepos como filosoacutefico pela

origem dos seus sentidos ligados agrave verdade moral porque estaacute ligado agrave eacutetica em

relaccedilatildeo ao modo de agir que se manifesta atraveacutes do ethos

A seleccedilatildeo dos corpora de anaacutelise dos recursos retoacutericos e temas eacute apresentada por

meio de esquemas em forma de quadros tendo a finalidade de identificar as partes

de epiacutestolas que contecircm os toacutepoi e argumentos retoacutericos observados como

tambeacutem os temas desenvolvidos a partir da construccedilatildeo das cenografias nas

epiacutestolas de Secircneca e Paulo No procedimento das anaacutelises alguns destaques do

corpus selecionado satildeo colocados em evidecircncia Quando a citaccedilatildeo em destaque

natildeo atinge mais de trecircs linhas eacute usado o recurso de caixas como forma de destacar

a citaccedilatildeo e situaacute-la fora do corpo do texto A delimitaccedilatildeo do corpus relacionado agraves

epiacutestolas de Secircneca eacute resultado do recorte feito para anaacutelise Como ponto de

partida a primeira epiacutestola eacute analisada para identificaccedilatildeo da construccedilatildeo da

cenografia Nesta mesma epiacutestola a introduccedilatildeo do tema ldquoo tempordquo eacute ponto de

referecircncia para constataccedilatildeo da cenografia como tratado filosoacutefico As partes das

epiacutestolas em que a noccedilatildeo de libertas aparece como liberdade no modo de falar

contribuem para a localizaccedilatildeo do uso do toacutepos ldquofalar francordquo As epiacutestolas que

contecircm exemplos e citaccedilotildees foram selecionadas de acordo com a ocorrecircncia do

tema introdutoacuterio que se desdobra em toacutepoi que abordam questotildees sobre a velhice e

a morte As epiacutestolas que registram o uso da metaacutefora do atletismo fornecem

elementos para o desenvolvimento do toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo como

preparaccedilatildeo para o enfrentamento da velhice e da morte como forma do cuidado de

si As partes de epiacutestolas que atendem a finalidade da verificaccedilatildeo do

desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo satildeo portadoras de diferentes abordagens como

o valor do tempo o tempo eacute circular e a fluidez do tempo Cada abordagem funciona

24

como um toacutepos que se localiza na memoacuteria do falante e serve como argumento para

as aplicaccedilotildees das liccedilotildees filosoacuteficas sobre o tempo

O corpus retirado das epiacutestolas de Paulo segue o mesmo criteacuterio da seleccedilatildeo feita

nas de Secircneca O que diferencia os corpora eacute a delimitaccedilatildeo dos textos para fonte de

anaacutelise pois as epiacutestolas de Secircneca definidas como corpus compotildeem o conjunto da

coleccedilatildeo Em relaccedilatildeo agraves epiacutestolas de Paulo do conjunto de sete foram selecionadas

as duas dirigidas agrave igreja de Corinto e destas foram retiradas partes de capiacutetulos

Para identificaccedilatildeo da cenografia foi delimitado o primeiro capiacutetulo de cada epiacutestola

escolhida Os versiacuteculos que contecircm o termo parresiacutea (παρρησια) satildeo localizados

para identificaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo Na composiccedilatildeo do corpus satildeo

selecionados outros versos que detecircm uma carga semacircntica similar ao uso de

parresiacutea Os exemplos satildeo encontrados em textos de epiacutestolas que fazem remissatildeo

ao Velho Testamento como apoio e sustentaccedilatildeo As citaccedilotildees ou alusotildees satildeo

encontradas nas epiacutestolas em que o discurso busca autoridade em uma fonte

externa seja religiosa literaacuteria ou filosoacutefica O recurso do uso da metaacutefora que toma

a imagem do atleta como modelo eacute encontrado no capiacutetulo nove de 1 Coriacutentios

focalizando o toacutepos ldquoeacute preciso exercita-se espiritualmenterdquo sendo o cuidado de si

um objetivo que auxlia no alcance final da vitoacuteria O tema amor eacute desenvolvido por

meio de diferentes abordagens como a origem do amor o amor promove a uniatildeo a

grandeza do amor Estes toacutepicos satildeo encontrados em diferentes capiacutetulos e versos

sendo desenvolvidos como toacutepoi que os leitores satildeo capazes de identificar como

lugares comuns

O texto das epiacutestolas de Secircneca eacute traduzido por Segurado e Campos (1991) e sua

introduccedilatildeo e tambeacutem as notas satildeo usadas como referecircncia bibliograacutefica O tiacutetulo

original eacute L ANNAEI SENECAE AD LUCILIUM EPISTULAE MORALES (Segundo o

texto da Oxford University Press 1965) Segurado e Campos traduziu o tiacutetulo para o

portuguecircs de Portugal Cartas a Luciacutelio Luacutecio Aneo Seacuteneca Os textos retirados das

epiacutestolas de Paulo satildeo referentes agrave traduccedilatildeo Almeida Corrigida e Revisada Fiel 4

ed 2011

Na organizaccedilatildeo da seleccedilatildeo do corpus o quadro 1 registra a indicaccedilatildeo do toacutepos

filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo e os trecircs recursos retoacutericos definidos como estrateacutegias

argumentativas no discurso exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora O exemplo eacute um recurso

valorizado por Aristoacuteteles pela sua eficaacutecia na estrateacutegia argumentativa A citaccedilatildeo

25

em seu sentido mais amplo natildeo faz parte direta das indicaccedilotildees feitas por

Aristoacuteteles mas eacute veriacutedico seu funcionamento como forccedila de sustentaccedilatildeo na

argumentaccedilatildeo visto que Aristoacuteteles recomenda a citaccedilatildeo de maacuteximas e ele mesmo

se utliza destas para ilustrar suas ideias no desenvolvimento da teoria proposta O

uso da metaacutefora tambeacutem eacute indicado por Aristoacuteteles pelo efeito de analogia que ela

produz na aacuterea do raciciacutenio dedutivo semelhante ao silogismo No lado esquerdo do

quadro 1 estatildeo indicados o toacutepos filosoacuteficomoral e os argumentos retoacutericos no

centro encontra-se a identificaccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca selecionadas e no lado

direito a seleccedilatildeo dos textos das epiacutestolas aos Coriacutentios

Corpus de anaacutelise de epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

Argumentos retoacutericos ndash Toacutepoi como fonte de um lugar comum

Quadro 1

TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL

ARGUMENTOS RETOacuteRICOS

SEcircNECA

PAULO

Toacutepos falar franco

Exemplo

Ep 14 Ep 251 Ep 87

Ep85 28 Ep 88 29

Ep 805 Ep 89 17

Ep 754 Ep 62

Ep 829 Ep 1110 Ep 249

Ep 612 Ep 82 9-5 Ep 962

Ep 95 68-69 Ep 77 10-12

1Cor 21 1Cor 45

2Cor 117 2Cor 312

2Cor 102

1Cor 10 1-11 1Cor 311

2Cor 4 7-11 2Cor 217

1Cor 111

Citaccedilatildeo

Ep 2 5-6 Ep 268

Ep 291011 Ep 82 15-18

Ep 412 Ep 7712 Ep 219

Ep 422 Ep 9427-88

Ep 95 55-69

TOPOacuteS RETOacuteRICO

1Cor 99 1Cor 1023 - 26

1Cor 1533 1Cor 1542

2Cor 62

Ep 596

Metaacutefora Ep 132 Ep 7816 1Cor 924-27

Ep 80 3-4 Ep 943

26

No quadro 2 o corpus selecionado eacute referente ao tema que eacute desenvolvido a partir

da construccedilatildeo da cenografia nas epiacutestolas de Secircneca Nota-se que no transcorrer da

enunciaccedilatildeo a abordagem filosoacutefica do tema ldquoo tempordquo se desdobra em reflexotildees

distintas No desenvolvimento desses temas satildeo usados recursos retoacutericos como

exemplo citaccedilatildeo maacuteximas e metaacuteforas Do lado esquerdo do quadro 2 satildeo

identificadas algumas abordagens que Secircneca desenvolve a partir do tema ldquoo

tempordquo no centro satildeo mencionados os recursos retoacutericos utilizados e do lado direito

a identificaccedilatildeo das principais epiacutestolas analisadas

Corpus de anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca

Tema _______________________ Tempo

Quadro 2

ABORDAGENS

RECURSOS RETOacuteRICOS

EPIacuteSTOLAS

Valor do tempo

Metaacutefora

Expressotildees metafoacutericas

Exemplo

Citaccedilatildeo e Maacutexima

Ep11-5 Ep2212-17

Ep 451213

Ep 621-2

Ep 8842 Ep 11732

O tempo eacute circular

Metaacutefora

Expressotildees metafoacutericas

Citaccedilatildeo

Maacutexima

Ep 126-8 Ep191

Ep 2420-21

Ep 774 Ep 191

Ep 2420-21 Ep 964-5

A fluidez do tempo

Citaccedilatildeo

Maacutexima

Metaacutefora

Expressotildees Metafoacutericas

Ep 6511 Ep 493

Ep 21 Ep 254

Ep 5822-23 Ep 997

Ep 701- 4 Ep 10824

27

O quadro 3 apresenta o tema filosoacutefico-teoloacutegico ldquoo amorrdquo constituiacutedo nas epiacutestolas

de Paulo agrave igreja de Corinto a partir da construccedilatildeo da cenografia Este tema se

expande para outras abordagens que funcionam como toacutepoi unindo-se ao tema

central Os recursos retoacutericos exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora satildeo usados como

estrateacutegias argumentativas na sustentaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo do tema Os recursos

argumentativos usados favorecem o entrecruzamento dos discursos constituintes

contribuindo para a discursividade que se estabelece no ato enunciativo Do lado

esquerdo satildeo mostrados os trecircs desdobramentos contidos no tema amor

desenvolvidos por Paulo no centro do quadro satildeo identificados os recursos retoacutericos

como argumentaccedilatildeo e do lado direito a delimitaccedilatildeo das partes das epiacutestolas que

formam o corpus

Corpus de anaacutelise das duas epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios

Tema _____________________________ Amor (Aacutegape)

Quadro 3

ABORDAGENS

RECURSOS RETOacuteRICOS

EPIacuteSTOLAS

A origem do amor

Citaccedilatildeo

Exemplo

1Cor 1910 1Cor 29

2Cor 1 3 2Cor 2 4

O amor faz a uniatildeo

Citaccedilatildeo

Metaacutefora

Exemplo

1Cor112122 1Cor11 23-26

1Cor 12 13-25 1Cor 16 2-3

2Cor 8 10-15 2Cor 9 2-10

A grandeza do amor

Metaacutefora

Citaccedilatildeo

Exemplo

1Cor 13

2Cor 12 14-15

2Cor 13 11-13

Estes quadros apresentam a siacutentese da seleccedilatildeo dos argumentos retoacutericos e temas

definidos a paritr da cenografia com seus desdobramentos em que estatildeo contidos

28

diferentes toacutepoi no percurso da enunciaccedilatildeo e as partes dos textos das epiacutestolas de

Secircneca e de Paulo como corpora delimitados como fonte para as anaacutelises

A funccedilatildeo da terceira parte desta tese eacute confrontar o uso do ldquofalar francordquo e o uso

dos recursos retoacutericos nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo tendo um lugar comum

como fonte Os discursos constituintes fornecem base de sustentaccedilatildeo ao

desenvolvimento dos assuntos dando lugar ao uso de toacutepoi que apontam para

diferentes aspectos de abordagens do tema escolhido Secircneca estaacute investido em

sua posiccedilatildeo discursiva pelos efeitos do discurso filosoacutefico e Paulo pelo discurso

religioso Os discursos destes autores satildeo atravessados por outros discursos pela

influecircncia e efeitos da cultura heleniacutestica

Outro fenocircmeno da linguagem identificado no corpus de anaacutelise desta tese eacute a

ocorrecircncia de conceitos metafoacutericos identificados por meio de expressotildees

metafoacutericas Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 245) ldquomuitas das similaridades

que percebemos satildeo resultado de metaacuteforas convencionais que satildeo parte de nosso

sistema conceptualrdquo As metaacuteforas designadas convencionais satildeo constituiacutedas a

partir das correlaccedilotildees resultantes das experiecircncias que satildeo vivenciadas em

determinada cultura Natildeo eacute objetivo desta pesquisa analisar os conceitos

metafoacutericos presentes nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo mas identificar que esses

conceitos satildeo relacionados aos lugares comuns como forma de expressatildeo da

linguagem no desenvolvimento dos temas com o recursos dos toacutepoi

Nas abordagens de metaacutefora conceitual defendidas por Lakoff e Jonhson (2002 p

45-85) as metaacuteforas que ocorrem no cotidiano dos falantes satildeo identificadas em

trecircs modos distintos metaacuteforas estruturais metaacuteforas orientacionais e metaacuteforas

ontoloacutegicas Um dos conceitos que estes autores colocam como exemplo eacute TEMPO

Eacute DINHEIRO identificado pelo uso de expressotildees metafoacutericas como ganhar tempo

perder tempo investir tempo reservar tempo poupar tempo Esta eacute uma metaacutefora

estrutural porque um conceito mais abstrato (tempo) eacute pensado em termos de outro

mais concreto (dinheiro) As metaacuteforas orientacionais datildeo direccedilatildeo espacial ao

conceito como por exemplo ALEGRIA Eacute PARA CIMA TRISTEZA Eacute PARA BAIXO

Estes conceitos podem ter suas origens em experiecircncias fiacutesicas e culturais de uma

sociedade Estar alegre pode significar alto astral e estar triste baixo astral pois

positivo eacute para cima e negativo eacute para baixo As metaacuteforas ontoloacutegicas consistem

nas formas de conceber eventos atividades ideias emoccedilotildees como entidades e

29

substacircncias O uso de metaacuteforas ontoloacutegicas eacute bem variado e frequente entre os

falantes no contexto de diferentes culturais Na cultura brasileira por exemplo o

conceito INFLACcedilAtildeO Eacute UMA ENTIDADE permite identificaacute-la como um monstro ela

precisa ser combatida e assim por diante Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 88)

ldquoa personificaccedilatildeo eacute uma categoria geral que cobre uma enorme gama de metaacuteforas

e o que elas tecircm em comum eacute o fato de serem extensotildees de metaacuteforas ontoloacutegicas

permitindo dar sentido aos fenocircmenos do mundo em termos humanosrdquo

Em especial no desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo nas epiacutestolas de Secircneca

algumas metaacuteforas estruturais satildeo identificadas como por exemplo A VIDA Eacute UMA

VIAGEM Nas epiacutestolas de Paulo identificam-se ocorrecircncias do conceito metafoacuterico

ontoloacutegico O AMOR Eacute UMA PESSOA no transcorrer do desenvolvimento do tema ldquoo

amorrdquo pelo uso de expressotildees metafoacutericas o amor eacute sofredor o amor eacute benigno o

amor natildeo eacute invejoso o amor natildeo trata com leviandade o amor natildeo se ensoberbece

(1Cor 134) Essa eacute uma forma de corporificar um conceito abstrato de amor

fornecendo qualidades que possam identificaacute-lo Nos estudos da Linguiacutestica

cognitiva dirigidos por Lakoff e Johnson os conceitos metafoacutericos satildeo escritos em

letras maiuacutesculas o que tambeacutem seraacute mantido neste trabalho

Na finalizaccedilatildeo desta pesquisa satildeo apresentados alguns pontos demarcados para

comparaccedilatildeo entre a escrita de Paulo e de Secircneca com base nas anaacutelises

realizadas ao longo da elaboraccedilatildeo desta tese Para a identificaccedilatildeo de certas

aproximaccedilotildees ou afastamentos de posiccedilotildees discursivas entre estes dois autores satildeo

retomados os recursos argumentativos e temas por eles desenvolvidos por meio do

do gecircnero epistolar O papel do discurso constituinte no ato enunciativo eacute relevante

na determinaccedilatildeo dos posicionamentos que Secircneca e Paulo assumem em seus

discursos sendo fundamental tambeacutem para o direcionamento do desenvolvimento

dos toacutepoi e recursos retoacutericos responsaacuteveis pela dinacircmica do discurso

30

PARTE I

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE O QUADRO TEOacuteRICO

Entretanto uma obra natildeo pode viver nos seacuteculos futuros se natildeo reuacutene em si de certo modo os seacuteculos passados Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto eacute em sua atualidade) natildeo desse continuiacutedade ao passado e natildeo mantivesse com ele um viacutenculo substancial natildeo poderia viver no futuro Tudo que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele Mikhail Bakhtin (2006 p 363)

Nesta primeira parte o foco de atenccedilatildeo eacute dado agraves bases teoacutericas que servem de

sustentaccedilatildeo e orientaccedilatildeo para a anaacutelise do corpus delimitado Esta parte representa

o ponto de partida para uma viagem agrave Antiguidade Para realizaccedilatildeo do

planejamento dessa viagem metafoacuterica conta-se com algumas contribuiccedilotildees de

Foucault (1996 2004 2010a 2010b 2011) concebidas pela experiecircncia de seu

empreendimento de visita agrave Antiguidade Aleacutem disso o local e o tempo histoacuterico que

ele elegeu como um dos pontos de estadia em sua viagem coincidem com os

interesses da pesquisa aqui proposta Foucault (2010a p 44) estava empenhado

em identificar a relaccedilatildeo entre sujeito e verdade e o fenocircmeno da subjetivaccedilatildeo como

efeito dessa relaccedilatildeo Sua opccedilatildeo prestigiou os estoicos da terceira fase situados

temporalmente nos seacuteculos I e II dC As anaacutelises que Foucault fez de textos de

Secircneca Plutarco e Marco Aureacutelio sobre a escrita de si e o cuidado de si tambeacutem

podem ser aplicaacuteveis agraves epiacutestolas de Paulo escritas no mesmo ambiente cultural e

temporal de Secircneca

Foucault (2010a p 36) deteve-se em analisar questotildees sobre subjetividade e

verdade observando que para apreensatildeo da verdade era necessaacuterio o exerciacutecio de

um conjunto de praacuteticas determinadas que contribuiam para a transformaccedilatildeo do

modo de ser do sujeito qualificando-o para um tipo de comportamento almejado A

subjetividade como concebida por Foucault no contexto da Antiguidade eacute

considerada como um processo de subjetivaccedilatildeo que se instaura no indiviacuteduo de

acordo com os resultados de escolhas de certo modo de vida Essa concepccedilatildeo natildeo

estaacute atrelada agrave identificaccedilatildeo de um sujeito como categoria previamente dada ou

ontologicamente invariaacutevel mas a modos de agir a processos de subjetivaccedilatildeo

modificaacuteveis e plurais Essa eacute a razatildeo pela qual Foucault (2010a p 36) opta por

31

observar o cuidado de si como forma de subjetivaccedilatildeo visto que para os estoicos e

epicuristas o cuidado de si tornava-se uma obrigaccedilatildeo permanente do indiviacuteduo ao

longo de sua existecircncia

Paul Veyne (1995 p 13) alega que a partir dos anos oitenta em especial na

Franccedila houve um efeito de ressurgimento da figura de Secircneca graccedilas a um ciacuterculo

editorial ligado a Michel Foucault Inwood (2007 p 133) tambeacutem faz comentaacuterio

semelhante observando que o grande interesse de Foucault em observar os textos

das epiacutestolas de Secircneca fez renascer o sentido da importacircncia da escrita de si

atraveacutes da correspondecircncia

O tema sobre a escrita de si abordado por Foucault (2004) com base em

correspondecircncias com destaque para as epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio serviu como

suporte para Foucault pensar sobre o cuidado de si naquele momento histoacuterico

Pelas proacuteprias caracteriacutesticas inerentes ao fenocircmeno da correspondecircncia a

relevacircncia do gecircnero epistolar se sobressai como escolha para exposiccedilatildeo do

pensamento estoico Para se pensar sobre a circulaccedilatildeo do gecircnero epistolar na

vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era faz-se necessaacuterio observar como circulam

os preceitos de retoacuterica e verdade na Antiguidade situando o modo como se daacute a

construccedilatildeo da verdade na filosofia estoica e na religiatildeo judaico-cristatilde e o papel que

a retoacuterica ocupa na transmissatildeo do discurso verdadeiro14 endereccedilado ao sujeito

A discussatildeo suscitada por Foucault (2010a 2010b e 2011) sobre o tema parresiacutea

que na Antiguidade grega indicava tambeacutem o falar franco e sincero estando

associada agrave noccedilatildeo de discurso verdadeiro levanta algumas questotildees sobre o

relacionamento entre filosofia e retoacuterica na fase das produccedilotildees das epiacutestolas de

Secircneca e de Paulo A noccedilatildeo de parresiacutea contribui para a instituiccedilatildeo do toacutepos ldquofalar

francordquo que pode ser identificado na construccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo

14

Para Foucault (2010a p 288) na filosofia estoica o discurso verdadeiro resulta de liccedilotildees apreendidas de equipamento material do logos sendo discursos existentes em sua materialidade como proposiccedilotildees fundadas na razatildeo Esse discurso se investe de uma racionalidade que ao mesmo tempo diz o verdadeiro e prescreve o que eacute preciso fazer Satildeo persuasivos no sentido em que acarretam natildeo somente a convicccedilatildeo mas tambeacutem os proacuteprios atos Eacute necessaacuterio que esses discursos sejam natildeo apenas adquiridos mas dotados de uma espeacutecie de presenccedila permanente Foucault (2010b p 66) defende que a concepccedilatildeo de discurso verdadeiro estaacute vinculada ao posicionamento de quem enuncia o seu discurso Pode-se notar que este posicionamento eacute determinado pelo discurso constituinte sendo distinta a concepccedilatildeo de verdade para os discursos religioso filosoacutefico e cientiacutefico

32

Quando se pensa a respeito de lugar comum no campo da retoacuterica toma-se como

referecircncia a palavra grega toacutepos15 Com base na retoacuterica antiga Charaudeau e

Maingueneau registram (2008 p 474) que a palavra toacutepos no singular e toacutepoi no

plural foi emprestada do grego (τόπος τόποι) e corresponde ao latim locus

communis do qual resultou lugar comum que consistia numa ideia favoraacutevel agrave

aceitaccedilatildeo por determinado grupo a partir de elementos sobre especificado problema

e a viabilidade de fundamentaccedilatildeo para a persuasatildeo Um toacutepos eacute um esquema

discursivo caracteriacutestico de um tipo de argumento Discussotildees de questotildees sobre o

sentido de toacutepos e sua aplicaccedilatildeo na retoacuterica antiga tecircm ampliado a compreensatildeo de

seu uso na Antiguidade como observado nas pesquisas de Curtius (1996) e Thom

(2003) em estudos que acrescentam novas consideraccedilotildees aos sentidos mais

originais do termo

Aristoacuteteles (Ret II18 1392a) usa esse princiacutepio de lugar comum quando desenvolve

os pontos sobre os toacutepicos como fonte de argumentaccedilatildeo Em seus estudos no

contexto da nova retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p 95) adotam o termo

lugares em substituiccedilatildeo ao termo toacutepoi Partindo das reflexotildees de Aristoacuteteles sobre

toacutepica Perelman e Olbrechts-Tyteca ponderam que os lugares formam um arsenal

indispensaacutevel do qual de um modo ou de outro quem quiser persuadir outrem

deveraacute lanccedilar matildeo Nesta presente pesquisa o toacutepos ldquofalar francordquo seraacute considerado

no seu valor como forma de apoio que possibilita a sustentaccedilatildeo de argumentos que

favoreccedilam as condiccedilotildees para um determinado propoacutesito advindo do enunciador no

desnvolvimento do discurso

Com base em textos herdados da Antiguidade vislumbram-se possibilidades de se

perceber o modo como Secircneca e Paulo satildeo identificados no uso de argumentos

retoacutericos em seus escritos Vinculada a esta observaccedilatildeo por um lado pleiteia-se

tambeacutem a verificaccedilatildeo da ocorrecircncia de influecircncia da retoacuterica como forma de

aproximaccedilatildeo entre os dois autores Por outro lado torna-se necessaacuteria uma busca

de compreensatildeo de posiccedilotildees discursivas16 desses autores que na produccedilatildeo de

seus discursos estabelecem sentidos vinculados agraves posiccedilotildees do lugar que cada um

ocupa na enunciaccedilatildeo atraveacutes da escrita de suas epiacutestolas

15

Com base na retoacuterica antiga Charaudeau e Maingueneau (2008 p 474) apontam que um toacutepos eacute um elemento de uma toacutepica sendo uma toacutepica heuriacutestica uma arte de coletar informaccedilotildees e fazer emergirem argumentos 16

Para Charaudeau e Maingueneau (2008 p 392) a posiccedilatildeo discursiva diz respeito agrave instauraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma identidade enunciativa

33

Alguns elementos do quadro teoacuterico da anaacutelise do discurso foram selecionados para

aplicaccedilatildeo na anaacutelise do corpus A escolha recaiu sobre a anaacutelise do discurso de

base enunciativa que tem como pressupostos a manifestaccedilatildeo do discurso como

enunciaccedilatildeo Assim na enunciaccedilatildeo o enunciador (remetente) dirige-se ao co-

enunciador (destinataacuterio) como parceiro na comunicaccedilatildeo de acordo com seu

posicionamento discursivo que orienta de que lugar e momento ele profere seu

discurso Esta abordagem eacute produtiva para se pensar a comparaccedilatildeo entre as

epiacutestolas de Secircneca e Paulo e o posicionamento que cada um deles ocupa em seus

discursos Nesses termos a retoacuterica pode ser considerada como um modo de

organizar o discurso em seu acontecimento na cena enunciativa Destaca-se

tambeacutem a escolha dos argumentos no campo da retoacuterica e o modo do

funcionamento desses recursos segundo o direcionamento dos discursos

constituintes

No exame de textos pertencentes agraves epiacutestolas produzidas por Secircneca e Paulo tem-

se instaurada a evidecircncia de um desafio nesta pesquisa ou seja uma tentativa de

se apreender a dinacircmica desses discursos no bojo da influecircncia do interdiscurso ou

seja o atravessamento constitutivo que movimenta a circulaccedilatildeo de diferentes

discursos na base da enunciaccedilatildeo De acordo com algumas reflexotildees de

Maingueneau (2007 p 23) pode-se pensar o discurso para aleacutem da simplificaccedilatildeo

da ideia de um conjunto de textos Todo discurso eacute uma construccedilatildeo social e deve

ser analisado na perspectiva de seu contexto histoacuterico-social e de suas condiccedilotildees

de produccedilatildeo como eacute tratado na parte II desta pesquisa O proacuteprio Maingueneau

resgata o uso da terminologia praacutetica discursiva17 herdada de Foucault e assim

justifica

O sistema de restriccedilotildees semacircnticas para aleacutem do enunciado e da enunciaccedilatildeo permite tornar esses textos comensuraacuteveis com a ldquorede institucionalrdquo de um ldquogrupordquo aquele que a enunciaccedilatildeo discursiva ao mesmo tempo supotildee e torna possiacutevel (MAINGUENEAU 2007 p 23)

Nessa abordagem toma-se a noccedilatildeo de discurso na articulaccedilatildeo do funcionamento

discursivo em consonacircncia com sua inscriccedilatildeo histoacuterica Assim o ato enunciativo

pode ser circunscrito historicamente em sua apreensatildeo atraveacutes do interdiscurso

Maingueneau (2007 p17-21) sustenta que ldquoo interdiscurso tem precedecircncia sobre o 17

Foucault na obra Arqueologia do Saber (2007 p 133) faz uso do termo praacutetica discursiva definindo-o como um conjunto de regras anocircnimas histoacutericas sempre determinadas no tempo e no espaccedilo que definiram em uma dada eacutepoca e para uma determinada aacuterea social econocircmica geograacutefica ou linguiacutestica as condiccedilotildees de exerciacutecio da funccedilatildeo enunciativa

34

discursordquo A unidade de anaacutelise natildeo estaacute focada no discurso especificamente mas

no espaccedilo de troca entre vaacuterios discursos levando-se em conta o direcionamento

efetuado por meio do discurso constituinte que permite circular outros discursos

mantendo sua proacutepria autonomia e prevalecircncia determinantes no posicionamento

discursivo do enunciador

O gecircnero epistolar tem sua funccedilatildeo no ato enunciativo em estreita relaccedilatildeo com a

cenografia e o ethos Todo esse conjunto participante da cena geneacuterica da

enunciaccedilatildeo se estabelece a partir do discurso constituinte que eacute tomado como base

no acontecimento enunciativo Estas consideraccedilotildees abordadas nesta parte

introdutoacuteria estatildeo desenvolvidas ao longo da primeira parte da tese

35

2 CONTRIBUICcedilOtildeES DE FOUCAULT PARA OS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE

Os uacuteltimos anos das pesquisas de Foucault foram enriquecidos com a produccedilatildeo de

alguns postulados que favorecem a compreensatildeo de como o sujeito se constitui ou eacute

constituiacutedo ao longo da histoacuteria Com tal objetivo Foucault nas aulas ministradas no

Collegravege de France retomou a histoacuteria da Antiguidade observando que ao longo da

passagem dos seacuteculos houve uma transformaccedilatildeo na visatildeo filosoacutefica As aulas de

Foucault no Collegravege de France foram permanentes de 1971 a 1984 mas em

especial os cursos de 1980 a 1984 tinham como foco as questotildees sobre

subjetividade e verdade a partir da Antiguidade O material coletado das aulas

gravaccedilotildees e dossiecircs forneceram material para compilaccedilatildeo de algumas obras e as

trecircs uacuteltimas traduzidas para o portuguecircs satildeo A hermenecircutica do sujeito (2010a

3ed) O governo de si e dos outros (2010b) e A coragem da verdade (2011)

Na manifestaccedilatildeo do pensamento dos preacute-socraacuteticos podem-se observar mudanccedilas

que paulatinamente atravessaram tambeacutem a cultura heleniacutestica Foucault18 destaca

que no caminhar da histoacuteria percebe-se um distanciamento das origens do

pensamento socraacutetico fazendo emergir gradativamente na Idade Meacutedia a

concepccedilatildeo de um sujeito cartesiano A posiccedilatildeo de Descartes implementou outro

modo de acesso agrave verdade em detrimento do cuidado de si Foucault (2010a p 15)

examinou possiacuteveis consequecircncias desse pensamento apontando que na

abordagem de Descartes natildeo eacute o sujeito que deve transformar-se Portanto para

que o sujeito tenha acesso ao conhecimento da verdade basta que ele seja ele

mesmo sendo sua proacutepria estrutura de sujeito a garantia que o habilita ao alcance

da verdade

Na primeira fase de seus estudos Foucault nas deacutecadas de sessenta e setenta

apontou exatamente para a sujeiccedilatildeo de um indiviacuteduo que na eacutepoca da Modernidade

estava vulneraacutevel agraves dominaccedilotildees da vontade de verdade Tais dominaccedilotildees satildeo

impostas pela vontade de saber submetendo-se ao que foi constituiacutedo

institucionalmente como discurso verdadeiro19 No segundo momento de suas

18

Nas aulas introdutoacuterias de 1982 no Collegravege de France Foucault (2010a) fez um levantamento histoacuterico das concepccedilotildees filoacutesoficas desde Soacutecrates ateacute Descartes para situar suas colocaccedilotildees sobre subjetividade e verdade e o cuidado de si 19

Em suas seis conferecircncias realizadas na PUC do Rio de Janeiro em 1973 Foucault apresentou suas concepccedilotildees de verdade naquelas conferecircncias que mais tarde foram compiladas no livro intitulado A verdade e as formas juriacutedicas (FOUCAULT 2005)

36

pesquisas a partir de 1980 Foucault se situou nos estudos de teacutecnicas de

existecircncia promovidas pela Antiguidade grega e romana20 incluindo o periacuteodo

Heleniacutestico deixando aparecer outra figura do sujeito natildeo constituiacutedo como

demonstrado na fase da Modernidade mas constituindo-se atraveacutes de praacuteticas

regradas na fase da Antiguidade Em A Hermenecircutica do Sujeito Foucault (2010a)

declarou seu interesse em buscar na Antiguidade grega e romana suportes que

contribuiacutessem para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre sujeito e verdade Como meta

em sua investigaccedilatildeo ele partiu de uma anaacutelise da noccedilatildeo de cuidado de si como

orientaccedilatildeo na trajetoacuteria de sua pesquisa Ao refletir sobre o ensinamento milenar de

Soacutecrates ldquoConhece-te a ti mesmordquo Foucault argumentou sobre possiacuteveis

significados que esta maacutexima sustenta Os valores que dirigem a vida do ser

humano estariam em um patamar mais elevado do que o saber aparente que se

julga ter no questionamento de si mesmo O fundamental natildeo eacute saber mas ser de

acordo com um determinado modo de vida Nessa busca Foucault (2010a p 9)

verificou que Soacutecrates natildeo se limitava a pensar o homem do conhecimento de si

mas o homem do cuidado de si Desse modo o cuidado de si implica o

conhecimento de si que para Soacutecrates era um reconhecer-se que efetivamente

buscava uma recuperaccedilatildeo da memoacuteria da verdade

Na Antiguidade havia um relacionamento entre o ato do conhecimento e

espiritualidade no campo da filosofia A partir dessa concepccedilatildeo Foucault (2010a p

26) pondera que a espiritualidade pode ser vista como condiccedilatildeo de acesso agrave

verdade Com base na sua fonte de pesquisa Foucault (2010a p171) argumenta

que a filosofia antiga de um modo geral era detentora de um pressuposto

fundamental de que a conversatildeo21 era a garantia de acesso agrave verdade ou seja o

20

No curso oferecido no Collegravege de France em 1982 Foucault apresentou sua pesquisa voltada para a cultura greco-romana situando pensadores como Soacutecrates estendendo sua anaacutelise para o periacuteodo Heleniacutestico relacionando seu trabalho de investigaccedilatildeo com a construccedilatildeo das subjetividades Essas aulas estatildeo compiladas no livro Hermenecircutica do Sujeito (2010a) No ano seguinte em 1983 deu continuidade agraves suas pesquisas trabalhando questotildees voltadas para o tema sobre o governo de si e o governo do outro (2010b) Nesse periacuteodo ele elaborou o texto A escrita de si (2004) enfocando escritores romanos dos seacuteculos I e II de nossa era voltados para o estoicismo da terceira fase No ano de 1984 ao ministrar suas aulas deu continuidade ao tema governo de si aprofundando questotildees sobre parresiacutea fechando o curso com uma anaacutelise raacutepida sobre a parresiacutea entre os preacute-cristatildeos Sua intenccedilatildeo era dar continuidade no ano seguinte analisando a parresiacutea no cristianismo mas infelizmente sua morte natildeo lhe permitiu As aulas de 1984 estatildeo compiladas no livro intitulado A coragem da verdade ndash o governo de si e dos outros II (2011) 21

Termos como salvaccedilatildeo e conversatildeo pertenciam agraves diferentes correntes da filosofia antiga Segundo Foucault (2010a p176) salvaccedilatildeo era relacionada ao cuidado de si e cuidado dos outros como aparece em textos de Epitecto que apontam para o fato de que quando o sujeito busca seu proacuteprio bem faz bem tambeacutem aos outros O termo converter-se aparece em Secircneca com a expressatildeo

37

indiviacuteduo deveria passar por um processo de transformaccedilotildees para se tornar

capacitado para apreensatildeo da verdade Esse fato pode ser identificado no

pensamento de Secircneca

Verifico Luciacutelio que natildeo apenas me estou corrigindo antes me estou transfigurando Natildeo garanto nem sequer espero que nada jaacute reste em mim sem necessitar de mudanccedila Como natildeo hei de ter ainda muito que deva ser refreado ou diminuiacutedo ou elevado Mas jaacute eacute uma prova de que o espiacuterito alcanccedilou um degrau superior o fato de reconhecer os defeitos que ateacute entatildeo permaneciam ignorados (SEcircNECA Ep 61)

A partir dessa base filosoacutefica dos estoicos sobre a conversatildeo Secircneca se coloca

como algueacutem que se encontra nesse processo de transformaccedilatildeo que eacute constante

Ao mesmo tempo por um lado percebe-se uma auto avaliaccedilatildeo positiva dos

resultados alcanccedilados e por outro lado a consciecircncia da necessidade de outras

mudanccedilas como um processo permanente Essa epiacutestola de Secircneca coloca em

evidecircncia que o conhecimento de si favorece o proacuteprio cuidado de si pois o efeito da

conversatildeo a si eacute a subjetivaccedilatildeo da verdade pela qual algueacutem procura transformar

seu modo de ser Nesse percurso Foucault desenvolve sua anaacutelise a respeito das

relaccedilotildees entre conhecimento de si e cuidado de si e assim comenta

Temos pois se quisermos no niacutevel das praacuteticas de si trecircs grandes modelos que historicamente se sucederam uns aos outros O modelo que eu chamaria ldquoplatocircnicordquo gravitando em torno da reminiscecircncia O modelo ldquoheleniacutesticordquo que gira em torno da auto finalizaccedilatildeo da relaccedilatildeo a si E o modelo ldquocristatildeordquo que gira em torno da exegese de si e da renuacutencia a si [] A moral austera do modelo heleniacutestico foi retomada e trabalhada pelas teacutecnicas de si definidas pela exegese e pela renuacutencia a si proacutepria do modelo ldquocristatildeordquo (FOUCAULT 2010a p 231)

A praacutetica de si de acordo com os trecircs grandes modelos apontados por Foucault

pode ser identificada nos conteuacutedos das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Os conselhos

emitidos atraveacutes daquelas missivas se constituem como alertas e instruccedilotildees aos

leitores sobre diferentes facetas do cuidado de si como modo de fortalecer e dar

credibilidade aos discursos constituiacutedos como verdadeiros e seus efeitos na praacutetica

por meio da accedilatildeo mostrada pelo comportamento Os ensinamentos contidos nas

epiacutestolas de Paulo serviram tambeacutem de sustentaccedilatildeo na implantaccedilatildeo do cristianismo

caracterizando o modelo cristatildeo ao qual Foucault se refere

Rogo-vos pois irmatildeos pela compaixatildeo de Deus que apresenteis os vossos corpos em sacrifiacutecio vivo santo e agradaacutevel a Deus que eacute o vosso culto racional E natildeo sede conformados com este mundo mas sede transformados pela renovaccedilatildeo do vosso entendimento para que

transfigurar-se (Ep 61) Posteriormente os termos salvaccedilatildeo e conversatildeo foram assimilados pela linguagem relacionada aos fundamentos do cristianismo

38

experimenteis qual seja a boa agradaacutevel e perfeita vontade de Deus (Rom 121-2)

Paulo tambeacutem se refere agrave renovaccedilatildeo do entendimento como sustentaccedilatildeo baacutesica

para o processo de transformaccedilatildeo do sujeito Para Foucault a noccedilatildeo de cuidado de

si na Antiguidade revela a fundamentaccedilatildeo da moral em um momento bem anterior

ao cristianismo22 sendo um fio condutor de ligaccedilatildeo De acordo com a posiccedilatildeo

adotada por Foucault o cuidado de si estaacute interligado agrave concepccedilatildeo de sujeito e

verdade No contexto da cultura heleniacutestica Foucault procurou articular

subjetividade e verdade a partir de sua proacutepria visatildeo de um passado histoacuterico que

lhe permitisse resgatar um entendimento do processo de subjetivaccedilatildeo Os textos

demarcados para anaacutelise na realizaccedilatildeo de sua pesquisa estatildeo contidos em

produccedilotildees de escritura socraacutetica e heleniacutestica avanccedilando para os dois primeiros

seacuteculos de nossa era Nas ministraccedilotildees de suas aulas no Collegravege de France de

oitenta a oitenta e quatro Foucault procurou identificar como o indiviacuteduo se relaciona

consigo mesmo e com o outro como praacuteticas de apropriaccedilatildeo do discurso

verdadeiro

Foucault (2010a p 373) delineou sua forma de anaacutelise no que concerne sua

abordagem sobre discurso verdadeiro ldquoEm suma atraveacutes das regras do silecircncio e

dos princiacutepios da parresiacutea23 do franco-falar tentarei estudar um pouco as regras de

formulaccedilatildeo transmissatildeo e aquisiccedilatildeo do discurso verdadeirordquo Assim Foucault

(2010a p 282) aponta que entre os gregos e os romanos da Antiguidade a

aacuteskesis24 era considerada o ponto chave para o dizer-verdadeiro constituindo-se

como o modo de ser do sujeito A constataccedilatildeo de que a virtude podia ser adquirida

por meio da aacuteskesis jaacute se anunciava nos textos pitagoacutericos antigos Em Platatildeo25 eacute

22

Para Foucault (2010a p 231) o modelo heleniacutestico centrado em torno da auto finalizaccedilatildeo da relaccedilatildeo a si da conversatildeo a si foi o lugar de uma formaccedilatildeo moral que o cristianismo herdou repatriou e elaborou 23

Parresiacutea- expressatildeo originaacuteria do grego ndash παρρησία Segundo Foucault (2010b p 64) A parresiacutea eacute a livre coragem pela qual algueacutem se vincula a si mesmo no ato de dizer a verdade Ou ainda a parresiacutea eacute a eacutetica do dizer-a-verdade em seu ato arriscado e livre (A grafia parresiacutea eacute usada neste trabalho como transcriccedilatildeo do original ndash παρρησία) 24

Aacuteskesis (ascese) eacute um termo grego ἄσκησις que na Antiguidade significava praacutetica treinamento ou exerciacutecio Segundo Foucault (2010a p 377) haacute uma diferenccedila entre as praacuteticas de exerciacutecios da ascese no contexto histoacuterico do platonismo neoplatonismo e estoico-ciacutenica Se comparada agrave asceacutetica dos ciacutenicos e dos estoicos ao que era formulado no Alcebiacuteades na eacutepoca heleniacutestica e romana haacute uma desvinculaccedilatildeo do valor do conhecimento teoacuterico em detrimento de um conhecimento posto em praacutetica Essa eacute a razatildeo pela qual Foucault delimitou os seacuteculos I e II dC para analisar a praacutetica de si naquele contexto histoacuterico 25

Na obra A Repuacuteblica (VII 518e) Platatildeo faz a seguinte reflexatildeo ldquoQuanto agraves chamadas virtudes da alma apresentam certa afinidade com as do corpo pois natildeo sendo inatas podem ser posteriormente

39

citado o termo na obra A Repuacuteblica apontando para o valor da aacuteskesis como

exerciacutecio e haacutebito na aquisiccedilatildeo da virtude Nos textos de Platatildeo era fundamental a

concepccedilatildeo de filosofia como aacuteskesis Tambeacutem os ciacutenicos insistiam no valor da

praacutetica do exerciacutecio para aleacutem do valor do conhecimento teoacuterico Com o propoacutesito de

alcanccedilar sentidos tatildeo abstratos sobre a aquisiccedilatildeo do discurso verdadeiro Foucault

faz as seguintes observaccedilotildees

[] a aacuteskesis em razatildeo de seu objetivo final que eacute a constituiccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de si para consigo plena e independente tem essencialmente por funccedilatildeo por objetivo primeiro e imediato a constituiccedilatildeo de uma paraskeueacute (uma preparaccedilatildeo um equipamento) E o que eacute essa paraskeueacute Eacute creio a forma que os discursos verdadeiros devem tomar para constituir a matriz dos comportamentos razoaacuteveis (FOUCAULT 2010a p 291)

A ideia da ascese26 como exerciacutecio pode ser identificada atraveacutes do uso da

metaacutefora do atleta27 tanto em textos de Secircneca como nos de Paulo A identificaccedilatildeo

do uso dessa metaacutefora seraacute analisada na parte III como lugar comum nos discursos

destes dois autores O bom atleta engaja-se na praacutetica de movimentos especiacuteficos

por meio dos quais se fortalece face aos acontecimentos cotidianos tendo por

adversaacuterio as fatalidades da existecircncia Esses sentidos se aplicavam tambeacutem agrave

maneira ideal de aquisiccedilatildeo das virtudes Como Foucault ressalta nos periacuteodos que

marcaram a Antiguidade a ascese era fundamental como suporte na aquisiccedilatildeo do

discurso verdadeiro pois permitia ao sujeito se fortalecer interiormente para

enfrentar os acontecimentos A ascese tambeacutem direcionava a escuta e recepccedilatildeo do

discurso verdadeiro Por isso Foucault (2010a p 283) comenta que ldquoa ascese natildeo eacute

uma maneira de submeter o sujeito agrave lei eacute uma maneira de ligar o sujeito agrave

verdaderdquo Pode-se pensar que essa ideia evidencia uma forma de sustentaccedilatildeo para

compreensatildeo do posicionamento do apoacutestolo Paulo em sua epiacutestola aos Romanos

em sua tentativa de intermediar os conflitos entre os primeiros cristatildeos Segundo

Heyer (2009 p 202) havia um embate entre judeus e gentios visto que a imposiccedilatildeo

do cumprimento da lei mosaica por parte dos judeus convertidos provocava certa

desestabilidade na harmonia e convivecircncia entre os dois grupos Na epiacutestola aos

Romanos no capiacutetulo trecircs Paulo endurece seu discurso a respeito do

adquiridas pelo haacutebito e pelo exerciacutecio (aacuteskesis) Nesse texto aacuteskesis tem o sentido de exerciacutecio e treinamentordquo 26

Doravante as referecircncias ao termo grego ἄσκησις seratildeo mencionadas pelo uso da palavra ascese como traduzida para o portuguecircs 27

Secircneca Ep 80 3-4 Paulo I Cor 924-27

40

comportamento dos judeus em relaccedilatildeo agraves intransigecircncias polecircmicas do

cumprimento da lei mosaica

Foucault (2010a p374) deu um tom mais pessoal aos seus estudos anunciando

que optou pelo uso do termo asceacutetica28 ao inveacutes de ascese a qual tem certas

caracteriacutesticas em sua origem que natildeo se enquadram no todo do corpus de sua

anaacutelise O conceito de asceacutetica eacute posto por ele da seguinte forma ldquoasceacutetica eacute o

conjunto mais ou menos coordenado de exerciacutecios disponiacuteveis recomendados ateacute

mesmo obrigatoacuterios ou utilizaacuteveis pelos indiviacuteduos em um sistema moral filosoacutefico e

religiosordquo Para Foucault (2010a p 374) os exerciacutecios promovidos pela asceacutetica

constituiacuteam a praacutetica da cultura de si na vigecircncia do Principado Nesse ambiente

observado havia certa prescriccedilatildeo que podia ser analisada como uma questatildeo

teacutecnica daiacute o uso da expressatildeo teacutecnicas de si Esta eacute uma caracteriacutestica do

estoicismo da terceira fase situado nos seacuteculos I e II d C Nesse contexto histoacuterico

Foucault encontrou uma rica fonte para suas anaacutelises na asceacutetica estoica29

observando como os exerciacutecios de abstinecircncia contribuiacuteam para a constituiccedilatildeo de

um estilo de vida Foucault (2010a p 387) identifica um paralelo entre prova e

abstinecircncia como um conjunto de praacuteticas asceacuteticas Poreacutem a prova comporta

certas caracteriacutesticas que a diferencia da abstinecircncia O singular eacute que na prova

uma auto avaliaccedilatildeo eacute oportuna para algueacutem definir-se como capacitado ou natildeo em

determinadas situaccedilotildees Haacute certo conhecimento de si quando a experiecircncia de uma

prova eacute assumida o que natildeo se evidencia na abstinecircncia que eacute simplesmente uma

privaccedilatildeo voluntaacuteria Para contextualizar a noccedilatildeo de prova Foucault (2010a p 385)

toma como exemplo trechos da epiacutestola dezoito de Secircneca a Luciacutelio com a

finalidade de identificar a distinccedilatildeo entre prova e abstinecircncia Secircneca escreve a

Luciacutelio expondo suas ideias sobre um evento anual denominado Saturnais30 que

acontecia em Roma durante um periacuteodo do mecircs de dezembro

28

Foucault (2010a p 374) justifica que optou usar o termo asceacutetica para evitar a palavra ascetismo porque estaacute relacionada agrave uma atitude de renuacutencia ou mesmo de mortificaccedilatildeo anteriormente entre os ciacutenicos e posteriormente entre os cristatildeos Tambeacutem a palavra ascese remete a um comportamento individual envolvendo exerciacutecios para purificaccedilatildeo pessoal ou recompensa espiritual 29

Como observa Segurado e Campos (1991 XXXIX) ldquoo estoicismo que Secircneca defendia talvez ateacute com mais rigor do que seus antecessores admitia que qualquer coisa um objeto uma accedilatildeo uma ocupaccedilatildeo intelectual uma ideia soacute possuiriam valor se visassem a obtenccedilatildeo do bem moral que propusesse tornar o homem melhor do que erardquo 30

As Saturnais serviam de pano de fundo para algumas produccedilotildees do poeta Marcial Por um lado Alexandre Agnolon (2013 p 14) menciona como as Saturnais desempenharam um papel preponderante na produccedilatildeo de epigramas de Marcial Pode-se dizer que aquele festival fornecia

41

Estamos em dezembro a cidade estaacute coberta de suor A ostentaccedilatildeo desregrada invadiu toda a vida coletiva Fazem-se estrepitosamente enormes preparativos como se existisse alguma diferenccedila entre periacuteodo das Saturnais e os dias uacuteteis O fato eacute que natildeo haacute qualquer diferenccedila e por isso mesmo acho que tem toda a razatildeo quem afirma que se dezembro em tempos foi um mecircs agora eacute um ano inteiro (SEcircNECA Ep 181)

Nessa epiacutestola Secircneca compartilha com Luciacutelio suas reflexotildees expondo suas

opiniotildees sobre a gigantesca preparaccedilatildeo para o evento das Saturnais Desse modo

ele questiona se haveria necessidade de se quebrar toda uma rotina cotidiana por

causa daqueles festejos tatildeo prolongados e se expressa ldquodezembro em tempos foi

um mecircs agora eacute um ano inteirordquo (Ep 181) Outro questionamento ligado agravequelas

comemoraccedilotildees se volta para o efeito da troca da toga pelas roupas de festa Secircneca

identifica que em outros tempos a troca da toga tinha outros significados

Se estivesses aqui de boa vontade trocaria impressotildees contigo sobre qual te parece a atitude a adotar ou natildeo alterar em nada os nossos haacutebitos cotidianos ou entatildeo para natildeo nos julgarem contraacuterios aos costumes da maioria darmos algo de animaccedilatildeo ao jantar e abstermo-nos de usar a toga Na realidade enquanto antigamente ldquomudaacutevamos de roupardquo em situaccedilotildees de grande agitaccedilatildeo e de calamidade puacuteblicas agora fazemo-lo em atenccedilatildeo aos prazeres e aos dias de festa (SEcircNECA Ep 182)

Secircneca pondera sobre a melhor atitude a ser tomada diante dos fatos expostos Sua

sugestatildeo segue o caminho da moderaccedilatildeo Por um lado Secircneca constata que seria

um prova segura de firmeza de acircnimo natildeo se deixar levar pelos iacutempetos do

desregramento da multidatildeo Por outro lado seria significativo manter-se luacutecido no

meio de uma multidatildeo eacutebria O importante seria natildeo se colocar agrave margem mas

participar da festa com comportamentos moderados

Se bem te conheccedilo no caso de teres que atuar como aacuterbitro natildeo consentirias que focircssemos nem totalmente semelhantes nem totalmente diferentes da multidatildeo A menos que consideremos dever ser sobretudo exigentes com a nossa alma em dias festivos e sermos os uacutenicos a renunciar aos prazeres numa ocasiatildeo em que toda a gente se lhes entrega Seraacute de fato uma prova segura de firmeza de acircnimo natildeo acompanhar natildeo se deixar guiar por um ambiente aliciador de concessotildees agrave voluacutepia seraacute mais moderada a nossa atitude se nos natildeo situarmos agrave margem natildeo nos tornando notados nem nos deixando absorver na turbaAfinal de contas eacute possiacutevel participar numa festa sem cair no deboche (SEcircNECA Ep18 3-4)

Ao usar essa epiacutestola de Secircneca em sua anaacutelise sobre prova e abstinecircncia

Foucault aponta para o exerciacutecio da prova como uma praacutetica do conhecimento de si

metaforicamente uma variedade de elementos aplicaacuteveis agrave criatividade daquele poeta na construccedilatildeo de gecircneros de epigramas os mais diversificados o simpoacutesio o amor eroacutetico o riso o caraacuteter luacutedico Por outro lado Leni Ribeiro Leite (2011 p 92) observa que ldquoo livro de epigramas eacute por seu gecircnero proacuteprio para a eacutepoca das Saturnais Adequado aos momentos de oacutecio e lazer eacute breve para ser lido durante um banqueterdquo

42

Torna-se viaacutevel considerar que tambeacutem Paulo em sua epiacutestola aos Coriacutentios

manifestou sua opiniatildeo a respeito do comportamento que se deveria adotar frente a

determinadas situaccedilotildees como exerciacutecio da prova ldquoTodas as coisas me satildeo liacutecitas

mas nem todas as coisas convecircm Todas as coisas me satildeo liacutecitas mas eu natildeo me

deixarei dominar por nenhumardquo (1Cor 612) Pode-se dizer que nesse verso se

encontra uma siacutentese do modo de aconselhamento de Paulo em relaccedilatildeo aos

princiacutepios que ele procurava transmitir aos destinataacuterios de sua epiacutestola Esse

ensinamento de Paulo converge para algum ponto de semelhanccedila entre os

conselhos de Secircneca acerca da diferenccedila de significados entre abstinecircncia e prova

Segundo Foucault (2010a p 387) para os estoicos a prova tornava-se uma atitude

em face do real que se apresentava ao sujeito implicando a noccedilatildeo do exerciacutecio do

conhecimento de si Diante dessas conjecturas os exerciacutecios de abstinecircncia tinham

seu valor como um propoacutesito na formaccedilatildeo de um estilo de vida e natildeo exerciacutecios para

regrar a vida diante de interdiccedilotildees e proibiccedilotildees Em consonacircncia com essas ideias

estoicas Foucault observou que o cuidado de si natildeo tem por finalidade eximir o eu

do mundo que o rodeia mas capacitaacute-lo para o enfrentamento dos acontecimentos

como um sujeito verdadeiro em seus atos sendo essa a fundamentaccedilatildeo da ascese

estoica31

Esse estaacutegio da ascese na cultura romana que Foucault cognominou de asceacutetica

transforma o discurso verdadeiro ou seja a verdade em ecircthos32 no sentido da

manifestaccedilatildeo da maneira de ser e modo de existecircncia do indiviacuteduo Eacute nessa linha de

pensamento que no ano de 1983 Foucault (2010b) se debruccedilou sobre as noccedilotildees de

governo de si e governo do outro considerando o discurso verdadeiro33 como

princiacutepio permanente e ativo no desempenho do sujeito

31

No contexto histoacuterico dos primeiros anos do seacuteculo XX Max Weber (2007 p 166) analisou a importacircncia que o racionalismo asceacutetico teve para a organizaccedilatildeo das comunidades sociais Nesse estudo sobre a religiosidade asceacutetica ele fez um contraponto entre ascetismo protestante e ascetismo catoacutelico o primeiro mais voltado para o racionalismo e o segundo para o humanismo 32

Segundo Spinelli (2009 p 9) a distinccedilatildeo entre eacutethos e ecircthos se deu bem cedo no contexto da cultura grega O termo ecircthos grafado com eta (ἦθος)) era usado por Homero e o eacutethos com epsiacutelon (έθος) era usado por Eacutesquilo o fundador da trageacutedia grega O ecircthos na grafia de Homero remonta ao seacuteculo VII aC e comparece com uma significaccedilatildeo um tanto abstrata na medida em que designa os usos e os costumes enquanto relativos a modos (geneacutericos) de viver ou seja a uma sabedoria Eacutethos em Eacutesquilo designa mais ou menos a mesma coisa mas fundamentalmente a tradiccedilatildeo no sentido de o que eacute habitual corriqueiro usual As discussotildees sobre ethos seratildeo retomadas no final desta primeira parte 33

Para Foucault (2010a p 288) na filosofia estoica o discurso verdadeiro resulta de liccedilotildees apreendidas de equipamento material do logos sendo discursos existentes em sua materialidade como proposiccedilotildees fundadas na razatildeo Esse discurso se investe de uma racionalidade que ao mesmo tempo diz o verdadeiro e prescreve o que eacute preciso fazer Satildeo persuasivos no sentido em que

43

Naquele momento especiacutefico Foucault analisou a escrita de si como processo da

subjetivaccedilatildeo recorrendo em especial a trecircs pensadores Secircneca Plutarco e Marco

Aureacutelio34 inseridos no contexto histoacuterico do impeacuterio romano nos seacuteculos I e II dC A

escrita de si como praacutetica de apropriaccedilatildeo do discurso verdadeiro natildeo tem como

propoacutesito a apreensatildeo da verdade nem do mundo em volta e nem de si mesmo

Assim o saber adquirido tem a funccedilatildeo de auxiliar o sujeito a agir corretamente

diante das circunstacircncias Na obra de Plutarco Foucault encontrou uma qualificaccedilatildeo

de verdade como etopoieacutetica35 que tornava possiacutevel identificar a verdade atraveacutes da

manifestaccedilatildeo de atos realizados e posturas assumidas pelo sujeito

O modo como Foucault lanccedilou seu olhar direcionado agrave Antiguidade nos seacuteculos I e

II d C eacute instigante para se tentar localizar e fundamentar a escrita epistolar de

Secircneca e Paulo de acordo com as condiccedilotildees de produccedilatildeo favorecidas naquele

periacuteodo

21 A ESCRITA DE SI

Quanto agraves discussotildees sobre verdade Detienne (1988 p17-23) aponta o

deslocamento que a noccedilatildeo de verdade ndash aleacutetheia36 ndash sofreu mais ou menos entre os

seacuteculos XII e VI a C A memoacuteria do poeta permitia-lhe decifrar o invisiacutevel sendo um

acarretam natildeo somente a convicccedilatildeo mas tambeacutem os proacuteprios atos Eacute necessaacuterio que esses discursos sejam natildeo apenas adquiridos mas dotados de uma espeacutecie de presenccedila permanente 34

Marco Aureacutelio (121 dC - 180 dC) foi imperador romano e dedicou-se agrave filosofia especialmente agrave corrente filosoacutefica do estoicismo da terceira fase e escreveu a obra Meditaccedilotildees Na introduccedilatildeo da traduccedilatildeo inglesa dessa obra Staniforth (2002 p13) comenta que o estoicismo migrou do Oriente para o Ocidente e foi introduzido no mundo romano assumindo um aspecto diferente Os ensinamentos morais de Zenatildeo despertaram atenccedilatildeo e o seu valor praacutetico foi adequado aos ideais da cultura romana Um coacutedigo que era humano racional e moderado um coacutedigo que insistia num procedimento justo e virtuoso na autodisciplina numa forccedila moral inabalaacutevel adequava-se ao caraacutecter romano A influecircncia do estoicismo ampliou-se ao longo dos seacuteculos que assistiram ao decliacutenio da repuacuteblica e ao nascimento do Principado e por altura da ascensatildeo de Marco Aureacutelio ao trono tinha jaacute atingido sua culminacircncia e supremacia 35

Segundo Bruno ( 2007 p 43) o termo etopoieacutetica eacute uma junccedilatildeo das palavras gregas εθος (eacutethos) e ποίησις (poiesis) O ethos era definido como o caraacuteter de uma pessoa e a poiesis significava em determinados contextos um modo de escrever com a finalidade de exercer influencia sobre o outro A expressatildeo etopoieacutetica eacute identificada no modo de produccedilatildeo de Plutarco pois determinadas praacuteticas de si tinham a escrita como ponto de partida O ato de escrever era tomado como urna espeacutecie de poiacuteesis no sentido de transformaccedilatildeo do modo de ser dos indiviacuteduos Essa ethopoiesis foI exercida principalmente atraveacutes de duas formas de escrita os hupomnecircmata como recurso de anotaccedilotildees para auxiacutelio da memoacuteria e consulta e a correspondecircncia como forma de expressatildeo do EU que se abre diante do outro atraveacutes da escrita 36

Detienne (1988 p 23) informa que aleacutetheia (ἀλήθεια) encobria o sentido de verdade como uma revelaccedilatildeo miacutetico-religiosa O poeta era o mestre da verdade pois se ele estava inspirado sua palavra se fundava em um dom de videcircncia assim ocorrendo a palavra passava a ser identifiacada com a verdade Aleacutetheia - verdade no sentido de desvelamento de a- negaccedilatildeo e lethe esquecimento Para os antigos gregos aleacutetheia designava verdade e realidade simultaneamente

44

privilegiado por ter acesso a outra dimensatildeo revelando os misteacuterios apreendidos

com o uso da palavra cantada Sendo essa palavra cantada inspirada pelas musas

os poetas se tornavam sacralizados como videntes possuidores da palavra que as

musas por meio da memoacuteria o permitiam cantar Sendo o poeta dotado

divinamente pela capacidade de videcircncia esse dom o autorizava a transmitir a

verdade que lhe era revelada Nesse momento histoacuterico da Greacutecia arcaica a

aleacutetheia natildeo representava uma concordacircncia com determinada proposiccedilatildeo de certo

objeto ou mesmo de um grupo com outro Natildeo havia naquele momento uma

oposiccedilatildeo entre falso e verdadeiro O que importava era o dom de videcircncia do poeta

que o autorizava a dizer pois ele era o mestre da verdade

A partir do final do seacuteculo VI aC evidecircncias da separaccedilatildeo entre discurso verdadeiro

e discurso falso comeccedilaram a ser manifestadas Naquele contexto o discurso

verdadeiro natildeo mais estava vinculado agrave praacutetica do poder da palavra de quem era

possuidor inquestionaacutevel da verdade como responsaacutevel pela enunciaccedilatildeo Na Greacutecia

arcaica havia a forccedila da palavra maacutegico-religiosa mas com a implantaccedilatildeo da poacutelis

surge a forccedila da palavra dialoacutegica Como consequecircncia das evidentes mudanccedilas

histoacutericas a aleacutetheia passa a ser valorizada pelas seitas filosoacuteficas enquanto

sofiacutestica e retoacuterica privilegiam a apaacutete37

Considerando algumas contribuiccedilotildees de Detienne (1988 p17) sobre a construccedilatildeo

da verdade na cultura grega nota-se que a passagem da cultura da oralidade para

a cultura da escrita foi um processo lento que contribuiu para uma nova maneira de

pensar e elaborar o proacuteprio conhecimento A memoacuteria valorizada na poesia jaacute natildeo eacute

considerada como fonte exclusiva de busca da verdade Desse modo a verdade

natildeo eacute dada no seu produto final de acordo com a inspiraccedilatildeo do poeta mas passa a

ser construiacuteda e conquistada

Outra fonte que conteacutem abordagens sobre oralidade e escrita eacute encontrada em

resultados das pesquisas de Havelock (1986 p 23-24) que apontam Soacutecrates

como um ponto central entre a escrita e a oralidade na Antiguidade grega sendo um

37

Segundo Detienne (1988 p 61) no campo da poesia a doxa (opiniatildeo) se opotildee agrave aleacutetheia com afinidades com a apaacutete (engano) e com a ambiguidade e como termo teacutecnico-poliacutetico mais do que religioso Detienne (1988 p 58) cita o poeta Simocircnides de Ceacuteos (556 aC 468 aC) poeta grego que passa a praticar a poesia como um ofiacutecio produzindo seus poemas por encomenda e cobrando honoraacuterios por seus serviccedilos Para Simocircnides a memoacuteria eacute o instrumento que contribui para o aprendizado de um ofiacutecio e no lugar da aleacutetheia ele reivindica a doxa Simocircnides era um poeta que tambeacutem se dedicava agrave criaccedilatildeo de epigramas e eacute citado por Quintiliano (Inst Or XI 211-12)

45

mantenedor da tradiccedilatildeo da oralidade natildeo como um exerciacutecio de memorizaccedilatildeo

poeacutetica mas como um instrumento prosaico que pudesse romper com os ditames

praticados desde a Greacutecia arcaica Soacutecrates aprimorou e reelaborou certos aspectos

da manifestaccedilatildeo da linguagem oral tanto no uso do vocabulaacuterio quanto na

organizaccedilatildeo da estrutura da liacutengua Seus continuadores atraveacutes da dinacircmica da

escrita em forma de diaacutelogo de certo modo demonstraram o valor da oralidade e

contribuiacuteram para um avanccedilo no campo da loacutegica Segundo Havelock (1986 p 24-

27) a literatura grega havia sido poeacutetica porque a poesia cumpria uma funccedilatildeo

social pois visava preservar a tradiccedilatildeo que era ensinada e memorizada pela

oralidade A oposiccedilatildeo de Platatildeo agrave poesia poderia estar direcionada agrave essa funccedilatildeo

didaacutetica da poesia O surgimento do platonismo identificado com a apariccedilatildeo da

prosa escrita em forma de diaacutelogo representou uma fase de transiccedilatildeo entre

oralidade e escrita A permanecircncia da influecircncia da oralidade se manteve de forma

indireta atraveacutes do funcionamento do teatro em que os diaacutelogos eram valorizados A

forma de diaacutelogo tambeacutem contribuiu para a comunicaccedilatildeo entre ausentes por meio

da correspondecircncia unindo oralidade e escrita Foucault situou suas pesquisas

nesse ambiente da cultura letrada procurando observar o modo como a escrita

contribuiacutea para a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo e o processo de subjetivaccedilatildeo que o

envolvia naturalmente

Na aula introdutoacuteria do curso de 1982 Foucault expocircs seu objetivo em analisar o

cuidado de si observaacutevel a partir do seacuteculo V a C partindo de Soacutecrates em sua

reflexatildeo do jaacute mencionado aforismo grego ldquoconhece-te a ti mesmordquo Foucault (2004

p 151) fez um levantamento dos modos e efeitos da escrita de si entre os estoicos

da terceira fase apontando para essa escrita etopoieacuteitica que aparece nos escritos

na forma dos hupomnecircmata38 e correspondecircncia Nessa abordagem os

hupomnecircmata contribuem para a constituiccedilatildeo de si mesmo atraveacutes de uma accedilatildeo

intencional e racional que permite a apropriaccedilatildeo de um jaacute dito selecionado pelo

exerciacutecio da leitura constituindo dessa forma o processo de subjetivaccedilatildeo na

elaboraccedilatildeo dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros O ato de

38

No dicionaacuterio grego-portuguecircs (2008) o termo υπόμνημα (hupomnema) eacute uma palavra grega no singular e o plural eacute υπομνήματα (hupomnecircmata) Este termo no plural se refere aos registros em uma caderneta de notas usada para destaques de leituras realizadas comentaacuterios e observaccedilotildees Foucault (2004 p 147) informa que na Antiguidade as notas serviam como um guia de conduta para um puacuteblico que as usava como fonte de consulta Nas anotaccedilotildees eram registrados fragmentos de obras anotaccedilotildees reflexotildees testemunhos de coisas vistas e ouvidas Esse material catalogado servia como memoacuteria das mais variadas leituras em todos os sentidos

46

escrever e a praacutetica das anotaccedilotildees favoreciam a aquisiccedilatildeo e internalizaccedilatildeo dos

discursos verdadeiros

Para situar a importacircncia do valor da leitura e anotaccedilotildees como uma praacutetica de

exerciacutecios pode-se tambeacutem encontrar no contexto do I seacuteculo dC algumas

contribuiccedilotildees de Quintiliano na obra Institutio Oratoria

Deve-se igualmente deixar reservado um espaccedilo no qual se registrem todas as ideias que aos que escrevem costumam ocorrer fora de ordem ou seja satildeo ideias diferentes relativamente aos assuntos que no momento estejam sendo tratados Irrompem agraves vezes excelentes ideias que nem eacute conveniente as inserir naquele exato momento nem eacute seguro deixaacute-las agrave solta pois nesse espaccedilo de tempo elas se esvaem elas impedem de outras descobertas aqueles que as querem guardar de memoacuteria Assim o melhor a fazer eacute que estejam em depoacutesito (QUINTILIANO Inst Or X 3 33)

As contribuiccedilotildees da escrita dos hupomnecircmata e da correspondecircncia satildeo distintas

entre si mas complementares Quanto agrave correspondecircncia Foucault (2004 p156)

afirma que ldquoa reciprocidade que a correspondecircncia estabelece natildeo eacute simplesmente

a do conselho e da ajuda ela eacute a do olhar e do examerdquo Assim nessa mesma

passagem esse autor considera que ldquoa carta que como exerciacutecio trabalha para a

subjetivaccedilatildeo do discurso verdadeiro para sua assimilaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo como um

bem proacutepriordquo Quanto aos hupomnecircmata cuja funccedilatildeo eacute a constituiccedilatildeo de si a partir

dos discursos dos outros depois de internalizados contribuem para a aquisiccedilatildeo e

instauraccedilatildeo do discurso verdadeiro atingindo o caraacuteter da accedilatildeo

O discurso verdadeiro como tratado por Foucault (1996 p 14-20) estaacute diretamente

ligado agrave concepccedilatildeo de sujeito e verdade como percebidos por ele tanto em

diferentes contextos histoacutericos da Modernidade quanto da Antiguidade Na

Modernidade o sujeito eacute constituiacutedo pela forccedila da influecircncia do saber e do poder

geradores da vontade de verdade que determina a orientaccedilatildeo do discurso

verdadeiro Na Antiguidade em especial os seacuteculos I e II dC o sujeito se constituiacutea

pela busca do discurso verdadeiro atraveacutes de exerciacutecios e teacutecnicas como a leitura e

a escrita que contribuiacuteam para uma constituiccedilatildeo de ecircthos39 de verdade Entatildeo o

39

Aristoacuteteles na Retoacuterica (I 2 1356a) considera o ecircthos em uma perspectiva da argumentaccedilatildeo em que o papel primordial do orador eacute argumentar e convencer o ouvinte a aceitar suas posiccedilotildees e ideias Quintiliano na obra Institutio Oratoria (VI 211-13) observa que o ecircthos (ἦθος) pode ser apreendido como formas de manifestaccedilatildeo do comportamento humano O que estaacute relacionado ao caraacuteter do indiviacuteduo eacute revelado atraveacutes de seu proacuteprio discurso Fica subentendido nas consideraccedilotildees de Quintiliano que determinadas virtudes devem estar latentes no orador para que ele tenha controle sobre seu discurso e saiba lidar com sabedoria mediante reaccedilotildees imprevisiacuteveis por parte do ouvinte A concepccedilatildeo de ethos na anaacutelise de do discurso engloba os dois sentidos recorrentes na retoacuterica grega e romana sem uso de acento na palavra

47

fato preponderante que favorece as condiccedilotildees para o discurso ser designado como

verdadeiro eacute o fato de estar submetido ao princiacutepio da accedilatildeo que possibilita ao

indiviacuteduo a capacidade de enfrentamento de desafios ao longo da proacutepria

existecircncia

Ao refletir sobre a escrita de si Foucault (2004) resgatou da Antiguidade algumas

consideraccedilotildees que demonstram determinadas razotildees desse tipo de escrita

Inicialmente no texto de Foucault satildeo feitas algumas abordagens sobre a escrita

como forma de exerciacutecio que auxilia na apreensatildeo do sentido de viver sendo a

escrita o resultado de recolha das diferentes leituras tanto de textos escritos como

tambeacutem da proacutepria vida

O papel da escrita eacute constituir com tudo que a leitura constituiu um corpo E este corpo haacute que entendecirc-lo natildeo como um corpo de doutrinas mas sim - de acordo com a metaacutefora tantas vezes evocada da digestatildeo - como o proacuteprio daquele que ao transcrever as suas leituras se apossou delas e fez sua a respectiva verdade a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forccedila e em sangue Ela transforma-se no proacuteprio escritor num princiacutepio de accedilatildeo racional (FOUCAULT 2004 p 152)

Na continuidade de sua busca na Antiguidade Foucault encontrou em Secircneca uma

rica fonte de reflexotildees tanto para essas consideraccedilotildees sobre o papel da escrita

como tambeacutem para a concepccedilatildeo de identidade do escritor a partir das influecircncias

que a proacutepria leitura imprime na subjetividade sendo o sentido de leitura

considerado em sua ampla abrangecircncia

Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora deve tornar-se possiacutevel formar para si proacuteprio uma identidade atraveacutes da qual se lecirc uma genealogia espiritual inteira Num mesmo coro haacute vozes altas baixas e medianas timbres de homem e de mulher Nenhuma voz individual se pode aiacute distinguir soacute o conjunto se impotildee ao ouvido Assim quero eu que seja com a nossa alma que ela faccedila boa provisatildeo de conhecimentos de preceitos de exemplos tirados de mais do que uma eacutepoca mas

convergentes numa unidade (FOUCAULT 2004 p153)

Foucault tomou o proacuteprio texto de Secircneca como base do desenvolvimento de

argumentos sobre a manifestaccedilatildeo de si na escrita da missiva Assim ele avalia as

condiccedilotildees histoacutericas que formam o pano de fundo na ocorrecircncia da troca de

correspondecircncia entre Secircneca e Luciacutelio O momento em que Secircneca escreve

Epiacutestolas Morais eacute localizado no final de sua carreira profissional40 encontrando-se

40

Secircneca se abre para Luciacutelio dizendo ldquoretirei-me natildeo soacute dos homens como dos negoacutecios comeccedilando com os meus proacuteprios estou trabalhando para a posteridade Vou compondo alguma

48

retirado de suas funccedilotildees puacuteblicas Pelo contraacuterio Luciacutelio como estinataacuterio fictiacutecio ou

real das epiacutestolas estava em plena atividade exercendo funccedilotildees puacuteblicas

importantes Destaca-se que a figura de Secircneca nesse cenaacuterio natildeo se limita em

suas epiacutestolas agraves informaccedilotildees ou aconselhamentos como princiacutepio de conduta A

esse respeito o proacuteprio Secircneca comenta ldquoComo natildeo havemos de gostar de receber

uma correspondecircncia que nos traz a marca autecircntica a escrita pessoal de um amigo

ausenterdquo (Ep 401)

Em uma anaacutelise de texto autobiograacutefico Rago (2011 p 7) interliga essa produccedilatildeo

textual a uma escrita que problematiza a sujeiccedilatildeo e identidade daquele que escreve

A escrita de si eacute uma demonstraccedilatildeo da subjetividade que se torna aberta ao outro

em suas diferentes formas de apariccedilatildeo O gecircnero autobiograacutefico com prestiacutegios de

identificador da escrita de si em determinados aspectos apresenta certa

proximidade com o gecircnero epistolar como espaccedilo enunciativo que constitui a

presenccedila de um locutor em primeira pessoa Mesmo trazendo outras vozes para a

enunciaccedilatildeo a responsabilidade eacute a de um EU como remetente que se dirige a um

TU como destinataacuterio das epiacutestolas Em vaacuterias partes de sua correspondecircncia

Secircneca se coloca em primeira pessoa dirigindo-se ao seu destinataacuterio

Fico sempre muito alegre quando recebo cartas tuas Elas enchem-me de esperanccedila e mais do que promessas jaacute me trazem certezas a teu respeito Continua assim eacute o que te peccedilo com toda a insistecircncia (Ep 191) Natildeo penses que te escrevo para dizer como o inverno que aliaacutes foi curto e pouco rigoroso se portou bem conosco ou como a primavera estaacute desagradaacutevel ou como o frio chegou fora do tempo Isso satildeo frioleiras de quem fala por falar Eu soacute escrevo aquilo que sinto ter utilidade quer para ti quer para mim (SEcircNECA Ep 231)

Nessa escrita epistolar de si mesmo trata-se de fazer coincidir o olhar do outro e

aquele que se lanccedila sobre si mesmo ao comparar suas accedilotildees cotidianas com as

regras de uma teacutecnica de vida Fenocircmeno semelhante ao que ocorre na instauraccedilatildeo

da cena enunciativa da escrita das epiacutestolas de Secircneca presentifica-se tambeacutem na

constituiccedilatildeo da enunciaccedilatildeo do discurso na epiacutestola de Paulo agrave igreja de Corinto

atraveacutes de uma evocaccedilatildeo do uso da escrita em primeira pessoa ldquoAleacutem disto eu

Paulo vos rogo pela mansidatildeo e benignidade de Cristo eu que na verdade

quando presente entre voacutes sou humilde mas ausente ousado para convosco (2

Cor 101)

coisa que lhe possa vir a ser uacutetil passo ao papel alguns conselhos salutares como as receitas dos remeacutedios uacuteteis (Ep 82)

49

Pode-se tambeacutem ressaltar que a escrita epistolar apresenta dois distintos aspectos

a necessidade do adestramento pessoal na colocaccedilatildeo de si mesmo como remetente

e a necessidade do contato com outro como interlocutor e colaborador na

elaboraccedilatildeo da leitura da imagem daquele que escreve revelando o ecircthos de

verdade Em Secircneca e Paulo a correspondecircncia exerce uma funccedilatildeo instrutora do

ensino Nesses termos os hupomnecircmata contribuem para a constituiccedilatildeo de si

mesmo como objeto de accedilatildeo racional pela apropriaccedilatildeo de um jaacute dito fragmentaacuterio e

escolhido que pelo processo da subjetivaccedilatildeo eacute incorporado ao sujeito comunicante

Por isso o repertoacuterio demonstrado atraveacutes da escrita das epiacutestolas reflete a

presenccedila de elementos resultantes de leituras estudos e ainda uma cuidadosa

observaccedilatildeo do cotidiano da vida formando desse modo uma construccedilatildeo doutrinaacuteria

de acordo com a posiccedilatildeo discursiva de cada autor Para Secircneca leitura e escrita

deveriam andar de matildeos dadas por essa razatildeo ele dizia eacute preciso ler mas tambeacutem

escrever

[] devemos imitar as abelhas discriminar os elementos colhidos nas diversas leituras e depois aplicando-lhes toda a atenccedilatildeo todas as faculdades da nossa inteligecircncia transformar num produto de sabor individual todos os vaacuterios sucos coligidos de modo a que mesmo quando eacute visiacutevel a fonte donde cada elemento proveacutem ainda assim resulte um produto diferente daquele onde se inspirou (SEcircNECA Ep 845)

Secircneca usa a imagem da abelha na colheita dos elementos que ela suga para

resultar na produccedilatildeo do mel Essa metaacutefora eacute utilizada para reflexatildeo sobre a

importacircncia da leitura como colheita de elementos que contribuem para proveito e

enriquecimento intelectual do leitor Por um lado essa epiacutestola conteacutem partes

profundas para reflexatildeo do destinataacuterio que a recebe Por outro lado ela reflete por

parte do remetente o prazer e realizaccedilatildeo no campo da leitura Na escrita do gecircnero

epistolar Secircneca e Paulo natildeo se limitavam a dar notiacutecias ou conselhos aos seus

destinataacuterios mas continuavam a se exercitar por dois princiacutepios invocados eacute

necessaacuterio adestrar-se durante toda a vida e contar com a ajuda do outro na

elaboraccedilatildeo da alma sobre si mesma Tais consideraccedilotildees intensificam o princiacutepio de

que quem ensina se instrui pois a epiacutestola que eacute enviada para ajudar ao

destinataacuterio constitui-se tambeacutem em um treino para aquele que escreve Assim a

escrita que ajuda o destinataacuterio arma aquele que escreve e eventualmente terceiros

que a leiam

50

Amossy (2005 p 9) afirma que ldquotodo ato de tomar a palavra implica a construccedilatildeo

de uma imagem de si Para tanto natildeo eacute necessaacuterio que o locutor faccedila seu

autorretrato detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de sirdquo Eacute

nessa perspectiva que se torna possiacutevel situar a escrita de si e sua manifestaccedilatildeo no

discurso em especial no gecircnero epistolar que tem sua base no diaacutelogo A partir do

momento em que o remetente ocupa seu lugar na interaccedilatildeo da correspondecircncia

naturalmente a imagem de si eacute recebida pelo destinataacuterio

Essas colocaccedilotildees contribuem como auxiacutelio na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e

Paulo como remetentes que se colocam em primeira pessoa apresentando-se como

conselheiros que passam suas experiecircncias para os destinataacuterios reafirmando

tambeacutem suas proacuteprias convicccedilotildees e valores direcionados por fundamentos de

discursos constituintes

22 SUJEITO E AUTORIA

Na aula inaugural como professor no Collegravege de France (1971) Foucault tambeacutem

abordou o tema da autoria retomando alguns pontos da conferecircncia de 1969

intitulada O que eacute o autor Atualmente reivindica-se o retorno do autor fortalecido

principalmente com as obras autobiograacuteficas Poreacutem o conceito de autor pensado

na atualidade natildeo retoma a mesma identificaccedilatildeo do sujeito cartesiano Nos

paracircmetros desse novo olhar do sujeito se apresenta uma duplicidade que o proacuteprio

binocircmio sujeitoautor sugere Partindo das discussotildees sobre autoria Foucault

levantou questotildees fundamentais para revisatildeo das abordagens que enfocavam o

desaparecimento do autor Ele procurou mostrar que havia um equiacutevoco quanto agrave

ideia das funccedilotildees do autor Ao se considerar o poder e autoridade do autor sobre o

seu proacuteprio texto natildeo se levou em conta que as reais funccedilotildees do autor natildeo estavam

ligadas ao domiacutenio do texto Para delinear o caminho que seria percorrido como

resposta agrave sua proacutepria indagaccedilatildeo Foucault procurou distinguir e identificar na obra

determinadas funccedilotildees inerentes ao autor

Um nome de autor natildeo eacute simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento que pode ser substituiacutedo por um pronome etc) ele exerce certo papel em relaccedilatildeo ao discurso assegura uma funccedilatildeo classificatoacuteria tal nome permite reagrupar certo nuacutemero de textos delimitaacute-los deles excluir alguns opocirc-los a outros [] o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso [] A funccedilatildeo autor eacute portanto caracteriacutestica do modo de existecircncia de circulaccedilatildeo e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade (FOUCAULT 2001 p 273-274)

51

Essas contribuiccedilotildees de Foucault para as discussotildees de autoria satildeo de suma

importacircncia porque elas natildeo se fecham em uma classificaccedilatildeo restrita de funccedilotildees do

autor Tais posturas adotadas favorecem o estabelecimento de novas concepccedilotildees

que podem ser apreendidas com relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees tomadas pelo sujeito no

discurso em diferentes momentos histoacutericos Chartier em suas indagaccedilotildees sobre

questotildees da autoria faz os seguintes comentaacuterios em relaccedilatildeo agraves colocaccedilotildees de

Foucault

A funccedilatildeo autor implica portanto uma distacircncia radical entre o indiviacuteduo que escreveu o texto e o sujeito ao qual o discurso estaacute atribuiacutedo Eacute uma ficccedilatildeo semelhante agraves ficccedilotildees construiacutedas pelo direito que define e manipula sujeitos juriacutedicos que natildeo correspondem a indiviacuteduos concretos e singulares mas que funcionam como categorias do discurso legal Do mesmo modo o autor como funccedilatildeo do discurso estaacute fundamentalmente separado da realidade e experiecircncia fenomenoloacutegica do escritor como indiviacuteduo singular Por outro lado a funccedilatildeo autor que garante a unidade e a coerecircncia do discurso pode ser ocupada por diversos indiviacuteduos colaboradores ou competidores Ao contraacuterio a pluralidade das posiccedilotildees do autor no mesmo texto pode ser referida a um soacute nome proacuteprio (CHARTIER 1999 p 99)

Nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio eacute verificaacutevel um fenocircmeno de linguagem que

corrobora a afirmativa de Chartier de que a coerecircncia do discurso pode ser ocupada

por diversos indiviacuteduos Como determinado por Secircneca no final de algumas

epiacutestolas a Luciacutelio as maacuteximas aparecem ora como um brinde ora como tributo ora

como um precircmio e no final do Livro I ele assim se expressa

Diraacutes tu ldquoEsta frase eacute de Epicuro para quecirc recorrer agrave propriedade alheiardquo Tudo quanto eacute verdade pertence-me E vou continuar a citar-te Epicuro para que todos quantos juram pelas palavras e se interessam natildeo pela ideia mas pelo seu autor fiquem sabendo que as ideias corretas satildeo pertenccedilas de todos (SEcircNECA Ep 1211)

Este trecho da epiacutestola de Secircneca aponta tambeacutem para determinadas questotildees que

identificam discussotildees atuais sobre autor Secircneca tambeacutem questiona a dominaccedilatildeo

autoral defendendo que as ideias lanccediladas pelo autor satildeo de domiacutenio puacuteblico

Foucault procurou analisar esse aspecto da liberdade de acesso aos discursos

identificando que as funccedilotildees de autor na Antiguidade natildeo eram equivalentes agraves da

Modernidade Indiretamente ele demonstrou essa questatildeo atraveacutes dos proacuteprios

textos que ele selecionou para anaacutelise O que Foucault (2001) designou de funccedilotildees

do autor eacute significante no estabelecimento da formaccedilatildeo do cacircnon de textos

sagrados no iniacutecio da era cristatilde Young (2004 p 486) observa que a resposta de

Foucault agraves discussotildees sobre a morte do autor satildeo relevantes para os estudos da

52

literatura cristatilde A questatildeo da atribuiccedilatildeo de autoridade agraves figuras histoacutericas no iniacutecio

do cristianismo evidencia que o tipo coerente do ecircthos do autor era essencial Na

obra Institutio Oratoria (I pr 7) no prefaacutecio Quintiliano informa que apoacutes vinte anos

de dedicaccedilatildeo ao ensino resolveu atender as solicitaccedilotildees de seus amigos para

escrever um manual sobre a arte de falar a partir dos seus ensinamentos de

retoacuterica Nesse contexto Quintiliano menciona que jaacute circulavam dois livros como se

fosse de sua autoria mas na verdade era produccedilatildeo de seus alunos que tomaram as

aulas de retoacuterica como fonte recorrendo ao nome de Quintiliano com a

responsabilidade da autoria como forma de homenageaacute-lo Portanto nota-se que

naquele periacuteodo histoacuterico as questotildees de autoria eram mediadas por haacutebitos da

proacutepria cultura Esse fato contribui para o entendimento da proliferaccedilatildeo de obras

consideradas apoacutecrifas Secircneca sobre a citaccedilatildeo de outros pensadores assim se

expressa ldquofiquem sabendo que as ideias corretas satildeo pertenccedilas de todosrdquo (Ep

1211) Por um lado fica evidente que a funccedilatildeo de autor naquele momento da

histoacuteria natildeo era de exclusividade e posse de seu proacuteprio texto Por outro lado havia

um valor moral para o sentido de ldquoideias corretasrdquo

De acordo com as concepccedilotildees de funccedilotildees que o sujeito pode exercer como autor

Ruden (2013 p13) em suas pesquisas sobre a trajetoacuteria literaacuteria da Antiguidade

claacutessica ressalta que Paulo foi indubitavelmente considerado como um autor e

identificado como escritor greco-romano Sua posiccedilatildeo institucional seus escritos em

primeira pessoa colocados como resultado de seus pensamentos e experiecircncias o

tornam um personagem histoacuterico definido pela responsabilidade de seu proacuteprio

nome Se o sujeito eacute responsaacutevel pela execuccedilatildeo de funccedilotildees do autor logo seraacute

considerado autor quando estiver no exerciacutecio dessa funccedilatildeo

Na segunda epiacutestola aos Coriacutentios percebe-se uma colocaccedilatildeo de Paulo que o situa

exatamente nessa regiatildeo fronteiriccedila entre sujeito e autor como pensado atualmente

ldquoNatildeo quero dar impressatildeo de incutir-vos medo por meio de minhas cartas pois as

cartas dizem satildeo severas e energeacuteticas mas ele uma vez presente eacute homem

fraco e sua linguagem eacute despreziacutevelrdquo (2 Cor10 8-10) Na visatildeo desses comentaacuterios

de Paulo percebe-se uma dualidade que favorece uma contraposiccedilatildeo entre as

figuras de autor e de sujeito mas que na realidade satildeo elementos inseparaacuteveis pois

um natildeo existe sem o outro Nesse sentido Maingueneau (2012 p 136) argumenta

que as formas de subjetivaccedilatildeo natildeo satildeo justapostas pelo desempenho de um sujeito

53

biograacutefico e um sujeito enunciador mas o discurso eacute circunscrito em uma base que

se apoia em trecircs instacircncias a pessoa o escritor e o inscritor41 Vale ressaltar que

cada instacircncia eacute atravessada pelas outras natildeo havendo uma ordem e nem

valoraccedilatildeo de sua presenccedila no discurso pois as trecircs se sustentam reciprocamente

Natildeo haacute a predominacircncia da pessoa com sua identidade pessoal em seguida o

escritor que define as escolhas da trajetoacuteria de sua escritura e o enunciador

responsaacutevel pela direccedilatildeo da cena enunciativa Essas instacircncias formam um anel e

satildeo inseparaacuteveis

De acordo com a abordagem de Foucault as funccedilotildees do autor recaem sobre um

sujeito que responde por elas O autor deve ser concebido natildeo simplesmente como

o indiviacuteduo que pronunciou ou escreveu seu discurso mas como ldquoprinciacutepio de

agrupamento do discurso como unidade e origem de suas significaccedilotildees como foco

de sua coerecircnciardquo (FOUCAULT 1996 p 25) Segundo Maingueneau (2012 p 135)

ao mesmo tempo o sujeito do fazer literaacuterio incorpora as trecircs instacircncias

sujeitopessoa sujeitoescritor e sujeitoinscritor Desse modo essas trecircs instacircncias

inseparaacuteveis e responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do discurso tambeacutem respondem pelas

funccedilotildees de autor que delas dependem

Young (2004 p 486) relaciona as funccedilotildees do autor com os trecircs elementos que

compotildeem a prova do discurso na retoacuterica antiga ecircthos paacutethos e loacutegos Assim eacute

essencial o ecircthos de autor o reconhecimento dos leitores e a importacircncia da forccedila

persusiva do discurso Nota-se que a retoacuterica no contexto imperial romano tinha

como papel destacar a importacircncia do inventio na determinaccedilatildeo do objeto a ser

tratado no discurso alcanccedilando um estilo que permitisse abordar os toacutepicos a serem

desenvolvidos A formalidade da retoacuterica como teacutecnica de organizaccedilatildeo do discurso

surge na Greacutecia e encontra ambiente favoraacutevel para sua estabilizaccedilatildeo entre os

latinos tornando-se um meio dinamizador no sistema educacional romano

41

Segundo Maingueneau (2012 p 136) o termo pessoa refere-se ao indiviacuteduo dotado de um estado civil de uma vida privada O escritor designa o ator que define uma trajetoacuteria na instituiccedilatildeo que ele representa O inscritor eacute o responsaacutevel pelas formas de subjetivaccedilatildeo enunciativa da cena de fala contida no texto como tambeacutem a cena que o proacuteprio gecircnero adotado impotildee

54

3 A RETOacuteRICA NA ANTIGUIDADE

A retoacuterica natildeo eacute simplesmente recurso de ornamento mas condiccedilatildeo da estrutura do discurso e o direcionamento para o meacutetodo da meditaccedilatildeo Albrech (2008 p 124)

De acordo com Detienne (1988 p 60) a lenta passagem da fase da oralidade para

implementaccedilatildeo da escrita promoveu significantes mudanccedilas nas caracteriacutesticas

originais do pensamento na Greacutecia arcaica A poesia amplia sua atuaccedilatildeo ajustando

sua finalidade reveladora no ambiente do sagrado ao setor profano pois a atividade

poeacutetica42 passa a atender uma demanda de caraacuteter mais social e poliacutetica Nessa

fase histoacuterica identifica-se o surgimento progressivo da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a

verdade

Conforme apontamentos de Pernot (2005 p 7) Homero natildeo tratou das leis da

retoacuterica mas estabeleceu uma relaccedilatildeo entre as ideias de seu tempo com a

importacircncia da palavra pronunciada Este fato tem suas contribuiccedilotildees na retoacuterica do

mundo antigo Alexandre Jr (2005 p 16) pondera que ldquose a literatura eacute nosso

melhor veiacuteculo de acesso agrave cultura e civilizaccedilatildeo gregas o fato eacute que essa literatura

foi em larga medida moldada pela retoacutericardquo

Segundo Alexandre Jr (2005 p18) Peacutericles foi um personagem na poliacutetica grega

que atuou em Atenas em um momento que representa a passagem da Greacutecia de

dominacircncia da poeacutetica (Homero Hesiacuteodo Safo Esquilo e outros) para a Greacutecia de

reflexatildeo da prosa e eloquecircncia poliacutetica da filosofia e da ciecircncia Com o advento da

prosa no campo da filosofia e histoacuteria surge uma nova literatura fornecendo

condiccedilotildees para reconhecimento do discurso retoacuterico O desenvolvimento da

democracia em Atenas contribuiu para a oportunidade de o cidadatildeo expressar-se

por meio do discurso Pernot (2005 p 9) observa que na metade do seacuteculo V aC

Heroacutedoto incluiu em sua obra debates no campo da poliacutetica em relaccedilatildeo agraves accedilotildees

dos persas Nesse momento histoacuterico os sofistas43 tambeacutem desenvolvem uma

42

Detienne (1988 p 58) cita o poeta Simocircnides de Ceacuteos (556 aC 468 aC) poeta grego que passa a praticar a poesia como um ofiacutecio produzindo seus poemas por encomenda e cobrando honoraacuterios por seus serviccedilos Para Simocircnides a memoacuteria eacute o instrumento que contribui para o aprendizado de um ofiacutecio e no lugar da aleacutetheia ele reivindica a doxa Simocircnides era um poeta que tambeacutem se dedicava agrave criccedilatildeo de epigramas e eacute citado por Quintiliano (Inst Or XI 211-12) 43

Segundo Pernot (2005 p 12) certo nuacutemero de pensadores da segunda metade do seacuteculo V aC era tradicionalmente chamado de sofistas Eram originaacuterios de diferentes partes do mundo grego

55

justaposiccedilatildeo de discursos retoacutericos contraditoacuterios no tratamento de temas poliacuteticos

Segundo Pernot (2005 p 10) os sofistas natildeo formavam nenhuma escola ou

movimento e suas produccedilotildees se perderam restando poucos fragmentos Os sofistas

manifestavam um modo de pensar baseado no kairoacutes44 ou seja o tempo oportuno

para a verdade e a justiccedila como construccedilatildeo do discurso Nesse mesmo contexto

Protaacutegoras expotildee uma seacuterie de argumentos aplicados ao mesmo toacutepico construindo

vaacuterios contraacuterios por meio da palavra A partir da noccedilatildeo do valor e o poder da

palavra natildeo era considerada a possibilidade da preacute-existecircncia da justiccedila e da

verdade mas pronunciadas e efetivadas apoacutes o debate A partir de posicionamentos

dos sofistas determinados aspectos da linguagem e do discurso adquiriram novos

sentidos no campo da gramaacutetica como por exemplo distinccedilatildeo de tipos de nomes

sinocircnimos entre outros Os sofistas natildeo limitaram suas atuaccedilotildees nas consideraccedilotildees

teoacutericas mas ampliaram o foco da educaccedilatildeo para o campo da retoacuterica com o

objetivo de tornar o cidadatildeo capacitado em termos de uma fala inteligente

31 CONTRIBUICcedilOtildeES DE GREGOS E ROMANOS PARA A RETOacuteRICA

Vislumbram-se a partir do seacuteculo V aC posicionamentos que permitiram florescer

as primeiras colocaccedilotildees documentadas sobre retoacuterica Alexandre Jr (2005 p 18)

menciona que a partir desse periacuteodo decisivo a democracia se impocircs agrave tirania e

entatildeo Coacuterax e Tiacutesias45 publicaram o primeiro manual de desenvolvimento de uma

retoacuterica com a ideia baacutesica da triparticcedilatildeo proecircmio argumentaccedilatildeo e epiacutelogo

De acordo com as colocaccedilotildees de Shiappa e Hamm (2007 p 5) a maioria dos

pesquisadores sobre retoacuterica concorda que das obras que sobreviveram Goacutergias de

Platatildeo eacute a mais antiga que conteacutem menccedilatildeo ao uso do termo retoacuterica46 Nessa obra

identifica-se na enunciaccedilatildeo dialeacutetica de Platatildeo uma postura criacutetica em combate ao

pensamento sofista com relaccedilatildeo agrave retoacuterica e ao orador Kennedy (1994 p 37)

atuando como educadores com realizaccedilatildeo de palestras e publicaccedilotildees Da lista dos sofistas podem ser citados Protaacutegoras Goacutergias Hiacutepias Proacutedico Criacutetias e outros 44

Conforme informaccedilatildeo de Kennedy (1994 p 35) o conceito de kairoacutes eacute atribuiacutedo a Goacutergias significando o momento oportuno e tempo ideal para dizer ou fazer a coisa certa 45

Alexandre Jr (2005 P 15) menciona que Coacuterax e Tiacutesias eram originaacuterios de Siracusa sendo Coacuterax o mestre de Tiacutesias Eles produziram uma retoacuterica puramente sintagmaacutetica uma retoacuterica que se ocupa das partes do discurso e tem sobretudo a ver com os dispositios organizaccedilatildeo dos argumentos 46

Shiappa e Hamm (2007 p 5) informam que a palavra retoacuterica eacute formada pela junccedilatildeo de dois termos gregos rheacutetor- executor do discurso e ikecirc - arte ou habilidade

56

expotildee que na construccedilatildeo do diaacutelogo de Platatildeo em Goacutergias47 Soacutecrates como

personagem argumenta que a retoacuterica eacute uma teacutecnica ou arte com base no

conhecimento De cordo com este postulado duas categorias de arte podem ser

apontadas a que atinge a alma e a que afeta o corpo Legislaccedilatildeo e justiccedila

estabelecem a boa condiccedilatildeo da alma a ginaacutestica e a medicina garantem o bem

estar do corpo Segundo Kennedy (1994 p 38) a importacircncia da construccedilatildeo deste

diaacutelogo de Platatildeo estaacute em colocar questotildees da moralidade da retoacuterica na sociedade

e a necessidade do conhecimento como base na comunicaccedilatildeo

Posteriormente Platatildeo escreveu o diaacutelogo Fedro48 estabelecendo alguns criteacuterios

acerca de formulaccedilotildees sobre a retoacuterica Kennedy (1994 p 42) apresenta um

resumo desta obra salientando que alguns pontos devem ser considerados O

emissor do discurso deve ter bom conhecimento do objeto em discussatildeo uma boa

compreensatildeo da prova loacutegica e conhecimento da psicologia humana que torna a

argumentaccedilatildeo adequada agrave audiecircncia A partir desses postulados o objetivo da

persuasatildeo deve ser voltado para a accedilatildeo virtuosa justiccedila e a crenccedila na verdade

Ainda remontando aos gregos no acircmbito da retoacuterica Habinek (2005 p 80-83) faz

um paralelo entre Isoacutecrates e outros pensadores gregos em especial Platatildeo e

Aristoacuteteles49 Habinek acentua o papel que Isoacutecrates exerceu no campo da retoacuterica

procurando destacaacute-lo no contexto histoacuterico dos gregos da Antiguidade Segundo

Habinek (2005 p 81) para Isoacutecrates a qualidade do discurso estaacute interligada ao

47

Alexandre Jr (2005 p 21) comenta que Goacutergias imprimiu na retoacuterica uma nova perspectiva de natureza paradigmaacutetica valorizando o estilo e a composiccedilatildeo que tecircm a ver com o elocutio Sua contribuiccedilatildeo foi ter submetido a prosa ao coacutedigo retoacuterico propagando-a como discurso erudito e objeto esteacutetico Fez introduzir a prosa agrave retoacuterica e esta agrave estiliacutestica Kennedy (1994 p 35) relata que em Goacutergias de Platatildeo Soacutecrates visita a casa em que Goacutergias estava em Atenas O diaacutelogo eacute dividido em trecircs partes na primeira Soacutecrates interroga Goacutergias sobre retoacuterica na segunda Goacutergias eacute recolocado pelo seu seguidor Polo na terceira Soacutecrates debate com Caacutelicles sobre justiccedila As questotildees filosoacuteficas do debate se apresentam resumidas sendo mais desenvolvidas em outros diaacutelogos posteriores como A Repuacuteblica e Fedro 48

Na concepccedilatildeo de Alexandre Jr (2005 p 28) a retoacuterica no diaacutelogo de Goacutergias eacute mais sofiacutestica e no diaacutelogo Fedro eacute mais filosoacutefica Aristoacuteteles desenvolve os postulados da retoacuterica com algumas influecircncias de Platatildeo mas eacute mais pragmaacutetico em relaccedilatildeo agrave heranccedila da retoacuterica em Fedro Para Aristoacuteteles a funccedilatildeo da retoacuterica natildeo eacute persuadir como no Goacutergias e no Fedro mas sim teorizar sobre o modo de persuadir (Ret 11355b) 49

Segundo Habinek (2005 p 81) ldquounlike Aristotle who accepts that rhetoric is the art of finding the most effective means of persuasion and thus seeks to systematize its study and presentation Isocrates makes of rhetoric a collaborative process of deliberation one that claims to produce both sound political judgment and trustworthy political agentsrdquo (Diferente de Aristoacuteteles que aceita a retoacuterica como arte de encontrar os meios mais eficazes de persuasatildeo e assim procura sistematizar o seu estudo e apresentaccedilatildeo Isoacutecrates faz da retoacuterica um processo colaborativo de deliberaccedilatildeo que pretende produzir tanto juiacutezo poliacutetico soacutelido como agentes poliacuteticos confiaacuteveis)

57

estatuto moral do orador pois aqueles oradores que satildeo dignos de confianccedila satildeo os

que melhor cuidam de seu discurso em todos os aspectos A heranccedila desse

pensamento de Isoacutecrates serve como influecircncia para os romanos fenocircmeno esse

identificaacutevel nas formulaccedilotildees de Quintiliano no que diz respeito agrave retoacuterica na obra

Institutio Oratoria (VI 2 17-18) pois o ecircthos denota o caraacuteter moral do orador

No que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre retoacuterica e verdade Aristoacuteteles tomou outra

direccedilatildeo em suas reflexotildees Em sua pesquisa sobre a retoacuterica antiga Mosca (2004)

comenta que Aristoacuteteles procurou demonstrar uma ligaccedilatildeo da retoacuterica com a

persuasatildeo desvinculando-a da noccedilatildeo de verdade Aristoacuteteles contribuiu para a

ampliaccedilatildeo das discussotildees referentes agrave dialeacutetica entre verdade e aparecircncia da

verdade indicando que a representaccedilatildeo da verdade ldquoemerge do senso comum e se

corporifica nos discursos do homemrdquo (MOSCA 2004 p 21)

Aristoacuteteles formulou alguns pontos de sua teoria atraveacutes da obra Retoacuterica definindo

o tratamento dessa retoacuterica como o estudo dos meios de persuasatildeo Provavelmente

com base nas discussotildees e anotaccedilotildees das aulas na academia de Platatildeo construiu

pressupostos da retoacuterica que posteriormente serviram de fontes para posiccedilotildees

concordantes e discordantes tambeacutem No Livro I Aristoacuteteles estabelece uma

diferenciaccedilatildeo entre as funccedilotildees da dialeacutetica e da retoacuterica e o conceito desta assume

uma posiccedilatildeo abrangente ldquoEntendemos por retoacuterica a capacidade de descobrir o que

eacute adequado a cada caso com o fim de persuadirrdquo (Ret I 2 1356a )50 No decorrer do

Livro II Aristoacuteteles desenvolve todo um percurso com demonstraccedilotildees de estrateacutegias

para um possiacutevel ecircxito da argumentaccedilatildeo no discurso Como destaque para o

alcance de uma determinada finalidade no discurso ele aponta o uso das maacuteximas

como uma investidura para alcance do propoacutesito moral de um discurso ldquoTecircm caraacuteter

eacutetico os discursos que manifestam claramente a intenccedilatildeo do oradorrdquo A esta

premissa Aristoacuteteles acrescenta que ldquotodas as maacuteximas cumprem essa funccedilatildeo

porque exprimem de forma geral as intenccedilotildees daquele que as enunciardquo (Ret II

1395b) Nota-se que Secircneca era concordante com essa postura de Aristoacuteteles visto

que no final de suas epiacutestolas ele fazia questatildeo de registrar uma maacutexima que

pudesse concorrer para o fortalecimento de seus conselhos como nas epiacutestolas

iniciais de sua coleccedilatildeo ele escolhe a citaccedilatildeo de maacuteximas de Epicuro ldquoEacute um bem

50

As traduccedilotildees da obra Retoacuterica de Aristoacuteteles usadas nesta pesquisa satildeo de Manuel Alexandre

Junior (2005)

58

desejaacutevel conservar a alegria na pobrezardquo (Ep 26) Da mesma forma Paulo

tambeacutem usou desse recurso como por exemplo na segunda epiacutestola aos Coriacutentios

ldquoa letra mata mas o espiacuterito vivicardquo (2Cor 3 6)51 O uso de maacuteximas nas epiacutestolas

de Secircneca e de Paulo eacute abordado e analisado na terceira parte deste trabalho

No livro III Aristoacuteteles volta-se para o estilo da linguagem e a forma de organizaccedilatildeo

do discurso Algumas questotildees satildeo levantadas sobre o valor do uso das metaacuteforas

na composiccedilatildeo estiliacutestica do discurso Alexandre Jr (2005 p 48) observa que

ldquoAristoacuteteles faz correlaccedilatildeo entre o raciociacutenio metafoacuterico e o silogiacutestico pois as regras

fundamentais para o uso retoacuterico das metaacuteforas satildeo as mesmas para o uso

silogiacutesticordquo Em alguns aspectos as metaacuteforas implicam enigmas e um bom enigma

pode fornecer uma boa metaacutefora (Ret III 21405b) Pode-se pensar que em muitas

situaccedilotildees as analogias das metaacuteforas devem ser inferidas pois mesmo natildeo estando

claramente referidas uma observaccedilatildeo mais atenta pode contribuir para captar os

sentidos Quanto ao efeito do uso da metaacutefora Aristoacuteteles faz o seguinte

comentaacuterio

A maioria das expressotildees ldquoelegantesrdquo deriva da metaacutefora e radica no engano preacutevio do ouvinte Pois torna-se mais evidente que se aprende algo se os elementos resultam ao contraacuterio do que se esperava e o espiacuterito parece dizer ldquocomo eacute verdade e eu estava enganadordquo (Ret III 1412a)

A partir das contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles para os estudos da retoacuterica a forccedila da

metaacutefora no discurso eacute um ponto de destaque para esta pesquisa No percurso da

anaacutelise que se estabelece neste trabalho a funccedilatildeo retoacuterica da metaacutefora eacute pontuada

como uma forccedila argumentativa e persuasiva nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo Para

realizaccedilatildeo dos propoacutesitos definidos parte-se do princiacutepio de que o lugar comum

representa uma fonte de conhecimentos compartilhados em que se pode extrair

argumentos aplicaacuteveis agrave execuccedilatildeo de um determinado discurso Hansen (2012 p

161) observa que na retoacuterica antiga os termos toacutepos em grego e locus em latim

significam o encontro de algo jaacute estabelecido entre falantes possibilitando a

descoberta de novos aspectos e sentidos a serem introduzidos no discurso O uso

de determinadas metaacuteforas nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo funciona como marca

que pode ser estabelecida como um lugar comum que contribui para sustentar

51

No conto O Livro Borges (2011 p 13) faz referecircncia a essa passagem biacuteblica como uma intertextualidade com as ideias do pensamento pitagoacuterico ldquoConsideremos o primeiro caso Pitaacutegoras Sabemos que Pitaacutegoras optou por natildeo escrever Natildeo escreveu porque natildeo quis se prender a uma palavra escrita Sentiu sem duacutevida aquela histoacuteria de que a letra mata mas o espiacuterito vivifica que depois estaria na Biacutebliardquo

59

certos argumentos no desenvolvimento de toacutepicos que constituem o discurso Os

postulados teoacutericos desenvolvidos por Aristoacuteteles tiveram continuidade na histoacuteria da

retoacuterica antiga sendo redimensionados e adaptados nos estudos que se seguiram

Alexandre Jr (2005 p 54-54) considera que no periacuteodo Heleniacutestico a expansatildeo do

desenvolvimento das escolas filosoacuteficas manteve certas ligaccedilotildees com o aristotelismo

e alexandrismo na continuidade da histoacuteria da retoacuterica possibilitando o fundamento

das raiacutezes da retoacuterica filosoacutefica em Roma52 Alexandre Jr (2005 p 59) ressalta as

produccedilotildees de Teofrasto (sucessor de Aristoacuteteles) sobre as virtudes do estilo e os

estudos de Demeacutetrio de Faleros53 sobre o periacuteodo oratoacuterio o estilo e a composiccedilatildeo

Na sequecircncia dos destaques Heacutermagoras de Temnos54 eacute citado por sua

contribuiccedilatildeo para a vinculaccedilatildeo da tese agrave retoacuterica e o desenvolvimento da teoria dos

estados de causa aproveitando e diversificando o sistema retoacuterico aristoteacutelico

Deve-se tambeacutem a Hermaacutegoras a teoria da inventio e sua influecircncia na Rhetorica

ad Herennium e nos escritos de Ciacutecero e Quintiliano55

Segundo as observaccedilotildees de Kennedy (1994 p 121) natildeo haacute nenhum conhecimento

de alguma fonte hIstoacuterica que certifique a autoria do tratado Retoacuterica a Herecircnio que

foi estudado durante a Idade Meacutedia como um trabalho de Cicero conhecido como

Rhetorica Secunda Os latinistas renascentistas perceberam a natildeo veracidade da

autoria de Ciacutecero e defenderam o nome de Cornificio como possiblidade de

responsabilidade pela obra com base em referecircncias apresentadas por Quintiliano

52

Segundo Kennedy (1994 p 90) no periacuteodo Heleniacutestico os estudos retoacutericos eram frequentes entre os orientais da Aacutesia Menor O estoicismo tornou-se a mais popular escola filosoacutefica e especialmente entre os romanos a austeridade moral estoica assemelhou-se aos ideais dos valores da tradiccedilatildeo romana A teoria retoacuterica estoacuteica eacute provavelmente derivada de escritos de Dioacutegenes da Babilocircnia liacuteder da escola na primeira metade do seacuteculo II a C As contribuiccedilotildees estoacuteicas para a retoacuterica vieram em parte de seu estudo de gramaacutetica Kennedy (1994 p160) informa que Apolodoro de Peacutergamo foi escolhido por Juacutelio Ceacutesar para mestre de retoacuterica de Otaacutevio (45 aC) Teodoro de Gadara foi seguidor de Apolodoro e mestre do futuro imperador Tibeacuterio 53

Alexandre Jr (2005 p 59) expotildee que haacute uma discussatildeo sobre a autenticidade da autoria de Demeacutetrio de Faleros da obra De elocutione Em razatildeo desse questionamento agraves vezes a designaccedilatildeo aparece como Pseudo-Demeacutetrio 54

Segundo Kennedy (1994 p 167) Hermaacutegoras de Temnos o reacutetor que atuou em Roma no seacuteculo II aC estabeleceu a distinccedilatildeo entre tese e hipoacutetese nos estudos retoacutericos A tese trata de assuntos gerais e a hipoacutetese de casos particulares do tema geral Hermaacutegoras era um mestre grego e escreveu sobre os fundamentos retoacutericos em sua proacutepria liacutengua 55

O proacuteprio Quintiliano (Inst Or III 1 15-16) indica as contribuiccedilotildees de Isoacutecrates mas ressalta que a obra de Aristoacuteteles eacute mais completa Ele cita tambeacutem Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles mencionando sua cuidadosa produccedilatildeo em retoacuterica A estes satildeo acrescentados tambeacutem os peripateacuteticos e estoicos e o zelo devotado aos estudos da retoacuterica Nas referecircncias agraves contribuiccedilotildees de retoacutericos estaacute incluiacutedo tambeacutem Hermaacutegoras em sua proacutepria trajetoacuteria seguida pelos seus disciacutepulos Apoacutes a apresentaccedilatildeo de uma lista de citaccedilotildees de retoacutericos do periacuteodo Heleniacutestico Quintiliano (Inst Or III 1 19-20) acrescenta o romano Catatildeo o Censor como abertura da seacuterie dos nomes que contribuiacuteram para o estabelecimento da retoacuterica romana

60

Na obra Institutio Oratoria (III 1 17-18) Quintiliano menciona que Ciacutecero esclareceu

sobre a praacutetica da teoria da oratoacuteria e combinou o dom da eloquecircncia com o ensino

da arte Logo em seguida Quintiliano afirma que Cornifiacutecio escreveu sobre o mesmo

assunto Portanto o autor de Retoacuterica a Herecircnio56 pode ou natildeo ter sido nomeado

Cornificio mas mesmo que fosse natildeo se sabe mais nada sobre ele exceto que era

um romano de classe alta

Na obra Retoacuterica a Herecircnio identificam-se pontos em comum com a Retoacuterica de

Aristoacuteteles e que podem ser apontados como forma de observar certas

continuidades do aristotelismo que foram adaptadas aos valores da formaccedilatildeo do

cidadatildeo romano

Retoacuterica de Aristoacuteteles (I 3 1358b) Retoacuterica a Herecircnio (I 2)

Trecircs gecircneros de discurso retoacuterico Trecircs Gecircneros na accedilatildeo da retoacuterica

Deliberativo Deliberativo

Juriacutedico JudiciaacuterioForense

Epidiacutetico Demonstrativo

As definiccedilotildees de cada tiacutetulo apresentam certas semelhanccedilas em seus significados

pois o deliberativo consiste em aconselhar e persuadir e tambeacutem efetiva-se na

discussatildeo que inclui aconselhar e desaconselhar o juriacutedico atua na defesa ou

acusaccedilatildeo e o judiciaacuterio contempla a controveacutersia legal e acusaccedilatildeo puacuteblica ou

reclamaccedilatildeo em juiacutezo com defesa o epidiacutedico consiste em elogiar ou censurar

algueacutem e o demonstrativo destina-se ao elogio ou vitupeacuterio Tanto na Retoacuterica de

Aristoacuteteles como na Retoacuterica a Herecircnio o capiacutetulo sobre estilo eacute tratado por uacuteltimo

separadamente O gecircnero judiciaacuterio eacute o mais discutido na Retoacuterica a Herecircnio e

segundo Kennedy (1994 p 122) eacute tomado como base a stasis que na traduccedilatildeo

original latina significa constitutio questotildees baacutesicas para o discurso As concepccedilotildees

teoacutericas da retoacuterica de Hermaacutegoras tambeacutem servem de apoio agraves questotildees que

dizem respeito agraves controveacutersias na constituiccedilatildeo da retoacuterica latina

56

Kennedy (1994 p 122) afirma que natildeo se sabe quem era Herecircnio o destinataacuterio do tratado Haacute algumas suposiccedilotildees que poderia ser um tribuno identificado como Herecircnio mas natildeo haacute fontes que confirmam De acordo com esta hipoacutetese e pelas caracteriacutesticas do tratado sua produccedilatildeo poderia ter ocorrido entre 85 aC e 80 aC

61

Partindo do objetivo de identificaccedilatildeo de pontos em comum e diferenccedilas entre a obra

Retoacuterica de Aristoacuteteles e a retoacuterica latina vale registrar duas citaccedilotildees que auxiliam

na observaccedilatildeo da releitura que os romanos fizeram da retoacuterica grega Na Retoacuterica

de Aristoacuteteles encontra-se a seguinte afirmaccedilatildeo ldquoA funccedilatildeo da retoacuterica natildeo eacute

persuadir mas discernir os meios de persuasatildeo mais pertinentes a cada casordquo (Ret

I 1355b) Na Retoacuterica a Herecircnio (I 2) ldquoo ofiacutecio do orador eacute poder discorrer sobre as

coisas que os costumes e as leis instituiacuteram para o uso civil mantendo o

assentimento dos ouvintes ateacute onde for possiacutevelrdquo Para os romanos os meios de

alcance do ecircxito nos efeitos da argumentaccedilatildeo estatildeo diretamente ligados aos

interesses e necessidades do povo romano

A retoacuterica na histoacuteria dos romanos torna-se mais relevante a partir da atuaccedilatildeo de

Ciacutecero que nesse campo constroacutei uma ligaccedilatildeo entre gregos e romanos57 Na

exposiccedilatildeo de Dominik ( 2012 p 97 ) ldquouma imagem do sistema de educaccedilatildeo retoacuterica

no iniacutecio do primeiro seacuteculo aC pode ser construiacutedo a partir dos primitivos manuais

de retoacutericardquo Os manuais De Inventione de Ciacutecero58 e Rhetorica ad Herennium satildeo

considerados fundadores em liacutengua latina

Na obra De Oratore Ciacutecero desenvolve suas questotildees sobre retoacuterica em forma de

diaacutelogo comentando posiccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles entre outros e acrescentado

suas proacuteprias ideias Para Ciacutecero a retoacuterica divide suas funccedilotildees em delectare

docere e movere (agradar instruir e comover) Para agradar o orador precisaria usar

uma variedade de estilos para instruir uma inteligecircncia desenvolvida para comover

seria necessaacuterio conhecer as expectativas do ouvinte (De oratore 2 310-12) Os

postulados de Ciacutecero deixaram como heranccedila uma concepccedilatildeo de retoacuterica que serviu

de fortalecimento agrave oratoacuteria

57

Segundo Dominik (2012 p 97) ldquoa partir dos tratados de retoacuterica parece que houve duas principais vias de entrada para a retoacuterica grega em Roma atraveacutes de estudiosos familiarizados com a retoacuterica que como professores vieram da Greacutecia e da Magna Greacutecia para Roma e por meio de romanos que com o objetivo de estudar viajavam para a Greacutecia especialmente Atenas e Rhodes e em seguida retornavam a Romardquo 58

Dominik (2012 p 121) expotildee que ldquoo mais antigo tratado romano de retoacuterica existente eacute o De Inventione de Ciacutecero que pode ter aparecido em torno de 876 aC ou um pouco depois a data eacute baseada na proacutepria observaccedilatildeo de Ciacutecero de que o De Inventione foi composto em sua juventude (De Or 115) provavelmente em 88 aC na idade de 18 anos depois de ter estudado filosofia sob as ordens de Filatildeo de Larissa em Roma (Cic Fam 13 Tusc 23) O De Inventione sucedeu quase ao mesmo tempo possivelmente entre 86-82 ou mesmo mais tarde de acordo com a Rhetorica ad Herennium de autoria incerta que eacute o primeiro tratado completo de retoacuterica escrito em latim a sobreviver pois da obra De Inventio somente sobreviveram os dois primeiros livros Ambas as obras satildeo derivadas de atividade acadecircmica e de uma fonte grega comum que provavelmente se desenvolveu na ilha de Rhodes um importante centro de retoacuterica de modo que fornecem um vislumbre do estado de retoacuterica em Roma nas primeiras duas deacutecadas do primeiro seacuteculo aCrdquo

62

Habinek (2005 p27) em seu levantamento biograacutefico de oradores da Antiguidade

claacutessica situa e analisa a oratoacuteria de Ciacutecero atraveacutes do seu desempenho tanto no

campo da jurisprudecircncia quanto na poliacutetica Eacute possiacutevel perceber que se tornam

indissociaacuteveis as accedilotildees de Ciacutecero em sua militacircncia juriacutedica e poliacutetica na Roma

republicana de suas convicccedilotildees e posturas diante de suas concepccedilotildees de retoacuterica

Habinek (2005 25) identifica que no contexto das atividades produtivas de Ciacutecero o

discurso contra Catilina realccedila importantes marcas da figura do orador Por um lado

aponta para o orador que facilmente adapta seu estilo e argumento a tipos

diversificados de audiecircncia Por outro lado o desempenho de Ciacutecero permite-lhe

estabelecer uma possiacutevel uniatildeo entre povo e aristocracia Em sua oratoacuteria era

fundamental convencer o ouvinte orientando-o para a concretizaccedilatildeo da idealizaccedilatildeo

do cidadatildeo romano Nessa direccedilatildeo a retoacuterica de Ciacutecero se aproxima mais de

Aristoacuteteles no que se refere ao binocircmio retoacuterica e verdade59

Segundo consideraccedilotildees de Kennedy (1994 p 166) no seacuteculo I aC a declamaccedilatildeo

era uma praacutetica nas escolas de retoacuterica em Roma Os alunos coletavam passagens

que eram valorizadas na tradiccedilatildeo literaacuteria e exerciam com habilidade o uso da

memoacuteria para recitaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo nos seus discursos A maior fonte de

informaccedilotildees sobre declamaccedilatildeo eacute encontrada nas obras Crontoveacutersias e Suasoacuterias

de Secircneca o Velho que defende a novidade do termo na execuccedilatildeo dos exerciacutecios

nas escolas de retoacuterica Kennedy (1994 p 171) aponta que desde o impeacuterio

augustano as escolas retoacutericas dominaram o campo da educaccedilatildeo formal e a praacutetica

da declamaccedilatildeo representou uma continuidade na atividade popular para adultos A

influecircncia dos ensinos retoacutericos se fez presente na produccedilatildeo de gecircneros literaacuterios

tradicionais como eacutepica saacutetira trageacutedia epigrama historiografia e filosofia Rezende

(2009 p 138) pontua que a funccedilatildeo da declamaccedilatildeo na educaccedilatildeo romana

representava a passagem para o niacutevel mais elevado da formaccedilatildeo do aluno que

nessa fase seria capaz de criar um discurso que se sustentasse de acordo com a

causa em questatildeo A praacutetica da declamaccedilatildeo era uma metodologia conveniente para

o desenvolvimento da escrita Esta se efetivava por meio de exerciacutecios com base em

59

Habinek (2005 p73) The very form of the Ciceronian dialogue with its lengthy speeches and genial conversation rather than the intense dialectical inquiry that characterizes Platorsquos dialogues enacts its commitment to the construction of truth as a social enterprise (A proacutepria forma do diaacutelogo Ciceroniano com seus estensos discursos e conversaccedilatildeo ao inveacutes do inqueacuterito da dialeacutetica intensa que caracteriza os diaacutelogos de Platatildeo representa seu compromisso com a construccedilatildeo da verdade como um empreendimento social)

63

uma questatildeo escolhida e sua exposiccedilatildeo diante de ouvintes e estes se colocavam

como criacuteticos no julgamento da produccedilatildeo do discurso apresentado O meacutetodo

praticado era desenvolvido por meio de controveacutersias discussatildeo contra e a favor de

determinada questatildeo como preparaccedilatildeo para as causa judiciais as suasoacuterias se

fundamentavam em argumentaccedilotildees com base em situaccedilotildees fictiacutecias Observa-se

que controveacutersias e suasoacuterias natildeo representavam tipos de gecircnero mas uma

metodologia de elaboraccedilatildeo do discurso Nesse contexto como observa Dominik a

metodologia com recursos da declamaccedilatildeo era ajustaacutevel agraves expectativas dos ideais

da educaccedilatildeo romana

A declamaccedilatildeo era valorizada nas escolas porque forneceu o treinamento retoacuterico necessaacuterio ao avanccedilo poliacutetico e social em Roma Os exerciacutecios declamatoacuterios que promoviam a agilidade mental e exigiam a capacidade de envolver-se em argumento engenhoso natildeo soacute tiveram a vantagem de proporcionar a praacutetica em temas mais amplos (embora ainda limitados) e em situaccedilotildees mais extremas do que as que eram encontradas em casos reais mas tambeacutem permitiram aos praticantes o emprego de expressotildees mais elaboradas do que as normalmente utilizadas numa sala de tribunal ou numa reuniatildeo puacuteblica (DOMINIK 2012 p106)

A partir das obras Controveacutersias e Suasoacuterias Fairweather (2007 p 321) considera

que na visatildeo de Secircneca o Velho a educaccedilatildeo retoacuterica poderia ser beneacutefica ao futuro

filosoacutefo No tratamento dos temas questotildees sobre eacutetica e moral eram levantadas

nas controveacutersias na declamaccedilatildeo de suasoacuterias eram discutidos determinados

questionamentos sobre intervenccedilatildeo dos deuses na vida humana como tambeacutem se

haveria possibilidade de previsatildeo do futuro Fairweather (2007 p 322) defende que

em sua obra Secircneca o Velho limita a ampliaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas por natildeo

haver condiccedilotildees de conclusotildees pontuais para todas as questotildees

Secircneca o Jovem se volta para um interesse mais especiacutefico de engajamento na

filosofia estoica60 e na literatura latina procurando extrair da retoacuterica grega

heleniacutestica e romana o que eacute identificaacutevel e satisfatoacuterio aos seus valores na

produccedilatildeo de suas obras O desempenho de Secircneca no campo da filosofia tinha

como base o pensamento estoico inaugurando como representante a terceira fase

da filosofia estoica Novak (1999 p168) expotildee que o pensamento moralista da

filosofia estoica era compatiacutevel com as expectativas da moralidade romana As

especulaccedilotildees fiacutesicas e loacutegicas dos estoicos da primeira fase cedem lugar ao caraacuteter

praacutetico dos romanos valorizando o aconselhamento moral muito recorrente entre os

60

Segundo Novak (1999 p 268) a terceira fase do estoicismo iniciada por Secircneca restringe a loacutegica e a fiacutesica em benefiacutecio da moral O seu cenaacuterio eacute principalmente Roma

64

estoicos romanos integrantes da uacuteltima fase Segundo Sharples61 (1996 p 4)

Secircneca eacute reconhecido como fundador da terceira fase do estoicismo mas sabia

aproveitar e aplicar em sua filosofia estoica o que era conveniente do pensamento

epicurista Na segunda parte desta tese estatildeo contidas algumas informaccedilotildees sobre

a origem do estoicismo e a sua penetraccedilatildeo no impeacuterio romano

Na obra Epiacutestolas Morais Secircneca expressa seu pensamento abordando partes da

filosofia estoica que ele procura ministrar ao seu destinataacuterio Luciacutelio Na epiacutestola

quarenta haacute uma seacuterie de toacutepicos especiacuteficos que tratam da oratoacuteria no discurso do

filosoacutefo pois ldquoum estilo oratoacuterio que visa a transformaccedilatildeo da mentalidade deve

descer ateacute ao mais fundo de noacutes mesmosrdquo (Ep 40 4) Continuando em suas

intruccedilotildees a Luciacutelio sobre a oratoacuteria Secircneca comenta

De resto entendo que certos estilos podem ser mais ou menos convenientes conforme os povos Entre os gregos por exemplo jaacute este estilo (em passo de corrida) seria possiacutevel enquanto noacutes temos o haacutebito de fazer pausas mesmo ao escrever Ateacute mesmo o nosso Ciacutecero o homem que elevou ao cume a eloquecircncia romana andava a passo O estilo romano eacute mais circunspecto sabe avaliar o seu valor e submete-se agrave avaliaccedilatildeo dos outros (SEcircNECA Ep 4011)

Essa questatildeo da oratoacuteria no discurso filosoacutefico que Secircneca aborda eacute retratada com

uso da seguinte metaacutefora ldquoO estilo filosoacutefico deve ter forccedila mas sem perder a

moderaccedilatildeo deve ser um rio a fluir e natildeo uma torrenterdquo (Ep 40 8) No final da

epiacutestola Secircneca apresenta um comentaacuterio encerrando com a criaccedilatildeo de uma

maacutexima ldquopara terminar a suacutemula dos meus conselhos eacute esta secirc lento a falarrdquo (Ep

4014) Segundo Kennedy (1994 p175) a marca do meacutetodo da declamaccedilatildeo nas

epiacutestolas de Secircneca eacute a criaccedilatildeo de suas proacuteprias sentenccedilas e a citaccedilatildeo das de

outros autores

Quintiliano (Inst Or II 11-10) aponta o valor e utilidade da declamaccedilatildeo como

exerciacutecio na produccedilatildeo do discurso tanto na escrita quanto na oralidade mas

ressalta a adequaccedilatildeo agrave maturidade e niacutevel escolar do aluno Na posiccedilatildeo de

continuador de Ciacutecero no campo da retoacuterica Quintiliano sistematizou seus estudos

sobre a retoacuterica latina formalizando-os em sua obra Institutio Oratoria Quintiliano

(Inst Or II 14) procura definir retoacuterica aludindo ao fato de que os tradutores do seu

tempo procuraram traduzir retoacuterica como oratoacuteria Depois de levantar algumas

61

Sharples (1996 p 4) afirma que ldquoSeneca though writing as a Stoic is ready to make use of Epicurean doctrines too where they suit his purposerdquo (Secircneca atraveacutes dos escritos como estoico faz tambeacutem uso das doutrinas epicuristas no que diz respeito aos seus propoacutesitos filosoacuteficos)

65

questotildees sobre o termo em pauta Quintiliano registra sua proacutepria defesa em optar

pelo termo retoacuterica como originaacuterio do grego sem tentativa de traduccedilatildeo para o

latim E ainda ressalta que o proacuteprio Ciacutecero fez uso do termo ldquoE por fim jaacute que M

Tuacutelio nos primeiros livros que escreveu sobre o tema usou o termo grego natildeo haacute

que de todo nos envergonharmos por parecer agir temerariamente ao creditarmos

ao maior dos oradores o nome da sua arterdquo (QUINTILIANO Inst Or II 14 4) Na

sequecircncia da exposiccedilatildeo de suas ideias Quintiliano (Inst Orat II XIV 5) reafirma

ldquorethorice pois que utilizaremos esta designaccedilatildeo sem medo da polecircmicardquo No livro II

da obra Institutio Oratoria Quintiliano realiza uma retrospectiva remontando aos

gregos para definir retoacuterica na perspectiva de uma discussatildeo sobre os significados

e efeitos da persuasatildeo no discurso Em suas referecircncias no livro II Quintiliano

pondera que Platatildeo natildeo concebia a retoacuterica como um mal poreacutem defendia que

somente um homem bom eacute capaz de alcanccedilar a retoacuterica verdadeira Ainda na

defesa de Platatildeo Quintiliano (Inst Or II 14 28-29) assim se posiciona ldquoIsto ainda

eacute mais manifesto no diaacutelogo Fedro pois que natildeo se pode exercer cabalmente a

retoacuterica sem o conhecimento da justiccedila opiniatildeo esta que tambeacutem eu partilhordquo62

Ao fazer um passeio histoacuterico sobre produccedilotildees de escritores gregos e latinos

Quintiliano elabora o seguinte comentaacuterio ldquoOs oradores nossos podem

especialmente fazer a eloquecircncia latina em paracircmetro de igualdade com a gregardquo

Ainda ele exalta a literatura e a retoacuterica latinas enfatizando que sem nenhuma

hesitaccedilatildeo ele oporia Ciacutecero a qualquer um dos oradores gregos e complementa sua

defesa objetando que ldquoem Demoacutestenes nada se pode suprimir e em Ciacutecero nada se

pode acrescentarrdquo (QUINTILIANO Inst Or X 1105)63

Quintiliano no livro X de Institutio Oratoria fornece algumas contribuiccedilotildees de suas

ideias sobre discurso oral e escrito apontando determinadas vantagens do escrito

alegando que a leitura eacute livre nem mesmo transcorre como o iacutempeto de um discurso

proferido sendo permitido ir e voltar vaacuterias vezes ao texto seja porque ainda restam

duacutevidas ou se queira fixar na memoacuteria Na sequecircncia de suas ideias Quintiliano usa

metaacuteforas para clarear a expressatildeo de seu pensamento

O texto escrito permite montar e remontar tal como os alimentos que mastigados e liquefeitos para que sejam mais facilmente digeridos engolimos assim tambeacutem a leitura natildeo crua mas moiacuteda repetidas vezes e

62

Traduccedilatildeo de Antonio Fidalgo 63

As traduccedilotildees do livro X de Intitutio Oratoria satildeo de Antonio Martinez Rezende

66

como que dissolvida pode ser entregue agrave memoacuteria e agrave imitaccedilatildeo (QUINTILIANO InstOr X 119)

64

A metaacutefora usada por Quintiliano toma a imagem do alimento para representar a

leitura O processo da mastigaccedilatildeo e absorccedilatildeo do alimento pelo corpo eacute comparado

aos efeitos da leitura na mente do leitor que a absorve extraindo dela a essecircncia

que pode ser incorporada ao modo de agir

Observa-se que Quintiliano eacute ponto de referecircncia para se pensar a retoacuterica naquele

momento da segunda metade do primeiro seacuteculo dC Habinek (2005 p 61)65

ressalta que no final da obra Institutio Oratoria Quintiliano argumenta que a

finalidade da retoacuterica eacute a formaccedilatildeo de um homem que combine a sabedoria do

grego com a praticidade do romano Complementando esta posiccedilatildeo Shiappa e

Hamm (2007 p 6) apontam que Quintiliano direciona a retoacuterica romana em dois

caminhos retoacuterica destinada agrave oratoacuteria e retoacuterica educacional Tal fato fortalece a

afirmativa de que na Antiguidade podem ser citadas algumas formas diferentes de

aplicaccedilatildeo do termo retoacuterica retoacuterica como forma de organizaccedilatildeo do discurso como

teacutecnica persuasiva como funccedilatildeo taacutetica da linguagem como um programa

educacional e como uma teoria da comunicaccedilatildeo humana Portanto observar as

diferentes concepccedilotildees de retoacuterica entre gregos e romanos contribui para situar os

discursos de Secircneca e de Paulo no campo da retoacuterica no contexto social e poliacutetico

do impeacuterio romano no Seacuteculo I dC

No amplo campo da retoacuterica identifica-se que nos postulados aristoteacutelicos a noccedilatildeo

de toacutepos para os gregos e lugar comum para os latinos torna-se parte integrante

dos estudos retoacutericos e desempenho na oratoacuteria Em relaccedilatildeo aos toacutepoi como

recursos retoacutericos na organizaccedilatildeo do discurso Aristoacuteteles implementou um ponto de

partida que os romanos seguiram dando novas conotaccedilotildees e aplicaccedilotildees

32 O TOacutePOS NA RETOacuteRICA E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA

Aristoacuteteles utiliza a palavra toacutepos (τoacuteπoς) com referecircncia ao lugar fazendo menccedilatildeo

aos recursos da linguagem que servem como ponto de partida ou fonte para uma

argumentaccedilatildeo originando a ideia de toacutepicos como eacute defendida por ele Nessa

64

Traduccedilatildeo de Antonio Martinez Rezende 65

Habinek (2005 p 61) tambeacutem comenta que ldquothe final book of Quintilianrsquos Institutio Oratoria argues that the end of rhetoric is the formation of a Romanus sapiens someone who combines the wisdom of a Greek sage with the practicality of a Roman man of actionrdquo (No final da obra Institutio Oratoria Quintiliano argumenta que o objetivo da retoacuterica eacute a formaccedilatildeo de um romano saacutebio algueacutem que combina a sabedoria de um grego com a accedilatildeo praacutetica de um homem romano)

67

abordagem Aristoacuteteles faz o seguinte comentaacuterio ldquoQuem se predispotildee a assumir o

papel de questionador deve encontrar o lugar a partir do qual vai conduzir a

argumentaccedilatildeordquo (Toacutep VII 1 155b) A partir desses pressupostos Aristoacuteteles recorre

ao termo toacutepos como um dispositivo que permite acionar de um determinado lugar

os recursos da linguagem acessiacuteveis a quem produz o discurso

Por meio do uso da expressatildeo konoacutei topoacutei (Кοινοigrave τοπoacuteι) lugares comuns

Aristoacuteteles estaacute referindo-se aos toacutepicos que de uma mesma forma podem ser

usados em qualquer um dos trecircs gecircneros de discurso oratoacuterio deliberativo judicial e

epidiacutedico Assim ele delimita e distingue os toacutepicos que satildeo aplicaacuteveis agrave retoacuterica

orientados pelo raciociacutenio dedutivo (entimemas) e indutivo (exemplos) e os

aplicaacuteveis agrave dialeacutetica voltados para a loacutegica

Quanto agrave expressatildeo lugar comum como usada por Aristoacuteteles nota-se uma

diversificaccedilatildeo de usos conforme constataccedilatildeo de Segurado e Campos

Emprega-se actualmente a expressatildeo laquolugar-comumraquo para designar uma frase um dito uma ideia que de tatildeo usada se banalizou em extremo a ponto de o seu emprego carecer de qualquer impacto como recurso retoacuterico ou literaacuterio Ora laquolugar-comumraquo natildeo eacute mais do que a traduccedilatildeo para portuguecircs ou qualquer outra liacutengua moderna do latim locus communis que por sua vez reproduz a expressatildeo grega κοινograveς τόπος Deve notar-se no entanto que as expressotildees das liacutenguas modernas possuem uma conotaccedilatildeo negativa de laquobanalidaderaquo ausente da expressatildeo original grega Na realidade enquanto em laquolugar-comumraquo o adjectivo laquocomumraquo equivale a laquogastoraquo laquobanalraquo laquomil vezes repetidoraquo em grego κοινograveς apenas denotava que um dado laquoesquema argumentativoraquo era comum isto eacute podia ser empregado em muitas situaccedilotildees discursivas diferentes (SEGURADO E CAMPOS 2007 p 109)

Nos estudos da retoacuterica Aristoacuteteles daacute ecircnfase agrave importacircncia dos toacutepicos (Ret II 22-

23-24) Algumas concepccedilotildees identificadas por ele podem ser observadas tambeacutem

em alguns aspectos da produccedilatildeo da retoacuterica entre os romanos Na obra Retoacuterica a

Herecircnio o termo toacutepico eacute traduzido para o latim locus communis (lugar comum)

significando o que era de praxe para ser dito e discutido pelo orador mediante

determinada situaccedilatildeo como pode ser visto no Livro II 2466 Os lugares comuns

nessas causas satildeo o do acusador contra aquele que embora jaacute tenha confessado o

delito ainda reteacutem os juiacutezes com seu discurso o da defesa sobre a humanidade e a

misericoacuterdia em tudo se deve considerar a intenccedilatildeo67

66

Loci communis in his causis accusatoris contra eum qui cum pecasse confiteatur tamem oratione iudices demoretur defensoris de humanitate misericordia uoluntatem in omnibus rebus spectari conuenire quae consulto facta non sint ea fraudei esse non oportere (Ret Her II 24) 67

Traduccedilatildeo de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra

68

A reestruturaccedilatildeo que Ciacutecero deu agrave noccedilatildeo de toacutepica desenvolvida por Aristoacuteteles

ajuda a ampliar a sua aplicabilidade no discurso Na obra sobre os toacutepicos68 Ciacutecero

consegue estabelecer uma junccedilatildeo entre a ideia de toacutepos como forma de

argumentaccedilatildeo e a toacutepica como a teoria dessa forma A esse respeito Aristoacuteteles

trabalhou em separado o papel dos entimemas69 na loacutegica da argumentaccedilatildeo

tratando no final as figuras de linguagem como estilo na forccedila persuasiva Ciacutecero

coloca no mesmo bloco a importacircncia das figuras de linguagem no discurso e o

efeito na argumentaccedilatildeo que elas podem oferecer Ele observa que o uso da

metaacutefora eacute muito produtivo na apreensatildeo das semelhanccedilas a siacutemile contribui para

efeito de comparaccedilatildeo e a hipeacuterbole torna-se argumento tanto nas questotildees grandes

quanto nas pequenas Concepccedilotildees idecircnticas a essas se confirmam tambeacutem na obra

Retoacuterica a Herecircnio (IV 58-69)

Na liacutengua portuguesa a recorrecircncia ao termo lugar comum tornou-se corriqueira

em relaccedilatildeo ao significado de origem e eacute ateacute mesmo considerada como um clichecirc no

linguajar do cotidiano Segurado e Campos (2007 p111) tanto na introduccedilatildeo como

em nota aponta as dificuldades relacionadas a uma definiccedilatildeo de lugar comum visto

que nem o proacuteprio Aristoacuteteles fornece uma conceituaccedilatildeo clara Entre algumas

colocaccedilotildees Segurado e Campos apresenta a de Ciacutecero que semelhante agraves de

outros tantos tenta uma definiccedilatildeo com recursos metafoacutericos70

Ciacutecero faz referecircncia mais ligada aos toacutepicos definidos por Aristoacuteteles como

funcionais e uacuteteis na argumentaccedilatildeo Secircneca aponta para outra forma de uso do

lugar comum fazendo alusatildeo ao tratamento de um determinado tema acessiacutevel aos

poetas Na epiacutestola setenta e nove ele tece alguns comentaacuterios com Luciacutelio sobre o

monte Etna desafiando-o a registrar na criaccedilatildeo de seu poema uma descriccedilatildeo do

Etna visto ser este um toacutepos que atraiacutea muitos poetas

68

Toacutepicos ndash Traduccedilatildeo para espanhol e notas de Bulmaro Reyes Coria 69

O entimema eacute um silogismo formulado em funccedilatildeo de seu efeito retoacuterico contendo uma premissa impliacutecita em seu uso na argumentaccedilatildeo Na Retoacuterica Aristoacuteteles (I 2 1357a) coloca o entimema como silogismo formado de poucas premissas e em geral menos do que as do silogismo primaacuterio Porque se alguma destas premissas for bem conhecida nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la pois o proacuteprio ouvinte a supre 70

Segurado e Campos cita em latim o dito de Ciacutecero sobre lugar comum ut igitur earum rerum quae absconditae sunt demonstrato et notato loco facilis inuentio est sic cum peruestigare argumentum aliquod uolumus locos nosse debemus sic enim appellatae ab Aristotele sunt eae quasi sedes e quibus argumenta promuntur (Ciacutecero Top 7) Na nota 188 da p111 da introduccedilatildeo de Toacutepicos de Aristoacuteteles a citaccedilatildeo de Ciacutecero estaacute traduzida para o portuguecircs ldquoassim como se torna faacutecil encontrar coisas escondidas quando se indica e assinala o lugar delas assim tambeacutem quando queremos analisar um argumento qualquer devemos conhecer os lsquolugaresrsquo deles pois eacute este o nome que Aristoacuteteles daacute agravequela espeacutecie de lsquoesconderijosrsquordquo

69

Tema que nem o fato de Vergiacutelio o ter desenvolvido impediu Oviacutedio de tambeacutem o tratar tal como ambos estes poemas natildeo dissuadiram Corneacutelio Severo de igualmente o versar De resto foi este um tema que se prestou a todos eles em abundacircncia parece-me a mim que os poetas mais antigos longe de esgotarem o assunto apenas indicaram os toacutepicos a desenvolver (SEcircNECA Ep 795)

Nesta abordagem Secircneca apresenta a exploraccedilatildeo de um tema que se posiciona em

um lugar comum em que a mateacuteria ganha amplitude pela agregaccedilatildeo de novas

exposiccedilotildees Hansen (2013 p 28) eacute concordante com essa colocaccedilatildeo de Secircneca ao

afirmar que ldquoo mesmo lugar nunca eacute repeticcedilatildeo simples do idecircntico pois a cada vez eacute

a diferenccedila efetuada pela sua variaccedilatildeo elocutivardquo

Referecircncias ao uso do lugar comum satildeo encontradas tambeacutem em Quintiliano (Inst

Or II 1 9) Eacute possiacutevel verificar que ele tambeacutem remonta suas ideias aos contextos

mais antigos mencionando o uso de lugar comum como fonte para retirada de

temas a serem discutidos nos exerciacutecios de retoacuterica mas natildeo entra no meacuterito da

questatildeo e nem sinaliza nenhum aprofundamento que contribua para a formulaccedilatildeo

dessa ideia de prazer inovador ao lugar comum

Eacute indiacutecio certo de vigor criativo expandir o que pela natureza veio condensado ampliar o resumido dar variedade agrave mesmice e prazer inovador ao lugar comum enfim dizer com clareza e elegacircncia muitas coisas a respeito de assuntos de pouca relevacircncia (QUINTILIANO Inst Or

X 5 11)

O que se nota nas explicaccedilotildees de Quintiliano eacute a ecircnfase em valorizar o ato criativo

no tratamento de um mesmo tema originaacuterio de um lugar comum dando a ele certos

destaques ainda natildeo abordados fazendo valer as potencialidades que o tema

oferece

Mediante essas concepccedilotildees sobre toacutepoi e a dificuldade de se estabelecer uma uacutenica

funccedilatildeo para o uso deles Thom (2003 p 556) fornece algumas sugestotildees

resultantes de suas proacuteprias experiecircncias na identificaccedilatildeo de toacutepoi no Novo

Testamento Este autor aponta que a anaacutelise de toacutepoi usados na Antiguidade

enriquecem o entendimento da moral e religiatildeo no contexto do Novo Testamento

Thom (2003 557) faz referecircncias agraves limitaccedilotildees do uso do termo toacutepos e destaca a

contribuiccedilatildeo de Curtius em situar os toacutepoi como funccedilatildeo intelectual de abordagens de

temas desenvolvidos e modificados de acordo com a preferecircncia do autor Curtius

(1999 p 131) faz alguns levantamentos sobre o encontro de temas identificados

como topoacutei na Antiguidade e cita a seguinte referecircncia ldquoa posse do saber obriga a

70

comunicaacute-lo a outremrdquo Curtius identifica este toacutepos em Horaacutecio (Odes II 21) e

tambeacutem em Secircneca quando diz ldquoeu natildeo desejo outra coisa senatildeo transmitir-te toda

a minha experiecircnciardquo (Ep 64) Curtius aponta que este toacutepos aparece de igual modo

no texto biacuteblico ldquoSabedoria oculta e tesouro escondido para que servem ambosrdquo

(Ecl 2032)

Voltado para um interesse em ampliar as discussotildees sobre o uso de toacutepos Thom

(2003 p 566) observa que este pode ser empregado no uso do argumento retoacuterico

ou na aplicaccedilatildeo de valores eacuteticos e morais Portanto um toacutepos expressa um

consenso cultural Mesmo sendo organizado como estrateacutegia retoacuterica o espaccedilo

cognitivo ordena seu uso e eacute culturalmente determinado Assim Thom (2003 p

567) distingue trecircs tipos de toacutepoi O primeiro tipo pode ser chamado toacutepos retoacuterico

que funciona como estrateacutegia para delinear a linha de argumentaccedilatildeo no esquema do

pensamento e este tipo eacute apresentado na obra Retoacuterica de Aristoacuteteles O segundo

tipo pode ser denominado de toacutepos literaacuterio consistindo em temas literaacuterios ou

assuntos que satildeo usados e retomados a partir de novas perspectivas Este toacutepos

era recorrente entre os poetas latinos conforme mencionado por Secircneca na epiacutestola

795 em seu pedido a Luciacutelio para incluir em seu poema uma descriccedilatildeo do Etna

tema comum que Secircneca identifica na obra de poetas como Vergiacutelio71 e Oviacutedio O

terceiro tipo se enquadra como toacutepos filosoacutefico sendo identificado nos escritos da

cultura heleniacutestica em abordagens sobre a moral ou temas filosoacuteficos que tambeacutem

satildeo tratados e retomados em diferentes textos

Assim os toacutepoi que apresentam temas desmembram-se em coleccedilotildees de teses pois

cada tema pode subdividir-se em partes que colaboram para a formaccedilatildeo de sentidos

do tema geral Este fato eacute observado na construccedilatildeo do tema ldquoo tempordquo nas

epiacutestolas de Secircneca e ldquoo amorrdquo nas epiacutestolas de Paulo confome mostrado na

constituiccedilatildeo das cenografias na segunda parte deste trabalho Pode-se afirmar que

a identificaccedilatildeo dos toacutepoi tem seu valor na interpretaccedilatildeo dos textos e a conexatildeo com

outros textos A contribuiccedilatildeo de Thom sobre os tipos de toacutepoi eacute aproveitada na

terceira parte desta tese na anaacutelise dos corpora que compotildeem a seleccedilatildeo das

epiacutestolas de Secircneca e Paulo O uso do toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo eacute

identificado nas epiacutestolas dos dois autores e analisado segundo o posicionamento

71

A grafia Vergiacutelio ao inveacutes de Virgiacutelio seraacute mantida neste trabalho conforme usada pelo tradutor das epiacutestolas de Secircneca Segurado e Campos

71

discursivo de cada um de acordo com o discurso constituinte que funciona como

base da enunciaccedilatildeo Os toacutepoi retoacutericos satildeo identificados indiretamente por meio dos

exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas que funcionam como contribuiccedilatildeo argumentativa na

produccedilatildeo das epiacutestolas A recorrecircncia a estes argumentos retirados de lugares

comuns pressupotildeem partes integrantes de um discurso enunciado em momento e

lugar anteriores e funcionam nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo como um

fenocircmeno dialoacutegico que permite cruzar diferentes discursos no ato da enunciaccedilatildeo

Ao analisar o corpus desta pesquisa de forma comparativa eacute essencial uma

abordagem dialoacutegica da linguagem que permita auxiliar na identificaccedilatildeo do modo

como Secircneca e Paulo recorrem ao uso dos recursos retoacutericos em conexatildeo com

outros discursos na fronteira com os discursos constituintes por eles assumidos As

reflexotildees de Bakhtin e seu ciacuterculo muito tecircm contribuiacutedo para os estudos da

linguagem principalmente as que se referem ao princiacutepio dialoacutegico Bakhtin

considera que o dialogismo eacute princiacutepio constitutivo e caracteriacutestica essencial da

linguagem sendo condiccedilatildeo do sentido do discurso Na visatildeo de Bakhtin (2006 p

366) num encontro dialoacutegico entre culturas elas natildeo se fundem nem se confundem

cada uma manteacutem a sua unidade e a sua integridade aberta mas elas se

enriquecem mutuamente Nesse sentido a cultura do periacuteodo Heleniacutestico tanto

exerce influecircncia na escrita de Secircneca em sua origem ocidental como tambeacutem em

Paulo em sua origem oriental promovendo o entrecruzamento dos discursos

Nos seus estudos sobre dialogismo Bakhtin afirma que existe diaacutelogo natildeo somente

entre interlocutores mas entre enunciados tambeacutem Portanto a produccedilatildeo da

linguagem num enfoque dialoacutegico se articula duplamente na situaccedilatildeo de interaccedilatildeo

(comunicaccedilatildeo oral ou escrita entre falantes) e entre discursos que circulam nos

meios sociais A esse respeito Bakhtin argumenta

Os enunciados natildeo satildeo indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns aos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva (BAKHTIN 2006 p 297)

Um enunciado pode ser introduzido no outro sob formas variadas numa interaccedilatildeo

dialeacutetica com o proacuteprio texto o que estabelece novos dados para a compreensatildeo de

outros textos num processo dinacircmico para garantir a comunicaccedilatildeo Maingueneau e

Charaudeau (2008 p 286-287) postulam que a produccedilatildeo do discurso se realiza no

72

bojo do interdiscurso e em linhas gerais pode-se dizer que o interdiscurso eacute

constituiacutedo pela relaccedilatildeo existente entre os discursos Entende-se que essa relaccedilatildeo

particulariza um determinado discurso como tambeacutem sustenta historicamente os

sentidos nele inscritos

No dizer de Bakhtin (2006 p298) ldquoa expressatildeo do enunciado em maior ou menor

grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e

natildeo soacute a relaccedilatildeo com os objetos do seu enunciadordquo Essa contribuiccedilatildeo bakhtiniana

sobre o dialogismo que se instaura na comunicaccedilatildeo por meio das palavras e

enunciados eacute fundamental para compreensatildeo da visatildeo dialoacutegica da linguagem

que se estabelece tambeacutem na forma do discurso epistolar que eacute a base do corpus

de anaacutelise aqui pretendida De acordo com essa perspectiva dialoacutegica da linguagem

a palavra se apresenta com ecos de outros enunciados de algo dito em outro lugar

em outro momento A expressatildeo da palavra como recurso da linguagem concebe o

diaacutelogo de uma liacutengua com outra liacutengua ou ainda de cultura para cultura Palavras

obras enunciados ecoam as tradiccedilotildees de cada eacutepoca e de cada cultura Nessa

direccedilatildeo tais contribuiccedilotildees favorecem certos aspectos do diaacutelogo entre culturas no

contexto das produccedilotildees grega e latina na Antiguidade em especial no periacuteodo

Heleniacutestico como abordado na segunda parte deste trabalho

Nesse percurso de abordagem do dialogismo destaca-se a importacircncia da

fundamentaccedilatildeo teoacuterica herdada de Bahktin para concepccedilotildees de intertextualidade e

interdiscursividade que contribuem na operaccedilatildeo de anaacutelise de discursos de Secircneca

e Paulo O dialogismo na enunciaccedilatildeo deve ser apreendido como meio de

identificaccedilatildeo de outros discursos presentes no ato da enunciaccedilatildeo o que em anaacutelise

do discurso eacute concebido como heterogeneidade enunciativa

A partir dos estudos bakhtinianos Authier-Revuz (1990 p 25) apresenta duas

concepccedilotildees de heterogeneidade no discurso a heterogeneidade mostrada e a

constitutiva A heterogeneidade mostrada caracteriza-se como forma de inscrever o

outro na sequecircncia do discurso como o discurso citado por exemplo Segundo

Authier-Revuz (1990 p 33) ldquoas formas marcadas da heterogeneidade mostrada

reforccedilam confirmam e asseguram o eu [] dando forma ao sujeito enunciadorrdquo Esta

autora expotildee que a heterogeneidade mostrada revela-se ao introduzir o outro no

discurso de variadas formas Este fenocircmeno eacute observado na introduccedilatildeo de citaccedilotildees

73

e maacuteximas como tambeacutem imagens atraveacutes de exemplos que Secircneca e Paulo usam

como recursos retoacutericos em suas epiacutestolas

A heterogeneidade constitutiva da linguagem como forma da tessitura do discurso

eacute vista por Authier-Revuz (1990 p34) na concepccedilatildeo do discurso como produto do

interdiscurso Esta autora defende que a metaacutefora e jogos de palavra conduzem os

discursos mais proacuteximos da heterogeneidade constitutiva

Maingueneau (1997 p 75) oferece uma siacutentese sobre heterogeneidade enunciativa

concordando que a mostrada incide sobre manifestaccedilotildees expliacutecitas introduzidas no

discurso enquanto a constitutiva natildeo eacute marcada na superfiacutecie do discurso mas

pode ser formulada com o recurso de hipoacuteteses atraveacutes do interdiscurso

recuperaacutevel pelo posicionamento discursivo do enunciador Nesse aspecto o

diaacutelogo entre enunciados anteriormente produzidos resulta nas relaccedilotildees

interdiscursivas ou seja na interaccedilatildeo discursiva entre enunciados

Ainda sobre questotildees do dialogismo outro aspecto a ser pensado eacute o jaacute-dito72 nas

entrelinhas dos discursos e o efeito de intertextualidade que esse fenocircmeno fornece

a um determinado direcionamento do discurso como tambeacutem os significados que

podem ser estabelecidos Em seus postulados sobre a nova retoacuterica Perelman e

Olbrechts-Tytec defendem que o posicionamento assumido por aquele que escreve

conduz o texto agrave determinadas intertextualidades como resultado de um efeito que

gera uma estreita relaccedilatildeo entre ldquoposicionamento memoacuteria intertextual e

investimento em um gecircnerordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 2005 p104)

No dicionaacuterio de anaacutelise do discurso elaborado por Maingueneau e Charaudeau

(2008 p 289) a noccedilatildeo de intertextualidade73 eacute definida como um termo que

apresenta determinadas propriedades Por um lado a intertextualidade se mostra

integrante da constitutividade de qualquer texto Por outro lado a intertextualidade

forma um conjunto de relaccedilotildees expliacutecitas ou impliacutecitas entre os textos em forma de

intertexto Portanto o intertexto pode ser recuperaacutevel pelo fenocircmeno da citaccedilatildeo

72

Charaudeau e Maingueneau (2008 p 401) definem que a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo pode ser entendida como a marca no enunciado de um discurso anterior jaacute-dito e esta noccedilatildeo estaacute intimamente ligada agrave de interdiscurso 73

Charaudeau e Maingueneau (2008 p288) elaboraram o conceito de intertextualidade citando as contribuiccedilotildees de Kristeva sobre a noccedilatildeo de intertextualidade para estudo da literatura Esses autores ainda acrescentaram tambeacutem algumas consideraccedilotildees de Genette ao pensar a intertextualidade como um dos aspectos da transtextualidade relacionando o papel da intertextualidade agrave ideia da presenccedila de um texto em outro por meio da citaccedilatildeo alusatildeo e outras formas

74

mas em certas situaccedilotildees ele eacute anocircnimo agraves vezes tornando-se impossiacutevel a

recuperaccedilatildeo de sua fonte se natildeo for indicada por aquele que enuncia Para

sintetizar essas noccedilotildees Maingueneau e Charaudeau (2008 p 289) conceituam o

intertexto como ldquoo conjunto de fragmentos convocados (citaccedilotildees alusotildees

paraacutefrases) em um corpus dadordquo A intertextualidade funciona como em ldquosistema de

regras impliacutecitas que subjaz a esse intertextordquo Os efeitos da intertextualidade podem

ser vistos como resultado do dialogismo no discurso Pode-se dizer que essas

regras satildeo ditadas de acordo com o posicionamento do enunciador no discurso A

ocorrecircncia de citaccedilotildees exemplos e metaacuteforas tem um efeito de intertextualidade na

construccedilatildeo discursiva das epiacutestolas de Secircneca e Paulo determinando os sentidos

captados pela presenccedila de outros discursos auxiliando tambeacutem na identificaccedilatildeo de

posicionamentos dos enunciadores em seus discursos

Os recursos retoacutericos de argumentaccedilatildeo os temas desenvolvidos com seus

desdobramentos pelo uso dos toacutepoi como manifestaccedilotildees da linguagem satildeo

identificados nas estrateacutegias retoacutericas no uso do gecircnero epistolar O jaacute-dito promove

o dialogismo da linguagem pois atraveacutes de citaccedilotildees de maacuteximas versos exemplos

e metaacuteforas ecos de enunciados pertencentes a outro tempo e outro lugar se

atualizam na enunciaccedilatildeo com diferentes funccedilotildees segundo o posicionamento

discursivo do enunciador

Pode-se considerar tambeacutem que a heterogeneidade enunciativa contribui para o

exerciacutecio da construccedilatildeo do discurso verdadeiro A partir dos postulados de Foucault

compreende-se que a captaccedilatildeo do jaacute dito por meio das leituras e anotaccedilotildees

fundamenta as convicccedilotildees que depreendem de outros discursos A apreensatildeo do

discurso verdadeiro e seu efeito na constituiccedilatildeo da subjetividade funcionam tambeacutem

como direcionamento do falar sincero e franco designado como parresiacutea

33 PARRESIacuteA E RETOacuteRICA

Ao retornar ao assunto do uso da parresiacutea Foucault (2010b p 10) apresentou uma

siacutentese do contexto histoacuterico em que circulava o uso do termo grego parresiacutea

(παρρησία) que em sua origem significava ldquodizer tudordquo Esse termo aparece em

Demoacutestenes na Primeira Fiacutelipica (I1) em que ele diz que vai expor seu pensamento

sem nada dissimular Contudo Foucault menciona que na Greacutecia antiga a palavra

parresiacutea tambeacutem era usada com intuito pejorativo no sentido de se dizer qualquer

75

coisa que passasse pela cabeccedila Nos textos de Platatildeo Foucault (2010b p 189)

identificou a parresiacutea como ldquoaccedilatildeo a exercer natildeo apenas no corpo da cidade mas

sobre a alma dos indiviacuteduos seja a alma do priacutencipe seja a alma dos cidadatildeosrdquo

Nesse contexto a parresiacutea eacute identificada como uma questatildeo da accedilatildeo filosoacutefica o

que Foucault designou de parresiacutea filosoacutefica74

Na ministraccedilatildeo das aulas do curso de 1983 Foucault (2010b p 64) argumenta que

parresiacutea como procedimento ou maneira de dizer as coisas efetivamente usa os

recursos da retoacuterica antiga que por sua vez integra os modos de organizaccedilatildeo do

discurso Nota-se entatildeo que a parresiacutea pode ser identificada pelo modo como o

efeito de seu proacuteprio dizer a verdade pode produzir no locutor em sua relaccedilatildeo

comunicativa com o interlocutor Foucault ainda expotildee que ldquoo parresiasta eacute o

indiviacuteduo veriacutedico ou seja aquele que tem a coragem de arriscar dizer a verdade

num pacto consigo mesmo precisamente na medida em que eacute o enunciador da

verdaderdquo (FOUCAULT 2010b p 64)75

O conceito de parresiacutea como falar franco e verdadeiro contribuiu para a anaacutelise de

Foucault (2011) quando este buscou identificar as estruturas que sustentam

discursos que se datildeo ou que satildeo recebidos como verdadeiros Por isso eacute preciso

analisar as condiccedilotildees de como o sujeito se representa para si e para os outros como

um possuidor um enunciador da verdade De acordo com a parresiacutea o discurso

verdadeiro emerge na relaccedilatildeo do sujeito com seu exterior Por um lado essa

condiccedilatildeo do falar franco e honesto torna o enunciador corajoso como algueacutem que

natildeo recua diante de enfrentamentos Por outro lado a parresiacutea indica os princiacutepios

necessaacuterios para o discurso verdadeiro coincidir com o sujeito que fala

74

Para Foucault (2010b p 296) ldquofilosofar se ocupar de si mesmo exortar os outros a se ocupar deles mesmos e isso escrutando testando provando o que sabem e o que natildeo sabem os outros eacute nisso que consiste a parresiacutea filosoacutefica que se identifica natildeo simplesmente com um modo de discurso com uma teacutecnica de discurso mas com a proacutepria vidardquo 75

Sobre os procedimentos da parresiacutea na enunciaccedilatildeo do discurso verdadeiro Foucault assim argumenta ldquoA anaacutelise da parresiacutea eacute a anaacutelise dessa dramaacutetica do discurso verdadeiro que revela o contrato do sujeito falante consigo mesmo no ato do dizer-a-verdade E creio que poderiacuteamos dessa maneira fazer toda uma anaacutelise da dramaacutetica e das diferentes formas dramaacuteticas do discurso verdadeiro o profeta o adivinho o filoacutesofo o cientista Todos eles quaisquer que sejam efetivamente as determinaccedilotildees sociais que podem definir seu estatuto todos eles de fato empregam uma certa dramaacutetica do discurso verdadeiro isto eacute tecircm uma certa maneira de se vincular como sujeitos agrave verdade do que dizem E eacute claro que eles natildeo se ligam da mesma maneira agrave verdade do que dizem conforme falem como adivinhos conforme falem como profetas conforme falem como filoacutesofos ou conforme falem como cientistas dentro de uma instituiccedilatildeo cientiacutefica Esse modo muito diferente de vinculaccedilatildeo do sujeito agrave proacutepria enunciaccedilatildeo da verdade eacute o que a meu ver abriria o campo para estudos possiacuteveis sobre a dramaacutetica do discurso verdadeirordquo (FOUCAULT 2010b p 66)

76

Esse tema parresiacutea do dizer a verdade instigou a curiosidade de Foucault

incentivando-o a retomaacute-lo em suas aulas no Collegravege de France em 1983 e

posteriormente no uacuteltimo curso oferecido em 1984 Foucault relembrou ao seu

puacuteblico ouvinte o seu objetivo em refletir sobre as questotildees sobre sujeito e verdade

Ele insistiu no ponto crucial de seu interesse de pesquisa em natildeo olhar para ldquoo

discurso que poderia dizer a verdade sobre o sujeito mas a do discurso de verdade

que o sujeito eacute capaz de dizer sobre si mesmordquo (FOUCAULT 2010b p5)

Na aula de abertura em fevereiro de 1984 Foucault (2011 p 5) declarou seu

entusiasmo ao descobrir na moral da Antiguidade greco-romana a importacircncia do

princiacutepio ldquoeacute preciso dizer a verdade sobre si mesmordquo Talvez essa seja uma razatildeo

que justifica a recorrecircncia da escrita epistolar naquele periacuteodo que ele analisou

Foucault cita como exemplo a riqueza que se pode obter na busca de fontes nas

epiacutestolas de Secircneca Pliacutenio o Jovem e Marco Aureacutelio Ele tambeacutem menciona a

importacircncia do uso frequente dos cadernos de anotaccedilotildees e lamentou o fato da

ausecircncia de publicaccedilatildeo e registro daquele tipo de material tatildeo valioso que poderia

servir de fonte para anaacutelises atuais

A viagem por textos da Antiguidade possibilitou a Foucault a identificaccedilatildeo de formas

diferentes do uso do termo parresiacutea Na uacuteltima aula do curso de 1984 ele

apresentou o resultado de um levantamento feito em textos da cultura heleniacutestico-

judaica principalmente os da Septuaginta76 e os de Fiacutelon de Alexandria Como

indica Foucault (2011 p 187) nesses textos parresiacutea toma outra conotaccedilatildeo

significando o relacionamento do homem com Deus Nessa relaccedilatildeo vertical o

homem se abre de forma sincera se oferecendo diante do olhar de Deus

A parresiacutea se situa por assim dizer natildeo mais no eixo (horizontal) das relaccedilotildees do indiviacuteduo com os outros daquele que tecircm a coragem diante dos que se enganam A parresiacutea se situa agora no eixo vertical de uma relaccedilatildeo com Deus onde de um lado a alma eacute transparente e se abre para Deus e em que por outro lado ela se eleva ateacute Ele (FOUCAULT 2011 p 187)

Ligado ao sentido de relaccedilatildeo do homem com Deus nos textos de Fiacutelon de

Alexandria o termo parresiacutea faz referecircncia ao significado de prece Apontando as

semelhanccedilas Foucault (2011 p 287) comenta que ldquoa parresiacutea continua a ser em

76

Foucault (2011 p 287) identifica que na versatildeo da Septuaginta ao traduzir do hebraico para o grego uma expressatildeo no livro de Joacute 2226 faraacutes entatildeo do Todo-Poderoso tuas deliacuteciasrdquo eacute utilizado o verbo parresiaacutezesthai como signifacado dessa expressatildeo no sentido de relaccedilatildeo no contato com Deus de alegria e gozo quando a alma se encontra nessa comunhhatildeo Joacute 22 26 (εἶτα παρρησιασθήσῃ ἔναντι κυρίου ἀναβλέψας εἰς τὸν οὐρανὸν ἱλαρῶς)

77

certo sentido um dizer a verdade mas jaacute natildeo eacute nem mesmo um dizer eacute a abertura

da alma que se manifesta em sua verdade a Deus e leva essa verdade ateacute Elerdquo

Na literatura neotestamentaacuteria situada em torno do primeiro seacuteculo de nossa era a

noccedilatildeo de parresiacutea adquire outros contornos no contexto do preacute-cristianismo

Foucault assim analisa

[] agora o termo parresiacutea interveacutem certo nuacutemero de vezes e com um sentido diferente do que acabamos de ver na tradiccedilatildeo judaico-heleniacutestica diferente tambeacutem eacute claro do que encontramos no uso grego Duas mudanccedilas importantes A primeira eacute que doravante nessa literatura neotestamentaacuteria a parresiacutea natildeo aparece mais como uma modalidade da manifestaccedilatildeo divina Deus natildeo eacute mais o parresiasta que era na versatildeo dos setenta e ateacute certo ponto de Fiacutelon de Alexandria A parresiacutea eacute simplesmente um modo de ser um modo de atividade humana Segunda mudanccedila esse modo humano de atividade comporta ateacute certo ponto em certo contexto e em certas circunstacircncias a conotaccedilatildeo de coragem da ousadia de falar mas eacute tambeacutem uma atitude de coraccedilatildeo uma maneira de ser que natildeo tem necessidade de se manifestar no discurso e na palavra (FOUCAULT 2011 p 289)

Outra marca da parresiacutea neotestamentaacuteria eacute a intensificaccedilatildeo da atitude corajosa dos

apoacutestolos na pregaccedilatildeo do evangelho Pode-se pensar na ideia de coragem na forma

de assumir o discurso de cristatildeo como caracteriacutestica inerente ao apostolado pelo

enfrentamento agraves perseguiccedilotildees naquele momento histoacuterico como mostrado na

narrativa de Lucas ldquoE disse o Senhor em visatildeo a Paulo Natildeo temas mas fala e natildeo

te calesrdquo (Atos 189) Nesse contexto existe uma recuperaccedilatildeo de pontos de

semelhanccedila com a parresiacutea grega principalmente quanto ao uso corajoso da

palavra Foucault aponta o apoacutestolo Paulo como exemplo naquela cena em que ele

se apresentou no areoacutepago em Atenas e discutiu com os gregos apresentando-lhes

o Deus desconhecido conforme narrativa no livro de Atos (1715-34) Aceitando o

desafio de falar publicamente em local que registra a presenccedila de epicuristas e

estoicos Paulo teve a oportunidade de expor o evangelho aos atenienses mas eles

tentaram tirar-lhe a vida Nessa linha de raciociacutenio Foucault (2011 p 290) faz a

seguinte anaacutelise ldquoo fato de Paulo tomar a palavra discutir com os gregos pondo em

risco a proacutepria vida eacute caracterizado como sendo parresiacuteardquo Essas concepccedilotildees de

parresiacutea nas pesquisas de Foucault auxiliam no modo de identificaccedilatildeo de diferenccedilas

no uso do termo mas na essecircncia do significado haacute estreita ligaccedilatildeo com a noccedilatildeo de

verdade no que se refere ao modo de expressatildeo do discurso sem dissimulaccedilatildeo

78

Foucault (2010b p310) avaliou que o sentido original de parresiacutea na antiga Greacutecia

estava mais ligado ao campo da poliacutetica e aos poucos foi se tornando fundamental

no contexto da filosofia em determinados aspectos

Em suma a parresiacutea essa funccedilatildeo que consiste em dizer livre e corajosamente a verdade se desloca pouco a pouco desloca seus acentos e entra cada vez mais no campo do exerciacutecio da filosofia Fique claro mais uma vez que o que eacute a filha da parresiacutea natildeo eacute certamente toda a filosofia natildeo eacute a filosofia desde a sua origem natildeo eacute a filosofia sob todos os seus aspectos mas eacute a filosofia entendida como livre coragem de dizer a verdade e dizendo assim corajosamente a verdade de adquirir ascendecircncia sobre os outros para conduzi-los convenientemente e isso num jogo que deve aceitar de parte do proacuteprio parresiasta o risco que pode chegar ateacute agrave morte (FOUCAULT 2010b p310)

Sua insistecircncia em analisar a parresiacutea na Antiguidade claacutessica permitiu-lhe

identificaacute-la na cultura do Principado romano na esfera da eacutetica interligada agrave moral

Nesse contexto histoacuterico a parresiacutea consistia em se dizer a verdade sem

subterfuacutegios e nem mesmo ornamento retoacuterico que pudesse mascaraacute-la Foucault

confirma essa praacutetica do franco falar usando o exemplo de Secircneca que procura

colocar diante de seu destinataacuterio Luciacutelio certa oposiccedilatildeo entre retoacuterica e oratoacuteria

como vivenciada pelos oradores de seu tempo na praacutetica mais valorizada da

eloquecircncia

Mesmo que eu estivesse discutindo contigo natildeo me iria pocircr na ponta dos peacutes nem fazer grandes gestos nem elevar a voz tudo isso seriam artifiacutecios de oradores enquanto a mim me bastaria comunicar-te o meu pensamento num estilo nem grandiloquente nem vulgar De uma coisa apenas eu te quereria convencer de que sentia tudo que dissesse [] (SEcircNECA Ep

752-3)

Nesta epiacutestola Secircneca natildeo se coloca avesso agrave retoacuterica mas critica a formalidade da

postura dos oradores e a falta de liberdade imposta pelas regras da oratoacuteria Assim

para Secircneca o falar sincero e franco deveria se sobrepor agraves exigecircncias formais da

oratoacuteria Esse posicionamento encontra eco no pensamento de Aristoacuteteles (Ret III

21404b) no sentido de suas consideraccedilotildees sobre a composiccedilatildeo da prosa ao

colocar que os autores natildeo devem mostrar que ldquofalam com artificialidade mas sim

com naturalidade pois este uacuteltimo modo resulta persuasivo o anterior o opostordquo

O proacuteprio Foucault (2010b p 297 2010a p 346)77 reitera os penosos embates

entre filosofia e retoacuterica na Antiguidade e suscita questionamentos que advecircm da

77

Segundo Foucault (2010b p 197) ldquoEm certo sentido o problema filosofiaretoacuterica perpassa toda a obra de Platatildeordquo O que Soacutecrates discute no diaacutelogo Fedro eacute a relaccedilatildeo entre verdade (filosofia) e retoacuterica Foucault (2010b p 301) aponta ldquoEacute aiacute que Soacutecrates desenvolve sua concepccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o discurso e a verdade mostrando como a verdade deve ser natildeo a condiccedilatildeo preacutevia de certo

79

relaccedilatildeo entre parresiacutea e retoacuterica Poreacutem admite que para se obter certos resultados

no discurso direcionado pela parresiacutea torna-se necessaacuterio recorrer-se a elementos

indispensaacuteveis do campo da retoacuterica Mediante essa constataccedilatildeo ele pondera que

natildeo se deve prender agraves regras ou manejos da retoacuterica mas usaacute-la pela diagonal ou

seja aproveitando do seu meacutetodo o que conveacutem ser aplicado no bojo do discurso

movido pela parresiacutea A esse respeito Alexandre Jr faz o seguinte comentaacuterio sobre

o posicionamento de Secircneca em relaccedilatildeo ao uso da retoacuterica

A sua anaacutelise mostra-nos com particular clareza a convicccedilatildeo de que soacute uma retoacuterica conforme a natureza eacute capaz de verbalizar com eficaacutecia e vigor os princiacutepios que a filosofia conceptualiza e os valores que implementa Sem perder de vista o fim real da filosofia Seacuteneca vecirc na retoacuterica o meio necessaacuterio agrave comunicaccedilatildeo da verdade que aquela encarna O que ele defende eacute um estilo amplo fluente e natildeo desprovido de energia um estilo de tal maneira bem conseguido que na aparecircncia se ldquonatildeo mostre trabalhado nem rebuscado em excessordquo Pois como diz na Carta 100 ldquoao filoacutesofo natildeo conveacutem a excessiva preocupaccedilatildeo com o estilordquo Este poreacutem natildeo revela negligecircncia mas naturalidade e seguranccedila Ao inveacutes de nele se encontrar qualquer vulgaridade o estilo filosoacutefico inspira-se numa retoacuterica que mais se adequa ao ritmo da natureza (ALEXANDRE JR 2002 p 4)

Vale destacar na anaacutelise de Alexandre Jr a forma como ele identifica o sentido e

uso da retoacuterica nas epiacutestolas de Secircneca a Lucilio Assim na posiccedilatildeo de filoacutesofo

estoico Secircneca lanccedila matildeo da retoacuterica como recurso na comunicaccedilatildeo do discurso

verdadeiro como efeito de um ethos de verdade

Na busca de identificar pontos comuns de aproximaccedilatildeo entre oratoacuteria e filosofia

Alexandre Jr vislumbra a descoberta de uma possibilidade de encontrar em Ciacutecero

a sustentaccedilatildeo para suas hipoacuteteses

Foi Cicero quem tomou o que viu de melhor nas duas posiccedilotildees para sustentar de forma ecleacutetica e natildeo muito dogmaacutetica a sua proacutepria visatildeo da oratoacuteria e a seguir pintar o seu idiossincraacutetico e surpreendente quadro do orador ideal o quadro do estadista romano que combina eloquecircncia com conhecimento ou saber universal acute[] Cicero promoveu na pratica a uniatildeo da retoacuterica com a filosofia fazendo a filtragem de toda a tradiccedilatildeo retoacuterica e imprimindo-lhe uma forma um conteuacutedo e um estilo marcadamente originais Poderiacuteamos quase dizer que ele representa a siacutentese mais destilada e final das tendecircncias platocircnica e aristoteacutelica isocraacutetica e estoica

modo psicoloacutegica da praacutetica da arte oratoacuteria mas a cada instante aquilo a que esse discurso se relaciona Ele mostra isso primeiro procedendo a uma generalizaccedilatildeo brutal que vai ficar em suspenso durante toda uma parte da discussatildeo e como a retoma e como a realoca Diz ele no fundo o que eacute essa arte da retoacuterica que quer persuadir Pois bem diz ele essa arte da retoacuterica nada mais eacute que uma forma geral de algo que ele chama de psykhagogiacutea diagrave tocircn logocircn (psicagogia pelos discursos) o que quer dizer que a retoacuterica nada mais eacute que uma maneira de conduzir as almas por intermeacutedio dos discursos Por conseguinte o problema que ele vai colocar ele natildeo vai colocar no acircmbito da simples retoacuterica vai colocaacute-lo no acircmbito muito mais geral dessa categoria no interior da qual a retoacuterica se situa ou deveria se situar que eacute a psicagogia (a conduta das almas) diagrave focircn logocircn (pelos discursos)rdquo

80

na sua congeminaccedilatildeo de uma retorica perfeita (ALEXANDRE JR 2005a p 10-11)

Nota-se que Secircneca no seu tempo estava mais voltado para a retoacuterica aplicada ao

texto escrito e natildeo aos discursos requeridos pela oratoacuteria dirigidos a um puacuteblico

ouvinte Pela sua formaccedilatildeo educacional a retoacuterica servia de meacutetodo para

construccedilatildeo do discurso O que Secircneca defendia era uma postura que se aliava agrave de

Ciacutecero em relaccedilatildeo agrave necessidade da retoacuterica na produccedilatildeo do discurso filosoacutefico

Nota-se que no posicionamento de Secircneca e de Paulo a retoacuterica como ornamento

natildeo significa eficaacutecia em seus discursos mas a base da retoacuterica que lhes eacute

conveniente eacute a que contribui para a construccedilatildeo do discurso verdadeiro orientado

pelo ldquofalar francordquo lugar comum que os aproxima

Ao situar alguns aspectos da retoacuterica na Antiguidade claacutessica percebe-se que

alguns pontos contribuem para os estudos atuais O retorno a essas antigas

discussotildees eacute assumido pela nova retoacuterica com a publicaccedilatildeo do tratado da retoacuterica

de Perelman e Olbrechts-Tyteca Na introduccedilatildeo de seu tratado de argumentaccedilatildeo

Perelman e Olbrechts-Tyteca 78 (2005 p 7) destacam a constitutividade da retoacuterica

no discurso reaproveitando algumas ideias dos pensadores claacutessicos As

ponderaccedilotildees desses autores ao pensar o texto escrito como um discurso dirigido a

algueacutem fornecem contribuiccedilotildees relevantes para as pesquisas que se apoiam em

pressupostos teoacutericos da anaacutelise do discurso de base enunciativa Nessa mesma

perspectiva Kennedy (1984 p 9) menciona algumas caracteriacutesticas da retoacuterica na

Antiguidade que se mantiveram como constitutivas do discurso Para este

pesquisador as marcas mais recorrentes que se destacam satildeo as formas de

tratamento dos assuntos o uso de evidecircncias e argumentaccedilatildeo

A releitura da retoacuterica antiga que se efetua atualmente faz emergir em maior ou

menor grau a interligaccedilatildeo entre discurso e sujeito Ao refletir sobre a heranccedila

retoacuterica Amossy expotildee

Sabemos que a histoacuteria da disciplina natildeo se furtou a comentar abundantemente a trilogia aristoteacutelica do logos do ethos e do pathos Dedicamos-nos essencialmente agraves glosas dos conceitos de Aristoacuteteles e

78

A respeito da nova retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p7) assim colocam ldquoO que conservamos da retoacuterica tradicional eacute a ideia mesmo de auditoacuterio que eacute evocada assim que se pensa num discurso Todo discurso se dirige a um auditoacuterio sendo muito frequente esquecer que se daacute o mesmo com todo o escrito Enquanto o discurso eacute concebido em funccedilatildeo direta do auditoacuterio a audiecircncia material de leitores pode levar o escritor a crer que estaacute sozinho no mundo conquanto na verdade seu texto seja sempre condicionado consciente ou inconscientemente por aqueles a quem pretende dirigir-serdquo

81

tambeacutem aos estudos das modificaccedilotildees a que eles foram submetidos pelos textos de Ciacutecero e Quintiliano Um dos pontos que sobressaem dessa confrontaccedilatildeo toca de perto nosso objeto Trata-se de fato de saber se o ethos eacute como pretendia Aristoacuteteles a imagem de si construiacuteda no discurso ou como entendiam os romanos um dado preexistente que se apoia na autoridade individual e institucional do orador (a reputaccedilatildeo de sua famiacutelia seu estatuto social o que se sabe do seu modo de vida etc) Na arte oratoacuteria romana inspirada mais em Isoacutecrates do que em Aristoacuteteles o ethos pertence agrave esfera do caraacuteter (AMOSSY 2005 p 17)

Esses apontamentos de Amossy convergem para uma siacutentese da contribuiccedilatildeo de

pensadores claacutessicos no campo da retoacuterica Em concordacircncia com as ideias desta

autora procura-se destacar as influecircncias da Antiguidade que contribuiacuteram para as

concepccedilotildees atuais de ethos e seu papel fundamental no discurso Nesse aspecto a

anaacutelise do discurso desenvolvida por Maingueneau Amossy entre outros tem a

retoacuterica antiga como ponto de partida

82

4 A ANAacuteLISE DO DISCURSO E SUA RELACcedilAtildeO COM A RETOacuteRICA

A anaacutelise do discurso de base enunciativa toma como apoio alguns pontos da

retoacuterica claacutessica de acordo com as formulaccedilotildees aristoteacutelicas De acordo com a

afirmaccedilatildeo de Maingueneau (2005 p 69) ldquoa noccedilatildeo de ethos pertence agrave tradiccedilatildeo

retoacutericardquo Os estudos da linguagem que apreendem o discurso em sua base

enunciativa contribuem tambeacutem para uma expansatildeo das ideias desenvolvidas por

Perelman e Olbrechts-Tyteca na nova retoacuterica A esse respeito torna-se produtivo

colocar em pauta alguns postulados de Maingueneau que podem contribuir para

uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica desta pesquisa Quanto agraves referecircncias relacionadas ao

fenocircmeno da enunciaccedilatildeo Maingueneau (1997 p41) recorre agraves formulaccedilotildees

teoacutericas de Benveniste afirmando que a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo eacute considerada

como um conjunto formado por um enunciador um destinataacuterio um momento e um

lugar especiacutefico Pensar o discurso como ato enunciativo eacute conceber a noccedilatildeo de

enunciaccedilatildeo como um fenocircmeno da linguagem que coloca os falantes de uma liacutengua

como atores da cena no acontecimento da comunicaccedilatildeo

Maingueneau ao longo de suas produccedilotildees79 ressalta a importacircncia da metaacutefora

teatral por ele mostrada para situar as condiccedilotildees em que eacute possiacutevel a apreensatildeo de

um discurso A cena de enunciaccedilatildeo eacute concebida sob trecircs diferentes formas cena

englobante cena geneacuterica e cenografia As duas primeiras cenas num conjunto

podem ser denominadas de quadro cecircnico o qual estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo

de gecircnero do discurso A cena englobante estaacute relacionada ao tipo de discurso que

pelas suas caracteriacutesticas e formas pode ser engendrado no ato enunciativo Pode-

se definir a que tipo de discurso pertence determinado texto identificando a

finalidade pela qual ele foi produzido As caracteriacutesticas que um texto fornece

servem para localizaacute-lo Mesmo o texto de um simples folheto pode ser apreendido

como discurso publicitaacuterio religioso poliacutetico entre outros Essas consideraccedilotildees

cooperam para o direcionamento desta pesquisa em observar o tipo de discurso que

abriga o gecircnero de discurso epistolar na produccedilatildeo da escrita de Secircneca e Paulo

79

Nas obras de Maingueneau sempre haacute uma retomada dos temas baacutesicos de sua teoria Por esse motivo nas referecircncias expostas neste item do capiacutetulo I natildeo se menciona uma determinada obra desse autor visto que haacute repeticcedilatildeo dos assuntos nas obras subsequentes Nesta pesquisa foram selecionadas as obras que estatildeo mencionadas na bibliografia (1995 1997 2000 2005 2007 2008a 2008b 2012)

83

A respeito da caracteriacutestica englobante na cena enunciativa Maingueneau (2012 p

251) observa que a identificaccedilatildeo do tipo de discurso por si soacute natildeo eacute suficiente na

captaccedilatildeo de um discurso Nesse funcionamento e desenrolar da enunciaccedilatildeo a cena

geneacuterica estaacute na gestatildeo do gecircnero de discurso que com sua especificidade define

a orientaccedilatildeo do discurso Por essa razatildeo Maingueneau (2008a 155) considera

que um gecircnero de discurso delineia o direcionamento da enunciaccedilatildeo constituindo-

se no interior de um tipo de discurso englobante Isso serve para indicar que o

gecircnero epistolar pode manter sua forma protocolar tanto no discurso filosoacutefico

quanto no religioso entre outros No ato enunciativo a cenografia estaacute interligada ao

gecircnero do discurso pois ela se constitui como caracterizaccedilatildeo da cena enunciativa Eacute

na cenografia que se consolida a presenccedila do enunciador e co-enunciador80 como

tambeacutem o momento e lugar que se situam na enunciaccedilatildeo

Os tipos de discursos estatildeo ligados agrave fonte que lhes daacute origem ou seja os tipos de

discursos surgem a partir dos discursos constituintes como sendo os discursos

fundadores identificados como os discursos que constitutivamente se estabelecem

A partir da necessidade de comunicaccedilatildeo da linguagem e o exerciacutecio da praacutetica entre

os falantes estes discursos oferecem estabilidade por meio de sua permanecircncia

como arquivos de manutenccedilatildeo da memoacuteria e da linguagem

41 DISCURSOS CONSTITUINTES

Na conferecircncia de abertura de sua aula inaugural no Collegravege de France em 1971

Foucault desenvolveu o tema A ordem do discurso Em um dos pontos abordados

ele focaliza o fenocircmeno dos discursos que em sua origem ocupam lugares de

fundadores sendo apreendidos como discursos primeiros e que datildeo origem aos

outros Foucault menciona que os discursos primeiros estatildeo na origem de certos

nuacutemeros de atos de fala que os retomam os transformam ou seja ldquoos discursos

que indefinitivamente para aleacutem de sua formulaccedilatildeo satildeo ditos permanecem ditos e

estatildeo ainda por dizerrdquo (FOUCAULT 1996 p 22-24)

80

O termo co-enunciador usado por Maingueneau fortalece a ideia da cooperaccedilatildeo entre os pares na comunicaccedilatildeo O prefixo co serve para demonstrar que o enunciador eacute dependente de uma parceria para que a comunicaccedilatildeo se realize a contento Maingueneau justifica que prefere usar o termo co-enunciador em lugar de destinataacuterio porque identifica o caraacuteter interativo da comunicaccedilatildeo verbal (MAINGUENEAU 2005 p 91 nota 6)

84

O discurso primeiro daacute origem ao comentaacuterio pelo seu estatuto de discurso sempre

retualizaacutevel com possibilidades de significados muacuteltiplos ou mesmo escondidos a

ser revelados Assim o comentaacuterio tem a finalidade de dizer o que estaacute

silenciosamente articulado no texto primeiro Em relaccedilatildeo ao texto o comentaacuterio

permite dizer outra coisa mas com a condiccedilatildeo de que seja esse mesmo texto a ser

dito O novo natildeo estaacute naquilo que eacute dito mas no acontecimento do seu retorno

Maingueneau assimila essa abordagem desenvolvida por Foucault sobre discurso

primeiro e comentaacuterio acrescentando outras concepccedilotildees introduzindo a noccedilatildeo de

discursos constituintes Maingueneau (2012 p 21) propotildee que ldquoos discursos

constituintes satildeo discursos que conferem sentido aos atos da coletividaderdquo Assim

pode considerar-se que o discurso constituinte eacute garantia para a multiplicidade de

gecircneros do discurso O que se depreende deste postulado eacute que a partir do discurso

constituinte outros tipos de discursos se fazem estabelecer

Segundo Maingueneau (2008a p 38) os discursos constituintes possuem um

estatuto singular que daacute suporte a outros discursos natildeo constituintes Por exemplo

os discursos jornaliacutestico e poliacutetico apoiam-se em discursos constituintes81 como o

religioso filosoacutefico literaacuterio ou cientiacutefico Maingueneau (2012 p 63) observa que os

discursos constituintes relacionam-se entre si e nesta inter-relaccedilatildeo um eacute

atrevessado pelo outro Haacute entre estes discursos uma forccedila que os atraem e ao

mesmo tempo os afastam Esta relaccedilatildeo que simultaneamente provoca aproximaccedilatildeo

e afastamento pode ser notada por exemplo entre discurso cientiacutefico e discurso

religioso

Conforme postula Maingueneau (2008b p 201) os discursos constituintes tecircm um

duplo caraacuteter pois satildeo autoconstituintes e heteroconstituintes Sendo

autoconstituinte o discurso se constitui tematizando sua proacutepria constituiccedilatildeo

podendo desempenhar um papel constituinte para outros discursos Como

heteroconstituinte o discurso se constitui mobilizando outros discursos constituintes

81

Maingueneau (2012 p 63) lembra que ldquooutrora o discurso filosoacutefico e o discurso religioso lutaram para saber qual deles estava estabelecido de modo a atribuir um lugar a cada discurso Essa pretensatildeo foi contestada pelos defensores da superioridade do discurso cientiacutefico que se desenvolve afastando a todo instante a ameaccedila do religioso ou do filosoacutefico Maingueneau (2000 p 6) ainda postula que pode-se partir de uma observaccedilatildeo banal quando haacute um debate sobre um problema social solicita-se a opiniatildeo de sujeitos que falam em nome da religiatildeo da ciecircncia da filosofia Tem-se com efeito a impressatildeo de que os discursos dos quais eles satildeo porta-vozes satildeo de alguma forma discursos uacuteltimos para aleacutem dos quais natildeo haacute senatildeo o indiziacutevel de que eles se confrontam com o Absoluto

85

na realizaccedilatildeo de seu proacuteprio ato enuncitivo O fenocircmeno heteroconstitutivo do

discurso pode ser observado na filosofia estoica pois sua divisatildeo tripartida em

fiacutesica loacutegica e eacutetica promove sua relaccedilatildeo com o discurso religioso Algra (2009

p189) afirma que a teologia era parte integrante da fiacutesica estoica pois os

postulados sobre destino e providecircncia estatildeo interligados agrave concepccedilatildeo de deus no

estoicismo Conforme observaccedilatildeo de Algra (2009 p 193) na relaccedilatildeo do estoicismo

com o campo religioso tanto a criacutetica quanto a apropriaccedilatildeo das tradiccedilotildees religiosas

reaparecem nos textos estoicos da era imperial romana

Secircneca procura instruir Luciacutelio a respeito do objetivo e papel da filosofia frente agraves

concepccedilotildees religiosas que por ela estatildeo atravessadas

A toda hora nos vemos em inuacutemeras situaccedilotildees em que carecemos de um conselho pois eacute a filosofia que no-lo pode dar Haveraacute quem diga De que me vale a filosofia se existe o destino De que me serve ela se haacute um deus que tudo dirige De que me vale ela se tudo obedece ao acaso De fato tatildeo impossiacutevel eacute alterar o que estaacute predeterminado como tomar providecircncias em relaccedilatildeo ao que eacute incerto pois ou as minhas decisotildees jaacute foram antecipadas por um deus que me indicou como agir ou entatildeo eacute a fortuna que nada deixa entregue ao meu arbiacutetrio Qualquer que seja caro Luciacutelio o valor destes argumentos e mesmo que sejam todos vaacutelidos devemos praticar a filosofia Quer nos determine a lei inexoraacutevel do destino quer algum deus moderador do universo ordene todos os acontecimentos quer seja o acaso que desordenadamente empurre aos baldotildees o curso da vida humana a filosofia deveraacute proteger-nos Ela nos incitaraacute a obedecer espontaneamente agrave divindade a resistir a peacute firme agrave fortuna ela nos ensinaraacute a seguir agrave divindade ou a suportar o acaso (SEcircNECA Ep 16 5-

6)

Esta convicccedilatildeo de Secircneca a respeito do valor da filosofia e sua contribuiccedilatildeo na

instruccedilatildeo do modo de agir permite essa parceria entre filosofia e religiatildeo Neste

contexto ldquoa filosofia natildeo consiste em palavras mas em accedilotildeesrdquo (Ep 163) Eacute nessa

perspectiva que marcadamente na Patriacutestica a religiatildeo eacute atravessada pela filosofia

Agostinho na obra Cidade de Deus (VIII I-XI) procura desenvolver sua teologia

partindo de concepccedilotildees filosoacuteficas de vaacuterias correntes declarando sua preferecircncia

pelo platonismo em vista de uma aproximaccedilatildeo mais estreita das ideias82

82

Na obra Cidade de Deus (VIII XI) Agostinho faz algumas indagaccedilotildees ldquoAlguns que nos estatildeo unidos pela graccedila de Cristo admiram-se quando lecircem ou ouvem dizer que Platatildeo teve de Deus concepccedilotildees que reconhecem estatildeo em estreita concordacircncia com a verdade da nossa religiatildeo Por isso alguns tecircm pensado que tendo ido Platatildeo ao Egipto poderia ter ouvido Jeremias ou lido os seus escritos profeacuteticos durante a viagem Eu mesmo consignei esta opiniatildeo em alguns dos meus livros Mas um caacutelculo mais apurado das datas tais como se conteacutem na histoacuteria cronoloacutegica mostra que Platatildeo nasceu cerca de cem anos depois da eacutepoca em que Jeremias profetizou Com efeito ele viveu oitenta anos ora do ano da sua morte ateacute agravequele em que Ptolomeu rei do Egipto pediu agrave Judeia os livros dos profetas hebreus para os mandar traduzir para seu uso por setenta hebreus que tambeacutem conheciam o grego passaram--se cerca de sessenta Portanto Platatildeo natildeo pocircde no decurso

86

A partir dessa ideia de interaccedilatildeo entre discursos constituintes Maingueneau

sustenta que o ato enunciativo eacute o gestor em potencial que favorece a circulaccedilatildeo do

discurso constituinte

O discurso constituinte natildeo eacute um simples vetor de ideacuteias ele articula atraveacutes do dispositivo enunciativo textualidade e espaccedilo institucional Ele investe na instituiccedilatildeo que o torna possiacutevel legitimando (ou deslegitimando) o universo social onde ele se inscreve Haacute constituiccedilatildeo precisamente na medida em que o dispositivo enunciativo funda de maneira por assim dizer performativa sua proacutepria possibilidade fazendo o possiacutevel para parecer que ele extrai essa legitimidade de uma Fonte da qual ele seria a encarnaccedilatildeo (o Verbo revelado a Natureza a Razatildeo a Lei) Esse processo se desenrola em trecircs registros - O discurso mostra sua cenografia a representaccedilatildeo que ele constroacutei de sua proacutepria situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo - A mobilizaccedilatildeo de um coacutedigo de linguagem lhe permite validar sua autoridade jogando com a diversidade irredutiacutevel das liacutenguas e das zonas e registros de liacutenguas -Atraveacutes de sua voz ele confere a sua instacircncia enunciadora um corpo fixando assim o ethos associado a sua cenografia e a seu coacutedigo de

linguagem (MAINGUENEAU 2000 p10)

Os trecircs elementos cenografia coacutedigo de linguagem e ethos estatildeo imbricados na

articulaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo apoiando-se no gecircnero de discurso que se dirige agraves

comunidades discursivas de base e sustentaccedilatildeo aos discursos constituintes nos

quais estatildeo inseridas

42 GEcircNERO DO DISCURSO

As questotildees sobre a relaccedilatildeo entre gecircnero do discurso e linguagem refletem

preocupaccedilotildees nas discussotildees desse tema Entre os pesquisadores se destaca

Braund (2001 p 258) enfatizando que o termo gecircnero usado na identificaccedilatildeo de

forma de determinadas construccedilotildees literaacuterias tem histoacuteria recente em relaccedilatildeo agrave

Antiguidade Essa autora destaca a preocupaccedilatildeo de classificaccedilatildeo dos tipos de

literatura praticados na Antiguidade claacutessica lembrando o exemplo de Quintiliano

em suas discussotildees sobre as formas literaacuterias que deveriam compor o arsenal de

leitura do orador Braund (2001 p 261) entatildeo interroga ldquocomo foi formada essa

ideia de gecircnero que circula em nossa atualidaderdquo Para essa autora as discussotildees

sobre gecircneros literaacuterios evidenciam uma seacuterie de problemas que demonstram

dificuldades de encaixamento de uma obra na especificidade de um gecircnero

determinado Pode-se pensar que as questotildees levantadas por Braund sobre

da sua viagem nem ver Jeremias morto desde haacute muito tempo nem ler as suas Escrituras ainda natildeo traduzidas para grego liacutengua em que era exiacutemio A menos talvez que apaixonado estudioso como era tenha delas tido conhecimento por inteacuterpretes como aconteceu com as egiacutepcias mdash sem se tratar duma traduccedilatildeo escrita (insigne favor que diz-se mereceu Ptolomeu ele que pelo poder da sua realeza tambeacutem podia inspirar algum temor) mas sem duacutevida que conseguiu com as suas conversaccedilotildees tomar conhecimento na medida do possiacutevel do seu conteuacutedordquo

87

gecircneros literaacuterios podem ser aplicadas tambeacutem aos demais tipos de gecircneros pois

desde a Antiguidade natildeo havia criteacuterios baacutesicos no campo da retoacuterica para a

concepccedilatildeo do que na atualidade eacute chamado de gecircnero do discurso

Com base em sua anaacutelise da obra Institutio Oratoria Rezende (2009) argumenta

que a noccedilatildeo de literatura na Antiguidade se vincula a uma instituiccedilatildeo retoacuterica

definindo o modo de divulgaccedilatildeo dos discursos A partir de Quintiliano Rezende

(2009 p 67) expotildee que o termo literatura ldquorepresenta o conjunto de saberes que

permitiam as vaacuterias formas de acesso agrave obra escrita muito aleacutem portanto do que

representaria um acervo da produccedilatildeo poeacutetica latinardquo Rezende aponta que

Quintiliano (Inst Or X 1 4) defende que literatura eacute o correspondente latino para o

vocaacutebulo gramaacutetica83 de origem grega Nota-se que os termos literatura e

gramaacutetica como tratados na retoacuterica antiga natildeo satildeo equivalentes aos seus

significados na atualidade

Como salienta Alexandre Jr (2005 p 38) Aristoacuteteles na obra Retoacuterica acrescenta

os modos deliberativo e o epidiacutetico como produccedilatildeo retoacuterica de discursos pois ateacute

entatildeo os retoacutericos se atentavam especialmente ao discurso judicial ou forense As

caracteriacutesticas do discurso deliberativo como exortaccedilotildees e dissuasotildees que visam

mostrar as vantagens e desvantagens de uma determinada accedilatildeo podem ser

identificadas na construccedilatildeo do discurso nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

Poreacutem natildeo havia uma classificaccedilatildeo de gecircneros que se encaixasse nesse modo de

construccedilatildeo do discurso e nem mesmo o uso da terminologia gecircnero para essa

situaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo da linguagem Rezende (2009 p 86) observa que

Quintiliano fazia uso do termo gecircnero (geneus)84 com uma variedade extensa de

aplicaccedilotildees natildeo definindo exatamente um uso especiacutefico

Na obra Retoacuterica a Herecircnio (I 45) aparece o uso do termo ldquogecircnerordquo como uma

forma voltada para uma orientaccedilatildeo da organizaccedilatildeo dos discursos Assim eacute notoacuterio

83

Rezende (2009 p71) cita e traduz as colocaccedilotildees de Quintiliano sobre literatura e gramaacutetica Nos ipsam nunc uolumus significare substantiam ut grammatice litteratura est non litteratrix quem ad modum oratrix nec litteratoria quem ad modum oratoria uerum id in rhetorice non fit (Queremos agora fazer valer o significado da proacutepria substacircncia de tal forma que gramaacutetica eacute literatura mas natildeo literatrix como se poderia formar oratrix nem mesmo literatoria como se fosse formada tal qual oratoacuteria Em verdade nenhuma das duas derivaccedilotildees eacute possiacutevel para retoacuterica (Inst Or II 14 4) 84

A palavra genus que traduzimos entre outras coisas por gecircnero eacute de uma abrangecircncia semacircntica muito grande e por isso de largo emprego Na Institutio por exemplo genus aparece aproximadamente 500 vezes com os mais diferentes sentidos o que torna difiacutecil localizar com maior precisatildeo no emprego dessa palavra a significaccedilatildeo de um conceito mais estrito (REZENDE 2009 p 86)

88

observar como era fundamental a identificaccedilatildeo do gecircnero na construccedilatildeo do texto

ldquoDa causa eacute preciso considerar seu gecircnero para que possamos fazer o exoacuterdio com

mais facilidaderdquo O autor ainda acrescenta que ldquoo gecircnero entatildeo pode ser

caracterizado como escolha da postura do orador honesto torpe duacutebio e humilderdquo

Nessa abordagem nota-se a necessidade da definiccedilatildeo de um gecircnero como

direcionador do discurso mas natildeo havia um modo de determinar a identificaccedilatildeo

designaccedilatildeo ou classificaccedilatildeo de um discurso de acordo com as caracteriacutesticas de

sua proacutepria constitutividade Por exemplo no campo epistolografia sabe-se da

ocorrecircncia de formas variadas de correspondecircncia mas natildeo haacute registro de estudos

na retoacuterica latina que dessem atenccedilatildeo a esse tipo de escrita As formulaccedilotildees sobre

o estilo na retoacuterica na obra de Demeacutetrio de Faleros (Sobre o estilo IV 234)

fornecem alguns questionamentos sobre a epistolografia Determinadas formas de

correspondecircncia circulavam desde a implantaccedilatildeo da escrita como meio de

comunicaccedilatildeo entre pessoas separadas pela distacircncia Demeacutetrio aponta certas

caracteriacutesticas e funccedilotildees da escrita de epiacutestolas por ele citadas mas natildeo especifica

uma classificaccedilatildeo formal para cada tipo

Outra abordagem que se destaca no enfoque da noccedilatildeo de gecircnero na Antiguidade eacute

apresentada por Cairns (2010 p 5-6) que resume tal noccedilatildeo como classificaccedilatildeo em

termos de forma literaacuteria como poeacutetica Compreende-se que a identificaccedilatildeo de

certos elementos primaacuterios presentes numa determinada obra contribuem para

explicitar o tipo de gecircnero em evidecircncia Na Antiguidade o reconhecimento de tais

elementos na obra tornava possiacutevel a identificaccedilatildeo do suposto gecircnero poeacutetico Aleacutem

dos elementos primaacuterios determinantes tambeacutem eram valorizados os elementos

secundaacuterios Cairns (2010 p 6) faz referecircncia a esses elementos secundaacuterios como

sendo os toacutepoi Este autor salienta que os recursos que permitiam lanccedilar matildeo de

toacutepoi favoreciam a identificaccedilatildeo de lugares comuns e a esses se recorria de

diferentes formas na ocorrecircncia de um mesmo gecircnero Mas vale ressaltar que os

elementos primaacuterios eram portadores das caracteriacutesticas fundamentais de um

gecircnero Portanto os mesmos toacutepoi poderiam ser encontrados em diferentes

formatos de gecircneros ou entatildeo aparecer em um mesmo tipo de gecircnero de forma

variada da elaboraccedilatildeo mas mantendo a caracteriacutestica central do tema pretendido

Observa-se entatildeo que na Antiguidade os discursos se organizavam de acordo com

as instruccedilotildees da retoacuterica e da poeacutetica de forma interligada ou seja a retoacuterica era o

89

ponto central de fornecimento de ensinamentos tanto no campo da prosa quanto no

da poesia de modo integrado Na prosa os discursos eram deliberativos epidiacutedico

ou judiciaacuterio de acordo com as delimitaccedilotildees da retoacuterica Na poeacutetica a noccedilatildeo de

gecircnero era vinculada ao modo e forma de produzir a arte da poesia que seguia

modelos como fonte de um lugar comum Na obra Institutio Oratoria (II 4 1-4)

Quintiliano expotildee sobre os objetivos das instruccedilotildees da retoacuterica abordando o valor

das diferentes formas de narrativas no processo da composiccedilatildeo do discurso Satildeo

apontados trecircs tipos narrativa ficcional para uso da construccedilatildeo de trageacutedias e

comeacutedias narrativa realiacutestica que guarda semelhanccedila com a vida cotidiana como

explorado pela comeacutedia narrativa histoacuterica que representa a exposiccedilatildeo de

acontecimentos e fatos Assim os estudos retoacutericos favoreciam o campo da

literatura pelo uso da construccedilatildeo das narrativas poeacuteticas

Kennedy (1994 p 201) menciona que no iniacutecio da era augustana na literatura latina

identifica-se a influecircncia de exerciacutecios em composiccedilatildeo os quais se tornavam como

ferramentas para construccedilatildeo de gecircneros literaacuterios Kennedy (1994 p 2002) ressalta

que a repercussatildeo dos ensinos de composiccedilatildeo e a praacutetica dos exerciacutecios85 nas

escolas de retoacuterica eacute notada nas obras de Oviacutedio em especial na Metamorfoses

Nesta obra identifica-se o desenvlvimento de narrativas pelo uso de mitos

personificaccedilatildeo comparaccedilatildeo e outras caracteriacutesticas A obra de Oviacutedio eacute uma mostra

de como o uso de exerciacutecios e composiccedilatildeo era produtivo na criaccedilatildeo poeacutetica sem o

compromisso restrito de seguir modelos anteriores que se enquadrassem em um

determinado padratildeo

A partir da Antiguidade avanccedilos nos estudos no campo da linguagem se sucederam

e as questotildees sobre gecircnero tornaram-se relevantes nas pesquisas Bakhtin (2006 p

283) sustenta ldquoOs gecircneros do discurso organizam o nosso discurso quase da

mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos

a moldar o nosso discurso em formas de gecircnerordquo Seguindo ainda a abordagem de

Bahktin (2006 p286) sobre gecircnero do discurso nota-se que ldquoa concepccedilatildeo sobre a

forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado gecircnero do discurso

guia-nos no processo de nosso discursordquo o que significa dizer que a escolha de um

determinado gecircnero implica certas normas a ele vinculadas

85

Kennedy (1994 p 202) menciona que nas escolas de gramaacutetica e retoacuterica os exerciacutecios para preparaccedilatildeo de composiccedilatildeo eram chamados de progymnasmata e representavam a base para a declamaccedilatildeo como estaacutegio avanccedilado nas escolas de retoacuterica

90

Quanto ao uso das palavras em um determinado gecircnero Bakhtin (2006 p 293)

indica que dada palavra costuma funcionar de acordo com o gecircnero que a sustenta

pois ldquoeacute o eco da totalidade do gecircnero que ecoa na palavrardquo As palavras adquirem

expressividade no interior do discurso em funccedilatildeo das caracteriacutesticas de um gecircnero e

recebem os sentidos que o proacuteprio gecircnero estabelece Esta eacute uma razatildeo para o

funcionamento da polissemia na linguagem pois um mesmo termo pode variar de

sentido de acordo com o gecircnero de discurso que o abriga

Com base nas contribuiccedilotildees de Bakhtin os postulados desenvolvidos por

Maingueneau (2008 p 116) apontam que na enunciaccedilatildeo a cena geneacuterica eacute definida

pelo proacuteprio gecircnero sendo parte de um contexto em que os papeacuteis dos parceiros e

as finalidades da comunicaccedilatildeo satildeo definidos Pode-se considerar que a cena

enunciativa se estabelece em inteira relaccedilatildeo com o gecircnero do discurso pois a cada

gecircnero associam-se momentos e lugares especiacuteficos de enunciaccedilatildeo e um ritual

apropriado Desse modo os falantes aprendem a moldar a fala de acordo com as

formas do gecircnero e na comunicaccedilatildeo com o outro a identificar o gecircnero que se

estabelece na interaccedilatildeo

A identificaccedilatildeo do gecircnero na cena enunciativa eacute fundamental no estabelecimento da

compreensatildeo do texto Partindo desse princiacutepio toma-se como base no

desenvolvimento desta tese a concepccedilatildeo de gecircnero adotada pela anaacutelise do

discurso de base enunciativa Assim o gecircnero epistolograacutefico identificado na

produccedilatildeo de Secircneca e de Paulo torna-se o elemento de base para a investigaccedilatildeo

que interliga esses dois autores Vale destacar a importacircncia desse gecircnero no

primeiro seacuteculo de nossa era observando a ocorrecircncia de seu uso de acordo com

as conveniecircncias de cada autor Tambeacutem eacute relevante a identificaccedilatildeo do contexto

sociocultural que serve de base e fundamentaccedilatildeo para a produccedilatildeo da escrita

epistolar naquele momento

Na cultura heleniacutestica percebe-se certa flexibilidade no modo da escrita epistolar o

que torna possiacutevel a identificaccedilatildeo de diferentes escolhas na produccedilatildeo da

epistolografia resultando na diversidade de opccedilotildees do formato protocolar nas

variaccedilotildees da produccedilatildeo textual fatos esses que contribuem para ampliaccedilatildeo de

classificaccedilatildeo do proacuteprio gecircnero epistolar Pode ser observado que o uso do gecircnero

epistolar em Secircneca e Paulo apresenta caracteriacutesticas especiacuteficas de acordo com

os propoacutesitos que cada remetente focaliza para alcanccedilar seu destinataacuterio Por outro

91

vieacutes nota-se que permanece uma estrutura baacutesica que define e identifica o gecircnero

epistolar As epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio contecircm a saudaccedilatildeo breve Seneca Lucilio

suo salutem86 e a despedida Vale As de Paulo apresentam remetente e

destinataacuterio com saudaccedilotildees mais extensas e a despedida com recomendaccedilotildees Os

objetivos de Secircneca e de Paulo ao recorrer ao gecircnero epistolograacutefico direcionam

seus interesses ligados aos discursos constituintes que norteiam suas proacuteprias

escolhas

Essas questotildees apontadas satildeo destacadas logo a seguir nas discussotildees sobre a

inter-relaccedilatildeo entre gecircnero do discurso cenografia e ethos como base para a

constituiccedilatildeo enunciativa do discurso nas produccedilotildees das epiacutestolas de Paulo e de

Secircneca

43 CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO

A noccedilatildeo de cenografia eacute desenvolvida por Maingueneau (2008 p115) a partir de um

quadro teoacuterico que se insere em uma base enunciativa Para ele o termo cenografia

possui um conteuacutedo preciso diante do fenocircmeno denominado cena de enunciaccedilatildeo

de um texto O termo cenografia comporta radical grafia que no dizer de

Maingueneau (2012 p 253) ldquoremete a um processo fundador a inscriccedilatildeo

legitimadora de um texto em sua dupla relaccedilatildeo com a memoacuteria de uma enunciaccedilatildeo

que se situa na filiaccedilatildeo de outras enunciaccedilotildees e que reivindica certo tipo de

reempregordquo

No desenvolvimento de seus postulados como jaacute mencionado na p 82

Maingueneau fundamenta o conceito de enunciaccedilatildeo com base em Benveniste que

concebe a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo a partir dos trecircs elementos que compotildeem a

decircixis linguiacutestica EUTU ndash AQUI ndash AGORA Em analogia a este triacircngulo decircitico

linguiacutestico Maingueneau (1995 p 126) introduz o termo decircixis discursiva para

identificaccedilatildeo de locutor e destinataacuterio discursivos assim como a cronografia

(momento) e topografia (lugar) discursivos Com essa opccedilatildeo Maingueneau (1997

p42) aponta que a decircixis discursiva exerce um papel de acesso inicial agrave cenografia

a partir de um determinado posicionamento discursivo Na construccedilatildeo da cenografia 86

A saudaccedilatildeo e a despedida satildeo colocadas respectivamente no iniacutecio e fim de todas as epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio mas o tradutor Segurado e Campos apenas registra a despedida no final da primeira epiacutestola colocando em nota que no original vale eacute despedida padratildeo em todas as epiacutestolas A saudaccedilatildeo eacute uma forma bem simplificada de Secircneca ao desejar sauacutede a Luciacutelio cumprindo o modo protocolar da escrita romana de epiacutestola

92

as cenas validadas87 podem funcionar como enunciaccedilotildees anteriores das quais a

decircixis atual retira parte de sua legitimidade Quanto agraves cenas validadas na

composiccedilatildeo da cenografia Miangueneau (1997 p45) enfatiza que ldquolonge de ser

simplesmente um aparato retoacuterico esses processos de identificaccedilatildeo desempenham

um papel crucial no exerciacutecio da discursividaderdquo

A partir da noccedilatildeo de cenografia discursiva nota-se que as marcas empiacutericas da

decircixis linguiacutestica estabelecem seu lugar pontual na identificaccedilatildeo dos atores da

enunciaccedilatildeo em contexto espaccedilo-temporal As marcas linguiacutesticas de pessoa tempo

e lugar no discurso definem o ponto de partida do qual o leitor se apropria como

base para construccedilatildeo de sentidos Progressivamente o co-enunciador vai captando

a forma textual dos enunciados identificando certo distanciamento entre empiacuterico e

discursivo na linearidade do discurso se apropriando do fenocircmeno da discursividade

que a enunciaccedilatildeo possibilita

Maingueneau (2008a p 115-118) reafirma que a cena de enunciaccedilatildeo de um texto

associa trecircs cenas de fala A primeira trata da cena englobante sendo a que

caracteriza o tipo de discurso (literaacuterio poliacutetico religioso filosoacutefico) Nas epiacutestolas de

Secircneca o tipo de discurso que caracteriza a cena englobante eacute identificado como

discurso filosoacutefico Nas epiacutestolas de Paulo a cena englobante eacute associada ao

discurso religioso A segunda cena geneacuterica confronta o gecircnero de discurso que na

produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo eacute definido como gecircnero epistolar como eacute

tratado neste trabalho A terceira cena eacute a cenografia que se constitui na

enunciaccedilatildeo de acordo com o gecircnero do discurso e esta natildeo eacute imposta nem pelo tipo

de discurso e nem pelo gecircnero mas eacute instituiacuteda pelo proacuteprio discurso A cenografia

valida a enunciaccedilatildeo na forma linguiacutestica de conduccedilatildeo do discurso e tambeacutem eacute

confirmada por ela no transcorrer do ato enunciativo O leitor eacute capaz de identificar

a cenografia instaurada jaacute no iniacutecio do texto e no desenrolar da enunciaccedilatildeo torna-se

mais evidente sua compreensatildeo de que aquela eacute a cenografia que foi mobilizada

para fornecer o encaminhamento discursivo ao gecircnero do discurso

87

Na obra Novas Tendecircncias em Anaacutelise do Discurso Maingueneau (1997 p 42) faz uso do termo ldquodecircixis fundadorardquo no sentido de captaccedilatildeo de uma enunciaccedilatildeo anterior que se institui a favor da decircixis atual Nas obras que se seguiram Maingueneau usou o termo cenas validadas em lugar de decircixis fundadora Maingueneau (2012 p 255-256) expotildee que a cena de enunciaccedilatildeo validada pode se mostrar atraveacutes de citaccedilotildees menccedilotildees a outro texto marcas no proacuteprio texto que revindicam cenas de fala em outras enunciaccedilotildees antecedentes

93

A captaccedilatildeo da discursividade favorece a apreensatildeo do ethos pelo processo em que

a enunciaccedilatildeo se autolegitima ao instituir um enunciador e um co-enunciador de

acordo com um conteuacutedo desenvolvido no proacuteprio texto Ao enunciar o locutor

constroacutei sua proacutepria imagem em funccedilatildeo da que ele constroacutei do leitor e nesse

aspecto o enunciador se apropria de representaccedilotildees sociais valorizadas pelos seus

interlocutores Charaudeau (2006 p 115) observa que ldquoo ethos relaciona-se ao

cruzamento de olhares olhar do outro sobre aquele que fala olhar daquele que fala

sobre a maneira que ele pensa que o outro o vecircrdquo

Eacute pertinente observar que o uso do gecircnero epistolar nos discursos de Secircneca e

Paulo eacute influenciado pelo modo como se constitui a cenografia na cena enunciativa

contribuindo para caracterizaccedilatildeo de modos distintos de produccedilatildeo do gecircnero

epistolar Nas epiacutestolas de Secircneca a identificaccedilatildeo eacute de uso do gecircnero epistolar

filosoacutefico enquanto nas epiacutestolas de Paulo o discurso eacute designado como gecircnero

epistolar de aconselhamento Partindo da constituiccedilatildeo da cenografia pouco a pouco

o enunciador (remetente) desenvolve sua reflexatildeo a partir do ponto lanccedilado no

introito da epiacutestola com vistas a alcanccedilar seus propoacutesitos na interlocuccedilatildeo com o co-

enunciador (destinataacuterio)

A concepccedilatildeo de ethos nos postulados da anaacutelise do discurso de base enunciativa

toma como ponto de partida a concepccedilatildeo de ecircthos retoacuterico88 na Antiguidade

Habinek (2005 p 82 83) lembra que Isoacutecrates relacionava a eloquecircncia ao caraacuteter

individual do orador sendo fundamental o fato de que persuadir o outro significa

falar com autoridade como evidecircncia do proacuteprio exemplo O homem eloquente eacute

considerado capaz quando examina os problemas com suas proacuteprias habilidades

Mediante esta expectativa da retoacuterica Isoacutecrates enfocava aspectos externos e

internos do caraacuteter do orador Para ele o discurso era o guia das accedilotildees e do

pensamento A partir dessas concepccedilotildees interior e exterior seriam dois lados de

uma mesma moeda sendo indissociaacutevel um bom homem um bom caraacuteter e um

bom orador

88

Na Antiguidade o conceito de ethos retoacuterico eacute ligado agrave oratoacuteria e na nova retoacuterica e anaacutelise do discurso esse conceito eacute aplicado tambeacutem ao discurso em forma textual Eacute nessa perspectiva atual que a categoria de ethos torna-se viaacutevel na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Em anaacutelise do discurso o termo natildeo eacute acentuado por ser abrangente no seu significado incluindo os diferentes sentidos de uso na Antiguidade

94

Na concepccedilatildeo de Ciacutecero (De Oratore I V 17-19) a postura do orador (ecircthos) estaacute

inteiramente atrelada ao tipo de audiecircncia (paacutethos) visto que o orador precisa estar

ligado aos interesses de tal audiecircncia para conseguir alcanccedilaacute-la Assim a

eloquecircncia se constitui em duas dimensotildees a eacutetica que direciona a conduta do

orador a outra dimensatildeo se estabelece no campo da emoccedilatildeo tanto do ecircthos

daquele que se dirige ao ouvinte quanto a reaccedilatildeo que faz despertar nele De acordo

com esse ritual as manifestaccedilotildees corporais do orador causam efeito na recepccedilatildeo do

ouvinte

Quintiliano menciona sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves terminologias ἦθος (ecircthos) e πάθος

(paacutethos) como usadas de forma mais recorrente no grego Ele identificou mores

como equivalente de ecircthos e sugere que alguns aspectos deveriam ser

acrescentados aos significados desses termos usados pelos oradores antigos e os

de seu tempo jaacute que a relaccedilatildeo oradorouvinte deveria ser pensada de forma mais

ampla (Ins Or VI 2 8) Quintiliano expotildee suas ideias acerca de suas concepccedilotildees

de ecircthos e paacutethos e quando ele analisa tal relaccedilatildeo ele pondera que a caracteriacutestica

que os diferencia tem como base o lugar que cada um ocupa no efeito do discurso

na oratoacuteria Entatildeo agrave medida que o orador expotildee o seu discurso tambeacutem marcas de

seu caraacuteter satildeo mostradas diante dos ouvintes Quintiliano defende que o orador

deveria ser afaacutevel e humano dirigindo-se ao puacuteblico de maneira suave e sem

arrogacircncia e que o seu discurso natildeo fosse uma vatilde repeticcedilatildeo mas expressado com

sinceridade Por um lado atraveacutes do ecircthos do orador os ouvintes deveriam ser

tocados em seus sentimentos (paacutethos) de tal forma que o discurso pudesse ser

convincente Por outro lado o orador (ecircthos) deveria demonstrar eacutetica e moderaccedilatildeo

para permitir-lhe agir com sabedoria mediante qualquer tipo de ouvinte Por isso as

instruccedilotildees de Quintiliano natildeo se limitam somente ao discurso juriacutedico mas se

aplicam a qualquer discurso (Inst Or VI 2 9-18)

Foucault (2010a p342) identifica em sua anaacutelise que Quintiliano considerava que a

teacutekhne que integrava a retoacuterica deveria ser indexada agrave verdade Poreacutem a verdade

referida por ele natildeo eacute aquela que estaacute contida no discurso de quem fala mas a

verdade tal como eacute conhecida por aquele que fala Portanto as qualidades de um

ecircthos satildeo determinantes para o efeito de verdade sustentado pelo orador

Foucault (2004) identifica que as consideraccedilotildees sobre subjetivaccedilatildeo do ecircthos

naquele contexto do primeiro seacuteculo dC estavam diretamente ligadas agraves

95

concepccedilotildees do binocircmio filosofia e retoacuterica Foucault (2004 p147) observa que os

conhecimentos selecionados em uma perspectiva da formaccedilatildeo moral seriam

adquiridos e internalizados pelo indiviacuteduo Assim tais conhecimentos poderiam ser

adquiridos atraveacutes dos hupomnecircmata resultante da observaccedilatildeo das leituras das

anotaccedilotildees e a incorporaccedilatildeo do jaacute-dito Todo esse processo contribuiacutea para a

internalizaccedilatildeo daquilo que o sujeito elaborava e apreendia como discurso

verdadeiro Por isso a praacutetica da leitura e da escrita eacute capaz de produzir o ethos e

modificar a maneira de ser de algueacutem Portanto a funccedilatildeo etopoieacutetica pode ser vista

como accedilatildeo e efeito do ethos ou seja a maneira de ser de um indiviacuteduo e o modo de

se mostrar diante do outro demonstrando que subjetividade e ethos satildeo

manifestados retoricamente no discurso

A partir de uma visatildeo da heranccedila retoacuterica como base para as formulaccedilotildees sobre

argumentaccedilatildeo nos estudos atuais Amossy (2005 p 122) coloca em pauta a trilogia

lanccedilada por Aristoacuteteles ecircthos paacutethos e loacutegos Esse retorno ao passado natildeo se

prende exclusivamente agraves contribuiccedilotildees herdadas de Aristoacuteteles mas se volta

tambeacutem para as modificaccedilotildees desses pressupostos nos trabalhos de Ciacutecero e

Quintiliano De acordo com essas concepccedilotildees de Amossy o ethos nos postulados

da anaacutelise do discurso eacute visto de forma que abrange tanto os postulados da retoacuterica

na Antiguidade quanto os desenvolvidos a partir da nova retoacuterica

Os estudos da nova retoacuterica desenvolvidos a partir de Perelman e Olbrechts-Tyteca

fornecem para os estudos de Maingueneau o embasamento para ampliaccedilatildeo da

noccedilatildeo de ethos para o texto escrito concebendo o discurso como uma enunciaccedilatildeo

Desse modo Maingueneau (2005 p 69) defende que o ethos pode ser apreendido

tanto no discurso oral quanto no escrito O texto embora soacute escrito eacute sustentado

por uma lsquovozrsquo e um lsquocorpo enunciantersquo89 e ldquoa noccedilatildeo de ethos aleacutem da persuasatildeo

por argumentos permite de fato refletir sobre o processo mais geral da adesatildeo de

sujeitos a uma certa posiccedilatildeo discursivardquo

89

Ao se referir agrave expressatildeo ldquocorpo enuncianterdquo Maingueneau (2005 p 72-73) lanccedila matildeo do conceito de incorporaccedilatildeo para designar a maneira pela qual o co-enunciador se relaciona com o ethos de um discurso que pode atuar em trecircs registros indissociaacuteveis Por um lado a enunciaccedilatildeo do texto confere uma corporalidade ao fiador cuja figura o leitor deve construir com base em indiacutecios tectuais Por outro lado o co-enunciador incorpora assimila um conjunto de esquemas que correspondem agrave maneira especiacutefica de relacionar-se com o mundo habitando em seu proacuteprio corpo O texto natildeo eacute para ser contemplado ele eacute enunciaccedilatildeo voltada para um co-enunciador que eacute necessaacuterio mobilizar para fazecirc-lo aderir fisicamente a um certo universo de sentido

96

Sintetizando e inter-relacionando as abordagens claacutessicas sobre ecircthos torna-se

pertinente pensar que o ecircthos mostrado pode ser concebido tanto como o ecircthos

apontado por Aristoacuteteles quanto o ecircthos na perspectiva de Ciacutecero No que diz

respeito ao ecircthos defendido por Quintiliano este se identifica com o ethos preacute-

discursivo Maingueneau observa que essas formas de apreensatildeo do ethos podem

se apresentar em uma interligaccedilatildeo entre essas instacircncias

O ethos de um discurso resulta da interaccedilatildeo de diversos fatores ethos preacute-discursivo ethos discursivo (ethos mostrado) mas tambeacutem os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua proacutepria enunciaccedilatildeo (ethos dito) ndash diretamente (ldquoeacute um amigo que lhes falardquo) ou indiretamente por meio de metaacuteforas ou de alusotildees a outras cenas de fala por exemplo A distinccedilatildeo entre ethos dito e mostrado se inscreve nos extremos de uma linha contiacutenua uma vez que eacute impossiacutevel definir uma fronteira niacutetida entre o ldquoditordquo sugerido e o puramente ldquomostradordquo pela enunciaccedilatildeo (MAINGUENEAU 2008a p 71)

O ethos no texto escrito eacute identificado de acordo com sua forma de expressatildeo e

construccedilatildeo do discurso As escolhas do leacutexico das adjetivaccedilotildees dos verbos e das

construccedilotildees sintaacuteticas revelam o enunciador natildeo havendo separaccedilatildeo entre ethos e

coacutedigo de linguagem proacuteprios de uma posiccedilatildeo discursiva que se identifica no

discurso No texto os recursos linguiacutesticos satildeo marcas que propiciam o

reconhecimento do ethos e sua relaccedilatildeo com o leitor-modelo de acordo com uma

imagem preacute-construiacuteda

Nessa abordagem o ethos eacute integrante da cena de enunciaccedilatildeo para aleacutem de seu

papel na instacircncia argumentativa do discurso como o proacuteprio Maingueneau (2005

p69) afirma ldquoAleacutem da persuasatildeo por argumentos a noccedilatildeo de ethos permite de

fato refletir sobre o processo mais geral da adesatildeo de sujeitos a certa posiccedilatildeo

discursivardquo Essas concepccedilotildees de ethos adotadas por Maingueneau servem de

paracircmetro para anaacutelise neste trabalho pois elas conjugam os diferentes sentidos de

ethos como tratados na Antiguidade greco-romana

Essa visatildeo bem sumaacuteria da integraccedilatildeo entre gecircnero do discurso cenografia e ethos

contribui para a apreensatildeo do gecircnero epistolograacutefico nas produccedilotildees dos discursos

de Secircneca e Paulo e o modo da inter-relaccedilatildeo na constituiccedilatildeo da cenografia e ethos

97

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE I

Esta primeira parte cumpre a funccedilatildeo de um embasamento teoacuterico que fornece

sustentaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo desta pesquisa A reuniatildeo de colocaccedilotildees e posiccedilotildees de

diferentes pesquisadores oriunda de colaboraccedilotildees variadas conjunga postulados

de eficaacutecia na Antiguidade e redefiniccedilatildeo na atualidade como sucede nos estudos da

retoacuterica

Foucault representa um ponto de interligaccedilatildeo com a Antiguidade ao estabelecer seu

propoacutesito em analisar a constituiccedilatildeo de sujeito e verdade focalizando a filosofia

socraacutetica como fundadora da noccedilatildeo do cuidado de si e os desdobramentos do

aforisma ldquoconheccedila-te a ti mesmordquo nos primeiros seacuteculos de nossa era

Foucault (2004 2010a) mostra que a escrita de si o cuidado de si e do outro satildeo

caracteriacutesticas inerentes agrave escrita epistolar Assim o gecircnero epistolar eacute um espaccedilo

que se abre para a comunicaccedilatildeo entre ausentes e a oportunidade para exposiccedilatildeo

da proacutepria subjetividade na forma como se mostra o ethos

A instituiccedilatildeo da cenografia na enunciaccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico contribui para a

verificaccedilatildeo do encadeamento que interliga ethos paacutethos e loacutegos ou seja

enunciador co-enunciador e discurso O papel da cenografia no gecircnero epistolar eacute

determinante na identificaccedilatildeo do subgecircnero Na enunciaccedilatildeo das epiacutestolas de

Secircneca identifica-se a cenografia de um tratado que fornece caracteriacutesticas para a

classificaccedilatildeo de uma epiacutestola filosoacutefica Na produccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo a

cenografia eacute de um manual de instruccedilotildees eacuteticas caracterizando uma epiacutestola de

aconselhamento

A retoacuterica integra o discurso atraveacutes dos recursos e modo como o enunciador

estabelece sua comunicaccedilatildeo com o co-enunciador Os argumentos retoacutericos servem

de sustentaccedilatildeo para o efeito de verdade que a argumentaccedilatildeo promove no discurso

Na funccedilatildeo de ativar o discurso verdadeiro a parresiacutea na sua forma original como

falar franco e sincero se torna fundamental para identificaccedilatildeo dos posicionamentos

no discurso assumidos por Secircneca e Paulo partindo do uso de um lugar comum

que eacute o ldquofalar francordquo

As discussotildees sobre retoacuterica na Antiguidade contribuem com algumas concepccedilotildees

desse tema como praticado entre gregos e romanos e ainda permite extrair

98

elementos das formulaccedilotildees teoacutericas da retoacuterica antiga que satildeo aplicaacuteveis aos

discursos como as noccedilotildees de ethos paacutethos e loacutegos Essa accedilatildeo de releitura da

retoacuterica antiga eacute exercida pela nova retoacuterica a qual exerce influecircncia tambeacutem nas

formulaccedilotildees dos postulados teoacutericos no surgimento da anaacutelise do discurso de base

enunciativa

Conclui-se que a abordagem que Maingueneau desenvolve sobre discursos

constituintes eacute aplicaacutevel agrave anaacutelise das epiacutestolas de Seacuteneca e de Paulo tendo em

vista a definiccedilatildeo do gecircnero de discurso subjugada ao discurso constituinte que o

institui Seguindo os postulados da anaacutelise do discurso de base enunciativa em

Secircneca o uso do gecircnero epistolar eacute produzido na esfera do discurso filosoacutefico e em

Paulo no discurso religioso A identificaccedilatildeo da cenografia eacute a chave que permite

observar as epiacutestolas de Secircneca como gecircnero epistolar filosoacutefico e as de Paulo

gecircnero epistolar de aconselhamento

A segunda parte a seguir situa a cena enunciativa geneacuterica que institui o gecircnero de

discurso o ethos e a cenografia Uma revisatildeo histoacuterica sobre gecircnero epistolograacutefico

se faz necessaacuteria para compreensatildeo da contextualizaccedilatildeo da escrita de Secircneca e

Paulo neste gecircnero e tambeacutem a identificaccedilatildeo do uso do termo epiacutestola como

praticado na Antiguidade

O conhecimento de parte do contexto histoacuterico em que Paulo e seus destinataacuterios

estatildeo inseridos eacute produtivo na construccedilatildeo de sentidos dos textos das epiacutestolas

dirigidas agrave igreja de Corinto Os dados histoacutericos contribuem para observaccedilatildeo da

construccedilatildeo discursiva da imagem do apoacutestolo Paulo no contexto de sua formaccedilatildeo

cultural e religiosa como heranccedila da influecircncia do periacuteodo Heleniacutestico As influecircncias

do periacuteodo Heleniacutestico tambeacutem satildeo marcadas na trajetoacuteria de Secircneca e seu

engajamento na filosofia estoica fornece significados para observaacute-lo na apropriaccedilatildeo

do discurso verdadeiro na escrita de si e do outro e na manifestaccedilatildeo do discurso A

identificaccedilatildeo do ambiente histoacuterico-cultural que serve de base para a formaccedilatildeo

educacional e moral na vida de Secircneca e de Paulo contribui para o entendimento da

constituiccedilatildeo do ethos de cada um deles dando suporte para o entendimento da

identificaccedilatildeo do posicionamento discursivo que cada um deles ocupa em seus

discursos

99

PARTE II

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CENA DA ENUNCIACcedilAtildeO NAS

EPIacuteSTOLAS DE PAULO E DE SEcircNECA

A ideia que temos da forma do nosso enunciado isto eacute de um gecircnero preciso do discurso dirige-nos em nosso processo discursivo

Bakhtin (2006 p 305)

A partir das contribuiccedilotildees da anaacutelise do discurso desenvolvidas por Maingueneau e

outros pesquisadores os discursos de Paulo e Secircneca produzidos via epiacutestolas

seratildeo analisados na esfera do acontecimento enunciativo ou seja o sujeito enuncia

situado em um determinado posicionamento discursivo dirigindo-se a um TU que o

EU identifica como ponto alvo do seu proacuteprio discurso O espaccedilo de onde se fala eacute

determinado por um contexto histoacuterico-social e o tempo da enunciaccedilatildeo se localiza

nos acontecimentos que antecedem e atualizam a enunciaccedilatildeo

Assim nesta parte da tese o foco eacute o estabelecimento da reuniatildeo de elementos que

contribuam para identificar historicamente o contexto em que Paulo e Secircneca

podem ser situados na vigecircncia do seacuteculo I dC Tais elementos estatildeo relacionados

aos campos que englobam poliacutetica educaccedilatildeo literatura filosofia e religiatildeo

Todo esse conjunto de dados que procura situar as aspiraccedilotildees e os valores eacuteticos

da moral idealizados pelo cidadatildeo greco-romano serve como base empiacuterica ou

seja o ponto de partida para compreensatildeo das praacuteticas discursivas que funcionam

como identificaccedilatildeo de posicionamentos que cada enunciador ocupa na produccedilatildeo de

seu texto A intensidade da heranccedila do pensamento filosoacutefico platocircnico e aristoteacutelico

influencia o surgimento e continuidade das correntes filosoacuteficas que se voltam para a

eacutetica como conduta o que resulta na tendecircncia de uma adesatildeo ora ao pensamento

estoico ora ao epicurista acrescentando-se o aproveitamento de outras tendecircncias

pitagoacutericas e ciacutenicas Todos os campos do saber com suas ligaccedilotildees e ramificaccedilotildees

tecircm como suporte e sustentaccedilatildeo a base na influecircncia heleniacutestica que contribui para

conjugar os valores esteacuteticos morais sociais poliacuteticos como um ideal a ser buscado

e alcanccedilado

100

O discurso filosoacutefico assumido por Secircneca e o religioso por Paulo satildeo tipos de

discurso que se estabelecem na esfera dos discursos constituintes Assim como jaacute

observado o gecircnero epistolograacutefico como recurso de organizaccedilatildeo dos discursos de

Secircneca e de Paulo satildeo identificados em campos discursivos diferentes de acordo

com o tipo de discurso que os abriga Entatildeo o gecircnero epistolar eacute um recurso do

registro de manifestaccedilatildeo da linguagem que pode ser identificado como um gecircnero

adaptaacutevel aos diferentes tipos de discurso filosoacutefico religioso literaacuterio e outros O

discurso constituinte eacute responsaacutevel pelo posicionamento central do enunciador

apontando para a origem daquele tipo de discurso em uso

Como jaacute apontado neste trabalho na produccedilatildeo do gecircnero do discurso configuram-se

dois elementos essenciais para o desenvolvimento do processo enunciativo a

cenografia e o ethos pois estes satildeo constituiacutedos em harmonia com o discurso

constituinte que os sustenta Sendo a cenografia uma categoria que se legitima com

base nas trecircs instacircncias enunciativas ela se estabelece no triacircngulo da enunciaccedilatildeo

EU-TU AQUI AGORA Estas questotildees relembradas neste ponto da pesquisa

interligam os postulados de base enunciativa com as condiccedilotildees de produccedilatildeo no

espaccedilo e momento em que Paulo e Secircneca pronunciam seus discursos

As condiccedilotildees de produccedilatildeo contribuem para a realizaccedilatildeo linguiacutestica do discurso pois

segundo Charaudeau e Maingueneau (2008 p 115) por um lado ldquoo sujeito falante eacute

sempre parcialmente sobredeterminado pelos saberes crenccedilas e valores que

circulam no grupo social ao qual pertencerdquo por outro lado ldquoele eacute igualmente

sobredeterminado pelos dispositivos de comunicaccedilatildeo nos quais se insere para falar

e que lhe impotildeem certos lugares papeis e comportamentosrdquo

Conveacutem situar o gecircnero epistolograacutefico como recurso de comunicaccedilatildeo no primeiro

seacuteculo de nossa era com suas funccedilotildees variadas que tambeacutem possibilitavam a

circulaccedilatildeo do pensamento de um enunciador remetente que mesmo tendo um

destinataacuterio exclusivo como Luciacutelio a quem Secircneca se dirige ou a igreja de Corinto

a quem Paulo escreve tornava-se relevante o seu valor puacuteblico em relaccedilatildeo aos

possiacuteveis e diferentes leitores como destinataacuterios Este eacute um assunto que na

atualidade ainda se discute na tentativa de se estabelecer uma diferenccedila entre carta

e epiacutestola enquadrando a carta no setor privado e a epiacutestola no puacuteblico Como

contribuiccedilatildeo para esses questionamentos este tema eacute abordado situando

101

diferentes posicionamentos procurando um acordo que melhor se enquadre agrave

concepccedilatildeo de gecircnero epistolar na Antiguidade

Segundo Guarniere (2016 p 51) mesmo natildeo havendo uma fixaccedilatildeo determinada de

gecircnero epistolar na Antiguidade a formaccedilatildeo retoacuterica oferecia ao escritor de

epiacutestolas certas ferramentes para o manejo das convenccedilotildees da epistolografia Por

isso alguns tipos de epiacutestolas se ajustavam ao modo do discurso deliberativo

quando o objetivo maior eram os conselhos as admoestaccedilotildees e as reflexotildees dos

valores morais Ainda os conteuacutedos poderiam estar voltados para as questotildees de

amizade reconhecimento agradecimento e outros sendo mais adequados ao

discurso epidiacutetico Decerto os trecircs modos retoacutericos de organizaccedilatildeo dos discursos

judiciaacuterio epidiacutetico e deliberativo satildeo interligados na composiccedilatildeo epistolar Estes

discursos satildeo fundamentais como definiccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da correspondecircncia e

a relaccedilatildeo com a retoacuterica antiga

A ideia de epiacutestola eacute abrangente na Antiguidade em especial o sentido originaacuterio

do grego cuja finalidade eacute o envio de uma mensagem O significado se manteacutem de

acordo com os propoacutesitos originais mas diversifica-se nas vaacuterias modalidades das

formas de circulaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo Alguns desses aspectos satildeo abordados a

seguir na busca de uma compreensatildeo da importacircncia do desempenho do gecircnero

epistolar em sua trajetoacuteria na Antiguidade

102

2 A EPISTOLOGRAFIA SEU LUGAR NA ANTIGUIDADE E SUA

CONTINUIDADE NA HISTOacuteRIA

Eacute bem visiacutevel na histoacuteria dos antigos gregos a praacutetica do uso do gecircnero

epistolograacutefico tendo uma diversidade de caracteriacutesticas e objetivos Na sua

essecircncia as finalidades eram de manutenccedilatildeo do contato entre pessoas distantes

aconselhamento advertecircncia exortaccedilatildeo sendo as epiacutestolas portadoras de temas

relevantes no campo da filosofia doutrinaacuteria da poliacutetica da moral da religiatildeo e como

fonte documental nas transaccedilotildees de negoacutecios Um exemplo notoacuterio se encontra na

coleccedilatildeo de epiacutestolas de Platatildeo90 a diferentes destinataacuterios com destaque para suas

discussotildees filosoacuteficas e poliacuteticas tendo Dioniacutesio I rei de Siracusa o lugar de

personagem em destaque Em sua correspondecircncia Platatildeo faz referecircncias ao

costume do envio de epiacutestolas defendendo o valor destas em detrimento da

distacircncia como causa da ausecircncia entre amigos Na epiacutestola III ele faz a seguinte

colocaccedilatildeo [] ldquona verdade natildeo ousaria relembrar quantas cartas enviastes tu e

outros solicitados por ti da Itaacutelia e da Siciacutelia tanto a familiares como a amigos

meusrdquo91 Nesta mesma missiva Platatildeo levanta a questatildeo sobre o protocolo da

introduccedilatildeo de uma epiacutestola ldquoterei eu encontrado para minha carta a melhor forma de

saudaccedilatildeo Ou escreverei antes como eacute meu costume quando me dirijo aos meus

amigos lsquoBoa sortersquordquo

Quanto agraves origens do uso de epiacutestolas Alexandre Juacutenior fornece as seguintes

informaccedilotildees

O termo epistolē (epiacutestola ou carta) referia-se originalmente a uma mensagem oral enviada por um arauto ou mensageiro Mas acabou por se aplicar sobretudo aos documentos escritos enviados por alguma entidade ou instituiccedilatildeo a um destinataacuterio especiacutefico O verbo epistellein significava simplesmente lsquotransmitir ou enviar uma mensagemrsquo dar ou receber ordens por escrito [] Com o tempo as cartas vieram a revelar-se instrumentos privilegiados de comunicaccedilatildeo mais ou menos literaacuteria [] Na eacutepoca heleniacutestica era ainda mais corrente a literatura epistolar tanto oficial como privada Augusto desenvolveu um sistema de correios cujo serviccedilo se prestava por jovens na idade militar Para o tornar mais funcional e eficaz o imperador construiu uma rede de estalagens por terra e de barcos por mar

90

As tradutoras portuguesas Conceiccedilatildeo Gomes da Silva e Maria Adozinha Melo optaram por traduzir o termo grego epiacutestolas como cartas na obra de Platatildeo Na coleccedilatildeo as trecircs primeiras cartas e a uacuteltima satildeo escritas de Platatildeo para o rei Dioniacutesio I denominado tirano de Siracusa O teor das cartas eacute de conselhos repreensatildeo e discussatildeo quanto aos temas filosoacuteficos e poliacuteticos Os outros destinataacuterios satildeo Dion de Siracusa e seus amigos e parentes Hermias Aristodoro Lodamas e Arquitas de Tarento

103

devidamente protegidos para fazer que o correio chegasse ao seu destino com a maior celeridade e seguranccedila possiacutevel Era tatildeo corrente a circulaccedilatildeo epistolar no seacuteculo I aC que soacute de Ciacutecero haacute notiacutecia de mais de oitocentas cartas (ALEXANDRE JR 2015 p 167)

A praacutetica do envio de correspondecircncias como mostram os dados fornecidos por

Alexandre Jr eacute identificada tambeacutem nos textos biacuteblicos mais tardios na eacutepoca do

Velho Testamento No tempo do cativeiro babilocircnico havia o costume do envio de

um arauto para conduzir uma mensagem como narrado no livro de Daniel92 Aleacutem

desse fato no livro de Baruc o capiacutetulo quatro eacute composto pela citaccedilatildeo da coacutepia de

uma epiacutestola do profeta Jeremias aos judeus A introduccedilatildeo do capiacutetulo tem o

seguinte teor ldquocoacutepia da carta que Jeremias enviou aos que iam ser levados para

Babilocircnia como prisioneiros pelo rei dos babilocircnios a fim de lhes dar a conhecer o

que lhe fora ordenado por Deusrdquo (Baruc 61)93

Situados no periacuteodo Heleniacutestico os livros biacuteblicos de I e II Macabeus contecircm

informaccedilotildees sobre o envio de mensagens atraveacutes de epiacutestolas sendo protocolar o

tipo de saudaccedilatildeo na introduccedilatildeo ldquoSauacutede aos nossos irmatildeos judeus que estatildeo no

Egito Seus irmatildeos os judeus residentes em Jerusaleacutem e no paiacutes de Judaacute auguram-

lhes uma paz venturosardquo (II Macabeus 11)94 O teor das correspondecircncias ou visava

uma comunicaccedilatildeo entre os judeus de Jerusaleacutem com os do Egito e outros ou

mesmo primava pelas relaccedilotildees com setor poliacutetico interno e externo e comunicaccedilatildeo

com outras naccedilotildees No tratamento das questotildees de aproximaccedilotildees poliacuteticas a

epiacutestola do rei Antiacuteoco IV tem o seguinte introito ldquoaos honrados cidadatildeos judeus da

parte de Antiacuteoco rei e chefe do exeacutercito muitas saudaccedilotildees e votos de sauacutede e bem

estarrdquo (2 Macabeus 919)95 Estas indicaccedilotildees textuais servem como forma de

92

ldquoE o arauto apregoava em alta voz ordena-se a voacutes oacute povos naccedilotildees e liacutenguas Quando ouvirdes o som da buzina da flauta da harpa da sambuca do salteacuterio da gaita de foles e de toda a espeacutecie de muacutesica prostrar-vos-eis e adorareis a estaacutetua de ouro que o rei Nabucodonosor tem levantado E qualquer que natildeo se prostrar e natildeo a adorar seraacute na mesma hora lanccedilado dentro da fornalha de fogo ardenterdquo (Daniel 34-6) 93

Os textos citados estatildeo contidos na traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem Na Nova Vulgata o termo traduzido como carta no portuguecircs aparece como epistula em latim Exemplum epistulae quam mi sit Ieremias ad abducendos cap tivos in Babyloniam a rege Babyloniorum ut nuntiaret illis secundum quod praeceptum est ei a Deo (Baruc 61) 94

De acordo com nota deste texto na Biacuteblia de Jerusaleacutem as epiacutestolas dos judeus de Jerusaleacutem aos do Egito tinham como objetivo conclamar os judeus para a celebraccedilatildeo de dedicaccedilatildeo do templo Segundo Leacutevecircque (1987 p 47) Antiacuteoco IV partidaacuterio da helenizaccedilatildeo dominou Jerusaleacutem construiu um ginaacutesio ao peacute do Monte Siatildeo profanou o templo com sacrifiacutecios sangrentos e laacute instalou uma estaacutetua de zeus Deu-se entatildeo a revolta liderada por Judas Macabeu e Jerusaleacutem foi retomada em 165 aC Depois do templo restaurado foi realizada a festa de dedicaccedilatildeo 95

Na narrativa do livro de 2 Macabeus 9 o rei Antiacuteoco IV depois de derrotado em suas uacuteltimas batalhas ficou gravemente doente e antes de sua morte escreveu aos judeus uma epiacutestola de conciliaccedilatildeo

104

exemplo do protocolo de introduccedilatildeo de uma epiacutestola no periacuteodo Heleniacutestico aleacutem de

mostrar tambeacutem que no texto da Septuaginta o termo epiacutestola (ἐπιστολὴ) eacute

recorrente Ocorre nas traduccedilotildees dessas citaccedilotildees biacuteblicas para a liacutengua portuguesa

a opccedilatildeo pelo termo carta e natildeo epiacutestola Tanto no comentaacuterio de Alexandre Juacutenior

como nas citaccedilotildees indicadas de 2 Macabeus estatildeo contidas informaccedilotildees sobre a

praacutetica do recurso da epistolografia como meio de comunicaccedilatildeo na Antiguidade mas

as referecircncias aos termos epiacutestola e carta satildeo indistintas sendo os vocaacutebulos em

pauta tratados como sinocircnimos

Houmlrster (2012 p 47) afirma que uso dos termos carta e epiacutestola na Antiguidade

ofereciam sentidos distintos em suas particularidades Poreacutem este autor natildeo avanccedila

em relaccedilatildeo agrave apresentaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo desses usos nos textos em suas origens

Desse modo o sentido de epiacutestola transita paralelo ao de carta nas opccedilotildees da

escolha linguiacutestica sendo este um ponto comum nos debates entre muitos

pesquisadores como seraacute visto mais adiante

Os registros sobre o uso da epistolografia na Antiguidade satildeo muito restritos A

produccedilatildeo de epiacutestolas era significativa mas existem poucas fontes para estudos

relacionados agraves especificidades dessas produccedilotildees Uma das poucas fontes

acessiacuteveis tem como base o texto de Demeacutetrio de Faleros96 De elocutione (Sobre o

estilo) em que ele toca brevemente em algumas questotildees sobre epistolografia De

saiacuteda no livro IV satildeo citadas as epiacutestolas de Aristoacuteteles como fortalecimento para a

ideia de que a epiacutestola tem base no princiacutepio do diaacutelogo Demeacutetrio usa a

terminologia em grego επιστολή (epiacutestola) mas nas traduccedilotildees para o inglecircs e

portuguecircs o termo eacute registrado como letter e carta Demeacutetrio pondera que natildeo se

pode negar a constituiccedilatildeo da epiacutestola como diaacutelogo mas acrescenta outras

caracteriacutesticas inerentes a esta

Mas que a carta tenha ao maacuteximo uma mostra do caraacuteter tal como o diaacutelogo Pois cada qual escreve uma carta quase como uma imagem de sua alma Eacute de fato possiacutevel notar o caraacuteter do escritor em qualquer discurso poreacutem em nenhum outro como na carta (Sobre o estilo IV 227)

97

Em sua anaacutelise da correspondecircncia como escrita de si Foucault (2004 p 156)

ressalta a concepccedilatildeo de Demeacutetrio sobre a produccedilatildeo da epiacutestola e a importacircncia da

96

Demeacutetrio de Faleros (350 aC - 282 aC) Na obra Sobre o estilo introduz algumas consideraccedilotildees sobre epistolografia usando o termo grego επιστολάςacute ldquoE uma vez que o tipo epistolar requer simplicidade tambeacutem a seu respeito falaremosrdquo (Sobre o estilo IV 223) 97

Todas as traduccedilotildees de Demeacutetrio de Faleros satildeo de Gustavo Arauacutejo de Freitas (2011) que na traduccedilatildeo opta pelo tiacutetulo Sobre o estilo

105

manutenccedilatildeo de um estilo simples que permita e favoreccedila a revelaccedilatildeo da alma

Demeacutetrio comenta a respeito de diferentes tipos de epiacutestolas que circulavam em sua

eacutepoca e faz menccedilatildeo agraves de Platatildeo e Aristoacuteteles

Mas como tambeacutem agraves vezes escrevemos a cidades e a reis que se admita que tais cartas sejam pouco mais elevadas pois se deve ter em vista tambeacutem o destinataacuterio Elevada sim mas natildeo a ponto de se tornar em lugar de uma carta um tratado como ocorre com aquelas de Aristoacuteteles a Alexandre ou com a de Platatildeo aos amigos de Diacuteon (Sobre o estilo IV

234)98

Um questionamento eacute levantado quanto agraves finalidades da escrita das epiacutestolas e

Demeacutetrio defende que as produccedilotildees destas deveriam seguir alguns paracircmetros que

pudessem identificaacute-las em seus objetivos principais Ao extrapolar em sua extensatildeo

e e desenvolvimentoo dos assuntos o que a princiacutepio seria uma epiacutestola passaria a

ser um tratado Possivelmente essa colocaccedilatildeo de Demeacutetrio tem influenciado

autores que nomeiam determinadas epiacutestolas como tratado

O que se nota nas colocaccedilotildees de Demeacutetrio eacute a preocupaccedilatildeo de uma especificaccedilatildeo

da aplicaccedilatildeo do termo epiacutestola que na praacutetica era usado de forma abrangente e

sem nenhuma designaccedilatildeo de acordo com os diferentes tipos de correspondecircncia

Vale enfatizar que essa observaccedilatildeo de Demeacutetrio evidencia a praacutetica do uso do termo

epiacutestola para qualquer tipo de correspondecircncia havendo estabilidade no uso do

termo sem ser trocado por outro equivalente Esse fato contribui para a relevacircncia

no cuidado ao transportar termos de uso exclusivo na Antiguidade para a atualidade

como ocorre na traduccedilatildeo da designaccedilatildeo epiacutestola como letter em inglecircs e carta no

portuguecircs provocando um distanciamento do caraacuteter original do vocaacutebulo Esta

pode ser uma das questotildees que interferem nas discussotildees atuais sobre a

delimitaccedilatildeo de sentidos dos termos epiacutestolalettercarta como abordado nas

discussotildees que se seguem

Existe um interesse no acircmbito da academia em decifrar o funcionamento da

correspondecircncia na Antiguidade Os papiros de Oxirrinco99 descobertos no final do

seacuteculo XVIII satildeo considerados uma produtiva fonte de pesquisa dos textos antigos

98

Como apontado por Demeacutetrio a carta VII De Platatildeo aos amigos e parentes de Dion eacute muito extensa pois Platatildeo narra com detalhes as viagens o seu relacionamento poliacutetico em Siracusa daacute conselhos e oferece ensinamentos de seus princiacutepios filosoacuteficos 99

Os papiros de Oxirrinco (Oxyrhychus papyri) satildeo uma seacuterie de manuscritos a maioria em papiro descobertos nas escavaccedilotildees arqueoloacutegicas no Egito a partir de 18961897 Trapp (2003 p 7-11) menciona a importacircncia desta descoberta para a identificaccedilatildeo de tipos de epistolas escritas em grego e em latim na Antiguidade que tratam de diferentes assuntos tanto no sentido puacuteblico quanto no privado

106

trazendo tambeacutem a discussatildeo sobre a correspondecircncia classificada como epiacutestola

Deissmann eacute um dos pesquisadores nesse campo que faz uma separaccedilatildeo entre

carta e epiacutestola Para este autor o que distingue ambas eacute o fato de somente a

epiacutestola ser literaacuteria Para Deissmann (1927 p 218) o natildeo literaacuterio focaliza em

especial os parceiros da comunicaccedilatildeo emissaacuterio e destinataacuterio A carta por sua

finalidade natildeo literaacuteria se reveste de caraacuteter particular com um objetivo direcionado

e estipulado A epiacutestola eacute generalizada quanto ao seu puacuteblico alvo tendo um

objetivo mais abrangente quanto ao alcance de possiacuteveis destinataacuterios razatildeo que

justifica sua caracterizaccedilatildeo como literaacuteria100

Deissmann (1927 p 225) alega que com o recurso da anaacutelise dos documentos dos

textos biacuteblicos encontrados foi feita uma comparaccedilatildeo entre as cartas de Paulo e as

dos demais apoacutestolos Esse material serviu de fonte para sua proacutepria conclusatildeo de

que somente as cartas de Paulo eram dirigidas agraves comunidades especiacuteficas ou a

uma pessoa como a carta de Filemom101 natildeo sendo consideradas literaacuterias As

outras correspondecircncias satildeo de caraacuteter mais geral em relaccedilatildeo aos destinataacuterios

podendo ser classificadas como epiacutestolas por serem literaacuterias Hale discorda dessa

posiccedilatildeo de Deissmann com as seguintes alegaccedilotildees

Deissmann com esta teoria procurou mostrar que as Epistolas do Novo Testamento em especial as de Paulo eram na verdade cartas particulares e natildeo epiacutestolas Eacute de maneira geral aceito hoje que Paulo natildeo escreveu conscientemente neste sentido teacutecnico Ele escreveu para pessoas ou igrejas especiacuteficas com problemas especiacuteficos Contudo vecirc-se facilmente que as cartas de Paulo demonstram a autoridade apostoacutelica consciente que torna os conteuacutedos normativos para igrejas e pessoas de outras aacutereas e eacutepocas As cartas satildeo bem construiacutedas para demonstrarem um plano cuidadosamente elaborado Elas satildeo cartas particulares quanto ao tom ao espirito e ao propoacutesito contudo ao mesmo tempo elas satildeo obras-primas de composiccedilatildeo A extensatildeo media das cartas particulares naquela eacutepoca era de cerca de noventa palavras e a epiacutestola tinha a meacutedia de 200 palavras A carta mais curta de Paulo Filemom tem 335 palavras e a mais extensa Romanos 7101 Neste sentido as cartas de Paulo natildeo podem incidir dentro da categoria normal de uma carta regular Os teores de suas cartas pressupotildeem algo aleacutem de uma carta particular normal Deve ser acrescentado que os escritos de Paulo tecircm toda caracteriacutestica de uma carta particular mas a universalidade dos conteuacutedos fez com que eles fossem classificados sob o termo teacutecnico de composiccedilotildees literaacuterias conhecidas como epiacutestolas (HALE 1983 p 145)

100

A expressatildeo literaacuterio no contexto das discussotildees sobre carta e epiacutestola tem uma distinccedilatildeo de natildeo literaacuterio pela forma elaborada do tratamento dos assuntos podendo ser considerada uma produccedilatildeo artiacutestica enquanto seu oposto tem forma popular de tratamento dos conteuacutedos Pode-se pensar que o significado de literaacuterio fornecido por Deissmann (1927 p148) pode ser visto pelo acircmbito do institucional ou seja o que passa do acircmbito privado para o do puacuteblico via instituiccedilotildees de divulgaccedilatildeo 101

Na traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem o nome da uacuteltima epiacutestola da coleccedilatildeo de Paulo eacute traduzido como Filecircmon enquanto nas outras traduccedilotildees usadas nesta pesquisa o registro eacute Filemom

107

Outro pesquisador que se destaca assumindo tambeacutem a posiccedilatildeo da dualidade carta

e epiacutestola eacute Meechan (2004) Este toma como base em sua investigaccedilatildeo o

resultado de que as cartas descobertas nas escavaccedilotildees de Oxirrinco

representavam uma comunicaccedilatildeo privada entre pessoas que se encontravam

separadas pela distacircncia Os conteuacutedos das cartas eram emitidos de acordo com o

niacutevel de relacionamento entre os correspondentes Em determinadas cartas havia

uma reflexatildeo da vida pessoal do emissor revelando o grau do relacionamento em

relaccedilatildeo ao destinataacuterio A partir dessas evidecircncias Meechan (2004 p 40) coloca

uma diferenccedila entre carta e epiacutestola pois esta era considerada um documento

literaacuterio por ser de formato impessoal Este autor ainda reforccedila a distinccedilatildeo entre

carta e epiacutestola alegando que mesmo uma carta publicada natildeo perde seu caraacuteter

particular mas pode transformar-se em literatura enquanto a epiacutestola em sua

origem jaacute eacute caracterizada como literaacuteria

Trapp (2003 p 10) analisa o material linguiacutestico encontrado nos papiros das

escavaccedilotildees de Oxirrinco abordando um aspecto distinto de pesquisadores

anteriores Ele conclui que a variedade das cartas descobertas permite uma

comparaccedilatildeo entre elas em termos de forma e conteuacutedo Para este pesquisador o

valor do material encontrado se impotildee pela possibilidade de observaccedilatildeo dos

conjuntos de epiacutestolas e seu valor na literatura latina As coleccedilotildees de epiacutestolas satildeo

identificadas a partir de Ciacutecero e formam a maior coleccedilatildeo em escrita latina A

coleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio circulavam como livro102 Posterior a

Secircneca a outra coleccedilatildeo conhecida eacute formada pelas epiacutestolas de Pliacutenio o Jovem

pois estas tambeacutem circulavam nesse mesmo formato103 Nos dois primeiros seacuteculos

dC a epistolografia se destaca na sua organizaccedilatildeo como coleccedilatildeo podendo ser

mencionadas tambeacutem as epiacutestolas de Corneacutelio Fronto tutor de retoacuterica do futuro

imperador Marco Aureacutelio

102

Na obra Marcial e o livro Leni Ribeiro Leite (2011 p 32) comenta que no seacuteculo I d C as formas que caracterizavam os livros eram o rolo ou o coacutedex Os materiais eram retirados da pele de animais em especial a pele de cabra por ser mais leve para confecccedilatildeo do pergaminho A planta do papiro com tiras entrelaccediladas era confeccionado em formato de folhas (charta) A montagem final poderia ser em formato de rolo ou coacutedex Naquela eacutepoca o mais usado era o rolo de pergaminho com uma certa quantidade de folhas costuradas de acordo com a extensatildeo do texto na composiccedilatildeo da obra A partir do seacuteculo II d C tornou-se mais frequente a preferecircncia pelo coacutedex pela facilidade do manuseio na hora da leitura 103

Neil (2015 p 6) informa que tanto a coleccedilatildeo de epiacutestolas de Pliacutenio com exceccedilatildeo do livro X como as de Secircneca a Luciacutelio circulavam enquanto seus autores ainda viviam

108

Para as pesquisas atuais as descobertas arqueoloacutegicas contribuem para dar uma

luz ao entendimento de como alguns aspectos do processo de comunicaccedilatildeo

funcionavam atraveacutes da correspondecircncia no contexto dos dois primeiros seacuteculos de

nossa era Trapp (2003 p 22) observa que naquele periacuteodo existia uma tendecircncia

em transformar cartas privadas em um tipo de literatura atestado pelas coleccedilotildees

que sobreviveram Desde a era augustana jaacute era notoacuteria a combinaccedilatildeo entre tema

filosoacutefico e forma de epiacutestola em verso principalmente nas produccedilotildees de Horaacutecio se

acentuando na prosa nas produccedilotildees de temas variados nas epiacutestolas de Ciacutecero que

serviram de modelo para a posteridade

De certa forma havia uma influecircncia da tradiccedilatildeo de epistolografia filosoacutefica herdada

de Epicuro104 De acordo com a observaccedilatildeo de Trapp (2003 p 25) Secircneca em sua

coleccedilatildeo de epiacutestolas aleacutem de se espelhar no exemplo de Epicuro ainda compartilha

com Horaacutecio alguns aspectos da filosofia moral e as instruccedilotildees eacuteticas Em seus

conselhos a Luciacutelio Secircneca combina exortaccedilatildeo reflexatildeo instruccedilatildeo doutrinal e

recorre tambeacutem aos diversos exemplos

A contribuiccedilatildeo de Marcus Wilson se torna relevante na pesquisa aqui desenvolvida

pelo seu interesse em considerar a correspondecircncia de Secircneca a Luciacutelio como

epiacutestolas e natildeo como tratado Na obra Senecarsquos epistles reclassifed (2001) Wilson

discute essa questatildeo da coleccedilatildeo de epiacutestolas na Antiguidade e analisa em especial

a obra de Secircneca no conjunto das epiacutestolas dirigidas a Luciacutelio Assim este autor se

posiciona favoraacutevel agrave ideia da coletacircnea ser composta de epiacutestolas e natildeo um

tratado105 Ele observa que cada uma delas abre a mensagem com um cumprimento

e fecha com a despedida sendo que dessa forma a estrutura eacute apresentada de

acordo com o protocolo epistolar

Um embate nos estudos atuais desse tema se deve agrave concepccedilatildeo de epiacutestola como

ensaio que se configura no campo da reclassificaccedilatildeo106 de obras antigas

104

Epicuro desenvolveu sua filosofia usando o formato de epiacutestolas a diferentes destinataacuterios A Epiacutestola a Heroacutedoto (seu disciacutepulo) eacute uma das que concentra os princiacutepios da filosofia epicurista 105

Braren (1999 p 39) aponta algumas questotildees que justificam as razotildees de Secircneca ter escrito epiacutestola e natildeo tratado ldquoEpiacutestolas permitem oferecer doutrinaccedilatildeo filosoacutefica sem o necessaacuterio rigor de um plano de redaccedilatildeo de um tratado filosoacutefico As epiacutestolas se sucedem ao sabor das reflexotildees do momento O conteuacutedo natildeo necessita seguir uma ordenaccedilatildeo global uacutenica Diferentes assuntos podem ser tratados topicamente desde que obedeccedilam agrave proposta pedagoacutegica de ensinar o caminho para a sabedoria segundo um propoacutesito determinado agrave doutrinaccedilatildeo segundo os moldes do estoicismordquo 106

Segundo Gibson (2013 p 392) a reclassificaccedilatildeo resulta de uma nova organizaccedilatildeo das coleccedilotildees de epiacutestolas da Antiguidade obedecendo uma ordem cronoloacutegica que altera a proacutepria caracterizaccedilatildeo inicial da coleccedilatildeo pois visam trataacute-las como forma de biografia e histoacuteria

109

envolvendo alguns pesquisadores em defesa dessa ideia Wilson (2001 p 167)

pondera que pela razatildeo da falta de desenvolvimento de uma teoria sobre

epistolografia as pesquisas de formulaccedilotildees teoacutericas sobre ensaio tecircm aplicado a

base de seus princiacutepios agraves epiacutestolas de Secircneca Poreacutem surge o impasse no

momento de relacionar a parte pessoal das epiacutestolas com a filosoacutefica

Em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de reclassificaccedilatildeo de produccedilotildees em forma de coleccedilatildeo na

Antiguidade Wilson (2001 p164) alega que tal teacutecnica natildeo se aplica agrave coleccedilatildeo de

Secircneca designada Epistolae Morales ad Lucilium Este pesquisador afirma que natildeo

haacute base para tratar o trabalho de Secircneca como sendo ensaiacutesta exortativo ou

pedagoacutegico Ele menciona a epiacutestola vinte e sete de Secircneca107 como argumento de

sua afirmaccedilatildeo

Quem eacutes tu para me dar conselhos Acaso jaacute te aconselhaste a ti proacuteprio jaacute corrigiste o teu caraacuteter para te poderes armar em director de consciecircncia alheia Objeccedilatildeo justa a tua eu contudo natildeo sou tatildeo descarado que doente eu proacuteprio me aplique a dar remeacutedio aos outros Eacute como companheiro de sanatoacuterio que falo contigo de nossa comum enfermidade e te dou parte dos medicamentos que uso (SEcircNECA Ep 271)

Segundo Wilson (2001 164) essa parte da epiacutestola vinte e sete apresenta

caracteriacutesticas bem tiacutepicas da epistolografia Um dos temas recorrentes neste

gecircnero eacute identificado em diferentes formas de abordar assuntos sobre sauacutede e

medicamento Outro tema que Wilson natildeo cita mas que pode ser lembrado como

lugar comum na produccedilatildeo de epiacutestolas daquele periacuteodo eacute o da descriccedilatildeo detalhada

das atividades de um dia que pode ser verificado tanto na produccedilatildeo epistolar de

Secircneca Pliacutenio e Marco Aureacutelio108 Em Pliacutenio (Ep V 14 8)109 encontra-se tambeacutem o

uso do toacutepos que consiste em descriccedilotildees de partes das atividades de um dia em que

107

A traduccedilatildeo da epiacutestola 271 mencionada por Wilson eacute citada neste trabalho de acordo com a traduccedilatildeo de Segurado pois Wilson natildeo cita a parte da epiacutestola indicada mas soacute comenta seu conteuacutedo 108

Foucault (2010a p 144) observa na carta de Marco Aureacutelio a Frontatildeo o relato de si atraveacutes do relato do dia Alguns dos toacutepicos encontrados nesse relato identificam o uso de um lugar comum na epistolografia De iniacutecio satildeo fornecidos dados em relaccedilatildeo agrave sauacutede e alimentaccedilatildeo e em seguida o cumprimento dos deveres familiares e religiosos Em Secircneca Foucault (2010a p 147) identifica a necessidade de descarregar de diante de si a carga da proacutepria vida e do tempo que passou como uma revisatildeo e balanccedilo do que foi feito Para Foucault o gecircnero epistolar favorece essa exposiccedilatildeo do eu como um verdadeiro exame de consciecircncia 109

Em Pliacutenio a descriccedilatildeo de um momento de retiro das atividades puacuteblicas eacute introduzida na epiacutestola dirigida a amigo Pocircncio Alifono ldquoEstava com meu caro sogro estava com a tia da minha esposa estava com amigos que haacute muito tempo desejava ver percorria meus pequenos campos escutava muitas das reclamaccedilotildees dos camponeses lia minhas contas rapidamente e sem vontade ndash satildeo de fato outros os papeis e outras as letras nas quais fui instruiacutedo ndash e jaacute havia me preparado para a viagem pois estou limitado pela brevidade da minha licenccedila e ao escutar sobre a magistratura de Cornuto estou sendo lembrado da minha proacutepriardquo (Ep V 14 8) Trad Kaacutetia Regina Giesen (2016)

110

o destaque eacute a presenccedila de familiares dos mais diversos niacuteveis de parentesco A

esse respeito da recorrecircncia a determinados lugares comuns vale relembrar a

posiccedilatildeo de Cairns (2010 p 6) ao mostrar que todo gecircnero eacute portador de elementos

com caracteriacutesticas primaacuterias como pode ser identificado no gecircnero epistolograacutefico

para a proacutepria identificaccedilatildeo do gecircnero como tal e ainda de elementos de

caracterizaccedilatildeo secundaacuteria que se apresentam como toacutepoi (lugares comuns) como

apontado tambeacutem por Wilson nas epiacutestolas de Secircneca

A partir da identificaccedilatildeo do posicionamento de Secircneca na epiacutestola citada Wilson

(2001 p 174) nota que ele natildeo parece indicar que procura colocar sua produccedilatildeo

como gecircnero epistolar em uma categoria fixa como exortativa ou pedagoacutegica pois

ambas satildeo interligadas com muitas outras familiar de consolo autobiograacutefica

satiacuterica analiacutetica literaacuteria e filosoacutefica

Na abordagem de Wilson (2001 p 191) uma coleccedilatildeo de epiacutestolas mesmo ficcional

contrasta com a coleccedilatildeo de ensaios em relaccedilatildeo ao tempo As epiacutestolas de Secircneca

natildeo contecircm datas110 e o que caracteriza a sequecircncia eacute a ordem da composiccedilatildeo ou

seja a ordem em que o conteuacutedo deve ser recebido e lido Desse modo o arranjo eacute

cronoloacutegico pois o leitor lecirc as epiacutestolas natildeo exatamente como uma coleccedilatildeo mas

como uma seacuterie

Wilson (2001 p 182) tambeacutem concorda com outros pesquisadores admitindo que

Secircneca se identifica com a epistolografia filosoacutefica seguindo o exemplo de Epicuro

Tanto na esfera filosoacutefica quanto na literaacuteria Secircneca inova em relaccedilatildeo agrave

epistolografia grega Ele se inspira em fontes de escritores romanos em especial

nas epiacutestolas em versos de Horaacutecio111 nas saacutetiras e humor com comentaacuterios eacuteticos

Secircneca cria um novo ramo de epistolografia a partir de sua filiaccedilatildeo literaacuteria Entatildeo

Wilson (2001 p 191) designa esse novo gecircnero de epistolografia em seacuterie pois

cada epiacutestola eacute completa em si mesma relacionando-se com as demais no todo da

coleccedilatildeo

110

Na coleccedilatildeo Ad Familiares as epiacutestolas de Ciacutecero satildeo datadas mas este natildeo eacute o criteacuterio para organizaccedilatildeo da coleccedilatildeo pois as epiacutestolas satildeo agrupadas pelo nome dos destinataacuterios 111

Na Ep 8613 Secircneca faz a seguinte referecircncia a Horaacutecio ldquoDepois que se inventaram esses impecaacuteveis balneaacuterios os homens tornaram-se mais porcos O que diz Horaacutecio quando quer retratar um indiviacuteduo de maus costumes notaacutevel pelos seus excessivos requintes Diz que ldquoBucilo cheira a rebuccediladosrdquo Se Bucilo vivesse hoje em dia por pouco parecia cheirar a bode faria o papel daquele Gargocircnio que na mesma saacutetira Horaacutecio potildee em confronto com Bucilordquo (Horaacutecio Saacutetiras I 227)

111

Concordando com essas posiccedilotildees defendidas por Wilson Inwood alega que as

epiacutestolas de Secircneca satildeo constituiacutedas nos paracircmetros de epiacutestola filosoacutefica e emite

a seguinte opiniatildeo

Like the dialogues of Plato Senecarsquos letters create an atmosphere of interpersonal philosophical exchange with the difference that the medium of this exchange is not face-to-face conversation but intimate correspondence between friends (INWOOD 2010 p xii)

112

Na concepccedilatildeo de Inwood (2010 p xiv) a escolha de Secircneca do gecircnero epistolar

filosoacutefico se justifica por razotildees da proacutepria dimensatildeo de sua concepccedilatildeo de obra

literaacuteria visto ser ele um autor de inegaacutevel capacidade de produccedilatildeo em outros

gecircneros literaacuterios como trageacutedia poesia e saacutetira Outros fatores podem ter interferido

na escolha de Secircneca em relaccedilatildeo aos seus antecessores como as publicaccedilotildees da

correspondecircncia filosoacutefica de Epicuro e da coleccedilatildeo das epiacutestolas de Ciacutecero ao seu

amigo Aacutetico Pode-se considerar tambeacutem que Secircneca ao escolher o gecircnero

epistolograacutefico colabora para uma continuidade da tradiccedilatildeo grega de uso deste

gecircnero como identificado nas produccedilotildees das epiacutestolas de Platatildeo Pitaacutegoras

Aristoacuteteles Epicuro entre outros

O posicionamento de Wilson contribui para a fundamentaccedilatildeo da tese aqui

desenvolvida de que o gecircnero escolhido por Secircneca em sua correspondecircncia eacute

epistolograacutefico e natildeo tratado Nesse quadro de contribuiccedilotildees inclui-se tambeacutem

Inwood que concebe o gecircnero usado por Secircneca como epiacutestola filosoacutefica Mais

adiante essas questotildees seratildeo vistas com mais detalhes inclusive o papel da

cenografia como determinante na classificaccedilatildeo do gecircnero em questatildeo

Talvez um dos pontos nevraacutelgicos das discussotildees ateacute aqui levantadas sobre os

diferentes posicionamentos dos pesquisadores seja a falta de determinaccedilatildeo destes a

respeito das questotildees sobre o uso dos termos carta e epiacutestola na Antiguidade Natildeo

eacute objetivo deste trabalho uma investigaccedilatildeo exaustiva do modo como os vocaacutebulos

carta e epiacutestola aparecem nos textos da Antiguidade mesmo porque esta pesquisa

natildeo comporta a dimensatildeo dessa tarefa O que eacute viaacutevel em termos praacuteticos eacute

observar algumas amostras de textos relacionados agrave epistolografia e verificar a

ocorrecircncia do termo epiacutestola O que pode ser constatado eacute que tal termo era usado

na abrangecircncia do sentido de enviar uma mensagem Natildeo parece haver distinccedilatildeo do

112

Segundo Inwood (2010 p xii) ldquocomo os diaacutelogos de Platatildeo as cartas de Secircneca criam uma atmosfera de intercacircmbio filosoacutefico interpessoal com a diferenccedila de que o meio dessa troca natildeo eacute a conversa face a face mas a correspondecircncia iacutentima entre amigosrdquo

112

vocaacutebulo pela extensatildeo do texto ou de seus objetivos A consulta a dicionaacuterios de

termos gregos e latinos permite a identificaccedilatildeo dos dois vocaacutebulos carta e epiacutestola

(χάρτης επιστολή) como originaacuterios do grego com sentidos distintos Mantendo a

significaccedilatildeo original dos termos no uso do latim a palavra charta eacute a designaccedilatildeo do

material preparado em forma de folha113 destinado agrave escrita e epistula estaacute

relacionada agrave produccedilatildeo de uma mensagem a ser enviada a um destinataacuterio ausente

Os termos carta e epiacutestola satildeo tratados na atualidade como sendo equivalentes

provocando certa dificuldade em separaacute-los e visualizaacute-los na origem de seus usos

na Antiguidade Pela escassez de pesquisas nesse campo e mesmo de fontes que

permitam estabelecer o modo como o termo carta evoluiu do seu sentido de base

para o atual constata-se certa limitaccedilatildeo na distinccedilatildeo clara do uso desses dois

termos em questatildeo como concebidos no seu valor semacircntico na cultura greco-

romana Pode-se supor que a forccedila metoniacutemica tenha sido determinante no

emprego de um termo no lugar de outro ou seja a forma pelo conteuacutedo havendo

entre ambos uma estreita afinidade ou relaccedilatildeo de sentido Entatildeo a folha de papiro

designada como charta em latim progressivamente passou a designar um dos

conteuacutedos que nela era contido Esta eacute uma hipoacutetese que pode reivindicar uma

possiacutevel localizaccedilatildeo temporal da adesatildeo na inserccedilatildeo semacircntica do uso do termo

carta como forma compartilhado com significado de epiacutestola como conteuacutedo Uma

pesquisa linguiacutestica diacrocircnica com o favorecimento de recursos eletrocircnicos usados

pela linguiacutestica de corpus114 poderia ser requisitada como possibilidade de

rastreamento para localizaccedilatildeo do uso dos termos carta e epiacutestola em textos de

origem grega e posteriormente em textos latinos possibilitando a verificaccedilatildeo das

mudanccedilas ocorridas no transcorrer do tempo a partir da Antiguidade claacutessica

O que se percebe eacute que grande parte dos pesquisadores estaacute mais voltada para a

questatildeo da diferenccedila entre carta e epiacutestola em contextos atuais em termos de

conteuacutedo e natildeo exatamente com os seus sentidos fundadores

113

O termo charta em latim eacute apropriado para o uso em portuguecircs da palavra papel carta que eacute um tamanho um pouco menor do que o A4 adequado para escrita de cartas No word 2010 esse recurso natildeo estaacute mais disponiacutevel na paacutegina de configuraccedilatildeo mas pode ser adotado outro recurso na barra de ferramenta porque no setor comercial ainda eacute usado o sistema de envio de cartas Esta eacute uma evidecircncia de como as transformaccedilotildees tecnoloacutegicas afetam a permanecircncia de determinados gecircneros do discurso causando mudanccedilas na forma de comunicaccedilatildeo 114

De acordo com Sardinha (2000 p 325) a linguiacutestica de corpus ocupa-se da coleta e exploraccedilatildeo de corpora ou conjuntos de dados linguiacutesticos textuais que foram coletados criteriosamente com o propoacutesito de servirem para a pesquisa de uma liacutengua ou variedade linguiacutestica

113

Thompson (1893) realizou uma pesquisa bem detalhada e um dos seus interesses

foi mostrar como da proacutepria natureza se extraiacutea materiais como argila metais

papiro madeira pele de animais que eram preparados em forma de tabletes ou

folhas para receber a escrita O que se tem notiacutecia eacute que em especial o papiro

manufaturado com preparo para receber a escrita era designado khaacutertēs em grego e

charta em latim Thompson (1893 p 28) fornece essa informaccedilatildeo sobre a origem

grega do termo ldquoAmong the Greeks the papyrus material manufactured for writing

purposes was called χάρτης (Latin charta ) as well as by the names of the plant

itselfrdquo115 Horaacutecio116 eacute um dos escritores latinos que fez uso do termo charta no

sentido de material usado em sua escrita

Uma descriccedilatildeo proveitosa de Thompson (1893 p 20) em relaccedilatildeo aos materiais

confeccionados para a escrita eacute o uso de taacutebuas de madeira cobertas de cera com

recurso de uma ponta de metal para escrever Quando era somente uma taacutebua no

latim era chamado tabula e um conjunto de tabulae presas em um anel era

designado coacutedex117 Na Greacutecia antiga era comum o envio de mensagens escritas em

taacutebuas de madeira com acabamento em cera As pequenas mensagens eram

escritas nesse material e as mais extensas eram escritas em papiro de acordo com

as informaccedilotildees de Thompson (1893 p21) ldquoas to correspondence small tabletes

codicilli or pugillares118 were employed for short letters longer letters epistolae

were written on papyrusrdquo119 Este autor cita o exemplo de Secircneca (Ep 5511)120 que

em sua epiacutestola a Luciacutelio menciona a diferenccedila entre epistula e codicillus pois este

115

ldquoEntre os gregos o material de papiro manufaturado para fins de escrita era chamado khaacutertēs (charta em latim) bem como pelos nomes da proacutepria plantardquo (THOMPSON 1893 p28) 116

Uso do termo chartae em Horaacutecio (Ep XIII 6-7) Si te forte meae grauis uret sarcina chartae abicito potius quam quo perferre iuberis ldquoNo empenho de servir-me e teacutedio ao livro Com mal cabido zelo me granjeiesrdquo Alexandre Prudente Piccolo (2013) traduziu chartae como livro no sentido de muitos papeis escritos o termo granjeies estaacute explicado em nota como referente ao verbo granjear obter como resultado do trabalho O termo latino charta com significado de papiro como material da escrita eacute tambeacutem encontrado na troca de epiacutestolas entre Jerocircnimo e Agostinho 117

No tratado Brevidade da Vida (XIII 4) Secircneca faz referecircncia agrave origem grega e latina do termo coacutedice como uma armaccedilatildeo de taacutebuas de madeira em uma embarcaccedilatildeo [] plurium tabularum contextus caudex apud antiquos uocatur unde publicae tabulae codices dicuntur 118

Segundo o dicionaacuterio latino-portuguecircs (1967) o termo pugillares significa tabuinhas pequenas para escrever e cabem na matildeo fechada Secircneca usa o termo com a ideia de bloco de anotaccedilotildees ldquoNatildeo te digo que estejas sempre debruccedilado sobre um livro ou um bloco de apontamentosrdquo Neque ego te iubeo semper imminere libro aut pugillaribus (Ep 5 6) 119

Quanto agrave correspondecircncia taacutebuas pequenas codicilli ou pugillares eram empregadas para epiacutestolas curtas epiacutestolas mais longas eram escritas em papiros 120

Video te mi Lucili cum maxime audio adeo tecum sum ut dubitem an incipiam non epistulas sed codicellos tibi scribere Vale (Ep 5511)

114

era feito no formato de uma taacutebua pequena proacuteprio para conter mensagens curtas

como um simples bilhete Era comum a escrita de mensagens de amor em

codicillus121 pois o destinataacuterio poderia responder aproveitando o mesmo material

depois de apagado o texto recebido

Outro termo comumente usado em latim a respeito da escrita eacute a expressatildeo littera

com o mesmo significado da palavra letra em portuguecircs Nas epiacutestolas de Ciacutecero

os termos epistula e littera aparecem de modo indistinto em algumas epiacutestolas mas

haacute certas aplicaccedilotildees desses termos que parecem ser mais adequadas a

determinados contextos do que estaacute sendo dito Como exemplo na coleccedilatildeo de

epiacutestolas dirigidas ao seu amigo Aacutetico (Ad Aticcum I XIII) quando Ciacutecero faz

referecircncia ao recebimento ou envio de uma missiva ele opta pela designaccedilatildeo

epiacutestola Accepi tuas tres iam epistulas (Recebi agora tuas trecircs epiacutestolas) Em Ad

Familiares (I IX1) Ciacutecero usa o termo litterae que pode ser entendido tambeacutem como

referecircncia agraves palavras do texto da epiacutestola que ele recebeu de seu amigo

Periucundae mihi fuerunt litterae tuae (Tuas palavrasepiacutestolas foram gratificantes

para mim) Nessa perspectiva litterae no plural pode referir-se ao valor do texto122

Na coleccedilatildeo de suas epiacutestolas Pliacutenio tambeacutem recorre aos termos epistula e littera

como sinocircnimo em alguns contextos de um mesmo campo semacircntico Em outra

situaccedilatildeo Pliacutenio123 faz uso do termo litterae referindo-se ao amigo Tiacutecio Aristo

competente no direito puacuteblico e privado como homem das letras (litterae) e das

artes Secircneca tambeacutem costuma referir-se agrave littera como termo aplicado ao modo

da escrita ou aos estudos literaacuterios de forma abrangente

121

Pliacutenio usa o termo epistulas para se referir aos diversos tipos de correspondecircncia na primeira epiacutestola da coleccedilatildeo Frequenter hortatus es ut epistulas si quas paulo curatius scripsissem colligerem publicaremque (Ep I1) ldquoFrequentemente aconselhaste-me a reunir e publicar as epiacutestolas se as tivesse escrito um pouco mais esmeradamenterdquo (Trad Marco Antonio da Costa (2013) 122

No livro de Atos 2624 de acordo com o texto latino da nova vulgata haacute o relato do discurso de Paulo diante de Festo e este se dirige ao interrogado dizendo Sic autem eo rationem reddente Festus magna voce dixit ldquo Insanis Paule multae te litterae ad insaniam convertunt ldquoE dizendo ele isto em sua defesa disse Festo em alta voz Estaacutes louco Paulo as muitas letras te fazem delirarrdquo (Atos 2624) Nesse contexto o termo litterae denota um grau distinto de conhecimento na transmissatildeo do discurso e ldquomuitas letrasrdquo (litterae) tem emprego metoniacutemico 123

[] ut mihi non unus homo sed litterae ipsae omnesque bonae artes [] ldquopara mim natildeo eacute apenas um homem mas as proacuteprias letras e todas as boas artesrdquo (Ep I 22 1) Traduccedilatildeo de Kaacutetia Regina Giesen

115

Em relaccedilatildeo ao gecircnero epistolograacutefico a influecircncia de Ciacutecero eacute relevante e marcada

no periacuteodo da Patriacutestica e o seu modo de produzir epiacutestolas ecoa tambeacutem na escrita

de Satildeo Jerocircnimo e Santo Agostinho124 Com base na praacutetica da tradiccedilatildeo antiga

Jerocircnimo e Agostinho fazem uso dos termos epistula e littera como sinocircnimo125

Outros vocaacutebulos de valor semacircntico no campo da epistolografia romana aparecem

nas epiacutestolas dos dois correspondentes como usados na origem dos termos charta

codicillus tabelarius (mensageiro) Guarniere (2016 p 28) observa que por algumas

indicaccedilotildees encontradas na troca de correspondecircncia entre Jerocircnimo e Agostinho a

citaccedilatildeo ao material por eles usado na escrita das epiacutestolas era charta folha de

papiro Tal fato pode ter sido determinante para a migraccedilatildeo dos termos epistula e

littera do latim para carta em portuguecircs

Tanto as epiacutestolas de Ciacutecero quanto as de Jerocircnimo e Agostinho devem tambeacutem ter

contribuiacutedo para a permanecircncia do uso de littera como sinocircnimo de epistula Em um

documento que narra as viagens portuguesas agrave India entre 1500 e 1505 o tiacutetulo

tem o seguinte teor Copia de uma littera del Re de Portagallo madata al Re de

Castella Joaquim Arauacutejo foi o organizador e comentador desses documentos como

livro de memoacuterias (1892) e deu a seguinte traduccedilatildeo ao tiacutetulo Coacutepia de uma carta do

Rei de Portugal mandada ao Rei de Castella O que se constata eacute que em 1892 o

termo carta no portuguecircs jaacute havia se estabelecido em lugar de littera

Como visto de modo geral as designaccedilotildees no latim como charta tabula codicillus

eram referentes ao formato dado ao papiro pergaminho ou madeira como uma

espeacutecie de folha para utilizaccedilatildeo da escrita e littera como sinais da escrita na

composiccedilatildeo do texto Epistola na sua abrangecircncia nomeava a correspondecircncia de

mensagens enviadas com finalidades variadas Essas informaccedilotildees sobre recursos

124

Segundo informaccedilotildees de Furlan (2006 p 284) Jerocircnimo (347 - 420 dC) era profundo conhecedor dos textos biacuteblicos das liacutenguas grega aramaica e hebraica da literatura grega e latina retoacuterica e filosofia Aleacutem dos tratados haacute uma coleccedilatildeo de 120 cartas de sua autoria Entre 383 e 406 traduziu os textos da Septuaginta e a biacuteblia hebraica para o latim Jerocircnimo era mais ou menos vinte anos mais velho do que Agostinho A troca de correspondecircncia entre os dois funcionava tambeacutem como diaacutelogo no intercatildembio de ideias e opiniotildees 125

No iniacutecio de uma das epiacutestolas dirigidas a Agostinho Jerocircnimo usa os termos littera e epistula Tandem ex Africa vestrae litteras uninimitatis accepi et non me poenitet impudentiae qua tacentibus vobis epistulas meas frequenter ingressi ut rescriptum mererer et vos esse sospites [] ldquoEnfim recebi da Aacutefrica a carta de vossa unanimidade natildeo me incomoda minha ousadia ter malgrado vosso silecircncio insistido com frequecircncia em minhas cartas para que eu merecesse uma resposta rdquo [] ( Ep 1261) Em uma das respostas de Agostinho a Jerocircnimo eacute usado o termo littera e tambeacutem epistula [] ut vix possem meas dare vix recipere litteras tuas (por causa da distacircncia) [] ldquomal posso te enviar cartas minhas e receber as tuasrdquo (Ep 1661)[] in qua epistula etiam mei commemoratione benevolentissime facere dignatus es [] ldquocarta que tu tiveste a dignidade de fazer com muito boa vontade menccedilatildeo a mimrdquo (Ep 1668) Traduccedilotildees de Felipe de Medeiros Guarniere (2016)

116

materiais uacuteteis para a produccedilatildeo de epiacutestolas na vigecircncia do seacuteculo I aC e I e II d

C satildeo encontradas por exemplo nos textos das epiacutestolas de Ciacutecero Horaacutecio

Secircneca e Pliacutenio Nesse periacuteodo natildeo havia uma inclusatildeo sistemaacutetica da epistolografia

nos estudos da retoacuterica Quanto a essas questotildees Murphy (1981 p 195) comenta

sobre a ausecircncia de tratamento retoacuterico na produccedilatildeo de epiacutestolas entre os romanos

Tal registro soacute eacute identificado a partir do seacuteculo IV dC atraveacutes da obra Ars

Rhetorica de Caio Juacutelio Viacutetor escritor romano do seacuteculo IV dC que decidiu aplicar

os ensinamentos retoacutericos de Ciacutecero e Quintiliano agraves produccedilotildees de epiacutestolas

Segundo informaccedilotildees de Murphy (1981 p 196) Juacutelio Viacutetor procurou situar o gecircnero

epistolar dividindo-o em dois tipos oficiais e familiares As epistolas classificadas

como oficiais poderiam conter uma mateacuteria argumentativa mais erudita e o emprego

de linguagem figurada Nas familiares seria conveniente o desenvolvimento do

assunto de forma clara e breve Outro ponto de destaque seria o cuidado na redaccedilatildeo

do texto de acordo com o tipo de destinataacuterio Nessa abordagem de Juacutelio Viacutetor

verifica-se uma semelhanccedila com o comentaacuterio de Ciacutecero feito na Epiacutestola Ad

Familiares (II 41) sobre a existecircncia de vaacuterias formas de epiacutestolas em sua eacutepoca

Em suas colocaccedilotildees Ciacutecero relembra a importacircncia fundamental da epiacutestola como

comunicaccedilatildeo entre ausentes e ainda complementa que as formas de epiacutestolas que

mais lhe agradavam eram as familiares e jocosas como tambeacutem as de tom severo

e grave

Juacutelio Viacutetor desenvolve suas consideraccedilotildees e classificaccedilotildees do gecircnero epistolar com

base em referecircncias de Ciacutecero e ainda manteacutem o uso dos termos littera e epistola

como pertencentes ao mesmo campo semacircntico conforme o conteuacutedo apresentado

em sua obra Depois da investida de Juacutelio Viacutetor em tratar o retoacuterico no campo da

epistolografia somente seiscentos anos depois esse tema readquire o seu valor

com o ressurgimento da epistolografia Murphy (1981 p 203) destaca que o seacuteculo

XI ficou registrado por uma nova arte epistolar a ars dictaminis126 que fez renascer a

126

Murphy (1981 216) discute algumas questotildees sobre as inovaccedilotildees do ars dictaminis como tratado que se constitui como teoria para a elaboraccedilatildeo de uma epiacutestola Nas instruccedilotildees desse manual a estrutura da epiacutestola deveria compor trecircs partes exordium narratio e conclusio seguindo o modelo de Ciacutecero A novidade eacute que o exordium deveria ser antecedido pelo salutatio sendo essa organizaccedilatildeo exclusiva do gecircnero epistolar A escolha da forma do salutatio dependeria do tratamento a ser dado ao destinataacuterio

117

retoacuterica ciceroniana adaptando-a aos modos do gecircnero epistolar e se estendendo

aos seacuteculos seguintes127

Quando se faz uma relaccedilatildeo entre os termos epistula e littera nota-se que em

determinados campos da linguagem o vocaacutebulo littera exerceu certa predominacircncia

em sua permanecircncia Algumas questotildees histoacutericas contribuem para elucidar alguns

pontos que identificam possiacuteveis explicaccedilotildees Gary Scheiner (2005) elaborou uma

pesquisa no intento de verificar como a Inglaterra tambeacutem herdou da Antiguidade o

haacutebito da correspondecircncia sendo que Ciacutecero se constituiu como modelo pelo fato

de ter se dedicado agraves epiacutestolas familiares Scheiner (2005 p42) aponta para a

influecircncia da epistolografia da Antiguidade em escritores do seacuteculo IV d C e por

conseguinte em escritores dos seacuteculos XIV e XVI dC com destaque para Petrarca

que em 1345 descobriu no mosteiro de Verona um manuscrito contendo epiacutestolas de

Ciacutecero que se tornaram fonte de redescoberta da Antiguidade Outro destaque eacute

para Erasmo de Roterdatilde que escreveu a obra De Conscribendis Epistolis (A

composiccedilatildeo de epiacutestolas) e nos meados do seacuteculo XVI essa publicaccedilatildeo se tornou

popular na Europa contribuindo para o crescente interesse na produccedilatildeo das

diferentes formas de correspondecircncia

Segundo informaccedilotildees de Schneider (2005 p 43) no final do seacuteculo XVI na

Inglaterra jaacute se optava pela escrita das correspondecircncias com o uso da liacutengua

inglesa e natildeo mais o latim como era o costume E no seacuteculo seguinte passou-se a

escrever as epiacutestolas com mais preocupaccedilatildeo quanto agraves boas maneiras e eacutetica do

127 No dizer de Peacutecora (2001 p 28) a histoacuteria do seacuteculo XVI registrou um novo momento quanto agrave

importacircncia do gecircnero epistolar e pela lideranccedila de seu reformador Inaacutecio de Loyola fundador da ordem dos jesuiacutetas foi implantada a nova epistolografia servindo como elo de ligaccedilatildeo das ideias de Loyola com os membros da companhia que se espalharam por vaacuterios lugares inclusive o Mundo Novo Os primeiros missionaacuterios da Companhia de Jesus a chegar ao Brasil foram requisitados por D Joatildeo III em 1549 chefiados pelo Pe Manuel da Noacutebrega e o Pe Joseacute de Anchieta se agregou ao grupo em 1553 O Pe Heacutelio Abranches Viotti (1984 p 14) em suas notas da traduccedilatildeo das cartas de Anchieta relata que este por dominar a escrita da liacutengua latina foi designado por Noacutebrega para escrever as cartas destinadas aos grupos da companhia residentes em Roma e Portugal De quatro em quatro meses as informaccedilotildees do trabalho dos jesuiacutetas no Brasil eram enviadas e posteriormente anualmente Viotti (1984 p66) menciona que as cartas eram escritas em latim pelo fato de necessidade de publicaccedilatildeo do documento em paiacuteses da Europa sendo o latim a liacutengua mais favoraacutevel agrave escrita como forma de comunicaccedilatildeo Nos arquivos dessas cartas originais o tiacutetulo eacute identificado como Annuae litterae Provinciae Brasiliae anni 1581 Nesse contexto propiacutecio padre Vieira foi um continuador da praacutetica do recurso do gecircnero epistolar Segundo informaccedilotildees de Bettiol (2008 p 38) as 200 cartas de Vieira conservadas ou recuperadas foram organizadas em trecircs volumes por Joatildeo Luacutecio de Azevedo (1928) Vieira costumava escrever suas cartas em portuguecircs e tambeacutem em latim Esse fato eacute relevante para se pensar sobre a permanecircncia do latim na escrita influenciando o desenvolvimento da liacutengua portuguesa que progressivamente se estabeleceu definitivamente

118

que o modelo retoacuterico praticado anteriormente Outra ocorrecircncia determinante nos

seacuteculos XVI e XVII de acordo com o relato de Schneider (2005 p 49) foi o registro

das traduccedilotildees do latim para o inglecircs das coleccedilotildees de epiacutestolas de Ciacutecero Secircneca

Pliacutenio Jerocircnimo Erasmo e outros Na nova fase que se instaurou as epiacutestolas

produzidas poderiam ter um caraacuteter oficial familiar intelectual ampliando-se

tambeacutem para o campo da literatura Pode-se inferir que na transmissatildeo da escrita da

correspondecircncia do latim para o inglecircs o termo littera jaacute estabelecido como

sinocircnimo de epiacutestola na correspondecircncia de Ciacutecero passa a ser designado como

letter Assim como eacute possiacutevel o uso metoniacutemico de charta para significar a parte pelo

todo tambeacutem o vocaacutebulo littera em algumas situaccedilotildees tambeacutem seria usado como

metoniacutemia em que o todo assume a designaccedilatildeo das partes ou seja littera (letra) em

lugar de epistola Essas interferecircncias no uso da linguagem podem ter causado a

heranccedila progressiva do termo charta em latim para carta em portuguecircs e littera para

lettre em francecircs e letter em inglecircs transformando-se em sinocircnimo de epiacutestola

nessas liacutenguas

O que se pode extrair dessas consideraccedilotildees feitas eacute que apesar de epiacutestola e carta

ou epiacutestola e letter serem consideradas como sinocircnimo no portuguecircs e no inglecircs haacute

uma distacircncia temporal que separa o uso e signifcados dos termos Assim como a

palavras carta e letter por si soacute natildeo abarcam todas as formas de correspondecircncia

tambeacutem o mesmo acontecia com a designaccedilatildeo epiacutestola como questionada desde

os estudos de Demeacutetrio

Uma possibilidade de diferenciar o modo de produzir epiacutestola na Antiguidade seria

pensar essa questatildeo em termos de gecircnero de forma bem abrangente como

defendida por Gregory Hutchinson (2013 p 19) quando ele afirma The conception

of super-genres helps us to think further about genre128 A atenccedilatildeo deste autor se

volta em especial para a poesia pois na Antiguidade as formas especiacuteficas da

criaccedilatildeo poeacutetica eacute que designam o que ele defende como supergecircnero na falta de

um termo mais apropriado As formas poeacuteticas na Antiguidade satildeo classificadas

como hexacircmetro elegia liacuterica e drama sendo cada uma destas um supergecircnero

que abarca seus subgrupos especiacuteficos e estes tambeacutem podem ser desdobrados

Desse modo eacute adequado dizer que trageacutedia e comeacutedia estariam ligadas ao

128

ldquoA concepccedilatildeo de supergecircnero nos ajuda a pensar mais amplamente sobre o gecircnerordquo

119

supergecircnero drama Na comeacutedia seriam derivados os subconjuntos comeacutedia antiga

e comeacutedia nova

Essa maneira de pensar os gecircneros na poeacutetica da Antiguidade pode servir de

analogia para aplicaccedilatildeo aos gecircneros na prosa129 Visto que as discussotildees e

definiccedilotildees do conceito de epistolografia remontam aos tempos mais antigos vale

tentar compreender essas questotildees em termos de supergecircnero Hutchinson fornece

para a pesquisa aqui desenvolvida uma opccedilatildeo mais abrangente sobre o gecircnero

epistolograacutefico e sua conexatildeo com outros situados em suas fronteiras O gecircnero

epistolar poderia estar ligado a um gecircnero maior como centralizador de vaacuterios meios

de linguagem no campo da prosa que fossem detentores de uma identificaccedilatildeo

baacutesica em comum O esquema que se segue delineia de forma bem generalizada o

lugar que poderia ser ocupado pela epistolografia ao se interligar ao gecircnero diaacutelogo

como um ponto centralizador de inclusatildeo de subconjuntos como epiacutestolas e tratados

e cada um destes definiriam seus derivados

Filosoacutefica ndash Familiar ndash Instrutiva Filosoacutefico ndash Poliacutetico ndash Moral

A forma do diaacutelogo na escrita como estrateacutegia de argumentaccedilatildeo foi desenvolvida

na Antiguidade para atender a demanda da necessidade de transferecircncia da

expressatildeo oral para a escrita na composiccedilatildeo dos textos De acordo com o

comentaacuterio de Dioacutegenes Laeacutercio (Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres III 25)130

129

Hutchinson (2013) fornece para a pesquisa aqui desenvolvida uma contribuiccedilatildeo que possibilita uma opccedilatildeo mais abrangente e definida para se pensar o gecircnero epistolar 130

Dioacutegenes Laeacutercio (200-250) eacute considerado historiador e bioacutegrafo dos filoacutesofos gregos A sua maior obra eacute Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres organizada em dez livros que contecircm fontes de informaccedilotildees e comentaacuterios sobre o desenvolvimento da filosofia grega

Gecircnero centralizador - supergecircnero

Diaacutelogo

Epiacutestolas

Tratados

120

Zenatildeo de Eleia131 para alguns teria sido o fundador do gecircnero diaacutelogo e Aristoacuteteles

no livro Os Poetas afirma ter sido Alexacircmeno de Teos132 Partindo das

discordacircncias sobre tal questatildeo Dioacutegenes prefere creditar a Platatildeo o lugar de

fundador do gecircnero diaacutelogo Como justificativa de sua escolha Dioacutegenes (III 26) cita

as vaacuterias obras de Platatildeo em forma de diaacutelogo sobre a loacutegica fiacutesica moral

poliacutetica incluindo tambeacutem epiacutestolas

O ponto crucial da noccedilatildeo de diaacutelogo133 em textos da Antiguidade eacute a forma de

interaccedilatildeo entre falantes que se presentificam atraveacutes de sua voz no texto

participando como interlocutores no discurso Assim a finalidade do gecircnero diaacutelogo

eacute proporcionar a transformaccedilatildeo do sentido de ausecircncia fiacutesica de quem fala pela

presenccedila da manifestaccedilatildeo de sua voz no texto escrito Partindo desta premissa esta

eacute a marca centralizadora de identificaccedilatildeo do diaacutelogo que o condiciona a funcionar

como supergecircnero

Platatildeo inaugura a escrita em prosa na forma de diaacutelogo no prolongado periacuteodo de

transiccedilatildeo entre oralidade e escrita na produccedilatildeo dos textos na cultura grega

Havelock (1986 p 150) concebe a transferecircncia dessa oralidade como fator

determinante para a escolha do gecircnero diaacutelogo na produccedilatildeo de Platatildeo

Aleacutem do diaacutelogo servir como ponte para a passagem da oralidade para a escrita ele

tambeacutem eacute intermediaacuterio entre a poesia e a prosa Havelock (1986 p 35) expotildee

algumas consideraccedilotildees sobre a continuidade da influecircncia da trageacutedia grega sobre a

prosa em relaccedilatildeo agrave conservaccedilatildeo dos valores da tradiccedilatildeo oral O caraacuteter didaacutetico das

peccedilas foi transmitido tambeacutem aos diaacutelogos e retoacuterica por meio dos personagens que

defendiam os argumentos no discurso Desse modo a implantaccedilatildeo da escrita via

diaacutelogo serviu de suporte para a escritura do pensamento filosoacutefico platocircnico

influenciando a produccedilatildeo de outros gecircneros com raiacutezes no diaacutelogo

131

Zenatildeo de Eleia (aprox 490 a 430 aC) filoacutesofo preacute-socraacutetico da escola eleaacutetica Disciacutepulo de Parmecircnides de Eleia e defensor de suas ideias 132

De acordo com Fragmentos dos diaacutelogos de Aristoacuteteles vol X o primeiro autor do diaacutelogo teria sido Alexameno de Teos poreacutem nada se conhece a respeito desse autor 133

O diaacutelogo eacute tambeacutem usado na literatura hebraica o livro de Joacute eacute constituiacutedo de prosa na introduccedilatildeo e epiacutelogo e poesia em forma de diaacutelogo nas demais partes Os diaacutelogos em forma de poesia satildeo realizados atraveacutes dos discursos de Joacute com seus trecircs amigos Elifaz Bildade e Zofar surgindo Eliuacute como quarto personagem na discussatildeo O diaacutelogo se encerra com a conversa entre Joacute e Deus

121

A tentativa de compreensatildeo da forma como eram construiacutedos os diaacutelogos na

Antiguidade estaacute limitada a uma comparaccedilatildeo da produccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo134

e Ciacutecero135 Conclui-se que essa eacute a possibilidade mais razoaacutevel pela ausecircncia da

obra de Aristoacuteteles sobre diaacutelogo pois o que sobrevive desta satildeo fragmentos

extraiacutedos de citaccedilotildees e testemunhos de autores antigos O proacuteprio Ciacutecero (Ep Ad

At XIII XIX 4)136 fornece o seguinte depoimento ldquoO que escrevi naqueles tempos eacute

ao modo aristoteacutelico no qual a conversa dos outros eacute introduzida de tal forma que o

papel principal eacute reservado ao proacuteprio autorrdquo137 Com essa contribuiccedilatildeo pode-se

deduzir que Aristoacuteteles produz seus diaacutelogos de forma diferente e modificada em

relaccedilatildeo agraves produccedilotildees de seu mestre Platatildeo

A finalidade do paralelo feito entre os diaacutelogos platocircnicos e ciceronianos visa

contribuir para identificaccedilatildeo do uso do gecircnero diaacutelogo na Antiguidade Powell (2005

p 233) sustenta que haacute possibilidade de identificaccedilatildeo de alusotildees entre os diaacutelogos

de Platatildeo e Ciacutecero Mesmo sendo notoacuteria a influecircncia de Platatildeo em Ciacutecero haacute

peculiaridades na produccedilatildeo literaacuteria deste que marcam tambeacutem certa heranccedila

aristoteacutelica Por um lado Platatildeo natildeo se identifica como personagem em seus

diaacutelogos sendo Soacutecrates a figura principal no comando das discussotildees na maior

parte das produccedilotildees Por outro lado Ciacutecero tendo Aristoacuteteles como modelo conduz

o discurso em seus diaacutelogos como personagem principal

Mais de um seacuteculo depois Taacutecito escritor e historiador latino segue Ciacutecero como

paracircmetro optando pela escolha do uso do diaacutelogo na obra intitulada O diaacutelogo dos

oradores138 Em uma anaacutelise dessa produccedilatildeo Joly (2009 p 21) comenta que aleacutem

134

Platatildeo se manteacutem no anonimato na produccedilatildeo dos seus diaacutelogos Como a responsabilidade da direccedilatildeo dos debates recai sobre o personagem Soacutecrates o posicionamento de Platatildeo natildeo eacute declarado 135

Lima (2008 p126) comenta que nos diaacutelogos De finibus ldquoCiacutecero natildeo apenas se representa como personagem que tem papel importante em todos os trecircs diaacutelogos eacute tambeacutem ele que falando em primeira pessoa introduz cada um dos diaacutelogos particulares em proecircmios que antecedem as accedilotildees representadas Aleacutem disso basta lermos o iniacutecio da obra para reconhecermos outro elemento que natildeo encontraacutevamos nos modelos platocircnicos a obra toda como se fosse uma espeacutecie de epiacutestola eacute endereccedilada a um destinataacuterio a Marco Brutordquo 136

quae autem his temporibus scripsi Aristoteleion morem habent in quo ita sermo inducitur ceterorum ut penes ipsum sit principatus (Ep Ad At XIII XIX 4) 137

Traduccedilatildeo de Antonio de Castro Caeiro 138

Joly (2009 p 20) informa que Taacutecito a pedido de Faacutebio Justo propotildee-se a relatar um diaacutelogo que ouvira quando jovem acerca do decliacutenio da eloquecircncia Os interlocutores do diaacutelogo satildeo Maternus Aper Secundus e Messalla O acontecimento que desencadeou o debate foi a recepccedilatildeo negativa da trageacutedia Catatildeo produzida por Maternus e este eacute induzido a trocar a poesia pela oratoacuteria mas a sua atitude eacute a insistecircncia em favor da poesia Com a chegada de Messala o quarto participante o assunto circula em torno da defesa dos oradores antigos O tema do debate sobre o decliacutenio da

122

da identificaccedilatildeo de Taacutecito com o gecircnero diaacutelogo neste pode ser feito um paralelo

com De oratore de Ciacutecero tendo como ponto comum a discussatildeo sobre a oratoacuteria

Com o recurso da narrativa Taacutecito compotildee o diaacutelogo atraveacutes dos personagens que

o antecederam para trazer uma discussatildeo antiga mas ainda em voga em seu

tempo Powell (2005 p 236) comenta que a forma do gecircnero diaacutelogo possibilitou a

Taacutecito uma escolha loacutegica da apresentaccedilatildeo de contrastes entre pontos de vista

sobre a eloquecircncia Assim o gecircnero diaacutelogo funciona como um recurso de

aproximaccedilatildeo entre os ausentes que se aproximam pelo interesse da discussatildeo

interligados aos leitores separados pela distacircncia espaccedilo-temporal

O gecircnero epistolar e o tratado satildeo portadores de caracteriacutesticas que indicam suas

raiacutezes no diaacutelogo O proacuteprio Platatildeo fez uso desses gecircneros como estrateacutegia

educacional de seu cabedal filosoacutefico Goldschmidt (2002 p27) faz um paralelo

entre a epiacutestola VII de Platatildeo com o seu diaacutelogo sobre A Repuacuteblica identificando

traccedilos comuns entre partes dessas duas produccedilotildees filosoacuteficas Assim Aristoacuteteles no

papel de disciacutepulo de Platatildeo optou tambeacutem pelo uso do recurso do diaacutelogo como

desencadeador do gecircnero epiacutestolar como testemunha Demoacutestenes com a seguinte

informaccedilatildeo ldquoAacutertmon o editor de cartas de Aristoacuteteles disse que se deve do mesmo

modo escrever diaacutelogo e cartas pois a carta deve ser como uma das duas partes

do diaacutelogordquo (Sobre o estilo IV 223)

Na Antiguidade diaacutelogo tratado e epiacutestola conviviam em estreita relaccedilatildeo

ocasionando em determinadas situaccedilotildees a ausecircncia de limites entre as fronteiras

de cada gecircnero139 Entatildeo a diferenccedila estaacute mais focalizada no objeto do que na

forma de desenvolvimento do tema proposto como pode ser notado na composiccedilatildeo

da Repuacuteblica de Ciacutecero e a Histoacuteria Natural de Pliacutenio o Velho O toacutepico comum na

composiccedilatildeo do gecircnero era um preacircmbulo e dedicatoacuteria a algum personagem e o

caraacuteter didaacutetico do tratado fornecia o tom de conversa entre escritor e leitor

Segundo informaccedilotildees de Powell (2005 230) os tratados na Antiguidade tinham uma

estreita ligaccedilatildeo com a retoacuterica e a filosofia sendo que estas duas aacutereas se

mostraram favoraacuteveis agraves produccedilotildees de tratados na literatura latina

eloquecircncia eacute um toacutepos recorrente em outros autores como Secircneca o Velho Petrocircnio Pliacutenio Quintiliano e Secircneca na epiacutestola 114 1-2 indaga ldquo qual a causa que provoca em certas eacutepocas a decadecircncia geral do estilordquo O proacuteprio Secircneca enfatiza que a questatildeo eacute tatildeo antiga que os gregos ateacute fizeram dela um proveacuterbio ldquoo estilo eacute um reflexo da vidardquo 139

Powell (2005 p224) distingue as diferentes formas de tratados na Antiguidade como uma especialidade em um campo determinado ou simplesmente a sistematizaccedilatildeo de uma informaccedilatildeo

123

A fronteira que delimita diaacutelogo tratado e epiacutestola na Antiguidade eacute tecircnue e este

fenocircmeno causa discussotildees entre pesquisadores e diferentes posicionamentos

como jaacute visto ateacute aqui Como forma de ampliar a visatildeo sobre essas questotildees sobre

epistolografia Gibson (2013 p 388) alega que ldquothe letter does not lose its identity

when it plays host to other generic elementsrdquo140 Com esta afirmaccedilatildeo de Gibson de

que a carta natildeo perde sua identidade quando acolhe elementos de outros gecircneros

fica pressuposto que o essencial eacute a manutenccedilatildeo das caracteriacutesticas proacuteprias e

fundamentais de cada gecircnero

A epistolografia no lugar de subgrupo do diaacutelogo como gecircnero centralizador

manteacutem sua identidade proacutepria mas tambeacutem gera subgrupos que dela se originam

Por isso as epiacutestolas de Secircneca e de Paulo satildeo tratadas neste trabalho como

partes de um subgrupo do diaacutelogo que se subdivide mas que conserva as

caracteriacutesticas baacutesicas de epiacutestolas

Como jaacute discutido anteriormente a cena geneacuterica na enunciaccedilatildeo eacute identificada pelo

gecircnero do discurso o qual estabelece o modo de dizer na cena enunciativa

Maingueneau (2008a p 116) ressalta que ldquona medida em que os gecircneros satildeo

instituiccedilotildees de fala soacutecio-historicamente definidas sua instabilidade eacute grande e eles

natildeo se deixam apreender em taxonomias compactasrdquo Esta eacute uma observaccedilatildeo

pertinente para auxiacutelio na atenccedilatildeo necessaacuteria ao identificar o modo como o gecircnero

epistolar se estabelece e diversifica na escritura de Secircneca e de Paulo a partir do

discurso constituinte como base na elaboraccedilatildeo deste gecircnero em foco

21 PAULO E SUAS EPIacuteSTOLAS AgraveS IGREJAS

Eacute fundamental situar que Secircneca e Paulo viveram em um mesmo momento

histoacuterico e o diferencial na produccedilatildeo de suas epiacutestolas contribui para a observaccedilatildeo

da razoabilidade na flexatildeo da produccedilatildeo gecircnero epistolar naquele periacuteodo Outro

fator preponderante que se observa eacute o propoacutesito final daquelas epiacutestolas Becker

(2007 p 24) destaca o fato de Paulo ser pioneiro entre os primeiros cristatildeos no

uso do gecircnero epistolar para transmissatildeo de seus ensinamentos e juntamente com

os romanos que fizeram uso desse gecircnero serviu de modelo para o ressurgimento

da epistolografia no seacuteculo IV dC no periacuteodo da Patriacutestica

140

ldquoA carta natildeo perde a sua identidade quando acolhe outros elementos geneacutericos

124

Se comparadas as finalidades das produccedilotildees das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

mede-se uma distacircncia entre elas De acordo com Becker (2007 p 21) haacute uma

diferenccedila marcante entre os propoacutesitos da escrita das epiacutestolas de Paulo e as dos

escritores romanos Ebbeler (2001 p 68) menciona que no seacuteculo I dC as

epiacutestolas de Ciacutecero jaacute se integravam nos ciacuterculos de leitura fato que colaborou para

o reconhecimento do enquadramento da epiacutestola no campo da literatura latina

Ebeller (2001 p 67) ainda destaca que a composiccedilatildeo das coleccedilotildees de epiacutestolas de

Secircneca e Pliacutenio tinha como finalidade o encaminhamento agrave divulgaccedilatildeo e publicaccedilatildeo

Quanto a esse aspecto a influecircncia de Ciacutecero tornou-se fundamental na realizaccedilatildeo

desses propoacutesitos

Para os escritores romanos de um modo geral a obra literaacuteria servia como recurso

para sustentaccedilatildeo e permanecircncia da imagem de seu autor permitindo sua

imortalidade O proacuteprio Secircneca faz referecircncia a esse fato comentando sobre o valor

da correspondecircncia como forma de divulgar certos personagens possibilitando a

oportunidade de seus nomes serem perpetuados

Satildeo as cartas de Ciacutecero que natildeo deixam esquecer o nome de Aacutetico De nada lhe adiantaria ter tido como genro Agripa como genro-neto (progener) Tibeacuterio como bisneto Druso Ceacutesar no meio de tatildeo ilustres nomes o nome de Aacutetico permaneceria esquecido se Ciacutecero o natildeo tivesse ligado para sempre ao seu (SEcircNECA Ep214)

Segundo Becker as epiacutestolas de Paulo natildeo se encaixavam nesse objetivo da

produccedilatildeo literaacuteria visto que seus propoacutesitos se mostravam mais imediatos visando

atender as comunidades cristatildes como destinataacuterias diretas em seus

questionamentos e problemas Poreacutem independente de qualquer intencionalidade

as epiacutestolas de Paulo serviram de instruccedilotildees natildeo somente aos destinataacuterios

indicados mas tornaram-se fontes de ensinamentos fundamentais na implantaccedilatildeo e

expansatildeo do cristianismo

Ponderando os objetivos especiacuteficos e limitados que perseguem as cartas de Paulo eacute evidente que o Apoacutestolo conseguiu afrontar a situaccedilatildeo historicamente limitada em que se encontrou de forma que as outras comunidades desde aquele tempo ateacute hoje viram-se refletidas nelas e puderam ler e perceber seu conteuacutedo como orientaccedilatildeo Enfim elas se encontraram com uma compreensatildeo no cristianismo que se julgava de validade geral e que pelo visto conseguiu impor- se com forccedila persuasiva Essa luz interior de suas cartas demonstrou-se sem sombra de duacutevidas decisiva na coleccedilatildeo e conservaccedilatildeo de sua correspondecircncia (BECKER 2007 p 22)

125

O proacuteprio Becker expotildee que as epiacutestolas de Paulo natildeo eram detentoras de

propoacutesitos literaacuterios mas pela essecircncia e significados de seus conteuacutedos foram

ampliadas para um puacuteblico natildeo restrito possibilitando o seu encaixamento no

gecircnero literaacuterio visto que foram copiadas em manuscritos de diferentes origens o

que favoreceu a permanecircncia dos textos

O apoacutestolo Pedro fornece um depoimento em sua segunda epiacutestola que autentica a

credibilidade de Paulo e ressalta o seu valor

[] e tende por salvaccedilatildeo a longanimidade de nosso Senhor como tambeacutem o nosso amado irmatildeo Paulo vos escreveu segundo a sabedoria que lhe foi dada como faz tambeacutem em todas as suas epiacutestolas nelas falando acerca destas coisas nas quais haacute pontos difiacuteceis de entender que os indoutos e inconstantes torcem como o fazem tambeacutem com as outras Escrituras para sua proacutepria perdiccedilatildeo (2 Pedro 31516)

Os comentaacuterios de Pedro contribuem como informaccedilatildeo sobre a circulaccedilatildeo das

epiacutestolas de Paulo e a praacutetica da leitura fora da esfera especiacutefica dos destinataacuterios

Parece relevante a qualidade e profundidade dos textos e a forma responsaacutevel como

o gecircnero epistolar foi requisitado como recurso da comunicaccedilatildeo e ensinamentos de

concepccedilotildees espirituais tatildeo profundas ateacute mesmo inatingiacuteveis para alguns

Paulo tambeacutem usa o termo epiacutestola141 ao referir-se agraves suas correspondecircncias

destinadas agraves igrejas ldquoPelo Senhor vos conjuro que esta epiacutestola seja lida a todos

os irmatildeosrdquo (1 Tess 527) Lucas no livro de Atos faz uso do termo epiacutestola em

contexto diferente ldquoE pediu-lhe cartas para Damasco para as sinagogas a fim de

que se encontrasse alguns deste Caminho os conduzisse presos a Jerusaleacutemrdquo

(Atos 92)142 Lucas estaacute se referindo agrave perseguiccedilatildeo aos seguidores de Jesus

comandada por Paulo (Saulo) antes de sua conversatildeo Observa-se que em todas

as traduccedilotildees consultadas das biacuteblias em portuguecircs o termo grego epiacutestola eacute

traduzido como carta talvez como consequecircncia da tendecircncia de se estabelecer a

diferenccedila entre carta e epiacutestola como jaacute discutido anteriormente

141

O termo epiacutestola usado por Paulo aparece tanto no grego como no latim da nova vulgata ορκιζω υμας τον κυριον αναγνωσθηναι την επιστολην πασιν τοις αγιοις αδελφοις Adiuro vos per Dominum ut legatur epistula omnibus fratribus (1 Tess 527) 142

Nessa passagem de Atos 92 nota-se que tambeacutem o tipo de carta como um documento de autorizaccedilatildeo para Paulo perseguir os seguidores de Jesus eacute designado como epiacutestola tanto no texto grego quanto no latino Poreacutem as traduccedilotildees consultadas optam pelo uso do termo carta ητησατο παρ αυτου επιστολας εις δαμασκον προς τας συναγωγας οπως εαν τινας ευρη της οδου δεδεμενους αγαγη εις ιερουσαλημ et petiit ab eo epistulas in Damascum ad synagogas ut si quos invenisset huius vinctos perduceret in Ierusalem (Atos 92)

126

Como se mostra evidente a escolha da escrita da maioria dos livros canocircnicos de

composiccedilatildeo do Novo Testamente segue a forma de epiacutestolas Dos vinte e sete

livros somente seis natildeo se enquadram no gecircnero epistolar mas ainda pode-se

destacar que a epistolografia comparece no livro de Apocalipse por meio das

epiacutestolas dirigidas agraves sete igrejas da Aacutesia Menor Young (2005 p10) reforccedila essa

informaccedilatildeo fazendo comparaccedilatildeo com o interesse nesse tipo de escrita na cultura

greco-romana referindo-se agraves epiacutestolas de Secircneca dirigidas a Luciacutelio

Segundo Hale (1983 p 31) o texto grego mais antigo contendo epiacutestolas de Paulo

eacute o Papyrus P46 datado aproximadamente no final do seacuteculo II dC e foi

produzido no Egito143 Trobisch (2001 p14) tambeacutem identifica que o conjunto das

epiacutestolas de Paulo eacute tratado como coleccedilatildeo como mostram os manuscritos

existentes com destaque para o Papyrus 46P que eacute o manuscrito mais antigo em

forma de livro (coacutedex) pois ateacute o seacuteculo IV dC era mais frequente o uso de rolos

Os cristatildeos foram os primeiros a utilizar com mais frequecircncia o coacutedex pela facilidade

da leitura

As epiacutestolas que compotildeem o Novo Testamento norteiam a organizaccedilatildeo dos textos

nos manuscritos encontrados Os quatro mais antigos satildeo referentes ao seacuteculo IV d

C sendo catalogados e guardados em diferentes bibliotecas que lhes datildeo a

identificaccedilatildeo144 Segundo informaccedilotildees de Trobisch (2001 p 9) nesses quatro

manuscritos mais antigos completos do Novo Testamento estatildeo registradas

quatorze epiacutestolas de Paulo incluindo a de Hebreus A sequecircncia dos livros eacute a

mesma nos quatro manuscritos Romanos 1 e 2 Coriacutentios Efeacutesios Filipenses

Colossenses 1 e 2 Tessalonicenses Hebreus 1 e 2 Timoacuteteo Tito e Filemom Uma

regularidade que se manteacutem nesses manuscritos eacute a unidade do livro de Atos com

as epiacutestolas gerais Tiago 1 e 2 Pedro 1 2 3 Joatildeo e Judas

Euseacutebio de Cesareia faz um comentaacuterio em sua obra indicando que em seu tempo

havia duacutevidas quanto agrave autenticidade da autoria de Paulo da epiacutestola aos Hebreus

143

Segundo Trobisch (2001 p 14) Papyros 46P eacute um livro (coacutedex) que tem 52 folhas dobradas ao meio totalizando 104 folhas e 208 paacuteginas O texto eacute escrito em grego e existem epiacutestolas incompletas ou ateacute ausentes na coleccedilatildeo O manuscrito eacute dividido em dois volumes estando um em Dublin Islacircndia e o outro na Livraria da Universidade de Michigan 144

Hale (1983 p 33) informa que o Codex Vaticanus (B) estaacute na Biblioteca do Vaticano Este manuscrito conteacutem a maior parte do Velho Testamento e todos os livros do Novo Testamento (exceto Hebreus 915-1325 I e II Timoacuteteo Tito Filemom e Apocalipse) Estes livros e porccedilatildeo de Hebreus teriam formado cadernos separados que se perderam

127

De minha parte se hei de dar minha opiniatildeo eu diria que os pensamentos sim satildeo do Apoacutestolo mas o estilo e a composiccedilatildeo satildeo de algueacutem que evocava a memoacuteria dos ensinamentos do Apoacutestolo como um aluno que anota por escrito as coisas que seu mestre disse Por conseguinte se alguma igreja tiver esta carta como sendo de Paulo que tambeacutem por isto seja estimada pois natildeo sem motivo os antigos varotildees a transmitiram como de Paulo (EUSEacuteBIO HistEcles VI XXV 13)

Trobisch (2001 p10) relata que Martinho Lutero ao traduzir o Novo Testamento do

latim para o alematildeo com base na traduccedilatildeo de Erasmo de Roterdatilde145 mudou a

ordem dos livros retirando a epiacutestola aos Hebreus da coleccedilatildeo de Paulo colando-a

juntamente com as epiacutestolas gerais no final antes de Apocalipse

A autenticidade paulina de algumas epiacutestolas foi posta em duacutevida a partir do seacuteculo

XIX conforme os dados apresentados por Heyer (2008 p 6) De iniacutecio as

chamadas pastorais 1 e 2 Timoacuteteo e Tito e depois tambeacutem 2 Tessalonicenses

Efeacutesios e Colossenses As escolas acadecircmicas que investem na criacutetica da forma e

conteuacutedo da exegese biacuteblica satildeo responsaacuteveis pela apresentaccedilatildeo de argumentos

que rejeitam a autoria de Paulo dessas epiacutestolas citadas Heyer (2008 p 8) faz

algumas alegaccedilotildees concordando com a reclassificaccedilatildeo da coleccedilatildeo das epiacutestolas de

Paulo de treze para sete Aleacutem de sua adesatildeo agrave negaccedilatildeo da autoria de Paulo das

outras seis epiacutestolas Heyer justifica que soacute utiliza na escrita de sua obra essas sete

epiacutestolas146 autenticadas tomando-as como base para investigar a vida e o

pensamento de Paulo

A discussatildeo em relaccedilatildeo agrave autoria de Paulo forma nitidamente grupos favoraacuteveis e

contraacuterios Hale (1983) se agrega aos que defendem a autoridade de Paulo em

responder pela produccedilatildeo da coleccedilatildeo de treze epiacutestolas Hale (1983 p 141)147 toma

como base as fontes dos manuscritos que datildeo sustentaccedilatildeo para sua defesa Ele

apresenta justificativas dos que negam a autoria de Paulo das seis epiacutestolas e tece

145

Em 1516 Erasmo de Roterdatilde publicou uma nova ediccedilatildeo e traduccedilatildeo para o latim do Novo Testamento feita a partir dos manuscritos bizantinos dos seacuteculos XIII e XIV 146

As epiacutestolas autenticadas de Paulo satildeo Romanos 1 e 2 Coriacutentios Gaacutelatas Filipenses 1 Tessalonicenses e Filemom 147

Em seus relatos Hale (1983 p149) afirma que ldquoembora Clemente de Roma e Inaacutecio de Antioquia conhecessem algumas das cartas de Paulo a coleccedilatildeo concreta e existente mais antiga eacute o Cacircnon de Marciatildeo de cerca de 140-150 dC Esta lista inclui uma coleccedilatildeo editada de dez cartas de Paulo (em ordem Gaacutelatas I e II Coriacutentios Romanos I e II Tessalonicenses Laodicenses (Efeacutesios) Colossenses Filipenses e Filemom) As Pastorais foram provavelmente rejeitadas pelo fato de Marciatildeo ter sido um gnoacutestico O Fragmento Muratoriano (cerca de 180 dC) inclui as Pastorais nas treze epiacutestolas de Paulo mas Hebreus natildeo estaacute na coleccedilatildeo O mais antigo manuscrito grego (P 46 ) das epistolas de Paulo que foi preservado data de cerca do fim do segundo seacuteculo Este manuscrito pelo fato de colocar Hebreus entre Romanos e I Coriacutentios indica Paulo como sendo o autor de Hebreus II Tessalonicenses Filemom e as Pastorais estatildeo ausentes do manuscrito preservado mas a ausecircncia poderia ser devida a possiacutevel perda das ultimas folhas que conteriam estas cinco cartas

128

seus argumentos a favor da autoria de Paulo A ressalva de Hale (1983 p 247) eacute

quanto ao seu posicionamento favoraacutevel agrave ideia de anonimato da autoria do livro de

Hebreus por natildeo ser igual a nenhum outro livro do Novo Testamento pois comeccedila

como um tratado continua como um sermatildeo e conclui como uma epiacutestola

Na concepccedilatildeo de Becker (2007 p 24) o valor dado agraves coleccedilotildees de epiacutestolas no

contexto em que Paulo produziu suas correspondecircncias pode ter sido favoraacutevel ao

interesse na conservaccedilatildeo das epiacutestolas e talvez uma tentativa de rearranjo para

preservar e compilar as instruccedilotildees de Paulo como ponto de partida para a

instituiccedilatildeo do cristianismo Becker (2007 p25) indaga sobre a manipulaccedilatildeo em

algumas partes dos textos das epiacutestolas os supostos acreacutescimos148 agraves epiacutestolas aos

Romanos e aos Coriacutentios a criaccedilatildeo de epiacutestolas paralelas se natildeo poderiam ser

considerados como conclusatildeo redacional de uma coleccedilatildeo de epiacutestolas com vistas agrave

posteridade

Outro fator que interfere na expectativa da coleccedilatildeo dos escritos de Paulo eacute a

ausecircncia de outras epiacutestolas que ele poderia ter escrito como ele proacuteprio cita ldquoJaacute

lhes disse por carta que vocecircs natildeo devem associar-se com pessoas imoraisrdquo (1Cor

59) E ainda o comentaacuterio da epiacutestola recebida da igreja de Corinto ldquoOra quanto agraves

coisas que me escrevestesrdquo (1Cor 71)

Becker (2007 p 27) chama atenccedilatildeo para o valor de outras fontes externas agrave

coleccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo Estas fontes149 podem ser encontradas no cacircnon

148

Hale (1983 p142) analisa a discussatildeo sobre a integridade de Romanos 16 e alega que a maioria dos manuscritos de melhor evidencia inclui o capitulo 16 com a doxologia depois de 1623 Natildeo haacute nenhum manuscrito grego existente que natildeo inclui o capitulo 16 No que diz respeito agrave primeira epiacutestola aos Coriacutentios segundo Hale (1983 163) haacute falta de qualquer evidencia do manuscrito que apoiasse uma compilaccedilatildeo das duas primeiras cartas para formar uma Eacute por estas razotildees que a grande maioria dos estudiosos biblicos aceita a integridade da Primeira Epistola aos Coriacutentios canocircnica como assegurada Segundo Becker (2007 p 24) ldquohaacute boas razotildees para se supor que as comunidades colecionadoras natildeo soacute alinhavam os endereccedilos das cartas a que tinham acesso colocando talvez a carta a elas dirigida no inicio ou no final mas que tambeacutem interferiam no proacuteprio texto das cartas Sempre se chamou a atenccedilatildeo que a doxologia no final da Carta aos Romanos (Rm 1625-27) natildeo pertence agrave carta original ela apresenta uma linguagem que imita a de Paulo mas que eacute significativamente modificada e conteacutem uma teologia que se aproxima da teologia deutero-paulina presente em Efeacutesios ou Colossenses O mesmo sucede com partes das epiacutestolas aos Coriacutentios pelo menos mais duas passagens importantes do ponto de vista de conteuacutedo estatildeo sob suspeita de serem acreacutescimos natildeo-paulinos 1Cor 1433-36 e 2Cor 614-71 Esses acreacutescimos datildeo a entender que a coleccedilatildeo interessava a toda a cristandaderdquo 149

Com relaccedilatildeo agraves outras fontes que contribuem diretamente ou indiretamente com informaccedilotildees sobre a vida de Paulo Backer (2007 p 27) observa que ldquoeacute preciso antes de qualquer coisa fazer alusatildeo ao livro dos Atos dos Apoacutestolos que dedica mais do que a metade de seu texto a narrativas a respeito de Paulo Alem disso a primeira carta de Clemente e a carta de Inaacutecio de Antioquia citam os martiacuterios de Pedro e Paulo (cf XV3) Mesmo assim as duas citaccedilotildees satildeo comparativamente

129

que integra o Novo Testamento e oferecem mais credibilidade do que a literatura

apoacutecrifa No grupo de literatura apoacutecrifa destaca-se a coleccedilatildeo de epiacutestolas da

suposta correspondecircncia entre Paulo e Secircneca que teria deixado seus primeiros

vestiacutegios apoacutes o seacuteculo II dC Independente da veracidade do contato entre Paulo e

Secircneca ao analisar a escrita nas produccedilotildees destes dois autores identificam-se

certas proximidades quanto ao conteuacutedo eacutetico-moral de suas epiacutestolas

22 SEcircNECA E AS EPISTULAE MORALES

O tiacutetulo Epistulae Morales contribui para uma indicaccedilatildeo baacutesica do gecircnero no qual

Secircneca investe a produccedilatildeo de sua obra Natildeo basta identificar que o tiacutetulo da coleccedilatildeo

de Secircneca se engaja no gecircnero epistolar mas eacute necessaacuterio especificar o

subconjunto como gecircnero epistolar filosoacutefico Habinek (2005 p 85) analisa os

tratados e as epiacutestolas de Secircneca como um corpo de textos que podem ser

comparados para identificaccedilatildeo do interesse central que eacute a exortaccedilatildeo pois Secircneca

desenvolve um projeto filosoacutefico oferecendo aconselhamentos morais De acordo

com a opiniatildeo de Wilson (2001 p175) a hipoacutetese de Habinek eacute contraditoacuteria com a

teoria da epiacutestola antiga que natildeo eacute concebida como oportunidade para exortaccedilatildeo

mas como substituta da conversaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo de Wilson reforccedila a ideia da

ligaccedilatildeo da epiacutestola ao diaacutelogo

Wilson (2007 p437) comenta que no periacuteodo da uacuteltima fase das produccedilotildees de

Secircneca nota-se que ele adotou a epiacutestola como gecircnero literaacuterio por ser mais

favoraacutevel a um maior grau de liberdade em sua comunicaccedilatildeo Ainda o gecircnero

epistolar permitiu-lhe construir o discurso filosoacutefico como conversa privada como o

proacuteprio Secircneca assume em suas epiacutestolas optando pelo estilo coloquial

escassas O mesmo vale para as epiacutestolas deutero-paulinas (Efeacutesios Colossenses 2 Tessalonicenses 1 e 2 Timoteo Tito) que satildeo testemunhos de como o paulinismo se desenvolveu apoacutes a morte do Apoacutestolo Elas poreacutem somente podem ajudar de maneira limitada a projetar luz histoacuterica sobre Paulo (cf por exemplo 2Tm 311) Essa avaliaccedilatildeo eacute mais pertinente ainda acerca de escritos pertencentes aos apoacutecrifos no Novo Testamento antes de tudo acerca dos Atos de Paulo e da troca de correspondecircncia entre Seneca e Paulo Os Atos de Paulo jaacute satildeo atestados por Tertuliano Hipoacutelito e Oriacutegenes portanto a partir de 150 dC estatildeo amplamente divulgados As citaccedilotildees do filoacutesofo Secircneca deixam seus primeiros vestigios no seacuteculo II dC Jerocircnimo cita a correspondecircncia entre Secircneca e Paulo em 392 dC Ambos os escritos relacionados com o nome do Apoacutestolo Paulo estatildeo tatildeo distantes da teologia paulina e tatildeo claramente longiacutenquos de um conhecimento do tempo de Paulo que satildeo insignificantes para a interpretaccedilatildeo de Paulo O mesmo juiacutezo deve ser feito sobre a restante literatura paulina apoacutecrifa como por exemplo a carta agrave Laodiceia e os Atos Lendaacuterios de Paulo Tambeacutem as judeu-cristatildes e antipaulinas cartas pseudo-clementinas podem ser totalmente ignoradasrdquo

130

Se noacutes nos sentaacutessemos a conversar e discutiacutessemos passeando de um lado para o outro o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado pois eacute assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas que nada tenham de artificial e fingido (SEcircNECA Ep 751)

A partir dessa intervenccedilatildeo de Secircneca fica declarado seu propoacutesito de recorrer ao

gecircnero epistolograacutefico para exposiccedilatildeo de suas ideias de modo espontacircneo como

revelaccedilatildeo da alma Portanto o que importa natildeo eacute a literatura enquanto manifestaccedilatildeo

artiacutestica mas sua relaccedilatildeo entre escritor leitor e sua representatividade como obra

Edwards (2007 p 271) relaciona a epiacutestola em prosa com a produzida em verso

apontando para o caraacuteter literaacuterio na constitutividade da epiacutestola na Antiguidade

mencionando a qualidade literaacuteria da correspondecircncia de Ciacutecero Outro destaque

fornecido por Edwards (2007 p 274) eacute quanto agrave circulaccedilatildeo das coleccedilotildees das

epiacutestolas de Platatildeo e Epicuro consideradas textos literaacuterios de caraacuteter filosoacutefico Na

produccedilatildeo romana Horaacutecio interliga literaacuterio e filosoacutefico na criaccedilatildeo de suas epiacutestolas

em versos Na sequecircncia histoacuterica Oviacutedio adota o gecircnero epistolar em forma de

verso mas usa o mito e a ficccedilatildeo na conduccedilatildeo literaacuteria de suas epiacutestolas

Inwood (2007 p 137) se posiciona a favor da classificaccedilatildeo da correspondecircncia de

Secircneca no campo da epistolografia filosoacutefica e observa que o poder literaacuterio e a

influecircncia das epiacutestolas como um legado deixado por Secircneca despertou em

Foucault o interesse em compreender o estoicismo imperial do seacuteculo I dC atraveacutes

dessas produccedilotildees A respeito da escrita de si e do cuidado de si na Antiguidade

Foucault (2004 p157) toma como apoio a epistolografia recorrendo aos

personagens estoicos Secircneca e Marco Aureacutelio e algumas citaccedilotildees de Pliacutenio

observando que nesses autores ldquoa narrativa de si eacute a relaccedilatildeo consigo mesmordquo Os

postulados de Foucault contribuem como apoio aos que defendem a

correspondecircncia entre Secircneca e Luciacutelio como gecircnero epistolar pois pontos baacutesicos

na elaboraccedilatildeo das epiacutestolas caracterizam o gecircnero epistolar na Antiguidade150 Em

sua anaacutelise da epiacutestola setenta e oito Foucault (2004 p168) identifica um lugar

comum na produtividade da correspondecircncia na Antiguidade em que as notiacutecias

sobre a sauacutede eram assuntos recorrentes entre os interlocutores da missiva

ldquoLamento saber que sofres frequentemente de gripe e daquelas febres ligeiras e

150

Morello e Morrisson (2007 p ix) apontam que determinados toacutepicos satildeo regulares na epistolografia latina O toacutepico mais frequente eacute relacionado agraves questotildees de sauacutede por meio de recomendaccedilotildees conselhos ou ateacute mesmo metaacuteforas Outro toacutepico recorrente eacute a ministraccedilatildeo didaacutetica de teacutecnica de algum conhecimento

131

irritantes que as gripes prolongadas e jaacute quase ininterruptas arrastam consigordquo (Ep

781) A partir desse toacutepos Secircneca insere seus conselhos e recomendaccedilotildees ao

transcorrer de sua comunicaccedilatildeo ldquoum homem tem que lutar contra a dor de alma e

coraccedilatildeo se ceder agrave dor seraacute vencido mas se juntar com ela todas as forccedilas sairaacute

vencedorrdquo (Secircn Ep 7815) Outro toacutepos que Foucault (2004 p155) destaca em sua

anaacutelise eacute a aproximaccedilatildeo entre ausentes atraveacutes da correspondecircncia pois a epiacutestola

torna o remetente presente para aquele a quem ele envia ldquonunca recebo uma carta

tua sem que imediatamente fiquemos um na companhia do outrordquo (Secircn Ep 401)

Como jaacute discutido vale enfatizar que tanto gregos como romanos concebiam a

epiacutestola com caracteriacutesticas de forma literaacuteria e eacute nessa perspectiva que Alexandre

Jr (2015 p 170) identifica a ldquoinevitaacutevel influecircncia da retoacuterica no gecircnero epistolar

como um veiacuteculo de importacircncia no tracircnsito da comunicaccedilatildeo na Antiguidade claacutessica

e Heleniacutesticardquo Por isso este autor visualiza que a proacutepria funccedilatildeo do gecircnero epistolar

foi sempre maleaacutevel agrave aplicaccedilatildeo dos recursos da retoacuterica permitindo assim a

penetraccedilatildeo da argumentaccedilatildeo na construccedilatildeo nos discursos desse gecircnero

Aprofundando mais em suas consideraccedilotildees Alexandre Jr (2015 171) afirma que os

discursos de consolaccedilatildeo encontraram no gecircnero epistolar ldquoa forma retoacuterica e literaacuteria

que mais se prestou a veicular seus conteuacutedosrdquo Assim nas epiacutestolas em que a

retoacuterica eacute mais evidente satildeo perceptiacuteveis as trecircs partes do discurso abertura

desenvolvimento e conclusatildeo A flexibilidade no estilo era o fator fundamental A

epiacutestola sessenta e trecircs de Secircneca a Luciacutelio serve como indicaccedilatildeo dessa praacutetica

Logo na introduccedilatildeo ele daacute o tom de consolaccedilatildeo na sua mensagem ldquoLamento

profundamente o falecimento de seu amigo Flaco no entanto entendo que a tua dor

natildeo deve ultrapassar o limite do razoaacutevelrdquo (Secircn Ep 631) Apoacutes a introduccedilatildeo

(exordium) algumas reflexotildees vatildeo se desenvolvendo (narratio) ao longo da epiacutestola

entre exemplos e conselhos ldquoGozemos intensamente a companhia dos nossos

amigos ateacute porque natildeo podemos saber por quanto tempo o faremosrdquo (Secircn Ep

639) Na conclusatildeo (conclusio) o desfecho se liga agrave abertura [] ldquoateacute pode suceder

que tenham razatildeo os saacutebios e haja um lugar onde todos iremos residir apoacutes a morte

se assim for esse amigo que julgamos ter morrido limitou-se a partir para laacute agrave nossa

frenterdquo (Secircn Ep 6316)

Outro toacutepico a ser considerado na epistolografia eacute o fenocircmeno da relaccedilatildeo EUTU

que se fundamenta no princiacutepio do diaacutelogo Em sua contribuiccedilatildeo para os estudos

132

neste campo Braren identifica alguns toacutepicos inerentes ao gecircnero epistolar

destacando o aspecto elocutivo da enunciaccedilatildeo

Na verdade o extraordinaacuterio de um texto epistolograacutefico satildeo as marcas que estabelecem a ligaccedilatildeo entre o proacuteprio autor da carta e o missivista o enunciador natural em primeira pessoa seja em qualquer niacutevel que ocorrer Procuramos conhecer os sinais de identificaccedilatildeo reveladores da personalidade da ideologia ou da filosofia do eu que fala No caso da Antiguidade Claacutessica o texto eacute tudo ou quase tudo que temos Fornece-nos o material de investigaccedilatildeo que seraacute tanto mais vivo quando melhor estabelecer a comunicaccedilatildeo principal requisito do discurso epistolograacutefico (quer a comunicaccedilatildeo seja efetuada com o endereccedilado quer seja com o leitor) (BRAREN 1999 p 40)

No gecircnero epistolar predomina o modo elocutivo na organizaccedilatildeo do discurso no qual

Charaudeau (2008 p74) identifica como funccedilatildeo essencial o fato de ldquodar conta da

posiccedilatildeo do locutor com relaccedilatildeo ao interlocutor a si mesmo e aos outrosrdquo sendo

esse mecanismo um indicador do acontecimento enunciativo Eacute nessa perspectiva

que o gecircnero epistolar favorece a identificaccedilatildeo do cuidado de si como analisado por

Foucault em suas uacuteltimas pesquisas Por isso Secircneca declara ldquoa natureza

incumbe-me de cuidar de mimrdquo (Ep 12116)

Natildeo haacute registros de epiacutestolas de Luciacutelio em reposta a Secircneca mas Ebbeler (2001

p174) observa que Secircneca manteacutem a ficccedilatildeo da correspondecircncia e o diaacutelogo eacute

constituiacutedo pelas evidecircncias ldquoA tua carta encheu-me de satisfaccedilatildeo e restituiu-me um

pouco as forccedilas que me vatildeo faltando reavivou-me mesmo a memoacuteria que jaacute se me

vai tornando cansada e lentardquo (SEcircNECA Ep 741)

Segurado e Campos (1991 p XIV) analisa a interlocuccedilatildeo entre Secircneca e Luciacutelio

como apresentado nos textos das epiacutestolas e observa que haacute traccedilos que contribuem

para autenticar a veracidade da correspondecircncia Para este autor o que pode

confundir o leitor eacute a presenccedila de caracteriacutesticas da diatribe ciacutenica151 em alguns

aspectos da construccedilatildeo das epiacutestolas O traccedilo mais evidente da caracterizaccedilatildeo da

diatribe eacute o chamado interlocutor fictiacutecio como esclarece Segurado e Campos

151

Reale (1994a p 45) informa que o ciacutenico Bion de Boriacutestenes (335-245 aC) no periacuteodo Heleniacutestico exerceu um papel importante no iniacutecio do cinismo principalmente na aacuterea da literatura Foi ele quem provavelmente deu origem agrave forma literaacuteria da diatribe ndash um monoacutelogo argumentativo com interlocutores imaginaacuterios A paroacutedia eacute usada natildeo exatamente para obter efeitos cocircmicos mas para contestar as convenccedilotildees e regras da sociedade que os ciacutenicos rejeitavam Essas caracteriacutesticas influenciaram escritores romanos como Luciacutelio e Horaacutecio na produccedilatildeo das saacutetiras Nota-se que Paulo tambeacutem faz uso da diatribe como identificado nestes versos ldquoMas algueacutem diraacute Como ressuscitaratildeo os mortos E com que corpo viratildeo Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se primeiro natildeo morrerrdquo (1Cor 1535-36)

133

[] o processo eacute bem conhecido tanto da suasoriae propriamente ditas como ainda dos textos filosoacuteficos [] consiste o processo em o autor imaginar que uma sua afirmaccedilatildeo eacute objectada por algueacutem (interlocutor fictiacutecio) objeccedilatildeo essa que lhe daacute oportunidade para retornar sua ideia original e comprovaacute-la com novos argumentos ou ilustraacute-la com nova e mais impressionante exemplificaccedilatildeordquo (SEGURADO E CAMPOS 1991 p XV)

A ideia de um interlocutor fictiacutecio na enunciaccedilatildeo abre espaccedilo para que Secircneca faccedila

uso da diatribe expandindo suas reflexotildees filosoacuteficas por meio de um diaacutelogo

imaginaacuterio independente dos questionamentos reais do co-enunciador na figura de

Luciacutelio A estrateacutegia da diatribe introduz o uso de exemplos para dar sustentaccedilatildeo

aos argumentos e as maacuteximas para aplicaccedilatildeo moral aos ensinamentos Com esses

recursos Secircneca daacute sequecircncia agrave ordem das epiacutestolas de acordo com os assuntos

que vatildeo sendo introduzidos O proacuteprio Secircneca assume o uso da estrateacutegia da

diatribe ldquoMas jaacute chega de diatribe contra Baacuteias contra os viacutecios poreacutem nunca ela

seraacute excessivardquo (Ep 5113)

Apoiando a ideia da organizaccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca como coleccedilatildeo Inwood

(2005 p 137-146) expotildee que haacute uma variedade de formas identificadas nas

produccedilotildees das epiacutestolas Algumas satildeo mais teacutecnicas e doutrinaacuterias outras satildeo

mais informais permitindo ao autor falar de si mesmo e evidencia suas proacuteprias

experiecircncias Mesmo que a filosofia moral seja predominante outros temas satildeo

acrescentados inclusive a polecircmica contra outras escolas ou mesmo com

antecessores do estoicismo

Todas essas caracteriacutesticas apontadas contribuem para a identificaccedilatildeo das epiacutestolas

de Secircneca constituiacutedas como gecircnero epistolograacutefico e mais especificamente como

gecircnero epistolar filosoacutefico De acordo com as consideraccedilotildees de Edwards (2005 p

278) a leitura das epiacutestolas em sequecircncia permite estabelecer o niacutevel do progresso

filosoacutefico tendo em vista o destinataacuterio O caraacuteter filosoacutefico da obra eacute delineado a

partir da primeira epiacutestola e os temas vatildeo sendo tratados em um crescente e agraves

vezes satildeo revisitados sob outros acircngulos Os toacutepicos como lugar comum na

constituiccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico aparecem como garantia da caracterizaccedilatildeo

do proacuteprio gecircnero Esses toacutepicos satildeo variados de acordo com o remetente e

destinataacuterio podendo ser identificados como o falar de si mesmo abrir-se com o

outro dar conselhos e instruccedilotildees entre outros

Ao constatar a amplitude do uso da correspondecircncia Young (2005 p 11) observa

que a identificaccedilatildeo do gecircnero epistolar se torna crucial na determinaccedilatildeo de como o

134

texto deve ser lido Ainda pode-se acrescentar agrave essa colocaccedilatildeo de Young que a

epiacutestola como gecircnero estaacute ligada a um tipo de discurso que tem sua origem nos

discursos constituintes Esse eacute um fator essencial para a leitura das epiacutestolas de

Secircneca e de Paulo e o tratamento ao corpus de anaacutelise neste trabalho aqui

desenvolvido

23 CONJECTURAS SOBRE A TROCA DE CORRESPONDEcircNCIA ENTRE

PAULO E SEcircNECA

O interesse de aproximaccedilatildeo dos discursos de Paulo e Secircneca se efetua desde os

primoacuterdios do cristianismo Nota-se que a lenda que se criou de uma possiacutevel

correspondecircncia entre estes dois autores tem provocado o interesse de

pesquisadores em desvendar esse cenaacuterio especulativo Um dos pesquisadores

nesta aacuterea eacute Ferreira (2012)152 que deu o seguinte tiacutetulo ao seu trabalho Secircneca e

Paulo de Tarso conjecturas em torno de uma correspondecircncia incerta Ferreira

(2012 p149) observa que em fontes encontradas nos primeiros textos da literatura

cristatilde haacute referecircncias de Tertuliano153 quanto agraves ideias de Secircneca filosoacutefico mas

nenhuma menccedilatildeo quanto agrave aproximaccedilatildeo entre Secircneca e o apoacutestolo Paulo

A pesquisa realizada se mostra bastante minuciosa apontando as dificuldades de se

conceber as possibilidades de uma existecircncia real de tais epiacutestolas trocadas entre

Secircneca e Paulo O material referente agraves fontes toma como base a publicaccedilatildeo de

catorze epiacutestolas ndash oito de Secircneca e seis de Paulo Segundo Ferreira os

manuscritos desta correspondecircncia estatildeo situados entre os seacuteculos XII e XIII dC

No trabalho deste pesquisador eacute realizado um levantamento de dados como

resultado de uma busca histoacuterica que situa as fontes indicadas como suporte para

autenticar ou negar a existecircncia da suposta correspondecircncia Nessa pesquisa de

Ferreira eacute confirmada a referecircncia a jaacute conhecida circulaccedilatildeo das epiacutestolas trocadas

152

Parte integrante do livro produzido pelo Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra intitulado Paulo de Tarso grego e romano judeu e cristatildeo 153

Segundo Ferreira (2012 p 149) ldquodos Padres da Igreja o primeiro a mostrar um bom conhecimento de Seacuteneca foi Quinto Tertuliano que viveu entre 160 e 240 dC e por volta de 195 se converteu ao Cristianismo Entre os oito passos onde explicitamente se menciona o nome ou apenas se pressente o texto de Seacuteneca conta-se Anim 201rdquoSeneca saepe nosterrdquo Ferreira (2012 p 151) ainda menciona que ldquoapesar de se natildeo referirem a qualquer correspondecircncia entre Paulo e Seacuteneca jaacute os Actos Apoacutecrifos dos Apoacutestolos que devem ter sido compostos entre os seacutec II e IV dC relatavam a gesta de Paulo na corte de Nero E seria precisamente aqui que para Bocciolini Palagi estaria a origem da lenda do contacto entre Paulo de Tarso e Seacuteneca que teria servido de intermediaacuterio entre o apoacutestolo e Nerordquo

135

entre Secircneca e Paulo na obra de Jerocircnimo intitulada De uiris illustribus XII154

Ferreira (2012 p 151) assim registra sua traduccedilatildeo com base no texto de Barlow

em inglecircs155

Luacutecio Aneu Seacuteneca de Coacuterduba disciacutepulo do estoacuteico Soacutecion e tio paterno do poeta Lucano levou vida assaz regrada Natildeo o incluiria no cataacutelogo dos santos se a tal me natildeo tivessem induzido as cartas que satildeo lidas por muitos de Paulo a Seacuteneca ou de Seacuteneca a Paulo e onde embora mestre de Nero e o homem mais poderoso do tempo diz que desejava ser tido junto dos seus na mesma conta em que era tido Paulo junto dos Cristatildeos (De uiris illustribus XII)

Em torno dessa colocaccedilatildeo de Jerocircnimo circulam diferentes interpretaccedilotildees como

demonstrado por Ferreira fato que enfraquece a possiacutevel veracidade a respeito da

existecircncia das epiacutestolas citadas como sendo de Secircneca e Paulo no seacuteculo I dC

No seacuteculo IX de nossa era houve uma retomada bem marcada do tema controverso

sobre essa suposta troca de correspondecircncia Com esse mesmo objetivo Ligthfoot

(1892 p 318) faz uma anaacutelise do conteuacutedo das catorze epiacutestolas (oito de Secircneca e

seis de Paulo) e expotildee alguns comentaacuterios a respeito do assunto Para ele as

hipoteacuteticas epiacutestolas trocadas natildeo contecircm questotildees doutrinaacuterias e nem mesmo

alguma informaccedilatildeo histoacuterica relevante A mais provaacutevel inferecircncia que se obteacutem do

resumido comentaacuterio de Jerocircnimo eacute de que natildeo se aceita deliberadamente o fato

como genuiacuteno Ao olhar o comentaacuterio de Jerocircnimo com mais atenccedilatildeo percebe-se

um texto vago e a ausecircncia de informaccedilatildeo segura como pode ser observado ldquoNatildeo

o incluiria no cataacutelogo dos santos se a tal me natildeo tivessem induzido as cartas que

satildeo lidas por muitos de Paulo a Secircneca ou de Secircneca a Paulo []rdquo (De uiris

illustribus XII) Na mesma linha de conduta Agostinho156 natildeo acrescenta nenhum

dado novo repetindo casualmente as informaccedilotildees de Jerocircnimo Assim Ligthfoot

(1892 p 320) conclui ldquoThere is no reason to suppose that Jerome did believe the

correspondence to be genuine as I have shownrdquo157

154

392 dC eacute registrado como o ano da publicaccedilatildeo de De uiris illustribus Segundo Ferreira os manuscritos da correspondecircncia entre Paulo e Secircneca estatildeo situados nos seacuteculos XII e XIII dC 155

Ferreira (2012 p 151) cita o autor de onde retirou o texto base para sua traduccedilatildeo BARLOW C W Epistolae Senecae ad Paulum et Pauli ad Senecam ltquae uocanturgt Roma American Academy in Rome 1938 156

Ferreira (2012 p153) tambeacutem expotildee que ldquoalgum tempo depois mais propriamente em 413 eacute Santo Agostinho quem em Epistula ad Mecedonium se refere agrave correspondecircncia nestes termos Merito ait Seneca (qui temporibus Apostolorum fuit cuius etiam quaedam ad Paulum apostolum leguntur epistolae) ldquoJustamente Seacuteneca (que viveu no tempo dos Apoacutestolos e do qual ainda se lecircem algumas das cartas a Paulo Apoacutestolo)rdquo 157

Lightfoot (1892 p320) ldquoNatildeo haacute razatildeo para supor ser genuiacutena a correspondecircncia (entre Secircneca e Paulo) como eu tenho demonstradordquo

136

Ferreira se posiciona em relaccedilatildeo agraves impossibilidades de autenticidade dessas

epiacutestolas serem oriundas da escrita de Secircneca e de Paulo pelo fato delas se

apresentarem escritas em latim no mesmo patamar de igualdade do uso claacutessico da

liacutengua latina Pela identificaccedilatildeo da escrita das missivas o latim usado por Secircneca eacute

equivalente ao usado por Paulo158 A partir de entatildeo se estabelecem as duacutevidas

visto que as epiacutestolas de Paulo e os demais livros do Novo Testamento foram

escritos em grego e natildeo haacute prova histoacuterica do uso do latim em registros das

produccedilotildees de epiacutestolas de Paulo Nesse ponto Ferreira (2012 p 174) expressa sua

concordacircncia com alguns pesquisadores e expotildee ldquoParecem ter razatildeo quantos

defendem tratar de uma correspondecircncia forjada por quem queria mostrar que o

cristianismo natildeo tinha conquistado adeptos apenas nos estratos sociais mais

baixosrdquo

As discussotildees a respeito da suposta troca de correspondecircncia perpassam por

outras questotildees relacionadas agrave postura de Secircneca mediante os conceitos

fundadores do cristianismo Haveria uma afinidade ideoloacutegicamoral entre os dois

autores das epiacutestolas e natildeo exatamente uma identificaccedilatildeo religiosa Decerto esta

discussatildeo natildeo eacute recente e indica que aceitar a autenticidade do conteuacutedo da

hipoteacutetica correspondecircncia entre Secircneca e Paulo implica aceitar tambeacutem que

Secircneca se converteu ao cristianismo e este eacute o noacute da questatildeo Marcos Viniacutecius

Fernandes Miranda concluiu seu mestrado na Universidade Estadual de Maringaacute

(2008) com a dissertaccedilatildeo intitulada Do viacutecio agrave virtude uma proposta educativa em

Secircneca Em parceria com Joseacute Joaquim Pereira Melo Doutor em Histoacuteria e

professor do departamento de Fundamentos da Educaccedilatildeo da Universidade Estadual

de Maringaacute realizaram a traduccedilatildeo para o portuguecircs das chamadas epiacutestolas

apoacutecrifas de Secircneca e Paulo e informam que as fontes utilizadas satildeo a versatildeo para

liacutengua inglesa feita em 1924 por M R James medievalista da Universidade de

Cambridge e a traduccedilatildeo tambeacutem para o Inglecircs feita em 1938 por C W Barlow em

158

Na penuacuteltima epiacutestola da suposta troca de correspondecircncia entre Secircneca e Paulo o proacuteprio Secircneca faz algumas advertecircncias quanto ao uso do latim nas epiacutestolas de Paulo SEcircNECA PARA PAULO Ep 13 Saudaccedilotildees Em muitas partes do seu trabalho estatildeo incluiacutedas paraacutebolas e enigmas portanto a grande forccedila e talento que foram dados a vocecirc deveriam ser embelezados eu natildeo digo com palavras elegantes mas com certo cuidado Vocecirc natildeo deveria temer quando lhe lembro do que vocecirc frequumlentemente tem dito que muitos que se preocupam com tais coisas corrompem o pensamento e tornam degenerada a profundidade do assunto Eu queria que vocecirc me fizesse uma concessatildeo e adaptasse o genial Latim dando beleza agraves suas nobres palavras e que a grande daacutediva que tem sido concedida a vocecirc possa ser tratada com o devido valor Adeus Dada no dia antes de nones de junho Leo e Sabinus cocircnsules Trad de Marcos V F Miranda e Joseacute Joaquim P Melo

137

Roma No final da traduccedilatildeo Miranda e Melo expressam a seguinte opiniatildeo

As quatorze cartas autecircnticas ou natildeo produto da imaginaccedilatildeo ou uma estrateacutegia de legitimaccedilatildeo ao menos ilustram a inegaacutevel valorizaccedilatildeo de Luacutecio Aneu Secircneca por parte dos primeiros autores cristatildeos Ao contraacuterio de seus criacuteticos que na maioria dos casos se opunham ao seu pensamento e agrave sua praacutetica poliacutetica os cristatildeos adotaram uma postura diferenciada e se voltaram para as suas ideias suas sentenccedilas e sua doutrina orientaccedilatildeo que gerou em alguns deles a ideia comum e aceita de um Secircneca pagatildeo como precursor do cristianismo e em outros a de um Secircneca agraves veacutesperas da conversatildeo ao cristianismo Contudo os legados satildeo muacutetuos se no seacuteculo I dC Secircneca ldquoemprestourdquo seu prestiacutegio agrave feacute cristatilde provavelmente eacute a ela que ele deve a sua ldquosobrevivecircnciardquo e notoriedade ateacute os nossos dias (MIRANDA MELO 2007 p 8)

Na introduccedilatildeo de sua pesquisa sobre epistolografia Ebbeler (2001 p1) menciona a

circulaccedilatildeo da correspondecircncia entre Secircneca e Paulo que ela declara considerar

fictiacutecia Poreacutem esta autora admite que este fenocircmeno fortalece o valor dado agrave

epistolografia em especial no seacuteculo IV d C Em nota informativa fica indicado que

os manuscritos dessas catorze epiacutestolas datados do seacuteculo IX dC se encontram

em Vienna public library

A coleccedilatildeo da suposta correspondecircncia entre Secircneca e Paulo mostra que o gecircnero

epistolograacutefico requerido para aquelas produccedilotildees verdadeiras ou forjadas natildeo

segue os tipos de gecircnero epistolograacutefico usados por Secircneca e Paulo Seria um

terceiro gecircnero voltado para o interesse de comunicaccedilatildeo entre emissaacuterio e

destinataacuterio visando aproximaccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma possiacutevel amizade159

Ebbeler (2001 p 44) defende que a identificaccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico e sua

forma no ato enunciativo eacute essencial para a apreensatildeo do texto Ao revisitar

historicamente o desempenho da epiacutestola desde a Antiguidade eacute possiacutevel observar

a importacircncia desse gecircnero no seacuteculo I dC e o papel fundamental que Secircneca e

Paulo desempenharam como protagonistas na produccedilatildeo epistolar O uso da

correspondecircncia foi muito ampliado no periacuteodo Heleniacutestico pois este representou

um momento de interaccedilatildeo entre povos orientais e ocidentais Assim Paulo estaacute no

lado dos orientais e Secircneca dos ocidentais O ponto de uniatildeo entre ambos eacute o

gecircnero epistolar no contexto da cultura heleniacutestica a partir dos discursos

constituintes que os direcionam

159

SEcircNECA PARA PAULO Ep 3 - Saudaccedilotildees Eu estou compilando e organizando alguns escritos num volume Eu tambeacutem resolvi lecirc- los para Ceacutesar Se a sorte me ajudar que ele possa me ouvir com atenccedilatildeo Talvez vocecirc tambeacutem esteja laacute Caso contraacuterio eu marcarei um outro dia no qual possamos examinar juntos o trabalho Realmente eu natildeo poderia apresentar este trabalho a ele sem primeiro saber da sua opiniatildeo para que natildeo haja risco de vocecirc achar que esteja sendo relegado Adeus querido Paulo Trad de Marcos V F Miranda e Joseacute Joaquim P Melo (2007)

138

3 FORMACcedilAtildeO JUDAICO-HELENIacuteSTICA DE PAULO E SEU POSICIONAMENTO

DISCURSIVO NAS EPIacuteSTOLAS

No livro Greacutecia e Roma Funari (2002 p 75) procura esclarecer a distinccedilatildeo entre

helenismo e heleniacutestico Na origem desses vocabulaacuterios destaca-se o termo helenos

como designaccedilatildeo que identifica os gregos No primeiro plano helenismo significa

todo o movimento histoacuterico que envolve os helenos (gregos) Em segundo plano a

nomeaccedilatildeo heleniacutesticos contempla os povos dominados englobando o periacuteodo das

conquistas de Alexandre na expansatildeo do impeacuterio macedocircnico perdurando este ateacute

a data do domiacutenio de Roma sobre a Greacutecia

De acordo com as observaccedilotildees de Funari o termo helenismo agraves vezes eacute confundido

com o heleniacutestico entatildeo este autor oferece os seguintes esclarecimentos

Os gregos chamavam-se de helenos e os estudiosos modernos utilizaram o termo heleniacutestico para referir-se agrave civilizaccedilatildeo que se utilizava do grego como liacutengua oficial a partir das conquistas de Alexandre o Grande (336 aC) ateacute o domiacutenio romano da Greacutecia em 146 aC Ou seja eacute um termo que natildeo se confunde com helecircnico que eacute o mesmo que grego Embora seja aplicado a um periacuteodo de tempo relativamente curto este foi marcado por grandes interaccedilotildees culturais Alexandre conquistou um imenso territoacuterio as cidades gregas todas mas tambeacutem o Egito a Palestina a Mesopotacircmia a Peacutersia (Iratilde) chegando agrave Iacutendia Depois de sua morte prematura o Impeacuterio dividiu-se em trecircs reinos centrados na Macedocircnia no Egito e na Mesopotacircmia (FUNARI 2002 p 75)

Jaeger (1965 p 13) menciona que na origem do termo helenismo significava o

purismo da liacutengua grega sem outras influecircncias e interferecircncias e primava-se pelo

padratildeo no uso gramatical da liacutengua Nesse contexto os retoacutericos eram os guardiotildees

daquele ideal linguiacutestico e posteriormente o termo helenistas eacute aplicado na

identificaccedilatildeo daqueles que adotavam o grego como sua liacutengua de uso oficial

Portanto independente da nacionalidade o indiviacuteduo falante da liacutengua grega como

forma de comunicaccedilatildeo em seu ambiente de convivecircncia era considerado helenista

De acordo com as observaccedilotildees de Jaeger (1965 p15) algumas referecircncias sobre

helenistas160 estatildeo contidas no Novo Testamento o que pode ser identificado em

160

Vale destacar que essas designaccedilotildees cunhadas de helenismo heleniacutestico e helenistas natildeo fazem parte do arsenal linguiacutestico da Antiguidade pois foram convencionadas a partir do seacuteculo XIX Conforme indica Biazott (2015 p 182) Johann Gustav Droysen (1808 ndash 1884) publicou em 1833 Geschichte Alexanders des Grossen obra responsaacutevel por inaugurar o termo ldquohelenismordquo na era Moderna dando a ele um conceito que extrapolava as conataccedilotildees concebidas no campo religioso no qual seus sentidos estavam integrados

139

Atos 6 15161 conforme mencionado tambeacutem na anaacutelise de Silvatici (2006 p 176)

em sua tese sobre Os judeus helenistas e a primeira expansatildeo cristatilde Aleacutem dessa

indicaccedilatildeo biacuteblica analisada por Silcatici outro fato a ser destacado se encontra na

narrativa do evangelho de Joatildeo162 sobre os gregos que estavam em Jerusaleacutem para

as comemoraccedilotildees da paacutescoa e pediram a Filipe que os encaminhassem a Jesus

porque desejavam falar com Ele A referecircncia aos gregos que procuraram Jesus

aparece no texto biacuteblico em grego koineacute como ελλήνες (helenos) A nota deste

texto na Biacuteblia de Jerusaleacutem identifica que o termo grego eacute referente aos natildeo

judeus que aderiram o monoteiacutesmo de Israel e em certa medida as observacircncias

dos costumes judaicos Outro fato inerente a esse texto eacute a comunicaccedilatildeo daqueles

gregos com o disciacutepulo chamado Filipe por certo um falante da liacutengua grega o que

se justifica pela proacutepria origem do seu nome

Na perspectiva de Ramos (2002 p 197) o helenismo pode ser considerado como

fator de interculturaccedilatildeo entre parte do oriente e do ocidente ldquoNo caso dos hebreus

o pensamento biacuteblico aproveita-se de um espaccedilo cultural exterior ao seu mundo

natural do antigo orienterdquo Assim as condiccedilotildees daquela eacutepoca favorecem uma

adesatildeo e adaptaccedilatildeo agraves influecircncias culturais gregas por parte dos orientais das

regiotildees dominadas pelo impeacuterio macedocircnico Hale (1983 p 9) identifica Alexandre

como o responsaacutevel pela fusatildeo comercial dos paiacuteses orientais dominados tendo a

liacutengua grega como meio de interaccedilatildeo mais favoraacutevel para possibilitar o

relacionamento entre orientais e ocidentais

Conforme indicaccedilotildees de Leacutevecircque (1987 p19) a morte de Alexandre (323 aC) eacute

um marco histoacuterico para o iniacutecio do periacuteodo Heleniacutestico Documentos encontrados

em papiros contendo epiacutestolas de vaacuterios tipos material de estudos transaccedilotildees

comerciais entre outros servem de fonte para informaccedilotildees que contribuem para

161

ldquoIntervieram entatildeo alguns da sinagoga chamada dos libertos dos cireneus e alexandrinos dos da Ciliacutecia e da Aacutesia e puseram-se a discutir com Estevatildeordquo (Biacuteblia de Jerusaleacutem Atos 69) A nota referente a este verso daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquoOs helenistas judeus que viveram fora da Palestina haviam adotado certa cultura grega e dispunham em Jerusaleacutem de sinagogas particulares em que a biacuteblia era lida em gregordquo 162

ldquoOra havia alguns gregos entre os que tinham subido a adorar no dia da festa Estes pois dirigiram-se a Filipe que era de Betsaida da Galileacuteia e rogaram-lhe dizendo Senhor queriacuteamos ver a Jesusrdquo (Joatildeo 12 20-21) (ησαν δε τινες ελληνες εκ των αναβαινοντων ινα προσκυνησωσιν εν τη εορτη ουτοι ουν προσηλθον φιλιππω τω απο βηθσαιδα της γαλιλαιας και ηρωτων αυτον λεγοντες κυριε θελομεν τον ιησουν ιδειν )

140

identificaccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo da fase inicial do periacuteodo Heleniacutestico Leacutevecircque

oferece uma descriccedilatildeo bem detalhada sobre os conflitos que se intensificaram com

a perda da figura emblemaacutetica de Alexandre De acordo com os registros de

Leacutevecircque (1987 p 22) apoacutes quarenta anos de disputas internas de poder e a

impossibilidade da manutenccedilatildeo da governabilidade o impeacuterio foi dividido em trecircs

reinos o Egito sob o governo de Ptolomeu II a Aacutesia foi governada por Antiacuteoco I e a

Macedocircnia por Antiacutegono

No periacuteodo Heleniacutestico os judeus compunham-se em dois grupos distintos os que

viviam na Palestina e os da diaacutespora Leacutevecircque (1987 p 47) relata que a Judeia e

Siacuteria integraram o reino do Egito por algum tempo Nesse periacuteodo a cidade de

Alexandria se tornou o centro helenizado que concentrava a reuniatildeo de diferentes

etnias e muitos judeus se estabilizaram naquela regiatildeo Sendo a liacutengua grega o meio

de comunicaccedilatildeo de diferentes raccedilas transformaccedilotildees aconteceram naquele sistema

linguiacutestico surgindo entatildeo o grego koineacute considerado mais popular em relaccedilatildeo ao

claacutessico Leacutevecircque (1987 p 100) ressalta que durante o classicismo o dialeto aacutetico

atingiu uma inegaacutevel primazia sustentada pela superior intelectualidade de Atenas Eacute

este dialeto grego que constitui a base para a liacutengua koineacute com fins pragmaacuteticos

tornando-se numa liacutengua de uma cultura de vasta difusatildeo Nesse contexto Atenas

perde a centralidade das produccedilotildees literaacuterias com exceccedilatildeo da comeacutedia Aos

poucos Alexandria ocupa parte do espaccedilo deixado mas Atenas prevalece como

centro da filosofia e ciecircncias

Hale (1983 p10) observa que a Palestina sofreu uma helenizaccedilatildeo gradual sem

imposiccedilatildeo externa Um fenocircmeno de transformaccedilatildeo linguiacutestica afetou tambeacutem a

Judeia Gradativamente o hebraico na liacutengua falada havia cedido lugar ao

aramaico no periacuteodo dos setenta anos do exiacutelio babilocircnico O mesmo aconteceu

com o grego no domiacutenio do impeacuterio macedocircnico Entatildeo a adesatildeo agrave cultura

heleniacutestica influenciou a retirada de judeus para regiotildees de fala grega e ainda pelo

incentivo do direito de cidadania idecircntico aos macedocircnios concedido pelos

Ptolomeus163

163

Leacutevecircque (1987 p 22) informa que apoacutes a morte de Alexandre o impeacuterio foi governado por quatro dos seus generais Selecircuco ficou com parte da Siacuteria e Mesopotacircmia Ptolomeu com o Egito Palestina e parte da Siacuteria mantendo uma dinastia ateacute o domiacutenio romano Antiacutepatro (que logo foi substituiacutedo por seu filho Casandro) ficou com os domiacutenios da Macedocircnia e Greacutecia Lisiacutemaco governou a Traacutecia e parte da Aacutesia menor

141

A obra Histoacuteria dos hebreus de Flaacutevio Josefo (XI 8452) conteacutem informaccedilotildees a

respeito do contato histoacuterico de Alexandre com o sumo sacerdote Jado164 no

acontecimento da tomada de Jerusaleacutem Essa alianccedila feita entre Alexandre e os

judeus foi determinante na inauguraccedilatildeo do periacuteodo Heleniacutestico e interpenetraccedilatildeo de

costumes judaicos na cultura heleniacutestica pois a cultura judaica influenciou a cultura

heleniacutestica e tambeacutem foi fortemente influenciada por ela

Uma narrativa minuciosa de Flaacutevio Josefo fornece informaccedilotildees detalhadas sobre a

traduccedilatildeo da literatura judaica do hebraico para o grego designada Traduccedilatildeo LXX

em grego e Septuaginta em latim Demeacutetrio de Faleros eacute a figura que se destaca

na descriccedilatildeo de Josefo pois era o responsaacutevel pela biblioteca de Alexandria no

reinado de Ptolomeu II (Filadelfo) indicando obras do mundo inteiro que deveriam

compor o arsenal da biblioteca Josefo apresenta o seguinte relato da solicitaccedilatildeo de

Demeacutetrio ao priacutencipe

Eacute necessaacuterio pois se vossa majestade bem o julgar que se escreva ao sumo sacerdote dos judeus para que se escolha entre os principais de cada tribo os mais inteligentes e os que conhecem com mais perfeiccedilatildeo essas leis e vo-los enviem a fim de que se reuacutenam e faccedilam uma traduccedilatildeo exata e capaz de satisfazer plenamente os desejos de vossa majestade

(JOSEFO Hist Heb XII 11453)

164

Em Jerusaleacutem quando o sumo sacerdote soube que seria atacado por Alexandre e seu exeacutercito levantou um clamor a Deus junto com o povo Foi orientado em sonho para colocar as vestes sacerdotais e todos de branco receberiam Alexandre De acordo com a narrativa de Flaacutevio Josefo (Histoacuteria dos Hebreus) quando o exeacutercito e Alexandre se aproximaram viram um cenaacuterio inesperado Ao reconhecer o sacerdote com aquelas vestes Alexandre inclinou-se diante dele e entatildeo ldquoParmecircnio que desfrutava grande prestiacutegio perguntou-lhe como ele que era adorado em todo mundo adorava o sumo sacerdote dos judeus Respondeu Alexandre Natildeo eacute a ele ao sumo sacerdote que adoro mas ao Deus de quem ele eacute o ministro pois quando eu estava ainda na Macedocircnia e imaginava como poderia conquistar a Aacutesia ele me apareceu em sonhos com essas mesmas vestes e exortou-me a nada temer Disse-me que passasse corajosamente o estreito do Helesponto e garantiu que Deus estaria agrave frente de meu exeacutercito e me faria conquistar o impeacuterio dos persas Eis por que jamais tendo visto antes algueacutem revestido de trajes semelhantes a esses com que ele me apareceu em sonho natildeo posso duvidar de que tenha sido por ordem de Deus que empreendi esta guerra e assim vencerei Dario destruirei o impeacuterio dos persas e todas as coisas suceder-me-atildeo segundo os meus desejos Alexandre depois de assim responder a Parmecircnio abraccedilou o sumo sacerdote e os outros sacerdotes caminhou no meio deles ateacute Jerusaleacutem subiu ao Templo e ofereceu sacrifiacutecios a Deus da maneira como o sumo sacerdote lhe disse para fazer O sumo sacerdote mostrou-lhe em seguida o livro de Daniel no qual estava escrito que um priacutencipe grego destruiria o impeacuterio dos persas e disse-lhe que natildeo duvidava de que era dele que a profecia fazia menccedilatildeo Alexandre ficou muito contente No dia seguinte mandou reunir o povo e ordenou que dissessem que favores desejavam receber dele O sumo sacerdote respondeu que eles suplicavam permissatildeo para viver segundo as suas leis e as de seus antepassados e isenccedilatildeo no seacutetimo ano do tributo que lhe pagariam nos outros anos Ele concordou E tendo eles tambeacutem pedido que os judeus que moravam na Babilocircnia e na Meacutedia desfrutassem os mesmos favores ele o prometeu com grande bondade e disse que se algueacutem desejasse servir em seus exeacutercitos ele permitiria a tal pessoa viver segundo a sua religiatildeo e observar todos os seus costumesrdquo (JOSEFO Hist Heb XI 845)

142

Depois de lida essa solicitaccedilatildeo o rei aprovou o pedido e ordenou que fosse enviada

uma epiacutestola ao sumo sacerdote Eleazar complementado o pedido com uma

autorizaccedilatildeo de liberdade para todos os judeus submissos agrave escravidatildeo naquele

reino conforme orientaccedilatildeo dada por Demeacutetrio O sumo sacerdote dos judeus

respondeu favoravelmente e foram enviados seis tradutores pertencentes a cada

uma das doze tribos totalizando setenta e dois Assim houve a traduccedilatildeo dos textos

sagrados da literatura hebraica para o grego e ainda os tradutores incluiacuteram a

literatura produzida a partir do cativeiro babilocircnico Hale (1983 p 9) destaca a

importacircncia dessa traduccedilatildeo para os judeus165 dispersos tanto os do Egito como os

da Aacutesia e Macedocircnia falantes do grego

Conforme relato de Edersheim (1953 p1456) a Palestina foi governada pelos

Ptolomeus e posteriormente passou a ser dominada pela Siacuteria Antiacuteoco IV Epifacircnio

(175-164) determinou substituir o judaiacutesmo pelo helenismo momento em que

aconteceu a revolta dos macabeus Estes saiacuteram vencedores e estabeleceram uma

dinastia sacerdotal que se manteve de 142 a 63 aC Muitos conflitos e disputas

foram levantados nesse periacuteodo porque a famiacutelia dos macabeus natildeo era de

linhagem real (Davi) e nem sacerdotal (Aratildeo) como Flaacutevio Josefo cita na obra

Histoacuteria dos Hebreus (VIII 467)

Na continuidade de seus relatos Edersheim (1953 p 1468) informa que com a

tomada de Jerusaleacutem por Pompeu (63 aC) encerra-se a atuaccedilatildeo dos macabeus e a

independecircncia da Palestina passando esta para o domiacutenio romano com a obrigaccedilatildeo

de pagamento dos tributos Com o controle da Judeia pelos romanos Antipater foi

designado procurador e Hircano sumo-sacerdote Os filhos de Antipater Fasael e

Herodes foram designados governadores da Judeia e Galileia respectivamente

Com a morte de Antipater e Fasael Herodes recebeu de Antonio e Otaacutevio o tiacutetulo de

165 Aleacutem de Ptolomeu ter mantido o acordo com os judeus a respeito dos seus costumes e culto no impeacuterio romano essa liberdade se manteve Na obra Doze ceacutesares Suetocircnio (sdata p 66) faz menccedilatildeo a uma carta que o imperador Augusto escreveu a Tibeacuterio com o seguinte comentaacuterio sobre costumes judaicos ldquoNatildeo haacute judeu que jejue mais rigorosamente no dia do sabbat como eu jejuo hojerdquo Flaacutevio Josefo (Hist Heb XV 10 698) tambeacutem menciona as concessotildees feitas por Augusto a respeito da religiatildeo dos judeus Ceacutesar Augusto sumo sacerdote e administrador da Repuacuteblica ordena o que se segue Sendo a naccedilatildeo dos judeus natildeo somente no tempo presente mas tambeacutem no passado sempre fiel e afeiccediloada ao povo romano particularmente ao imperador Ceacutesar meu pai quando Hircano era o seu sumo sacerdote ordenamos com o consentimento do senado que os judeus vivam segundo as suas leis e costumes tal como faziam no tempo de Hircano sumo sacerdote do Deus Altiacutessimo que os seus Templos desfrutem sempre o direito de asilo que lhes seja permitido enviar a Jerusaleacutem o dinheiro consagrado ao serviccedilo de Deus que natildeo sejam obrigados a comparecer a julgamento no dia de saacutebado nem na vigiacutelia do saacutebado apoacutes as nove horasrdquo

143

rei dos judeus em 40 aC Herodes desenvolveu um projeto arrojado de construccedilotildees

de fortalezas cidades como a de Cesareia166 e ainda a reconstruccedilatildeo do templo de

Jerusaleacutem iniciada em 19 aC Foi nesse ambiente histoacuterico que Jesus nasceu em

Beleacutem distante de Jerusaleacutem 8 km de acordo com as narrativas dos Evangelhos de

Mateus e Lucas

O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia (vol II p 710-712) situa a morte de Herodes em 4 dC

e informa que seu reino foi dividido em trecircs aacutereas para contemplar seus herdeiros

Judeia e Samaria foram destinadas a Arquelau Galileia e Pereia a Antipas e os

territoacuterios do nordeste para Filipe O governo de Arquelau tornou-se insustentaacutevel e

uma delegaccedilatildeo da Judeacuteia e Samaria foi enviada a Roma para solicitar o afastamento

de Arquelau A partir desse fato a Judeacuteia tornou-se uma proviacutencia romana

passando a ser governada por procuradores nomeados pelo imperador O primeiro

procurador romano na Judeia foi Pocircncio Pilatos que atuou no julgamento de Jesus

Antipas foi denunciado por seu sobrinho Agripa167 que obteve sucesso no seu

intento Sendo seu tio Antipas afastado e exilado Agripa foi nomeado pelo

imperador Caliacutegula como rei O rei Agripa morreu subitamente e foi substituiacutedo por

seu filho Agripa (Herodes Agripa II) que governou como rei nos territoacuterios do norte e

nordeste da Palestina sendo seus domiacutenios ampliado por Nero em 56 dC Agripa

mudou o nome da capital Cesareia para Neronias em homenagem a Nero O

governo de Agripa II durou ateacute o iniacutecio da guerra contra Roma a partir de 66 dC

166

Flavio Josefo em Histoacuteria dos Hebreus (XV 13 669) oferece detalhes sobre a construccedilatildeo da cidade de Cesareia informando que do lado direito estavam duas colunas de pedra tatildeo grandes que superavam a altura da torre Via-se ao redor do porto uma fileira de casas cujas pedras eram muito bem talhadas e construiu-se sobre uma colina que estaacute meio o Templo consagrado a Augusto Os que navegam podem vecirc-lo de bem longe e haacute duas estaacutetuas uma de Roma e outra desse priacutencipe em honra do qual Herodes deu o nome de Cesareacuteia a essa cidade natildeo menos admiraacutevel pela riqueza de suas construccedilotildees que pela magnificecircncia de seus ornamentos Quanto agrave reconstruccedilatildeo do templo Herodes fez a seguinte proposta aos judeus ldquosabeis que o Templo que os nossos antepassados construiacuteram depois de seu regresso do cativeiro da Babilocircnia mede em altura sessenta cocircvados a menos que o construiacutedo por Salomatildeo mas natildeo devemos culpaacute-los pois desejavam tornaacute-lo mais suntuoso que o primeiro poreacutem estando entatildeo sujeitos aos persas e depois aos macedocircnios foram obrigados a seguir as medidas que lhes deram os reis Ciro e Dario filho de Histapes Agora que sou devedor a Deus da coroa que possuo e uso sobre minha cabeccedila da paz de que desfrutamos das riquezas que acumulei e o mais importante da amizade dos romanos que hoje satildeo senhores do mundo esforccedilar-me-ei por demonstrar o meu reconhecimento por tantos favores dando a essa obra a maior perfeiccedilatildeo (JOSEFO Hist Heb XV 14 676) 167

Agripa era filho de Aristoacutebulo e neto de Herodes o Grande Mariane esposa de Herodes e avoacute de Agripa era descendente dos macabeus neta do sumo sacerdote Hircano II A dinastia de Herodes era descendente dos edomitas (Idumeus) que foram dominados pelos macabeus no seacuteculo II aC (O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia vol II p712)

144

Os conflitos entre governantes romanos e governados judeus aumentaram

gradativamente resultando na revolta aberta em 66 dC tendo como desfecho a

invasatildeo da tropa de Tito e a destruiccedilatildeo do templo no ano 70 dC Essas lutas e

disputas tambeacutem coincidiram com a crise poliacutetica do impeacuterio romano que culminou

com a morte de Nero em 68 dC Sem duacutevida eacute inegaacutevel a contribuiccedilatildeo de Flaacutevio

Josefo como fonte para as pesquisas desse periacuteodo histoacuterico visto ser ele um judeu

que enuncia na posiccedilatildeo de romano como ele proacuteprio deixa transparecer em partes

de sua narrativa

Em Flaacutevio Josefo168 percebem-se os efeitos da heranccedila cultural do periacuteodo

Heleniacutestico que deixou marcas e influecircncia tanto na cultura judaica quanto na

histoacuteria dos primoacuterdios do cristianismo Jerocircnimo expressa sua opiniatildeo sobre o

modo como determinados judeus tornaram-se capacitados em vaacuterios campos do

conhecimento agregando agrave formaccedilatildeo judaica certos elementos da formaccedilatildeo

educacional heleniacutestica

Josefo para provar a antiguidade do povo judeu escreve dois livros contra Apiatildeo gramaacutetico alexandrino e expotildee tantos argumentos dos autores pagatildeos que a mim se me apresenta como um milagre como um homem hebreu educado desde a infacircncia com as letras sagradas tenha manuseado toda a biblioteca dos gregos Que poderia eu falar de Filatildeo que os criacuteticos proclamam ou o segundo Platatildeo ou o Platatildeo judeu (JEROcircNIMO Ep LXX 3)

Outro judeu que se destaca nos primoacuterdios de nossa era eacute Fiacutelon de Alexandria

Segundo Edersheim (1953 p 518) Fiacutelon era um judeu helenista e rabino na

sinagoga169 de Alexandria Algumas ideias deste judeu natildeo eram aceitas por rabinos

mais ortodoxos como por exemplo a noccedilatildeo de loacutegos Poreacutem os primeiros cristatildeos

incorporaram o conceito de loacutegos defendido por Fiacutelon como eacute registrado no

Evangelho de Joatildeo 11 para apresentar Jesus como a palavra de Deus encarnada

como segunda pessoa da trindade170

168

Na obra Histoacuteria dos Hebreus na parte Vida de Flaacutevio Josefo escrita por ele mesmo (p 957) em sua autobiografia Flaacutevio Josefo relata ldquoAos 19 anos iniciei-me na vida civil e abracei a seita dos fariseus que se aproxima mais que qualquer outra da dos estoicos entre os gregosrdquo 169

Hale (1983 p 13) informa que durante o exiacutelio dos judeus na Babilocircnia a instruccedilatildeo religiosa foi prosseguida pelos sacerdotes e levitas numa tentativa de conservar o conhecimento de Jeovaacute vivo Esses locais de adoraccedilatildeo e instruccedilatildeo tornaram-se conhecidos como sinagogas a palavra grega que significa reunidos juntos 170

No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus εν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος (Joatildeo 11)

145

Eacute nesse momento histoacuterico do seacuteculo I dC que se destaca o judeu Saulo em sua

origem chamado Paulo depois de sua conversatildeo ao cristianismo no contexto da

cultura romana Apesar de poucos dados a respeito de sua infacircncia171 alguns

informes biacuteblicos mostram que ele foi criado na tradiccedilatildeo judaica de acordo com a

afirmaccedilatildeo em Atos 223 ldquoSou judeu nascido em Tarso da Ciliacutecia mas criado nesta

cidade (Jerusaleacutem) Fui instruiacutedo rigorosamente por Gamaliel na lei de nossos

antepassadosrdquo Ele pertencia agrave tribo de Benjamim e era capaz de se comunicar em

hebraico aramaico e grego e tinha domiacutenio fluente do grego172 no contexto da

cultura heleniacutestica Paulo era descendente de famiacutelia judaica da diaacutespora nasceu

em Tarso cidade da Aacutesia Menor pertencente ao impeacuterio grego e posteriormente ao

domiacutenio do impeacuterio romano Becker faz algumas observaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo

judaica de Paulo no contexto heleniacutestico

Assim eacute de supor que ele desde a infacircncia fosse habituado a falar a liacutengua comum da diaacutespora como liacutengua franca Aleacutem disso deve-se mencionar que o niacutevel de educaccedilatildeo de Paulo por um lado estaacute concentrado na versatildeo grega da Biacuteblia (Paulo utiliza a Septuaginta) sendo por outro lado significativamente determinado pela cultura geral heleniacutestica Paulo enfim como cristatildeo tambeacutem visitou quase somente cidades heleniacutestico-romanas provavelmente tambeacutem um reflexo de sua socializaccedilatildeo em ambiente heleniacutestico urbano Isso por sua vez ajusta-se a cidade heleniacutestica de Tarso como lugar de sua juventude (BECKER 2007 p59)

De acordo com relatos de Pena (2010 p29) a cidade de Tarso estava localizada

numa regiatildeo helenizada durante a dinastia dos Selecircucidas Os habitantes da regiatildeo

mantinham como padratildeo cultural as tradiccedilotildees a literatura e a liacutengua grega Em 67

aC a cidade foi anexada agrave recente Proviacutencia romana da Ciliacutecia da qual se tornou

capital administrativa Em 51 a C teve como prococircnsul Marco Tuacutelio Ciacutecero

Em sua narrativa Grimal (2008 p 30-31) comenta que no periacuteodo do triunvirato

coube a Marco Antocircnio o governo da parte do oriente para conquista definitiva da

Alta Aacutesia Tarso era o local de apoio para as estrateacutegias militares e poliacuteticas de

Marco Antocircnio e foi nesse contexto que ele recebeu Cleoacutepatra em Tarso como uma

princesa vassala e a entrada triunfal dela teria sido por um portal que eacute conservado

ateacute os dias atuais como marco histoacuterico Atualmente a cidade de Tarso integra o 171

Natildeo haacute informaccedilatildeo exata sobre data de nascimento do apoacutestolo Paulo Becker (2007 p 55) verifica que na eacutepoca de sua vocaccedilatildeo Paulo jaacute havia concluiacutedo seu periacuteodo de formaccedilatildeo profissional bem como sua formaccedilatildeo farisaica Dai e possiacutevel e faz sentido supor uma idade entre 20 e 25 anos para a sua vocaccedilatildeo Isso leva a uma data de nascimento com toleracircncia de alguns anos para antes ou depois em torno de 10 dC portanto nos uacuteltimos anos do impeacuterio de Augusto (morto em 14 dC) 172

Becker (1983 2007 p 59) verifica que a liacutengua grega de Paulo usada na escrita das epiacutestolas natildeo soacute estaacute livre de fortes semitismos (portanto dificilmente aprendida mais tarde como liacutengua estrangeira em Jerusaleacutem) como tambeacutem segue com independecircncia o estilo grego

146

paiacutes da Turquia e eacute um local muito visitado pelo seu valor histoacuterico Na parte central

da cidade foi preservado e restaurado o portal de Cleoacutepatra porque essa era uma

ligaccedilatildeo do porto no mediterracircneo com a cidade

No seacuteculo I dC Tarso era um dos eixos do comeacutercio internacional entre o mundo

semita o planalto Anatoacutelio e as cidades gregas viradas para o Egito e a Europa A

posiccedilatildeo estrateacutegica da cidade de Tarso a colocou em destaque no contexto histoacuterico

do Oriente helenizado como afirma Pena (2010 p30) ldquotodos os ramos das artes

liberais figuravam em Tarso poesia retoacuterica e filosofia esta sobretudo com forte

ascendente na tradiccedilatildeo estoica localrdquo

Fabris (1996 p 25) menciona algumas figuras que foram destaque em Tarso ou que

reconheceram o seu valor cultural Atenedoro mestre de Augusto contribuiu para

que Tarso se ampliasse como um centro cultural O depoimento de Estrabatildeo eacute

elogioso agraves escolas de Tarso Outro destaque eacute a tradiccedilatildeo de poetas e filoacutesofos

naquele local como Antiacutepatro chefe da stoa mestre de Paneacutecio academia

platocircnica e o epicurista Liacutesias

A composiccedilatildeo da biografia de Paulo tem como base os dados fornecidos atraveacutes do

livro de Atos173 e de suas proacuteprias epiacutestolas na busca de interligar informaccedilotildees

biacuteblicas com as da proacutepria Histoacuteria De acordo com pesquisas de Fabris (1996 p

16) algumas fontes contribuem para o desenvolvimento cronoloacutegico da vida do

apoacutestolo Paulo entre estas eacute levado em conta o conjunto das sete epiacutestolas

consideradas autecircnticas Com esse material que forma uma documentaccedilatildeo interna

comparado agraves demais fontes externas de outros textos torna-se possiacutevel uma

ordem cronoloacutegica da vida desse apoacutestolo da sua conversatildeo ateacute sua prisatildeo em

Roma Em especial na epiacutestola aos Gaacutelatas Paulo fornece uma ordem temporal de

173

Em relaccedilatildeo a certos desencontros entre informaccedilotildees contidas na narrativa de Atos e a epiacutestola aos Gaacutelatas Becker faz a seguinte observaccedilatildeo ldquoa participaccedilatildeo do autor de Atos na descriccedilatildeo de Paulo certamente natildeo consiste somente na coleccedilatildeo de tradiccedilotildees isoladas nem soacute na remodelaccedilatildeo literaacuteria das mesmas ou na sua interligaccedilatildeo Bem mais Atos mostra (juntamente com o terceiro evangelho) um esboccedilo teoloacutegico proacuteprio que se enraiacuteza na situaccedilatildeo eclesial do final do primeiro seacuteculo e que quer estar a serviccedilo dessa Igreja A apresentaccedilatildeo de Paulo nos Atos insere-se nesse interesse Por essa razatildeo Paulo natildeo eacute descrito como pessoa biograficamente significativa dos iniacutecios da Igreja nem como teoacutelogo de destaque da primeira geraccedilatildeo cristatilde mas eacute caracterizado como ator decisivo no desenvolvimento do cristianismo desde a comunidade primitiva de Jerusaleacutem ateacute a Igreja espalhada pelo mundo todo Essa eacute a razatildeo porque soacute se alude de passagem ao martiacuterio de Paulo (2025 38 2113) e inversamente a permanecircncia do Apoacutestolo na capital do Impeacuterio Romano aparece como final glorioso dos Atos Por isso mesmo nenhum discurso paulino nos Atos valoriza a teologia do grande missionaacuterio Discursos satildeo colocados na boca de Paulo para mostrar em que direccedilotildees vatildeo os acontecimentos eclesiais segundo a visatildeo de Atosrdquo (BECKER 2007 p 30)

147

suas atividades o que permite uma associaccedilatildeo com outros fatos histoacutericos para

situar as provaacuteveis datas dos acontecimentos Alguns dados nas epiacutestolas aos

Coriacutentios ajudam a decifrar as possiacuteveis eacutepocas de alguns acontecimentos como o

relato do levantamento da oferta de colaboraccedilatildeo agrave igreja de Jerusaleacutem em que

Paulo menciona em 2 Coriacutentios (92) o incentivo que as igrejas da Macedocircnia

tiveram em ajudar pelo exemplo da atitude da igreja de Corinto174

A biografia de Paulo eacute introduzida no livro de Atos com a narrativa do momento da

sua conversatildeo A histoacuteria eacute contada em trecircs momentos diferentes Na primeira vez o

narrador eacute Lucas e nas outras vezes o proacuteprio Paulo conta sua experiecircncia Sendo

um judeu zeloso pertencente ao grupo dos fariseus empenhou-se na perseguiccedilatildeo

contra os seguidores de Jesus Segundo a narrativa de Lucas175 (Atos 9 1-31)

quando Saulo se dirigia a Damasco para executar as prisotildees de seus perseguidos

de repente brilhou ao seu redor uma luz vinda do ceacuteu Nesta visatildeo Jesus o indaga

Saulo por que vocecirc me persegue A partir desse encontro aconteceu a conversatildeo

de Saulo tendo iniacutecio sua trajetoacuteria como missionaacuterio pois conversatildeo e chamada na

vida de Paulo satildeo entendidas a partir de um processo conjunto

Pode-se entatildeo dizer que dois fenocircmenos inseparaacuteveis aconteceram na vida de

Paulo sua conversatildeo e sua chamada missionaacuteria A conversatildeo na vida dele

significou mudanccedila de meta objetivos e nova atitude no modo de pensar e agir

Schreiner (2015 p 42) atenta para o fato de que a partir do evento da conversatildeo

Paulo estabeleceu uma nova leitura e significado da lei de Moiseacutes e o lugar do

judaiacutesmo no plano de Deus para salvaccedilatildeo da humanidade Um ponto comum nas

trecircs narrativas em Lucas sobre a conversatildeo de Paulo eacute a imagem da luz forte que

brilhou causando-lhe cegueira Quando sua visatildeo voltou sua perspectiva de

enxergar o mundo era outra razatildeo da sua disposiccedilatildeo em desbravar os mares para

alcanccedilar os natildeo contemplados com a notiacutecia da vinda morte e ressurreiccedilatildeo de

Jesus

174

ldquoPorque bem sei a prontidatildeo do vosso acircnimo da qual me glorio de voacutes para com os macedocircnios que a Acaia estaacute pronta desde o ano passado e o vosso zelo tem estimulado muitosrdquo (2 Cor 92) 175

No Novo Testamento Atos dos Apoacutestolos se caracteriza como um livro histoacuterico para o iniacutecio do Cristianismo Lucas autor do Evangelho que leva seu nome se coloca como um historiador dirigindo-se a Teoacutefilo nos seguintes termos ldquoeu mesmo investiguei tudo cuidadosamente desde o comeccedilo e decidi escrever-te um relato ordenado oacute excelentiacutessimo Teoacutefilo (Lucas 13) Ele eacute identificado tambeacutem como autor de Atos dos Apoacutestolos e assim introduz os relatos ldquoem meu livro anterior Teoacutefilo escrevi a respeito de tudo que Jesus comeccedilou a fazer e ensinar (Atos 11)

148

Com o objetivo de alcanccedilar a evangelizaccedilatildeo dos gregos integrantes do impeacuterio

romano Paulo manifesta pensamentos filosoacuteficos que remetem a pensadores da

Antiguidade grega por ser familiar ao grupo a que ele se dirige Conforme opiniatildeo

de Johnson (2012 p 134) quando se lanccedila um olhar para o primeiro seacuteculo dC

situa-se o apoacutestolo Paulo na conjuntura do iniacutecio do cristianismo Como

disseminador dos ensinamentos de Jesus Cristo aos gentios (natildeo judeus) falantes

do grego Paulo identificou-se com um puacuteblico de base comum no contexto da

cultura heleniacutestica fato determinante na exposiccedilatildeo de pontos de vista na

transmissatildeo de sua mensagem

Nos fatos levantados por Fabris (1996) nota-se que Paulo natildeo menciona sua terra

de nascimento e nem comenta sobre sua cidadania romana sendo esses dados

informados apenas no livro de Atos No entanto Fabris (1996 p 24) faz algumas

inferecircncias baseadas em alguns relatos de Paulo que podem contribuir para uma

ligaccedilatildeo agraves narrativas de Lucas no livro de Atos Na epiacutestola aos Gaacutelatas Paulo

informa que depois de sua trajetoacuteria176 apoacutes sua conversatildeo ele foi para Araacutebia e em

seguida para Damasco e soacute depois de trecircs anos voltou agrave Jerusaleacutem onde esteve

com Pedro por quinze dias concluindo ldquodepois fui para as partes da Siacuteria e da

Ciliacuteciardquo (Gaacutelatas 121) Assim pode-se deduzir que havia uma identificaccedilatildeo de Paulo

com essa regiatildeo sabendo-se que Tarso onde supostamente ele nasceu fazia parte

da regiatildeo da Ciliacutecia

Quanto ao questionamento sobre a cidadania romana de Paulo Heyer (2008 p 17)

argumenta que eacute impossiacutevel encontrar no conteuacutedo das epiacutestolas por ele escritas

alguma sinalizaccedilatildeo que possa concordar com o relato de Lucas no livro de Atos

onde haacute informaccedilotildees sobre sua cidadania romana177 por direito de nascimento

Quanto a essa questatildeo este autor pondera que o silecircncio de Paulo se presta ao fato

de estar mais interessado em provar que eacute judeu para justificar sua identidade e

seu posicionamento diante de seus opositores nas sinagogas

176

ldquoNem tornei a Jerusaleacutem a ter com os que jaacute antes de mim eram apoacutestolos mas parti para a Araacutebia e voltei outra vez a Damasco Depois passados trecircs anos fui a Jerusaleacutem para ver a Pedro e fiquei com ele quinze dias E natildeo vi a nenhum outro dos apoacutestolos senatildeo a Tiago irmatildeo do Senhorrdquo Depois fui para as partes da Siacuteria e da Ciliacuteciardquo (Gaacutelatas 1 17-20) 177

E vindo o tribuno disse-lhe Dize-me eacutes tu romano E ele disse Sim E respondeu o tribuno Eu com grande soma de dinheiro alcancei este direito de cidadatildeo Paulo disse Mas eu o sou de nascimento (Atos 22 27 28)

149

As viagens missionaacuterias de Paulo estatildeo diretamente relacionadas agraves igrejas por ele

fundadas e sua comunicaccedilatildeo com algumas delas por meio das epiacutestolas Lucas

registra que Barnabeacute enviado pela igreja de Jerusaleacutem aos que se reuniam em

Antioquia da Siacuteria foi a Tarso para obter a ajuda de Paulo em seu trabalho entre os

gentios de Antioquia (Atos 1125) Barnabeacute e Paulo permaneceram ensinando em

Antioquia por mais ou menos um ano e Lucas registra que naquele local os

disciacutepulos pela primeira vez foram chamados cristatildeos (Atos 1126)

A igreja de Antioquia enviou Paulo e Barnabeacute para a realizaccedilatildeo oficial da primeira

viagem missionaacuteria Eles navegaram para Selecircucida e de laacute para Chipre Nota-se

que o trajeto da primeira viagem incluiacutea duas ilhas de importacircncia na cultura grega

Funari (2002 p15) informa que a principal cidade de Creta Knossos era um centro

administrativo monumental Creta foi a diretriz da regiatildeo da Greacutecia na eacutepoca do

Bronze Em meados do segundo milecircnio Creta conheceu o apogeu da chamada

Talassocrassia minoense178 ou seja o poder mariacutetimo de Creta influenciava toda a

regiatildeo

De Creta chegaram a Salamina179 onde havia uma sinagoga dos judeus e laacute

ministraram os ensinamentos aos judeus e gentios Salamina fica distante de Atenas

cerca de 30 km Local histoacuterico importante pois laacute no seacuteculo V aC foi travada a

luta vitoriosa dos gregos contra os persas

Schreiner (2015 p 45) argumenta que o chamado de Paulo foi especiacutefico para levar

o evangelho aos natildeo judeus e na epiacutestola aos Gaacutelatas ele assume seu papel de

apoacutestolo aos gentios Assim Paulo se coloca como responsaacutevel pelo evangelho da

incircunsiccedilatildeo ou seja o evangelho destinado aos natildeo judeus

E conhecendo Tiago Cefas e Joatildeo que eram considerados como as colunas a graccedila que me havia sido dada deram-nos as destras em comunhatildeo comigo e com Barnabeacute para que noacutes focircssemos aos gentios e eles agrave circuncisatildeo (Gaacutelatas 29)

Aleacutem dos natildeo judeus havia tambeacutem os judeus helecircnicos e na percepccedilatildeo de Ramos

(2002 p 210) nos relatos do Novo Testamento estes formam um grupo de judeus

que parece ser bastante numeroso pois eles falam grego e frequentam mais as

178

Segundo Funari (2002 p15) pela imponecircncia dos palaacutecios cretenses os gregos criaram a histoacuteria do labirinto e do minotauro criatura meio homem e meio touro Surgiu o heroacutei grego Teseu que matou o monstro e descobriu a saiacuteda do labirinto Atualmente o siacutetio arqueoloacutegico em Creta oferece uma visatildeo magnifica da arquitetura do palaacutecio de Knossos 179

ldquoE chegados a Salamina anunciavam a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus e tinham tambeacutem a Joatildeo como cooperador (Atos 135)

150

sinagogas do que o templo de Jerusaleacutem Este grupo constitui-se como um dos

principais na recepccedilatildeo da mensagem de Jesus sendo participantes dos

fundamentos do cristianismo que acabou por se firmar como religiatildeo institucional

As viagens de Paulo serviram como oportunidade de seu contato com a cultura do

mundo grego e os relacionamentos firmados em cada lugar foram essenciais para o

processo de evangelizaccedilatildeo aleacutem das fronteiras da Judeia Quando os disciacutepulos

receberam a incumbecircncia da propagaccedilatildeo do evangelho Lucas relata as instruccedilotildees

deixadas por Jesus ldquoMas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito Santo e

ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda a Judeacuteia e Samaria e

ateacute os confins da terrardquo (Atos18)

Apoacutes encerrada a terceira viagem missionaacuteria Paulo retornou a Jerusaleacutem e laacute foi

preso sendo enviado ao Procurador Romano em Cesareia180 no governo do

Imperador Nero181 No tempo do aprisionamento de Paulo em consequecircncia do

atrito religioso com os judeus em Jerusaleacutem Feacutelix era procurador182 da Judeia No

livro de Atos 23 haacute o relato do modo como Paulo foi conduzido de Jerusaleacutem para

Cesareia

E escreveu uma carta que continha isto Claacuteudio Liacutesias183

a Feacutelix potentiacutessimo presidente sauacutede Esse homem foi preso pelos judeus e estando jaacute a ponto de ser morto por eles sobrevim eu com a soldadesca e

180

Segundo as informaccedilotildees de Flaacutevio Josefo quando os romanos dominaram a Judeia as cidedes foram sendo conquistadas e ldquoPompeu restituiu aos seus antigos habitantes as que estavam bem dentro em terra firme a saber Hipona Citoacutepolis Pela Diom Samara Maressa Azoto Jamnia e Aretusa como tambeacutem as que a guerra destruiacutera completamente Quis ele que as cidades mariacutetimas ficassem livres e fizessem parte da proviacutencia a saber Gaza Jope Adora e a torre de Estratatildeo que Herodes depois mandou reconstruir com grande magnificecircncia e enriqueceu com portos e belos Templos mudando-lhe o nome para Cesareacuteiardquo (JOSEFO His Heb XIV 8 577) 181

Taacutecito (Anais XV 44) na narrativa da acusaccedilatildeo de Nero aos cristatildeos como responsaacuteveis pelo incecircndio de Roma cita o procurador Pocircncio Pilatos no julgamento da morte de Cristo o personagem que deu origem ao movimento dos cristatildeos 182

A funccedilatildeo do procurador na Judeia era de controle da proviacutencia responsaacutevel pelo exeacutercito de ocupaccedilatildeo que ficava aquartelado em Cesareia com um destacamento em Jerusaleacutem na fortaleza de Antonia Tinha poder nos julgamentos e podia reverter sentenccedilas capitais decretadas pelo sineacutedrio as quais tinham que ser-lhe submetidas O procurador nomeava o sumo sacerdote e era guardiatildeo das vestes sacerdotais Os procuradores da Judeia (governadores) eram sujeitos agrave autoridade superior do legado imperial (propreter) da Siacuteria Sua sede de governo ficava em Cesareia (O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia vol III p 1317) 183

Claacuteudio Liacutesias tribuno militar aparece pela primeira vez na narrativa dos Atos quando protege Paulo de uma multidatildeo hostil de judeus do lado de fora do Templo de Jerusaleacutem O texto natildeo afirma explicitamente o motivo pelo qual o tribuno prende Paulo mas presume-se que ele foi preso para investigaccedilatildeo como fica claro mais adiante durante o interrogatoacuterio Sabendo da intenccedilatildeo dos judeus em tirar a vida de Paulo Claudio Liacutesias organizou uma escolta militar para conduzi-lo a Cesareia

151

o livrei informado de que era romano E querendo saber a causa por que o acusavam o levei ao seu conselho (Atos 23 25-28)

184

Nota-se que no texto em grego o termo traduzido como carta estaacute grafado epiacutestola

no acusativo (επιστολήν) O introito da epiacutestola segue o modelo romano ldquoClaacuteudio

Liacutesias a Feacutelix potentiacutessimo presidente sauacutederdquo Pode-se dizer que esta eacute uma

epiacutestola documento pois faz parte de um protocolo de registro de accedilotildees tomadas

por parte dos responsaacuteveis por setores da procuradoria romana instalada em

regiotildees da Palestina

Paulo foi encaminhado oficialmente para ser julgado pelo procurador romano em

Cesareia Para evitar qualquer possibilidade de julgamento em Jerusaleacutem com a

participaccedilatildeo dos judeus alegando a prerrogativa de cidadatildeo romano Paulo apelou

para a corte de Ceacutesar Segundo Fabris (1996 p 23) o argumento mais favoraacutevel agrave

questatildeo da cidadania de Paulo eacute o fato de seu pedido para ser julgado em Roma

oriundo de um processo iniciado em Cesareia perante o procurador romano Paulo

aguardou pelo julgamento por dois anos ateacute a substituiccedilatildeo do procurador Felix pelo

receacutem chegado Festo Em sua visita a Jerusaleacutem o novo procurador romano foi

interpelado pelo sumo sacerdote e os principais dos judeus insistindo na acusaccedilatildeo

contra Paulo Festo assim relata a situaccedilatildeo ao rei Agripa

Acerca do qual estando presentes os acusadores nenhuma coisa apontaram daquelas que eu suspeitava Tinham poreacutem contra ele algumas questotildees acerca da sua supersticcedilatildeo e de um tal Jesus morto que Paulo afirmava viver E estando eu perplexo acerca da inquiriccedilatildeo desta causa disse se queria ir a Jerusaleacutem e laacute ser julgado acerca destas coisas E apelando Paulo para que fosse reservado ao conhecimento de Augusto mandei que o guardassem ateacute que o envie a Ceacutesar (Atos 2518-21)

Para cumprimento do apelo de Paulo para ser julgado em Roma foi empreendida

uma viagem narrada por Lucas com muitos detalhes Apoacutes um naufraacutegio a

tripulaccedilatildeo e os presos permanecerem na Ilha de Malta durante trecircs meses depois

tomaram um navio que se dirigia a Alexandria e chegando a Roma Paulo

permaneceu em uma prisatildeo domiciliar por dois anos

Natildeo haacute relatos biacuteblicos sobre as viagens de Paulo empreendidas depois de seu

primeiro aprisionamento em Roma e nem fonte segura que forneccedila informaccedilotildees

sobre sua morte mas conjecturas a partir de outros acontecimentos histoacutericos

Supotildee-se que depois do incecircndio de Roma em 64 dC o imperador Nero teria

184

γραψας επιστολην περιεχουσαν τον τυπον τουτον κλαυδιος λυσιας τω κρατιστω ηγεμονι φηλικι χαιρειν (Atos 2325)

152

culpado e punido os cristatildeos e que possivelmente nesse momento Paulo teria

sido preso novamente Haacute uma versatildeo que indica o segundo aprisionamento e

morte de Paulo em Roma sustentado por algumas indicaccedilotildees na epiacutestola 2

Timoacuteteo185

Essa eacute uma das versotildees que vigora tambeacutem na apresentaccedilatildeo dos locais histoacutericos

em Roma Junto ao local do forum romano existe o chamado caacutercere Mamertinum

onde os apoacutestolos Pedro e Paulo teriam ficado nos momentos que antecederam o

martiacuterio final deles Atualmente o local da antiga prisatildeo funciona como museu e

duas igrejas que estatildeo superpostas ao espaccedilo subterracircneo do caacutercere186

No final de sua obra Becker (2007 p 657) apresenta duas vertentes sobre a morte

de Paulo uma com base em Clemente187 e a outra em Euseacutebio188 Quanto a

correspondecircncia de Clemente escrita de Roma agrave igreja de Corinto no final do

primeiro seacuteculo da era cristatilde teraacute sido produzida mais ou menos na mesma eacutepoca

de Atos dos Apoacutestolos Poderia inclusive constituir-se no documento mais antigo

referente a morte de Paulo Com base em I Clemente (5 47) Becker observa a

185

Na segunda epiacutestola a Timoacuteteo algumas referecircncias contribuem para o entendimento de que Paulo estava preso em Roma ldquoPortanto natildeo te envergonhes do testemunho de nosso Senhor nem de mim que sou prisioneiro seurdquo (2 Tim 18) ldquoO Senhor conceda misericoacuterdia agrave casa de Onesiacuteforo porque muitas vezes me recreou e natildeo se envergonhou das minhas cadeias Antes vindo ele a Roma com muito cuidado me procurou e me achourdquo (2 Tim 1 16-17) ldquoNingueacutem me assistiu na minha primeira defesa antes todos me desampararamrdquo (2 Tim 416) ldquoPorque eu jaacute estou sendo oferecido por aspersatildeo de sacrifiacutecio e o tempo da minha partida estaacute proacuteximordquo (2 Tim 46) 186

Com base em uma visita em agosto de 2016 ao local da prisatildeo chamada Mamertina junto ao forum romano as informaccedilotildees indicam que a prisatildeo foi usada em 63 aC para aprisionar os membros da segunda conspiraccedilatildeo de Catilina Supotildee-se que Pedro e Paulo estiveram presos naquele local ateacute o momento da condenaccedilatildeo final Natildeo se sabe quando a prisatildeo deixou de ser usada permanentemente mas o lugar foi utilizado pelos cristatildeos desde os tempos medievais e eacute atualmente ocupado por duas igrejas superpostas San Giuseppe dei Falegnami na parte superior e San Pietro in Carcere na parte inferior 187

Satildeo Clemente (35- 100 dC) tambeacutem conhecido como Clemente Romano era o bispo de Roma Segundo Jaeger (1965 p 26) o documento mais antigo posterior aos apoacutestolos eacute a epiacutestola de Clemente aos Coriacutentios escrita na uacuteltima deacutecada do primeiro seacuteculo de nossa era Jaeger (1965 p 27-28) observa que Clemente tambeacutem usa os recursos da retoacuterica pelas referecircncias aos exemplos mais antigos e os mais recentes O propoacutesito da epiacutestola toma como base o toacutepos ldquoa discoacuterdia interna tem feito cair grandes reis e destruiacutedo Estados poderososrdquo Para Jaeger este toacutepos era usado como exploraccedilatildeo e diferentes aplicaccedilotildees em diversas situaccedilotildees de conflitos 188

No prefaacutecio da obra Histoacuteria Eclesiaacutestica (2012) o tradutor Wolfgang Fischer informa que ldquoEuseacutebio bispo de Cesareacuteia nasceu em cerca de 270 faleceu no ano 339340 A data de seu nascimento soacute pode ser inferida de sua obra pois ele narra a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos sob Valeriano (258-260) como sendo algo do passado e os eventos seguintes como sendo contemporacircneos seus Natildeo se sabe onde nasceu mas passou a maior e mais importante parte de sua vida em Cesareacuteia na eacutepoca a maior cidade romana da Palestina Era de famiacutelia desconhecida mas certamente cristatilde como indica seu nome Euseacutebio nada fala de si mesmo em sua extensa obra Foi bispo de Cesareacuteia de 313 ou 315 em dianterdquo

153

concordacircncia da versatildeo de Clemente189 com a da tradiccedilatildeo cristatilde de que Paulo e

Pedro foram condenados em Roma

Na versatildeo de Euseacutebio em sua obra Histoacuteria Eclesiaacutestica (II 222) Paulo teria

recuperado a liberdade em Roma realizado seu projeto de visita agrave Espanha e entatildeo

em seu retorno teria sido aprisionado e condenado Essa posiccedilatildeo tem como base

uma tentativa de harmonizar o livro de Atos com a Epiacutestola aos Romanos e 2

Timoacuteteo Diante das incertezas Becker (2007 p 657) em relaccedilatildeo agraves informaccedilotildees

sobre a morte de Paulo finaliza ldquoAssim sendo no caso de Paulo brilham ate hoje

com mais claridade seus testemunhos epistolaresrdquo

As epiacutestolas de Paulo tecircm uma grande relevacircncia como fonte nos estudos que

procuram examinar a histoacuteria dos cristatildeos primitivos do seacuteculo I dC sabendo-se

que ele procurou responder indagaccedilotildees e conflitos daquela eacutepoca na perspectiva de

uma pluralidade cultural em que as influecircncias do periacuteodo Heleniacutestico ainda

perduravam tanto na cultura romana quanto na judaica

Os co-enunciadores (destinataacuterios) de Paulo satildeo identificados como participantes

das Igrejas com as quais ele se comunica atraveacutes das epiacutestolas Vale destacar que

ao se dirigir a uma determinada comunidade cristatilde os argumentos que se

estabelecem procuram enfocar alguma situaccedilatildeo em destaque visto que o

tratamento nas epiacutestolas se difere pelas caracteriacutesticas e problemas enfrentados por

cada comunidade Haacute uma extensatildeo dos ensinamentos para os leitores em geral

visto que os problemas que atingiam os primeiros cristatildeos se identificam em

qualquer eacutepoca ou cultura sendo que os conselhos e instruccedilotildees desenvolvidos em

cada epiacutestola satildeo aplicaacuteveis agraves comunidades cristatildes em geral tanto no passado

quanto no presente

Vale ressaltar que natildeo haacute exclusividade de destinataacuterios tanto no discurso de

Secircneca quanto no de Paulo e nessa perspectiva Mainguenau (2008 p 129 130)

coloca que mesmo que a enunciaccedilatildeo seja marcada pela suposiccedilatildeo de um co-

enunciador outros destinataacuterios tecircm a possibilidade de entrar no circuito da

enunciaccedilatildeo 189

Segundo sua primeira versatildeo da morte de Paulo com base em Clemente Becker (2007 p 657) relata ldquoo texto (1Clem 55-7) diz lsquoPor seu zelo e sua luta recebeu o precircmio reservado a paciecircncia sete vezes acorrentado exilado apedrejado fez-se arauto no oriente e no ocidente e mereceu a verdadeira gloria Depois de pregar a justiccedila a todo o mundo tendo chegado ao confim do ocidente tendo dado testemunho diante dos poderosos deixou o mundo e recolheu-se ao lugar santo tornando-se o maior exemplo de paciecircncia

154

31 MANUAL DE INSTRUCcedilOtildeES DE PAULO Agrave IGREJA DE CORINTO

Como fonte para delimitaccedilatildeo do corpus de anaacutelise neste trabalho foram

selecionadas as duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Essa escolha se justifica por

razotildees jaacute delineadas anteriormente sobre a penetraccedilatildeo da liacutengua grega na cultura

judaica sendo a comunidade de Corinto situada em um dos centros da cultura

heleniacutestica e ao mesmo tempo romanizada em decorrecircncia de sua ocupaccedilatildeo como

proviacutencia do impeacuterio romano No siacutetio arqueoloacutegico da antiga Corinto os vestiacutegios da

civilizaccedilatildeo romana satildeo notoriamente identificados pela exposiccedilatildeo de peccedilas no

museu que sinalizam a predominacircncia dos haacutebitos e costumes romanos visiacutevel

tambeacutem na arquitetura

Kruse (1987 p 16) destaca pelo menos duas razotildees que justificam a importacircncia de

Corinto frente agraves outras proviacutencias romanas Por um lado sua privilegiada

localizaccedilatildeo portuaacuteria que atraiacutea o interesse comercial entre orientais e ocidentais

Por outro lado foi o local de sede dos jogos bienais do istmo de Corinto Agregado a

esses fatos acrescenta-se tambeacutem o papel da cidade de Corinto como local de culto

pagatildeo190

Como observa Kruse (1987 p17) nos tempos de Paulo Corinto havia conquistado

o lugar de polis cosmopolitana pelo fato de agregar representantes de diferentes

nacionalidades A cidade foi totalmente destruiacuteda em 146 aC pelo efeito de guerras

e disputas entre romanos e gregos Poreacutem a reconstruccedilatildeo por Juacutelio Ceacutesar em 44

dC devolveu agrave cidade seu lugar de prestiacutegio no contexto da navegaccedilatildeo

mariacutetima191

Segundo a narrativa do livro de Atos (18 12-17) a primeira visita de Paulo a Corinto

aconteceu durante a uacuteltima fase da segunda viagem missionaacuteria Quando esteve em

Corinto (Acaia) Paulo entrou em contato com Priscila e Aacutequila judeus cristatildeos que

haviam recentemente se transferido de Roma para aquele local onde trabalhavam

produzindo tendas Paulo se juntou a eles nessa atividade e laacute permaneceu por mais

ou menos um ano e meio e de laacute escreveu a primeira epiacutestola agrave igreja de

Tessalocircnica Nesse tempo Paulo foi acusado por um grupo de judeus perante o 190 Pena (2012 p39) lembra que em Corinto vigoravam ainda alguns dos mais traacutegicos e

perturbadores mitos gregos da Antiguidade Medeia Jasatildeo Siacutesifo e Eacutedipo 191 Entre o Golfo de Corinto e o Golfo Sarocircnico haacute uma estreita faixa de terra que liga a peniacutensula do Peloponeso agrave parte continental da Greacutecia o Istmo de Corinto que tambeacutem separa o mar Jocircnico do

mar Egeu Na zona sul desse istmo estaacute localizada a cidade de Corinto 80 km a oeste de Atenas

155

novo prococircnsul de Acaia Gaacutelio192 (irmatildeo de Secircneca) mas Paulo foi inocentado das

acusaccedilotildees que o ameaccedilavam

A narrativa da Terceira Viagem Missionaacuteria focaliza os trecircs anos de Paulo em Eacutefeso

(Atos 19) e nesse periacuteodo ele escreveu as epiacutestolas agrave igreja em Corinto193 O siacutetio

arqueoloacutegico de Eacutefeso eacute um dos mais bem conservados inclusive a fachada da

biblioteca Em partes da rua principal satildeo encontrados pisos de maacutermore Em

algumas residecircncias a estrutura arquitetura piso e decoraccedilatildeo artiacutestica estatildeo sendo

mantidas e restauradas respeitando a forma original

Durante o periacuteodo que Paulo viveu em Eacutefeso194 foram grandes as tribulaccedilotildees e

perseguiccedilotildees por parte dos proacuteprios judeus que rejeitavam os seus ensinos Toda a

situaccedilatildeo vivida por Paulo desde a sua conversatildeo contribui para sua proacutepria

convicccedilatildeo de sua transformaccedilatildeo e missatildeo em compartilhar sua nova visatildeo do

judaiacutesmo Eacute nessa perspectiva que ele se apropriou do recurso da produccedilatildeo de

epiacutestolas para contar sobre sua nova vida a partir da luz que brilhou no seu trajeto

para Damasco Essa mesma luz iluminou sua mente para compreender os

significados mais profundos da lei de Moiseacutes enxergando-a como uma releitura que

se ligava ao sacrifiacutecio de Cristo como demonstraccedilatildeo de amor ao mundo Eacute nesse

espiacuterito que Paulo realizou suas viagens missionaacuterias e manteve contato com os

grupos que ele jaacute havia organizado como igrejas As epiacutestolas agrave igreja de Corinto

192

Hale (1983 p 164) observa que a menccedilatildeo de Gaacutelio eacute um dos poucos itens histoacutericos mencionados no Novo Testamento que podem ser determinados com um razoaacutevel grau de certeza ldquoUma inscriccedilatildeo encontrada no templo de Delfos confirma que Lucio Junio Aneu Galio tornou-se prococircnsul de Acaia durante a vigeacutesima sexta aclamaccedilatildeo de Claudio (que ocorreu em 51 dC) Se Lucas estaacute certo em relatar que Paulo trabalhou em Corinto dezoito meses antes da vinda de Gaacutelio e com o edito de Claudio datado por volta de 49 dC eacute razoavelmente seguro dizer-se que Paulo estava em Corinto nos anos 49-51 dC Becker (2007 p 52) tambeacutem fornece sua contribuiccedilatildeo informando que Lucius Junius Gallio irmatildeo mais velho do filoacutesofo Secircneca e como ele nascido em Cordoba na Espanha foi prococircnsul da Acaia sob Claudio completando depois sua carreira politica Assim como seu irmatildeo Secircneca foi obrigado a escolher sob Nero a morte voluntaacuteria Seu proconsulado na Acaia eacute atestado por meio de um edito imperial gravado em pedra e dirigido agrave cidade de Delfos (a assim chamada inscriccedilatildeo de Gaacutelio) Seu governo tambeacutem pode ser estabelecido cronologicamente com bastante certeza da primavera de 51 ate a primavera de 52 dC (possivel fator de incerteza um ano mais cedo)rdquo 193

Segundo Hale (1983 p166) ldquose Paulo chegou a Eacutefeso em 52 dC os trecircs anos ali duraram ateacute 55 dC De Atos 2016 fica-se sabendo que Paulo estava em Corinto antes de Pentecostes de 56 dC Ali ele deve ter escrito 2 Corintios no outono de 55 dC para dar tempo de passar os trecircs meses em Corinto (At 203) antes de partir para Jerusaleacutem A escrita de 1 Corintios teria sido feita entatildeo durante o fim do inverno de 54-55 dC ou inicio da primavera de 55 dCrdquo 194

Hale (1983 p 143) observa que a narrativa da Terceira Viagem Missionaria (52-56 dC) eacute transferida quase que inteiramente para o ministeacuterio de trecircs anos de Paulo em Eacutefeso (At 19) Quando em Eacutefeso Paulo escreveu pelo menos trecircs cartas agrave igreja em Corinto uma carta perdida (referida em 1 Cor 59) a 1 Coriacutentios canocircnica e uma carta angustiosa (referida em 2 Cor 24 78) De 2 Corintios (1214 131) sabe-se que Paulo fez uma raacutepida visita a Corinto e voltou a Eacutefeso Deixando Eacutefeso apoacutes o tumulto Paulo foi para Trocircade e depois para a Macedocircnia e laacute ele escreveu 2 Coriacutentios

156

satildeo mostras dessa atitude de Paulo pois o contato entre pessoas separadas pela

distacircncia era favorecido pelo uso do gecircnero epistolograacutefico que servia como meio

de sua aproximaccedilatildeo com a igreja

No periacuteodo Heleniacutestico as formas de abertura da escritura de uma epiacutestola seguiam

o modelo grego ou o oriental Brakemeier (2008 p 19) exemplifica a epiacutestola de

Tiago que serve como identificaccedilatildeo da forma grega que eacute resumida condensada em

uma uacutenica sentenccedila ldquoTiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo agraves doze

tribos que andam dispersas sauacutederdquo (Tiago 11) O modelo oriental traz a saudaccedilatildeo

em uma segunda frase Paulo segue a forma oriental mas amplia o modelo com

adendos explicativos se estendendo aleacutem da forma protocolar como mostra a

primeira epiacutestola agrave igreja de Corinto

Paulo chamado apoacutestolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus e o irmatildeo Soacutestenes Agrave igreja de Deus que estaacute em Corinto aos santificados em Cristo Jesus chamados santos com todos os que em todo o lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo Senhor deles e nosso Graccedila e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (1Cor 11-3)

Na primeira epiacutestola Paulo se coloca junto de seu companheiro Soacutestenes195 para

efetuar a saudaccedilatildeo O introito da segunda epiacutestola tambeacutem segue o modelo oriental

sendo que o companheiro incluiacutedo na saudaccedilatildeo eacute Timoacuteteo

Paulo apoacutestolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus e o irmatildeo Timoacuteteo agrave igreja de Deus que estaacute em Corinto com todos os santos que estatildeo em toda a Acaia Graccedila a voacutes e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo (2 Cor 11-2)

Nas duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Paulo tambeacutem afirma ser apoacutestolo de Jesus

Cristo A partir dessa sua posiccedilatildeo na enunciaccedilatildeo declara seu ethos de apoacutestolo e

como enunciador ele dirige-se agrave igreja de Corinto ldquoPaulo chamado a ser apoacutestolo

de Cristo Jesus agrave igreja de Deus que estaacute em Corintordquo Diferente da Epiacutestola aos

Romanos em que natildeo haacute menccedilatildeo de um direcionamento especiacutefico agrave igreja local

na primeira epiacutestola dirigida agrave igreja de Corinto os destinataacuterios satildeo indicados como

os integrantes daquela comunidade196 Ao direcionar sua epiacutestola agrave igreja de Deus

195

Segundo informaccedilotildees de Brakmeier (2008 p 20) ldquoa menccedilatildeo de Soacutestenes como co-remetente reforccedila a natureza oficial da carta O testemunho tal como Paulo o transmite tem o apoio tambeacutem de outros pregadores Soacutecrates natildeo pode ser considerado co-autor porque a partir do verso 4 Paulo se dirige aos seus destinataacuterios em primeira pessoa do singular O que se nota eacute que Paulo estaacute unido a Soacutestenes na defesa do evangelhordquo 196

Mesmo direcionando sua epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo acrescenta a ideia de universalizaccedilatildeo de sua mensagem [] ldquocom todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo Senhor deles e nossordquo (1Cor 12)

157

que estaacute em Corinto (τη εκκλησια του θεου τη ουση εν κορινθω) Paulo197 escolhe em

sua escrita o uso do termo ekklesia para se referir agrave reuniatildeo daquela comunidade de

Corinto a qual ele se dirige o que eacute transcrito ecclesia para o latim na Vulgata

(ecclesiae Dei quae est Corinthi) Conforme as informaccedilotildees de Brakemeier (2008 p

20) o uso do termo grego εκκλησια (assembleia ou ajuntamento popular) de origem

no discurso poliacutetico aparece no grego koineacute da Septuaginta para traduzir o termo

hebraico kahal (congregaccedilatildeo de Deus) Portanto o termo ekklesia passa a ter um

sentido religioso para os judeus

Outra caracteriacutestica na forma de saudaccedilatildeo entre os judeus eacute o uso da expressatildeo

shalom (paz) que no grego koineacute e traduzido como ειρηνη198 Na epistolografia

oriental tambeacutem aparece o uso do sintagma ldquomisericoacuterdia e pazrdquo o que Paulo em

1Cor 13 substitui por ldquograccedila e pazrdquo (χαρις υμιν και ειρηνη) Segundo Brakemeier

(2008 p 21) Paulo introduz o termo charis (graccedila) para evidenciar a essecircncia do

evangelho que eacute a proclamaccedilatildeo da graccedila de Deus em doar seu filho para salvaccedilatildeo

da humanidade Na sequecircncia da introduccedilatildeo epistolar Paulo faz o fechamento das

saudaccedilotildees com expressotildees de accedilotildees de graccedilas de acordo o modelo epistolar mas

particulariza como meio de intercessatildeo e gratidatildeo a Deus pela igreja de Corinto

O propoacutesito da epiacutestola evidencia a construccedilatildeo de uma cenografia que se instaura

na enunciaccedilatildeo mediante a situaccedilatildeo dos problemas enfrentados por aquela igreja

ldquoEu vos exorto irmatildeos em nome do nosso Senhor Jesus Cristo guardai a concoacuterdia

uns com os outros de sorte que natildeo haja divisotildees entre voacutesrdquo (1Cor 110) Assim a

cenografia construiacuteda a partir dessa parte introdutoacuteria no primeiro capiacutetulo eacute

apreendida como um ldquomanual de instruccedilotildees e conselhosrdquo

Atraveacutes de cenas validadas pelo lugar comum do tema sabedoria Paulo conclama

os irmatildeos daquela igreja a se portarem mediante os preceitos da sabedoria tatildeo

valorizada pelos gregos Mas essa sabedoria referida por Paulo se distingue daquela

sabedoria almejada pela Antiguidade claacutessica Paulo esta fazendo referecircncia agrave

sabedoria divina Segundo a observaccedilatildeo de Lopes (2008 p 44) ldquoo conhecimento de

Deus natildeo eacute produto da investigaccedilatildeo humana mas da revelaccedilatildeordquo Deus se revelou

197

Nas epiacutestolas aos Romanos e Filipenses Paulo se dirige aos santos e natildeo usa o termo ekklesia (igreja) 198

Na narrativa de Lucas 24 36 Jesus aparece aos seus disciacutepulos cumprimentando-os com a expressatildeo ldquopaz seja convoscordquo (ειρηνη υμιν)

158

ao homem por meio do loacutegos e entatildeo a palavra (λoacuteγος) se fez carne e habitou entre

os homens na figura de Jesus Cristo199

A partir da introduccedilatildeo da primeira epiacutestola Paulo se coloca como enunciador em

seu ethos parresiasta determinando os significados dos termos recorrentes na

cultura heleniacutestica no enquadramento do discurso religioso Assim a cenografia

construiacuteda como manual de instruccedilotildees e conselhos deveraacute tomar no transcorrer da

enunciaccedilatildeo os princiacutepios ditados pela constituiccedilatildeo do discurso religioso

Na segunda epiacutestola Paulo manteacutem sua proacutepria designaccedilatildeo de apoacutestolo de Jesus

Cristo dirigindo-se tanto agrave igreja de Corinto como a todos os santos que se

encontravam na Acaia200 Ao se apresentar como apoacutestolo Paulo reitera seu

chamado semelhante ao que os doze disciacutepulos de Jesus receberam Ele tambeacutem

segue o mesmo modelo da primeira epiacutestola fazendo introito tradicional de acordo

com os costumes orientais

A postura de Paulo na segunda epiacutestola aos Coriacutentios logo no exoacuterdio identifica-o

em seu ethos de ldquofalar francordquo como algueacutem que usa a escrita da epiacutestola para

abrir-se diante de seus destinataacuterios tanto como aquele que consola quanto aquele

que eacute consolado rdquoE a nossa esperanccedila a vosso respeito eacute firme sabemos que

compartilhando os nossos sofrimentos compartilhareis tambeacutem a vossa consolaccedilatildeordquo

(2 Cor 17)

As cenas validadas que servem para sustentar a enunciaccedilatildeo satildeo principalmente as

que conduzem a memoacuteria do leitor aos sofrimentos de Cristo ldquoAssim como os

sofrimentos de Cristo satildeo copiosos para noacutes assim tambeacutem por Cristo eacute copiosa a

nossa consolaccedilatildeordquo (2 Cor 15) Nessa direccedilatildeo a cenografia na enunciaccedilatildeo eacute

captada pela forma como o enunciador vai se expressando a respeito do sofrimento

O texto da epiacutestola assume um aspecto de desabafo fornecendo algumas

identificaccedilotildees da subjetividade de Paulo Quanto agraves consideraccedilotildees aqui feitas sobre

199

ldquo No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deusrdquo(Joatildeo 11) ldquoE o Verbo se fez carne e habitou entre noacutes e vimos a sua gloacuteria como a gloacuteria do unigecircnito do Pai cheio de graccedila e de verdaderdquo (Joatildeo 114) εν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος (Joatildeo 11) και ο λογος σαρξ εγενετο και εσκηνωσεν εν ημιν και εθεασαμεθα την δοξαν αυτου δοξαν ως μονογενους παρα πατρος πληρης χαριτος και αληθειας (Joatildeo 114) 200

Acaia era uma proviacutencia romana que ficava na regiatildeo leste da Greacutecia e era uma proviacutencia senatorial de grande prestiacutegio Segundo Stern (2008 p534) possivelmente Paulo se refere a uma parte da Acaia que incluiacutea Corinto Atenas e Cencreia onde havia sido implantado o trabalho missionaacuterio

159

essa cenografia pode-se interligaacute-la agraves concepccedilotildees de Foucault sobre a escrita de

si atraveacutes da correspondecircncia

Escrever eacute portanto ldquose mostrarrdquo se expor fazer aparecer seu proacuteprio rosto perto do outro E isso significa que a carta eacute ao mesmo tempo um olhar que se lanccedila sobre o destinataacuterio (pela missiva que ele recebe se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar atraveacutes do que lhe eacute dito sobre si mesmo (FOUCAULT 2004 p 156)

Por um lado na primeira epiacutestola Paulo conclama a comunidade de Corinto a viver

em amor uns com outros Por outro lado na segunda o desejo eacute o afeto dele para

com a igreja e da igreja para com ele Assim nas duas epiacutestolas o tema explorado eacute

o amor Becker (2007 p 256) aponta que Paulo percebe que Deus chama pelo

evangelho e o homem responde com feacute amor esperanccedila trilogia que constitui a

linha fundamental na qual ele se centra Quando Paulo afirma em 1 Coriacutentios 1313

que esses trecircs dons deveriam permanecer ele enfatiza que dos trecircs o maior eacute o

amor Pois a origem do amor estaacute em Deus porque Ele demonstrou seu amor para

conosco pelo fato de Cristo ter morrido por noacutes quando eacuteramos ainda pecadores

Por isso Paulo considera que o amor induz o modo de pensar do indiviacuteduo a partir

do outro e natildeo de si mesmo e entatildeo ele declara ldquoJaacute estou crucificado com Cristo e

vivo natildeo mais eu mas Cristo vive em mimrdquo (Gaacutel 220) Se Cristo vive em mim eacute a

partir dessa convicccedilatildeo que devo enxergar o outro Assim Paulo vai mostrando sua

subjetividade que tem a marca da vida transformada e seu ethos pode ser

apreendido pelo seu modo de se colocar na escritura de suas epiacutestolas

32 ETHOS DISCURSIVO DE PAULO DIANTE DE SEUS LEITORES

Em sua opiniatildeo sobre os efeitos da conversatildeo na vida de Paulo Becker (2007 p

59) nota que ldquoa vocaccedilatildeo eacute por ele experimentada como reorientaccedilatildeo das motivaccedilotildees

e crise de identidade com o que a vida anterior se torna quase sem importacircncia

tornando-se o periacuteodo posterior ao chamado a sua vida propriamente ditardquo Pode ser

essa uma razatildeo da ausecircncia de dados biograacuteficos da vida de Paulo pois na epiacutestola

agrave comunidade cristatilde em Filipos ele declara ldquoesquecendo-me das coisas que atraacutes

ficam e avanccedilando para as que estatildeo diante de mim prossigo para o alvo pelo

precircmio da soberana vocaccedilatildeo de Deus em Cristo Jesusrdquo (Filip313 -14) E ainda na

epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo declara ldquoAssim que se algueacutem estaacute em Cristo

nova criatura eacute as coisas velhas jaacute passaram eis que tudo se fez novo (2 Cor

517) Os poucos informes fornecidos atraveacutes das epiacutestolas e algumas pontuaccedilotildees

160

percebidas na narrativa de Atos permitem a conexatildeo de alguns dados com o modo

de enunciar de Paulo e seu ethos no discurso

Segundo Kennedy (1984 p4) a retoacuterica pode ser considerada como uma qualidade

do discurso atraveacutes do qual o leitor procura decifrar seus propoacutesitos A escolha e

arranjo das palavras satildeo formas teacutecnicas que a retoacuterica disponibiliza na produccedilatildeo

dos enunciados Kennedy (1984 p 7) alega que retoacuterica eacute um fenocircmeno cultural e

difere de cultura para cultura e nesse sentido o Novo Testamento eacute contextualizado

no acircmago de diferenccedilas culturais marcantes entre judeus e gregos mas o fato do

proacuteprio Novo Testamento ter sido escrito em grego pressupotildee certa condiccedilatildeo da

capacidade intelectual dos leitores destinataacuterios A partir dessa visatildeo Kennedy

(1984 p 15) coloca que ethos pode ser compreendido como caraacuteter e credibilidade

que o oradorescritor estabelece em sua comunicaccedilatildeo A audiecircncialeitor confia no

que eacute dito de acordo com a emoccedilatildeo despertada em seu interior e o loacutegos revela o

argumento loacutegico desenvolvido no discurso Em qualquer retoacuterica ou comunicaccedilatildeo

persuasiva esses trecircs fatores satildeo universais

Becker (2007 p 601) chama atenccedilatildeo para o fato de que Paulo atraveacutes de seus

ensinos e conselhos procura despertar em seus destinataacuterios os valores eacuteticos que

deveriam ser almejados e praticados Os conteuacutedos concretos do ethos defendido

por Paulo estatildeo profundamente enraizados no sistema de normas daquela eacutepoca

resultantes ainda dos efeitos da cultura heleniacutestica Poreacutem ao recorrer aos valores

eacuteticos e normas morais do seu tempo Paulo congrega os valores da heranccedila de sua

formaccedilatildeo aos compromissos da vida cristatilde

O conhecimento e relacionamento com as culturas judaica grega e romana se

tornam evidentes em partes dos textos de suas Epiacutestolas e assim citaccedilotildees ou

alusotildees a pensadores da Antiguidade como tambeacutem citaccedilotildees da Septuaginta201

emergem desses textos como auxiacutelio retoacuterico aos seus ensinamentos pois uma das

facetas da escola de preparaccedilatildeo religiosa do grupo dos fariseus era exegese dos

textos biacuteblicos Alguns exemplos e citaccedilotildees identificados na epiacutestolas aos Coriacutentios

satildeo analisados na terceira parte deste trabalho

201

Segundo Becker (2007 p 86) Paulo em sua correspondecircncia via de regra cita a Septuaginta como a memorizou nos tempos de escola utilizando tambeacutem aqui e ali o proacuteprio texto da Septuaginta

161

Segundo as descriccedilotildees histoacutericas de Flaacutevio Josefo (Hist Heb X 520-544) no

seacuteculo II aC surgiram duas correntes religiosas entre os judeus Os saduceus

integravam a aristocracia sacerdotal influenciados pela cultura heleniacutestica adotaram

valores que os afastavam do judaiacutesmo tradicional Tornaram-se conciliaacuteveis com

algumas praacuteticas heleniacutesticas eram mais materialistas quanto ao modo de vida O

ponto fundamental que os distinguia era a rejeiccedilatildeo da concepccedilatildeo filosoacutefica da

imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos mortos Quanto aos fariseus eram

observadores rigorosos da lei mosaica acreditavam em anjos e democircnios na

ressurreiccedilatildeo dos mortos e favoraacuteveis agrave concepccedilatildeo da separaccedilatildeo corpo e alma Na

narrativa de Atos202 Paulo se identifica como fariseu no momento de sua defesa

diante do sumo sacerdote em Jerusaleacutem Quando ele escreveu agrave igreja de Filipos

anunciou sobre sua origem judaica e de sua ligaccedilatildeo com os fariseus ldquoCircuncidado

ao oitavo dia da linhagem de Israel da tribo de Benjamim hebreu de hebreus

segundo a lei fui fariseurdquo (Filip 36) A fusatildeo das trecircs culturas judaiacuteca heleniacutestica e

romana interferem na manifestaccedilatildeo do ethos de Paulo como bem observa Becker

Paulo eacute um fariseu rigoroso quanto a Lei mas ao mesmo tempo um habitante de uma cidade helenista que era um centro de formaccedilatildeo helenista Igualmente o direito de cidadania romana da famiacutelia de orientaccedilatildeo farisaica testemunha a favor de uma abertura ao Impeacuterio Romano o que para uma parte do judaiacutesmo da diaacutespora certamente era tiacutepico Paulo portanto integra dois mundos em sua pessoa judaiacutesmo e helenismo (BECKER 2007 p 67)

A construccedilatildeo discursiva203 do ethos dito de Paulo como apoacutestolo se mostra como

sustentaccedilatildeo da sua funccedilatildeo de enviado de Jesus Heyer (2008 p 169) aponta para

as questotildees que colocavam em duacutevida esta posiccedilatildeo [] ldquoconsequentemente nos

momentos menos oportunos sua condiccedilatildeo de apoacutestolo seraacute questionada Seu

passado estava exposto a discussotildees e isso o fazia vulneraacutevelrdquo204 Quando Paulo

202

E Paulo sabendo que uma parte era de saduceus e outra de fariseus clamou no conselho Homens irmatildeos eu sou fariseu filho de fariseu no tocante agrave esperanccedila e ressurreiccedilatildeo dos mortos sou julgado E havendo dito isto houve dissensatildeo entre os fariseus e saduceus e a multidatildeo se dividiu Porque os saduceus dizem que natildeo haacute ressurreiccedilatildeo nem anjo nem espiacuterito mas os fariseus reconhecem uma e outra coisa (Atos 23 6-8) 203

A construccedilatildeo discursiva do ethos de Paulo se estabelece em seu proacuteprio discurso como enunciador que se apresenta como apoacutestolo O ethos pode ser considerado dito porque ele proacuteprio se designa como apoacutestolo de Jesus Cristo 204

Mas faccedilo-vos saber irmatildeos que o evangelho que por mim foi anunciado natildeo eacute segundo os homens Porque natildeo o recebi nem aprendi de homem algum mas pela revelaccedilatildeo de Jesus Cristo Porque jaacute ouvistes qual foi antigamente a minha conduta no judaiacutesmo como sobremaneira perseguia a igreja de Deus e a assolava E na minha naccedilatildeo excedia em judaiacutesmo a muitos da minha idade sendo extremamente zeloso das tradiccedilotildees de meus pais Mas quando aprouve a Deus que desde o ventre de minha matildee me separou e me chamou pela sua graccedila revelar seu Filho em mim para que o pregasse entre os gentios natildeo consultei a carne nem o sangue nem tornei a Jerusaleacutem a ter com

162

escreve agrave igreja na Galaacutecia ele ressalta que eacute apoacutestolo por causa de seu chamado

ldquoPaulo apoacutestolo natildeo da parte dos homens nem por homem algum mas por Jesus

Cristo e por Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortosrdquo Assim como os outros

apoacutestolos ele era testemunha da ressurreiccedilatildeo de Cristo pois o encontrou e foi por

Ele convocado para uma missatildeo especial

Euseacutebio comenta que o nuacutemero dos apoacutestolos natildeo era restrito aos doze disciacutepulos

que acompanharam o ministeacuterio de Jesus mas se estendia tambeacutem aos setenta

enviados205 os quais natildeo se datildeo a conhecer os nomes poreacutem supotildee-se que

Barnabeacute companheiro de Paulo nas viagens missionaacuterias compunha aquele grupo

dos setenta E assim Euseacutebio conclui ldquoPortanto de qualquer forma os apoacutestolos agrave

imagem dos doze eram muitos mais - o proacuteprio Paulo o erardquo (Hist Ecles I XII5)

Ao expor suas ideias a respeito da duplicidade da formaccedilatildeo cultural de Paulo Pena

(2012 p36) enfatiza que ldquoPaulo integra no seu curriculum alguns dos princiacutepios

estruturantes da paideia grega desde Homerordquo Este autor citado toma como

exemplo o recurso retoacuterico da imagem do atleta usado por Paulo na primeira

epiacutestola agrave igreja de Corinto Pena acrescenta que pela descriccedilatildeo de Paulo da figura

do atleta ele poderia estar enunciando do lugar de algueacutem que viveu a experiecircncia

do atletismo em sua formaccedilatildeo na cultura heleniacutestica206

Quanto agrave paidea grega Jaeger (1995) analisa os vaacuterios campos do saber na cultura

grega e a soma do conjunto dos seus valores na formaccedilatildeo do cidadatildeo Este autor

toca no tema da conversatildeo ao bem como um alvo da educaccedilatildeo filosoacutefica que

origina a ideia de ldquoconversatildeordquo Este termo encontra parte de seu significado na

Repuacuteblica de Platatildeo em especial no episoacutedio da caverna Jaeger (1995 p 889)

define que a conversatildeo ldquoeacute um volver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luzrdquo Nota-se

que essa definiccedilatildeo eacute naturalmente associada agrave experiecircncia da conversatildeo de Paulo

que se torna uma ponte para apropriaccedilatildeo do termo filosoacutefico conversatildeo por parte da

Patriacutestica associando-o ao o sentido religioso

os que jaacute antes de mim eram apoacutestolos mas parti para a Araacutebia e voltei outra vez a Damasco (Gaacutelatas 111-17) 205

E depois disto designou o Senhor ainda outros setenta e mandou-os adiante da sua face de dois em dois a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir (Lucas 101) 206

Pena (2012 p 36) assevera que ldquoa participaccedilatildeo dos Judeus da Aacutesia nos espetaacuteculos do mundo pagatildeo eacute um facto bem conhecido Em Mileto por exemplo os Judeus tinham lugares reservados no teatro e gozavam de vaacuterios outros privileacutegiosrdquo

163

Fabris (1993 p 33) chama a atenccedilatildeo para o fato de que Paulo vive e atua no

contexto da heranccedila da cultura heleniacutestica cosmopolita do seacuteculo I dC mas

consegue integraacute-la com aquela que tem suas raiacutezes no ambiente biacuteblico e judaico-

cristatildeo Sua postura de apoacutestolo chamado para alcanccedilar os natildeo judeus com a sua

mensagem contribui para a manifestaccedilatildeo de seu ethos de pregador que auto se

sustenta sem ser pesado financeiramente agraves comunidades com as quais manteve

relacionamento mais proacuteximo Em Corinto durante sua estadia de aproximadamente

um ano e meio ele se juntou a Aacutequila e Priscila na confecccedilatildeo de tendas provando

pela proacutepria accedilatildeo a sua convicccedilatildeo de independecircncia econocircmica para o proacuteprio

sustento Sendo um missionaacuterio independente Paulo natildeo contava com recursos

externos para mantecirc-lo nas atividades evangeliacutesticas Essa eacute a razatildeo de sua

argumentaccedilatildeo diante da igreja de Corinto a respeito do apostolado que ele assumiu

arcando com as despesas de sua sobrevivecircncia sem ser pesado a ningueacutem

demonstrando sua atitude de amor se colocando no papel de pai que procura cuidar

dos filhos como ele expotildee

Os sinais do meu apostolado foram manifestados entre voacutes com toda a paciecircncia por sinais prodiacutegios e maravilhas Pois em que tendes voacutes sido inferiores agraves outras igrejas a natildeo ser que eu mesmo vos natildeo fui pesado Perdoai-me este agravo Eis aqui estou pronto para pela terceira vez ir ter convosco e natildeo vos serei pesado pois que natildeo busco o que eacute vosso mas sim a voacutes porque natildeo devem os filhos entesourar para os pais mas os pais para os filhos Eu de muito boa vontade gastarei e me deixarei gastar pelas vossas almas ainda que amando-vos cada vez mais seja menos amado Mas seja assim eu natildeo vos fui pesado mas sendo astuto vos tomei com dolo (2 Cor 1212-16)

O ethos de liberdade de accedilatildeo que Paulo mostra diante da comunidade de Corinto

tambeacutem se revela diante da igreja de Tessalocircnica ldquoPorque bem vos lembrais

irmatildeos do nosso trabalho e fadiga pois trabalhando noite e dia para natildeo sermos

pesados a nenhum de voacutes vos pregamos o evangelho de Deusrdquo (1 Tessal 29) Sua

franqueza em admitir seu proacuteprio sustento chama a atenccedilatildeo para o fato de que a

missatildeo do seu apostolado eacute realizada pelo amor como ele mesmo coloca ldquoAssim

como bem sabeis de que modo vos exortaacutevamos e consolaacutevamos e

testemunhaacutevamos a cada um de voacutes como o pai a seus filhos (1Tess 211) A

tocircnica sobre o amor que Paulo desenvolve a partir da construccedilatildeo da cenografia das

epiacutestolas agrave igreja de Corinto se mostra no decorrer de seu discurso ora focalizando

a atitude de manifestaccedilatildeo de amor entre os participantes da comunidade ora da

comunidade para com ele e dele para com a comunidade Ele eacute o fundador da igreja

164

e se coloca no lugar de pai tanto quanto aos conselhos e exortaccedilatildeo quanto agrave sua

proacutepria dedicaccedilatildeo de pai para filho Segundo Becker (2007 p 197) na elaboraccedilatildeo

do discurso de Paulo nota-se uma relaccedilatildeo entre o ethos de apoacutestolo do evangelho

que Paulo constroacutei de si mesmo com o ethos de liberdade de accedilatildeo que se

manifesta na prova de seu amor com a igreja O ethos de apoacutestolo tambeacutem estaacute

inter-relacionado com seu ethos de convertido

Pensando o significado de ethos em sua origem como habitaccedilatildeo da alma a

definiccedilatildeo de conversatildeo como volver da alma para a luz contribui para o

entendimento do novo direcionamento que o ethos de Paulo experimentou em

associar toda sua formaccedilatildeo cultural herdada de diferente etnias para se concentrar

nos significados que a nova vida de convertido lhe impunha Pena (2012 p 37)

pondera que o significado do ldquologos como palavra razatildeo e inteligibilidade fazia

parte do patrimoacutenio cultural dos gregosrdquo Este autor ainda acrescenta que logos

tambeacutem estaacute associado agrave liberdade de palavra ou parresiacutea Eacute exatamente este

termo em grego (παρρησια) que Paulo usa na segunda epiacutestola agrave igreja de Corinto

ldquoTendo pois tal esperanccedila usamos de muita ousadia no falarrdquo (2 Cor 312)207

Pena (2012 p 38) constata que em vaacuterias intervenccedilotildees de Paulo nomeadamente o

discurso do Areoacutepago com claras alusotildees agrave filosofia estoacuteica do deus uacutenico deixaraacute

marcas indeleacuteveis na filosofia patriacutestica

O areoacutepago natildeo era exatamente destinado agraves discussotildees filosoacuteficas ou temaacuteticas

mas a finalidade do local era destinada agrave reuniotildees do conselho e decisotildees de

assuntos da justiccedila Ele ficava situado sobre uma pequena colina bem proacutexima da

parte mais alta onde situava a Acroacutepole Uma visita ao local permite vislumbrar que

em volta do pequeno elevado onde estava construiacutedo o areoacutepago haacute muitas aacutervores

que demarcam os locais onde situavam as diversas estaacutetuas representando os

vaacuterios deuses Entre estas estava uma dedicada ao deus desconhecido que se

transformou em referecircncia para a proclamaccedilatildeo da mensagem de Paulo

O discurso de Paulo no areoacutepago208 tornou-se referecircncia para os primeiros cristatildeos

e a parresiacutea como modelo a ser seguido da manifestaccedilatildeo do seu ethos A partir de

207

εχοντες ουν τοιαυτην ελπιδα πολλη παρρησια χρωμεθα (2Cor 312) 208

ldquoE enquanto Paulo os esperava em Atenas o seu espiacuterito se comovia em si mesmo vendo a cidade tatildeo entregue agrave idolatria De sorte que disputava na sinagoga com os judeus e religiosos e todos os dias na praccedila com os que se apresentavam E alguns dos filoacutesofos epicureus e estoacuteicos contendiam com ele e uns diziam Que quer dizer este paroleiro E outros Parece que eacute pregador de deuses estranhos porque lhes anunciava a Jesus e a ressurreiccedilatildeo (Atos 17 16-18)

165

uma forma retoacuterica exemplar Paulo apresentou aos atenienses o Deus

desconhecido partindo da proacutepria expectativa deles em relaccedilatildeo aos deuses A

conjunccedilatildeo ecircthos paacutethos e loacutegos procedeu harmoniosamente no registro do seu

discurso Mesmo que momentaneamente aquele discurso natildeo tenha causado

grandes efeitos aparentes diante dos ouvintes mas a partir daquela experiecircncia o

exemplo da ousadia e coragem no falar continuou a ser um desafio para os cristatildeos

O ldquofalar francordquo como resultado da coragem em assumir o discurso com todos os

seus riscos eacute captado pelo narrador de Atos no relato do discurso de Paulo no

areoacutepago Este mesmo toacutepos eacute identificado no discurso de Paulo ao escrever as

epiacutestolas aos Coriacutentios Eacute justo afirmar que o ethos de Paulo ecoou a partir de sua

proacutepria escrita das epiacutestolas e por meio da narrativa de Lucas O nuacutemero de seus

leitores tornou-se infinitamente maior do que seus destinataacuterios especiacuteficos das

epiacutestolas e assim o ethos de Paulo estaacute sempre se mostrando desafiador como um

processo interpretativo que se iniciou no seacuteculo I dC perdurando ativamente na

atualidade

Como observado neste capiacutetulo a formaccedilatildeo judaico-heleniacutestica de Paulo contribui

para a organizaccedilatildeo de seu pensamento que se expressa pelo discurso com os

recursos retoacutericos que naturalmente favorecem sua comunicaccedilatildeo atraveacutes do gecircnero

epistolar O posicionamento discursivo de Paulo eacute definido como resultado de sua

formaccedilatildeo de suas experiecircncias e heranccedila cultural O discurso constituinte religioso

direciona seus posicionamentos no ato enunciativo e eacute deste lugar discursivo que

ele pronuncia seus discursos

O ponto de aproximaccedilatildeo entre a formaccedilatildeo educativa de Paulo e a de Secircneca pode

ser identificado pelas influecircncias do periacuteodo Heleniacutestico O que Paulo herda do

periacuteodo Heleniacutestico interfere em seu posicionamento religioso e o que Secircneca

recebe daquele periacuteodo eacute determinante no seu posicionamento filosoacutefico

166

4 FILOSOFIA LITERATURA E POLIacuteTICA NA TRAJETOacuteRIA DE SEcircNECA E A

CONSTITUICcedilAtildeO DA CENOGRAFIA EM SUAS EPIacuteSTOLAS

As condiccedilotildees de produccedilatildeo contribuem para realizaccedilatildeo linguiacutestica do discurso pois

segundo os autores Charaudeau e Maingueneau (2008 p 115) por um lado ldquoo

sujeito falante eacute sempre parcialmente sobredeterminado pelos saberes crenccedilas e

valores que circulam no grupo social ao qual pertencerdquo por outro lado ldquoele eacute

igualmente sobredeterminado pelos dispositivos de comunicaccedilatildeo nos quais se

insere para falar e que lhe impotildeem certos lugares papeis e comportamentosrdquo

Vale relembrar que a escolha do gecircnero adotado na produccedilatildeo do discurso eacute

fundamental na construccedilatildeo dos sentidos e a cenografia orienta os rumos da

enunciaccedilatildeo a partir de um determinado contexto sociocultural que valida uma

memoacuteria coletiva Por isso faz-se necessaacuterio compreender as condiccedilotildees de

produccedilatildeo que determinam os discursos de Secircneca suas experiecircncias nos vaacuterios

campos do saber e criaccedilatildeo literaacuteria sua atuaccedilatildeo na esfera social e poliacutetica e seu

papel como continuador do estoicismo na implantaccedilatildeo da terceira fase no priacuteodo do

seacuteculo I dC

O estoicismo teve seu iniacutecio no periacuteodo Heleniacutestico e Sedley (2003 p 8) menciona

que esta escola filosoacutefica foi fundada por Zenatildeo de Ciacutetio sob o acircngulo do encontro

entre dois mundos oriente e ocidente A famiacutelia de Zenatildeo era originaacuteria de regiatildeo

mediterracircnea do oriente e transferiu-se para Ciacutetio aacuterea portuaacuteria na ilha de Chipre

Natildeo haacute muitas informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo de Zenatildeo mas sabe-se que ele era

um leitor dos pensamentos socraacuteticos Aos vinte e dois anos ele se fixou em Atenas

e seu primeiro mestre foi Crates da escola dos ciacutenicos Alguns princiacutepios filosoacuteficos

daquele grupo influenciaram as ideias de Zenatildeo em alguns aspectos morais do

estoicismo209 por ele fundado

Segundo registros de Sedley (2003 p 8) Zenatildeo permaneceu em Atenas ateacute sua

morte em 262 aC sendo sucedido por seu disciacutepulo Cleantes de Assos (Trocircade

regiatildeo da Turquia) Na sequecircncia das substituiccedilotildees dos dirigentes da escola entra

209

As reuniotildees de Zenatildeo com seus disciacutepulos aconteciam no Poacutertico colorido de Atenas denominado Stoa (Estoaacute) A partir deessa origem o grupo passou a ser chamado estoicos

167

em cena outro filoacutesofo oriental Crisipo originaacuterio da Ciliacutecia e foi seguido por

Dioacutegenes da Babilocircnia e Antiacutepatro210 de Tarso mestre de Paneacutecio de Rodes

No periacuteodo Heleniacutestico Rodes tornou-se um centro avanccedilado que abrigava o

estoicismo No siacutetio arqueoloacutegico da acroacutepole de Lindos eacute possiacutevel identificar a maior

parte das colunas que sustentava o poacutertico que abrigava os participantes da escola

estoica que laacute se reuniam Do alto da acroacutepole avista-se a Baia de Satildeo Paulo onde

o apoacutestolo teria aportado na eacutepoca de sua terceira viagem missionaacuteria211 A praia de

Lindos e o local do Colosso de Rodes uma das seacutetimas maravilhas do mundo

antigo tambeacutem satildeo contemplados laacute do alto da acroacutepole de Lindos

De acordo com observaccedilotildees de Sedley (2003 27) nos dois uacuteltimos seacuteculos aC

houve uma tendecircncia de descentralizaccedilatildeo do estoicismo em Atenas e o

funcionamento da Stoa em Rodes eacute uma demonstraccedilatildeo da opccedilatildeo do regionalismo

como forma de reunir participantes da escola estoica Paneacutecio de Rodes foi

substituiacutedo por Possidocircnio que assumiu a lideranccedila da escola mas optou pela

centralizaccedilatildeo em Rodes Sedley (2003 p 30) identifica que aos poucos o

afastamento de Atenas conduziu os filoacutesofos para outras aacutereas do impeacuterio romano

a partir da metade do uacuteltimo seacuteculo aC Tarso tambeacutem foi uma opccedilatildeo tardia de

concentraccedilatildeo de filoacutesofos pois de laacute originaram trecircs liacutederes do estoicismo Zenatildeo de

Tarso Antiacutepatro de Tarso e os pais de Crisipo tambeacutem eram daquela cidade A

importacircncia dessa concentraccedilatildeo regional de filoacutesofos em Tarso eacute comprovada pela

proacutepria escolha por parte do futuro imperador Augusto do seu mestre e conselheiro

Atenodoro de Tarso212

Desde o iniacutecio da fundaccedilatildeo da escola os estoicos procuravam associar

intelectualmente em seu sistema eacutetico a virtude com a sabedoria a partir da

influecircncia socraacutetica ponto baacutesico que se manteve em todas as fases a despeito

das modificaccedilotildees que se sucederam No periacuteodo Heleniacutestico predominaram quatro

210

Em algumas traduccedilotildees o nome de Antiacutepatro aparece como Antiacutepater mas para manter uma uacutenica designaccedilatildeo opta-se por seguir o seu nome grego Antiacutepatro de Tarso (em grego Ἀντίπατρος) 211

ldquoE aconteceu que separando-nos deles navegamos e fomos correndo caminho direito e chegamos a Coacutes e no dia seguinte a Rodes de onde passamos a Paacutetarardquo (Atos 211) 212

Atenodoro de Tarso (74 ndash 07 aC) foi aluno de Posidocircnio de Rodes e professor de Otaviano (futuro Augusto) em Apoloacutenia Em 44 aC seguiu Otaviano ateacute Roma e continuou a ser seu mentor Sedley (2003 p 31) informa sobre a importacircncia dos filoacutesofos de Tarso no ensino do estoicismo em Roma pois Atenodoro e Estrabatildeo foram escolhidos pelo imperador Augusto para funccedilotildees poliacuteticas e ensino da filosofia em Roma Atenodoro era conselheiro de Augusto e escreveu sobre eacutetica e moral tendo suas obras influenciado a formaccedilatildeo estoica de Secircneca

168

novas correntes filosoacuteficas sendo o ceticismo e o cinismo213 direcionados por uma

filosofia mais popular e as escolas de linha mais dogmaacuteticas e competidoras entre

si foram o estoicismo e o epicurismo214 As quatro linhas filosoacuteficas que se

destacaram tiveram suas origens nos postulados socraacuteticos e cada uma tomou uma

determinada direccedilatildeo de acordo com as concepccedilotildees filosoacuteficas de seus fundadores

Segundo Hadot (2004 p 153) no platonismo aristotelismo e estoicismo prevalece a

tradiccedilatildeo socraacutetica de que o ldquoamor do bem eacute o instinto primordial do ser humanordquo

Nestas escolas permanece a dupla finalidade da formaccedilatildeo nos campos da poliacutetica e

da filosofia

No estoicismo Zenatildeo concebia uma filosofia tripartida que consistia na loacutegica fiacutesica

e eacutetica Sedley (2003 p 12) expotildee que a eacutetica era respaldada em uma revisatildeo da

moral dos ciacutenicos a fiacutesica no Timeu de Platatildeo acrescentando-se o elemento fogo

inspirado em Heraacuteclito a loacutegica contempla natildeo soacute o estudo formal dos argumentos

mas inclui tambeacutem a tese de como a impressatildeo sensorial eacute um guia infaliacutevel para

apreensatildeo da verdade sendo a impressatildeo cognitiva considerada um tipo de

percepccedilatildeo sensorial Essas questotildees sobre loacutegica foram retomadas pelos

continuadores da primeira fase do estoicismo em especial Crisipo dando

fundamentaccedilatildeo agraves discussotildees e postulados nos estudos da gramaacutetica

desenvolvendo as concepccedilotildees teoacutericas de significante e significado215

A segunda fase do estoicismo eacute marcada pela lideranccedila de Paneacutecio de Rodes e a

caracteriacutestica mais acentuada desta fase eacute o ecletismo com a adesatildeo a

pensamentos de Platatildeo e Aristoacuteteles Gourunat e Barnes (2009 p26) na introduccedilatildeo

da obra Ler os estoicos relatam que Paneacutecio de Rodes se fixou por algum tempo

213

Segundo Hadot (2004 p 153) a corrente do cetismo foi iniciada por Pirro e a do cinismo por Dioacutegenes o Ciacutenico Essas duas correntes natildeo tinham dogmas e nem organizaccedilatildeo escolar mas representavam um modo de vida Sexto Empiacuterico era ceacutetico e atraveacutes de suas criacuteticas ao estoicismo e epicurismo eacute que se conservaram textos que conteacutem informaccedilotildees destas duas escolas criticadas por ele 214

Novak (1999 p 258) menciona que ldquoEpicuro de Samos (342341-271270) cidadatildeo ateniense teria sido disciacutepulo do platocircnico Pacircnfilo (Cic ND I 26 72) Dos dezoito aos vinte anos efebo em Atenas e companheiro de Menandro teria ouvido liccedilotildees na Academia e no Liceu A seguir por razotildees poliacuteticas natildeo pode voltar a Samos e passa os anos seguintes em Colofatildeo Mitilene e Lacircmpsaco provavelmente vai tambeacutem a Rodes Elabora o que podemos chamar a sua teoria moral Em 306 volta a Atenas e cria a Escola do Jardimrdquo 215

Em seu artigo A definiccedilatildeo de Zenatildeo da fantasia kataleptike Sedley (2014 p148) fornece a seguinte explicaccedilatildeo ldquoa teoria de Zenatildeo natildeo eacute apenas empirista mas de fato identifica seu criteacuterio fundamental de verdade a impressatildeo cognitiva com um tipo de percepccedilatildeo sensorial Aleacutem disso a teoria da percepccedilatildeo sensorial em questatildeo eacute causal Nossas impressotildees sensoriais diretas ou antes um subconjunto privilegiado delas obteacutem sua apreensatildeo infaliacutevel do mundo porque satildeo diretamente causadas por ( ἀπὸ ndash lsquoa partir dersquo) coisas externas das quais satildeo impressotildeesrdquo

169

em Roma e laacute se tornou orientador filosoacutefico de Cipiatildeo e o acompanhou nas

expediccedilotildees orientais Paneacutecio se esforccedilou por adaptar a eacutetica estoica aos costumes

romanos adotando alguns pontos das doutrinas poliacuteticas de Platatildeo e Aristoacuteteles

advertindo para as formas mistas de governo Escreveu sobre o oacutecio a tranquilidade

da alma e a providecircncia temas proacuteprios para o espiacuterito romano destacando-se o

tiacutetulo Sobre os deveres obra mencionada por Ciacutecero Tambeacutem foram de sua autoria

Da Providecircncia e um comentaacuterio ao Timeu de Platatildeo Poreacutem de suas obras restaram

apenas fragmentos e referecircncias doxograacuteficas

O continuador de Paneacutecio na segunda fase do estoicismo foi Possidocircnio mestre de

Ciacutecero e amigo de Pompeu Com sua competecircncia vasta Possidocircnio se interessou

por histoacuteria continuando o trabalho de Poliacutebio assuntos de teologia e de geometria

A terceira fase do estoicismo eacute situada em Roma em um novo contexto histoacuterico

natildeo mais centrada na escola institucionalizada mas emergindo de diferentes

filoacutesofos independentes enfatizando a eacutetica como ponto central da filosofia estoica

aproximando-se dos interesses e praticidade do cidadatildeo romano Hadot (2004 p

2016) pontua que ldquoo fenocircmeno da dispersatildeo das escolas teve consequecircncias para o

proacuteprio ensinordquo Nesse novo contexto o ensino consiste em explicar textos da

lsquoautoridadesrsquo como por exemplo os diaacutelogos de Platatildeo os tratados de Aristoacuteteles e

as obras de seus continuadores e reformadores Nesse clima havia uma tendecircncia

de aplicaccedilatildeo do conhecimento dos dogmas das quatro grandes escolas (platocircnicos

aristoteacutelicos epicuristas e estoicos) sem objetivo de uma especializaccedilatildeo Nessas

circunstacircncias amplia-se o interesse pela cultura geral Em muitas situaccedilotildees a

filosofia passa a ser concebida como ldquoprogresso espiritual como meio de

transformaccedilatildeo interiorrdquo

Integrando esse novo cenaacuterio surge Secircneca como filoacutesofo estoico que manteacutem

princiacutepios da escola fundadora no campo da moral sustentando que a virtude pode

ser adquirida via sabedoria a qual tem seus ensinamentos na filosofia A vida de

Secircneca coincide tambeacutem com o novo marco temporal da histoacuteria do ocidente e parte

do oriente pois ele nasceu em Coacuterdoba aproximadamente no ano 1 do seacuteculo I

aC Ele era integrante de uma famiacutelia respeitada em Roma pois seu pai Annaeus

Secircneca conhecido como Secircneca o Velho tem destaque na Histoacuteria por suas

contribuiccedilotildees como renomado retoacuterico por meio de suas obras produzidas

170

Controversiae e Suasoriae De acordo com observaccedilotildees de Wilson (2007 p 425)

haacute uma clara influecircncia paterna na formaccedilatildeo de Secircneca

Ainda na infacircncia Secircneca desenvolveu seus estudos em Roma tendo como base a

oratoacuteria e filosofia Na epiacutestola cento e oito Secircneca216 recorda a primeira fase de

sua formaccedilatildeo com os mestres pitagoacutericos Soacutetion e Fabiano Passada a experiecircncia

com os pitagoacutericos Secircneca se identificou com os estoicos e ele faz o seguinte

comentaacuterio a respeito do seu mestre Aacutetalo

[] nos tempos em que frequentava a sua escola (onde era sempre o primeiro a chegar e o uacuteltimo a sair) ateacute mesmo durante os passeios do mestre eu o aliciava agrave discussatildeo de um ou outro problema aproveitando-me do facto de ele estar sempre pronto a ir ao encontro dos interesses dos seus disciacutepulos (Secircn Ep 108 3)

Com base nas condiccedilotildees da educaccedilatildeo romana Secircneca se destacou no campo da

filosofia literatura e poliacutetica na vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era Assim a

sua formaccedilatildeo filosoacutefica tem como fonte os pensadores estoicos do periacuteodo

Heleniacutestico Veillard (2013 p 230) registra que a histoacuteria da penetraccedilatildeo do

estoicismo em Roma tem seus primoacuterdios mais ou menos 155 a C quando Atenas

acusada por questotildees de desentendimentos nos assuntos poliacuteticos enviou trecircs dos

seus filoacutesofos mais importantes para defenderem suas posiccedilotildees diante do senado

romano Carneacuteades217 era o representante da academia de Platatildeo e discursou sobre

os fundamentos da justiccedila Critolau o peripateacutetico e Dioacutegenes da Babilocircnia

representando os estoicos A partir dessa experiecircncia dois filoacutesofos estoicos

passaram a ocupar o centro de atenccedilatildeo por debaterem questotildees sobre a justiccedila e

poliacutetica Veillard (2013 p 232) constata que por um lado Antiacutepatro de Tarso

(disciacutepulo e sucessor de Dioacutegenes da Babilotildenia) ldquofavorece primeiramente os

reformadores que insistem na igualdade de todos os homensrdquo Para os problemas

dos fundamentos da igualdade a orientaccedilatildeo eacute dada por Dioacutegenes agrave legitimidade de

direitos Por outro lado ldquoos aristocratas apoiam-se no respeito agrave propriedade privada

afirmado por Dioacutegenes mas apelam a Antiacutepatro para rejeitar a definiccedilatildeo do justo

como igualdade estrita das partesrdquo A diferenccedila de tratamento dos problemas

levantados por parte de Antiacutepatro e Dioacutegenes pode ser concebida natildeo como

questatildeo de princiacutepio mas de meacutetodo O posicionamento de Antiacutepatro teve certo

216

Em suas epiacutestolas Secircneca natildeo costuma fornecer dados biograacuteficos que possam contribuir para uma montagem cronoloacutegica de sua trajetoacuteria poreacutem agraves vezes escapam algumas informaccedilotildees como as que ele fornece ao longo da epiacutestola 108 em que faz algumas menccedilotildees agrave sua juventude 217

Carneaacutedes eacute citado por Ciacutecero na obra Da Repuacuteblica III XVII

171

alcance diante dos romanos e Veillard (2013 p 233) reconhece que haacute alguns

pontos de contato entre seus ensinamentos com a nova legislaccedilatildeo sobre o direito

privado editada pelo imperador Augusto218 em 18 aC

Nota-se que naquele periacuteodo filosofia e poliacutetica estavam interligadas em detrimento

do bom funcionamento da repuacuteblica e em seguida do impeacuterio romano Paul Veyne

(1995 p11) observa que Ciacutecero criou um modelo de homem total que deveria ser

senador literato e filoacutesofo Nesse aspecto Secircneca foi sucessor de Ciacutecero em

relaccedilatildeo ao desempenho desse triplo papel

Na concepccedilatildeo de Veillard (2013 p 235) Secircneca investe em harmonizar poliacutetica e

filosofia procurando atender outras questotildees que natildeo foram privilegiadas nas

discussotildees de seus antecessores estoicos mais imediatos Ele se respalda em

Crisipo para abordar a noccedilatildeo de favor como um ato de benevolecircncia ldquopois se trata

de querer o bem do outro e transformar essa intenccedilatildeo em accedilatildeordquo A ideia de Secircneca

confronta a praacutetica do conceito de favor no campo poliacutetico econocircmico que no seu

tempo e contexto visavam alianccedilas forccediladas aprisionando indiviacuteduos em diacutevidas de

favores como acontecia no modo de agir do patronato219

Secircneca natildeo se limitou a ocupar o lugar de expectador do transcorrer da histoacuteria

poliacutetica no Principado romano220 mas se engajou como participante Sua famiacutelia

ocupava posiccedilatildeo ativa na vida poliacutetica de Roma sendo seu irmatildeo Lucio Gaacutelio221

prococircnsul (administrador puacuteblico) na proviacutencia da Acaia no tempo do Imperador

218

Segundo Veillard (2013 p234) os ensinamentos de Antiacutepatro defendem que a finalidade do casamento natildeo eacute apenas a procriaccedilatildeo mas em primeiro lugar a vida em comum dos casais entrelaccedilando alma e corpo Na lei de Augusto havia puniccedilatildeo para o desrespeito e infidelidade entre os casais tentando corrigir costumes decadentes fazendo da ceacutelula conjugal um espaccedilo de estabilidade e de virtude na valorizaccedilatildeo do respeito muacutetuo 219

Venturini (2001 p 2015-2016) informa que ldquoo termo patrono era usado para descrever o papel que um indiviacuteduo tinha na sociedade bem como a atenccedilatildeo que ele recebia em funccedilatildeo de suas capacidades materiais e morais estas lhe davam a autoridade (auctoritas) para atuar publicamente tornando possiacutevel a reuniatildeo de um grupo de amici ao seu redor Desse modo havia um contexto romano para a praacutetica do patronato A amicitia natildeo era somente um laccedilo subjetivo de afeiccedilatildeo mas tambeacutem uma ligaccedilatildeo objetiva baseada na assistecircncia muacutetua e na fides isto eacute na lealdade entre os amicirdquo 220

Grimal (2008 p 53) menciona que a designaccedilatildeo princeps era usada no periacuteodo da Repuacuteblica para indicar pessoa que ocupava posiccedilatildeo de autoridade e honra como no caso do liacuteder nas tomadas de decisotildees no senado Nesse contexto Augusto era princeps senatus em razatildeo de sua credibilidade autoridade poliacutetica e moral O termo Principado como regime poliacutetico eacute de uso posterior a esse momento histoacuterico Portanto o Principado eacute a fase convencionada pelos historiadores para designar o Impeacuterio Romano a partir de 27 aC quando o senado investiu Otaviano o futuro Augusto no poder supremo com a denominaccedilatildeo de priacutencipe (princeps) ldquoo homem que os deuses designaram como guiardquo 221

O prococircnsul Luacutecio Gaacutelio foi citado no livro de Atos ldquoMas sendo Gaacutelio prococircnsul da Acaia levantaram-se os judeus concordemente contra Paulo e o levaram ao tribunalrdquo (Atos 1812)

172

Claudio Secircneca foi testemunha da ascensatildeo de quatro imperadores romanos

Tibeacuterio Caliacutegula Claudio e Nero Na epiacutestola 108 Secircneca fornece alguns dados

biograacuteficos mencionando alguns fatos ldquoO meu tempo de juventude coincidiu com o

acesso de Tibeacuterio Ceacutesar222 no Principado Por essa eacutepoca praticavam-se em Roma

vaacuterios cultos exoacuteticosrdquo223 Secircneca faz um retrospecto remontando ao tempo de sua

juventude para abordar sobre sua transiccedilatildeo do pitagorismo ao estoicismo e a

importacircncia e desafio de se encontrar um mestre que vivesse de acordo com seus

proacuteprios ensinamentos

No governo de Caliacutegula Secircneca se destacava como escritor e era alvo de criacuteticas

do imperador como relata Suetocircnio (sdata p 134)224 A simples inveja do

imperador colocou a vida de Secircneca em risco Mas Caliacutegula foi alertado sobre a

debilidade da sauacutede do escritor e assim natildeo cumpriu seu ato de puniccedilatildeo planejado

Referecircncias indiretas a esse respeito satildeo feitas na epiacutestola setenta e oito Secircneca

comenta sobre o problema de sauacutede de Luciacutelio lembrando que na juventude ele

proacuteprio passara por situaccedilatildeo ainda mais grave ficando quase tuberculoso Na

sequecircncia do relato ele diz ldquomuitos homens houve a que a doenccedila adiou sua morte

iminenterdquo (Ep 786)

Conforme as informaccedilotildees de Shotter (2008 p 2829) no governo do imperador

Claudio Secircneca jaacute era participante oficial do senado e em 41 dC foi exilado na ilha

de Coacutersega por acusaccedilatildeo de envolvimento com a sobrinha do imperador e laacute

permaneceu ateacute 49 dC Durante esse tempo Secircneca escreveu uma de suas obras

222

Segurado e Campos informa em nota explicativa (Ep 108 22) que Tibeacuterio Ceacutesar subiu ao poder em 14 dC e nesse tempo tempo Secircneca deveria ter entre 15 ou 16 anos 223

De acordo com os comentaacuterios de Secircneca (Ep 108 19-23) os pitagoacutericos estavam disseminando as suas doutrinas que incluiacuteam a abstinecircncia da carne de animais Secircneca esteve ligado aos pitagoacutericos e por um ano se absteve de carne mas seu pai o convenceu de abandonar aquela seita filosoacutefica Taacutecito (Anais II 85) fornece algumas informaccedilotildees ldquoTratou-se de abolir tambeacutem os cultos egiacutepcios e judaicos e um senatusconsulto mandou deportar para a Sardenha quatro mil da classe dos libertos imbuiacutedos dessas supersticcedilotildees e em idade militar [] os outros foram mandados sair da Itaacutelia se ateacute determinado dia natildeo abjurassem os ritos profanos Em sua dissertaccedilatildeo de mestrado Miranda (2008 p 47) relata que Secircneca aos 25 anos sentindo sua sauacutede abalada foi tratar-se no Egito Por certo as ameaccedilas e perseguiccedilatildeo de Tibeacuterio aos pitagoacutericos forccedilaram a retirada de Secircneca Em Alexandria estabeleceu relaccedilotildees com filoacutesofos e a religiatildeo oriental Permaneceu por seis anos naquele retiro e retornou agraves suas funccedilotildees poliacuteticas em Roma em 31 dC Foi nomeado senador em 33 dC e tribuno da peble em 37 dC A partir dessa fase se destacou como orador despertando a inveja de Caliacutegula sendo ameaccedilado de morte 224 Suetocircnio (sdata p 134) informa que quando Caliacutegula tinha de falar em publico ldquodizia que ia lanccedilar os traccedilos das suas vigiacutelias desprezando aliaacutes o modo de escrever mais moderado e mais aprimorado ao ponto de chamar aacutes obras de Seacuteneca o autor entatildeo mais em voga amplificaccedilotildees escolaacutesticas e de as comparar a edifiacutecios onde natildeo ha senatildeo pedra ou areia sem cal nem cimento tinha o costume de responder aacutes arengas dos oradores mesmo os mais afamadosrdquo

173

intitulada Consolaccedilatildeo agrave minha matildee Heacutelvia Algumas informaccedilotildees sobre

relacionamento filial de Secircneca com sua matildee estatildeo registradas nesta obra Ao

mesmo tempo em que Secircneca consola sua matildee desenvolve argumentos sobre o

significado de consolar como um lugar comum em especial no gecircnero epistolar Agrave

medida que ele busca compreender as perdas que afetaram a vida de sua matildee

fornece informaccedilotildees biograacuteficas sobre alguns acontecimentos Nesta obra (Cons

HeacutelvII4) Secircneca relata sobre o pequeno intervalo em que ela perdeu o irmatildeo e

um mecircs depois o esposo (Secircneca o Velho) Nessa produccedilatildeo em que Secircneca

consola sua matildee o motivo destacado eacute o exiacutelio que o separou da famiacutelia Em suas

consideraccedilotildees Secircneca argumenta ldquoexiacutelio eacute na substacircncia uma mudanccedila de lugarrdquo

(Cons Heacutelv VI1) O modo como ele discorre filosoficamente sobre o significado do

exiacutelio revela seu posicionamento estoico pois ele toca em vaacuterios aspectos

defendidos pela escola quando desdobra a ideia de mudanccedila de lugar em variados

postulados estoicos225

Em 49 dC com a morte de Messalina esposa do Imperador Claudio a suposta

responsaacutevel pela acusaccedilatildeo e exiacutelio de Secircneca o Imperador casou-se com Agripina

e esta solicitou o retorno de Secircneca a Roma para cuidar da educaccedilatildeo de seu filho

Nero que estava com 11 anos de idade

Segundo Mendes em 54 dC conforme uma das versotildees da histoacuteria da morte do

Imperador Claudio a execuccedilatildeo do seu envenenamento foi atribuiacuteda agrave sua esposa

Agripina Nessas circunstacircncias o imperador foi sucedido por Nero sendo este

aclamado pelos pretorianos e tendo sido ratificado tal ato pelo senado Como Nero

ainda era muito jovem (17 anos) foi orientado por dois tutores Secircneca e Afracircnio

Burro prefeito do Pretoacuterio A partir de tal composiccedilatildeo poliacutetica nos primeiros cinco

anos do mandato de Nero ldquoa ideologia imperial reflete as ideias heleniacutesticas sobre

valor piedade justiccedila e clemecircnciardquo (MENDES 2006 p44)

Secircneca procurou orientar o jovem Imperador para uma poliacutetica justa e humanitaacuteria

de acordo com os valores estoicos Graccedilas aos dois preceptores de Nero os

225

Ao discorrer sobre o movimento Secircneca comenta na obra Consolaccedilatildeo agrave minha matildee Heacutelvia VI 8 que ldquotodas as coisas rodam e passam vatildeo de um ao outro ponto como ordena a inexoraacutevel lei do mundo quando teratildeo terminado durante um determinado periacuteodo de tempo sua volta faratildeo novamente o caminho percorridordquo Sobre o destino na mesma obra (VIII 5) Secircneca comentardquo por isso alegres e de cabeccedila erguida iremos com passo intreacutepido aonde quer que a sorte nos leverdquo[] Sobre corpoalma (XI7) ldquoEacute esse nosso miacutesero corpo prisatildeo e corrente da alma que pode ser jogado em qualquer lugar sobre ele tecircm poder os supliacutecios os roubos as doenccedilas a alma eacute sagrada e eterna e ningueacutem lhe pode fazer violecircnciardquo (Trad de Giulio Davide Leoni)

174

primeiros anos de seu reinado evidenciaram alguma semelhanccedila com o reinado de

Augusto Eacute nesse contexto que Secircneca escreveu o tratado De Clemencia Segundo

Grimal (1993 p 95) ldquocom Secircneca surge explicitamente uma teoria do poder

imperial no acircmbito do principado augustanordquo O programa proposto por Secircneca

pode ser identificado pela ideologia estoica atraveacutes daquele tratado destinado a

Nero a quem ele se dirige em uma dedicatoacuteria no exoacuterdio Percebe-se que Secircneca

como enunciador se propotildee a enfatizar as qualidades de Nero226 como Imperador e

a partir desse propoacutesito toma como tema a clemecircncia numa busca de expor seus

significados com base nos valores estoicos referindo-se a ela como uma virtude que

eacute ldquouma inclinaccedilatildeo do espiacuterito para a brandura ao executar a puniccedilatildeordquo (De Clem II

I2)

Como afirma Shotter (2008 p 89) o objetivo de Secircneca era apresentar a Nero a

afirmaccedilatildeo clara do modelo que ele proacuteprio prometera aderir na apresentaccedilatildeo de seu

primeiro discurso no senado Shotter (2008 p 41) lembra que Nero tivera diferentes

mestres em retoacuterica e filosofia mas seu interesse maior era focado em diversos

campos culturais como arte arquitetura e muacutesica durante sua formaccedilatildeo escolar

Para os mestres e tutores responsaacuteveis pela educaccedilatildeo em Roma a literatura

contribuiacutea como apoio textual tanto no exerciacutecio da leitura quanto no treinamento de

formulaccedilatildeo de ideias atraveacutes dos textos Quintiliano faz referecircncia ao valor dessa

praacutetica em mirar-se na produccedilatildeo literaacuteria quando ele assim se expressa

[] Verdadeiramente dos poetas se busca o sopro que eacute vida nas ideias a

sublimidade que se eleva nas palavras todos os movimentos que se agitam nos afetos a caracterizaccedilatildeo que existe nas personagens em especial porque a mente desgastada no agir diaacuterio do foacuterum como que se restaura no seu melhor por meio desta liberdade de tudo Exatamente por isto Ciacutecero entende que se deva descansar neste tipo de leitura (Inst Or X I27)

As instruccedilotildees de Quintiliano sobre a formaccedilatildeo educacional ideal para o homem

romano delineadas no livro X da obra Institutio Oratoria oferecem possibilidades de

compreensatildeo de que retoacuterica e literatura eram naturalmente vinculadas Rezende

(2008 p76) chama a atenccedilatildeo para esse fato observando que Quintiliano toma

226

Como relata Flaacutevio Josefo (Hist Heb III 22176) ldquoQuando Nero se viu guindado ao aacutepice do poder num cuacutemulo de prosperidade abusou de tal modo de sua fortuna que eu natildeo poderia fazer uma descriccedilatildeo fiel de suas accedilotildees sem causar horror Assim contentar-me-ei em dizer em geral que ele chegou a um espantoso excesso de crueldade e de loucura que manchou suas matildeos no sangue de seu irmatildeo de sua mulher de sua proacutepria matildee e de outras pessoas parentes e amigosrdquo

175

Ciacutecero como exemplo no exerciacutecio da praacutetica juriacutedica contribuindo para que retoacuterica

oratoacuteria e literatura fossem constitutivas do proacuteprio discurso

No que diz respeito agrave importacircncia da educaccedilatildeo filosoacutefica na formaccedilatildeo do cidadatildeo

romano ao analisar o funcionamento da filosofia na eacutepoca inicial do impeacuterio romano

Grimal (1993 p 73) defende que ldquoa persistecircncia do grego como linguagem da vida

moral contribui para unir entre si as duas metades do imperiumrdquo Pode-se dizer que

o pensamento filosoacutefico em suas variadas facetas estava ligado agrave heranccedila grega

Nesse ambiente de formaccedilatildeo do intelectual romano no seacuteculo I dC Secircneca eacute visto

como o poeta-filoacutesofo pois de acordo com algumas colocaccedilotildees de Cardoso (2003

p 45 a 47) a linguagem usada por Secircneca contribui para a identificaccedilatildeo de

caracteriacutesticas do entrecruzamento entre discurso literaacuterio e filosoacutefico em suas

produccedilotildees Ele permite refletir em sua obra literaacuteria aspectos do pensamento

estoico visto que nos cacircnticos corais por ele produzidos satildeo ressaltados temas

cosmoloacutegicos e metafiacutesicos De acordo com as informaccedilotildees histoacutericas Secircneca se

torna uma importante referecircncia da trageacutedia romana deixando como heranccedila a ideia

de continuidade que serviu de influecircncia para o teatro no periacuteodo do Renascimento

com destaque para Shakespeare na Inglaterra e Cervantes na Espanha

Secircneca se inspirou nas trageacutedias gregas ao produzir as trageacutedias latinas Uma visita

ao teatro de Epidauro227 oferece uma oportunidade de se avaliar o funcionamento

dos teatros gregos e sua importacircncia como exposiccedilatildeo das obras dos poetas que

produziam trageacutedias e comeacutedias A qualidade da acuacutestica faz notar a capacidade da

engenharia arquitetocircnica da eacutepoca fazendo valer os recursos naturais para atender

a demanda de uma ampla assistecircncia puacuteblica desde a nobreza ateacute a mais popular

O teatro de Epidauro serviu de Palco para apresentaccedilatildeo de trageacutedias gregas de

Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes Estes poetas tambeacutem serviram de modelo para

Secircneca

227

A conservaccedilatildeo do teatro quase intacta se deve ao fato de com o passar do tempo ele foi sendo abandonado coberto pela vegetaccedilatildeo local e soterramento das colinas em volta Nada mais nada menos que seis metros de solo o protegeram por esse longo periacuteodo Foi apenas no seacuteculo XIX que um arquiteto grego chamado Panagis Kavadias impulsionado pela descriccedilatildeo do geoacutegrafo grego Pausacircnias acerca do monumental esplendor arquitetocircnico do teatro de Epidauro o redescobriu sob as jaacute citadas colinas mais precisamente em 1881 O trabalho das escavaccedilotildees durou 6 anos vendo surgir o imponente teatro (Informaccedilotildees turiacutesticas fornecidas na visita realizada ao teatro de Epidauro em 10 de agosto de 2016)

176

Furlan (2006 p 258) menciona que o seacuteculo II aC representou uma significante

fase da trageacutedia romana atraveacutes das produccedilotildees de Pacuacutevio (220-130 aC) e Aacutecio

(170-86 aC) Pode-se notar que os romanos aproveitaram algumas caracteriacutesticas

do modelo do teatro grego228 mas inovaram com a tecnologia dos arcos e tornaram

seu uso mais diversificado em termos populares A princiacutepio o teatro romano foi

palco da comeacutedia nova com destaque para Plauto e Terecircncio A construccedilatildeo do

espaccedilo para as apresentaccedilotildees do teatro romano natildeo era definitiva visto o caraacuteter

ambulante dos apresentadores

O interesse mais evidente no entretenimento que reunia multidotildees passou a ser a

realizaccedilatildeo dos jogos fato esse que contribuiu para mudanccedilas nos acontecimentos e

caracteriacutesticas dos jogos de origem grega tanto quanto modificaccedilotildees no

funcionamento do proacuteprio teatro Como observa Cardoso (2003 p 43) no seacuteculo I

dC o teatro nos moldes claacutessicos jaacute natildeo atraia a plateia que preferia os mimos

danccedilas entre outras apresentaccedilotildees

Essas consideraccedilotildees sobre o teatro romano comparado ao grego contribuem para

o surgimento de certas hipoacuteteses de que as peccedilas de Secircneca natildeo eram destinadas

agraves apresentaccedilotildees nos palcos teatrais pois eram mais voltadas para leitores do que

para espectadores Como bem afirma Taacutecito (Anais XIII3) ldquoos escritos de Secircneca

eram perfeitamente adaptaacuteveis ao gosto de seus contemporacircneosrdquo

De acordo com as colocaccedilotildees de Furlan (2006 p 258) as dez peccedilas traacutegicas

construiacutedas por Secircneca partem de um lugar comum que era a exploraccedilatildeo de mitos

lendas e histoacuterias Dessas fontes Secircneca extrai diferentes temas que de certa

forma permitem a dramatizaccedilatildeo de valores da filosofia estoica Para Cardoso (2003

p 43) a falta de teatralidade nas peccedilas escritas por Secircneca justificam essa

concepccedilatildeo do objetivo de leitura e natildeo de representaccedilatildeo no teatro ldquoSecircneca

escreveu peccedilas possivelmente para serem lidas em sessotildees puacuteblicas frequentadas

por uma elite familiarizada com os velhos mitosrdquo Outro diferencial que Cardoso

(2003 p 44) aponta na comparaccedilatildeo entre as peccedilas gregas e as de Secircneca eacute a

228

Cardoso (2003 p 39 40) informa que o surgimento da trageacutedia helecircnica origina dos rituais religiosos quando os coros participavam nos festejos religiosos Aos poucos foram ocorrendo mudanccedilas e havia alternacircncias entre um cantor uacutenico e posteriormente em algumas passagens um ator substituiacutea o cantor declamando o texto e representando por meio de gestos e movimentos Aos poucos a trageacutedia foi se tornando uma estrutura intercalada por coro e atores Em Roma Livio Andronico traduziu a Odisseia como primeira apresentaccedilatildeo Continuou seu trabalho de traduccedilatildeo colocando os romanos em contato com o teatro grego Em seguida surgiram outros poetas como Neacutevio Ecircni Pacuacutevio e Aacutecio Das demais trageacutedias da era augustana pouco se conservou

177

movimentaccedilatildeo quase estaacutetica que este autor imprime agraves cenas tornando-as

inadequadas agrave encenaccedilatildeo teatral Para Cardoso mesmo partindo de modelos do

teatro grego Secircneca inova no modo de construccedilatildeo das personagens realccedilando os

traccedilos do caraacuteter e caricaturas traacutegicas Neste mesmo sentido Albrech (2008 p

124) argumenta que para Secircneca o uso de material dos escritores anteriores natildeo eacute

impedimento para originalidade mas senso literaacuterio

Grimal (2011 p 71) observa que em Roma aos poucos o teatro literaacuterio abandonou

o palco tornando-se em recitatio Conforme Wilson tambeacutem registra Secircneca iniciou

sua formaccedilatildeo no campo da retoacuterica com o uso da praacutetica da declamaccedilatildeo segundo

a forma pedagoacutegica defendida por seu pai Secircneca o Velho a partir da aplicaccedilatildeo do

recitatio como exerciacutecios da retoacuterica e oratoacuteria

Seneca like other Romans of his generation was trained in rhetoric and practiced in declamation In fact he was one of the addressees of his fatherrsquos Controversiae and Suasoriae which indicate that in his youth he

was an eager student of rhetorical techniques (WILSON 2007 p 425)229

Aleacutem de apoiar-se nos modelos do teatro grego como referecircncias para construir

suas trageacutedias230 Secircneca tambeacutem se inspira em Oviacutedio231 que representa a quebra

do ritual na produccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios de seu tempo com a criaccedilatildeo da obra

Metamorfoses marcando uma mudanccedila de expectativa no campo da literatura

Auhagen (2007 p 415) verifica que na obra Controveacutersias Secircneca232 o Velho

menciona a habilidade de Oviacutedio na retoacuterica e seu talento na declamaccedilatildeo de

controveacutersias (leis fictiacutecias sobre determinado caso) poreacutem Oviacutedio preferia suasoacuteria

(discursos fictiacutecios de persuasatildeo) Ainda segundo Auhagen (2007 p415) Secircneca

o Velho menciona a capacidade de Oviacutedio em transferir seu talento no campo da

retoacuterica para seu proacuteprio desempenho na arte poeacutetica Pode-se dizer que Oviacutedio

representou um exemplo para Secircneca o Jovem pois a partir de sua educaccedilatildeo e

influecircncia paterna conseguiu utilizar seus conhecimentos da retoacuterica interligando a

filosofia aos gecircneros literaacuterios que ele habilmente conseguiu desenvolver Assim

229

Secircneca como outros de sua geraccedilatildeo foi treinado em retoacuterica e declamaccedilatildeo De fato ele era um dos endereccedilados das obras Controversiae e Suasoriae de seu pai O que indica que em sua juventude ele era um estudante dedicado na aacuterea de teacutecnicas retoacutericas 230

Trageacutedias de Secircneca As loucuras de Heacutercules As troianas As feniacutecias Medeia Fedra Eacutedipo Agamenon Tiestes Heacutercules no Fta Octaacutevia (atribuiacuteda a Secircneca) 231

Citaccedilatildeo da preferecircncia de leitura de Oviacutedio quanto agraves duas produccedilotildees de Secircneca o Velho 232

Grimal (2011 p 72) observa que ldquoo livro de Secircneca Pai intitulado Suasoriae et controvesiae (discurso para persuadir e discurso para defender uma causa) revela os principais nomes dos mestres de retoacuterica no principado de Augusto e os seus meacutetodos de ensinordquo

178

Secircneca inova ligando literatura e filosofia ao enxertar na produccedilatildeo das trageacutedias

certos princiacutepios do estoicismo

Fantham (2005 p 123124) esclarece que natildeo haacute fontes de informaccedilotildees precisas

quanto agraves datas das produccedilotildees das trageacutedias de Secircneca Algumas conjecturas satildeo

levantadas com base no conteuacutedo e contexto histoacuterico localizando hipoteticamente

a produccedilatildeo de algumas peccedilas entre 41 a 54 d C e outras de 55 a 62 d C Esta

autora tambeacutem aponta o valor das influecircncias de poetas romanos pois Secircneca

constroacutei suas trageacutedias em cinco atos forma esta recomendada por Horaacutecio

Na produccedilatildeo das trageacutedias Secircneca manteacutem o valor da imitatio como explorado

pelos poetas da literatura greco-latina e esse recurso da criaccedilatildeo poeacutetica pode ser

apontado como uso de um lugar comum de uma fonte que permite caracterizar a

forma e modo de cada produccedilatildeo Na epiacutestola oitenta e quatro Secircneca discorre

sobre o valor das ideias que satildeo coligidas das leituras usando a imagem da abelha

como metaacutefora ldquocomo soe dizer devemos imitar as abelhas que deambulam pelas

flores escolhendo as mais apropriadas ao fabrico do mel e depois trabalham o

material recolhido distribuem-no pelos favosrdquo (Ep 843) Assim a leitura serve a

Secircneca como meio de coleta de material para sua criaccedilatildeo dos temas literaacuterios e

filosoacuteficos

Rezende (2008 p 109) entende o conceito de imitatio na concepccedilatildeo de Quintiliano

ldquocomo um exerciacutecio um procedimento uma estrateacutegia pedagoacutegica que se faz

mediaccedilatildeo sem fim em si mesma portanto entre um saber jaacute construiacutedo e outro

saber que se pretende aprimorarrdquo Eacute nesse vieacutes que Quintiliano (Inst Or X 21)

argumenta [] ldquonatildeo haacute que duvidar de que uma grande parte da arte esteja

circunscrita agrave imitaccedilatildeordquo

Partindo da influecircncia de seus antecessores no campo da literatura Secircneca busca

nos personagens da mitologia grega a accedilatildeo para suas trageacutedias e quanto agrave

aplicaccedilatildeo moral das peccedilas ele toma a literatura do periacuteodo augustano como fonte

para situar seus personagens no enquadramento da moral romana Eacute nessa

perspectiva que Secircneca encontra o caminho para explorar os princiacutepios da filosofia

estoica Wilson (2007 428) focaliza Secircneca no contexto em que ele recoloca a

filosofia na escrita latina libertando-a de sua ligaccedilatildeo exclusiva com a liacutengua grega

transpondo termos filosoacuteficos gregos para a liacutengua latina Com base em sua

179

formaccedilatildeo e habilidade no campo da retoacuterica Secircneca foi capaz de adaptar a filosofia

agrave literatura e poliacutetica reunindo eloquecircncia e argumentaccedilatildeo

A capacidade de Secircneca em integrar filosofia retoacuterica e poliacutetica garantiu-lhe o

prestiacutegio de ser escolhido para exercer o papel de tutor do futuro imperador Nero

Taacutecito (Anais XIII 2) menciona que Secircneca aleacutem de professor de Nero foi

responsaacutevel pela produccedilatildeo de alguns discursos pronunciados pelo jovem imperador

Confirmando esse desempenho de Secircneca Taacutecito (Anais XIII 3) relata que no

funeral do imperador Claudio Nero fez o elogio protocolar usando o discurso escrito

por Secircneca Taacutecito elogia o discurso dizendo que fora composto com muita arte

pois Secircneca era um homem de sedutor engenho ldquomuito ao gosto daquela eacutepocardquo

Por um periacuteodo de cinco anos (54 a 59 dC) Secircneca no papel de conselheiro foi

capaz de intermediar uma conciliaccedilatildeo entre poliacutetica e filosofia no principado de

Nero Acontecimentos que se sucederam como a morte de Agripina e

posteriormente a de Bruto provocaram certa instabilidade na poliacutetica imperial e

nesse ambiente acontece o afastamento de Secircneca Segundo Veyne dos anos 62

ateacute 65 dC Secircneca recolhe-se ao oacutecio dedicando-se agrave sua obra e meditaccedilatildeo

ldquoSeus uacuteltimos anos satildeo cercados por sua escritura de um suacutedito de Nero que sabe

que seus dias estatildeo contados Secircneca se isola na solidatildeo de um oacutecio letrado para

continuar a poliacutetica por esses outros meios de accedilatildeordquo (VEYNE1995 p168)

Quanto agrave escolha de Secircneca em finalizar sua carreira optando pelo gecircnero

epistolograacutefico Wilson (2007 p 436) comenta que este gecircnero permitiu-lhe construir

de forma pessoal o discurso filosoacutefico e seguir mais proacuteximo o movimento de sua

mente cultivando a ideia de uma conversa privada e natildeo de um discurso puacuteblico

permitindo-lhe o tracircnsito livre nas mudanccedilas e direccedilatildeo do pensamento Este autor

remete aos gregos para lembrar que por um lado a epiacutestola tem sua heranccedila no

diaacutelogo filosoacutefico como gecircnero podendo a epiacutestola ser tratada como metade do

diaacutelogo pelas circunstacircncias da ausecircncia do destinataacuterio Por outro lado Secircneca

adota o gecircnero epistolar transferindo a linguagem filosoacutefica da sua oralidade para

sua condiccedilatildeo de escrita O proacuteprio Secircneca aponta este fato ao mencionar que o

discurso de seu mestre Fabiano era construiacutedo para a mente dos leitores e natildeo para

os ouvidos de uma audiecircncia (Ep 100 2-3)

180

Portanto Secircneca elege o gecircnero epistolograacutefico seguindo a forma protocolar

inerente a esse formato e ainda contribui construindo a cenografia de um tratado

filosoacutefico caracterizando o gecircnero como epiacutestola filosoacutefica

41 CONSTRUCcedilAtildeO DA CENOGRAFIA COMO TRATADO FILOSOacuteFICO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA

O corpus selecionado nesta pesquisa para anaacutelise especiacutefica dos toacutepoi filosoacuteficos e

argumentos retoacutericos tem como fonte determinadas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

jaacute sinalizadas e apresentadas nos quadros de organizaccedilatildeo indicadas na introduccedilatildeo

deste trabalho nas p 25 26 e 27 A produccedilatildeo da escrita de Secircneca na obra Annae

Senecae ad Lucilium Epistulae Morales eacute norteada pela opccedilatildeo do gecircnero

epistolograacutefico como jaacute apresentado anteriormente A coleccedilatildeo que eacute composta de

cento e vinte quatro epiacutestolas233 organizadas em vinte livros apresenta-se

consistente de acordo com a caracterizaccedilatildeo do gecircnero escolhido Em relaccedilatildeo a

Luciacutelio como destinataacuterio existem indagaccedilotildees se ele seria um personagem real ou

fictiacutecio Segurado e Campos (1991 p VI-VII) faz algumas observaccedilotildees em sua

introduccedilatildeo da obra alegando que haacute certas evidecircncias da existecircncia de Luciacutelio no

contexto histoacuterico-social de Secircneca A despeito dos escassos dados de sua

biografia devendo sua imortalidade ao proacuteprio Secircneca que o elegeu como

destinataacuterio de suas epiacutestolas sabe-se que seu nome completo era Gaio Luciacutelio

Juacutenior originaacuterio de Pompeia na Campacircnia o que se deduz por algumas

referecircncias de Secircneca Quanto agrave data de seu nascimento natildeo haacute referecircncia para

esta informaccedilatildeo somente comentaacuterios234 de Secircneca que fazem supor ser ele

proacuteprio um pouco mais velho do que Luciacutelio No fechamento da epiacutestola oito Secircneca

oferece o brinde costumeiro de uma maacutexima ao seu destinataacuterio aproveitando para

refletir sobre o valor e citaccedilatildeo de maacuteximas e de versos Apoacutes a citaccedilatildeo de um verso

de Publilio Secircneca prestigia Luciacutelio afirmando ldquoa mesma ideia exprimiste tu bem

me lembro num verso natildeo menos brilhante e concisordquo - Natildeo eacute verdadeiramente teu

o que eacute teu por dom da sorte (Ep 810) E Secircneca ainda acrescenta mais um verso

233

Segundo Reynolds (1957 p 5) a princiacutepio a coleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca foi dividida em dois volumes O primeiro era formado pelas epiacutestolas de 1-88 compondo um manuscrito do seacuteculo IX dC e o segundo volume eacute composto pelas epiacutestolas de 89-124 em outro manuscrito do seacuteculo X dC Esses manuscritos serviram de base para as traduccedilotildees para o inglecircs 234

Na epiacutestola 267 Secircneca se refere a Luciacutelio como mais novo ldquoEacutes mais novo do que eu mas isso natildeo importa o que conta natildeo satildeo os anosrdquo Na epiacutestola 352 Secircneca comenta que a diferenccedila de idade entre os dois natildeo eacute tatildeo significativa [] ldquosei que o que minha idade jaacute perdeu em vigor poderaacute recebecirc-lo da tua embora natildeo muito distanterdquo

181

de Luciacutelio dizendo ldquonatildeo me esqueccedilo tambeacutem de outro verso teu melhor aindardquo ndash

Bem que se pode dar pode tambeacutem tirar-se (Ep 810) Em outra epiacutestola Secircneca

confirma seu apreccedilo por Luciacutelio como poeta ldquoQue presente queres tu que eu te

ofereccedila para te dissuadir de incluiacuteres no teu poema a descriccedilatildeo do Etnardquo (Ep 795)

No discurso construiacutedo por Secircneca natildeo importa se Luciacutelio eacute simplesmente um

personagem fictiacutecio pois a enunciaccedilatildeo se estabelece a partir da imagem dele como

destinataacuterio Na constituiccedilatildeo da cenografia o EU que se dirige ao TU toma uma

posiccedilatildeo de comando e instruccedilotildees a partir da construccedilatildeo imageacutetica do receptor da

epiacutestola Assim Secircneca trata Luciacutelio como um disciacutepulo procurando convencecirc-lo da

superioridade do estoicismo sobre o epicurismo Gazola (2008 p 101) observa que

Secircneca usa a didaacutetica para ensinar Luciacutelio atraveacutes das epiacutestolas e assim se

posiciona ldquoNatildeo se pode perder de vista que Secircneca natildeo estaacute expondo os detalhes

teoacutericos mais complexos da ontologia estoicardquo Na verdade os ensinamentos de

Secircneca partem de uma visatildeo praacutetica dos princiacutepios filosoacuteficos estoicos

No quadro da cenografia que se constitui na enunciaccedilatildeo o papel do enunciador eacute de

mestre que se dirige ao seu co-enunciador como disciacutepulo Hadot (1999 p 21)

pontua que o discurso do mestre de filosofia na Antiguidade toma a forma de um

exerciacutecio espiritual agrave medida que ldquoesse discurso se apresente sob forma tal que o

disciacutepulo do mesmo modo que o ouvinte o leitor ou o interlocutor possa progredir

espiritualmente e transformar-se interiormenterdquo

A primeira epiacutestola de Secircneca eacute o ponto de partida para o estabelecimento da

cenografia de todo o conjunto da coleccedilatildeo A introduccedilatildeo se daacute por meio de certo

afastamento do modo da escrita epistolar convencional Assim Secircneca natildeo faz uso

da saudaccedilatildeo introdutoacuteria protocolar simplificando-a com a expressatildeo Seneca

Lucilio suo salutem Na epiacutestola quinze ele registra alguns comentaacuterios sobre a

tradiccedilatildeo de seguir o modelo de introduccedilatildeo no gecircnero epistolograacutefico fato que

justifica sua escolha da forma de saudaccedilatildeo no gecircnero epistolar por ele adotado

Costumavam os antigos (e o uso conservou-se ateacute ao meu tempo) escrever logo a seguir agrave epiacutegrafe das cartas estas palavras ldquoSe estaacutes de boa sauacutede tanto melhor eu estou de boa sauacutederdquo Quanto a noacutes teremos antes razotildees para dizer ldquose te aplicas agrave filosofia tanto melhorrdquo De fato eacute na filosofia que reside a sauacutede verdadeira (Ep 151)

Essa colocaccedilatildeo de Secircneca comprova seu afastamento da forma usual da escritura

na abertura da epiacutestola sinalizando o objeto central de seu foco que eacute a filosofia

182

conformando-se com a cenografia de um tratado Nessa epiacutestola quinze tem-se a

confirmaccedilatildeo da cenografia que foi instaurada a partir da introduccedilatildeo da coleccedilatildeo

como tratado filosoacutefico Ao mesmo tempo Secircneca escreve essa epiacutestola quinze

entre outras tambeacutem fazendo uso do toacutepico sobre questotildees de sauacutede recorrente no

gecircnero epistolograacutefico Nessa conjectura ele se manteacutem enquadrado nas

caracteriacutesticas do gecircnero mas adapta o seu modo ao campo filosoacutefico quando ele

afirma ldquoCultiva portanto em primeiro lugar a sauacutede da alma e soacute em segundo lugar

a do corpordquo (Ep 152)

Maingueneau analisa uma situaccedilatildeo de debate puacuteblico em que o discurso eacute

construiacutedo a partir de uma cenografia epistolar e assim ele aborda a carta natildeo

como gecircnero mas como cenografia de carta privada235 Atraveacutes das discussotildees ele

faz a seguinte observaccedilatildeo quanto agrave importacircncia do papel da cenografia na

enunciaccedilatildeo

A cenografia epistolar como qualquer cenografia tem inevitavelmente por efeito fazer passar a cena englobante e a cena geneacuterica ao segundo plano de modo que o leitor se encontre preso numa armadilha se a cenografia eacute bem explorada ele recebe esse texto como uma carta e natildeo como um libelo (MAINGUENEAU 2008 p117)

Essa anaacutelise do Maingueneau contribui para chamar a atenccedilatildeo sobre a importacircncia

de se captar a cenografia na enunciaccedilatildeo e identificaacute-la em seu funcionamento no

discurso Talvez a discussatildeo que se levanta entre os que defendem as epiacutestolas de

Secircneca como tratado no papel de gecircnero do discurso se encaixe nessa armadilha

que a cenografia bem explorada provoca A cenografia como tratado na construccedilatildeo

discursiva das epiacutestolas natildeo invalida o gecircnero epistolar pois este se manteacutem em

suas caracteriacutesticas de definiccedilatildeo do gecircnero

Na epiacutestola introdutoacuteria da coleccedilatildeo a figura que primeiramente se destaca eacute a do

destinataacuterio estabelecendo o diaacutelogo pretendido entre EU emissaacuterio e TU

destinataacuterio

Procede deste modo caro Luciacutelio reclama o direito de dispores de ti concentra e aproveita todo o tempo que ateacute agora te era roubado te era subtraiacutedo que te fugia das matildeos Convence-te de que as coisas satildeo como as descrevo uma parte do tempo eacute nos tomada outra parte vai-se sem darmos por isso outra deixamo-la escapar Mas o pior de tudo eacute o tempo esperdiccedilado por negligecircncia Se bem reparares durante grande parte da

235

Maingueneau (2008 115-135) escolhe o libelo religioso e o programa poliacutetico eleitoral como gecircneros do discurso distintos que recorrem ao uso da cenografia epistolar para a construccedilatildeo do discurso

183

vida agimos mal durante a maior parte natildeo agimos nada durante toda a vida agimos inutilmente (Ep 11)

Muhana (2000 p 341) argumenta que uma das caracteriacutesticas preconizadas no

gecircnero epistolar desde a Antiguidade eacute a imagem do destinataacuterio em primeiro

lugar Fato este que evidencia a importacircncia do tu em relaccedilatildeo ao eu na interlocuccedilatildeo

entre ausentes Esta caracteriacutestica apontada pode ser identificada na epiacutestola

introdutoacuteria de Secircneca a Luciacutelio Eacute notoacuterio observar que no papel de mestre Secircneca

valoriza a figura do disciacutepulo colocando-o em destaque na abertura de sua epiacutestola

O assunto a ser abordado eacute introduzido girando em torno do tema filosoacutefico ldquoo

tempordquo como um direcionamento para toda a organizaccedilatildeo da coleccedilatildeo de epiacutestolas

Os assuntos giram em torno de variadas reflexotildees sobre o tempo e os seus

desdobramentos em toacutepicos Esse pode ser considerado o tema filosoacutefico

centralizador em torno do qual gera a produccedilatildeo argumentativa da obra por meio de

toacutepoi e argumentos retoacutericos

O tema filosoacutefico ldquoo tempordquo eacute identificado na primeira epiacutestola e segue sendo

desenvolvido por meio de subtemas direcionados pela filosofia estoica Segundo

Gazola (2008 p 109) o tempo para os estoicos eacute o intervalo do movimento236 pois o

intervalo eacute a marca do ponto inicial ateacute o ponto final do movimento designado como

tempo Os anos de vida de uma pessoa satildeo marcados do nascimento ateacute a morte e

este intervalo eacute entendido pelos estoicos como tempo Assim o tema ldquoo tempordquo nas

epiacutestolas de Secircneca se desdobra em subtemas como nascimento vida velhice e

morte Apoacutes a apresentaccedilatildeo do interlocutor no funcionamento do TU no diaacutelogo

emerge a presenccedila marcada do EU no ato da enunciaccedilatildeo

Talvez te apeteccedila perguntar como procedo eu que dou todos esses preceitos Dir-te-ei com franqueza como algueacutem que vive bem mas sem esbanjamento Tenho as minhas contas em dia Natildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de que modo o perco (Ep I4)

236

Eacutemile Breacutehier (2012 95-103) expotildee que a tese de Zenatildeo sobre o tempo se aproxima da de Aristoacuteteles Para Zenatildeo o tempo eacute o intervalo do movimento e para Aristoacuteteles o tempo eacute o nuacutemero do movimento Crisipo defendia que o tempo eacute o intervalo que acompanha o movimento do cosmo Segundo Aristoacuteteles o tempo eacute medido por um tempo definido a unidade de tempo Este tempo definido eacute medido por um movimento definido que eacute o movimento circular do ceacuteu pois soacute ele eacute uniforme A teoria de que o tempo eacute o movimento do ceacuteu eacute atribuiacuteda a Platatildeo mas natildeo tem o mesmo sentido da teoria estoica de que o tempo eacute o intervalo do movimento do mundo Para os estoicos o tempo eacute incorpoacutereo pois sua forma eacute vazia e os acontecimentos se sucedem segundo leis que o tempo natildeo possui Os incorpoacutereos satildeo desprovidos de ser tendo sua existecircncia marcada a partir do contato de um corpo com outro

184

A expressatildeo fatebor ingenue237 identifica um ethos parresiasta do enunciador ou

seja o franco falar a liberdade a abertura para se dizer o que deve ser dito Esse

modo de dizer a verdade aponta para a subjetividade do enunciador quando fala de

si ldquoNatildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de

que modo o percordquo Nesta situaccedilatildeo pode ser aplicada a explanaccedilatildeo de Foucault

(2010a p 334) sobre parresiacutea ao afirmar que ldquoo termo parresiacutea refere-se por um

lado agrave qualidade moral agrave atitude moral ao ethos e por outro lado ao procedimento

teacutecnico indispensaacutevel para transmitir o discurso verdadeirordquo

No desfecho desta primeira epiacutestola o enunciador menciona a maacutexima

Jaacute vem tarde a poupanccedila quando o vinho estaacute no fundo

Dois aspectos importantes contribuem para a instituiccedilatildeo da cenografia o uso do

tema sobre o tempo como lugar comum e o fechamento da epiacutestola com uma

maacutexima Na Antiguidade era recorrente entre os escritores greco-romanos o uso de

uma maacutexima como brinde de acordo com o tema em pauta Braren identifica essa

praacutetica nas epiacutestolas de Secircneca fazendo conexatildeo com o toacutepico do uso de maacuteximas

em epiacutestolas de Ciacutecero

Natildeo se deve entretanto esquecer outro toacutepico importante fornecido pela epistolografia antiga que consiste em considerar que a finalidade de uma carta eacute ofertar algum brinde toacutepico condensado por Ciacutecero em poucas palavras polliceri aliquid ldquoofertar algordquo (BRAREN 1999 p 42)

238

Na Antiguidade aleacutem das maacuteximas ou sententiae funcionarem como brinde no

gecircnero epistolograacutefico outras funccedilotildees destas podem ser observadas na construccedilatildeo

do discurso Costriano (2010 p 37) menciona que Secircneca o Velho opta por uma

abordagem mais didaacutetica no exerciacutecio da declamaccedilatildeo usando sententiae como

parte do elocutio por serem adequadas ao iniacutecio ou encerramento de uma

argumentaccedilatildeo ou mesmo para enfatizar um determinado assunto Portanto

Secircneca busca situar a ideia de tempo como tema filosoacutefico e uso de uma maacutexima239

237

ldquoconfesso com franquezardquo 238

Braren (1999 p 42) identifica Ciacutecero recorrendo ao uso de maacuteximas como brinde nas epiacutestolas Fam 4 13 6 e Fam 6 10 6 Secircneca segue o mesmo protocolo reforccedilando o caraacuteter argumentativo desse recurso 239

O que os tradutores de Aristoacuteteles chamam de maacutexima na retoacuterica latina era designado como sententia Quintiliano (Inst Or VIII 53) alega que o termo usado pelos latinos como sententia significava o que para o gregos era gnome O proacuteprio Secircneca usa o termo sententia aplicando-o em diferentes contextos como por exemplo ideia ou opiniatildeo como usado no grego (γνώμη ) e natildeo especificamente para se referir aos ditos de algueacutem Sic est non muto sententiam (Ep 101) Eacute assim

como te digo natildeo mudo de opiniatildeo Em Aristoacuteteles (Ret II 21 2) ἔστι δὴ γνώμη ἀπόφανσις[] a maacutexima eacute uma afirmaccedilatildeo (declaraccedilatildeo) ou seja a opiniatildeo eacute uma afirmaccedilatildeo

185

como argumento retoacuterico na busca de cenas validadas para mobilizar a instauraccedilatildeo

da cenografia A partir desta cenografia ficam delineados os toacutepoi e recursos

retoacutericos como estrateacutegias argumentativas na conduccedilatildeo do discurso

No todo da primeira epiacutestola que serve de abertura para o conjunto da coleccedilatildeo o

proacuteprio texto mostra a cenografia que o torna possiacutevel Assim fica evidenciada a

cenografia de um lsquotratado filosoacutefico estoicorsquo pela proacutepria intertextualidade que a

enunciaccedilatildeo mobiliza Nessa ordem a noccedilatildeo de cenografia como Maingueneau

(2005 2008 2012) postula em sua abordagem teoacuterica coopera para uma

compreensatildeo do processo pelo qual a enunciaccedilatildeo se autolegitima ao instituir um

enunciador e um co-enunciador de acordo com um conteuacutedo desenvolvido no

proacuteprio texto Essa abordagem intensifica a ideia de que o destinataacuterio Luciacutelio se

constitui na decircixis empiacuterica como o TU na enunciaccedilatildeo mas na decircixis discursiva ele

pode ser a figura dos leitores de Secircneca O estabelecimento da cenografia nessa

obra tambeacutem concorre para definir o enunciador como o filoacutesofo estoico

responsaacutevel pelo tratado filosoacutefico constituiacutedo na cenografia Dessa forma a decircixis

linguiacutestica serve como ponto de partida mas aos poucos vai cedendo lugar agrave decircixis

discursiva permitindo a apreensatildeo do ethos discursivo que se mostra na

enunciaccedilatildeo A topografia tambeacutem tem o lugar fiacutesico como partida empiacuterica para se

chegar ao discursivo ou seja Secircneca fala do lugar do seu retiro ou oacutecio fora da

poliacutetica e suas implicaccedilotildees sociais Aos poucos a discursividade da ideia desse

lugar ocupa variados sentidos no discurso

Como visto na contextualizaccedilatildeo histoacuterica que aponta para diferentes facetas que

englobam a vida de Secircneca tais dados contribuem para localizar discursivamente o

lugar de onde ele enuncia No momento histoacuterico em que ele escreve as epiacutestolas

percebe-se efeitos de seu deslocamento de posiccedilatildeo poliacutetica destacada para um

afastamento de todo o ambiente social e aristocrata Esse novo espaccedilo eacute o ldquoaquirdquo

que identifica o lugar da meditaccedilatildeo reflexatildeo e avaliaccedilatildeo O tempo percebido

empiricamente eacute toda trajetoacuteria que culmina na velhice como ele mesmo declara

Na cenografia que utiliza o tempo como tema direcionador da enunciaccedilatildeo a

cronografia pode ser vista como um ldquoagorardquo que prevecirc um momento final proacuteximo

Nesse contexto Secircneca tira proveito das vantagens do gecircnero epistolograacutefico e faz

dele o meio de depositar suas ideias e conselhos finais que vatildeo ao encontro de seu

destinataacuterio Luciacutelio Atraveacutes desse gecircnero epistolar cumprem-se os propoacutesitos da

186

escrita de si e cuidado de si como tambeacutem o cuidado do outro favorecendo a

Secircneca a perenidade de seu discurso atraveacutes da coleccedilatildeo de epiacutestolas por ele

produzidas e divulgadas

42 ETHOS DE SEcircNECA DE ACORDO COM SUA POSICcedilAtildeO DISCURSIVA

A construccedilatildeo do ethos de Secircneca atraveacutes da leitura de sua obra em especial com

base no foco de sua correspondecircncia com Luciacutelio compactua com a ideia de

Aristoacuteteles sobre as trecircs provas apontadas como constituintes do discurso ecircthos

paacutethos e loacutegos Inwood indica possibilidades de captaccedilatildeo da subjetividade de

Secircneca demonstrada atraveacutes da composiccedilatildeo de sua obra e faz o seguinte

comentaacuterio

In the corpus of his writing and in the relatively rich historical record we possess about him we see Seneca in many guises as an occasionally Machiavellian political figure of great but transient power as an eloquent orator devoted to the artfulness of fine speech as much as to its power to persuade as a dark but brilliant poet as a friend son and brother as a philosopher of surprisingly wide interests and as a moral adviser (INWOOD 2010 p ix)

240

De acordo com essa interpretaccedilatildeo de Inwood o ethos de Secircneca se revela nos

variados campos em que ele atuou como poliacutetico orador poeta e filoacutesofo A

fundamentaccedilatildeo para as manifestaccedilotildees da subjetividade de Secircneca estaacute contida no

estoicismo o qual direciona seu posicionamento discursivo nos vaacuterios campos do

saber Nessa mesma expectativa de apreensatildeo do ethos de Secircneca Wilson faz as

seguintes observaccedilotildees

He is able to present himself in a variety of roles as teacher counsellor comforter fellow student satirist literary critic moralist autobiographer friend or scientific observer Stoic or admirer of Epicurus physician psychotherapist or companion in suffering In the Epistles he resituates himself in every letter in a new set of circumstances in a new mood in a new reflective contex (WILSON 2007 433)

241

240

Inwood (2010 p xi) ldquoNo corpus da escrita e no registro histoacuterico relativamente rico que noacutes possuiacutemos sobre a vida de Secircneca noacutes o vemos de muitas formas como uma figura poliacutetica ocasionalmente maquiaveacutelica como um orador eloquente devotado agrave astuacutecia do bom discurso tanto quanto o seu poder de persuadir como um obscuro mas brilhante poeta como amigo filho e irmatildeo como filoacutesofo de interesses surpreendentemente amplos e como um conselheiro moralrdquo Observa-se na colocaccedilatildeo de Inwood que a expressatildeo maquiaveacutelica se refere agrave legitimidade e poder do governante compromissado com as virtudes inerentes ao posto poliacutetico ocupado 241 Wilson (2007 p 433) ldquoEle eacute capaz de apresentar-se em uma variedade de papeacuteis como mestre

conselheiro consolador colega de estudos satiacuterico criacutetico literaacuterio moralista autobioacutegrafo amigo ou observador cientiacutefico estoacuteico ou admirador de Epicuro meacutedico psicoterapeuta ou companheiro amigo ou observador cientiacutefico estoacuteico ou admirador de Epicuro meacutedico psicoterapeuta ou

187

Wilson observa que em cada epiacutestola dirigida a Luciacutelio Secircneca revela seu caraacuteter

oferecendo oportunidades para que a sua subjetividade seja identificada em

diferentes aspectos de acordo com o assunto em pauta e mesmo revendo e

reavaliando suas proacuteprias atitudes Como visto na construccedilatildeo da cenografia a partir

da primeira epiacutestola como abertura da coleccedilatildeo marcas do ethos de estoico satildeo

mostradas pela revelaccedilatildeo da subjetividade do enunciador que se coloca diante do

co-enunciador como parceiro na enunciaccedilatildeo ldquoTalvez te apeteccedila perguntar como

procedo eu que dou todos esses preceitosrdquo (Ep I4) O modo de proceder no papel

de estoico estaacute vinculado aos princiacutepios da proacutepria filosofia que lhes daacute o

direcionamento na forma de agir Na organizaccedilatildeo loacutegica da proposiccedilatildeo de Secircneca o

ato de proceder antecede ao de ensinar porque a forccedila do exemplo eacute fundamental

nos ensinamentos Para os estoicos romanos242 o disciacutepulo deve se espelhar no

mestre como aponta Secircneca ldquoa via atraveacutes de conselhos eacute longa atraveacutes de

exemplos eacute curta e eficazrdquo (Ep 65) Secircneca menciona esse fato em sua juventude

quando traz agrave proacutepria lembranccedila a imagem de seu mestre Aacutetalo ldquoAinda guardo na

memoacuteria um preceito que ouvi a Aacutetalo nos tempos em que frequentava a sua escolardquo

(Ep 1083) Atraveacutes dessas recordaccedilotildees Secircneca relata sua admiraccedilatildeo e atenccedilatildeo

em ouvir seu mestre sendo o primeiro a chegar aos encontros e o uacuteltimo a sair

Nessas reuniotildees dizia Aacutetalo ldquoo docente e o discente se devem unir num propoacutesito

comumrdquo (Ep 1084) Na sequecircncia de seu raciociacutenio Secircneca propotildee a Luciacutelio

ldquoFaccedilamos com que nosso estudo transforme as palavras em atordquo (Ep 10836)

Como indica Foucault (2010a p291) ldquoa paraskueacute243 eacute a estrutura permanente dos

discursos verdadeiros ancorados no sujeito em princiacutepios de comportamentos

moralmente aceitaacuteveisrdquo Entatildeo a paraskeueacute eacute o elemento de transformaccedilatildeo do

conhecimento em praacutetica que se revela no ethos

Toda preparaccedilatildeo que Secircneca recebeu ao longo de sua trajetoacuteria contribuiu para

sua formaccedilatildeo e adesatildeo ao estoicismo Ele proacuteprio relata que em sua juventude seu

primeiro mestre foi um pitagoacuterico fato que influenciou em sua adesatildeo a alguns

princiacutepios e regras de comportamento daquele grupo

companheiro em sofrimento Nas Epiacutestolas ele se recoloca em cada uma delas em um novo conjunto de circunstacircncias num novo clima num novo contexto reflexivordquo 242

Segundo Gourinat (2013 p 221) ldquona eacutepoca romana alguns estoicos encarnavam o estoicismo de maneira exemplar a comeccedilar por Catatildeo de Utica que Secircneca propotildee como modelo de saacutebio 243

No Novo Testamento o termo grego paraskeueacute (παρασκευε) tem o sentido de preparaccedilatildeo e no evangelho de Joatildeo 1914 aparece como preparaccedilatildeo da paacutescoa - Eν δε παρασκευε του πασχα

188

Foucault ((2010a p 283) analisa a noccedilatildeo de discurso verdadeiro na Antiguidade

como um processo da asceacutetica244 que estimula a escuta e a recepccedilatildeo na aquisiccedilatildeo

dos conhecimentos e estes fornecem meios para preparaccedilatildeo e constituiccedilatildeo da

subjetividade que se revela no indiviacuteduo por meio do ethos Partindo desses

princiacutepios observa-se que Secircneca se apropriou dos fundamentos do estoicismo e

vivenciou estas experiecircncias formando seu caraacuteter de filoacutesofo estoico Nas epiacutestolas

a Luciacutelio Secircneca procura convencecirc-lo de suas proacuteprias convicccedilotildees e assim passa

a exercer o papel de mestre diante do disciacutepulo

Em Secircneca o ethos de mestre cumpre a funccedilatildeo de ensinamentos dos postulados da

filosofia natildeo como dogmas mas como direcionamento do cuidado de si Foucault

(2011 p 410) analisa a diferenccedila entre o cuidado de si em Platatildeo e os estoicos

informando que para estes ldquopor intermeacutedio da faculdade da razatildeo de decisatildeo sobre

o controle das demais faculdades que se deve realizar o cuidado de sirdquo O que se

extrai dessa afirmativa eacute a ideia de que quando o indiviacuteduo lanccedila seu olhar sobre si

mesmo permite agrave razatildeo observar julgar e controlar os proacuteprios atos E Foucault

acrescenta ldquoO que faz a grande diferenccedila entre os animais e os humanos eacute que os

animais natildeo tecircm que se ocupar consigo mesmosrdquo

A partir de sua postura de formaccedilatildeo estoica sobre o cuidado de si Secircneca procura

investir seu tempo oferecendo seus ensinamentos a Luciacutelio com o objetivo de

ajudaacute-lo a alcanccedilar uma racionalidade no modo de agir que revertesse no cuidado

de si Na epiacutestola cento e seis Secircneca ressalta seu ethos de mestre procurando

convencer Luciacutelio a encarar o destino245 de forma racional e natural ldquoA melhor

atitude a tomar eacute aceitar o que natildeo podemos alterar e conformarmos sem

resmungar com os desiacutegnios da divindade que rege o curso do universordquo (Ep 107

9) Como estrateacutegia retoacuterica Secircneca cita versos do poema de Cleantes dedicado a

Zeus e ainda informa ter feito a traduccedilatildeo imitando Ciacutecero que costumava traduzir

obras do grego para o latim Do poema Secircneca escolheu versos que abordam os

postulados estoicos sobre o determnismo fechando com o verso ldquoO destino guia

quem o segue e arrasta quem o resisterdquo (Ep 10711)

244

Lembrando que para Foucault (2010a p374) asceacutetica eacute o conjunto mais ou menos coordenado de exerciacutecios disponiacuteveis recomendados ateacute mesmo obrigatoacuterios ou utilizaacuteveis pelos indiviacuteduos em um sistema moral filosoacutefico e religiosordquo 245

Gazolla (2008 p 125) menciona que Ciacutecero defende que ldquonatildeo se deve compreender destino por meio da adivinhaccedilatildeo do tempo futuro ligado ao passado como fazem os adivinhos pois trata-se de um princiacutepio coacutesmico um modo de ser de todas as coisas e natildeo de passado e futuro de algueacutemrdquo

189

Outra demonstraccedilatildeo do ethos de mestre identificado em Secircneca eacute observado em

seus ensinamentos a Luciacutelio sobre o tema pobreza Nessa questatildeo aparentemente

Secircneca se mostra incoerente com seu proacuteprio discurso pois sendo ele rico pregava

a teacutecnica do exerciacutecio da pobreza Os estoicos eram criticados pelos paradoxos que

externamente se manifestavam em seus discursos e assim Secircneca ironiza sobre

essa criacutetica ao introduzir esse assunto em seus ensinamentos a Luciacutelio ldquoNaufraguei

antes mesmo de embarcar Natildeo vou dizer-te como isto sucedeu mas natildeo fiques

pensando que se trata de mais um paradoxo estoicordquo (Ep 871) Com esta

introduccedilatildeo Secircneca comeccedila a argumentar com Luciacutelio sobre o assunto do

antogonismo entre riqueza e pobreza Para convencer Luciacutelio do seu papel de

mestre estoico ele relata nesta mesma epiacutestola sobre uma passeio por ele

realizado na companhia de um amigo encarando as condiccedilotildees miacutenimas de

sobrevivecircncia em relaccedilatildeo ao abrigo para o repouso e a alimentaccedilatildeo reduzida a patildeo

e figo O meio de transporte normalmente realizado em carruagem foi substituiacutedo

por uma carroccedila de campo guiada por uma mula vagarosa e um carroceiro

descalccedilo Diante desta cena Secircneca confessa

Dificilmente consigo de mim proacuteprio a confissatildeo aberta que uma tal carroccedila me pertence Ainda me natildeo libertei por completo dessa vergonha de agir bem sempre que vem ao nosso encontro algum grupo mais aparantoso coro embora contrariado Isto soacute prova como aquele modo de agir que eu considero digno e louvaacutevel ainda natildeo se fixou de modo definitivo e inabalaacutevel no meu espiacuterito (Ep 874)

Essa revelaccedilatildeo de Secircneca indica que ele estaacute procurando reformular seu conceito

de riqueza e pobreza compatiacutevel com teoria e praacutetica Segundo Foucault (2010a p

413) ldquono estoicismo o olhar sobre si deve ser a prova constitutiva de si como sujeito

de verdade e deve secirc-lo pelo exerciacutecio reflexivo da meditaccedilatildeordquo

Quando Secircneca escolhe o gecircnero epistolar para comunicar princiacutepios da filosofia

estoica ele tem consciecircncia da liberdade de escrita que este gecircnero oferece Este

fato sustenta o que Foucault (2004) defende sobre a escrita de si na

correspondecircncia Desse modo Secircneca se abre diante de seu amigo Luciacutelio

mostrando um ethos de sinceridade e ausecircncia de subterfuacutegios para encarar as

proacuteprias limitaccedilotildees em atingir a posiccedilatildeo ideal de um estoico

Paul Veyne (1995 p 28) situa alguns pontos sobre o tema riqueza na Antiguidade e

expotildee que na Roma antiga as consideraccedilotildees sobre a riqueza poderiam ser vistas

sob dois modos distintos Por um lado se o entendimento por moral se refere agrave

190

atitude de algueacutem consciente do que deve ou natildeo deve ser feito entatildeo a posse de

riquezas representa uma consciecircncia sem escruacutepulos Por outro lado se por moral

se compreende um coacutedigo taacutecito de comportamento implicado nas condutas

consideradas normais entatildeo a riqueza eacute objeto de prestiacutegio e sua posse naquela

situaccedilatildeo significava uma espeacutecie de dever para os poliacuteticos em especial para os

senadores Na posiccedilatildeo de poliacutetico a riqueza para Secircneca era uma condiccedilatildeo social e

nesse contexto ele escreveu o tratado sobre os benefiacutecios e de certa forma para

ele a riqueza oferecida por um beneficiador se torna para quem recebe natildeo uma

questatildeo de aceitaccedilatildeo mas de obediecircncia Tal fato evidencia o ethos de Secircneca no

papel de poliacutetico em seu envolvimento e exerciacutecio no cumprimento de suas

responsabilidades no senado que se torna indissociaacutevel em alguns aspectos com

seu ethos de estoico na concepccedilatildeo romana

O conceito de pobreza para os estoicos tem implicaccedilotildees filosoacuteficas que compactuam

com certos postulados pitagoacutericos e ciacutenicos ou seja pobreza eacute a ausecircncia de

acuacutemulo de bens desnecessaacuterios agrave sobrevivecircncia humana Eacute nessa perspectiva que

a beneficecircncia pregada por Secircneca se situa no contexto de sua vida puacuteblica natildeo

consistindo em oferecer bens aos pobres mas aos que solicitavam ajuda e

poderiam devolver o benefiacutecio o que demonstrava atitude de reconhecimento ou

gratidatildeo no ambiente poliacutetico do patronato

No dizer de Paul Veyne (1995 p 31) no campo da poliacutetica Secircneca escrevia como

filoacutesofo e natildeo como senador lanccedilando-se em um desafio de filosofar a poliacutetica

Assim Secircneca engrandece a praacutetica da escrita da filosofia em latim246 e se reafirma

como filoacutesofo expandido sua capacidade versaacutetil de aplicar os princiacutepios filosoacuteficos

que defendia nas formas bem diversificados de gecircneros do discurso como trageacutedia

saacutetira e epistolografria Eacute no gecircnero epistolar que Secircneca encontrou o espaccedilo

apropriado para registrar suas convicccedilotildees filosoacuteficas deixando-as para a

posteridade

O retiro de Secircneca da poliacutetica vai ao encontro de seu ideal de dedicaccedilatildeo exclusiva agrave

filosofia Como informa Taacutecito (Anais XIV 53-56 ) em 62 dC oficialmente Secircneca

solicitou a Nero o seu afastamento de sua funccedilatildeo de conselheiro do imperador

246

Como observa Paul Veyne (1995 p 31) em Roma a liacutengua teacutecnica para escrita da filosofia e medicina era o grego Nesse aspecto Ciacutecero e Secircneca introduziram o uso da liacutengua latina no campo da filosofia por reconhecerem a importacircncia de valorizar a liacutengua nacional e se considerarem capazes de fazecirc-lo

191

procurando tambeacutem devolver os bens recebidos e acumulados durante sua gestatildeo

indicando que a riqueza era o suporte da vida poliacutetica e a partir de seu afastamento

ambas perdiam o sentido e utilidade em sua vida Mediante a recusa de Nero247

Secircneca permaneceu em seu posto mas mudou seu modo de vida Evitou a clientela

e as companhias do seu meio social sendo visto raramente em ambiente puacuteblico

dedicando-se quase exclusivamente agrave filosofia Somente depois do incecircndio de

Roma eacute que aconteceu o afastamento definitivo de Secircneca248

Na epiacutestola setenta e trecircs Secircneca registra seu agradecimento ao priacutencepe por

permitir-lhe a oportunidade de dedicaccedilatildeo agrave filosofia Ainda sob o efeito da produccedilatildeo

de seu proacuteprio tratado sobre os benefiacutecios Secircneca mostra um ethos de gratidatildeo

originaacuterio de sua postura de saacutebio como consequecircncia dos ensinamentos

apreendidos da filosofia

Os filoacutesofos portanto que nos seus esforccedilos com vista a uma vida consagrada agrave moral soacute tem a beneficiar com a seguranccedila social veneram como a um pai o priacutencipe a quem devem tal benesse tem mesmo para com ele uma diacutevida muito superior agrave dos que vivem no meio da agitaccedilatildeo da poliacutetica pois estes embora muito devam aos priacutencipes muito tambeacutem exigem deles (Ep 732) [] o homem sincero e puro que abandona o senado o foro e todos os demais cargos administrativos do Estado esse homem soacute sente estimativa pelo priacutencipe que lhe permite a libertaccedilatildeo apenas esse homem pode testemunhar desinteressadamente em favor do priacutencipe e ter em relaccedilatildeo a ele sem que este o saiba uma enorme diacutevida de gratidatildeo (Ep 734)

Quando Secircneca se desliga de suas obrigaccedilotildees poliacuteticas ele se recolhe em um

ambiente mais propiacutecio agrave meditaccedilatildeo e eacute nesse contexto que ele produz sua obra

247

Taacutecito (Anais XIV 56) relata que Nero deu a seguinte resposta agrave solicitaccedilatildeo de Secircneca ldquoSe me restituiacuteres as tuas propriedades ou te retirares agrave vida privada a opiniatildeo puacuteblica o atribuiraacute a avareza de minha parte ou a receios teus de crueldade minha e se principalmente merecer aplausos tua abnegaccedilatildeo natildeo seraacute decoroso para tua sabedoria receber louvores deixando em descreacutedito teu amigordquo 248

As supostas epiacutestolas trocadas entre Secircneca e Paulo satildeo datadas a partir de 58 dC ateacute 64 dC Na antepenuacuteltima epiacutestola Secircneca escreve falando sobre o incecircndio em Roma SEcircNECA PARA PAULO Saudaccedilotildees meu querido Paulo Pensa que eu natildeo estou triste e aflito por seu povo inocente ser frequentemente condenado a sofrer E tambeacutem porque todos acham que vocecirc eacute tatildeo insensiacutevel e tatildeo propenso ao crime que eacute o suposto autor de cada infortuacutenio da cidade Vamos suportar isto pacientemente e contentar-nos com o que a sorte nos traz ateacute que a suprema felicidade coloque fim aos nossos problemas Nos tempos antigos era preciso suportar os macedocircnios o filho de Felipe e depois Dario Dioniacutesio e em nossos dias temos que suportar Gaius Ceacutesar para todos eles seus desejos eram lei O fogo devastou as planiacutecies de Roma mas se os homens humildes pudessem falar sem risco nesse tempo de trevas tudo se tornaria evidente para todos Cristatildeos e judeus satildeo comumente executados como os autores do incecircndio Quem quer que seja o criminoso cujo prazer eacute o de um accedilougueiro e que se esconde atraacutes de uma mentira ele teraacute sua hora e como o melhor homem foi sacrificado por muitos assim ele jurado de morte por todos seraacute queimado com o fogo Cento e trinta e duas casas e quatro quarteirotildees foram queimados em seis dias o seacutetimo trouxe uma pausa Eu rezo para que vocecirc esteja bem irmatildeo Dado em 5 das calendas de abril Frugi e Bassus ndash cocircnsules (64 dc) Trad Marcos Viniacutecius Fernandes Miranda e Joseacute Joaquim Pereira Melo

192

Epistulae Morales Nesse espaccedilo favoraacutevel ao desenvolvimento do pensamento

estoico Secircneca eacute capaz de conciliar discurso e praacutetica de vida permitindo emergir

em seu discurso seu ethos de filoacutesofo estoico Secircneca se dirige a Luciacutelio exortando-

o a abdicar-se das prisotildees impostas pela riqueza defendendo que ldquoa pobreza limita-

se a satisfazer as necessidades mais prementesrdquo e ele ainda acrescenta ldquoo estudo

da filosofia natildeo daraacute fruto se natildeo adotares uma vida frugal ora a frugalidade natildeo

passa de pobreza voluntaacuteriardquo (Ep 175) Com esses ensinamentos a Luciacutelio

Secircneca declara que a filosofia ensina o indiviacuteduo a morrer bem

No estoicismo os aconselhamentos sobre determinismo riqueza e tempo estatildeo

interligadados em alguns pontos de uniatildeo Secircneca alerta Luciacutelio a se afastar das

miragens sedutoras da riqueza ldquoPara quecirc esquecer-me da fragilidade humana e

pocircr-me a acumular bens Para quecirc penar por eles Este dia seraacute o meu uacuteltimo dia

e se acaso o natildeo for decerto que o meu fim jaacute natildeo estaacute distanterdquo (Ep 1511)

Na fase de afastamento de Secircneca pelas implicaccedilotildees poliacuteticas em seu contexto

histoacuterico ele vive uma situaccedilatildeo de inteira convicccedilatildeo da aproximaccedilatildeo do momento da

morte A epiacutestola setenta eacute uma amostra evidente da espectativa de Secircneca em

relaccedilatildeo agrave aproximaccedilatildeo do fim de sua vida justificando o suiciacutedio como uma

alternativa racional Assim ele declara ldquomorrer mais cedo morrer mais tarde eacute

questatildeo irrelevante relevante eacute sim saber se morre-se com dignidade ou sem ela

pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo de viver sem elardquo (Ep 70 6)

Nesta mesma epiacutestola Secircneca coloca diante de Luciacutelio algumas consideraccedilotildees

sobre a melhor atitude de um condenado diante da iminente morte O conceito A

VIDA Eacute UMA VIAGEM aparece no seu argumento metafoacuterico ldquose eu escolho o navio

em que vou navegar ou a casa em que vou habitar tambeacutem ao deixar esta vida

posso escolher a forma como morrerrdquo (Ep 7011) E ainda no mesmo raciociacutenio

metafoacuterico Secircneca alega ldquoeacutes livre de regressar ao lugar de onde viesterdquo (Ep

7015)

Na constituiccedilatildeo da cenografia a partir da primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacuteclio o

tema filosoacutefico ldquoo tempordquo eacute definido como norteador na elaboraccedilatildeo dos conselhos

Ligado ao tempo as instruccedilotildees de Secircneca como mestre tomam como base a

sabedoria que eacute adquirida atraveacutes da filosofia Saber viver eacute preparar-se para morrer

e o tempo precisa ser aproveitado e valorizado Eacute nessa perspectiva que Foucault

aponta que a meditaccedilatildeo sobre a morte eacute um exerciacutecio que permite ao indiviacuteduo

193

perceber a si mesmo A partir da expectativa da iminecircncia da morte cada dia ou

momento deve ser pensado como se fosse o uacuteltimo ldquoPortanto o pensamento sobre

a morte eacute que permite a retrospecccedilatildeo e a memorizaccedilatildeo valorativa da vidardquo

(FOUCAULT 2010a p 430) Portanto eacute desse lugar enunciativo que Secircneca

produz seu discurso optanto pelo gecircnero epistolar para atraveacutes deste tanto abrir-se

diante do outro revelando seu ethos de filoacutesofo estoico como tambeacutem compartilhar

com o outro os princiacutepios da filosofia estoica colocando-se como mestre que

tambeacutem procura ser coerente com seu discurso e praacutetica conforme expectativas

impostas pelo proacuteprio ideal do cidadatildeo romano

194

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE II

Nesta segunda parte da tese o propoacutesito de enfocar a cena geneacuterica da enunciaccedilatildeo

eacute relevante por evidenciar o gecircnero epistolar como definidor do discurso

desenvolvido atraveacutes das epiacutestolas de Paulo e de Secircneca O gecircnero do discurso

cenografia ethos pathos e logos satildeo elementos indissociaacuteveis da cena geneacuterica no

ato enunciativo O posicionamento ocupado pelos enunciadores eacute o meio de

interligaccedilatildeo que toma como base o discurso constituinte

O gecircnero epistolar como concebido na Antiguidade era abrangente no sentido de

variedades no seu uso como epiacutestola filosoacutefica epiacutestola de aconselhamento

epiacutestola de consolo epiacutestola documental entre outros Como visto o gecircnero

epistolar poderia ser diversificado na sua forma de conteuacutedo e apresentaccedilatildeo mas a

sua designaccedilatildeo era mantida como epiacutestola Assim a discussatildeo sobre diferenccedilas

entre carta e epiacutestola na Antiguidade se torna inadequada visto que o termo carta

naquele momento histoacuterico natildeo funcionava como sinocircnimo de epiacutestola

Para esclarecer como o uso do termo carta adquiriu um domiacutenio semacircntico entre os

falantes Orlandi (2005 p 104) analisa o tiacutetulo do documento249 Carta da Terra e os

possiacuteveis significados que acarretam essa escolha Esta autora parte de

pressupostos teoacutericos de que ldquoas palavras natildeo significam por si mas na relaccedilatildeo com

a exterioridade que inclui os sujeitos que as falam a memoacuteria discursiva e as

condiccedilotildees de produccedilatildeordquo A primeira indagaccedilatildeo eacute sobre o uso do termo Carta ao

inveacutes de Declaraccedilatildeo de Direitos Tratado de Intenccedilotildees entre outras opccedilotildees

Primeiramente o sentido de carta migra do discurso poliacutetico global para uma

situaccedilatildeo mais privada e familiar de correspondecircncia fortalecendo a ideia de que o

mundo eacute uma grande famiacutelia Em segundo lugar o termo carta remete agrave cartografia

mapa sinalizando a ideia de territoacuterio Nessas conjecturas Orlandi (2005 p 105)

aponta que ldquoo discurso resulta da inscriccedilatildeo da liacutengua na histoacuteriardquo e do termo carta

ldquoressoam efeitos de sentidos submetidos a uma filiaccedilatildeo de falas que jaacute se

249 Carta da Terra (Earth Charter) eacute resultado de um diaacutelogo mundial que teve seus primeiros esboccedilos no Foacuterum Mundial da Eco 92 no Rio de Janeiro A Carta da Terra teve seu lanccedilamento oficial no palaacutecio da Paz em Haia no dia 29 de junho de 2000 O grande objetivo do conteuacutedo do documento eacute o da criaccedilatildeo de um mundo sustentaacutevel Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrresponsabilidade-socialecocamaraarquivosCARTAdaTERRA

195

estabilizaram como sendo as que organizam as outrasrdquo Desse modo natildeo haacute como

enunciar uma palavra dando a ela o sentido que se deseja pois ldquoelas significam pelo

jogo de relaccedilotildees de forccedila e de sentido (memoacuteria do dizer) no imaginaacuterio em que

estatildeo imersasrdquo Esta anaacutelise de Orlandi pode ser aplicada ao fenocircmeno da

insistecircncia do uso do termo carta ao inveacutes de epiacutestola mesmo pensando em textos

da Antiguidade Assim as colocaccedilotildees sobre o uso do termo carta apontam para

questotildees de linguagem que satildeo influenciadas pelo jogo de forccedilas de sentido e

memoacuteria do dizer como se nota tambeacutem na tentativa de transpor o uso atual do

termo carta para o de epiacutestola na Antiguidade

A discussatildeo sobre o uso dos termos carta e epiacutestola como sinocircnimo no contexto da

Antiguidade natildeo eacute simplesmente uma questatildeo de vocabulaacuterio mas inclui tambeacutem a

concepccedilatildeo de gecircnero epistolograacutefico em sua funccedilatildeo de uso abrangente na

Antiguidade O que se observa eacute que as epiacutestolas de Paulo e de Secircneca

enquadram-se no gecircnero epistolograacutefico mas se diversificam de acordo com os

subconjuntos que compotildeem o gecircnero como um todo Desse modo Paulo estabelece

sua correspondecircncia a partir do gecircnero epistolar de conselhos e Secircneca o gecircnero

epistolar filosoacutefico Vale destacar que estes gecircneros escolhidos por estes autores

natildeo mantecircm uma forma exclusiva mas se abrem para abrigar outros subconjuntos

de gecircneros Isto indica que as epiacutestolas de Paulo natildeo se limitam agraves caracteriacutesticas

do aconselhamento mas se dispotildeem para aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos

religiosos culturais e assim por diante O tom de aconselhamento eacute a forma que se

expande como base para desenvolver os propoacutesitos dos ensinamentos paulinos via

epiacutestola

Segundo Inwood (2007 p136) as epiacutestolas filosoacuteficas de Secircneca estatildeo organizadas

em forma de coleccedilatildeo fato este que lhe permite uma variedade na totalidade de

produccedilatildeo epistolar no conjunto da obra Algumas epiacutestolas satildeo mais doutrinaacuterias e

teacutecnicas algumas satildeo informais ou mesmo pessoais outras satildeo mais naturais do

que artificiais Mesmo que a coleccedilatildeo das Epistolae Morales seja formada por

epiacutestolas que apresentam diferentes propoacutesitos a constituiccedilatildeo da cenografia na

epiacutestola introdutoacuteria corrobora para a manutenccedilatildeo do gecircnero epistolar filosoacutefico

No discurso de Paulo a escolha do gecircnero epistolar direcionado pela cenografia de

um manual de aconselhamento tem como base o discurso constituinte religioso Por

um lado o judaiacutesmo eacute influenciado pela cultura heleniacutestica tanto na esfera da

196

filosofia quanto no campo da literatura Por outro lado as tradiccedilotildees judaicas250 satildeo

mantidas como tambeacutem relata Flaacutevio Josefo em Histoacuteria dos Hebreus Em sua

correspondecircncia Paulo procura harmonizar valores da cultura judaica e heleniacutestica

somando-os ao seu novo modo de conceber seu proacuteprio lugar no discurso religioso

a partir de sua conversatildeo A formaccedilatildeo educativa de Paulo na convergecircncia do

mundo oriental e ocidental serviu de base para o desempenho de sua missatildeo e seu

relacionamento com as comunidades cristatildes que ele proacuteprio ajudou organizar O

papel de Paulo como remetente de suas epiacutestolas agrave igreja de Corinto permite-lhe

demonstrar seu ethos de apoacutestolo251 missionaacuterio e conselheiro

Paralelo a Paulo Secircneca em sua carreira de escritor transita entre dois discursos

constituintes o literaacuterio e o filosoacutefico A influecircncia da cultura heleniacutestica em Secircneca

se daacute em vista de sua proacutepria decisatildeo de escolha pelo estoicismo A grande parte

dos liacutederes e disciacutepulos da escola estoica eacute de origem oriental252 Decerto esse fato

contribui para o intercacircmbio entre cultura oriental e ocidental visto que a formaccedilatildeo

intelectual desses liacutederes tomava como base a filosofia socraacutetica Quando Secircneca

escreve as trageacutedias ele lanccedila matildeo da cultura grega para construccedilatildeo do enredo e da

cultura heleniacutestica para a aplicaccedilatildeo moral de acordo com os princiacutepios da filosofia

estoica

Secircneca procura dar sua contribuiccedilatildeo agrave poliacutetica do impeacuterio romano pelo prisma da

filosofia estoica Segundo Griffin (2013 p 14) as duas obras de Secircneca De

beneficiis e De clementia marcam afinidades com o desenvolvimento da imagem

idealizada do priacutencipe

Nos uacuteltimos anos de sua vida Secircneca dedicou-se agrave filosofia e decidiu pela inclusatildeo

do gecircnero epistolar como meio mais favoraacutevel para expressatildeo de seu pensamento

e discussotildees de questotildees eacuteticas

250

Paulo escrevendo aos gaacutelatas diz E na minha naccedilatildeo excedia em judaiacutesmo a muitos da minha idade sendo extremamente zeloso das tradiccedilotildees de meus pais (Gaacutelatas 114) 251

Natildeo sou eu apoacutestolo Natildeo sou livre Natildeo vi eu a Jesus Cristo Senhor nosso Natildeo sois voacutes a minha obra no Senhor Se eu natildeo sou apoacutestolo para os outros ao menos o sou para voacutes porque voacutes sois o selo do meu apostolado no Senhor (1 Coriacutentios 912) Porque aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisatildeo esse operou tambeacutem em mim com eficaacutecia para com os gentios (Gaacutelatas 28) 251

Zenatildeo era originaacuterio da Feniacutecia Crisipo Antiacutepater e Aquedemo eram de Tarso Cleantes era da Aacutesia Menor Dioacutegenes da Babilotildenia e Apolodoro da Caldeia

197

Na segunda parte desta pesquisa nota-se que a cena geneacuterica na enunciaccedilatildeo eacute

promovida pelo gecircnero do discurso e cenografia que incorporam os trecircs elementos

do discurso ethos pathos e logos A anaacutelise do ethos de Secircneca e de Paulo

contribui para identificaccedilatildeo do posicionamento discursivo que cada um deles ocupa

no discurso A partir da posiccedilatildeo de enunciador constituiacuteda na enunciaccedilatildeo o discurso

eacute construiacutedo com a finalidade de atingir as emoccedilotildees do co-enunciador como

parceiro no ato enunciativo A cenografia eacute instituiacuteda em funccedilatildeo do pathos pois o

texto no quadro da enunciaccedilatildeo eacute voltado para o co-enunciador que deve ser

mobilizado para que haja adesatildeo aos propoacutesitos do discurso

Na terceira parte que se segue o destaque eacute para o logos concebido a partir do

modo como o discurso se desenvolve na cena enunciativa pela participaccedilatildeo do

ethos que se dirige ao pathos Os corpora253 delimitados satildeo analisados com a

finalidade de observar o funcionamento dos toacutepoi e argumentos retoacutericos nas

epiacutestolas de Secircneca e Paulo e a utilizaccedilatildeo destes no desenvolvimento dos temas

que satildeo abordados a partir da construccedilatildeo da cenografia

253

Aleacutem das seleccedilotildees dos corpora de anaacutelise que identifcam as epiacutestolas que contecircm marcas do toacutepos ldquofalar francordquo exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas como argumentos retoacutericos temas ldquoo tempordquo e ldquoo amorrdquo outras epistolas da coleccedilatildeo de Secircneca e de Paulo servem como fontes para o tratamento de diferentes questotildees

198

PARTE III

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CONSTITUICcedilAtildeO DO DISCURSO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO

O objetivo mais central na terceira parte da pesquisa aqui desenvolvida tem como

foco as anaacutelises que tomam como base os textos das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

e de Paulo agrave igreja de Corinto concebidos como o logos ou seja a manifestaccedilatildeo da

organizaccedilatildeo do pensamento por meio do discurso O propoacutesito impulsionador eacute

observar alguma viabilidade de apreensatildeo da construccedilatildeo de sentidos que se

verificam a partir do posicionamento discursivo de cada um desses autores em foco

na determinaccedilatildeo do uso do toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo como direcionador da

construccedilatildeo do discurso Os recursos argumentativos retirados de um tipo de arquivo

que funciona como um lugar comum no contexto histoacuterico-social do primeiro seacuteculo

dC reforccedilam a organizaccedilatildeo entimemaacutetica do discurso Busca-se observar o modo

como as escolhas desses recursos retoacutericos satildeo determinadas pelo acesso aos

discursos constituintes filosoacutefico religioso e literaacuterio Por um lado a constataccedilatildeo de

entrecruzamento entre estes discursos nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

possibilita a verificaccedilatildeo da influecircncia da filosofia herdada dos gregos e sua releitura

na cultura heleniacutestica unindo o pensamento oriental ao ocidental Por outro lado a

identificaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo no desenvolvimento do discurso e a verificaccedilatildeo

do uso dos argumentos retoacutericos na composiccedilatildeo das epiacutestolas permitem visualizar

possiacuteveis identificaccedilotildees que podem suscitar um efeito de aproximaccedilatildeo ou

afastamento entre eles O posicionamento discursivo que cada um ocupa no

processo enunciativo se reveste da influecircncia exercida pelo discurso constituinte que

caracteriza e distingue a cena enunciativa em cada gecircnero epistolograacutefico de

suporte do discurso de cada um dos autores

A visita aos lugares comuns que indicam as escolhas de Secircneca e de Paulo em

seus discursos tem em vista dois roteiros O primeiro roteiro leva em conta a nova

roupagem que os romanos estabelecem para o sentido de lugar comum a partir do

periacuteodo Heleniacutestico como um reservatoacuterio de temas disponiacuteveis a serem

reelaborados de acordo com a finalidade de quem se propotildee a fazer uso destes A

partir dessa releitura sobre os toacutepoi autores como Curtius (1993) e Thom (2003)

199

oferecem algumas contribuiccedilotildees estendendo a classificaccedilatildeo dos toacutepicos retoacutericos

para o campo da filosofia e literatura O segundo roteiro elege como guia os estudos

aristoteacutelicos na concepccedilatildeo de argumentos retoacutericos no campo da linguagem que

caracterizam a funccedilatildeo argumentativa de determinados recursos retoacutericos

Na obra Retoacuterica Aristoacuteteles inicia seu manual instrutivo estabelecendo o significado

e conceito de retoacuterica expandindo a ideia de persuasatildeo nesse campo Ele ressalta

que seu interesse primordial estaacute focado nos meios de prova no discurso por serem

estes menos valorizados e negligenciados pelos autores da arte retoacuterica de seu

tempo (Ret I 2 1356a) Aristoacuteteles recolheu dados tambeacutem das experiecircncias dos

retoacutericos que o antecederam argumentando que os tratados sobre retoacuterica jaacute

produzidos natildeo contemplavam questotildees importantes como o tratamento de

entimemas254 e a partir de entatildeo organizou todo seu escopo teoacuterico apresentando

uma forma mais pragmaacutetica para identificaccedilatildeo do funcionamento da retoacuterica

Aristoacuteteles se preocupou em definir o papel da retoacuterica em contraponto ao da

dialeacutetica delimitando a funccedilatildeo e atuaccedilatildeo de cada uma no campo da persuasatildeo

Assim ele sustenta que a persuasatildeo natildeo eacute exatamente o foco de interesse da

retoacuterica mas seu objeto de atenccedilatildeo eacute a identificaccedilatildeo de meios possiacuteveis para o

acontecimento do fenocircmeno da persuasatildeo no discurso (Ret I 2 1355b)

Nas obras Retoacuterica e Toacutepicos Aristoacuteteles dispotildee retoacuterica e dialeacutetica em um mesmo

patamar de importacircncia mas com suas funccedilotildees bem demarcadas Sobre esta

questatildeo Segurado e Campos faz a seguinte observaccedilatildeo

Nestes termos e conforme Aristoacuteteles natildeo ignora a dialeacutectica torna-se uma disciplina afim da retoacuterica nos seus objectivos jaacute que ambas tecircm por finalidade mais a laquoopiniatildeoraquo (δοξα) do que o laquosaberraquo (επιστημη) mas ao mesmo tempo distinguem-se pelo seu modo de actuar na medida em que uma pratica o diaacutelogo e a outra o discurso e mesmo que ambas recorram ao uso dos laquolugares-comunsraquo (τοπόι) eacute diferente o que para cada uma significam esses lugares (SEGURADO E CAMPOS 2007 p 88)

Essa dualidade retoacuterica e dialeacutetica aparece tambeacutem na epiacutestola oitenta e nove de

Secircneca a Luciacutelio em sua exposiccedilatildeo sobre um contraponto entre filosofia e

254

Em sua nota explicativa da traduccedilatildeo do Livro da Retoacuterica Alexandre Jr (2005 p 90) informa que entimema eacute um silogismo retoacuterico isto eacute a forma dedutiva de argumentaccedilatildeo retoacuterica que tem no paradigma a sua forma indutiva Assim o entimema se torna mais viaacutevel no campo da retoacuterica por ser mais econocircmico em termos de linguagem visto que representa uma siacutentese do silogismo Na afirmativa de Descartes ldquoPenso logo existordquo estaacute contido um entimema que resume o silogismo eu penso aquele que pensa existe logo eu existo

200

sabedoria Nessa explanaccedilatildeo Secircneca faz uma retrospectiva sobre algumas

concepccedilotildees de filosofia destacando a triparticcedilatildeo eacutetica fiacutesica e loacutegica255

Na sequecircncia de suas ideias Secircneca resume sua abordagem sobre filosofia em

dois campos filosofia natural e filosofia racional Nesses termos a filosofia natural

divide-se em duas partes o estudo dos seres corpoacutereos e o estudo dos seres

incorpoacutereos256 Quanto agrave filosofia racional Secircneca assim argumenta

Resta-me indicar a divisatildeo da filosofia racional Todo discurso ou eacute contiacutenuo ou eacute dividido por dois interlocutores em sistema de pergunta e resposta Ao estudo deste segundo tipo costuma chamar-se διαλεκτική (dialektikecirc) ao do primeiro ρητορική (rhetorikecirc) A ρητορική ocupa-se das palavras das ideias e da estrutura do discurso a διαλεκτική divide-se em duas partes os termos e os significados isto eacute os conceitos que queremos exprimir e os vocaacutebulos pelos quais os exprimimos (Ep 8917)

Secircneca concorda com alguns filoacutesofos que o antecederam a respeito de

determinadas concepccedilotildees de retoacuterica e dialeacutetica apontando que cada uma destas

tem uma funccedilatildeo especiacutefica na construccedilatildeo do discurso e ao mesmo tempo as situa

no campo da filosofia Secircneca demonstra rejeitar dos proacuteprios estoicos que o

antecederam257 certos aspectos da eloquecircncia que na epiacutestola 752 ele denomina

de artifiacutecios dos oradores Nessa mesma perspectiva Paulo coloca sua posiccedilatildeo

diante dos destinataacuterios de suas epiacutestolas procurando afastar-se da ideia de

eloquecircncia e assim coloca sua defesa ldquoEu mesmo quando fui ter convosco irmatildeos

natildeo me apresentei com o prestiacutegio da palavra ou da sabedoria258 para vos anunciar

255

Como informa Reale (1994a p 107) a triparticcedilatildeo na filosofia foi feita por Xenoacutecrates tornando-se o eixo de todo o pensamento da era heleniacutestica Xenoacutecrates (406-314 aC) era disciacutepulo de Platatildeo e foi seu segundo sucessor na academia 256

Segundo Gazolla (1999 p 14) a noccedilatildeo de incorpoacutereo representa a reflexatildeo dogmaacutetica sobre a natureza e eacute ponto baacutesico para a stoa O poacutertico resolveu inovar na ontologia quando nomeou os quatro incorpoacutereos o tempo o lugar o vazio e o exprimiacutevel como ldquoquase-seresrdquo em contraste com os corpoacutereos seres reais agentes-pacientes 257

Alexandre Jr (2005 p30) comenta que a definiccedilatildeo aristoteacutelica de retoacuterica entra bem cedo em concorrecircncia com a de Crisipo Cleantes e os demais que contemplam a retoacuterica como ars bene dicendi Estes filosoacutefos mencionados tendem para a composiccedilatildeo esteacutetico-estiliacutestica do discurso em detrimento da eficaacutecia argumentativa 258

Segundo Bird (2008 p377-379) [hellip] however when Paul says that he did not use lsquoeloquence or superior wisdomrsquo in his proclamation (1 Cor 21) what he probably meant is that he did not use lsquofloweryrsquo or lsquoornamentedrsquo rhetoric in his preaching the type that was so prized and esteemed by the Corinthians That way all attention would focus on the message and not the messenger Bruce Winter contends that what Paul rejects here is sophistry or the use of oratory in preaching that draws attention to the rhetorical prowess of the messenger rather than drawing attention to the content of the message [hellip] Even so primacy should be given to the epistolographic nature of Paulrsquos writings with rhetorical categories being employed only secondarily to supplement their potential effect as a form of persuasive discourse (No entanto quando Paulo diz que natildeo usou eloquumlecircncia ou sabedoria superior em sua proclamaccedilatildeo (1Cor 21) o que ele provavelmente quis dizer eacute que ele natildeo usou retoacuterica florida ou ornamentada em sua pregaccedilatildeo o modo tatildeo estimado e apreciado pelos coriacutentios Dessa forma toda a atenccedilatildeo se concentraria na mensagem e natildeo no mensageiro Bruce

201

o ministeacuterio de Deusrdquo (1Cor 21) Segundo Alexandre Jr (2005 p 45) eacute relevante

observar que Aristoacuteteles considera o valor do estilo no discurso mas no sentido de

que seu funcionamento deve estar voltado para o auxiacutelio da argumentaccedilatildeo e natildeo

necessariamente para teacutecnicas de ornamentaccedilatildeo

Quintiliano na obra Institutio Oratoria (II XV15-21) remonta agraves diferentes definiccedilotildees

de retoacuterica inclusive esta de Aristoacuteteles Ele desenvolve uma seacuterie de argumentos

quanto agraves concepccedilotildees de retoacuterica como persuasatildeo e concluiu que nessa

perspectiva uma sobrecarga de responsabilidade recai sobre o orador Segundo

Quintiliano a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles que coloca a retoacuterica na funccedilatildeo da descoberta

dos meios adequados agrave persuasatildeo no discurso ainda oferece um problema maior

pois ldquoesta definiccedilatildeo tem o defeito de se restringir o papel do orador agrave invenccedilatildeo pois

sem elocuccedilatildeo natildeo haacute discursordquo (Inst Or II 1514) Quintiliano faz uma retrospectiva

agraves demais conceituaccedilotildees de retoacuterica mencionando inclusive as posiccedilotildees de Platatildeo

em Goacutergias e Fedro a de Isoacutecrates no campo da filosofia e a de Ciacutecero como

scientia civilis (ciecircncia de estado ou poliacutetica) Por fim Quintiliano (Inst Or V 10 54)

expressa sua opiniatildeo mantendo seu conceito rhetorice est bene dicendi scientia (a

retoacuterica eacute a ciecircncia de bem dizer) A este conceito ele acrescenta que a virtude do

discurso estaacute diretamente ligada agraves qualidades do orador ou seja o preparo

intelectual e conhecimento do assunto coerentes com o modo de vida do emissor do

discurso Quintiliano interliga a sua concepccedilatildeo de retoacuterica agrave dos estoicos259 ldquoa

ciecircncia de falar com propriedaderdquo260 Quanto esta posiccedilatildeo de Quintiliano Secircneca

anteriormente jaacute se mostrava defensor da virtude do orador como requisito para sua

proacutepria credibilidade no discurso O conselho dado a Luciacutelio expressa essa ideia da

teoria ser condizente com a praacutetica

O nosso objetivo uacuteltimo deve ser este dizer o que sentimos sentir o que dizemos isto eacute pormos a nossa vida de acordo com as nossas palavras Imagina um mestre qualquer se a impressatildeo que tu sentes contemplando as suas accedilotildees eacute idecircntica agrave que tens ouvindo o seu discurso esse mestre atingiu o seu propoacutesito Observemos a qualidade dos seus atos a fluidez do seu discurso entre ambos a mais perfeita unidade (Ep 754)

Winter afirma que o que Paulo rejeita aqui eacute o sofisma ou o uso da oratoacuteria na pregaccedilatildeo que chama a atenccedilatildeo para as proezas retoacutericas do mensageiro em vez de chamar a atenccedilatildeo para o conteuacutedo da mensagem [] Mesmo assim a primazia deve ser dada agrave natureza epistolograacutefica dos escritos de Paulo com categorias retoacutericas sendo empregadas apenas secundariamente para complementar seu efeito potencial como uma forma de discurso persuasivo) 259

Alexandre Jr (2005 30) informa que a concepccedilatildeo da retoacuterica como falar bem eacute identifacada nos estoicos Criacutesipo e Cleante 260

Traduccedilatildeo de Antonio Fidalgo

202

Quintiliano assume tambeacutem essa posiccedilatildeo estoica a respeito da retoacuterica e manteacutem

certo distanciamento da postura de Ciacutecero em relaccedilatildeo ao objetivo da retoacuterica como

persuasatildeo argumentando que o dinheiro tambeacutem persuade assim como a

autoridade ou dignidade do orador (II XV6) Ao relacionar os nomes de escritores

gregos e romanos ao longo da Antiguidade Quintiliano apresenta uma siacutentese sobre

cada um e se posiciona apontando a identificaccedilatildeo de Ciacutecero com Platatildeo

Dos filoacutesofos dos quais Ciacutecero confessa haver buscado muitiacutessimo de sua eloquecircncia quem duvida de que Platatildeo foi o mais importante seja pela sua agudez de raciociacutenio seja por sua capacidade de eloquecircncia que eacute divina e quase homeacuterica Ele se eleva muito acima da conversaccedilatildeo linear a que os gregos chamaram de ldquolinguagem pedestrerdquo de tal maneira que a mim pareccedila inspirado natildeo pelo talento de um ser humano mas por um oraacuteculo deacutelfico (Inst Or X 1 81)

Na verdade pode-se avaliar que Ciacutecero soube aproveitar dos benefiacutecios das

contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles quanto agrave retoacuterica as de Platatildeo no campo da dialeacutetica e

de outros gregos tambeacutem Ele explorou dessas fontes o que melhor poderia ser

aplicaacutevel ao seu proacuteprio gosto e estilo de acordo com o gecircnero de discurso

judiciaacuterio ao qual ele se dedicou como orador e no campo da prosa literaacuteria latina

em sua faceta de escritor de tratados e epiacutestolas

Essa retrospectiva sucinta que faz remissatildeo a alguns conceitos de retoacuterica tem

como propoacutesito o de justificar a escolha de contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles como base

para a anaacutelise dos argumentos retoacutericos no corpus delimitado nesta pesquisa Pelas

colocaccedilotildees de Quintiliano nota-se que a retoacuterica estoica natildeo compactua em alguns

pontos com a aristoteacutelica Tomando certa distacircncia dessas avaliaccedilotildees de Quintiliano

fica evidente que algumas contribuiccedilotildees herdadas de Aristoacuteteles quanto aos

recursos de linguagem que promovem a argumentaccedilatildeo no discurso podem servir a

qualquer gecircnero discursivo Por um lado Aristoacuteteles defende que o raciociacutenio

dedutivo na expressatildeo da linguagem em forma de entimemas se efetua por meio

de afirmativas e postulados sendo produtivo na linguagem pela economia na

exposiccedilatildeo de ideias O entimema eacute um silogismo reduzido pois evita a foacutermula

silogiacutestica de premissa maior premissa menor e conclusatildeo As maacuteximas e os

aforismos se enquadram na forma entimemaacutetica pois quando Descartes faz a

declaraccedilatildeo ldquopenso logo existordquo o entimema foi suficiente para a expressatildeo da sua

ideia No entimema uma ou mais partes do silogismo podem ser omitidas pois as

restantes satildeo deduzidas no proacuteprio discurso Por outro lado o exemplo em toda a

sua dimensatildeo clarifica o discurso por se efetivar por meio do raciociacutenio indutivo de

203

forma convincente pela forccedila do testemunho da ligaccedilatildeo de fatos seja no acircmbito da

historicidade ou mesmo da ficcionalidade O raciociacutenio dedutivo parte de uma ideia

geral de um todo para uma aplicaccedilatildeo particular como o caso do uso das

metaacuteforas O exemplo estaacute no campo da induccedilatildeo porque parte de um caso particular

para aplicaccedilotildees gerais nos ensinamentos Aleacutem dessas vantagens como instruccedilotildees

na organizaccedilatildeo do discurso leva-se em conta tambeacutem que Ariacutestoacuteteles assume uma

posiccedilatildeo mais neutra em relaccedilatildeo ao sistema retoacuterico delegando ao orador a

responsabilidade do uso dos recursos da persuasatildeo Assim abre-se uma opccedilatildeo

para os estudos atuais da linguagem como oportunidade de se olhar os textos da

Antiguidade pelo vieacutes da retoacuterica aristoteacutelica de acordo com as proposiccedilotildees da

anaacutelise do discurso de base enunciativa

Para determinar um corpus de anaacutelise foi necessaacuteria uma leitura preacutevia que

delimitasse um recorte que permitisse a apreensatildeo de algumas ideias contidas nas

epiacutestolas de Secircneca e Paulo O ponto inicial resulta da verificaccedilatildeo da construccedilatildeo da

cenografia que se constitui a partir da introduccedilatildeo da produccedilatildeo das epiacutestolas em

questatildeo em que gecircnero do discurso (logos) enunciador (ethos)261 e co-enunciador

(pathos) estatildeo imbricados na trama enunciativa

Nesta terceira parte torna-se fundamental o aproveitamento da reuniatildeo dos

conteuacutedos que jaacute foram expostos nas partes anteriores como embasamento teoacuterico

e contextual para auxiliar nos procedimentos de anaacutelise Na segunda parte jaacute foi

identificada a cenografia e tambeacutem os dois elementos do discurso ethos e pathos

Mediante os resultados obtidos desses dois meios de prova na elaboraccedilatildeo do

discurso congrega-se nesta terceira parte a anaacutelise do desempenho do logos como

o terceiro elemento dos meios de prova De acordo com a meta planejada tendo em

vista os objetivos propostos no introito deste trabalho intensifica-se nesta terceira

parte o interesse em observar como em suas epiacutestolas Secircneca toma como base o

discurso filosoacutefico valendo-se tanto do discurso literaacuterio como do religioso Indaga-

se tambeacutem como Paulo tendo como referecircncia o discurso religioso deixa

transparecer que em suas epiacutestolas eacute perceptiacutevel o atravessamento do discurso

261

Como jaacute foi mencionado anteriormente (p 93 nota 88) a palavra ethos na anaacutelise do discurso de base enunciativa natildeo eacute acentuada por esta ser um junccedilatildeo de dois termos usados distintamente no grego claacutessico Em nota Maingueneau (2008a p 55) observa que o ldquoethos potildee problemas de ortografia se quisermos respeitar as convenccedilotildees usuais em mateacuteria de palavras gregas teriacuteamos de escrevecirc-la com um ecirc mas muitos usam um simples e o que tambeacutem faccedilo aquirdquo Seguindo a mesma praacutetica de natildeo acentuar a palavra ethos o mesmo seraacute feito em relaccedilatildeo ao termos pathos e logos

204

filosoacutefico e literaacuterio Enfim a recorrecircncia aos trecircs discursos262 identificados eacute de uso

comum entre os dois autores estudados Resta observar de que forma esses

discursos constituintes no seu conjunto promovem a discursividade na cena

enunciativa das epiacutestolas de cada um desses enunciadores abordados

Eacute oportuno registrar que esta terceira parte da pesquisa se firma na concepccedilatildeo de

retoacuterica estruturada por Aristoacuteteles visto que esta serve tambeacutem de fonte para as

construccedilotildees teoacutericas da retoacuterica latina nova retoacuterica como tambeacutem da anaacutelise do

discurso francesa de base enunciativa Como jaacute mencionado na primeira parte

desta pesquisa ressalta-se a contribuiccedilatildeo de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p

6) na composiccedilatildeo teoacuterica que funda a nova retoacuterica partindo de formulaccedilotildees

herdadas de Aristoacuteteles amplificando a funccedilatildeo do auditoacuterio na oratoacuteria para a funccedilatildeo

do leitor na escrita Este eacute um aspecto primordial nos estudos de Maingueneau

(2005 p 69) ao instituir em suas pesquisas a importacircncia da identificaccedilatildeo do ethos

na figura do enunciador no discurso Esta elaboraccedilatildeo teoacuterica de Maingueneau se

fundamenta nos postulados em que Aristoacuteteles (Ret I 2 1356a) situa suas

instruccedilotildees no campo da retoacuterica apontando os trecircs elementos constitutivos da

enunciaccedilatildeo referentes ao caraacuteter do enunciador (ecircthos) as emoccedilotildees que o

enunciador desperta no co-enunciador (paacutethos) e o argumentos retoacutericos

desenvolvidos no discurso (loacutegos)

Depois de identificadas as cenografias que delineiam o direcionamento dos

discursos de Secircneca e de Paulo produzidos atraveacutes dos textos de suas epiacutestolas

observou-se que a partir destas os temas identificados constituem-se como

alavancas que direcionam a argumentaccedilatildeo na cena enunciativa Na organizaccedilatildeo dos

discursos a retoacuterica se manifesta atraveacutes de marcas linguiacutesticas que podem ser

observadas nos textos caracterizando as fontes de lugares comuns de onde Secircneca

e Paulo retiram os meios de argumentaccedilatildeo Os exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas satildeo

auxiliares na estrateacutegia argumentativa pois estes recursos fortalecem os entimemas

ou seja as premissas afirmativas e opiniotildees satildeo sustentadas pelo uso desses

262

Mircea Eliacuteade (1992 p5) expotildee que o sagrado na Antiguidade pertence ao campo da religiatildeo e Teofrasto (372-287) que sucedeu a Aristoacuteteles na direccedilatildeo do Liceu pode ser considerado o primeiro historiador grego das religiotildees segundo Dioacutegenes Laeacutercio (V 48) Teofrasto compocircs uma histoacuteria das religiotildees em seis livros O discurso religioso tambeacutem eacute presente na filosofia estoica e desse modo o discurso de Secircneca eacute atravessado pelos trecircs discursos constituintes filosoacutefico literaacuterio e religioso O mesmo sucede no discurso de Paulo em relaccedilatildeo ao atravessamento dos trecircs discursos religioso filosoacutefico e literaacuterio

205

recursos argumentativos De acordo com as contribuiccedilotildees de Thom (2003) os toacutepoi

podem ser classificados em tipos designados como toacutepos retoacuterico toacutepos literaacuterio e

toacutepos filosoacutefico-moral Os toacutepicos retoacutericos satildeo identificados como meios de

argumentaccedilatildeo na construccedilatildeo entimemaacutetica do discurso No desenvolvimento dos

temas tempo e amor nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo se feita uma anaacutelise

detalhada quanto aos toacutepoi de acordo com a classificaccedilatildeo de Thom podem ser

distinguidos toacutepos retoacuterico e toacutepos filosoacutefico Nesta tese natildeo haacute um propoacutesito de

anaacutelise de todas as ocorrecircncias dos toacutepoi nos temas ldquotempo e amorrdquo desenvolvidos

nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo mas satildeo delimitados trecircs toacutepicos de cada tema e

identificados alguns toacutepoi que norteiam as argumentaccedilotildees nas abordagens do tema

geral

O toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo contribui para a organizaccedilatildeo e direcionamento

do discurso pois eacute instaurado a partir da cenografia constituiacuteda nas epiacutestolas dos

autores em pauta Ainda os temas filosoacuteficos identificados nas epiacutestolas distribuem-

se em uma seacuterie de subtemas como mostrado nos quadros 2 e 3 nas p 26 e 27

apresentado na introduccedilatildeo As divisotildees de cada tema corroboram para construccedilatildeo

de sentidos do tema geral funcionando como toacutepicos Os recursos retoacutericos e o

toacutepos ldquofalar francordquo permeiam as epiacutestolas de Secircneca e Paulo conforme os discursos

constituintes que os direcionam adquirindo diferentes significados na funccedilatildeo

argumentativa no gecircnero epistolar

A identificaccedilatildeo e anaacutelise deste toacutepos no corpus selecionado integra o capiacutetulo 2

desta terceira parte da tese como distinccedilatildeo para o modo como Secircneca e Paulo

desenvolvem o gecircnero epistolar segundo as anaacutelises de Foucault relacionadas ao

tema parresiacutea Na primeira parte deste trabalho estatildeo apontadas algumas

concepccedilotildees sobre a parresiacutea como falar franco interligado ao toacutepos ldquoeacute preciso dizer

a verdaderdquo como ponto de partida para o uso de argumentos que segundo

Aristoacuteteles (Ret III 17 1418a) satildeo auxiliares aos entimemas que satildeo formados

pelos conceitos e premissas que datildeo estrutura organizacional ao discurso Destaca-

se a ocorrecircncia de exemplos como ldquomais apropriados ao discurso deliberativordquo263

Aproveitam-se tambeacutem de Aristoacuteteles as consideraccedilotildees de que as metaacuteforas mais

produtivas na prosa satildeo as construiacutedas por analogia (Ret III 10 1411a) 263

Aristoacuteteles (Ret I 1 1354b) aponta que ldquono gecircnero deliberativo o ouvinte julga sobre coisas que o afetam pessoalmente e portanto o conselheiro apenas precisa de demonstrar a exatidatildeo do que afirmardquo

206

funcionando como forma de estilo e meio argumentativo Nesses termos Aristoacuteteles

acrescenta que ldquoos siacutemiles ateacute certo ponto funcionam como metaacuteforas pois

expressam-se sempre partindo de dois termos tal como a metaacutefora por analogiardquo

(Ret III 1413a)

O segundo capiacutetulo desta terceira parte tambeacutem tem a funccedilatildeo de apontar certos

recursos retoacutericos presentes na elaboraccedilatildeo de determinadas epiacutestolas de Secircneca a

Luciacutelio e de Paulo agrave igreja de Corinto Nesses discursos em destaque podem ser

observados os usos de estrateacutegias retoacutericas sendo bastante recorrentes os

exemplos que ora remetem a um tempo histoacuterico de determinadas situaccedilotildees jaacute

valorizadas no imaginaacuterio do leitor ora a disposiccedilatildeo do proacuteprio testemunho do

enunciador A citaccedilatildeo traz para o discurso outras vozes que podem atuar como

autoridades concordantes com determinadas posiccedilotildees discursivas funcionando

como uma evidecircncia de que o discurso eacute constituiacutedo no bojo do interdiscurso Em

termos de citaccedilatildeo Aristoacuteteles (Ret II 20 1393a) identifca o uso de maacuteximas no

campo do pensamento dedutivo ldquoAs provas comuns satildeo de dois gecircneros exemplo

e entimema pois a maacutexima eacute uma parte do entimemardquo

A metaacutefora exerce uma funccedilatildeo de auxiacutelio agrave compreensatildeo de conceitos abstratos

pela imagem do concreto que ela fornece como similaridade em uma funccedilatildeo

analoacutegica No que se refere ao uso dessas estrateacutegias mencionadas Foucault

(2010a p122) em sua avaliaccedilatildeo sobre o papel da retoacuterica refere-se a esta como ldquoo

inventaacuterio e a anaacutelise dos meios pelos quais pode agir-se sobre o outro mediante o

discursordquo

No terceiro capiacutetulo toma-se como base a primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio em

que o uso do tema ldquoo tempordquo evidencia-se logo na constituiccedilatildeo da cenografia de

um tratado filosoacutefico estoico no campo da eacutetica que atraveacutes do tema identificado

direciona toda a enunciaccedilatildeo Algumas marcas linguiacutesticas que aparecem na primeira

epiacutestola no tratamento retoacuterico favorecem a construccedilatildeo discursiva do tema

podendo ser identificadas por meio de expressotildees metafoacutericas264 que revelam certos

264

Lakoff e Johnson (2002 p 50) sustentam que ldquoexpressotildees metafoacutericas em nossa liacutengua satildeo ligadas a conceitos metafoacutericos de uma maneira sistemaacuteticardquo No exemplo ldquoComecemos atingida a velhice a preparar nossa bagagemrdquo o contexto em que o termo bagagem eacute usado e identificado como expressatildeo metafoacuterica ele aponta para o Conceito metafoacuterico A VIDA Eacute UMA VIAGEM Portanto a expressotildees metafoacutericas usadas pelos falantes emergem no contexto de uma determinada cultura contribuindo para identificar os conceitos metafoacutericos que norteiam o comportamento e valores de uma sociedade Esses autores citados satildeo referecircncias nos estudos da metaacutefora

207

conceitos metafoacutericos a elas subjacentes Este conceito anunciado na epiacutestola de

abertura identifica o tempo como um valor de prestiacutegio para a filosofia estoica em

torno do qual satildeo intriacutensecas as noccedilotildees de vida velhice e morte Para os estoicos a

partir do nascimento tambeacutem se inicia a caminhada para a morte e a velhice eacute um

processo que se instaura a partir do nascimento culminando com a morte Secircneca

define que ldquoa filosofia eacute a lei que rege a totalidade da vidardquo (Ep 9439) Eacute nessa

trajetoacuteria que Secircneca desenvolve diferentes toacutepicos sobre o tempo utilizando-se do

toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo determinante no seu modo de conduccedilatildeo do

discurso O tema em destaque eacute desenvolvido por meio de recursos com base em

toacutepicos que identificam lugares comuns entre os autores expressotildees metafoacutericas

que sinalizam conceitos metafoacutericos norteadores de posicionamentos discursivos

exemplos histoacutericos ou pessoais e citaccedilotildees provindas tanto do discurso filosoacutefico

quanto do literaacuterio em suas variadas dimensotildees265

Com a finalidade de fornecer uma visibilidade do recorte assumido na pesquisa do

tema ldquoo tempordquo um quadro esquemaacutetico apresentado na introduccedilatildeo p 26 serve

como identificaccedilatildeo da seleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio destacadas na

formaccedilatildeo do corpus Estas foram delimitadas como fonte para as anaacutelises de

acordo com a constataccedilatildeo de diferentes abordagens no desenvolvimento do tema

em questatildeo

No quarto capiacutetulo desta terceira parte elege-se como corpus de anaacutelise

determinados versiacuteculos de capiacutetulos contidos nas duas epiacutestolas do apoacutestolo Paulo

agrave igreja de Corinto A cenografia que se instaura a partir da introduccedilatildeo da primeira

epiacutestola aponta para um manual de aconselhamento em que diferentes partes

integrantes do tema ldquoo amorrdquo se desdobram em variados aspectos funcionando

como toacutepicos Na organizaccedilatildeo do corpus um quadro esquemaacutetico jaacute mostrado na p

27 apresenta as abordagens que compotildeem o tema A heterogeneidade mostrada e

a constitutiva sendo concebidas como manifestaccedilatildeo dialoacutegica da linguagem podem

ser apreendidas atraveacutes de recursos retoacutericos acionados de lugares comuns tais

como o exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora O toacutepos ldquofalar francordquo eacute o direcionador do

conceitual e definem que os conceitos metafoacutericos apreendidos atraveacutes das expressotildees metafoacutericas devem ser grafados em letras maiuacutesculas o que tambeacutem eacute feito neste trabalho 265

Na introduccedilatildeo da Retoacuterica de Aristoacuteteles Alexandre Jr (2005 p 98) atenta para o valor dos exemplos das citaccedilotildees e das paraacutefrases nas obras antigas como fontes de informaccedilotildees sendo muitas vezes uma uacutenica indicaccedilatildeo de registros histoacutericos Autores como por exemplo Dioniacutesio de Halicarnasso registraram algumas informaccedilotildees sobre obras que acabaram se perdendo ou ainda delas restaram pouquiacutessimos fragmentos como mencionado em nota por Alexandre Jr

208

modo de dizer Essas estrateacutegias argumentativas contribuem para a compreensatildeo

da discursividade que se instaura no discurso por meio do inter-relacionamento com

outros discursos

Nas consideraccedilotildees finais da parte III satildeo identificados alguns paralelos comparativos

entre os corpora em destaque No primeiro plano eacute relevante a percepccedilatildeo da

apropriaccedilatildeo de recursos argumentativos originaacuterios de um lugar comum na

constituiccedilatildeo retoacuterica do discurso No segundo plano busca-se observar o

funcionamento daqueles recursos retoacutericos comuns aos dois autores na aplicaccedilatildeo

do desenvolvimento dos temas instituiacutedos a partir da identificaccedilatildeo da cenografia que

se instaura a partir do discurso constituinte Sabe-se tambeacutem que o entrecruzamento

entre os discursos constituintes filosoacutefico literaacuterio e religioso no processo

enunciativo resulta em certo movimento que ora pode causar um efeito de

aproximaccedilatildeo ora de afastamento de posicionamentos discursivos entre os dois

autores como apontado na exposiccedilatildeo dos pontos conclusivos no fechamento da

pesquisa

209

2 TOacutePOS FILOSOacuteFICOMORAL E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NAS

EPIacuteSTOLAS

Um dos mecanismos de abordagem dos toacutepoi como concebido na Antiguidade eacute a

identificaccedilatildeo de temas recorrentes sempre retomados e retirados das fontes dos

lugares comuns em diferentes eacutepocas Em suas pesquisas Curtius (1999 p121)

observa que ldquono antigo sistema da retoacuterica a toacutepica eacute o celeiro de provisotildeesrdquo Os

autores na Antiguidade utilizavam temas de um lugar comum como uma espeacutecie de

arquivo de acesso aos mais diversos assuntos266 descobrindo neles facetas ainda

natildeo exploradas ou mesmo dando uma interpretaccedilatildeo ainda natildeo ventilada Thom

(2003 p 82) aproveita-se das contribuiccedilotildees de Curtius e ordena as questotildees sobre

os toacutepoi dividindo-os em trecircs grupos de acordo com a adequaccedilatildeo ao gecircnero de

discurso o toacutepos retoacuterico especificamente caracterizado por sua funccedilatildeo nas

estrateacutegias argumentativas o toacutepos literaacuterio tipicamente recorrente na construccedilatildeo

poeacutetica o toacutepos filosoacutefico como organizador dos temas no desenvolvimento do

diferentes discursos sendo mais adequados ao campo da moral da eacutetica e da

religiatildeo

Em sua aula inaugural no Collegravege de France267 Hadot (2012 p 36) aponta que

muitos toacutepoi recorrentes na Antiguidade mantiveram sua permanecircncia na cultura

ocidental como modelos preacute-fabricados que podem ser identificados por meio de

metaacuteforas e maacuteximas e que para o escritor ou pensador se mostram indispensaacuteveis

para expressatildeo do pensamento Hadot cita como exemplo a maacutexima ldquoconhece-te a ti

mesmordquo e a metaacutefora ldquoa forccedila da verdaderdquo Na continuidade de sua exposiccedilatildeo sobre

os toacutepoi da Antiguidade e a presenccedila desses recursos no contexto da

contemporaneidade Hadot (2012 p 38) anuncia que no seu curso a ser ofertado a

anaacutelise dos toacutepicos da Antiguidade parte do aforismo de Heraacuteclito conhecido como

ldquoa natureza gosta de se esconderrdquo A proposta consiste em analisar a trajetoacuteria do

uso deste aforismo observando ldquoos significados que a foacutermula tomaraacute ao longo da

Antiguidade e ulteriormente em funccedilatildeo da evoluccedilatildeo da ideia de naturezardquo Nesse

266

Curtius (1999 p 133) apresenta o toacutepos exordial ldquoDeve-se evitar a preguiccedilaldquo Satildeo citados alguns autores da Antiguidade como Horaacutecio Oviacutedio Secircneca Marcial que tratam desse tema Curtius observa que ldquoo toacutepos da preguiccedila pode chegar a tal ponto que escrever poesia eacute aconselhado como remeacutedio contra a ociosidade e o viacuteciordquo No texto biacuteblico tambeacutem haacute presenccedila desse toacutepos ldquoVai ter com a formiga oacute preguiccediloso olha para os seus caminhos e secirc saacutebiordquo (Proveacuterbios 66) 267

Pierre Hadot pronunciou sua aula inaugural da cadeira de histoacuteria do pensamento heleniacutestico e romano intitulada Elogio da Filosofia Antiga em 18 de fevereiro de 1983

210

mesmo contexto do jaacute-dito que se atualiza Hansen (2012 p 168) observa que ldquoos

grandes autores satildeo lidos para colher aqui e ali certo nuacutemero de sentenccedilas uacuteteis agrave

causa que eacute expostardquo Nessa mesma linha de raciociacutenio Hansen faz as seguintes

alegaccedilotildees

Quando o orador fala eficazmente compotildee a memoacuteria do destinataacuterio como reconhecimento do que eacute dito para isso repete os lugares comuns que satildeo patrimocircnio da memoacuteria coletiva especificando as qualidades que os particularizam como se estivessem muito proacuteximos dos ouvintes (HANSEN 2012 p 170)

Mediante essa formulaccedilatildeo de Hansen eacute possiacutevel conceber que muitos toacutepoi podem

ser desenvolvidos com base em exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas e que cada um

destes tem sua validade arquivada na memoacuteria coletiva Quando se trata do gecircnero

epistolar alguns toacutepoi e argumentos retoacutericos satildeo constitutivos deste proacuteprio gecircnero

Entatildeo pode-se afirmar que o toacutepos ldquofalar francordquo eacute condutor da escrita das epiacutestolas

de Secircneca e Paulo

21 TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL ldquoFALAR FRANCOrdquo

[] aquilo que se trata na parresiacutea eacute uma espeacutecie de retoacuterica proacutepria (Foucault 2010a p 328)

Ao formular seus postulados sobre retoacuterica Aristoacuteteles condiciona a noccedilatildeo de toacutepos

em seu funcionamento como elemento do entimema na constituiccedilatildeo do discurso

Por meio da elaboraccedilatildeo e organizaccedilatildeo de toacutepicos retoacutericos inerentes aos trecircs

gecircneros do discurso (deliberativo judiciaacuterio e epidiacutetico) Aristoacuteteles contribui com um

repertoacuterio de opccedilotildees que funciona como um ponto de partida

Na cultura greco-romana a ideia de toacutepicos se aplica tambeacutem agrave produccedilatildeo de textos

literaacuterios e filosoacuteficos como pode ser destacado em Filodemo268 em sua obra

filosoacutefica intitulada Peri Parresiacutea Silva (2009 p 85) indica em sua pesquisa que a

parresiacutea moral e filosoacutefica comeccedila a adquirir importacircncia a partir do momento em

que seu sentido de liberdade de expressatildeo passa a perder forccedila na esfera

268

ldquoFilodemo de Gadara grego originaacuterio do Oriente-Proacuteximo dirige-se primeiramente a Atenas junto ao epicurista Zenatildeo de Siacutedon e depois a Roma nos anos setenta aC onde se torna amigo confidente e diretor de consciecircncia de L Calpurnius Piso Caesonius sogro de Ceacutesar e cocircnsul em 58 aC (sobre esta relaccedilatildeo cf Gigante La Bibliotheque de Philodeme et leacutepicuriacutesme romaIacuten opeit capo 1) antes de instalar-se definitivamente em Herculano na Vila hoje chamada dos Papyri propriedade de Lucius Piso cuja biblioteca encerrava numerosos e importantes textos epicuristasrdquo (FOUCAULT 2010a p 180 nota 27)

211

democraacutetica da poliacutetica Assim a ideia de parresiacutea falar franco no periacuteodo

Heleniacutestico passa a ser valorizada nos relacionamentos interpessoais como um

atrativo na manutenccedilatildeo da amizade Filodemo era epicurista contemporacircneo de

Ciacutecero e produziu suas obras em grego tanto no campo da literatura quanto no da

poesia Segundo informaccedilotildees de Silva (2009 p 97) em sua obra Peri Parresiacutea

Filodemo enxerta alguns toacutepicos ao tema parresiacutea de acordo com suas aplicaccedilotildees

aos meacutetodos educativos da escola epicurista Alguns toacutepoi no mesmo campo

semacircntico satildeo explorados em forma de toacutepicos Entre estes podem ser destacados

a criacutetica franca por parte do mestre e do disciacutepulo a disposiccedilatildeo para o jogo

parresiaacutestico ou seja a disposiccedilatildeo do interlocutor em ouvir a verdade e dela se

apropriar Outro toacutepos em destaque eacute o da importacircncia da parresiacutea na conservaccedilatildeo

dos laccedilos de amizade entre os participantes da comunidade epicurista

Em sua busca em compreender o funcionamento dos toacutepoi na Antiguidade Thom

(2003 p 570) observa que o universo da moral no mundo greco-romano eacute dividido

em regiotildees ou toacutepoi e cada um tem a sua proacutepria estrutura interna Os toacutepoi

tambeacutem satildeo conectados com outros pelas ligaccedilotildees semacircnticas Por exemplo o

toacutepos da amizade eacute ligado ao toacutepos falar franco e assim funda-se uma intricada

rede de inter-relaccedilotildees entre os toacutepoi A partir destas constataccedilotildees verifica-se que a

moral no mundo antigo pode ser mapeada em termos de toacutepoi e um autor pode usaacute-

los como referecircncias e agraves vezes uma simples alusatildeo eacute suficiente para identificaccedilatildeo

do lugar comum

Em sua pesquisa Thom (2003 567) vislumbra que o toacutepos filosoacuteficomoral pode ser

distinguido de outros pela abordagem de determinado tema ser recorrente em

diferentes autores e o tradicional tratamento moral no modo como eacute abordado

Desse modo este autor afirma ldquoa topos expresses a cultural consensusrdquo (um toacutepos

expressa um consenso cultural)

Eacute nesse contexto que Foucualt (2010a p 310) observa que o discurso filosoacutefico tem

o compromisso de dizer a verdade e ldquoele tambeacutem tem efeitos que satildeo devidos de

certo modo agrave sua materialidade proacutepria agrave sua plaacutestica proacutepria agrave sua retoacuterica

proacutepriardquo Em sua busca em compreender a parresia na Antiguidade Foucault avalia

que esta pode ser observada em diferentes modalidades A parresiacutea como accedilatildeo

filosoacutefica pode ser identificada a partir de Platatildeo Segundo Foucault (2010b p 189)

212

nas epiacutestolas de Platatildeo observa-se que a accedilatildeo da parresiacutea se apresenta natildeo

somente no corpo da cidade mas tambeacutem sobre a alma do indiviacuteduo

Para observar a manifestaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo Foucault recorre ao gecircnero

epistolar Em especial na epiacutestola VII de Platatildeo Foucault (2010b p 197) nota que

pela leitura da epiacutestola o pensamento poliacutetico eacute tratado como racionalizaccedilatildeo da

accedilatildeo poliacutetica tendo a filosofia como base para o conselho

Foucault identifica o falar franco no campo da filosofia a partir da avaliaccedilatildeo de Platatildeo

quanto agrave postura de Soacutecrates frente aos enfrentamentos no campo da poliacutetica

Eacute para participar de uma detenccedilatildeo arbitraacuteria que os tiranos pedem que Soacutecrates participe de uma accedilatildeo judicial ilegal e Soacutecrates se recusa Soacutecrates se recusa como filosoacutefo um exemplo de resistecircncia filosoacutefica a um poder poliacutetico exemplo de parresiacutea que vai ser por muito tempo um modelo

de atitude filosoacutefica diante do poder [] (FOUCAULT 2010b p 198)

A partir da observaccedilatildeo da atitude parresiaacutestica de Soacutecrates Foucault (2011 p15)

fortalece sua definiccedilatildeo de parresiacutea como ldquouma atitude uma maneira de ser que se

aparenta agrave virtude uma maneira de fazerrdquo Assim a parresiacutea pode ser caracterizada

como uma modalidade de dizer a verdade

Foucault (2010b p 253) identifica na escrita epistolar de Platatildeo algumas

caracteriacutesticas relacionadas agrave parresiacutea e o ponto central eacute o aconselhamento Em

primeiro lugar em suas epiacutestolas Platatildeo oferece sua contribuiccedilatildeo aos amigos e

parentes de Dion e ao povo de Siracusa269 que estaacute em conflito poliacutetico Conforme

essa visatildeo a parresiacutea se caracteriza pela atenccedilatildeo a uma situaccedilatildeo especiacutefica sendo

o conselho de caraacuteter particular em funccedilatildeo de uma situaccedilatildeo especiacutefica As

orientaccedilotildees se desenvolvem com referecircncias a princiacutepios gerais que se aplicam agraves

circuntacircncias particulares Os conselhos aos dois grupos rivais satildeo ministrados por

Platatildeo no exerciacutecio de seu papel de aacuterbitro e a parresiacutea funciona como meio de

convocaccedilatildeo para a uniatildeo entre todos

269

Foucault (2010b p252) fornece um resumo para situar o contexto em que as epiacutestolas VII e VIII de Platatildeo satildeo escritas ldquoDion conhece Platatildeo segue seu ensino e aproveita as liccedilotildees que o mestre lhe daacute Nesse momento sua verdadeira e boa natureza reaparece e diz ele - eacute aiacute que se abordam as coisas - na candura juvenil da sua alma Dion esperava que Dioniacutesio (seu tio o tirano) sob a influecircncia das mesmas liccedilotildees que ele havia recebido experimentasse os mesmos sentimentos que ele e se deixasse ganhar facilmente para o bem Em seu entusiasmo portanto ele fez tudo para que Dioniacutesio entrasse em relaccedilatildeo com Platatildeo e escutasse suas liccedilotildees Agora estatildeo em cena Platatildeo Dion e Dioniacutesiordquo Na introduccedilatildeo da epiacutestola VIII Platatildeo escreve ldquoVou fazer o possiacutevel por vos explicar quais devem ser os vossos sentimentos para que possais viver verdadeiramente uma vida de bem e de felicidade E espero proporcionar-vos conselhos salutares natildeo apenas a voacutes embora estejais em primeiro lugar mas tambeacutem e em segundo lugar a todos os Siracusanos e em fim em terceiro lugar aos vossos adversaacuterios e inimigosrdquo []

213

Nas aulas ministradas no Collegravege de France em 1983 Foucault redimensiona a

relaccedilatildeo entre retoacuterica e parresiacutea a partir de uma percepccedilatildeo mais ampla da noccedilatildeo de

retoacuterica quanto agrave praacutetica do falar franco na constituiccedilatildeo do discurso verdadeiro

[] a retoacuterica pode se apresentar como sendo a proacutepria arte do dizer-a-verdade do dizer convenientemente e do dizer em condiccedilotildees teacutecnicas tais que esse dizer-a-verdade seja persuasivo Nessa medida como arte dominada por um homem de bem que sabendo da verdade eacute capaz de persuadir outros por meio dessa arte especiacutefica a retoacuterica pode aparecer como sendo efetivamente a teacutecnica proacutepria dessa parresiacutea desse dizer-a-verdade (FOUCAULT 2010b p 276)

A forma como Foucault relaciona parresiacutea e retoacuterica se funda em uma concepccedilatildeo de

retoacuterica filosoacutefica que toma como base a escrita das epiacutestolas de Platatildeo Em seus

estudos Foucault (2010b p 5) constata que na moral da Antiguidade entre gregos e

romanos era evidente a importacircncia do princiacutepio ldquoeacute preciso dizer a verdade sobre si

mesmordquo Foucault considera que a correspondecircncia se tornava um meio de

desenvolvimento dessa praacutetica Por isso a confidecircncia tanto em Secircneca quanto em

Paulo se constitui como ferramenta para o enunciador despojar de si mesmo diante

de seu destinataacuterio Ainda a forma de aconselhamento pressupotildee o falar franco que

eacute interligado ao discurso verdadeiro na essecircncia da escrita epistolar desses dois

autores

211 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Uma forma de parresiacutea (libertas) ldquofalar francordquo eacute a coragem de ser verdadeiro

consigo mesmo Na cena enunciativa da epiacutestola introdutoacuteria da obra Epiacutestolas a

Luciacutelio de Secircneca eacute identificado o ethos dito270 no papel de enunciador do

discurso pela forma pessoal como ele se coloca no discurso ldquoTalvez te apeteccedila

perguntar como procedo eu que dou todos esses preceitos Dir-te-ei com franqueza

como algueacutem que vive bem mas sem esbanjamentordquo (Ep 14) A expressatildeo ldquodir-te-

ei com franquezardquo aponta para toacutepos ldquofalar francordquo no sentido de liberdade abertura

para se dizer o que deve ser dito

Foucault (2010b p 8) observa que em Secircneca os seus textos comprovam que a

praacutetica da parresiacutea como dizer a verdade era bem delineada por uma seacuterie de

categorizaccedilotildees e descriccedilotildees Poreacutem o termo parresiacutea natildeo eacute empregado talvez pela

270

Charaudeau e Maingueneau (2008) no dicionaacuterio de Anaacutelise do Discurso afirmam que ethos eacute considerado dito quando o enunciador se manifesta pessoalmente no discurso e mostrado quando eacute captado atraveacutes da percepccedilatildeo do leitor ou ouvinte

214

ausecircncia de traduccedilatildeo O toacutepico parresiacutea como falar franco resultou no uso de

vaacuterios termos latinos como licentia libertas oratio liberta Foucault ressalta que nos

seacuteculos I e II de nossa era eacute recorrente entre os romanos a substituiccedilatildeo do termo

parresiacutea pelo termo libertas271 Por meio da leitura dos textos essa noccedilatildeo pode ser

identificada de forma bem especiacutefica para a realidade histoacuterica daquele momento

Na epiacutestola vinte e cinco Secircneca relata a Luciacutelio a respeito do tratamento

pedagoacutegico que deveria ser dado de forma distinta a dois amigos com base no

toacutepos ldquofalar francordquo

O tratamento adequado aos nossos dois amigos tem de usar meacutetodos completamente diferentes De fato enquanto os viacutecios de um deles carecem de correccedilatildeo os do outro exigem ser travados agrave forccedila Dirte-ei com toda franqueza soacute serei seu amigo se for violento com ele (Ep 251)

Quod ad duos amicos nostros pertinet diversa via eundum est alterius enim vitia emendanda alterius frangenda sunt Utar libertate tota non amo illum nisi ofendo (Ep 251)

Eacute possiacutevel confirmar as informaccedilotildees fornecidas por Foucalt sobre o uso de libertas

como traduccedilatildeo de parresiacutea Ao referir-se a respeito de sua franqueza em relaccedilatildeo

aos viacutecios do amigo Secircneca se dirige a Luciacutelio usando a expressatildeo utar libertate

tota Esta expressatildeo remete o seu sentido ao toacutepos ldquofalar francordquo

Na anaacutelise de Foucault o ldquofalar francordquo se mostra matizado em diferentes nuances e

uma delas eacute a coragem de ser verdadeiro correndo o risco da incompreensatildeo e de

abalo na relaccedilatildeo com o outro Eacute nessa perspectiva que Secircneca coloca a dureza da

franqueza como condiccedilatildeo na verdadeira amizade Quanto a esse aspecto das

relaccedilotildees humanas Foucault (2010b p 11) observa que ldquosoacute pode haver conduccedilatildeo

de consciecircncia se haacute amizade e em que o uso da verdade nessa conduccedilatildeo de

consciecircncia corre precisamente o risco de romper os laccedilos da relaccedilatildeordquo

Para Secircneca a aquisiccedilatildeo de libertas estaacute condicionada agrave contribuiccedilatildeo da filosofia

fato que ele argumenta por meio da citaccedilatildeo da maacutexima de Epicuro ldquoDeves ser servo

da filosofia se pretendes obter a verdadeira liberdaderdquo (Ep 87) Quanto agrave noccedilatildeo de

liberdade Secircneca faz algumas ligaccedilotildees entre a coragem com atitudes do indiviacuteduo

em determinadas situaccedilotildees ldquoE a liberdade desaparece quando natildeo desprezamos

tudo quanto pretende nos subjugarrdquo [] perit libertas nisi illa contemnimus quae

271

Foucault (2010a p 360) na ministraccedilatildeo da aula de 8 marccedilo de 1982 no Collegravege de France analisou algumas epiacutestolas de Secircneca (Ep 38 Ep 40) procurando apontar as indicaccedilotildees de que o discurso deve ser simples na sua composiccedilatildeo refletida demonstrando o sentido de libertas Ele fez uma paraacutefrase da escrita da epiacutestola setenta e cinco observando que nela havia uma verdadeira exposiccedilatildeo do que era libertas para os romanos e parresiacutea para os gregos

215

nobis iugum inponunt (Ep 8528) A liberdade ligada agrave coragem eacute conquistada pela

determinaccedilatildeo no cuidado de si que prepara para os enfrentamentos na vida Secircneca

afirma ldquoa coragem consiste em desprezar as causas de terror tudo o que inspira

medo e subjuga a nossa liberdade tudo ela despreza desafia e derrubardquo []

terribilia et sub iugum libertatem nostram mittentia despicit provocat frangit

numquid ergo hanc liberalia studia corroborant (Ep 88 29) A coragem como base

para o ldquofalar francordquo se expande tambeacutem para outras formas de comportamento

como o enfrentamento no modo de conceber a morte ldquoLiberta-te para comeccedilar do

medo da morte (jaacute que o medo da morte nos oprime como um jogo)rdquo Libera te

primum metu mortis (illa nobis iugum inponit) (Ep 80 5)

Em Secircneca o ldquofalar francordquo apresenta diferentes aplicaccedilotildees que tecircm seus

significados de acordo com o discurso constituinte filosoacutefico que funciona como

base de sua enunciaccedilatildeo A partir do valor da noccedilatildeo de liberdade eacute que Secircneca

procura se desvencilhar de imposiccedilotildees teacutecnicas da retoacuterica optando por uma

construccedilatildeo mais livre do seu discurso Quanto a este aspecto Foucault (2010a p

335) pondera que em relaccedilatildeo agrave retoacuterica o falar franco deve liberar-se dela natildeo para

exclui-la mas para se libertar em relaccedilatildeo agraves suas regras e condiccedilotildees e fazer uso do

que eacute produtivo ao discurso parresiaacutestico

Os questionamentos de Secircneca quanto agraves imposiccedilotildees da retoacuterica se voltam para o

campo das teacutecnicas da eloquecircncia no seu objetivo de engrandecer o desempenho

do orador Na epiacutestola oitenta e nove ele situa a retoacuterica no quadro da filosofia

racional por meio da sucinta definiccedilatildeo ldquoa retoacuterica ocupa-se das palavras das

ideias da estrutura do discursordquo (Rhetorike verba curat et sensus et ordinem) (Ep

89 17) Decerto a retoacuterica eacute indispensaacutevel no modo de organizaccedilatildeo do discurso

mas Secircneca procura se esquivar da eloquecircncia valorizando o texto mais coloquial

Assim o gecircnero epistolar favorece esta preferecircncia de Secircneca como ele afirma ldquoo

nosso objetivo uacuteltimo deve ser este dizer o que sentimos sentir o que dizemosrdquo (Ep

754) Esta afirmativa de Secircneca consolida a relaccedilatildeo entre ldquofalar francordquo e verdade

Na epiacutestola seis Secircneca abre-se diante de Luciacutelio declarando as mudanccedilas que ele

proacuteprio experimentou a partir de sua dedicaccedilatildeo agrave filosofia

Desejaria compartilhar contigo essa suacutebita mudanccedila operada em mim Comeccedilaria entatildeo a ter uma mais segura confianccedila em nossa amizade que nem a esperanccedila ou o medo ou a busca da utilidade pode quebrar numa amizade daquelas com a qual e pela qual os homens podem morrer (SEcircNECA Ep 62)

216

Secircneca coloca-se diante de seu amigo sem reservas compartilhando sua

convicccedilatildeo de verdade a respeito das mudanccedilas processadas em sua proacutepria vida A

amizade eacute um sinal de aprovaccedilatildeo para o ldquofalar francordquo sem reservas e subterfuacutegios

A partir de seu propoacutesito de investigar as relaccedilotildees sujeitoverdade Foucault (2011

p 4) observa natildeo o discurso de verdade que se poderia dizer sobre o sujeito mas o

discurso de verdade que o sujeito eacute capaz de dizer de si mesmo Assim ldquofalar

francordquo (parresiacutea) eacute uma modalidade do dizer a verdade como o sujeito representa a

si mesmo e eacute reconhecido pelo outro como dizendo a verdade

A partir de seu objetivo em identificar sujeito e verdade na Antiguidade Foucault

verifica que o dizer a verdade se apresenta no aparato de quatro modalidades

teacutecnica parresiasta filosoacutefica e profeacutetica Para situar a noccedilatildeo de parresiacutea como

modalidade de dizer a verdade Foucault (2011 p 17) faz uma oposiccedilatildeo entre

parresiasta e saacutebio pois este fala o discurso da sabedoria mas pode mantecirc-la em

silecircncio para si mesmo O saacutebio diz o que eacute e quando o seu discurso eacute prescritivo

natildeo se apresenta em forma de conselho mas ligado a um princiacutepio geral de

conduta Foucault (2011 28) percebe que o saacutebio guiado pelo discurso filosoacutefico

tem a funccedilatildeo de refletir sobre a finitude humana e a criacutetica a respeito da ordem

moral e nesse aspecto parresiacutea e sabedoria se aproximam O filoacutesofo diz a verdade

das coisas e o parresiasta sobretudo diz sua verdade aos homens A partir dessas

delimitaccedilotildees apontadas por Foucault eacute possiacutevel identificar na escrita das epiacutestolas

de Secircneca o intercacircmbio entre parresiacutea e filosofia confirmando o dito de Foucault

(2010a 328) que ldquoaquilo que se trata na parresiacutea eacute uma espeacutecie de retoacuterica proacutepriardquo

Com base nessa afirmativa pode-se pensar o toacutepos ldquofalar francordquo como forma de

conduccedilatildeo do discurso constituinte filosoacutefico como desenvolvido por Secircneca por

meio do gecircnero epistolograacutefico

212 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto

No contexto do discurso religioso no periacuteodo Heleniacutestico Foucault (2011 291)

identifica que a parresiacutea no texto da Septuaginta natildeo eacute a coragem do homem

isolado mas eacute a relaccedilatildeo do homem com Deus e nesse movimento a manifestaccedilatildeo

da bondade de Deus eacute revelada por meio do seu poder e vontade Na sequecircncia

histoacuterica na literatura neotestamentaacuteria a parresiacutea eacute concebida como um modo de

ser uma forma de atividade humana que ateacute certo ponto se revela pela coragem e

217

ousadia em falar Foucault observa que a parresiacutea como virtude apostoacutelica

aproxima-se do seu significado de uso grego

O termo parresiacutea no grego koineacute (παρρησια) eacute usado por Paulo em suas epiacutestolas

aos Coriacutentios O exemplo pessoal que aponta para o sofrimento e as lutas

enfrentadas por ele permite-lhe a revelaccedilatildeo de seu ethos parresiasta pela

determinaccedilatildeo e coragem de se abrir diante da igreja atraveacutes da correspondecircncia

Essa forma corajosa de falar enfrentando os desafios eacute expressa por ele nos

seguintes termos ldquoTendo pois tal esperanccedila usamos de muita ousadia no falarrdquo

(2Cor 312)272

Segundo Fredrickson (1992 p 348) nesta citaccedilatildeo paulina encontra-

se a claacutessica associaccedilatildeo entre ldquofalar francordquo e liberdade pois liberdade de accedilatildeo e

fala franca representam os dois lados de uma mesma moeda Paulo recorre agrave

esperanccedila como base de sua fala franca

Lopes (2008 p 86) observa que no contexto em que Paulo usa o termo parresia o

significado eacute de ousadia com liberdade sem maacutescara e nada a esconder A figura

que Paulo usa como ilustraccedilatildeo eacute a de Moiseacutes273 que apoacutes quarenta dias de direta

comunhatildeo com Deus no Sinai quando de laacute desceu com as taacutebuas da lei a pele do

seu rosto brilhava assim como todas as vezes que Moiseacutes se encontrava com Deus

A praacutetica do uso de um veacuteu indicava que Moiseacutes cobria o rosto para o povo natildeo ver

a falta do brilho da gloacuteria em seu rosto nos intervalos dos seus encontros com Deus

A liccedilatildeo que Paulo apresenta por meio dessa intertextualidade com a passagem de

Ecircxodo 34 34-35 eacute o alerta de que o siacutembolo mostrado aponta para um veacuteu que

disfarccedila esconde e separa A partir dessa interpretaccedilatildeo a imagem do veacuteu funciona

como uma metoniacutemia que representa a ideia de maacutescara que encobre a verdade

Com a nova alianccedila cai o veacuteu da separaccedilatildeo e Paulo pondera que se o brilho que se

desvanecia no rosto de Moiseacutes era glorioso muito mais eacute o brilho que permanece

com a presenccedila de Deus na Eternidade Esta eacute a razatildeo da esperanccedila a que Paulo

se refere e que lhe imputa a ousadia no falar Esses argumentos de Paulo

demonstram coragem em enfrentar a maneira de expressar sua nova compreensatildeo

das tradiccedilotildees e textos judaicos

272

εχοντες ουν τοιαυτην ελπιδα πολλη παρρησια χρωμεθα (2Cor 312) 273

O texto que Paulo usa como base de seu comentaacuterio encontra-se no livro de Exocircdo ldquoMas entrando Moiseacutes perante o Senhor para falar com ele tirava o veacuteu ateacute sair e saindo dizia aos filhos de Israel o que lhe era ordenado Assim pois viam os filhos de Israel o rosto de Moiseacutes e que a pele do seu rosto resplandecia e tornava Moiseacutes a pocircr o veacuteu sobre o seu rosto ateacute entrar para falar com Deus (Ecircxodo 34 34-35)

218

Segundo Foucault (2011 p12) ldquoaleacutem da parresiacutea dizer tudo e dizer a verdade eacute

preciso que esta verdade constitua efetivamente a opiniatildeo daquele que fala sendo

realmente o que ele pensardquo Partindo dessa afirmativa de Foucault observa-se que

em seus ensinamentos Paulo indica o uso de algumas dessas caracteriacutesticas do

discurso parresiaacutestico em seu manual de conselhos agrave igreja de Corinto ldquoE temos

portanto o mesmo espiacuterito de feacute como estaacute escrito Cri por isso falei noacutes cremos

tambeacutem por isso tambeacutem falamos (2Cor 413) Nesse aspecto a condiccedilatildeo da

parresiacutea parte do princiacutepio ldquocri por isso faleirdquo Em primeiro lugar Paulo afirma

pessoalmente e em segundo lugar inclui os outros dizendo ldquonoacutes cremosrdquo e esta eacute a

declaraccedilatildeo que o autoriza dizer ldquopor isso tambeacutem falamosrdquo

Na mesma epiacutestola Paulo recorre novamente ao uso do termo parresiacutea declarando

seu ethos parresiasta ao afirmar ldquoGrande eacute a minha franqueza para convosco e

muito me glorio a respeito de voacutes estou cheio de consolaccedilatildeo transbordo de gozo

em todas as nossas tribulaccedilotildeesrdquo (2Cor 7 4)

O termo parresiacutea (παρρησια) ldquofalar francordquo usado por Paulo nesse contexto estaacute

ligado agrave ideia de amizade condiccedilatildeo essencial para sua franqueza No final do

capiacutetulo Paulo declara Regozijo-me porque em tudo tenho confianccedila em voacutes (2Cor

7 16) Esta afirmativa de Paulo implica a ideia do jogo parresiaacutestico em relaccedilatildeo aos

interlocutores na correspondecircncia Conforme menciona Foucault (2011 p 36) no

jogo parresiaacutestico haacute uma expectativa do leitorouvinte ldquoaceitar uma verdade que lhe

desagrada como uma forma de desafio para que o discurso verdadeiro tome o seu

lugarrdquo Fundado nessa convicccedilatildeo eacute que Paulo se abre com franqueza diante de seus

destinataacuterios natildeo se escondendo por traacutes de uma maacutescara resultante da falsidade

mas usando a ldquofala francardquo como forma da verdade ldquoPorque em muita tribulaccedilatildeo e

anguacutestia do coraccedilatildeo vos escrevi com muitas laacutegrimas natildeo para que vos

entristececircsseis mas para que conhececircsseis o amor que abundantemente vos tenhordquo

(2Cor 2 4) No jogo parresiaacutestico haacute uma espeacutecie de pacto em que o remetente da

epiacutestola tem o papel de assumir o risco de dizer a verdade e os destinataacuterios tecircm a

funccedilatildeo de aceitar as correccedilotildees por mais desagradaacuteveis que se mostrem Nas

epiacutestolas aos Coriacutentios os conselhos satildeo dados de forma dura e franca e Paulo se

coloca diante de seus destinataacuterios na funccedilatildeo de pai que se doa movido pelo amor

como ele declara ldquonuma justa compensaccedilatildeo falo como a meus filhos abram

219

tambeacutem o coraccedilatildeo para noacutesrdquo (2Cor 6 13)274 Na Antiguidade o ldquorelacionamento

entre pais e filhosrdquo era um toacutepos tratado na filosofia275 observado em Aristoacuteteles e

tambeacutem em textos do estoicismo Foucault (2010a p 531) faz a seguinte

observaccedilatildeo ldquoo velho tema estoacuteico bastante claacutessico do Deus Deus que eacute pai (pai

em relaccedilatildeo ao mundo pai em relaccedilatildeo aos homens) pai que deve ser reconhecido e

honrado segundo o modelo da relaccedilatildeo familiarrdquo Paulo tambeacutem lanccedila matildeo desse

toacutepos no fechamento do mesmo capiacutetulo em que ele proacuteprio se coloca como pai e

finaliza dando uma dimensatildeo maior ao colocar a figura de Deus como pai ldquoe eu

serei para voacutes Pai e voacutes sereis para mim filhos e filhas diz o Senhor Todo-

Poderosordquo (2Cor 618)

Se comparados os discursos parresiaacutesticos de Secircneca e Paulo nota-se que o toacutepos

ldquofalar francordquo identificado em suas epiacutestolas tem como ponto de referecircncia o

discurso constituinte que os move Em Secircneca como visto a parresiacutea como

modalidade da verdade estaacute em acordo com o discurso do filoacutesofo A parresiacutea em

Paulo se constitui em consonacircncia com o discurso religioso por meio da modalidade

da fala profeacutetica Foucault (2011 p 16) distingue que o profeta ldquoarticula e profere um

discurso que natildeo eacute dele Endereccedila aos homens uma verdade que vem de outro

lugarrdquo Segundo Foucault (2011 p 28) eacute compatiacutevel o agrupamento da modalidade

parresiaacutestica com o a modalidade profeacutetica Algumas caracteriacutesticas do discurso

profeacutetico satildeo fundadas em dizer a verdade sobre o futuro o que estaacute encoberto ao

homem pela proacutepria razatildeo de sua finitude Entatildeo Paulo assim diz ldquoPorque todos

devemos comparecer ante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o

que tiver feito por meio do corpo ou bem ou malrdquo (2Cor 510) Com base na

caracterizaccedilatildeo da modalidade profeacutetica e sua relaccedilatildeo com a modalidade

parresiaacutestica Foucault (2011 p 28) observa ldquoQuem diz a iminecircncia ameaccediladora do

amanhatilde do Reino do uacuteltimo dia do juiacutezo final que se aproxima diz ao mesmo

tempo aos homens o que eles satildeo e suas faltas e lhes diz francamente com toda

parresiacuteardquo

274

Traduccedilatildeo da Biacuteblia NVI (Nova Versatildeo Internacional) 275

Aristoacuteteles trata do tema amizadeamor na obra Eacutetica a Nicocircmaco nos livros VIII e IX e quando ele introduz noccedilotildees de amizadeamor ele expotildee ldquoa amizade parece ser um sentimento natural do pai por seu filho e do filho por seu pai (EN VIII 1155a) Assim como Aristoacuteteles aborda a amizade nas vaacuterias formas de relacionamentos Secircneca tambeacutem comenta ldquoaquela parte da filosofia que proporciona os conselhos adequados a cada indiviacuteduo e se destina portanto natildeo agrave formaccedilatildeo do homem em geral mas sim por exemplo a indicar ao marido como comportar-se em relaccedilatildeo agrave mulher ao pai como educar os filhosrdquo [] (Ep 942)

220

No final da epiacutestola Paulo declara ldquoPorque nada podemos contra a verdade poreacutem

a favor da verdaderdquo (2Cor 138) (ου γαρ δυναμεθα τι κατα της αλλ υπερ της

αληθειας) O termo aletheia (αληθειας) no contexto em que Paulo usa verdade

assume o sentido da mensagem do evangelho e ele se dispotildee a favor da

proclamaccedilatildeo dessa mesma verdade

Mesmo natildeo seguindo o rigor retoacuterico da eacutepoca na escrita de suas epiacutestolas Secircneca

e Paulo usam a parresiacutea com algumas estrateacutegias que a retoacuterica oferece

Determinados recursos retoacutericos mencionados na Retoacuterica de Aristoacuteteles satildeo

tambeacutem identificados nas escritas das epiacutestolas destes dois autores sendo

portadores de uma discursividade caracterizada pelos efeitos da intertextualidade

inerente ao proacuteprio discurso em uma perspectiva dialoacutegica da linguagem Desse

modo nas partes que se seguem os recursos argumentativos que se desenvolvem

a partir de um lugar comum delimitados como recursos retoacutericos na organizaccedilatildeo do

discurso satildeo desenvolvidos de acordo com o posicionamento discursivo de cada

autor na produccedilatildeo das epiacutestolas em destaque A anaacutelise que se segue leva em

consideraccedilatildeo o uso de exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas nas epiacutestolas de Secircneca e

de Paulo reconhecendo estes elementos linguiacutesticos delimitados e o funcionamento

que se efetua tanto no campo do discurso filosoacutefico e literaacuterio quanto no religioso

22 O EXEMPLO COMO RECURSO RETOacuteRICO

Pensa na grande utilidade que para noacutes tecircm os bons exemplos e concluiraacutes que as lembranccedilas dos grandes homens natildeo eacute menos uacutetil do que a sua presenccedila

Secircneca (Ep 10230)

Aristoacuteteles propotildee uma inovaccedilatildeo em suas formulaccedilotildees no campo da retoacuterica

distinguindo-a da dialeacutetica em termos da conduccedilatildeo do discurso Ao relacionar o

entimema e o exemplo como participantes concomitantes na esfera do discurso ele

tambeacutem vislumbra que a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo formam uma parceria que contribui

para resultados argumentativos no discurso (Ret I 1 1356b)

O exemplo atua no campo do raciociacutenio indutivo podendo servir como evidecircncia

fortalecendo os propoacutesitos argumentativos no discurso Sendo o efeito do exemplo

mais convincente mais claro e mais apreensiacutevel pelos sentidos estaacute ao alcance da

maioria das pessoas ao passo que o raciociacutenio dedutivo tem mais forccedila

221

demonstrativa e eacute mais eficaz para responder aos contraditores Os exemplos

podem ser retirados de fatos histoacutericos mas podem estar contidos em faacutebulas ou

mesmo paraacutebolas como por exemplo ocorre em narrativas dos Evangelhos de

acordo com suas aplicaccedilotildees em um determinado contexto

Aristoacuteteles (Ret I 21356b) esclarece que chama entimema ao silogismo retoacuterico

pois o encadeamento de raciociacutenio do entimema se aproxima ao do silogismo em

alguns aspectos entretanto este eacute portador de um raciociacutenio tripartido para

fechamento da conclusatildeo enquanto aquele se restringe agrave premissa posta ou sua

conclusatildeo que subentende as premissas encobertas Por isso entimema estaacute ligado

agrave deduccedilatildeo e exemplo agrave induccedilatildeo formando um todo no corpo do discurso

Na opiniatildeo de Aristoacuteteles quando se recorre ao uso de exemplos os fatos histoacutericos

podem exercer uma forccedila mais persuasiva em comparaccedilatildeo agraves faacutebulas ou paraacutebolas

como ele proacuteprio exemplifica

Quando se afirma que Dioniacutesio intenta a tirania porque pede uma guarda pois tambeacutem antes Pisiacutestrato ao intentaacute-la pediu uma guarda e converteu-se em tirano mal a conseguiu e Teaacutegenes fez o mesmo em Meacutegara estes e outros que se conhecem todos eles servem de exemplo para Dioniacutesio de quem ainda natildeo se sabe se eacute essa a razatildeo por que a pede (Ret I

21357b)

Para os propoacutesitos da retoacuterica eacute fundamental que o exemplo tenha como base os

fatos que conduzem o raciociacutenio indutivo A partir desse princiacutepio Aristoacuteteles expotildee

suas consideraccedilotildees afirmando que ldquoo exemplo natildeo apresenta relaccedilotildees da parte para

o todo nem do todo para a parte nem do todo para o todo mas apenas da parte

para a parte do semelhante para o semelhanterdquo (Ret I 21357b)

Com base nesses pressupostos aristoteacutelicos sobre o exemplo como retoacuterica

indutiva efetua-se a seguir uma anaacutelise desse funcionamento persuasivo do

exemplo no discurso atraveacutes de partes de epiacutestolas de Secircneca e Paulo em que

esses autores buscam exemplos em uma fonte de lugares comuns como meios

retoacutericos de argumentaccedilatildeo

221 Exemplos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Secircneca assume em seu discurso a importacircncia que tem para ele o uso dos

exemplos narrando para Luciacutelio a histoacuteria de um personagem chamado Marcelino

contando em detalhes como ele encarou a morte e no final Secircneca comenta

ldquoTambeacutem espero que minha histoacuteria natildeo tenha sido inuacutetil pois muitas vezes as

222

circunstacircncias tornam necessaacuteria a presenccedila de tais exemplosrdquo (Ep 7710) A partir

do exemplo em destaque Secircneca desenvolve algumas ideias filosoacuteficas sobre o

determinismo com base na inevitaacutevel certeza da morte Secircneca argumenta com

Luciacutelio [] ldquonatildeo existiremos no futuro tal como natildeo existimos no passado [] Tu

fostes projetado para este ponto do tempordquo (Ep 77 11-12) Segundo observaccedilatildeo de

Puente para os estoicos ldquoo presente eacute aquilo que depende de noacutes enquanto noacutes o

vivemos passado e futuro natildeo dependem de noacutes pois jaacute estatildeo determinadosrdquo

(PUENTE 2012 p117) Conclui-se que cada dia deve ser vivido como se fosse o

uacuteltimo pois eacute apenas no presente que se vive efetivamente

Quando Secircneca faz suas reflexotildees sobre a morte na escrita das epiacutestolas eacute

perceptiacutevel certa relutacircncia em relaccedilatildeo ao uso de silogismos hipoteacuteticos assumindo

sua preferecircncia pelo uso retoacuterico dos exemplos Na escrita das epiacutestolas Secircneca

critica os gregos incluindo tambeacutem o ancestral Zenatildeo pela tentativa de

demonstrarem que apenas por meio de um raciociacutenio silogiacutestico algueacutem poderia

ser convencido de que a morte natildeo eacute um mal A partir de sua proacutepria discordacircncia

Secircneca menciona o seguinte silogismo usado por Zenatildeo ldquoNenhum mal eacute causa de

gloacuteria ora a morte natildeo eacute causa de gloacuteria logo a morte natildeo eacute um malrdquo (Ep 82 9)

Secircneca endurece seus comentaacuterios a respeito da montagem desse silogismo

Magniacutefico Jaacute estou liberto do medo Depois disto jaacute natildeo hesitarei em estender o pescoccedilo ao carrasco Vamos laacute falar com mais dignidade sem cobrir de ridiacuteculo um homem que vai morrer Pelos deuses Nem sei dizer-te qual dos dois parece mais imbecil se quem imaginou com este silogismo eliminou o medo da morte se quem se aplicou a solucionaacute-lo como se ele fosse pertinente para o caso (Ep 82 9)

Eacute pontual a ldquofala francardquo de Secircneca e sua rejeiccedilatildeo ao uso do silogismo no discurso

poreacutem atraveacutes da reflexatildeo de silogismos de seus antecessores eacute que ele parte para

uma tentativa de argumentaccedilatildeo mais convincente atraveacutes do exemplo a respeito do

tema sobre o medo da morte

O mesmo silogismo lembrado por Secircneca eacute contraposto a outro silogismo de sentido

inverso agrave concepccedilatildeo de indiferenccedila defendida pelos estoicos em relaccedilatildeo agrave morte

ldquoNenhuma coisa indiferente eacute causa de gloacuteria ora a morte eacute causa de gloacuteria logo a

morte natildeo eacute indiferenterdquo (Ep 8210) Secircneca argumenta com Luciacutelio sobre os efeitos

de possiacuteveis significados da palavra gloacuteria na composiccedilatildeo deste silogismo exposto

comentando que ldquoningueacutem louva a morte em si mas sim ao homem que a morte

223

arrebata sem previamente lhe perturbar o acircnimordquo (Ep 82 11) A partir desta

afirmativa Secircneca baseia seus argumentos com a introduccedilatildeo do seguinte exemplo

A mesma morte que em Catatildeo foi gloriosa tornou-se em Bruto vergonhosa e vil Refiro-me aquele Bruto que condenado agrave morte procurou uma forma de adiar a execuccedilatildeo retirou-se para aliviar o ventre chamaram-no para ser executado ordenaram-lhe que submetesse o pescoccedilo ao carrasco ldquoEu submetordquo ndash gritou ndash ldquomas deixem-me viverrdquo (Ep 8212)

Secircneca lanccedila matildeo de um exemplo que apresenta um cenaacuterio com valor positivo

para o comportamento de Catatildeo276 e negativo para o de Bruto277 No bojo desse

exemplo encontra-se um toacutepos retoacuterico referencial de contrariedade ou seja o juiacutezo

sobre um caso contraacuterio (Ret II 23 1397a) A partir de comportamentos opostos

desses personagens no enfrentamento da morte Secircneca discorre com Luciacutelio sobre

sua forma de pensar este tema de acordo os postulados estoicos Secircneca aponta

algumas razotildees do temor da morte comentando que ldquorepelimos a ideia da morte

porque se conhecemos bem este mundo ignoramos tudo do mundo para que

iremos e o homem tem horror ao desconhecidordquo (Ep 8215) Suas conclusotildees

mostram que eacute dever do indiviacuteduo natildeo temer a morte mas eacute necessaacuterio um preparo

para robustecer tal posiccedilatildeo Para Secircneca natildeo eacute um simples silogismo que teraacute o

poder de convencimento No entanto a forccedila do exemplo de algueacutem que encarou a

morte com naturalidade e coragem eacute mais convincente do que um raciociacutenio loacutegico a

respeito do assunto Secircneca coloca em pauta certos pressupostos do estoicismo

sobre o enfrentamento da morte como libertaccedilatildeo da alma que habita o corpo em

oposiccedilatildeo aos epicuristas que defendem que a morte eacute um sono eterno natildeo havendo

separaccedilatildeo entre corpo e alma o que implica tambeacutem a concepccedilatildeo de destino

Secircneca usa o recurso do exemplo para fortalecer o toacutepos de que ldquoeacute preciso avanccedilar

com audaacutecia e determinaccedilatildeo nas decisotildeesrdquo e destaca as figuras histoacutericas de Catatildeo

e Bruto para firmar seus argumentos A avaliaccedilatildeo do exemplo de Catatildeo eacute positiva

mediante as expectativas do pensamento estoico Assim pode-se observar que tal

exemplo eacute escolhido como reforccedilo de um princiacutepio estoico que serve de modelo para

276

Catatildeo o Jovem (95-46 d C) era seguidor do estoicismo e defensor da repuacuteblica Fazia oposiccedilatildeo a Juacutelio Ceacutesar Sua histoacuteria ficou marcada pela coragem em assumir a proacutepria morte Na epiacutestola 24 Secircneca fornece vaacuterios exemplos de homens que enfrentaram a morte sem medo inclusive Soacutecrates Em suas reflexotildees Secircneca diz ldquoMorremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de parte da vidardquo (Ep 24 20) 277

O Bruto que Secircneca menciona tambeacutem participou do grupo de poliacuteticos conspiradores do assassinato de Juacutelio Ceacutesar e foi um general e poliacutetico romano que conquistou a proximidade de Juacutelio Ceacutesar No ano de 45 aC Ceacutesar o destinou ao cargo de governador da Gaacutelia

224

os integrantes da escola ou para aquele que pretende aderir aos postulados do

estoicismo Aleacutem do posicionamento do enunciador estar direcionado agrave persuasatildeo

com objetivo de convencimento os argumentos fazem surgir algumas concepccedilotildees

estoicas sobre a morte Por um lado os propoacutesitos da exemplificaccedilatildeo exerce o papel

de introduzir um personagem que age em um determinado contexto histoacuterico

funcionando como um arquivo que fornece o estiacutemulo e incentivo positivo para

accedilotildees futuras Por outro lado a remissatildeo a um personagem de exemplo negativo

natildeo serve de modelo para ilustrar a coragem diante do enfrentamento da morte

Foucault lanccedila um olhar investigativo para o momento histoacuterico em que Secircneca

estava investido e faz a seguinte observaccedilatildeo quanto ao uso do exemplo em suas

epiacutestolas

[] o verdadeiro valor do exemplum histoacuterico exemplum histoacuterico que natildeo buscaraacute na vida dos reis estrangeiros o modelo a ser mostrado o exemplum histoacuterico eacute bom na medida em que nos mostra modelos autoacutectones (romanos) e em que faz aparecer os verdadeiros traccedilos da grandeza que justamente natildeo satildeo as formas visiacuteveis do brilho e do poder mas as formas individuais do domiacutenio de si Exemplo da modeacutestia de Catatildeo exemplo tambeacutem de Cipiatildeo ao deixar Roma a fim de garantir a liberdade para a sua cidade (FOUCAULT 2010a p 236)

Foucault identifica que nos exemplos apontados por Secircneca os personagens

histoacutericos merecedores de atenccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo aqueles que se mostraram natildeo

exatamente donos do mundo mas de si mesmos Estes alcanccedilaram tal domiacutenio

galgando a escalada da virtude

Nas epiacutestolas de Secircneca algumas concepccedilotildees filosoacuteficas do estoicismo satildeo

tratadas com o recurso do exemplo como forccedila persuasiva Os exemplos de Catatildeo

e Bruto servem a Secircneca como reflexatildeo sobre o medo da morte como ponto

decisivo na compreensatildeo da separaccedilatildeo corpo e alma o que justifica a incerteza do

depois da morte

Secircneca na epiacutestola vinte e quatro faz uma narrativa mais detalhada da corajosa

morte de Catatildeo e no desfecho ele dirige o seguinte comentaacuterio a Luciacutelio ldquoNatildeo

estou a coligir exemplos apenas para aguccedilar o engenho mas para que te sirvam de

exortaccedilatildeo contra aquele que imaginamos ser o mais terriacutevel dos malesrdquo (Ep 249)

Secircneca faz questatildeo de registrar o que representa para ele o uso do exemplo como

meio de persuasatildeo partindo do princiacutepio que ldquoo exemplo fala mais altordquo

225

O exemplo para Secircneca deve funcionar como modelo de sabedoria e virtude e ele

explora esse toacutepico recorrendo aos versos de Vergiacutelio de parte de um poema

introduzindo a voz do poeta em seu discurso de forma enigmaacutetica

Sem demora a cria de raccedila nobre pelos campos marcha altaneira as tenras patas flectindo antes dos demais potildee-se a caminho afronta as torrentes impetuosas sem receio afoita-se a percorrer um trilho ignoto e natildeo treme ao ouvir vatildeos ruiacutedos Tem ereto o pescoccedilo fina a cabeccedila breve o ventre liso o dorso e o peito animoso eacute musculado e forte [] E quando ao longe se ouve o sinal de combate Natildeo paacutera quieto erguem-se lhe as orelhas as pernas Tremem e a custo reprimem nas narinas a respiraccedilatildeo Ardente (Ep 95 68)

278

Antes de introduzir Vergiacutelio em seu discurso Secircneca estaacute argumentando sobre a

importacircncia de instruccedilotildees sobre a virtude acompanhada de modelos Ao mencionar

os versos de Vergiacutelio o enunciador provoca certa expectativa pelo uso metafoacuterico e

enigmaacutetico do poema em relaccedilatildeo ao que vinha sendo dito na enunciaccedilatildeo Poreacutem

logo apoacutes a indicaccedilatildeo dos versos eacute realizada uma aplicaccedilatildeo de parte do poema

como metaacutefora Partindo da ideia do valor do modelo na aquisiccedilatildeo da virtude

Secircneca esclarece

Tratando embora um assunto diferente o grande Vergiacutelio faz nestes versos a descriccedilatildeo do verdadeiro heroacutei Pelo menos natildeo eacute diferente a imagem que eu faccedilo do que seja um heroacutei Se eu quisesse descrever a atitude de M Catatildeo impaacutevido entre os fragores da guerra civil partindo ao ataque do exeacutercito inimigo que jaacute descia dos alpes opondo o proacuteprio peito agrave guerra civil ndash pois natildeo o pintaria com outro rosto natildeo lhe atribuiria outra atitude (Ep 9569)

Por meio de suas memoacuterias da histoacuteria da vida de Catatildeo279 Secircneca continua

refletindo sobre o valor de se ter um heroacutei como este para se espelhar e acrescenta

ldquoQue vigor que energia de alma havia neste homem que autoconfianccedila ele

demostrou quando num momento em que todos tremiam de pavorrdquo (Ep 9571) A

figura de Catatildeo o Jovem eacute valorizada tambeacutem pelo modo como lutou pela

repuacuteblica Secircneca exclama [] ldquoa ferida mortal que Catatildeo como decisivo ato de

278

Traduccedilatildeo de Segurado e Campos Partes do poema de Vergiacutelio (Georg III 75-81 e 83- 85) No poema Vergiacutelio trata de questotildees da vida no campo com foco nos animais Nesses versos apontados por Secircneca eacute destacada a imagem do cavalo e suas funccedilotildees e nessas descriccedilotildees percebe-se um cunho de aplicaccedilatildeo filosoacutefico-moral Eacute nesse sentido que Secircneca tambeacutem faz uma comparaccedilatildeo da imagem do cavalo como heroacutei ao seu personagem Catatildeo (o Jovem) 279

Marco Poacutercio Catatildeo referido por Secircneca no diaacutelogo com o poema de Vergiacutelio se trata do bisneto de Catatildeo o Velho Na mesma epiacutestola ainda nas referecircncias aos exemplos de outros personagens histoacutericos Secircneca acrescenta ldquoou os feitos sublimes puacuteblicos e privados do outro Catatildeo (o Velho) (Ep 9572)

226

coragem infligiu a si mesmo ferida por onde a liberdade republicana exalou o uacuteltimo

suspirordquo (Ep 9572)

Os versos introduzem a voz de Vergiacutelio na enunciaccedilatildeo como forccedila metafoacuterica para a

analogia que Secircneca se propotildee em relaccedilatildeo agrave figura de Catatildeo como um

personagem histoacuterico de valor na poliacutetica Na epiacutestola vinte e quatro Secircneca insiste

com a questatildeo da importacircncia do exemplo e faz a seguinte afirmativa ldquoO problema

natildeo eacute descobrir exemplos mas sim escolhecirc-losrdquo (Ep 243)

Secircneca concebe a virtude como um requisito a ser adquirido pelo aprendizado

mostrando a importacircncia de se pautar em um modelo como referecircncia Assim ele

atrai seu leitor com versos de Vergiacutelio e com base nestes introduz a figura de

Catatildeo jaacute valorizada culturalmente no imaginaacuterio do leitor280 Observa-se entatildeo que

o discurso literaacuterio agrega-se ao discurso filosoacutefico e serve de base para

fortalecimento dos argumentos contribuindo para um sentido de completude entre

discursos constituintes

Secircneca aconselha Luciacutelio a escolher um modelo de personalidade a ser seguido

colocando em cena Catatildeo281 o Velho Essas satildeo suas sugestotildees ldquoEscolhe por

exemplo Catatildeo se este te parecer demasiado riacutegido escolhe Leacutelio que eacute homem de

espiacuterito mais maleaacutevelrdquo (Ep 1110) Na concepccedilatildeo de Secircneca o indiviacuteduo tem

necessidade de algueacutem em que possa se espelhar e afinar ao seu proacuteprio caraacuteter O

fechamento desses conselhos persuasivos quanto agrave eficaacutecia do exemplo eacute feito

atraveacutes da seguinte maacutexima ldquoriscos tortos soacute se corrigem com a reacuteguardquo (Ep 1110)

Assim como o exemplo histoacuterico tem por si soacute uma forccedila persuasiva como

defendido por Aristoacuteteles o exemplo pessoal funciona no discurso em instacircncias

distintas Por um lado o enunciador traz para a enunciaccedilatildeo fato ocorrido de sua

proacutepria experiecircncia para servir de exemplo aos seus destinataacuterios Por outro lado o

exemplo pessoal serve como forma de identificaccedilatildeo do ethos mostrado no discurso

Consequentemente o efeito do logos atinge o pathos ou seja o discurso alcanccedila a

280

Na epiacutestola vinte e quatro Secircneca argumenta com Luciacutelio que a histoacuteria de Catatildeo era repetida em todas as escolas principalmente quando se tratava do problema do desprezo pela morte (Ep 246) 281

Catatildeo o Velho (234 - 149 dC) era referecircncia entre os romanos Foi poliacutetico e escritor que valorizou e fortificou a escrita em liacutengua latina e era bisavocirc de Catatildeo o Jovem Ciacutecero no tratado sobre a velhice M Tvlli Ciceronis Cato Maior de Senectvte faz uso da dialeacutetica trazendo para o discurso a voz do idoso e experiente Catatildeo (o Velho) que em forma de diaacutelogo discute com Leacutelio e Cipiatildeo as questotildees sobre a forma saacutebia de se assumir a velhice

227

audiecircncia agrave qual o ethos se dirige Nessa perspectiva as trecircs provas ethos logos e

pathos satildeo acionadas em conjunto pela estrateacutegia do recurso ao exemplo pessoal

No gecircnero epistolar o uso do exemplo do outro pode funcionar diante do

destinataacuterio como um incentivo agrave imitaccedilatildeo enquanto o exemplo pessoal pode

estabelecer uma relaccedilatildeo de autoridade testemunhal de quem fala trazendo para a

enunciaccedilatildeo uma discursividade distinta daquela do exemplo histoacuterico Neste caso o

proacuteprio enunciador coloca-se como voz autorizada no fortalecimento da persuasatildeo

Pode-se aventar que o exemplo pessoal no gecircnero epistolar pode operar como

ensinamento de algo comum entre o emissaacuterio e o destinataacuterio a quem se dirige O

exemplo pessoal coloca o enunciador na posiccedilatildeo de um indiviacuteduo experiente em

relaccedilatildeo aos conteuacutedos de seus ensinamentos e argumentaccedilatildeo Ele se coloca como

uma prova contundente da eficaacutecia de seu discurso

A esse respeito Secircneca mostra-se diante de Luciacutelio por meio da correspondecircncia

como a voz da experiecircncia legitimada que pelo desabafo introduz seus conselhos

ao destinataacuterio de sua missiva

Se tens alguma confianccedila em mim revelar-te-ei totalmente os meus mais iacutentimos sentimentos eu formei o meu caraacuteter no meio de toda a espeacutecie de circunstacircncias aparentemente desfavoraacuteveis e duras mas natildeo me limito a ceder agrave vontade dos deuses dou-lhes mesmo a minha concordacircncia submeto-me espontaneamente Nunca me acontece nada que eu receba com amargura ou de maacute cara natildeo haacute imposto algum que eu pague contra a vontade (Ep 962)

Na sua anaacutelise sobre a escrita de si Foucault (2004 p 156) aponta que a

correspondecircncia oferece a vantagem do emissaacuterio mostrar-se ao olhar do outro

atraveacutes do que lhe eacute dito sobre si mesmo Eacute nesse tom que Secircneca se dirige a

Luciacutelio ldquorevelar-te-ei totalmente os meus mais iacutentimos sentimentosrdquo Com essa

disposiccedilatildeo Secircneca coloca-se como algueacutem que sabe encarar com coragem os

enfrentamentos da vida revertendo situaccedilotildees desfavoraacuteveis Por meio desse

exemplo pessoal ele se oferece ao olhar do outro tanto em razatildeo de suas

experiecircncias individuais quanto de suas proacuteprias convicccedilotildees existenciais Tais

procedimentos estatildeo diretamente ligados ao seu posicionamento de estoico

praticante

Nessa abertura que Secircneca faz de si para o outro ele investe na forccedila persuasiva

do proacuteprio exemplo como meio de defender certos postulados da filosofia estoica

que ele incorporou na sua praacutetica de vida O eixo central dessa argumentaccedilatildeo eacute a

228

defesa do determinismo como um postulado filosoacutefico que permite a coerecircncia com

a noccedilatildeo de liberdade Reale (1994a p 316) interliga os conceitos estoicos de

providecircncia282 e de necessidade ao de determinismo que formando um conjunto

vinculam-se ao conceito de deuses Para os estoicos os deuses nascem e morrem

junto com a evoluccedilatildeo ciacuteclica do cosmo O deus supremo permanece havendo

identificaccedilatildeo entre deus natureza Hirschberger (1965 p 264) observa que os

estoicos admitem um princiacutepio imanente de explicaccedilatildeo do mundo O devir se

desenvolve em grandes ciclos e a restauraccedilatildeo universal se daacute por vezes infinitas e o

mesmo se repete Existe uma forccedila divina primitiva que engloba a ideia de deus

razatildeo destino e natureza

Foucault (2010a p249) procura associar conhecimento de si e conhecimento da

natureza e comenta que em Secircneca esse conhecimento da natureza permite que o

ser humano apreenda por ele mesmo o lugar que ocupa nesse mundo de uma

providecircncia divina Segundo a interpretaccedilatildeo e afirmativa de Foucault

[] eacute essa providecircncia divina que nos colocou laacute onde estamos que nos

situou pois no interior de um encadeamento de causas e efeitos particulares que precisamos aceitar se quisermos nos liberar desse

encadeamento (FOUCAULT 2010a p 250)

A partir dessas observaccedilotildees Foucault ressalta que o saber sobre a natureza eacute

liberador na medida em que permite que o ser humano natildeo desvie de si mesmo

enquanto ligado a um conjunto de determinaccedilotildees e necessidades cuja racionalidade

se torna compreensiacutevel

Eacute firmado nesses princiacutepios da filosofia estoica que Secircneca revela a Luciacutelio ldquomas

natildeo me limito a ceder agrave vontade dos deuses dou-lhes mesmo a minha

concordacircncia submeto-me espontaneamente e natildeo por tal ser inevitaacutevelrdquo (Ep

962) Com esta declaraccedilatildeo Secircneca mostra-se concordante com o determinismo

pela vontade dos deuses natildeo no sentido de obediecircncia a uma imposiccedilatildeo mas com

a liberdade que proveacutem de sua escolha de aceitaccedilatildeo do funcionamento da natureza

pois para os estoicos o destino eacute causa natural e irreversiacutevel de todas as coisas

282

Segundo Reale (1994a p 314) a providecircncia estoica natildeo tem nada a ver com a providecircncia de um Deus pessoal pois trata-se de uma providecircncia imanente e natildeo transcendente A imanecircncia eacute a presenccedila de uma forccedila divina que permeia todas as coisas que existem e eacute capaz de influenciaacute-las direta ou indiretamente A transcendecircncia atribui a Deus uma existecircncia separada das coisas das quais ele eacute o criador Com essas distinccedilotildees Reale aponta que a providecircncia na concepccedilatildeo imanente natildeo se ocupa dos homens individualmente e eacute nessa perspectiva que os estoicos concebem o destino como ordem natural e necessaacuteria de todas as coisas

229

Esta eacute a convicccedilatildeo que Secircneca procura transmitir ao seu amigo Luciacutelio com a forccedila

persuasiva de sua proacutepria experiecircncia e exemplo

Ainda Secircneca fala de si de sua experiecircncia e de seu proacuteprio exemplo afirmando

sua convicccedilatildeo de estar bem preparado para enfrentar duas realidades que ao ser

humano satildeo destinadas a velhice e a morte

Estou preparado para partir e assim gozo tanto mais a vida quanto menos me preocupa saber quanto tempo o futuro ainda me reserva Antes de atingir a velhice tive a preocupaccedilatildeo de viver bem agora que sou velho preocupo-me em morrer bem e morrer bem significa ser capaz de aceitar a morte (Ep 612)

Para Foucault (2010a p102) esta declaraccedilatildeo de Secircneca resume a noccedilatildeo do

cuidado de si sendo este o resultado da escolha de um modo de vida O indiviacuteduo

que adota os preceitos do cuidado de si como meta seraacute capaz de experimentar o

coroamento e recompensa de tal escolha no periacuteodo da velhice Sobre a ideia de

morrer bem Foucault (2010a p 412) observa que para os estoicos o pensamento

em relaccedilatildeo agrave morte apreende o valor do presente pois a morte eacute um processo

contiacutenuo desde o nascimento e viver eacute morrer um pouco a cada dia

A chance de falar de si mesmo e usar esse meio como forma de argumentaccedilatildeo e

convencimento de seu destinataacuterio torna-se um meio favorecido pelo gecircnero

epistolar Segundo Paul Veyne (1995 p 251) na Antiguidade um escritor soacute

poderia manifestar-se livremente para falar de si mesmo283 com fins de edificaccedilatildeo

filosoacutefica ou religiosa Entatildeo a melhor forma de convencimento era colocar como

exemplo a proacutepria existecircncia Secircneca encontra espaccedilo na filosofia para falar de si

atraveacutes do gecircnero epistolar e Paulo no campo religioso para se colocar diante de

seus destinataacuterios tomando sua proacutepria experiecircncia de conversatildeo como exemplo

pessoal em suas epiacutestolas

O exemplo como argumento retoacuterico tambeacutem eacute utilizado po Paulo em suas epiacutestolas

agrave igreja de Corinto A escolha dos exemplos em Secircneca eacute direcionada pelo discurso

constituinte filosoacutefico Nas epiacutestolas de Paulo os exemplos tecircm sustentaccedilatildeo no

discurso constituinte religioso

283

Paul Veyne (1995 p 251) constata que se o poeta falava de si de seus amores e assim por diante tudo era considerado ficccedilatildeo

230

222 Exemplos nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto

No discurso religioso da cultura judaico-cristatilde lugar de onde Paulo enuncia

registrando a escrita de suas epiacutestolas haacute um princiacutepio de valorizaccedilatildeo de eventos

histoacutericos como prova e testemunho da atuaccedilatildeo de Deus Eacute nesse sentido que os

exemplos apontados na escrita de Paulo tanto evidenciam a atuaccedilatildeo de Deus no

passado quanto no seu proacuteprio presente Atraveacutes da histoacuteria de personagens que se

destacaram quer de forma positiva pela vida e experiecircncia na relaccedilatildeo com Deus

quer de forma negativa pela desobediecircncia os exemplos contribuem para

atualizaccedilatildeo do passado no momento presente da enunciaccedilatildeo No texto biacuteblico

muitos exemplos em certas circunstacircncias atuam como uma representaccedilatildeo

alegoacuterica para se entender os significados de fenocircmenos da atualidade por uma

imagem simboacutelica do passado

Nas duas epiacutestolas dirigidas agrave igreja de Corinto Paulo investe no uso do exemplo

testemunhal como forccedila persuasiva no discurso com vistas aos ensinamentos

admoestaccedilotildees e reflexotildees A partir desse recurso os exemplos comparecem no

discurso com uma determinada finalidade para as quais cada um se destina Na

primeira epiacutestola o destaque eacute para o capiacutetulo dez pois fornece um exemplo

construiacutedo a partir de imagens alegoacutericas Esse exemplo eacute constituiacutedo atraveacutes do

resgate da memoacuteria por meio da experiecircncia vivida pelo povo de Israel durante sua

jornada de quarenta anos pelo deserto Em conjunto com essa memoacuteria histoacuterica

baacutesica para o raciociacutenio indutivo Paulo expotildee que as experiecircncias do povo da

caminhada no deserto foram registradas para servir de exemplo agrave posteridade Ao

mesmo tempo o raciociacutenio dedutivo resulta na aplicaccedilatildeo da alegoria adotada como

reforccedilo aos postulados expostos

Pois natildeo quero irmatildeos que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem e todos passaram pelo mar e na nuvem e no mar todos foram batizados em Moiseacutes e todos comeram do mesmo alimento espiritual e beberam todos da mesma bebida espiritual porque bebiam da pedra espiritual que os acompanhava e a pedra era Cristo Mas Deus natildeo se agradou da maior parte deles pelo que foram prostrados no deserto Ora estas coisas nos foram feitas para exemplo a fim de que natildeo cobicemos as coisas maacutes como eles cobiccedilaram E natildeo murmureis como alguns deles murmuraram e pereceram pelo destruidor Ora tudo isto lhes acontecia como exemplo e foi escrito para aviso nosso para quem jaacute satildeo chegados os fins dos seacuteculos (1Cor 10 1-6 10-11)

Em seus ensinamentos Paulo traz para seu discurso a imagem do povo de Israel na

caminhada no deserto em busca da terra prometida Com os recursos dessa

231

imagem ele estaacute apontando para os riscos da desobediecircncia Este mesmo exemplo

acionado por Paulo foi usado na literatura poeacutetica pois o texto em Salmos setenta e

oito284 eacute todo construiacutedo em torno dos relatos da histoacuteria da caminhada do povo de

Israel jaacute deixando nas entrelinhas um posicionamento de captaccedilatildeo de sentidos

alegoacutericos Mais tarde o meacutetodo alegoacuterico vai ser amplamente assumido e utilizado

por Fiacutelon de Alexandria que tambeacutem retoma essa narrativa das experiecircncias do

povo hebraico em sua trajetoacuteria histoacuterica rumo ao lugar tatildeo almejado Acerca desse

fato Becker (2007 p89) informa que ldquoa interpretaccedilatildeo sinagogal da Septuaginta

conhece jaacute o meacutetodo alegoacuterico influiacutedo de espiacuterito grego tal como Paulo o usardquo

De acordo com Stern a alegoria usada por Fiacutelon285 que relaciona as figuras do

manaacute e da aacutegua com a palavra e a sabedoria de Deus pode ter servido de base

para essa construccedilatildeo alegoacuterica feita por Paulo Este autor ainda acrescenta que de

acordo com o Aggadah286 ldquoos filhos de Israel eram acompanhados no deserto por

uma pedra rolante da qual manava aacuteguardquo (STERN 2008 p 508)

Essas informaccedilotildees contribuem para a identificaccedilatildeo dos efeitos da intertextualidade

entre o texto de Paulo com outros textos que o antecederam como um lugar comum

na literatura hebraica A alegoria paulina resgatada da passagem aqui analisada e

revestida da finalidade da aplicaccedilatildeo dos significados traz para a enunciaccedilatildeo a forccedila

argumentativa do exemplo Paulo extrai da narrativa da caminhada do povo de Israel

vaacuterios modelos associados agraves situaccedilotildees vividas pelos seus liderados naquele

284

No livro de Salmos (78 13-18 23) o poeta assim traz o exemplo da desobediecircncia do povo de Israel [] Dividiu o mar e os fez atravessar barrando as aacuteguas como num dique De dia guiou-os com a nuvem e com a luz de um fogo toda a noite fendeu rochedos pelo deserto e deu-lhes a beber como a fonte do grande Abismo da pedra fez brotar torrentes e as aacuteguas desceram como rios Mas continuaram pecando contra ele rebelando-se contra o Altiacutessimo na estepe tentaram a Deus em seu coraccedilatildeo pedindo comida conforme seu gosto [] Contudo ordenou agraves nuvens do alto e abriu as portas do ceacuteu para os alimentar fez chover o manaacute deu para eles o trigo do ceacuteu 285

Charles Duke Yonge traduziu do grego para o inglecircs (1854-55) o conjunto das obras de Fiacutelon de Alexandria intitulada The Works of Philo ldquo[hellip] and the thirst which is that of the passions seizes on it until God sends forth upon it the stream of his own accurate wisdom and causes the changed soul to drink of unchangeable health for the abrupt rock is the wisdom of God which being both sublime and the first of things he quarried out of his own powers and of it he gives drink to the souls that love God and they when they have drunk are also filled with the most universal manna for manna is called something which is the primary genus of everything But the most universal of all things is God and in the second place the word of Godrdquo [hellip] (Allegorical Interpretation II 86) ( [hellip] e a sede que eacute a das paixotildees se apodera dela (alma) ateacute que Deus envia sobre ela (alma) o fluxo de sua proacutepria sabedoria e faz com que a alma mudada beba de sauacutede imutaacutevel pois a rocha abrupta eacute a sabedoria de Deus que eacute sublime e a primeira das coisas que ele extraiu de seus proacuteprios poderes e dele daacute bebida agraves almas que amam a Deus E eles quando bebem satildeo tambeacutem enchidos com o manaacute mais universal pois o manaacute eacute chamado de algo que eacute o gecircnero primaacuterio de tudo Mas a mais universal de todas as coisas eacute Deus e em segundo lugar a palavra de Deusrdquo [] ) 286

Aggadah eacute a designaccedilatildeo para o material lendaacuterio e midraacuteshico da cultura hebraica tecido em torno do Tanakh (conjunto dos livros sagrados do judaiacutesmo)

232

momento As imagens do manaacute e da aacutegua satildeo aplicadas como metaacuteforas analoacutegicas

aos siacutembolos da ceia do Senhor Supostamente esta histoacuteria do povo de Israel jaacute

era conhecida pela igreja de Corinto visto que Paulo jaacute parte das analogias De

acordo com o entendimento e interpretaccedilatildeo de Brakemeier (2008 128) a alegoria

usada fornece aplicaccedilatildeo tambeacutem para as questotildees do batismo Paulo associa a

experiecircncia da travessia do mar com o batismo em Moiseacutes fazendo comparaccedilatildeo

com o ato do batismo cristatildeo de seu tempo

Quando Paulo expotildee que no deserto o povo foi saciado com comida (manaacute) e aacutegua

espiritual (de origem divina) haacute uma analogia com o ato da ceia do Senhor Nessa

mesma linha Schreiner (2015 p 350) tambeacutem interpreta esse exemplo de Paulo

apontando que as imagens de alimento e aacutegua representavam uma antecipaccedilatildeo do

memorial da ceia do Senhor

Na exposiccedilatildeo de Paulo a aacutegua espiritual jorrava daquela rocha que acompanhava a

trajetoacuteria do povo e essa rocha era Cristo Stern (2008 508) sugere que a ideia de

Paulo em comparar aquela rocha com Cristo tem base em outros textos biacuteblicos

que apontam para essa analogia287 Outra ligaccedilatildeo que pode ser acrescentada eacute a

intertextualidade com a cena do diaacutelogo de Jesus com a mulher samaritana quando

Ele declarou ser a fonte da aacutegua viva (Joatildeo 410) Assim a imagem da rocha como

Cristo fornece duas aplicaccedilotildees distintas mas que se interligam Em primeiro lugar

lanccedilando um olhar para a rocha que caminhava com o povo no deserto vecirc-se que

sua caracteriacutestica era a de uma fonte de aacutegua que tinha como funccedilatildeo saciar a sede

Em segundo lugar a rocha fornece outra analogia que funciona como fundamento

para a edificaccedilatildeo Assim Paulo afirma ldquoMas cada um veja como constroacutei Quanto ao

fundamento ningueacutem pode por outro diverso do que foi posto Jesus Cristordquo (1 Cor

311) Quanto ao uso da imagem da rocha comparada com Cristo Heyer formula o

seguinte comentaacuterio

Paulo queria prevenir a comunidade de Corinto e serviu-se da viagem do povo de Israel pelo deserto para consegui-lo A fim de dar mais ecircnfase agrave sua comparaccedilatildeo sugeriu que Cristo jaacute acompanhava o povo de Israel mas nem sequer a presenccedila da ldquorocha no desertordquo foi suficiente para salvar a todos ante a idolatria e a impiedade (HEYER 2009 p 113)

287

Jesus poreacutem fixando o olhar neles disse Que significa entatildeo o que estaacute escrito A pedra que os edificadores tinham rejeitado tornou-se a pedra angular ( Lucas 20 17)

233

Com esta compreensatildeo do uso da metaacutefora da rocha como Cristo Heyer tambeacutem

interpreta a posiccedilatildeo de Paulo em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo desse siacutembolo alegoacuterico

como forma de prevenir os participantes da igreja de Corinto contra os riscos das

consequecircncias da desobediecircncia e idolatria Paulo alerta que mesmo o povo de

Israel sendo acompanhado pela rocha que eacute Cristo deixou-se levar pelos atrativos

do pecado sendo que a maior parte daquela geraccedilatildeo que saiu do Egito natildeo teve a

oportunidade de entrar na Canaatilde prometida

Pode-se pensar que essas analogias impliacutecitas satildeo identificadas como

heterogeneidade enunciativa pois outros discursos estatildeo funcionando como

interdiscurso na sustentaccedilatildeo do discurso que se atualiza na enunciaccedilatildeo Vale

observar que no periacuteodo que Paulo escreveu suas epiacutestolas ainda natildeo havia

circulaccedilatildeo da escrita dos evangelhos e a oralidade era vital para transmissatildeo dos

ensinamentos de Jesus Hale (1983 p 57) defende que o primeiro evangelho a ser

escrito foi o de Marcos o que deve ter ocorrido logo apoacutes a morte de Paulo mais ou

menos em 65 dC Paulo traz para sua enunciaccedilatildeo a complementaridade de um

passado mais remoto com o de um passado mais recente interligando certos

sentidos atraveacutes dos intertextos tanto da escrita quanto da oralidade

Na enunciaccedilatildeo desse exemplo Paulo segue uma sequecircncia loacutegica Primeiro coloca

em cena um fato histoacuterico dos antepassados construindo conjuntamente uma

alegoria com as imagens do mar do manaacute e da aacutegua que implicitamente podem

tambeacutem ser remetidas agraves experiecircncias da igreja de Corinto com relaccedilatildeo ao batismo

e agrave celebraccedilatildeo da ceia Na sequecircncia ele faz uso de um entimema com a seguinte

construccedilatildeo retoacuterica ldquoMas Deus natildeo se agradou da maior parte deles pelo que foram

prostrados no desertordquo (1Cor105) Essa construccedilatildeo entimemaacutetica serve como

argumento para introduzir os ensinamentos e admoestaccedilotildees que ele deseja

ministrar pelo uso do raciociacutenio indutivo ldquoOra esses fatos aconteceram para nos

servir de exemplo a fim de que natildeo cobicemos coisas maacutes como eles cobiccedilaramrdquo

(1Cor 106)

Em um contexto de compreensatildeo equivocada do significado de algumas praacuteticas

rituais como o da celebraccedilatildeo da ceia e do batismo Paulo trata alegoricamente o

exemplo que traz para seu discurso com finalidades persuasivas percebiacuteveis na

forma como ele o aplica aos seus conselhos De acordo com este ponto de vista

Schreiner expressa a seguinte opiniatildeo

234

O texto de 1 Coriacutentios 10 daacute a entender que alguns estavam compreendendo o batismo e a ceia do Senhor num sentido maacutegico achando que por participar deles seriam preservados de qualquer mal de modo que poderiam pecar impunemente [] Para combater essa visatildeo Paulo constroacutei uma analogia entre a experiecircncia de Israel e a dos crentes (SCHREINER 2015 p 346)

Como informa Schreiner (2015 p 350) no tempo de Paulo a primeira parte da

celebraccedilatildeo da ceia funcionava como momento comum de uma refeiccedilatildeo e como

efeito comeccedilou haver desentendimento a respeito da distribuiccedilatildeo desigual Diante

dessa situaccedilatildeo Paulo exortou a comunidade quanto ao verdadeiro significado

daquela observacircncia Em relaccedilatildeo ao batismo havia certa facccedilatildeo entre os

componentes da igreja de Corinto em funccedilatildeo do valor das lideranccedilas de Paulo de

Apolo e de Pedro talvez pela preferecircncia daquele liacuteder288 que os havia batizado A

esse respeito Schreiner (2015 p 347) reflete que nesse contexto o batismo podia

estar sendo indevidamente exaltado perdendo seu significado simboacutelico Conforme

observa Thielman (2007 p 331) uma preocupaccedilatildeo relevante na epiacutestola de Paulo

dirigida aos participantes da igreja de Corinto era promover a concoacuterdia e a uniatildeo

Alguns usos e costumes estavam tornando-se conflitantes naquela comunidade

entre os quais estaacute incluiacutedo o modo de compreensatildeo do significado da celebraccedilatildeo

da ceia pois no capiacutetulo seguinte Paulo fornece as instruccedilotildees de como o ato deveria

ser realizado

As aplicaccedilotildees do exemplo levantado sugerem que Paulo estava aconselhando a

comunidade de Corinto com o propoacutesito de fazecirc-la refletir por meio de figuras

alegoacutericas que nem o valor simboacutelico da passagem pelo mar vermelho nem a

presenccedila da rocha (Cristo) que os acompanhava nem o patildeo e a aacutegua espiritual que

os alimentava serviram de livramento da condenaccedilatildeo Portanto fica entendido que a

desobediecircncia e a idolatria foram as causas da puniccedilatildeo pois com tais atitudes o

povo natildeo conseguiu alcanccedilar o verdadeiro significado da presenccedila constante da

rocha como fonte que jorrava aacutegua e do manaacute que caiacutea do ceacuteu No fechamento de

sua ideia quanto aos significados da alegoria Paulo enfatiza ldquoEstas coisas lhes

aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para nossa instruccedilatildeordquo (1Cor

1011) Desse modo Paulo elabora seu aconselhamento natildeo com imposiccedilatildeo ou

288

Segundo Stern (2008 p 480) ldquopor um lado Apolo era o sucessor de Paulo na igreja de Corinto e viveu na Alexandria helenizada e poderia ter uma formaccedilatildeo influenciada por Filo de Alexandria Por outro lado Pedro em seus ensinamentos teria enfatizado a tradiccedilatildeo judaica Portanto Paulo estaria em uma posiccedilatildeo de acordo entre as duas partes atendendo aos gregos e judeusrdquo Stern (2008 p 481) observa que naquele contexto Paulo se referia aos gentios como gregos ou seja os gentios eram os natildeo judeus

235

proibiccedilatildeo mas com a forccedila de um exemplo registrado na literatura hebraica Assim

apreende-se um efeito de intertextualidade que permite atualizar a discursividade de

um fato passado no presente daquela comunidade de Corinto

Aleacutem do uso argumentativo do exemplo histoacuterico como identificado em Secircneca

Paulo tambeacutem valendo-se do gecircnero epistolar expotildee sua subjetividade usando o

exemplo pessoal como forma de alcanccedilar seus destinataacuterios Sua segunda epiacutestola

dirigida agrave igreja de Corinto eacute marcada pela franqueza e sinceridade ficando claro

que ele deseja consolar mas tambeacutem manifesta sua necessidade de ser consolado

Logo no iniacutecio da epiacutestola esta questatildeo eacute ventilada e Paulo se expressa dizendo que

ldquosabendo que compartilhando os nossos sofrimentos compartilhareis tambeacutem a

nossa consolaccedilatildeordquo (2Cor 17) Eacute nesse contexto que na sequecircncia da epiacutestola

Paulo assim se expotildee no quarto capiacutetulo

7-Temos poreacutem este tesouro em vasos de barro para que a excelecircncia do poder seja de Deus e natildeo de noacutes 8- Em tudo somos atribulados mas natildeo angustiados perplexos mas natildeo desanimados 9 - perseguidos mas natildeo desamparados abatidos mas natildeo destruiacutedos 10 - Trazendo sempre por toda a parte a mortificaccedilatildeo do Senhor Jesus no nosso corpo para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem nos nossos corpos 11 - E assim noacutes que vivemos estamos sempre entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem na nossa carne mortal 14- Sabendo que o que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitaraacute tambeacutem por Jesus e nos apresentaraacute convosco 15- Porque tudo isto eacute por amor de voacutes para que a graccedila multiplicada por meio de muitos faccedila abundar a accedilatildeo de graccedilas para gloacuteria de Deus 16 - Por isso natildeo desfalecemos mas ainda que o nosso homem exterior se corrompa o interior contudo se renova de

dia em dia (2Cor 4 7-11 14 -16)

Nesses versos do capiacutetulo quatro Paulo se coloca pessoalmente diante de

acusaccedilotildees de seus adversaacuterios falando em seu proacuteprio nome e nos de seus

companheiros de missatildeo No verso sete ele usa a metaacutefora ldquovaso de barrordquo em

sintonia textual com o antigo testamento que tambeacutem em sentido metafoacuterico era

anunciado pela voz dos profetas289 apontando que ldquoDeus eacute o oleiro e o homem eacute o

barrordquo Este eacute um toacutepos que amplia as relaccedilotildees de intertextualidade com outros

textos como o da narrativa do livro de Gecircnesis pois o homem foi criado do poacute da

terra no princiacutepio de tudo O efeito dessa heterogeneidade discursiva eacute reforccedilar a

noccedilatildeo de finitude de que o ser humano eacute constituiacutedo De acordo com essa

perspectiva Paulo parte da afirmativa ldquotemos poreacutem este tesouro em vasos de

barrordquo para argumentar sobre o toacutepos ldquofragilidade do corpordquo como vulnerabilidade do

289

Livro de Jeremias 181-6 e Livro de Isaias 648

236

ser humano em oposiccedilatildeo ao poder de Deus Identifica-se a seguinte conclusatildeo

entimemaacutetica ldquopara que a excelecircncia do poder seja de Deus e natildeo de noacutesrdquo Com

esta conclusatildeo Paulo confirma uma concepccedilatildeo de Deus que natildeo poderia ser

ignorada ou seja a sua soberania sobre o mundo em contraposiccedilatildeo ao

pensamento estoico de um deus imanente

Kruse (2008 p106) observa que o contraste entre tesouro e vaso de barro tem o

propoacutesito de mostrar que o poder transcendente pertence a Deus e natildeo ao homem

Desse ponto de vista o exemplo pessoal colocado por Paulo fundamenta-se em um

propoacutesito de mostrar os dois lados de uma mesma moeda isto eacute a fragilidade do

homem e o poder de Deus como enunciado em forma paradoxal ldquoatribulados mas

natildeo angustiados perseguidos mas natildeo desamparados abatidos mas natildeo

destruiacutedosrdquo (vs 8 e 9) A partir dessa mesma convicccedilatildeo Paulo declara agrave igreja de

Filipos ldquoTudo posso naquele que me fortalecerdquo (Fil 413)

Na anaacutelise da segunda epiacutestola aos Coriacutentios Heyer chama atenccedilatildeo para o fato de

que Paulo usa o sintagma Cristo Jesus ou Jesus Cristo somente nos seis versos

iniciais do capiacutetulo quatro mencionado acima A partir do verso sete ele introduz a

metaacutefora tesouro em vaso de barro e nos versos seguintes a designaccedilatildeo Jesus e

natildeo Cristo Jesus ou Jesus Cristo290

Paulo contrariamente a seu costume natildeo fala de Cristo Jesus ou Jesus Cristo mas somente de Jesus e mais precisamente da ldquomorte de Jesusrdquo e da ldquovida de Jesusrdquo O apoacutestolo elegeu deliberadamente e com seguranccedila essas expressotildees Com isso opunha-se a certas mudanccedilas que estavam se produzindo na comunidade de Corinto e que o preocupavam Sob a influecircncia de certas concepccedilotildees gnoacutesticas alguns estavam criando uma imagem de Cristo fortemente espiritualizada e que carregava uma grande ecircnfase em sua glorificaccedilatildeo ateacute o ponto que a vida terrena de Jesus corria perigo de desaparecer ou de ser relegada ao uacuteltimo plano (HEYER 2008 p 153)

Com base nessa observaccedilatildeo de Heyer pode-se constatar que o exemplo pessoal

de Paulo na manifestaccedilatildeo de um ethos de fragilidade que aponta para a finitude que

cerca o ser humano atualiza a figura de Jesus em sua humanidade vulneraacutevel ao

290

No texto desta passagem em grego fica evidente no trecho citado a ausecircncia dos sintagmas Cristo Jesus ou Jesus Cristo frequentes na escrita de Paulo mas somente Jesus (ιησου) ldquoE assim noacutes que vivemos estamos sempre entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem na nossa carne mortalrdquo ( 2 Cor 411) αει γαρ ημεις οι ζωντες εις θανατον παραδιδομεθα δια ιησουν ινα και η ζωη του ιησου φανερωθη εν τη θνητη σαρκι ημων

237

sofrimento Esse fato eacute fundamental para estabelecimento do valor do sacrifiacutecio de

Jesus e que tambeacutem serve de exemplo para Paulo e seus colaboradores Eacute a partir

dessa perspectiva que a certeza da vitoacuteria de Jesus sobre a morte torna-se ponto de

referecircncia para fortalecimento da coragem parresiacutea e disposiccedilatildeo de seus

seguidores em enfrentar os perigos da morte O posicionamento discursivo na

escrita de Paulo remete a esse lugar que fundamenta seu proacuteprio exemplo e assim

ele toma Jesus como modelo exemplar e na sequecircncia de sua epiacutestola escreve aos

participantes da igreja de Corinto ldquoSede meus imitadores como eu mesmo sou de

Cristordquo (1Cor 111)

De acordo com a visatildeo de Thielman (2007 402) Paulo se firma na certeza de que

as marcas do sofrimento de Jesus estatildeo impressas na exterioridade de seu corpo

mas em seu interior estaacute firmada a garantia da recompensa de uma eternidade com

Ele Este eacute o significado da aplicaccedilatildeo retoacuterica da metaacutefora tesouro em analogia agrave

alma salva que seu fraacutegil corpo abriga Este tambeacutem eacute um dos contrapontos frente

aos estoicos em relaccedilatildeo agrave eternidade que mesmo concebendo a imortalidade da

alma natildeo fazem uma referecircncia consistente quanto ao seu destino

Em Paulo a parresiacutea como coragem no enfrentamento da morte eacute fortalecida pela

esperanccedila da ressurreiccedilatildeo Brakemeier (2008 101-218) aponta que Paulo insiste

em um ponto crucial da implantaccedilatildeo do cristianismo a ressurreiccedilatildeo de Jesus Tal

fato significou a garantia da continuidade do ministeacuterio do proacuteprio Jesus atraveacutes de

seus seguidores A certeza da realidade daquele Jesus vivo tornou-se como fonte

para o enfrentamento da vulnerabilidade do corpo que como vaso de barro volta a

terra mas pela ligaccedilatildeo com Jesus eacute certa a garantia da ressurreiccedilatildeo Este eacute o ponto

fundamental de identidade do cristianismo sem nenhum similar com nenhuma

corrente filosoacutefica ou religiosa que o antecedeu delimitando um distanciamento

entre cristianismo e estoicismo

Algumas observaccedilotildees de Penner e Stichele (2009 p 250-252) evidenciam que nos

primoacuterdios do cristianismo uma marca caracteriacutestica do uso da retoacuterica eacute a

evocaccedilatildeo de textos sagrados do Velho Testamento Desse modo textos

pertencentes agraves escrituras hebraicas podem servir de intertexto tanto nos livros dos

evangelhos quanto nas epiacutestolas Estes autores ainda destacam a forccedila dos

exemplos como fonte para exortaccedilatildeo Assim tanto os testemunhos quanto os

238

exemplos dos antigos funcionam como uma forma de reconfiguraccedilatildeo da parresia

para criar um efeito de estiacutemulo agrave coragem e determinaccedilatildeo

O exemplo em sua funccedilatildeo argumentativa serve de orientaccedilatildeo para uma forma

modelar a ser seguida Conclui-se que do mesmo modo como Secircneca apresenta em

seu discurso um exemplo histoacuterico a ser seguido e tambeacutem se coloca como exemplo

de suas proacuteprias convicccedilotildees diante de seu destinataacuterio Paulo tambeacutem lanccedila matildeo

deste mesmo recurso retoacuterico em suas argumentaccedilotildees Mesmo recorrendo ao

exemplo como argumento retoacuterico cada um desses autores eacute guiado pelo discurso

constituinte que funciona como direcionamento para a tomada de um

posicionamento discursivo na produccedilatildeo de suas epiacutestolas

No proacuteximo item as citaccedilotildees tambeacutem satildeo vistas como argumento retoacuterico mas seu

lugar na enunciaccedilatildeo tem um efeito discursivo distinto do exemplo Tambeacutem a

estrateacutegia argumentativa de integrar outra voz enunciante no proacuteprio discurso eacute

determinada pelo posicionamento que o enunciador assume em seu discurso

23 CITACcedilOtildeES E ENTRECRUZAMENTO DE DISCURSOS CONSTITUINTES

Eacute preciso temperar a leitura com a escrita e reciprocamente de modo que a composiccedilatildeo escrita decirc corpo agravequilo que a leitura recolheu Foucault (2010a p320)

291

As citaccedilotildees comparecem em determinados gecircneros do discurso de acordo com a

imagem que se constroacutei do leitor segundo Maingueneau o leitor modelo Macedo

(2012 p 40) em sua tese sobre este tema adverte que para se perceber a funccedilatildeo

de uma citaccedilatildeo eacute tambeacutem indispensaacutevel levar em conta o contexto em que ela estaacute

inserida Na verdade para quem cita eacute importante projetar no puacuteblico alvo a quem a

obra se dirige a proacutepria capacidade e habilidade de uso de fontes valorizadas como

no caso de Secircneca e de Paulo em suas epiacutestolas

Na colocaccedilatildeo de Maingueneau (1997 p 100) o responsaacutevel pela enunciaccedilatildeo na

qualidade de citante da voz que ressoa de um lugar de autoridade remete-se a um

locutor ausente que garante a validade da enunciaccedilatildeo Quem identifica a autoridade

291

Paraacutefrase de Foucault (2010a p320) com base na epiacutestola oitenta e quatro de Secircneca em seus conselhos sobre leitura e escrita [] ldquodevemos alternar ambas as atividades (leitura e escrita) equilibraacute-las para que a pena venha a dar forma agraves ideias coligidas das leituras (Ep 84 2)

239

da voz citada eacute a coletividade que compartilha certos enunciados fundadores de um

determinado posicionamento discursivo

Das muitas fontes que contribuem para essas concepccedilotildees de noccedilatildeo de citaccedilatildeo

destacam-se as que satildeo identificadas na composiccedilatildeo dos estudos de Bakhtin (2004)

O conceito de citaccedilatildeo apresentado por este autor pode ser considerado como

demonstraccedilatildeo de um iacutecone do entendimento do dialogismo na linguagem ldquoo

discurso citado eacute o discurso no discurso a enunciaccedilatildeo na enunciaccedilatildeo mas eacute ao

mesmo tempo um discurso sobre o discurso uma enunciaccedilatildeo sobre a enunciaccedilatildeordquo

(BAKHTIN 2004 p 144) De acordo com esta constataccedilatildeo este autor distingue as

duas tendecircncias mais evidentes em relaccedilatildeo ao discurso citado Por um lado pode

haver o destaque do discurso citado que congrega a forccedila de sua autonomia

definindo sua importacircncia e papel na cena enunciativa Por outro lado a voz do que

enuncia pode ser confundida com a voz do que eacute citado Em concordacircncia com esta

primeira tendecircncia Charaudeau (2008 p 240) acrescenta ainda que no modo

argumentativo do discurso a citaccedilatildeo ldquoconsiste em referir-se o mais fielmente

possiacutevel agraves emissotildees escritas ou orais de um outro locutor diferente daquele que

cita para produzir na argumentaccedilatildeo um efeito de autenticidaderdquo Por isso

Charaudeau (2008 p240) ainda ressalta que ldquoa citaccedilatildeo funciona como uma fonte de

verdade testemunho de um dizer de uma experiecircncia de um saberrdquo

O modo de citar apresenta certas nuances de acordo com o tipo de discurso ou

mesmo em detrimento de diferenciados posicionamentos que podem ser assumidos

na cena enunciativa Bakhtin (2004 p153) pondera que ldquoo discurso retoacuterico

diferentemente do discurso literaacuterio pela proacutepria natureza da sua orientaccedilatildeo natildeo eacute

tatildeo livre na sua maneira de tratar as palavras de outremrdquo No desenrolar de suas

consideraccedilotildees Bakhtin (2004 p153) aponta a importacircncia da comunicaccedilatildeo soacutecio-

verbal na transmissatildeo do discurso de outrem pois existe influecircncia das forccedilas

sociais na apreensatildeo do discurso292

Partindo desses princiacutepios que auxiliam na identificaccedilatildeo do fenocircmeno da citaccedilatildeo na

heterogeneidade da linguagem deve-se ressaltar tambeacutem que nesta perspectiva

haacute uma sustentaccedilatildeo da concepccedilatildeo do discurso como produto do interdiscurso

sendo este constituiacutedo pela relaccedilatildeo entre os discursos 292

Bakhtin (2004 p143) menciona a questatildeo da ausecircncia de atenccedilatildeo ao fenocircmeno do discurso citado tatildeo relevante na linguagem Assim ele procura dar uma orientaccedilatildeo socioloacutegica agrave sua proacutepria metodologia na observaccedilatildeo da transmissatildeo do discurso de outrem

240

A seguir atraveacutes da anaacutelise de textos de epiacutestolas de Secircneca e de Paulo que

contecircm citaccedilotildees de diferentes fontes procura-se observar como o discurso do outro

eacute assumido em seus proacuteprios discursos e que ressonacircncias essas vozes trazem

para a enunciaccedilatildeo Em suma que significados trazem para a enunciaccedilatildeo a

presenccedila do outro como uma voz que se manifesta com uma determinada

finalidade por parte do enunciador que articula sua proacutepria fala com a do outro Que

efeitos discursivos resultam do atravessamento de outros discursos constituintes em

que cada um tem a sua autonomia mas contribuem na promoccedilatildeo dos sentidos pelo

fenocircmeno de sua presenccedila em outro discurso como no caso dos discursos

religioso filosoacutefico e literaacuterio

231 Citaccedilotildees de maacuteximas e versos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Na abordagem de Aristoacuteteles em que ele concebe os entimemas e exemplos como

constituintes do corpo da retoacuterica a maacutexima pode ser vista como premissa ou

conclusatildeo de um entimema Isto implica dizer que quando eacute colocada uma

conclusatildeo em uma maacutexima esta se torna um entimema Aristoacuteteles fornece o

exemplo de duas maacuteximas ldquoNatildeo haacute homem que seja inteiramente felizrdquo ldquoNatildeo haacute

homem que seja livrerdquo Estas duas premissas satildeo maacuteximas mas se for

acrescentada a conclusatildeo ldquoporque o homem eacute escravo da riqueza ou da fortunardquo

entatildeo seraacute um entimemema (Ret II 1394b) Outro aspecto que Aristoacuteteles aborda

sobre o valor do uso da maacutexima eacute o seu caraacuteter eacutetico Desse modo as maacuteximas

revestem-se de uma funccedilatildeo de aplicaccedilatildeo moral no discurso (Ret II 1395b)

O termo maacutexima eacute uma traduccedilatildeo de gnome do grego (γνώμη) conforme a escrita de

Aristoacuteteles293 na obra Retoacuterica e tem sentido de declaraccedilatildeo opiniatildeo ou afirmaccedilatildeo

Na retoacuterica latina o termo gnome eacute traduzido como sententiae como informa

Quintiliano294 (Inst Or VIII 5 3) Martin Dinter (2015 p 52) observa que ldquoSententiae

satildeo tidas como pontos-alto de arte retoacuterica e vistas como o legado mais duradouro

do autor aleacutem disso satildeo extraiacuteveis e incorporaacuteveis em novos textos literaacuteriosrdquo Este

autor ainda acrescenta ldquoas sententiae ajudam a construir uma base eacutetica plausiacutevel

293

Segundo Martin Dinter (2015 p56) Aristoacuteteles em sua discussatildeo sobre o uso de gnome na Retoacuterica (2211395b) sugere que talvez haja relaccedilatildeo entre o caraacuteter moral do autor e a qualidade eacutetica de sua gnome 294

Antiquissimae sunt quae proprie quamvis omnibus idem nomen sit sententiae vocantur quas

Graeci gnomas appellant (Inst Or VIII 5 3) Ao referir-se ao uso de sententia Quintiliano observa

que as mais antigas satildeo aquelas que embora todas tenham o mesmo nome satildeo chamadas de sententiae as quais os gregos datildeo o nome de gnome

241

para a apresentaccedilatildeo da visatildeo do autorrdquo Martin Dinter (2014 p 323) em suas

pesquisas sobre o uso de sententiae nas trageacutedias de Secircneca identifica a

importacircncia de Secircneca o Velho na transmissatildeo da sua coletacircnea de sententiae

para os seus filhos A evidecircncia desse fato eacute notada no modo como Secircneca faz uso

recorrente de sententiae na sua obra poeacutetica e filosoacutefica

Na traduccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca Segurado e Campos opta por traduzir o termo

sententiae como maacuteximas estabelecendo um uso comum para as formas como

Secircneca aplica o termo em suas epiacutestolas O uso do termo maacuteximas tanto refere-se a

sententiae no latim como a gnome no grego Portanto na pesquisa aqui

desenvolvida fica mantido o termo maacuteximas como traduzido por Segurado e

Campos

Nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio destaca-se o uso frequente de citaccedilotildees de

maacuteximas Como estrateacutegia retoacuterica Secircneca defende tanto o uso de maacuteximas quanto

de versos Na epiacutestola noventa e quatro ele desenvolve alguns argumentos sobre a

importacircncia e papel da advertecircncia e dos preceitos e daacute as seguintes instruccedilotildees

[] preceitos ministrados podem ter por si soacute muita forccedila se vierem por exemplo sob forma meacutetrica ou mesmo em prosa sob forma de uma sentenccedila concisa Tal acontece por exemplo com as famosas maacuteximas de Catatildeo Natildeo compres o necessaacuterio mas apenas o imprescindiacutevel o que natildeo eacute necessaacuterio mesmo por um tostatildeo jaacute eacute caro ou entatildeo com as natildeo menos ceacutelebres sentenccedilas oraculares ou semelhantes aproveita o tempo conhece-te a ti mesmo [] Tais maacuteximas natildeo carecem de advogado atuam diretamente sobre as paixotildees a sua utilidade nasce do fato de elas exercerem a sua accedilatildeo por forccedila da sua natureza (Ep 94 27-28)

Essas orientaccedilotildees de Secircneca aparecem nesta epiacutestola noventa e quatro como

constataccedilatildeo de sua proacutepria praacutetica na organizaccedilatildeo retoacuterica de seu discurso Quando

Secircneca afirma que as maacuteximas atuam diretamente sobre as paixotildees ele coloca em

pauta as trecircs provas do discurso ethos pathos e logos Ao enfatizar a accedilatildeo do logos

direcionado ao pathos Secircneca tambeacutem admite a importacircncia e valor da atenccedilatildeo aos

interesses e gostos dos seus leitores

Logo no iniacutecio da compilaccedilatildeo de suas epiacutestolas Secircneca usa uma estrateacutegia

argumentativa em suas citaccedilotildees de maacuteximas Ele declara a Luciacutelio que vai oferecer

uma maacutexima como brinde no fechamento de suas epiacutestolas Pode ser verificado

que da epiacutestola dois ateacute a vinte e nove Secircneca cumpre rigorosamente sua

promessa

242

O que se pode observar nessa estrateacutegia de Secircneca eacute o interesse em alcanccedilar seu

destinataacuterio com ensinamentos de princiacutepios da filosofia estoica de acordo com

seus proacuteprios posicionamentos De fato em algumas de suas epiacutestolas ele discorda

em alguns pontos com representantes do estoicismo inclusive de Zenatildeo mas

reafirma repetidas vezes que eacute integrante da escola estoica295

Nota-se que a primeira maacutexima oferecida a Luciacutelio eacute de Epicuro acompanhada da

sugestatildeo do uso diaacuterio de uma maacutexima para meditaccedilatildeo

Eacute isso o que eu mesmo faccedilo de muita coisa que li retenho uma certa maacutexima A minha maacutexima de hoje encontrei-a em Epicuro (eacute um haacutebito percorrer os acampamentos alheios natildeo como desertor mas sim como batedor) Diz ele Eacute um bem desejaacutevel conservar a alegria em plena pobrezardquo E com razatildeo pois se haacute alegria natildeo pode haver pobreza natildeo eacute pobre quem tem pouco mas sim que deseja mais (Ep 25-6)

Ao evocar uma maacutexima oriunda de um autor de oposiccedilatildeo filosoacutefica aos estoicos

Secircneca prova que natildeo adota uma posiccedilatildeo radical em relaccedilatildeo aos epicuristas mas

tenta extrair de pensadores daquela escola o que eacute proveitoso para suas proacuteprias

concepccedilotildees filosoacuteficas Isto eacute o que ele mesmo afirma que ao penetrar em

acampamento alheio ele natildeo se porta como desertor mas como batedor Com essa

afirmativa metafoacuterica ele anuncia que natildeo eacute um desistente do estoicismo mas um

usufruidor do epicurismo

Esta maacutexima que Secircneca aproveita de Epicuro tem como finalidade a confirmaccedilatildeo

de sua proacutepria posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao toacutepos que aborda pobreza riqueza Este

fato eacute identificado atraveacutes da construccedilatildeo de outra maacutexima que Secircneca superpotildee agrave

de Epicuro ldquonatildeo eacute pobre quem tem pouco mas sim quem deseja maisrdquo (Ep 26)

Outro assunto que Secircneca desenvolve apoiado em citaccedilotildees de maacuteximas eacute o tema

da morte As maacuteximas de Epicuro fornecem material para Secircneca discutir com

Luciacutelio sobre a preparaccedilatildeo para o enfrentamento da morte Esta eacute uma estrateacutegia

significativa porque ele parte do epicurismo para desenvolver suas concepccedilotildees de

princiacutepios estoicos Secircneca justifica-se diante de Luciacutelio quanto agraves suas escolhas

apontando que as maacuteximas de Epicuro pertencem a todos Para explicar sua opccedilatildeo

Secircneca faz a seguinte analogia ldquoEm mateacuteria de filosofia entendo que se pode

295

A respeito de certas divergecircncias pontuais entre integrantes da escola estoica Gazolla (1999 17) faz o seguinte comentaacuterio ldquoApesar de algumas diferenccedilas profundas de pensamento entre certos filoacutesofos estoicos satildeo todos eles partiacutecipes da escola estoica como se ela fosse um todo harmonioso que persistiu por quase quinhentos anos Como no caso de Secircneca teorizando e vivenciando os princiacutepios da stoa por vezes modifica-os em funccedilatildeo exatamente de sua proacutepria experiecircncia de vidardquo

243

proceder como no senado se algueacutem faz uma proposta que apenas me agrada em

parte mando-o dividi-la em aliacuteneas e dou o meu voto agrave aliacutenea que aprovordquo (Ep 21

9) Secircneca cita algumas maacuteximas de Epicuro para delas retirar o que eacute proveitoso

para a filosofia estoica

Ao chegar quase no final da seacuterie de epiacutestolas em que Secircneca oferece um brinde a

Luciacutelio com a oferta de maacuteximas fazendo um comentaacuterio bem metafoacuterico e

humorado com base em uma cena de transaccedilatildeo de negoacutecios decerto familiar no

setor econocircmico em que ambos participavam

Jaacute estava a terminar jaacute a minha matildeo se aprontava para a foacutermula final devo no entanto contar as moedas e dar a esta carta o seu viaacutetico Mesmo que eu natildeo diga a quem vou pedir o dinheiro emprestado tu jaacute calculaste a que cofre vou bater Mas espera por mim mais um pouco e eu passarei a pagar-te do meu proacuteprio bolso Entretanto o banqueiro seraacute Epicuro o qual nos aconselha a ldquomeditar na morterdquo ou a ldquoatribuir a maior importacircncia agrave aprendizagem da morterdquo (Ep 268)

Secircneca expotildee que Epicuro nos aconselha a ldquomeditar na morterdquo Este toacutepos eacute comum

agraves duas escolas mesmo tendo aplicaccedilotildees divergentes As reflexotildees sobre a morte

satildeo constantes na maior parte das epiacutestolas de Secircneca firmemente apoiando-se na

seleccedilatildeo de citaccedilotildees de maacuteximas na evoluccedilatildeo de suas argumentaccedilotildees

Aleacutem do recurso retoacuterico da citaccedilatildeo Secircneca coloca na cena enunciativa a presenccedila

do representante da escola filosoacutefica rival Com uma taacutetica persuasiva excepcional

ele procura convencer Luciacutelio a aceitar os princiacutepios da filosofia estoica valendo-se

do proacuteprio epicurismo como ponto de partida Quando Secircneca chega ao final do

cumprimento de sua proposta das ofertas de maacuteximas ele faz algumas

observaccedilotildees

Se natildeo fosses muito rigoroso bem poderias isentar-me do uacuteltimo pagamento mas natildeo vou ser mesquinho agora que a diacutevida estaacute no fim Aiacute tens o que devo ldquoNunca pretendi agradar ao vulgo daquilo que eu sei o vulgo natildeo gosta daquilo que o vulgo gosta natildeo quero eu saberrdquo Quem eacute o autor Pareces pensar que eu ignoro que pessoa eacute o meu disciacutepulo Eacute Epicuro mas o mesmo te diratildeo os mestres de todas as outras escolas peripateacuteticos acadecircmicos estoicos ciacutenicos (Ep 2910-11)

Segurado e Campos (1991 p XV) identifica que uma das caracteriacutesticas da diatribe

eacute ldquoo chamado locutor fictiacuteciordquo em que o autor imagina que sua afirmaccedilatildeo eacute

contestada pelo interlocutor passando a discutir com ele como se estivesse lendo

seus pensamentos Secircneca usa esse recurso como se estivesse em frente a Luciacutelio

ouvindo sua reaccedilatildeo em resposta agrave citaccedilatildeo da maacutexima Secircneca coloca suas palavras

na boca de Luciacutelio quem eacute o autor E o proacuteprio Secircneca exclama ldquoPareces pensar

244

que eu ignoro que pessoa eacute o meu disciacutepulordquo Nota-se a influecircncia dos ciacutenicos em

relaccedilatildeo ao uso da diatribe tanto no estilo da composiccedilatildeo de partes do discurso

quanto na indicaccedilatildeo dos exemplos a ser imitados e na citaccedilatildeo de maacuteximas que tecircm

a moral como pano de fundo

Em epiacutestolas anteriores Secircneca usou diferentes justificativas para suas citaccedilotildees de

maacuteximas de Epicuro alegando que ldquoqualquer boa maacutexima seja qual for o autor eacute

minha propriedaderdquo (quidquid bene dictum est ab ullo meum est) (Ep 167) No

fechamento do bloco de vinte oito epiacutestolas em que ele usou deliberadamente

maacuteximas de Epicuro eacute colocada a questatildeo da autoria Para ele depois que o

discurso eacute divulgado passa a ser de domiacutenio puacuteblico Isto eacute confirmado em sua

posiccedilatildeo quando se refere agraves demais escolas A esse respeito em nota da traduccedilatildeo

da epiacutestola trinta e um Segurado e Campos faz as seguintes alegaccedilotildees

Ao contraacuterio do que sucedia nas cartas precedentes Secircneca deixa a partir de agora de encerrar as suas epiacutestolas com a citaccedilatildeo de uma maacutexima de Epicuro Fecirc-lo a princiacutepio na convicccedilatildeo de que lhe seria mais faacutecil converter Luciacutelio ao estoicismo se comeccedilasse por alimentar a meditaccedilatildeo com pensamentos epicuristas embora interpretados em sentido estoico De aqui em diante contudo Secircneca toma a conversatildeo do amigo como um dado adquirido pelo que se considera desobrigado de recorrer agrave seara alheia (SEGURADO E CAMPOS 1991 p 116)

Secircneca trata seu destinataacuterio como disciacutepulo e eacute a partir dessa perspectiva que ele

se posiciona na enunciaccedilatildeo ou seja o enunciador mestre que se dirige ao co-

enunciador disciacutepulo No objetivo de alcanccedilar seu destinataacuterio Secircneca invoca a

citaccedilatildeo de maacuteximas como um depoacutesito em um lugar comum para dar sequecircncia agraves

formulaccedilotildees de seus postulados estoicos que satildeo desenvolvidos ao longo da

coletacircnea de suas epiacutestolas

Outra estrateacutegia retoacuterica assumida por Secircneca eacute a taacutetica do uso de versos Como

reforccedilo para a exposiccedilatildeo de princiacutepios da filosofia estoica ele lanccedila matildeo da citaccedilatildeo

de versos de diferentes poetas mas com evidente destaque para Vergiacutelio Como

pode ser observado os discursos constituintes filosoacutefico e literaacuterio formam um

conjunto na construccedilatildeo da cena enunciativa promovendo um intercacircmbio entre

filosofia e literatura isto eacute trazendo para o discurso filosoacutefico determinados textos da

escrita poeacutetica sendo um fortalecido pelo outro Por um lado as citaccedilotildees de

Vergiacutelio na finalizaccedilatildeo de argumentos de Secircneca satildeo recorrentes e comparecem

como uma forccedila que complementa tanto os efeitos persuasivos dos exemplos

245

histoacutericos quanto os pessoais Por outro lado as citaccedilotildees dos versos se

assemelham agraves maacuteximas que habitam um lugar comum

Na continuidade do uso de citaccedilotildees de versos o prestiacutegio da voz de Vergiacutelio

contribui para reforccedilar a noccedilatildeo da existecircncia do divino para os estoicos Secircneca

coloca diante de Luciacutelio algumas concepccedilotildees de deus procurando convencecirc-lo

mediante variadas descriccedilotildees da natureza que vatildeo formando imagens na mente do

leitor e diferentes cenaacuterios Secircneca argumenta ldquoEacute verdade Luciacutelio dentro de noacutes

reside um espiacuterito divino que observa e rege os nossos atosrdquo (Ep 422) Secircneca

coloca Vergiacutelio em cena para apoiar e dar sequecircncia agrave sua ideia ldquoqual seja o deus

ignora-se mas existe um deus296 (Ep 412) A introduccedilatildeo da opiniatildeo de Vergiacutelio

nesse ponto da enunciaccedilatildeo produz um efeito de heterogeneidade na linguagem

atualizando e agregando o seu dito ao de Secircneca Nessa situaccedilatildeo enunciativa eacute

introduzido o discurso religioso em seu sentido abrangente dando ao discurso a

caracteriacutestica de uma visatildeo contemplativa do mundo Com base nesse

posicionamento na epiacutestola noventa Secircneca desenvolve alguns postulados para

definir filosofia e faz o seguinte comentaacuterio ldquoa uacutenica tarefa da filosofia eacute descobrir a

verdade acerca das coisas divinas e humanas nunca estatildeo agrave margem dela a

religiatildeo a piedade a justiccedila e todo o conjunto de virtudesrdquo (Ep 903) Por intermeacutedio

desse comentaacuterio Secircneca indica que pelo proacuteprio caraacuteter de sua finalidade o

discurso filosoacutefico eacute atravessado pelo discurso religioso

Eacute possiacutevel perceber que o discurso literaacuterio em Vergiacutelio eacute tambeacutem atravessado pelo

discurso religioso e introduzido no contexto do discurso filosoacutefico desenvolvido por

Secircneca Por meio das citaccedilotildees o enunciador intensifica seu posicionamento no

discurso no processo de adesatildeo a uma voz que contribui para os efeitos de

sentidos almejados permitindo a inter-relaccedilatildeo entre os trecircs discursos constituintes

filosoacutefico literaacuterio e religioso

Servindo como fonte na busca de uma cena validada e valorizada na memoacuteria do

leitor a voz que Secircneca invoca para fortalecer seu argumento eacute novamente a de

Vergiacutelio ldquoNatildeo esperes alterar com preces o destino fixado pelos deusesrdquo (Ep

7712)297 Vergiacutelio comparece ao ato enunciativo como autoridade para corroborar a

ideia de que o destino eacute ldquofixado pelos deusesrdquo Secircneca complementa a ideia do

296

[quis deus incertum est] habitat deus ( Ep 412) Citaccedilatildeo de Vergiacutelio (AenVIII 352) 297

Desine fata deum flecti sperare precando (Aen VI 376)

246

verso de Vergiacutelio ponderando ldquoque os destinos estatildeo determinados uma vez por

todas e prosseguem a sua marcha em obediecircncia agrave lei eterna do universordquo (Ep

7712)

Os postulados estoicos sobre o destino satildeo interligados ao tema que trata das

instruccedilotildees filosoacuteficas para o enfrentamento da morte Secircneca argumenta sobre a

dificuldade que o ser humano tem ao deparar-se com a realidade da certeza da

finitude da vida Ele acrescenta mais uma reflexatildeo com base na realidade do medo

da morte trazendo para sua enunciaccedilatildeo uma citaccedilatildeo extraiacuteda da ficccedilatildeo remontando

tambeacutem a Vergiacutelio

O gigantesco porteiro do Orco estendido no antro sangrento sobre ossadas meio roiacutedas assusta com seu ladrar incessante as almas exangues (Ep 8216)

298

Secircneca pondera que para os conhecedores desses versos por mais que saibam

que se trata de uma ficccedilatildeo essa leitura desperta tanto o receio comum da existecircncia

do inferno quanto da inexistecircncia de qualquer lugar Com esta citaccedilatildeo ele tambeacutem

reflete sobre as pressotildees fantasiosas que recaem sobre os indiviacuteduos aguccedilando o

medo do enfrentamento da morte Nesse ponto do raciociacutenio Secircneca procura

defender que mediante situaccedilotildees negativas que se interpotildeem diante do indiviacuteduo a

respeito da morte a coragem perante esta situaccedilatildeo eacute uma fonte de gloacuteria Para que

o indiviacuteduo seja elevado ao patamar da virtude eacute necessaacuterio que se conscientize do

valor de encarar a morte natildeo como um mal mas de forma indiferente Como reforccedilo

argumentativo eacute trazida a voz de Vergiacutelio atraveacutes de seus versos como uma visatildeo

positiva e de incentivo

Natildeo cedas agrave desgraccedila antes avanccedila mais audaz ainda do que a proacutepria fortuna te permite (Ep 8218)

299

298

ingens ianitor Orci ossa super recubans antro semesa cruento aeternum latrans exsangues terreat umbras Conforme nota de Segurado (1991 p 365 nota 11) Secircneca fez junccedilatildeo de versos da Aeneida de Vergiacutelio dos livros VI 4001 e VIII 2967) 299

Tu ne cede malis sed contra audentior ito quam tua te fortuna sinet (Aen VI 956) Os textos colocados em caixas satildeo os que tecircm no maacuteximo trecircs linhas e funcionam como destaque na anaacutelise

247

Na sequecircncia de sua escrita Secircneca continua abordando certos aspectos desse

encontro entre discurso filosoacutefico e religioso formulando alguns princiacutepios a respeito

do ato de culto ponderando que o fundamental eacute acreditar nos deuses e reconhecer

neles a majestade Para ele eacute necessaacuterio admitir que os deuses presidem o

universo e governam tudo sendo cuidadores da seguranccedila da humanidade no

sentido global e natildeo necessariamente individual300 Em outras epiacutestolas Secircneca

tambeacutem aborda esse postulado estoico sobre a providecircncia ldquoTodo o universo

permanece natildeo porque seja eterno mas porque estaacute sob a guarda de um ser que o

regerdquo [] e Secircneca ainda acrecenta ldquoeacute o obreiro do universo que o conserva

dominando pelo seu poder a fragilidade da mateacuteriardquo (Ep 5828)

Em alguns momentos Secircneca parece situar-se entre os conceitos monoteiacutesta e

politeiacutesta de deus sendo esta uma heranccedila jaacute estabelecida no periacuteodo Heleniacutestico

com uma influecircncia determinante nas concepccedilotildees filosoacuteficas sobre a accedilatildeo e funccedilatildeo

dos deuses Segundo a exposiccedilatildeo de Algra (2003 p 165) o pensamento estoico

sobre questotildees referentes agrave natureza de deus ou deuses eacute complexa

caracterizando-se por uma mistura entre teiacutesmo panteiacutesmo e politeiacutesmo Algra

(2013 p 195)301 desenvolve o tema sobre cosmologia e teologia no estoicismo e

finaliza ldquoparece que os estoicos da era imperial e os estoicos em geral haviam

adotado uma espeacutecie de abordagem de duplo niacutevel em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo religiosardquo

Com o auxiacutelio de maacuteximas e versos Secircneca faz cruzar em sua enunciaccedilatildeo os

discursos constituintes filosoacutefico religioso e literaacuterio Mesmo estes discursos sendo

independentes com caracteriacutesticas de autosustentaccedilatildeo percebe-se que um

discurso fornece credibilidade ao outro formando assim uma rede de relaccedilotildees entre

diferentes discursos que se associam na produccedilatildeo da discursividade

Paulo tambeacutem usa a argumentaccedilatildeo retoacuterica da citaccedilatildeo Em Secircneca as citaccedilotildees se

fortalecem com base no discurso literaacuterio que fazem parte de sua formaccedilatildeo e estatildeo

registradas na memoacuteria Em Paulo predominam as citaccedilotildees oriundas dos textos da

religiatildeo hebraica que ele tambeacutem cita em algumas partes e em outras faz alusatildeo

300

Esta eacute uma abordagem da teoria de deus imanente para os estoicos e que se conjuga com o conceito de providecircncia 301

Algra (2013 195) observa que na epiacutestola 95 47-50 Secircneca avalia o comportamento ritual de vaacuterias religiotildees inclusive a guarda sabaacutetica dos judeus afirmando que o modo correto de adorar um deus eacute conhececirc-lo e imitaacute-lo

248

232 Citaccedilotildees de Paulo nas epiacutestolas aos Coriacutentios

Segundo Berger (2004 261) ldquoquando um texto biacuteblico eacute citado isso natildeo ocorre para

honrar o texto passado mas para articular e formular com ele aquilo que estaacute

acontecendo na nova situaccedilatildeordquo Nesse caso o texto citado eacute usado como aplicaccedilatildeo

Ainda um fato que se pode acrescentar a esse fenocircmeno da citaccedilatildeo eacute que ao trazer

para a enunciaccedilatildeo um dito jaacute familiar contribui-se para que o discurso atualize a

citaccedilatildeo tornando puacuteblica a anterioridade de um jaacute-dito identificaacutevel Outro fator que

contribui para o valor do recurso da citaccedilatildeo eacute a identificaccedilatildeo de analogias entre o

discurso presentificado com o texto citado e atualizado em novo contexto textual por

meio dos efeitos da intertextualidade

Maingueneau (1997) atesta que um discurso eacute constituiacutedo no interior do

interdiscurso isto eacute outros discursos formam uma camada de sustentaccedilatildeo para a

formaccedilatildeo de um novo discurso Desse mesmo modo Maingueneau (2007 p 120)

afirma que ao se fazer referecircncia agrave constitutividade do interdiscurso significa dizer

que ldquoum discurso nasce de um trabalho sobre outros discursosrdquo Vale lembrar que eacute

nessa perspectiva que Maingueneau (1997 p 75) desenvolve uma abordagem

sobre a heterogeneidade dos discursos com base na verificaccedilatildeo de que na

enunciaccedilatildeo a heterogeneidade pode ser mostrada quando sua manifestaccedilatildeo eacute

expliacutecita sob variadas formas No caso de ausecircncia de visibilidade da

heterogeneidade esta eacute considerada constitutiva por operar no plano do

interdiscurso

Este enfoque concernente agrave heterogeneidade do discurso eacute proposital no sentido de

estabelecer uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica da Anaacutelise do Discurso de base

enunciativa para concordar com Heil (2005) em sua anaacutelise da constituiccedilatildeo retoacuterica

na primeira epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Este autor observa que esta epiacutestolaa

de Paulo eacute toda construiacuteda com referecircncias ao Velho Testamento Heil faz um

levantamento minucioso para situar tais referecircncias que natildeo satildeo visiacuteveis no texto

mas satildeo identificaacuteveis para os que tecircm conhecimento do Velho Testamento Essa

verificaccedilatildeo de Heil eacute uacutetil para justificar que nas duas epiacutestolas aos Coriacutentios haacute

incidecircncia de poucas citaccedilotildees em forma de intertexto como entendidas pelo sentido

de heterogeneidade mostrada Mesmo citando algumas passagens Paulo natildeo

aponta referecircncias apenas oferece algumas indicaccedilotildees como por exemplo ldquona lei

249

de Moiseacutes estaacute escritordquo A localizaccedilatildeo do texto citado fica a cargo do leitor

presumidamente capaz para tal

Pois na lei de Moiseacutes estaacute escrito Natildeo ataraacutes a boca do boi quando debulha Porventura estaacute Deus cuidando dos bois (1Cor 99)

Paulo recorre a uma citaccedilatildeo de um versiacuteculo contido na lei de Moiseacutes302 que pode

ser localizado em Deuteronocircmio 245 fazendo uma aplicaccedilatildeo metafoacuterica ao que ele

estaacute requerendo em sua epiacutestola No contexto desta citaccedilatildeo por um lado Paulo

argumenta sobre o direito de ser sustentado como obreiro por outro lado ele

assume sua proacutepria liberdade de abrir matildeo desse direito

Ciampa e Rosner (2014 896) relatam que essa citaccedilatildeo usada por Paulo era

recorrente em textos judaicos Fiacutelon de Alexandria usa essa mesma citaccedilatildeo no

contexto de seu tratado sobre virtude303 aplicando o princiacutepio de humanidade tanto

aos homens como aos animais Imagina um boi debulhando em trabalho aacuterduo

com a boca atada para natildeo comer nenhum gratildeo (On the virtue XXV 125-126)

Josefo em Histoacuteria dos Hebreus (IV 8 171) interliga a ideia de natildeo restriccedilatildeo do

acesso ao gratildeo com a aplicaccedilatildeo da lei da respiga ou seja a permissatildeo para algueacutem

alimentar-se do fruto que restou da colheita304

A primeira epiacutestola a Timoacuteteo tambeacutem registra esta citaccedilatildeo com um acreacutescimo que

pode ser entendido como forma de interpretaccedilatildeo de 1Coriacutentios 9 9 ldquoPorque diz a

Escritura Natildeo ataraacutes a boca ao boi quando debulha Digno eacute o trabalhador do seu

salaacuteriordquo305 (1Tim 518)306 Ao recorrer agrave citaccedilatildeo dessa parte das leis de Moiseacutes

Paulo usa a forccedila desse lugar comum como cena validada na memoacuteria dos leitores

para apresentar aos seus destinataacuterios uma base legal dos direitos de quem presta

algum serviccedilo Ele proacuteprio se coloca nessa posiccedilatildeo de trabalhador a serviccedilo da

igreja de Corinto mas isenta aquela comunidade do dever de sustentaacute-lo

Efetivamente este eacute um posicionamento paradoxal em termos do exerciacutecio da

liberdade pois eacute por causa desta que o proacuteprio Paulo se coloca como servo

302

Natildeo ataraacutes a boca ao boi quando estiver debulhando (Deut 254) 303

O tratado sobre vitrtude de Philon of Alexandria estaacute inserido na obra The works of Philo (1993) 304

Esse costume entre os hebreus eacute registrado tambeacutem no livro de Rute no Velho Testamento na histoacuteria de como Rute usou do direito da lei da respiga colhendo trigo nos campos de Boaacutes como fonte de seu sustento e o de sua sogra 305

Tanto em Mateus 1010 como em Lucas 107 aparece o dito de Jesus ldquoDigno eacute o trabalhador de seu salaacuteriordquo 306

Natildeo se sabe ao certo de quem eacute a autoria da carta de 1 Timoacuteteo mas eacute significativo o fato de a mesma citaccedilatildeo de Deuteronocircmio 254 ter sido usada em um contexto semelhante ao de 1 Coriacutentios 99

250

No final da citaccedilatildeo Paulo formula uma indagaccedilatildeo como recurso retoacuterico

ldquoPorventura estaacute Deus cuidando dos boisrdquo De acordo com a interpretaccedilatildeo de Stern

(2008 p500) esta interrogaccedilatildeo de Paulo se firma na base do cuidado de Deus

Como pano de fundo dessa premissa ergue-se outra voz na interdiscursividade da

enunciaccedilatildeo O dito de Jesus ecoa no fundo da interrogaccedilatildeo de Paulo ldquoPois se Deus

assim veste a erva do campo natildeo vestiraacute muito mais a voacutes (Mat 630) Este eacute um

efeito do cruzamento de imagens que metaforicamente contribuem para fazer

entrelaccedilar os discursos sendo um fenocircmeno que integra a herogeneidade

constitutiva do discurso A imagem do boi na citaccedilatildeo de origem eacute transferida para a

da erva do campo como ser vivo na natureza que depende do cuidado de Deus

Com esses sentidos extraiacutedos das camadas mais profundas do discurso Paulo

declara aos seus destinataacuterios que confia em um Deus que cuida e sustenta Nessa

interdiscursividade do ato enunciativo estaacute subentendida a noccedilatildeo de providecircncia

divina de um Deus transcendente que cuida pessoalmente de cada indiviacuteduo A

confianccedila de Paulo com base nessa certeza contribui para o seu estado de

liberdade e independecircncia em relaccedilatildeo ao compromisso de sustento por parte da

igreja de Corinto

Ainda na primeira epiacutestola aos Coriacutentios Paulo trata de questotildees concernentes agrave

idolatria em especial sobre os alimentos oferecidos aos deuses como forma de

sacrifiacutecio De maneira mais direta no capiacutetulo dez Paulo fornece algumas

instruccedilotildees a respeito desses problemas suscitados Paulo orienta os participantes da

igreja de Corinto apontando para uma questatildeo central o foco daquela situaccedilatildeo

estaria voltado em especial para o alimento oferecido aos deuses ou para a atitude

de quem ingeria o alimento como participante da oferta do sacrifiacutecio Ele situa seu

aconselhamento com a seguinte premissa ldquoTodas as coisas me satildeo liacutecitas mas

nem todas as coisas convecircmrdquo (1Cor1023) Por meio da heterogeneidade

constitutiva do discurso percebe-se uma harmonia com o que Platatildeo transmite na

obra a A Repuacuteblica (X 604c)307 quando expotildee ldquopor natildeo haver modo de sabermos o

que haacute de bom ou de mau em tais ocorrecircnciasrdquo Esta afirmativa pode servir de base

para a argumentaccedilatildeo de Paulo

307

No contexto de sua fala sobre a lei e a razatildeo na obra A Repuacuteblica X 604c Platatildeo assim expotildee ldquoA lei diz que natildeo haacute nada mais belo do que conservar-se sereno o homem na adversidade e natildeo revoltar-se por natildeo haver modo de sabermos o que haacute de bom ou de mau em tais ocorrecircncias natildeo advindo da impaciecircncia nenhuma vantagem e tambeacutem por carecerem de maior importacircncia os assuntos humanosrdquo

251

Novamente Paulo coloca em pauta a questatildeo da liberdade com responsabilidade

Diante daquele contexto ele aconselha agravequela comunidade agir com prudecircncia sem

supersticcedilatildeo em relaccedilatildeo ao consumo das carnes vendidas nos accedilougues Para

fortalecer sua argumentaccedilatildeo na proacutepria sequecircncia linear de seu discurso Paulo

resgata do Velho Testamento no livro de Salmos 241 (231 na Septuaginta) a

citaccedilatildeo que complementa o significado de seus ensinamentos

Pois a terra eacute do Senhor e toda a sua plenitude (1Cor 1026)308

Esta citaccedilatildeo eacute integrada ao dito anterior como pode ser verificado ldquoComei de tudo

quanto se vende no mercado nada perguntando por causa da consciecircncia Pois do

Senhor eacute a terra e a sua plenituderdquo (1Cor102526) A citaccedilatildeo de Salmos 241

funciona exatamente como uma explicaccedilatildeo argumentativa para conscientizar os

destinataacuterios da missiva quanto ao valor do poder da soberania de Deus sobre todas

as coisas

De acordo com informaccedilotildees de Ciampa e Rosner (2014 p 908) o texto ldquoDo Senhor

eacute a terra e a sua plenitude o mundo e aqueles que nele habitamrdquo (Salmos 241)

costuma ser citado na literatura rabiacutenica para ensinar o dever da gratidatildeo a Deus

pelo alimento Com base nessa crenccedila ensina-se a observacircncia do ritual dessa

praacutetica antes da ingestatildeo de qualquer porccedilatildeo diaacuteria o ato de agradecer e abenccediloar

o alimento Possivelmente eacute com base nesse costume da cultura hebraica que

Paulo introduz essa citaccedilatildeo Entatildeo a aplicaccedilatildeo da citaccedilatildeo inserida no contexto dos

ensinos de Paulo tem a funccedilatildeo retoacuterica de persuasatildeo quanto agrave soberania de Deus

inclusive sobre alimentos dedicados a outros deuses como sacrifiacutecio309 Na

perspectiva da importacircncia da forccedila da autoridade na citaccedilatildeo Perelman e Olbrechts-

Tyteca (2005 p 351) afirmam [] ldquoquanto mais importante eacute a autoridade mais

indiscutiacuteveis parecem suas palavras No limite a autoridade divina sobrepuja todos

os obstaacuteculos que a razatildeo poderia opor-lherdquo

308

του γαρ κυριου η γη και το πληρωμα αυτης (προς κορινθίους α 1026) A citaccedilatildeo de Paulo eacute idecircntica ao texto Salmos 231 na Septuaginta Τοῦ κυρίου ἡ γῆ καὶ τὸ πλήρωmicroα αὐτῆς (Ψαλmicroὸς 231) sendo a uacutenica diferenccedila o uso da conjunccedilatildeo explicativa pois (γαρ) que liga a citaccedilatildeo com a ideia anterior 309

Sobre o ritual do sacrifiacutecio na Antiguidade Veyne (2009 p178) faz o seguinte relato ldquoEm um texto grego ou latino o termo sacrifiacutecio sempre implica festim pois todo sacrifiacutecio era seguido de uma refeiccedilatildeo em que se comia a viacutetima imolada depois de cozecirc-la no altar Assim aos assistentes era reservado o consumo da carne da viacutetima e aos deuses a fumaccedila do holocausto Quando o sacrifiacutecio era realizado no templo o serviccedilo dos sacerdotes era pago com uma parte da carne do animal sacrificado Os administradores das financcedilas obtinham os proventos vendendo essas carnes aos accedilougueirosrdquo

252

Veyne (2007 p 25) comenta que ldquoa originalidade do cristianismo natildeo eacute o seu

pretenso monoteiacutesmo mas o gigantismo do seu Deus criador do ceacuteu e da terra

gigantismo estranho aos deuses pagatildeos e herdado do Deus biacuteblicordquo Esta afirmaccedilatildeo

de Veyne pode ser aplicada aos significados mais profundos dos conselhos de

Paulo a respeito dos questionamentos suscitados pela igreja de Corinto em relaccedilatildeo

aos alimentos ofertados aos iacutedolos310

Paulo parte do princiacutepio de liberdade para aplicaacute-lo aos seus conselhos na

sequecircncia de seu discurso A citaccedilatildeo mencionada por ele serve de base para

mostrar que o alimento dedicado aos deuses natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo em sua

constituiccedilatildeo e funccedilatildeo pois a essecircncia dos sentidos estaacute na atitude de quem pratica

o ato da oferta Poreacutem Paulo alerta a igreja de Corinto quanto ao cuidado de se

pensar no outro como demonstraccedilatildeo de amor ao proacuteximo Se o comportamento de

algueacutem na aquisiccedilatildeo do alimento supostamente dedicado aos iacutedolos escandaliza

seu semelhante eacute melhor que natildeo coma Este eacute o ponto fundamental da

argumentaccedilatildeo de Paulo a sabedoria e discernimento no uso da liberdade

Ao selecionar esta citaccedilatildeo ldquoA terra eacute do Senhor e toda a sua plenituderdquo Paulo

integra ao seu discurso o conceito de Deus criador e sustentador pois tudo a Ele

pertence como entendido na cultura judaica Ele eacute soberano e governa sobre todas

as coisas concedendo tambeacutem o alimento como becircnccedilatildeo diaacuteria Eacute nessa direccedilatildeo que

se desenvolve a ideia da providecircncia divina na cultura judaico-cristatilde Por meio do

uso retoacuterico da citaccedilatildeo a cena da gratidatildeo do alimento validada na memoacuteria de

seus leitores eacute suscitada para enfatizar a singularidade da soberania de Deus

frente a qualquer outro deus O fato de natildeo se consumir o alimento em questatildeo se

deve simplesmente ao respeito e consideraccedilatildeo ao proacuteximo para natildeo o afetar em

suas convicccedilotildees

310 Segundo Frangiotti (2006 p 21) a questatildeo da recusa do consumo de carnes oferecidas aos iacutedolos por parte dos primeiros cristatildeos tornou-se um ponto alvo na perseguiccedilatildeo no seacuteculo II d C A queda da venda de carnes tornou-se um motivo de denuacutencias Nesse periacuteodo mencionado Pliacutenio era cocircnsul da Bitiacutenia e naquela regiatildeo havia uma grande concentraccedilatildeo de cristatildeos Pliacutenio escreve uma epiacutestola ao imperador Trajano (Pliacutenio Ep ad Trajanem X 96-97) para comunicaccedilatildeo dos acontecimentos e tambeacutem solicitaccedilatildeo de orientaccedilatildeo de como agir em relaccedilatildeo agraves denuacutencias relacionadas aos participantes daquela seita No trecho final da epiacutestola ele menciona a questatildeo do

retorno do comeacutercio das viacutetimas para o sacrifiacutecio ldquoEssa supersticcedilatildeo contagiou natildeo apenas as cidades mas as aldeias e ateacute as estacircncias rurais Contudo o mal ainda pode ser contido e vencido Sem duacutevida os templos que estavam quase desertos satildeo novamente frequentados os ritos sagrados haacute muito negligenciados celebram-se de novo onde recentemente quase natildeo havia comprador se fornecem viacutetimas para sacrifiacutecios Esses indiacutecios permitem esperar que dando-lhes oportunidade de se retratar legiotildees de homens sejam suscetiacuteveis de emendardquo (FRANGIOTTI 2006 p 21)

253

Um fenocircmeno linguiacutestico que pode ser observado nos textos biacuteblicos eacute a

constituiccedilatildeo da heterogeneidade no discurso A esse respeito Jerocircnimo faz as

seguintes alegaccedilotildees

De fato quem poderia desconhecer que tambeacutem nos volumes de Moiseacutes e dos profetas haacute elementos tomados aos livros dos gentios e que Salomatildeo propocircs aos filoacutesofos de Tiro algumas questotildees e lhes deu respostas a outras Por isso no exoacuterdio dos Proveacuterbios aconselha-nos a compreender as expressotildees da prudecircncia e os artifiacutecios das palavras as paraacutebolas e a linguagem misteriosa as maacuteximas dos saacutebios e os enigmas que satildeo proacuteprios dos dialeacuteticos e dos filoacutesofos (JEROcircNIMO Ep LXX 2)

311

A heterogeneidade mostrada eacute tambeacutem integrante do discurso de Paulo atraveacutes da

estrateacutegia do recurso de citaccedilatildeo de maacutexima semelhante ao modo da menccedilatildeo das

escrituras sagradas sem indicar a fonte Heil (2008 p 226) constata que assim

como Paulo natildeo faz referecircncias agraves suas citaccedilotildees do Velho Testamento tambeacutem o

uso da maacutexima proverbial segue essa mesma praacutetica Este autor destaca que a

forccedila retoacuterica dessas citaccedilotildees natildeo estaacute no reconhecimento da origem do dito por

meio da capacidade dos destinataacuterios mas na importacircncia dos sentidos que traz

para o discurso Eacute nessa perspectiva que Paulo faz a citaccedilatildeo de uma maacutexima

pressupostamente conhecida por seus leitores que eacute introduzida naturalmente na

linha do pensamento no desenvolvimento do discurso

Natildeo vos enganeis as maacutes conversaccedilotildees corrompem os bons costumes (1Cor 1533)

312

Heil (2005 p 226) eacute tambeacutem um dos pesquisadores que identifica essa citaccedilatildeo de

Paulo como uma maacutexima que se encontra em fragmentos da comeacutedia Thais da

autoria de Menandro313 identificando que Euriacutepides tambeacutem usa a mesma ideia

311

Traduccedilatildeo de Maria Evangelina Soeiro 312

μη πλανασθε φθειρουσιν ηθη χρησθ ομιλιαι κακαι (1Cor 1533) Antes de citar literalmente a maacutexima de Menandro Paulo faz uma pequena introduccedilatildeo ldquoNatildeo vos enganeisrdquo (μη πλανασθε) A palavra ομιλιαι pode ser traduzida por conversas ou companhia Para o contexto em que Paulo estaacute usando o termo fica mais adequada a traduccedilatildeo ldquoas maacutes conversaccedilotildees corrompem os bons costumesrdquo (traduccedilatildeo de Almeida corrigida e revisada fiel) 313

Em seu artigo intitulado A fortuna de um autor chamado Menandro Maria de Faacutetima da Silva (2009) faz um estudo sobre as produccedilotildees de Menandro (342-2921aC) e atesta que ldquono seu papel de filoacutesofo dramaturgo e poeta cocircmico grego natural de Atenas considerado o principal autor da comeacutedia nova Ele era um profundo admirador e imitador de Euriacutepides No Egipto a popularidade de Menandro perdurou por toda a Antiguidade ateacute meados do seacutec VII o que justifica a importacircncia dos papiros mais tarde aiacute recolhidos Do mesmo modo que a eacutepoca heleniacutestica grega expandia a influecircncia de Menandro para aleacutem do mundo do teatro e o fazia penetrar em todos os domiacutenios da atividade intelectual outro tanto se passou em Roma importado para a cena latina pelos criadores dramaacuteticos Menandro veio a interessar a classe erudita cativando as atenccedilotildees no seacutec I a C de nomes de referecircncia como Ciacutecero Ceacutesar ou Varratildeordquo

254

Vale destacar que no grego314 a maacutexima citada (Paulo) e a de origem (Menandro)

satildeo exatamente iguais em relaccedilatildeo agrave escrita Menandro exerceu uma grande

influecircncia sobre os escritores romanos e a seu respeito Quintiliano faz o seguinte

comentaacuterio ldquoMenandro segundo minha opiniatildeo ainda que fosse o uacutenico a se ler

diligentemente bastaria para que fossem retratadas todas aquelas qualidades que

vimos ensinandordquo (Inst Or X I 69)

A estrateacutegia retoacuterica que Paulo usa ao integrar uma maacutexima de Menandro a seu

discurso sinaliza sua capacidade em atender agraves diversidades culturais de seus

leitores Em seus estudos Heil (2005 p7) observa que Paulo ao escrever sua

primeira epiacutestola aos Coriacutentios jaacute poderia ter conhecimento de sua audiecircncia E

assim pode-se pensar o apoacutestolo como um enunciador que se dirige aos seus

destinataacuterios com uma ideia preacutevia de como melhor alcanccedilaacute-los com o recurso de

uma maacutexima valorizada na memoacuteria de seus leitores

Resta agora pensar que significados e contribuiccedilotildees essa citaccedilatildeo da maacutexima de

Menandro traz para o discurso de Paulo em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo desta no

arcabouccedilo de seus ensinamentos Nesse contexto Paulo estaacute desenvolvendo seus

fundamentos e instruccedilotildees acerca das implicaccedilotildees da crenccedila ou descrenccedila na

veracidade da ressurreiccedilatildeo de Jesus Em suas observaccedilotildees sobre o tratamento do

tema ressurreiccedilatildeo Ciampa e Rosner (2014 p 925) apontam que ateacute entatildeo

nenhuma corrente filosoacutefica havia contemplado este assunto ldquoo destino do corpordquo

evidenciando completo ceticismo com respeito a uma discussatildeo sobre a

ressurreiccedilatildeo deste Tambeacutem entre os judeus havia o segmento dos saduceus que

rejeitava qualquer hipoacutetese sobre ressurreiccedilatildeo Em oposiccedilatildeo aos grupos que

ignoravam ou negavam a ressurreiccedilatildeo Paulo com base em sua posiccedilatildeo de fariseu

se reveste de argumentos fundados no Velho Testamento315 adotando a concepccedilatildeo

judaica de ressurreiccedilatildeo coadunando sua ligaccedilatildeo aos ensinamentos doutrinaacuterios

sobre os significados da ressurreiccedilatildeo de Cristo

314 φθειρουσιν ηθη χρησθ ομιλιαι κακαι (Menandro Thais fr 218) 315

E muitos dos que dormem no poacute da terra ressuscitaratildeo uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno (Daniel 122) και πολλοί των καθευδόντων εν γης χώματι εξεγερθήσονται ούτοι εις ζωήν αιώνιον και ούτοι εις ονειδισμόν και εις αισχύνην αιώνιον

255

Por certo este assunto sobre a ressurreiccedilatildeo despertava muitos debates e polecircmicas

e o banquete316 como haacutebito e costume similar entre gregos e romanos era o

ambiente mais propiacutecio para os encontros e as discussotildees Eacute nesse contexto social

dos componentes da igreja de Corinto que no verso que antecede a citaccedilatildeo da

maacutexima Paulo toma como base o Velho Testamento para firmar seus conselhos

ldquoSe os mortos natildeo satildeo ressuscitados comamos e bebamos porque amanhatilde

morreremosrdquo (1Cor 15 32b) O dito ldquocomamos e bebamos porque amanhatilde

morreremosrdquo eacute uma citaccedilatildeo do profeta Isaias317 exortando o povo de Israel quanto agrave

atitude de abandono a Deus Na sequecircncia de seus argumentos Paulo agrega em

seu discurso os sentidos da citaccedilatildeo de Isaias agrave maacutexima de Menandro introduzindo-a

com a seguinte alerta ldquonatildeo vos enganeisrdquo Provavelmente Paulo estaria se

referindo aos debates que se desenrolavam durante os banquetes Desse modo ele

faz ecoar a voz de Menandro como se este mesmo estivesse aconselhando os

destinataacuterios de Paulo ldquoAs maacutes conversaccedilotildees corrompem os bons costumesrdquo

Para facilitar a compreensatildeo de seus leitores Paulo finaliza suas reflexotildees e

ensinamentos sobre a ressurreiccedilatildeo usando a metaacutefora da semente que ao ser

plantada necessita morrer para depois viver ldquoAssim tambeacutem a ressurreiccedilatildeo dentre

os mortos Semeia-se o corpo em corrupccedilatildeo ressuscitaraacute em incorrupccedilatildeo (1Cor

1542)

Na segunda epiacutestola aos cristatildeos da igreja de Corinto Paulo instrui aquela

comunidade nos ensinamentos da praacutetica do amor Este eacute o tema que perpassa o

conteuacutedo das duas epiacutestolas sendo que na primeira Paulo se dedica a refletir e

passar para seus destinataacuterios o valor de viver em uniatildeo como prova da revelaccedilatildeo

do amor de Deus que se manifesta atraveacutes de seus filhos O tema ldquoo amor promove

a concoacuterdia e a uniatildeordquo era um toacutepos que ocupava um lugar de importacircncia entre

gregos e romanos Na obra Eacutetica a Nicocircmaco (VIII 1159b) Aristoacuteteles toca em vaacuterios

toacutepoi retirados do tema amizade (amor) e faz a seguinte observaccedilatildeo [] ldquoa amizade

316

Segundo Veyne (2009 p 172) em alguns aspectos o banquete era denominado de noite de festim Representava uma reuniatildeo de convivas com propoacutesitos de comer beber e tambeacutem discutir temas elevados Na comeacutedia de Menandro a peccedila intitulada Thais tem este nome inspirado em uma personagem grega que ficou famosa na histoacuteria de Atenas por ser uma cortesatilde participante de banquetes exercendo vaacuterios papeis inclusive o de participante da discussatildeo de temas polecircmicos A maacutexima usada por Menandro ldquoas maacutes conversaccedilotildees ou comapanhias corrompem os bons costumesrdquo tem origem nos textos de Euriacutepides 317

O Senhor Deus dos exeacutercitos vos convidou naquele dia para chorar e prantear para rapar a cabeccedila e cingir o ciliacutecio mas eis aqui gozo e alegria matam-se bois degolam-se ovelhas come-se carne bebe-se vinho e se diz Comamos e bebamos porque amanhatilde morreremos (Isaiacuteas 221213)

256

e justiccedila tecircm relaccedilatildeo com os mesmos objetosrdquo Na continuidade desse mesmo item

Aristoacuteteles acrescenta ldquoDe fato em toda forma de comunidade acha-se parece

alguma forma de justiccedila e tambeacutem de amizaderdquo

Na segunda epiacutestola dirigida agrave comunidade de Coriacutento o incentivo eacute colocar em

praacutetica os princiacutepios ditados pelo amor Eacute neste contexto que Paulo faz remissatildeo ao

verso de um salmo para sustentar seus argumentos

Conforme estaacute escrito Espalhou deu aos pobres a sua justiccedila permanece para sempre (2 Cor 99) Espalhou deu aos necessitados a sua justiccedila subsiste para sempre (Salmos 1129)

Esta citaccedilatildeo de Salmos funciona como um forte argumento diante dos leitores da

epiacutestola de Paulo como para lembraacute-los de que a justiccedila de Deus se manifesta

atraveacutes dos atos de justiccedila daquele que se dispotildee ajudar os necessitados Kruse

(2008 p 162) interpreta este salmo citado como uma celebraccedilatildeo por parte daqueles

que reconhecem que Deus eacute doador de todos os benefiacutecios que alcanccedilam os

indiviacuteduos Os que satildeo conscientes de serem galardoados com as becircnccedilatildeos de Deus

devem tambeacutem compartilhar com os necessitados sendo fonte de amor para ajudar

os mais carentes Esta era uma concepccedilatildeo que fazia parte dos princiacutepios da cultura

hebraica pois na lei de Moiseacutes estatildeo contidas as instruccedilotildees de como viver em

coletividade e uma das maacuteximas extraiacutedas desses ensinamentos eacute ldquoamaraacutes o teu

proacuteximo como a ti mesmordquo (Lev 1918) Desse modo Paulo atualiza em seu

discurso uma praacutetica de boas accedilotildees que natildeo deveria ser esquecida pelos judeus e

revitaliza esse discurso diante de toda a igreja de Corinto como um modelo a ser

seguido no cumprimento da lei do amor

A partir das citaccedilotildees de Paulo aqui analisadas percebem-se os efeitos dos

atravessamentos dos discursos religioso filosoacutefico e literaacuterio dando suporte agrave

elaboraccedilatildeo de seu discurso Assim o gecircnero epistolar eacute organizado com vistas a

atender determinados propoacutesitos inerentes agraves caracteriacutesticas que identificam os

destinataacuterios de Paulo Heyer (2008 p 94) ressalta a importacircncia de se observar a

variedade de etnias que compunha a comunidade da igreja de Corinto gregos

judeus e pessoas procedentes de diferentes regiotildees Esse fato eacute identificado pelos

deuses que eram adorados naquela localidade Brakemeier (2008 p 20) observa

257

que aleacutem das divergecircncias religiosas havia tambeacutem as desigualdades sociais e

culturais A conjugaccedilatildeo de todos esses elementos contribuiacutea para a tendecircncia de

desuniatildeo e conflitos entre os grupos que formavam a igreja de Corinto pois o termo

igreja tem a origem no vocaacutebulo grego ekklesia com o significado no campo poliacutetico

no sentido de assembleia ou ajuntamento popular Ao migrar para o campo religioso

o termo adquire o sentido de ldquoassembleia dos santosrdquo ou ldquoseparadosrdquo e eacute

empenhado neste novo sentido que Paulo procura admoestar e ensinar um grupo

heterogecircneo em suas origens mas homogecircneo em seus ideais e propoacutesitos de

alcanccedilar a santidade Becker (2007 p 354) esclarece que ldquonaturalmente eacute

necessario realizar a santidade da comunidade mediante a santificaccedilatildeo mas com

isso nem de longe se esta falando de abdicar deste mundo ldquomas fostes lavados

mas fostes santificados mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e

no Espiacuterito do nosso Deusrdquo (1Cor 611b)

Em sentido bem amplo a designaccedilatildeo ldquogregosrdquo318 torna-se um termo universalizante

como contraponto ao termo ldquojudeusrdquo evidentemente mais individualizado O ponto

de uniatildeo entre estes dois grupos eacute a cultura heleniacutestica fato esse muito favoraacutevel

para a comunicaccedilatildeo de Paulo com aquela comunidade tatildeo mista em vaacuterios sentidos

e aspectos As citaccedilotildees de Paulo concebidas nesse contexto funcionam como

recurso retoacuterico como forccedila persuasiva para obtenccedilatildeo de resultados convincentes e

transformadores no modo de pensar e agir de seus leitores

24 USO DE METAacuteFORAS RETIRADAS DE UM LUGAR COMUM

Aristoacuteteles defende que a metaacutefora pode exercer uma accedilatildeo retoacuterica ou desempenhar

um papel na criaccedilatildeo poeacutetica Nessa mesma perspectiva Ricoeur (2000 p19)

reforccedila que a poesia e a eloquecircncia ldquodelineiam dois universos diferentes no

discursordquo e dessa forma podem-se identificar duas funccedilotildees da metaacutefora no

discurso funccedilatildeo retoacuterica e funccedilatildeo poeacutetica Uma funccedilatildeo natildeo exclui a outra sendo

318

Becker (2007 p 85) observa que para Paulo existe uma regra linguiacutestica familiar todos os natildeo judeus satildeo gregos (pex em Rm 116 29s etc) Essa distinccedilatildeo tem em primeiro lugar significado histoacuterico-salviacutefico e teoloacutegico ser grego significa ser gentio Essa distinccedilatildeo poreacutem tambeacutem significa o seguinte para os natildeo judeus via de regra a liacutengua franca eacute o grego Assim sendo Paulo natildeo soacute escreve em grego para Filipos e Corinto mas tambeacutem da mesma forma para a longiacutenqua Galaacutecia bem como para a mais romana de todas as cidades Roma Eis porque a natural diversidade linguumliacutestica no campo missionaacuterio gentio-cristatildeo (cf At 28-11) natildeo constitui para Paulo um problema seacuterio porque ele mesmo desde a infacircncia deve ter aprendido grego em Tarso e em toda parte em ambiente urbano anaacutelogo encontra o grego como linguagem corrente

258

que a funccedilatildeo retoacuterica pode estar presente em um gecircnero poeacutetico como tambeacutem a

funccedilatildeo poeacutetica pode se estabelecer na prosa

Em suas reflexotildees sobre o funcionamento da metaacutefora como retoacuterica Boot (1992

p58) observa que ldquometaacuteforas instrumentosrdquo se bem sucedidas revertem-se em

resultados agraves vezes surpreendentes no ato da comunicaccedilatildeo entre falantes Entatildeo

metaacuteforas intencionais pressupotildeem um propoacutesito retoacuterico Essas colocaccedilotildees de Boot

estatildeo em acordo com as consideraccedilotildees aristoteacutelicas que apontam para o valor da

metaacutefora no discurso contribuindo para o entendimento de abstraccedilotildees permitindo

ao destinataacuterio perceber as coisas natildeo ditas mas mostradas pela metaacutefora Na obra

Toacutepicos (VI 2140a) Aristoacuteteles tambeacutem destaca a contribuiccedilatildeo do uso da metaacutefora

no discurso observando que de fato a metaacutefora torna de alguma forma conhecido

o que pretende significar devido ao emprego de uma similitude pois esta tem em

vista a busca de uma certa semelhanccedila entre a ideia defendida com a imagem que a

metaacutefora fornece Observa-se tambeacutem que o uso da metaacutefora promove no

interlocutor o gosto da surpresa ao receber uma ideia nova construiacuteda por

intermeacutedio deste recurso

Alexandre Jr (2005 p 58) expotildee que Aristoacuteteles deixa transparecer a ideia de que

ldquoo movimento metafoacuterico do conhecido para o desconhecido por meio de uma

semelhanccedila entre os dois eacute a estrutura que subjaz a todo raciociacutenio humanordquo

Portanto a metaacutefora torna de alguma forma conhecido o que pretende significar

devido ao emprego de uma similitude que favorece a comunicaccedilatildeo entre falantes

Em uma de suas epiacutestolas a Luciacutelio Secircneca tambeacutem defende o uso da metaacutefora

atentando para o efeito favoraacutevel de seu uso no discurso

Encontro em ti contudo algumas metaacuteforas que sem serem audaciosas satildeo de certo modo atrevidas encontro siacutemiles ndash mas proibirem-nos o uso destas figuras a pretexto de que soacute nos poetas elas satildeo legiacutetimas significa que natildeo se leram os autores antigos de uma eacutepoca ainda natildeo deformada pela obsessatildeo da eloquecircncia Tais autores embora falando com simplicidade e com a uacutenica preocupaccedilatildeo de se fazerem entender tecircm um estilo repleto de comparaccedilotildees que aliaacutes reputo necessaacuterias aos filoacutesofos natildeo pela mesma razatildeo que aos poetas mas como meio de superar as limitaccedilotildees da linguagem e de permitir quer ao orador quer ao auditoacuterio a apreensatildeo da direta da mateacuteria em causa (Ep 596)

Sobre o valor do uso da metaacutefora Secircneca avalia essa importacircncia como um recurso

da linguagem que favorece uma melhor compreensatildeo de certas ideias expostas no

discurso Essa defesa de Secircneca estaacute em comum acordo com as instruccedilotildees de

259

Aristoacuteteles sobre o funcionamento da retoacuterica em relaccedilatildeo ao uso da metaacutefora

orientando que a similaridade pretendida deve ser bem compreendida e natildeo um

enigma a ser decifrado

Ao defender o uso da metaacutefora no discurso Secircneca considera que ela natildeo eacute

somente necessaacuteria aos poetas mas pelo seu caraacuteter de fornecer comparaccedilotildees tem

uma grande utilidade para uso dos filoacutesofos Nota-se que na Antiguidade o uso de

certas metaacuteforas torna-se parte integrante de um lugar comum como toacutepicos

acessiacuteveis tanto a poetas quanto a filoacutesofos Pode ser destacada aqui a metaacutefora da

figura do atleta requisitada por vaacuterios escritores

Platatildeo na obra A Repuacuteblica (X 613b) faz uma comparaccedilatildeo entre o justo e o atleta

focalizando a imagem de competiccedilatildeo de corredores com comportamentos

divergentes em relaccedilatildeo agrave capacidade de completar a corrida com o mesmo vigor

da partida inicial

Os violentos e celerados natildeo seratildeo como certos corredores que na saiacuteda se portam muito bem poreacutem na volta quase natildeo correm De um salto datildeo iniacutecio agrave corrida mas no fim tornam-se ridiacuteculos orelhas caiacutedas nos ombros ao se retirarem sem a coroa ao passo que os verdadeiros corredores chegam ateacute agrave meta final levantando o precircmio e obtecircm a coroa Natildeo eacute isso o que de regra acontece com os justos Chegados agrave meta de seus empreendimentos das relaccedilotildees com os homens e da proacutepria vida gozam de boa reputaccedilatildeo e recebem de seus concidadatildeos os precircmios merecidos (A Rep X 613b)

319

Platatildeo opotildee o mau corredor ao bom corredor em comparaccedilatildeo ao injusto e justo A

partir da analogia da premiaccedilatildeo do bom corredor com a do justo o tema toma uma

direccedilatildeo que aborda questotildees sobre julgamento depois da morte tendo como foco os

justos e injustos na cena do juiacutezo final

Ainda no campo da filosofia na obra Eacutetica a Nicocircmaco (I 1099a) Aristoacuteteles

tambeacutem faz menccedilatildeo metafoacuterica alusiva agrave imagem do atleta ldquoTal como nos Jogos

Oliacutempicos natildeo satildeo os mais belos e os mais fortes que satildeo coroados mas os

competidores pois dentre eles alguns satildeo vencedoresrdquo320 Com a contribuiccedilatildeo do

recurso da figura do atleta Aristoacuteteles constroacutei a premissa de que ldquotambeacutem as

coisas belas e boas da vida tornam-se um ganho aos que agem corretamenterdquo

Em outro momento Aristoacuteteles (EN III 1116b) alega que a experiecircncia frente a

determinados tipos de perigo funciona como coragem Ele usa a figura do soldado

319

Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 320

Traduccedilatildeo de Luciano Ferreira de Souza

260

bem preparado para a guerra e a do atleta bem treinado para a luta [] ldquoatletas

bem treinados que lutam contra simples amadores pois nesses tipos de

competiccedilotildees natildeo eacute o mais corajoso que eacute o melhor combatente mas aquele que eacute

mais forte e cujo corpo eacute mais bem treinadordquo

A imagem do atleta na Antiguidade era produtiva como argumentaccedilatildeo na aplicaccedilatildeo

de seus significados porque o esporte fazia parte da formaccedilatildeo no processo

educativo Veyne (2009 p 27) observa que a educaccedilatildeo romana do primeiro seacuteculo

dC deixa transparecer certa heranccedila dos gregos O objetivo da educaccedilatildeo naquele

momento visando moldar o caraacuteter do cidadatildeo romano tinha como propoacutesito dar

uma formaccedilatildeo que permitisse ao indiviacuteduo na fase adulta se esquivar dos viacutecios

causadores da decadecircncia Um dos princiacutepios baacutesicos da educaccedilatildeo se voltava para

exerciacutecios de condicionamento fiacutesico independente de uma formaccedilatildeo especiacutefica

voltada para o atletismo A preocupaccedilatildeo do ensino se voltava para o fortalecimento

dos muacutesculos do corpo fiacutesico e da moralidade do caraacuteter Com base nesses

princiacutepios fundadores da educaccedilatildeo desenvolve-se o toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo

A imagem mais simboacutelica para ilustraccedilatildeo deste toacutepos eacute a do atleta Entre os

escritores latinos destaca-se Quintiliano pois em seus escritos ele lanccedila matildeo de

muitas metaacuteforas instigantes Algumas dessas tambeacutem focalizam a imagem do

atleta321 que eacute arquivada em um lugar comum sendo colocada como comparaccedilatildeo

ao ato da expressatildeo do pensamento na escrita

Para que possamos conseguir isso com eficiecircncia eacute preciso voltar sempre ao que se acabou de escrever Com certeza aleacutem do fato de que assim o que se segue se liga melhor ao que antecede aquele calor proacuteprio da reflexatildeo que se arrefece por causa da demora do ato de escrever refaz integralmente suas forccedilas e tal como um territoacuterio reconquistado retoma seu iacutempeto Eacute isto o que exatamente vemos acontecer nas competiccedilotildees de salto ou seja os atletas buscam tomar impulso numa distacircncia bem grande e se lanccedilam em velocidade para o ponto aonde se precise chegar tal como em competiccedilotildees de arco e flecha retrocedemos o braccedilo e no momento de atirar as flechas tensionamos para traacutes as cordas (InstOr X 3 6)

Quintiliano traz agrave memoacuteria algumas modalidades do esporte enfatizando a

preparaccedilatildeo que antecede o momento da execuccedilatildeo final aplicando o significado

dessas imagens ao ato da escrita na produccedilatildeo de um texto

321 Vale registrar que Quintiliano no livro X da obra Institutio Oratoria usa o recurso da metaacutefora da imagem do atleta por trecircs vezes com aplicaccedilotildees diferentes (Inst Or X 14 Inst Or X 1 33 Inst Or X 5 15)

261

Destaca-se uso da metaacutefora do atleta entre os escritores da Antiguidade ora

citados sinalizando que esse recurso retoacuterico ocupava um lugar comum oferecendo

condiccedilotildees para diferentes aplicaccedilotildees Em suas pesquisas Foucault (2010a p 287)

menciona que Demeacutetrio o Ciacutenico fez uso dessa mesma imagem para comparar o

atleta ao saacutebio e enfatiza que o proacuteprio Secircneca cita esse fato no livro VII de

beneficiis Nessa construccedilatildeo de comparaccedilatildeo entre saacutebio e atleta algumas

caracteriacutesticas satildeo colocadas em destaque Foucault ressalta que na concepccedilatildeo de

Demeacutetrio o treinamento do bom atleta deve ser voltado para alguns movimentos

elementares como garantia para a condiccedilatildeo fiacutesica Assim a formaccedilatildeo atleacutetica do

saacutebio por similaridade fundamenta-se nas praacuteticas baacutesicas e necessaacuterias para

fortalecer o indiviacuteduo em seus enfrentamentos no transcorrer de sua existecircncia

Nesses termos o atleta estoico tem que lutar para enfrentar adversidades nos

acontecimentos do mundo que o cerca

O esporte tambeacutem era reconhecido em seu aspecto religioso Miller (2004 p 06-16)

observa que na Greacutecia antiga o atletismo era tambeacutem vinculado ao campo religioso

O cuidado com o corpo adquiria um caraacuteter voltado para o sagrado e cada atleta

tinha um deus a quem prestava honras atraveacutes do proacuteprio esporte Em Oliacutempia

aconteciam os Jogos Oliacutempicos de quatro em quatro anos em homenagem a Zeus

Em Corinto os Jogos Istmicos aconteciam de dois em dois anos em homenagem a

Poseidon A competiccedilatildeo era individual e o atleta se apresentava nu com o corpo

coberto com oacuteleo de oliva Os registros escritos dessa praacutetica satildeo muito limitados em

sua conservaccedilatildeo e a fonte que mais fornece informaccedilotildees satildeo as pinturas em vasos

que representavam cenas de diferentes modalidades praticadas no esporte tambeacutem

representadas em moedas Esses fatos contribuem para o fortalecimento da imagem

do atleta e contribuem para as diversas aplicaccedilotildees que essa metaacutefora fornece para

a argumentaccedilatildeo

Uma marca de identificaccedilatildeo que pode ser estabelecida na correspondecircncia de

Secircneca e de Paulo eacute o fato deles recorrerem ao uso da imagem do atleta em uma

fonte cristalizada como lugar comum O argumento retoacuterico fornecido pelo uso desta

metaacutefora estabelece um ponto de ligaccedilatildeo entre enunciador e a vivecircncia e

experiecircncia cultural de seus destinataacuterios Este fenocircmeno se estabelece como fonte

de apoio agrave argumentaccedilatildeo e persuasatildeo na enunciaccedilatildeo do gecircnero epistolar com o

262

recurso do toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo que aparece como pano de fundo no uso

metafoacuterico da imagem do atleta

241 A imagem do atleta em diferentes epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Secircneca se distancia daquele formalismo retoacuterico que se atrelava ao estilo para usar

suas proacuteprias formas de persuasatildeo entre as demais o uso de metaacuteforas Ele lanccedila

matildeo da estrateacutegia da metaacutefora natildeo com a finalidade de ornamento mas para dar

relevo e amplitude agraves suas ideias na forma de aconselhar seu amigo Luciacutelio

Berger (2004 p 205) pondera que a metaacutefora soacute adquire sentido em um

determinado contexto na medida em que a partir dela mesma resulta ao menos

uma consequecircncia a mais Por essa razatildeo este autor destaca o caraacuteter loacutegico da

metaacutefora por permitir que a relaccedilatildeo baacutesica que lhe deu origem permita acreacutescimos

agraves suas caracteriacutesticas fato esse que torna convincente o uso deste recurso Desse

modo ao ser retirada de um lugar comum a metaacutefora torna-se compatiacutevel para

diferentes aplicabilidades Assim a metaacutefora funciona como recurso da linguagem

sendo produtivo tanto para a prosa quanto para a poesia

As observaccedilotildees sobre o caraacuteter loacutegico da metaacutefora contribuem para a compreensatildeo

dos diferentes usos desta quando se tomam como base as experiecircncias do

atletismo Uma retrospectiva agrave cultura do esporte na Greacutecia antiga contribui para

entendimento do alcance de possiacuteveis sentidos da metaacutefora do atleta usada por

Secircneca e Paulo A partir do imperador Augusto os eventos e costumes ligados ao

esporte foram sendo adaptados agrave cultura romana Decerto as formas como Secircneca

e Paulo constroem a metaacutefora do atleta resgatam imagens ligadas agraves origens na

cultura da Antiguidade grega como cenas validadas na memoacuteria histoacuterica Segundo

Funari (2000 p60) os jogos na Greacutecia tiveram iniacutecio com a disputa de corrida e

depois foi introduzido o pentatlo com cinco modalidades salto corrida arremesso

de disco luta e lanccedilamento de dardo Com o passar do tempo outras modalidades

foram sendo acrescentadas Cada modalidade esportiva se tornava uma fonte rica

para construccedilatildeo de metaacuteforas com diversas aplicaccedilotildees Secircneca focaliza a metaacutefora

com a imagem da luta o que tambeacutem evidencia a importacircncia da praacutetica dessa

modalidade entre os romanos Paulo resgata a imagem da corrida mas tambeacutem

263

menciona o pugilismo322 O siacutembolo comum para a imagem do atleta eacute a coroa da

premiaccedilatildeo

Secircneca oferece conselhos a Luciacutelio usando a forccedila persuasiva da metaacutefora da

figura de um lutador apontando para a imagem agressiva das lutas

Um atleta que nunca foi ferido eacute incapaz de afrontar o combate de acircnimo alto Soacute aquele que viu correr o proacuteprio sangue que sentiu os dentes rangerem sob os golpes que lanccedilado por terra suportou sobre o corpo o peso do adversaacuterio sem embora abatido nunca deixar abater o acircnimo soacute aquele que se ergue com mais energia de cada vez que eacute derrubado pode descer agrave arena com esperanccedila de vencer (Ep 132)

Secircneca instrui Luciacutelio sobre o enfrentamento das dificuldades e a necessidade do

vigor renovado na luta corpo a corpo contra as forccedilas opostas em relaccedilatildeo aos

valores morais defendidos pela filosofia estoica usando a imagem de um lutador

que precisa manter o acircnimo para ter oportunidade de vencer Em analogia com a

imagem da luta Secircneca argumenta que algueacutem pode cair mas precisa reerguer e

enfrentar o opositor No conselho de Secircneca ele incentiva Luciacutelio a encarar a luta

contra a fortuna e natildeo se deixar escravizar ou ser vencido por ela

Ainda nesse espiacuterito de encarar os obstaacuteculos no transcorrer da vida novamente

Secircneca aponta para os desafios que os jogos impotildeem sobre os competidores

Quantas pancadas natildeo apanham os pugilistas no rosto e em todo o resto do corpo No entanto submetem a essa tortura apenas pela ambiccedilatildeo da gloacuteria E natildeo apanham pancadas apenas porque lutam mas tambeacutem para que possam lutar o proacuteprio treino jaacute eacute uma tortura Pois tambeacutem noacutes devemos superar todos os confrontos embora a nossa recompensa natildeo seja uma coroa uma palma ou um toque de trombeta a fazer silecircncio no estaacutedio para que se pronuncie o nosso nome (Ep 7816)

Secircneca invoca a imagem do pugilismo uma modalidade do atletismo considerada

agressiva para enfatizar a ideia do enfrentamento do indiviacuteduo aos embates que lhe

avultam no cotidiano da vida mesmo natildeo tendo recompensas semelhantes agraves

conseguidas pelos atletas vencedores Na sequecircncia da escrita de suas epiacutestolas

Secircneca novamente faz uso da imagem do atleta como recurso para sua

argumentaccedilatildeo extraindo outras aplicaccedilotildees que essa metaacutefora fornece

E penso sobretudo nisto se o corpo pode agrave forccedila de treino atingir um grau de resistecircncia tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapeacutes de vaacuterios adversaacuterios que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob um sol abrasador numa arena escaldante todo coberto de sangue ndash natildeo seraacute mais faacutecil ainda dar agrave alma uma tal robustez que a torne capaz de

322

Segundo o Dicionaacuterio Aureacutelio (2 ed 1986) o termo pugilismo eacute referente ao pugilato que origina do latim pugillatu e designa uma modalidade do esporte de luta com punhos com socos

264

resistir sem ceder aos golpes da fortuna capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e espezinhada De fato enquanto o corpo para tornar-se vigoroso depende de muitos fatores mateacuterias a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer alimentar exercitar Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida de muitos unguentos sobretudo de um treino intensivo tu para atingires a virtude natildeo precisaraacutes de dispender um tostatildeo em equipamento Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem estaacute dentro de ti Para seres um homem de bem soacute precisas de uma coisa a vontade (Ep 8034)

Com base nesta metaacutefora que toma a imagem do atleta como ponto de referecircncia

Secircneca desenvolve sua argumentaccedilatildeo a partir do valor atribuiacutedo ao esporte e agrave

competiccedilatildeo apontando os desafios enfrentados pelo atleta e as condiccedilotildees impostas

como exigecircncia de sua postura diante da determinaccedilatildeo das regras323 A metaacutefora

usada por Secircneca nessa epiacutestola a Luciacutelio faz reviver na memoacuteria do leitor a

imagem de um atleta bem preparado para uma competiccedilatildeo individual A metaacutefora

possibilia a construccedilatildeo de um paralelo entre o corpo do atleta e a alma daquele que

se dispotildee a adquirir a sabedoria324 A cena que evoca os pontos importantes para o

fortalecimento do corpo do atleta eacute construiacuteda vivamente no imaginaacuterio do leitor

Surpreendente eacute notar como a comparaccedilatildeo da importacircncia dos exerciacutecios e da

alimentaccedilatildeo fundamentais para a aquisiccedilatildeo da resistecircncia corporal resume-se

exclusivamente agrave vontade325 como condiccedilatildeo da alma para fortalecimento do homem

de bem Com o uso dessa metaacutefora Secircneca explora o topos ldquodisciplina do corpo e

da almardquo usando a imagem do atleta como modelo

Outro toacutepico dos princiacutepios estoicos que Secircneca recorre em seus ensinamentos satildeo

as questotildees que abordam a definiccedilatildeo do sumo bem326 Aquele que assimila tal

conceito eacute capaz de aplicaacute-lo em qualquer situaccedilatildeo da vida Secircneca busca na

imagem do atletismo em especial a modalidade de lanccedilamento de dardo como

323

Secircneca condena os sistemas de jogos que se tornaram entretenimento na vigecircncia do primeiro seacuteculo na cultura romana ldquoo homem eacute exposto agrave morte apenas para servir de divertimento jaacute era sacrileacutegio treinar homens para ferir e serem feridos ndash agora atiramo-los para o circo nus e inermes basta-nos a simples morte como espetaacuteculordquo (Ep 9533) 324

A busca da sabedoria requer no discurso o toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo Nessa perspectiva Hadot (2012 p23) observa que na Antiguidade ldquocada escola representaraacute entatildeo uma forma de vida especificada por um ideal de sabedoria A cada escola corresponderaacute assim uma atitude interior fundamental por exemplo a tensatildeo entre os estoicos a descontraccedilatildeo entre os epicuristas certa maneira de falar por exemplo uma dialeacutetica impactante entre os estoicos uma retoacuterica abundante entre os acadecircmicos Todavia em todas as escolas seratildeo praticados exerciacutecios destinados a assegurar o progresso espiritual na direccedilatildeo do estado ideal da sabedoria exerciacutecios da razatildeo que seratildeo para a alma anaacutelogos ao treinamento de um atletardquo [] 325

Para Secircneca uma accedilatildeo natildeo pode ser correta se natildeo for correta a vontade pois eacute desta que proveacutem a accedilatildeo Tambeacutem a vontade nunca seraacute correta se natildeo for correto o caraacuteter porquanto eacute deste que proveacutem a vontade (Ep 9556) 326

Segundo Secircneca a sabedoria eacute o bem supremo do espiacuterito humano enquanto a filosofia eacute o amor o impulso pela sabedoria [] A filosofia e a virtude satildeo inseparaacuteveisrdquo (Ep 89 4-8)

265

recurso argumentativo ldquoQuem aprende a lanccedilar o dardo compenetra-se bem do alvo

a atingir exercita o braccedilo para lanccedilar com pontaria e quando na teoria e na praacutetica

tiver atingido essa habilidade poderaacute usaacute-la para acertar onde quiserrdquo (Ep 943)

Secircneca faz a aplicaccedilatildeo desta metaacutefora argumentando que o indiviacuteduo que aprende

a se comportar adequadamente no seu cotidiano natildeo necessita de preparo para

situaccedilotildees especiacuteficas pois estaacute apto para se conduzir bem em todos os aspectos da

vida

A metaacutefora que resgata imagens do atletismo eacute retoacuterica porque estaacute investida da

argumentaccedilatildeo e traz para o leitor a imagem convincente de um atleta tatildeo valorizada

naquele contexto social e cultural Pode ser persuasiva porque atraveacutes do valor

dessa imagem conclama-se uma accedilatildeo semelhante para o homem de bem com a

vantagem de possuir em seu proacuteprio interior a vontade que pode resultar na

disposiccedilatildeo A persuasatildeo nessa epiacutestola de Secircneca se efetua natildeo somente no

acircmbito da convicccedilatildeo mas tambeacutem no da accedilatildeo

Nota-se que o uso da metaacutefora com base em imagens do atletismo ocupava um

lugar comum em textos da Antiguidade e tambeacutem estaacute presente nos textos da

primeira epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios

242 A metaacutefora do atleta na primeira epiacutestola aos Coriacutentios

Pode-se conjecturar que Secircneca e Paulo retiram a metaacutefora do atletismo de um

mesmo depoacutesito como um alimento para sustentar o proacuteprio discurso poreacutem os

nutrientes satildeo aproveitados de formas bem distintas Paulo afirma que seu discurso

natildeo tinha os mesmos propoacutesitos da sabedoria que os homens buscavam Da

mesma forma como Secircneca se defendia de sua proacutepria rejeiccedilatildeo ao uso de

silogismos em sua escrita Paulo tambeacutem quando faz referecircncia agrave forma persuasiva

da linguagem mostra ser conhecedor da existecircncia desses recursos da oratoacuteria

mas natildeo assume como uma teacutecnica relevante em sua escrita priorizando o ldquofalar

francordquo no seu modo de se comunicar com seus leitores

A disposiccedilatildeo de Paulo em natildeo se preocupar em seguir as regras e eloquecircncia da

retoacuterica que integrava a formaccedilatildeo educacional de seu tempo pode ser observada

quando ele afirma ldquoa minha linguagem e a minha pregaccedilatildeo natildeo consistiram em

palavras persuasivas de sabedoria [] para que a vossa feacute natildeo se apoiasse na

266

sabedoria dos homens mas no poder de Deusrdquo (1Cor 2 4-5) Quando Paulo

escreve a primeira epiacutestola agrave igreja de Corinto ele procura separar a ideia de

sabedoria humana e sabedoria de Deus situando seus ensinamentos a partir do

discurso constituinte religioso Na segunda epiacutestola Paulo declara natildeo ser um

orador eloquente ldquoEu posso natildeo ser um orador eloquumlente contudo tenho

conhecimento De fato jaacute manifestamos isso a vocecircs em todo tipo de situaccedilatildeordquo

(2Cor11 6) Paulo reconhece que a eloquecircncia natildeo eacute fundamental em seu discurso

mas o conhecimento eacute necessaacuterio na composiccedilatildeo de seu discurso Esse fato eacute

reconhecido na construccedilatildeo de suas epiacutestolas Assim o recurso da metaacutefora do

atleta usado por Paulo na primeira epiacutestola agrave igreja de Corinto denota sua atitude

de identidade entre seus destinataacuterios usando uma imagem por eles reconhecida e

validada fazendo valer seu conhecimento cultural e o modo como aplicaacute-lo em suas

epiacutestolas

De acordo com as consideraccedilotildees de Becker (2007 p 85) Paulo se mostra como um

grego em contextos cristatildeos quando faz referecircncia ao seu apostolado comparado

ao combate no estaacutedio de um ginaacutesio grego Com base nessas observaccedilotildees Becker

visualiza a influecircncia de uma socializaccedilatildeo heleniacutestico-urbana que tornou Paulo

familiarizado tanto com as tradiccedilotildees filosoacuteficas gregas quanto com as mais

populares Como resultado dessa influecircncia Pena (2012 p 36) aponta a

identificaccedilatildeo na escrita paulina da imagem do atleta em competiccedilatildeo o esforccedilo a

corrida a coroa do vencedor e assim por diante327

Paulo em sua primeira epiacutestola aos Coriacutentios lanccedila matildeo da imagem do atleta para

aplicar alguns pontos de comparaccedilatildeo de seus significados A cena construiacuteda

apresenta o atleta numa aacuterdua competiccedilatildeo para conquista da coroa da vitoacuteria como

mostra a descriccedilatildeo

Natildeo sabeis que aqueles que correm no estaacutedio correm todos mas um soacute ganha o precircmio Correi portanto de tal maneira a consegui-lo Os atletas se abstecircm de tudo eles para ganhar uma coroa pereciacutevel noacutes poreacutem para ganharmos uma coroa impereciacutevel Quanto a mim eacute assim que corro natildeo ao incerto eacute assim que pratico o pugilato mas natildeo com algueacutem que fere o ar Trato duramente o meu corpo e reduzo-o agrave servidatildeo a fim de que natildeo aconteccedila que tendo proclamado a mensagem aos outros venha eu mesmo a ser reprovado (1Cor 9 24-27)

327

Pena (2012 p 36) informa que as corridas no estaacutedio de Tarso eram frequentes e tambeacutem nas moedas da eacutepoca encontra-se cunhada a figura de Perseu o heroacutei fundador da cidade com o siacutembolo do corredor e asas nas sandaacutelias

267

Ao analisar e avaliar o cuidado de si no contexto da Antiguidade com um foco

orientado para os dois primeiros seacuteculos de nossa era Foucault (2010a p 200) faz

alguns comentaacuterios que podem ser aplicados aos argumentos que Paulo sugere

silenciosamente com a estrateacutegia do uso da metaacutefora da imagem do atleta Foucault

observa a importacircncia do haacutebito da concentraccedilatildeo a partir da seguinte expressatildeo

ldquopraticar caminhada sem olhar para os ladosrdquo Eacute preciso caminhar olhando em

frente o que significa concentrar-se para natildeo perder o alvo Para desenvolver essa

ideia Foucault tambeacutem parte da metaacutefora criada com a figura do atleta na

preparaccedilatildeo para a corrida ou para a luta no treino do gesto pelo qual o arqueiro

lanccedilaraacute a flecha em direccedilatildeo ao alvo Assim tambeacutem a aplicaccedilatildeo dessa metaacutefora

aludida consiste em ldquoconstruir o vazio em torno de si natildeo se deixando levar e nem

distrair pelos ruiacutedos ou pelos que estatildeo em voltardquo Torna-se fundamental a

concentraccedilatildeo da atenccedilatildeo na meta que se quer alcanccedilar Concentraccedilatildeo eacute uma

expressatildeo muito significativa no esporte De certo modo esta eacute tambeacutem uma

possibilidade de aplicaccedilatildeo da metaacutefora do atleta usada por Paulo como forccedila

persuasiva para convencimento dos pertencentes agrave igreja de Corinto O alvo a ser

alcanccedilado se voltava para o ideal do processo da santificaccedilatildeo O proacuteprio Paulo se

inclui como esse atleta que corre e tambeacutem disputa para atingir a meta

demonstrando que a accedilatildeo de controle do corpo eacute princiacutepio baacutesico para

enfrentamento da luta Para obtenccedilatildeo da vitoacuteria na competiccedilatildeo eacute necessaacuterio que

haja concentraccedilatildeo esforccedilo e espiacuterito de conquista A partir dessa discursividade a

coroa apresenta-se como uma metoniacutemia que se mostra na representaccedilatildeo da

vitoacuteria Com tal simbolismo Paulo contrapotildee pereciacutevel e perene pois a coroa de

louro tem curta durabilidade enquanto a coroa do reino eterno dura para sempre

Joatildeo Crisoacutestomo (Homilia XXIV) destaca um importante ponto da aplicaccedilatildeo desta

metaacutefora do atleta usada por Paulo De iniacutecio a atenccedilatildeo ao texto se prende na

afirmativa de que entre todos os participantes que correm no estaacutedio somente um

ganha o precircmio Esta ideia funciona natildeo como limitaccedilatildeo mas como incentivo e

estiacutemulo para a natildeo desistecircncia ou seja ao que vencer seraacute dada a coroa Essa

mesma ideia aparece posteriormente no livro de Apocalipse (210) ldquoSecirc fiel ateacute a

morte e dar-te-ei a coroa da vidardquo Brakemeier (2008 p 125) interpreta que Paulo

incentiva o cristatildeo de Corinto a correr para receber o precircmio pois este eacute como um

atleta A meta para conseguir o trofeacuteu da vitoacuteria ainda natildeo foi alcanccedilada mas a

268

coroa no sentido cristatildeo eacute prometida natildeo ao que chegar primeiro mas ao que

vencer todos os obstaacuteculos e completar a corrida Vencedor eacute o que alcanccedila o final

da corrida visto que esta disputa natildeo se processa em relaccedilatildeo ao outro mas aos

obstaacuteculos que se interpotildeem agrave frente de quem corre

Platatildeo328 associa o atleta que cumpre sua meta na corrida e eacute premiado na

competiccedilatildeo com o justo que no encerramento de sua jornada recebe o galardatildeo no

juizo final Nota-se que haacute certa aproximaccedilatildeo com o sentido da mesma metaacutefora

usada por Paulo ao comparar os louros da vitoacuteria do atleta com a coroa incorruptiacutevel

que o fiel ateacute a morte herdaraacute

Para ser vitorioso eacute necessaacuterio o exerciacutecio individual e assim o uso retoacuterico da

metaacutefora da imagem do atleta serve para a construccedilatildeo de significados da disciplina

do corpo em seus vaacuterios aspectos Cada autor que lanccedila matildeo de tal recurso explora

um determinado aspecto de acordo com os propoacutesitos dos ensinamentos a serem

transmitidos aos leitores Essa estrateacutegia argumentativa cumpre a funccedilatildeo de auxiliar

o desenvolvimento do topos ldquoo cuidado do corpordquo com as analogias que a metaacutefora

fornece contribuindo tambeacutem para a dinacircmica da noccedilatildeo do cuidado de si

Como visto os argumentos retoacutericos fornecidos pelo uso dos exemplos das

citaccedilotildees e da metaacutefora fornecem a Secircneca e Paulo elementos que satildeo tratados em

seus aconselhamentos a partir do toacutepos ldquofalar francordquo como direcionador do

discurso na conduccedilatildeo do gecircnero epiacutestolar Estes mesmos elementos retoacutericos satildeo

identificados no modo como os temas o tempo e o amor satildeo desenvolvidos no

transcorrer do desenvolvimento das epiacutestolas de Secircneca e Paulo a partir da

constituiccedilatildeo de cada cenografia

328

No final do livro X da A Repuacuteblica Platatildeo conta para Glauco a histoacuteria do combatente que morreu na guerra e depois de dez dias seu corpo foi encontrado em perfeito estado Quando foram colocaacute-lo na pira para ser queimado ele reviveu e contou sua experiecircncia de conhecer o outro mundo A narrativa eacute bem detalhada mostrando a situaccedilatildeo de julgamento entre maus e bons No fechamento da obra Platatildeo diz a Glauco ldquoSe aceitardes meus conselhos e admitirdes que a alma eacute imortal e capaz de suportar todos os males como todos os bons manter-nos-emos no caminho ascendente e praticaremos de todo modo a justiccedila e a verdade Soacute assim nos tornaremos amigos de noacutes mesmos e dos deuses natildeo apenas durante o tempo que permanecermos nesta vida como tambeacutem depois de recebermos a recompensa da justiccedila agrave feiccedilatildeo dos vencedores dos jogos que recolhem de todos os lados seus trofeacuteus e seremos felizes aqui na terra e na viagem de mil anos que jaacute vos descrevemosrdquo (A Rep X 621d)

269

3 O TEMPO NAS CONCEPCcedilOtildeES FILOSOacuteFICAS DE SEcircNECA

O tempo que demora esta existecircncia mortal natildeo eacute para a alma senatildeo o preluacutedio de uma vida melhor Seneca (Ep 102 23) Porque para mim tenho por certo que as afliccedilotildees deste tempo presente natildeo satildeo para comparar com a gloacuteria que em noacutes haacute de ser revelada Paulo (Rom 818)

Na Antiguidade nota-se que o tema ldquoo tempordquo eacute abordado em diferentes toacutepicos e a

filosofia no periacuteodo Heleniacutestico toma como base os postulados filosoacuteficos

antecedentes reformulando os conceitos jaacute existentes Partindo de uma aceitaccedilatildeo

de partes de pensamentos de filoacutesofos que abordaram as questotildees do tema ldquoo

tempordquo os estoicos herdaram princiacutepios fundadores principalmente de Pitaacutegoras

Platatildeo e de Aristoacuteteles A noccedilatildeo de tempo estaacute inteiramente ligada agraves concepccedilotildees

teoacutericas da cosmologia329 desde os preacute-socraacuteticos Um ponto comum entre os

filoacutesofos da Antiguidade eacute o fato de interligarem a noccedilatildeo de tempo com a de

movimento Migliore (2008 p 25) relaciona essa posiccedilatildeo com a ideia da sucessatildeo

de ciclos que permite a continuidade da existecircncia do cosmo Quanto ao movimento

Secircneca pondera ldquoHaveraacute que pocircr o movimento uma vez que sem este nada nasce

e nada morre natildeo haacute arte alguma natildeo haacute transformaccedilatildeo alguma sem movimentordquo

(Ep 65 11)

O toacutepos ldquoo tempo fogerdquo eacute recorrente nos postulados estoicos e em suas epiacutestolas

Secircneca recorre a este lugar comum para desenvolver alguns aspectos das

consequecircncias da realidade dessa noccedilatildeo da rapidez da passagem do tempo e sua

relaccedilatildeo com a duraccedilatildeo da vida A epiacutestola noventa e nove eacute dirigida a Luciacutelio como

coacutepia de uma epiacutestola que Secircneca escreveu a Marulo na eacutepoca em que este perdeu

um filho de tenra idade Secircneca comenta ldquonatildeo segui o nosso processo habitual

nem achei por bem falar-lhe brandamente pois o nosso homem mais merecia ser

repreendido do que consoladordquo (Ep 991) Secircneca revela seu ethos parresiasta de

fala franca para mostrar ao seu destinataacuterio que eacute necessaacuterio encarar a morte como

um fim da vida que natildeo eacute igual para todos Com suas reflexotildees Secircneca firma a

329

Segundo Gazolla (2008 p 10) ldquocosmologia eacute o discurso ou a palavra ou o relato ou o recolhimento sobre a Ordem de todas as coisas que satildeordquo Na atualidade o termo cosmologia eacute referido como filosofia da natureza Gazolla (2008 p11) ainda acrescenta que os estoicos aderiram uma filosofia que mais marcadamente aderiu agrave natureza

270

concepccedilatildeo estoica de que o tempo eacute o intervalo do movimento que tem um ponto

inicial e um ponto final Este intervalo eacute variaacutevel podendo ser mais curto ou mais

longo A partir desses postulados Secircneca procura exortar seu amigo a aceitar a

morte de um ente querido como um acontecimento inevitaacutevel independente do

tamanho do intervalo que ela tenha alcanccedilado no espaccedilo do tempo

Repara na rapidez com que passa o tempo atenta na exiguidade dessa iacutenfima fraccedilatildeo que noacutes percorremos a toda velocidade considera todos esses seres humanos que se dirigem em massa para um mesmo ponto separados uns dos outros por intervalos breviacutessimos mesmo quando nos afiguram muito longos o filho que julgas ter morrido apenas partiu agrave tua frente Haveraacute algo de mais estuacutepido do que choraacute-lo por ter precedido numa viagem que tu tambeacutem haacutes de fazer (Ep 997)

O conceito metafoacuterico A VIDA Eacute UMA VIAGEM eacute recorrente nas epiacutestolas de Secircneca

e funciona como um toacutepos que apreende o sentido da vida como uma passagem

pelo mundo No texto citado da epiacutestola noventa e nove a ideia de morte tambeacutem

aparece como viagem ldquoHaveraacute algo de mais estuacutepido do que choraacute-lo por ter

precedido numa viagem que tu tambeacutem haacutes de fazerrdquo Diante dessa colocaccedilatildeo nota-

se a identificaccedilatildeo do conceito metafoacuterico A MORTE Eacute UMA VIAGEM DE VOLTA

Pode-se dizer que este conceito conteacutem a ideia do tempo como uma viagem que

tem duraccedilotildees distintas para os indiviacuteduos Esta eacute uma reflexatildeo filosoacutefica de cunho

metafoacuterico indicando que quando algueacutem nasce chega para o iniacutecio de uma viagem

terrestre e quando morre sinaliza a viagem de retorno Este toacutepos funciona como

fundamentaccedilatildeo para a noccedilatildeo filosoacutefica da imortalidade da alma Em outra epiacutestola

ilustrando esta mesma ideia Secircneca (Ep 7714) menciona a seguinte maacutexima ldquoNatildeo

haacute estrada que natildeo chega ao fimrdquo (Nullum sine exitu iter est)

Secircneca na posiccedilatildeo de enunciador constroacutei a cenografia do conjunto de suas

epiacutestolas com base no tema ldquoo tempordquo situado na epiacutestola de abertura Na

sequecircncia das epiacutestolas diferentes abordagens relacionadas ao tema vatildeo surgindo

e as metaacuteforas citaccedilotildees e exemplos contribuem para colocaacute-las em pauta Por isso

o criteacuterio para seleccedilatildeo das epiacutestolas a analisadas toma como base algumas marcas

linguiacutesticas da organizaccedilatildeo retoacuterica do discurso observadas a partir da epiacutestola

introdutoacuteria sendo relevantes para a constituiccedilatildeo discursiva de vaacuterias formas de

tratamento do tema ldquoo tempordquo

271

31 O VALOR DO TEMPO

A primeira epiacutestola no livro I constitui o estabelecimento da cenografia discursiva

que norteia toda a produccedilatildeo da obra Em torno do toacutepos o valor do tempo eacute instituiacuteda

a cenografia de um tratado filosoacutefico sendo direcionada pela retoacuterica na organizaccedilatildeo

argumentativa da enunciaccedilatildeo Esta cenografia eacute acessada de acordo com o papel e

lugar que o enunciador ocupa na enunciaccedilatildeo de acordo com o momento histoacuterico-

social no ato enunciativo O tema ldquoo tempordquo eacute desenvolvido com recursos fornecidos

pela metaacutefora e tambeacutem buscando a colaboraccedilatildeo do discurso literaacuterio Marcas

linguiacutesticas satildeo verificadas no corpus de anaacutelise pela identificaccedilatildeo de expressotildees

metafoacutericas que contribuem para definiccedilatildeo dos subtemas

Procede deste modo caro Luciacutelio reclama o direito de dispores de ti concentra e aproveita todo o tempo que ateacute agora te era roubado te era subtraiacutedo que te fugia das matildeos (Ep 11)

330

As expressotildees metafoacutericas331 tempo roubado tempo desperdiccedilado tempo

subtraiacutedo perder tempo funcionam como marcas que revelam o conceito metafoacuterico

TEMPO Eacute UM BEM VALIOSO332 como pano de fundo na concepccedilatildeo filosoacutefica

estoica Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 51) em algumas culturas o tempo

como um bem valioso pode ser apreendido como um recurso limitado para alcance

de objetivos e nesse sentido a concepccedilatildeo da noccedilatildeo de trabalho estaacute ligada ao fator

tempo e mesmo na Antiguidade de certa forma partes dessas associaccedilotildees jaacute eram

consideradas tambeacutem Assim a abstraccedilatildeo da ideia de tempo passa a ser

compreendida atraveacutes de experiecircncias do cotidiano de uma determinada formaccedilatildeo

cultural Esse modo de pensar o tempo como um bem valioso fica evidente logo na

primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio atraveacutes da identificaccedilatildeo de expressotildees

metafoacutericas que servem de ecircnfase ao valor do tempo

330

Ita fac mi Lucili vindica te tibi et tempus quod adhuc aut auferebatur aut subripiebatur aut excidebat collige et serva (Ep 11) 331

De acordo com os estudos de Lakoff e Johnson (2002 p 50) as expressotildees metafoacutericas em nossa liacutengua satildeo ligadas a conceitos metafoacutericos de uma maneira sistemaacutetica Para explicar como expressotildees metafoacutericas na linguagem cotidiana podem iluminar a natureza metafoacuterica dos conceitos que estruturam nossas atividades cotidianas esses dois autores examinam o conceito TEMPO Eacute DINHEIRO atraveacutes de expressotildees metafoacutericas como desperdiccedilar tempo perder tempo ganhar tempo gastar tempo economizar tempo 332

Vale relembrar que nos estudos da Linguiacutestica cognitiva dirigidos por Lakoff e Johnson os conceitos metafoacutericos satildeo escritos em letras maiuacutesculas

272

Como identificaccedilatildeo de uso de expressotildees metafoacutericas voltadas para o valor do

tempo no contexto do primeiro seacuteculo dC encontra-se em Quintiliano333 o seguinte

exemplo

Eacute preciso estudar verdadeiramente sempre e em qualquer lugar E quase nenhum dia existe tatildeo ocupado que natildeo se possa roubar a uma atividade de lucro um miacutenimo qualquer de tempo para escrever ler ou falar como o fazia Bruto segundo Ciacutecero conta (Inst Or X 7 27)

A expressatildeo lsquoroubar o temporsquo ou outras semelhantes a esta contribuem para

identificaccedilatildeo de aspectos culturais compartilhados refletindo uma visatildeo de mundo

sobre o valor do tempo como um lugar comum O tempo se torna valioso porque ele

eacute limitado e irrecuperaacutevel

Na sequecircncia da primeira epiacutestola o enunciador busca no depositaacuterio de lugares

comuns o toacutepico da quantidade para argumentar sobre o tempo como algo de valor

Podes indicar-me algueacutem que decirc o justo valor ao tempo aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre um pouco Eacute um erro imaginar que a morte estaacute agrave nossa frente grande parte dela jaacute pertence ao passado toda a nossa vida preteacuterita eacute jaacute domiacutenio da morte (Ep I 2)

A expressatildeo ldquoPodes indicar-me algueacutem que decirc o justo valor ao tempordquo conduz a

uma reflexatildeo que recai exatamente sobre a realidade de que um dia que eacute

acrescentado agrave vida representa menos um dia para a sua duraccedilatildeo Na verdade

existe um paradoxo porque viver e morrer satildeo dois fenocircmenos inseparaacuteveis O

conselho de Secircneca direciona uma alerta ldquoaproveite bem o seu dia pois

diariamente se morre um poucordquo De acordo com essa realidade nascimento vida

velhice e morte estatildeo vinculados agrave temaacutetica do tempo sendo que o processo do

envelhecimento estaacute ligado ao da morte tendo seu iniacutecio a partir do nascimento

Nessa argumentaccedilatildeo que envolve princiacutepios da filosofia estoica sobre o

aproveitamento do tempo Secircneca usa o recurso da indagaccedilatildeo para provocar o

raciociacutenio de seu destinataacuterio a respeito da ideia da ligaccedilatildeo da morte tanto com o

passado quanto com o presente e futuro visto que a cada dia morre-se um pouco

Tenho as minhas contas em dia Natildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de que modo o perco (Ep14)

333

A citaccedilatildeo de Quintiliano em evidecircncia tem o objetivo de mostrar que eacute possiacutevel pensar que o uso de expressotildees metafoacutericas como roubar o tempo e outras no mesmo campo semacircntico podem sinalizar para o conceito metafoacuterico O TEMPO Eacute UM BEM VALIOSO como um lugar comum na abordagem do tema

273

Esse modo de dizer revela a subjetividade do enunciador quando fala de si ldquoNatildeo te

posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de que modo o

percordquo (Ep 14) Ao colocar seu posicionamento Secircneca traz para o seu discurso a

estrateacutegia do exemplo pessoal como uma retoacuterica argumentativa que funciona como

forccedila testemunhal

A expressatildeo metafoacuterica ldquoperder tempordquo reforccedila a ideia da concepccedilatildeo que o

enunciador tem sobre o tempo como um bem precioso O tempo desperdiccedilado estaacute

diretamente ligado ao modo de vida O objetivo do conselho eacute mostrar que o saacutebio

deve zelar pelo aproveitamento do tempo pois este estaacute interligado agrave vida Nesse

aspecto os termos vida e tempo comportam o mesmo valor semacircntico sendo

enfatizada natildeo a quantidade do tempo de vida mas a qualidade

[] lamentamos entatildeo o desperdiacutecio da vida Nenhuma parte dela permanece em nossas matildeos a vida passou por noacutes escoou-se Ningueacutem preocupa-se em viver bem mas sim em durar muito quando afinal viver estaacute ao alcance de todos ao passo que durar muito natildeo estaacute ao alcance de ningueacutem (Ep 2217)

Viver bem eacute um princiacutepio da doutrina estoica O valor do tempo estaacute diretamente

ligado agrave sabedoria de como investi-lo melhor O aconselhamento se volta para a

necessidade vital de se eleger as prioridades para o gasto do tempo Secircneca usa

um proveacuterbio para enfatizar o valor do desprendimento ldquoningueacutem escapa de um

naufraacutegio com a bagagem agraves costasrdquo (nemo cum sarcinis enatat Ep 22 12) Essa

bagagem representa o excesso de acuacutemulo de compromissos que se assume ao se

extrapolar a totalidade do tempo que realmente se dispotildee

Jaacute te dispusestes a pensar quanto tempo te eacute roubado pelos problemas de

sauacutede pelos teus deveres oficiais pelos teus deveres particulares pelos teus deveres cotidianos pelo sono Mede a duraccedilatildeo da tua vida natildeo cabe laacute muita coisa (Ep 8842)

No contexto dessa epiacutestola Secircneca exorta a Luciacutelio quanto agrave sabedoria em

valorizar o tempo que muitas vezes lhe eacute roubado por problemas e situaccedilotildees do

proacuteprio cotidiano Na epiacutestola cento e dezessete ele confirma este posicionamento

em alertar sobre o cuidado em remir o tempo Ele enumera alguns desses fatores

usando o verbo roubar ou tirar para reforccedilar a ideia de que algueacutem possui o tempo

que eacute valioso mas que em diferentes circunstacircncias esse tempo lhe eacute roubado

como aparece na expressatildeo quantum temporis tibi auferat mala valetudo (quanto

tempo a maacute sauacutede te rouba) Secircneca ressalta que com todos os gastos do tempo

seja por problemas de sauacutede dedicaccedilatildeo ao trabalho questotildees particulares e ateacute

274

mesmo pelo sono a duraccedilatildeo da vida esvazia-se pelo tempo que lhe eacute tirado

Secircneca aconselha Luciacutelio a natildeo gastar o que resta de seu tempo com

superficialidades mas aproveitaacute-lo com sabedoria que eacute a verdadeira fonte para a

virtude A expressatildeo metafoacuterica ldquotempo roubadordquo valida na enunciaccedilatildeo a ideia do

valor do tempo acoplando os sentidos de vida e tempo com o uso da expressatildeo

mede a duraccedilatildeo da tua vida

Ao longo de suas epiacutestolas Secircneca aconselha Luciacutelio a natildeo desperdiccedilar o tempo

pois ele eacute precioso e irrecuperaacutevel No iniacutecio da primeira epiacutestola Secircneca fala de si

com seu proacuteprio exemplo como um recurso retoacuterico para argumentar sobre a

administraccedilatildeo do seu proacuteprio tempo Na epiacutestola sessenta e dois ele retoma seu

posicionamento pessoal e oferece mais algumas informaccedilotildees para o seu

destinataacuterio

Eu sou um homem livre Luciacutelio inteiramente livre e onde quer que eu esteja tenho todo o tempo agrave minha disposiccedilatildeo Natildeo me entrego aos afazeres presto-me a eles quando muito e natildeo me ponho agrave procura de ocasiotildees para perder tempo Onde quer que eu me encontre passo em revista os meus pensamentos e medito em qualquer coisa que me seja profiacutecua Quando me consagro aos amigos nem por isso deixo de ocupar-me de mim mesmo e natildeo me detenho na companhia daqueles a que me juntou alguma circustacircncia momentacircnea ou alguma razatildeo derivada de devers sociais (Ep 622)

Ao afirmar ldquosou um homem livrerdquo Secircneca expressa-se com o uso do termo latino

vaco no sentido de vazio para as obrigaccedilotildees impostas Ele se apropria do toacutepos

falar franco que direciona seu discurso e o modo de agir valorizando a liberdade

como condiccedilatildeo de suas proacuteprias escolhas no cuidado de si

Foucault (2010a p 235) relata que Secircneca na obra Questotildees Naturais acentua que

estaacute velho e que perdeu tempo Quanto a esse aspecto Foucault analisa que eacute a

partir dessa constataccedilatildeo que Secircneca se coloca na posiccedilatildeo de ocupar-se consigo

mesmo e natildeo com tarefas em outros domiacutenios Na continuaccedilatildeo de sua reflexatildeo

Foucault ainda observa ldquoNesse mesmo movimento do tempo que nos leva para o

ponto final de nossa vida devemos volver nosso olhar e nos tomarmos a noacutes

mesmos como objeto de contemplaccedilatildeordquo Com esta afirmaccedilatildeo Foucault coloca em

pauta o postulado estoico de que o tempo eacute o intervalo do movimento marcado pelo

ponto inicial que eacute a vida e o ponto fianal a morte Esta eacute exatamente a postura

assumida por Secircneca em sua epiacutestola quando ele declara a Luciacutelio ldquonem por isso

deixo de ocupar-me de mim mesmordquo (Ep 662)

275

No desfecho de sua primeira epiacutestola Secircneca faz a seguinte exposiccedilatildeo ldquoConforme

diziam os nossos maiores jaacute vem tarde a poupanccedila quando o vinho estaacute no fundordquo

Secircneca ainda complementa ldquoEacute que o que fica no fundo aleacutem de ser muito pouco

satildeo apenas as borrasrdquo334 Esta paraacutefrase do texto de Hesiacuteodo na obra Os trabalhos

e os dias (versos 368-369)335 produz um efeito de intertextualidade entre os textos

dos dois autores no uso do toacutepos que os aproxima em alguns pontos Nessa

perspectiva a ideia de trabalho no texto de origem eacute interligada agrave de tempo no texto

parafraseado e desse modo o trabalho como condicionante na aquisiccedilatildeo de um

bem valioso tem o tempo como determinante em sua execuccedilatildeo No dizer de Jaeger

(1995 p 84) em Hesiacuteodo revela-se o valor do trabalho como qualidades para

formaccedilatildeo do homem Conclui-se que com o recurso da citaccedilatildeo Secircneca introduz na

enunciaccedilatildeo uma maacutexima que tem poder de autoridade de uma voz vinda dos

ancestrais trazendo agrave memoacuteria valores do passado que deveriam ser atualizados no

presente A ideia de trabalho labor ou ocupaccedilatildeo estaacute inteiramente relacionada ao

valor do tempo e serve de apoio agrave premissa de Secircneca natildeo se deve perder tempo

Isto significa dizer que cuidar do proacuteprio tempo eacute cuidar de si mesmo

32 O TEMPO Eacute CIRCULAR

Secircneca em diferentes momentos da elaboraccedilatildeo de suas epiacutestolas procura

persuadir Luciacutelio atraveacutes de estrateacutegias argumentativas que refletem sobre o sentido

da vida Na epiacutestola doze se estabelece um efeito dialoacutegico da linguagem pela

remissatildeo ao pensamento filosoacutefico dos mais antigos Essa forma de identificaccedilatildeo do

pensamento estoico com pensadores antecedentes contribui para a formulaccedilatildeo do

postulado da ideia do tempo ciacuteclico que causa um movimento circular e pressupotildee

uma regularidade Segundo Hirschberger (1969 p 266) os estoicos herdaram de

Heraacuteclito a doutrina da razatildeo universal e da lei coacutesmica e tanto deste como dos

334

Na epiacutestola 5833 Secircneca faz remissatildeo agrave essa metaacutefora das borras do vinho fazendo o seguinte comentaacuterio em excesso do vinho quem quer que depois de esvaziar a acircnfora vai ainda sorver as borras Resta agora eacute saber se satildeo as borras os uacuteltimos anos de vida ou se pelo contraacuterio satildeo a fase mais transparente e mais pura 335

Os versos 368-369 da obra de Hesiacuteodo mencionam o valor de poupar ldquo Bom eacute pegar do que se tem para o acircnimo eacute provaccedilatildeo precisar do que natildeo haacute convido-te nisto a pensar Farta-te do jarro quando o inicias e quando o acabas poupa o meio parcimocircnia inuacutetil poupar o fundordquo

276

pitagoacutericos eacute tirada a ideia do processo coacutesmico ciacuteclico Assim para os estoicos o

tempo eacute o intervalo do movimento do cosmo336

Toda a nossa existecircncia consta de partes de ciacuterculos concecircntricos em que os maiores abarcam os menores haacute um ciacuterculo que os rodeia e abarca a todos (este eacute o que conteacutem todo o tempo do nascimento agrave morte) haacute outro que delimita os anos da adolescecircncia outro que dentro da sua oacuterbita rodeia os anos da infacircncia aleacutem disso cada ano de per si conteacutem as subdivisotildees do tempo de cuja combinaccedilatildeo resulta a nossa vida um mecircs estaacute contido num ciacuterculo menor um dia tem um periacutemetro ainda mais curto mas mesmo ele tem um princiacutepio e um fim a luz e as trevas no constante alternar do universo tudo isso aparece multiplicado (Ep 12 67)

Secircneca destaca a maacutexima ldquoUm dia eacute um degrau na vidardquo (Ep 126) Mesmo o dia

sendo a menor parte da representaccedilatildeo do ciclo da vida tem comeccedilo e fim A dupla

face do dia representa luz e trevas (dia e noite) o que fornece significados

fundamentais para a ideia de luz como vida e trevas como morte

Foucault analisa a epiacutestola 12 de Secircneca com a seguinte reflexatildeo

Secircneca se refere a uma espeacutecie de especulaccedilatildeo de tema muito geral no pensamento antigo desde longa data segundo o qual toda a vida natildeo passa de um longo periacuteodo de um dia incluindo a manhatilde que eacute a infacircncia o meio-dia que eacute maturidade e a noite que eacute a velhice do mesmo modo um ano eacute como o periacuteodo de um dia incluindo a manhatilde da primavera e a noite do inverno tambeacutem cada mecircs eacute uma espeacutecie de periacuteodo de um dia em suma um dia o mero transcorrer do periacuteodo de um uacutenico dia constitui o modelo de organizaccedilatildeo do tempo de uma vida ou dos diferentes tempos das diferentes duraccedilotildees que se organizam em uma vida humana (FOUCAULT 2010a p 430

Na Antiguidade tambeacutem se concebia a duraccedilatildeo de um ano como uma metaacutefora de

representaccedilatildeo da vida A primavera eacute vista como a infacircncia o veratildeo a juventude o

outono a fase adulta e o inverno a velhice Essa comparaccedilatildeo entre as estaccedilotildees do

ano e as fases da vida tambeacutem eacute apontada por Oviacutedio na obra Metamorfoses

Natildeo vedes voacutes que o ano se divide imitando da vida as quatro Idades tambeacutem em quatro formas diferentes Na nova primavera eacute brando e tenro quase infante em mantilhas toma forccedilas entatildeo a deacutebil erva que esperanccedilas promete ao seu cultor que florescente observa tudo nos risonhos campos Mas inda esta verdura natildeo eacute uacutetil vendo-se flores soacute Agrave primavera sucede o rico estio semelhante a robusto mancebo porque o ano em estaccedilatildeo nenhuma como nesta tem tanta robustez tanta opulecircncia Passa o veratildeo a outono e jaacute depostos da juventude os vaacutelidos fervores aparece de catildes pintando a fronte Como maduro jaacute tempera a idade entre a de varatildeo forte e fraco velho Logo a trecircmulos passos chega o Inverno com semblante

336

Segundo informaccedilatildeo de Reale (1994a p 304) ldquoCrisipo (disciacutepulo de Cleanto que foi continuador de Zenatildeo) afirmava que o tempo eacute o intervalo do movimento do cosmo e como tal natildeo pode ter nenhuma capacidade de agir Ele eacute o efeito do ser-aiacute do viver e do mover-se dos corpos em geral do cosmo e como tal eacute incorpoacutereo pelo fato de ser infinito (nas dimensotildees de passado e futuro) e nenhum corpo para os estoicos pode ser infinitordquo

277

caduco ou jaacute de todo da coma varonil nua a cabeccedila ou de cacircndida grenha soacute povoada Tal eacute da nossa vida a viva imagem Sujeita estaacute a tais vicissitudes sem jamais descansar o que hoje somos amanhatilde natildeo seremos (OVIacuteDIO Metamorfoses XV 320-345)

337

A metaacutefora usada por Oviacutedio concebe a duraccedilatildeo da vida como o ciclo de um ano

com suas quatro estaccedilotildees Cada estaccedilatildeo tem seu tempo e suas caracteriacutesticas

assim como na vida humana Tal qual a natureza imprime as marcas designadas

para cada estaccedilatildeo o ser humano tambeacutem segue uma trajetoacuteria definida pelas fases

da vida como uma viagem que passa pelas quatro estaccedilotildees sendo que na

atualidade o duplo sentido de estaccedilatildeo pode ser aplicado agrave essa metaacutefora Se A

VIDA Eacute UMA VIAGEM como apreendida por este conceito metafoacuterico cada

indiacuteviduo tem uma trajetoacuteria definida pelas quatro estaccedilotildees Poreacutem a realidade eacute

que muitos natildeo completam o trajeto ficando em uma das estaccedilotildees antecipando a

finalizaccedilatildeo da viagem Mas Secircneca reflete sobre esta realidade e complementa

Uma viagem fica incompleta se pararmos a meio do caminho ou natildeo atingirmos o local pretendido ao passo que a vida eacute apenas incompleta se for imoral Onde quer que te detenhas se o fizeres conforme a moral a tua vida estaraacute completa (Ep 774)

Secircneca usa outra metaacutefora e argumentos que complementam suas reflexotildees sobre

o tempo a vida a velhice e a morte ldquocomecemos atingida a velhice a preparar

nossa bagagemrdquo (incipiamus vasa in senectute colligere Ep 191) O termo

bagagem (vasa) se constitui como expressatildeo metafoacuterica que aponta para o conceito

ldquoA VIDA Eacute UMA VIAGEMrdquo Quando algueacutem nasce ndash chega ndash e quando algueacutem morre

ndash parte Desse modo preparar nossa bagagem tem o sentido de preparar-se para a

viagem de volta ndash a morte

A comparaccedilatildeo da ideia de viagem com a de tempo implica tambeacutem o conceito que a

filosofia estoica adotou tempo eacute o intervalo do movimento Nessa perspectiva

viagem eacute um domiacutenio fonte que implica outros desdobramentos Viagem pressupotildee

movimento na direccedilatildeo de uma determinada rota Nessa rota podem ser encontrados

obstaacuteculos que soacute podem ser ultrapassados atraveacutes do combate

Organizemos portanto cada dia como se fosse o final da batalha (Ep 12 8)

338

337

Traduccedilatildeo de Francisco Joseacute Freire transcriccedilatildeo e atualizaccedilatildeo da grafia por Aristoacuteteles Angheben Predebon 338

Paul Veyne (1996 p 148) observa que Secircneca em algumas situaccedilotildees usa a metaacutefora do cosmo como um exeacutercito e os indiacuteviduos como soldados A partir de tais referecircncias identitifica-se o conceito metafoacuterico A VIDA Eacute UMA BATALHA

278

Neste dito de Secircneca ldquoorganizemos portanto cada dia como se fosse o final da

batalhardquo estaacute contido na metaacutefora estrutural A VIDA Eacute UMA VIAGEM COM

BATALHAS Na abordagem conceitual Lakoff e Johnson (2002 p 46) consideram

que metaacuteforas estruturam a maneira de um indiviacuteduo perceber pensar e agir e a

linguagem evidencia esse sistema Alguns termos recorrentes na linguagem satildeo

comuns a esse conceito lutar na vida vencer na vida ganhar a batalha perder a

batalha Na obra Meditaccedilotildees Marco Aureacutelio se expressa a esse respeito da

seguinte forma ldquoA arte de viver eacute mais semelhante agrave luta que agrave danccedila em nos

mantermos eretos e preparados para os acontecimentos imprevistosrdquo (Meditaccedilotildees

VII 61) Como defensor e continuador do estoicismo Marco Aureacutelio corrobora com

essa concepccedilatildeo ldquoorganizemos portanto cada dia como se fosse o final da batalhardquo

ao dar o seguinte conselho ldquoEacute da perfeiccedilatildeo moral passar cada dia como se fosse o

uacuteltimordquo (Meditaccedilotildees VII 69) Assim pode-se dizer que a batalha pode ser

constante mas o seu final pode acontecer a qualquer momento Para o estoicismo

o importante eacute estar preparado para encarar o momento final natildeo na perspectiva de

um futuro mas do momento presente

Secircneca persiste na argumentaccedilatildeo sobre a finitude da vida recorrendo tambeacutem ao

uso da maacutexima ldquoa morte vem gradualmente a que nos leva eacute a morte uacuteltimardquo (Ep

2421) Ele reflete sobre o tempo como intervalo do movimento na concepccedilatildeo

estoica de finitude assim como o dia tem o seu ponto inicial e seu ponto final o

tempo eacute identificado nesse intervalo que progressivamente se transforma nessa

trajetoacuteria marcada como iniacutecio e fim

[] natildeo caiacutemos na morte de repente antes avanccedilamos gradualmente para ela Morremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de uma parte da vida por isso mesmo agrave medida que noacutes crescemos a nossa vida vai decrescendo Comeccedilamos por perder a infacircncia depois a adolescecircncia depois a juventude Todo o tempo que decorreu ateacute ontem eacute tempo irrecuperaacutevel o proacuteprio dia em que estamos hoje eacute compartilhado com a morte Natildeo eacute a uacuteltima gota que esvazia a clepsidra mas toda a aacutegua que anteriormente foi escorrendo (Ep 2420-21)

A metaacutefora retoacuterica usada nesse trecho lanccedila matildeo da imagem da clepsidra339 A

persuasatildeo nessa epiacutestola de Secircneca se efetua natildeo somente no acircmbito da

convicccedilatildeo mas tambeacutem no da accedilatildeo Secircneca procura persuadir seu destinataacuterio de

que a certeza da morte deve ser um incentivo para o valor da vida A imagem

339

A clepsidra ou reloacutegio de aacutegua foi um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo Dispositivo movido a aacutegua que funciona por gravidade no mesmo princiacutepio da ampulheta (de areia)

279

fornecida pelo uso da metaacutefora da clepsidra toma uma forma persuasiva para

demonstrar que a constacircncia do ritmo do cair da gota de aacutegua da clepsidra vai

permitindo que ela se esvazie aos poucos ateacute deixar cair a uacuteltima gota A velhice eacute

um processo semelhante ao mecanismo da clepsidra pois tambeacutem eacute progressiva na

vida do indiviacuteduo desde o seu nascimento ateacute o momento de sua morte A reflexatildeo

sobre a natural condiccedilatildeo da morte pode contribuir para a relevacircncia da vida e o

cuidado em conservaacute-la diante de sua finitude O cuidado de si eacute voltado para essa

visatildeo de mundo ou seja estar sempre preparado para a partida como se o hoje

fosse o dia derradeiro

33 FLUIDEZ DO TEMPO

Secircneca constata que o tempo eacute veloz e que a passagem do seu curso eacute vertiginosa

Assim ele observa ldquoA natureza deu a tatildeo diminuta existecircncia a aparecircncia de uma

grande duraccedilatildeo dividindo-a em infacircncia em adolescecircncia em periacuteodo de transiccedilatildeo

da juventude e finalmente em velhicerdquo (Ep 493) Mais a seguir na sequecircncia das

epiacutestolas ele insiste [] assim tambeacutem noacutes nesta veloz carreira do tempo que eacute a

vida vemos sumir-se primeiro a infacircncia depois a adolescecircncia [] a juventude e a

idade madura (Ep702) Percebe-se que para Secircneca tempo e vida natildeo se

desvinculam sendo que as metaacuteforas relacionadas ao tempo aplicam-se tambeacutem agrave

vida Em suas reflexotildees na epiacutestola cinquenta e oito ele faz algumas consideraccedilotildees

sobre concepccedilotildees filosoacuteficas de Platatildeo concluindo com a ideia de que o ser dotado

de existecircncia proacutepria estaacute em um contiacutenuo devir sofrendo modificaccedilotildees contiacutenuas

Secircneca resgata de seus antepassados os sentidos fornecidos pela imagem da

correnteza de um rio sempre correndo em direccedilatildeo ao mar que eacute seu ponto final

sem possibilidade de retorno de sua trajetoacuteria

Nenhum de noacutes eacute na velhice idecircntico ao que foi na juventude nenhum de noacutes eacute pela manhatilde idecircntico ao que foi no dia anterior Os nossos corpos fluem rapidamente como a corrente dos rios Eacute este o sentido da frase de Heraacuteclito podemos e natildeo podemos mergulhar no mesmo rio O nome do rio permanece o mesmo a aacutegua essa jaacute passou adiante Num rio o fenocircmeno eacute mais sensiacutevel aos olhos do que num homem mas natildeo eacute menos raacutepido o curso do tempo em noacutes por isso me espanta a loucura que nos leva a tanto amarmos essa coisa fugidia que eacute o corpo e a temer morrermos um dia quando cada momento eacute a morte do estado imediatamente anterior (Ep 5822-23)

Ao tratar certas questotildees do tempo como um lugar comum Secircneca cita Heraacuteclito ao

usar a metaacutefora do tempo e a vida em analogia ao curso de um rio O uso do toacutepos

280

ldquoo tempo eacute velozrdquo produz uma intertextualidade que se estabelece a partir dessa

interaccedilatildeo que o lugar comum permite Essa metaacutefora que remonta a Heraacuteclito foi

redimensionada por Platatildeo340 ao tratar da fluidez do tempo Nessas aplicaccedilotildees da

metaacutefora o destaque eacute a ligeireza do movimento da aacutegua e a sua passagem

constante sem possibilidade de volta

Na Metamorfose Oviacutedio tambeacutem usa o recurso do lugar comum da metaacutefora que

funciona como comparaccedilatildeo do rio com o tempo

Nada no mundo haacute estaacutevel tudo muda seja a forma qualquer que os corpos tomem todas satildeo meras formas passageiras e vagantes imagens Corre o tempo como raacutepido rio cujo curso forccedila natildeo haacute que embargue Se detecirc-lo ningueacutem pode tambeacutem as leves horas ningueacutem pode deter se onda segunda Impele e daacute mais iacutempeto agrave primeira do mesmo modo sem cessar se seguem uns Instantes aos outros sucedendo e sempre renovando-se O presente sempre afasta ao passado e do futuro veloz foge o presente O que antes era jaacute passou jaacute natildeo eacute o que eacute deixando estaacute de ser no ponto em que subsiste e uns momentos assim outros expelem Observai como a noite se despenha no curso para dar lugar ao dia e como o dia o largo giro apressa para que a noite luacutegubre suceda no tempo em que repouso tudo

logra (OVIacuteDIO Metam XV 281-304)341

Oviacutedio tambeacutem lanccedila matildeo do toacutepos ldquoo tempo eacute velozrdquo com o recurso da metaacutefora da

passagem do rio fazendo aplicaccedilotildees mais especiacuteficas relacionadas agrave passagem do

tempo em termos de hora dia e noite Ele emprega tambeacutem uma concepccedilatildeo

filosoacutefica de passado presente e futuro Para os estoicos soacute o presente tem

ralidade o passado jaacute natildeo eacute e o futuro ainda natildeo eacute Nesta mesma esfera do

pensamento estoico Marco Aureacutelio tambeacutem faz referecircncia a esse lugar comum do

uso da metaacutefora do rio nos seguintes termos [] ldquotempo eacute um rio formado pelos

eventos uma torrente impetuosa Mal se avista uma coisa jaacute foi arrebatada e outra

se lhe segue que seraacute carregada por sua vezrdquo (Meditaccedilotildees IV43)

Na aplicaccedilatildeo feita por Marco Aureacutelio percebe-se a analogia da metaacutefora em torno

da concepccedilatildeo filosoacutefica estoica sobre o tempo A expressatildeo ldquotempo eacute um rio

formado pelos eventosrdquo sugere o conceito estoico de tempo como intervalo do

movimento A ideia de fluidez eacute unacircnime em todos os usos da metaacutefora do rio que

aparecem com diferentes aplicaccedilotildees na obra Meditaccedilotildees Assim Puente (2012

340

Platatildeo cita Heraacuteclito em Craacutetilo ldquoHeraacuteclito diz em algum lugar que ldquotudo passa e nada permanecerdquo e descrevendo os seres como a corrente de um rio declara que ldquoduas vezes no mesmo rio natildeo se poderia entrarrdquo (Craacutetilo 402a) Traduccedilatildeo de Luciano Ferreira de Souza 341

Traduccedilatildeo de Francisco Joseacute Freire - transcriccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de Aristoacuteteles Angheben Predebon

281

p117) observa essas metaacuteforas342 na obra de Marco Aureacutelio sinalizando que o

ponto central do uso da imagem do rio como metaacutefora eacute explicitar a transitoriedade

de todas as coisas Esse jaacute dito tambeacutem se atualiza atraveacutes da literatura como pode

ser verificado na obra de Lya Luft (2014) intitulada O tempo eacute um rio que corre Na

apresentaccedilatildeo a autora declara que trecircs obsessotildees marcaram a produccedilatildeo desta sua

obra as relaccedilotildees humanas o tempo e a morte que confere importacircncia agrave vida

Em suas reflexotildees dessa filosofia moral sobre o tempo Secircneca rememora um trecho

do poema de Vergiacutelio usando o recurso da citaccedilatildeo e tece o seguinte comentaacuterio

ldquoVergiacutelio sempre que alude agrave velocidade do tempo emprega o verbo fugirrdquo Secircneca

ainda observa que fugir pode representar a forma mais veloz de corrida

O tempo melhor da vida dos miacuteseros mortais eacute o primeiro a fugir surge logo a doenccedila a amarga velhice o cansaccedilo e enfim arrebata-os da dura morte a crueldade (Ep 10824)

343

Desses versos de Vergiacutelio Secircneca extrai uma reflexatildeo estoica que ele repassa para

seu destinataacuterio A leitura de Vergiacutelio o ajuda a pensar filosoficamente o verso ldquofoge

irreparaacutevel o tempordquo que eacute das Geoacutergicas Sed fugit interea fugit inreparabile

tempus (Georg III 284) Secircneca faz algumas conjecturas sobre as diferentes

possibilidades344 de conceber os sentidos do toacutepos ldquoo tempo fogerdquo que estaacute contido

no verso de Vergiacutelio Se um aprendiz de gramaacutetica analisar o verso diraacute que Vergiacutelio

faz referecircncia agrave velocidade do tempo usando o verbo fugir sem meditar

filosoficamente que fugir natildeo significa simplesmente andar mas a corrida veloz

Pode-se avaliar que o uso desse lugar comum resultou o ditado popular ldquoo tempo

voardquo

Admitindo que a infacircncia e juventude como o vigor da vida fenecem com rapidez o

indiviacuteduo deve apropriar-se dessas melhores fases como um bem pessoal Deve

tambeacutem persistir em agarrar-se aos efeitos das boas fases como um construto

342

Puente (2012 p 117) destaca a seguinte metaacutefora do rio usada por Marco Aureacutelio ldquoReflete amiuacutede com que rapidez os seres e os fatos passam e se esvanecem A substacircncia eacute como um rio num fluxo perene as forccedilas estatildeo em transformaccedilotildees contiacutenuas as causas em mudanccedilas incontaacuteveis quase nada eacute estaacutevel aiacute perto estaacute o infinito abismo do passado e o do futuro onde tudo desaparece (Meditaccedilotildees V 23) 343

Optima quaeque dies miseris mortalibus aevi prima fugit subeunt morbi tristisque senectus et labor et durae rapit inclementia mortis (Vergiacutelio Geoacutergicas III 668) 344

Secircneca (Ep 10829) pondera que de uma mesma mateacuteria cada um procura extrair o que eacute conveniente aos seus interesses e especialidade Se um filoacutelogo um gramaacutetico e um filoacutesofo fizerem um estudo da Repuacuteblica de Ciacutecero cada um faraacute sua leitura de acordo com suas intenccedilotildees individuais

282

positivo para a vida pois permanecendo seus efeitos daratildeo forccedila e acircnimo para o

enfrentamento da velhice como final da batalha

O conhecimento compartilhado favorece as referecircncias aos lugares comuns como

observado nas epiacutestolas de Secircneca no uso de metaacuteforas e citaccedilotildees ao recorrer a

determinados aspectos do toacutepos ldquoo tempo fogerdquo em seus conselhos a Luciacutelio Os

efeitos da intertextualidade estatildeo relacionados ao posicionamento discursivo que

Secircneca ocupa em seu discurso valendo-se deles como forccedila persuasiva Por tratar-

se de um tema tatildeo abstrato ele lanccedila matildeo do recurso da metaacutefora argumentando

sobre o tempo com o uso da estrateacutegia da retoacuterica metafoacuterica para alcanccedilar seus

propoacutesitos diante de seus leitores

Na organizaccedilatildeo de seu discurso as manifestaccedilotildees linguiacutesticas atraveacutes de

expressotildees metafoacutericas revelam conceitos metafoacutericos que contribuem para

identificaccedilatildeo de um posicionamento estoico Nota-se que Secircneca tratou de temas

tatildeo abstratos relacionando tempo vida velhice e morte como pode ser observado

em um de seus ditos que contribuem para ressaltar seus conselhos representando

uma faceta conclusiva de suas ideias ldquoordenemos agrave nossa alma que se mantenha

tranquila e paguemos sem queixume o tributo de nossa condiccedilatildeo mortalrdquo (Ep

1076) Portanto o cuidado de si torna-se a mola mestre para capacitar o indiviacuteduo

para o enfrentamento da velhice e da morte Foucault dimensiona esse valor para os

estoicos ao decifrar na atitude de Secircneca uma tentativa de libertar-se de tudo que

pudesse sujeitaacute-lo O lema se resumia em ldquonatildeo tirar os olhos de si mesmo e ordenar

toda a vida a esse eu que foi fixado como objetivo para si mesmordquo (FOUCAULT

2010a p 243)

Secircneca torna evidente o tema ldquoo tempordquo a partir da construccedilatildeo da cenografia que eacute

validada pela enunciaccedilatildeo no conjunto das epiacutestolas focalizando diferentes toacutepoi

constituintes do tema central Desse mesmo modo Paulo focaliza em suas duas

epiacutestolas agrave igreja de Corinto o tema ldquoo amorrdquo a partir da cenografia desenvolvendo

em seu discurso diferentes aspectos do tema que tambeacutem ocupam um lugar

comum na memoacuteria de seus destinataacuterios

283

4 O TEMA O AMOR NAS EPIacuteSTOLAS DE PAULO

Mas quando se diz que o amor eacute conhecido pelos frutos diz-se que ao mesmo tempo que o proacuteprio amor num certo sentido mora no oculto e justamente por isso soacute se daacute a conhecer nos frutos que o revelam Kierkegaard (2005 p22)

Talvez por uma possiacutevel interpretaccedilatildeo equivocada ficou convencionado de que na

liacutengua grega amor fraterno eacute philia amor entre casais eacute eros e amor divino eacute aacutegape

com sentidos demarcados para estas trecircs palavras com significados diferenciados

para falar sobre o amor Nota-se poreacutem que no grego claacutessico e koineacute natildeo haacute

possibilidade de delimitar precisamente seus significados pois em alguns pontos haacute

certa convergecircncia dos sentidos entre os trecircs vocaacutebulos apontados como pode ser

observado em diferentes autores claacutessicos

Cabe aqui pensar que estas trecircs delimitaccedilotildees dos termos mencionados jaacute

cristalizados como originaacuterios do grego natildeo se sustentam nem nos textos do grego

claacutessico nem no grego koineacute e nem mesmo no grego moderno Em Homero o

termo philo (φιλεω)345 aparece com sentidos variados de acordo com o contexto

acontecendo o mesmo fenocircmeno em obras de Hesiacuteodo e Heroacutedoto entre outros O

termo aacutegape aparece em ocorrecircncias mais restritas nos textos do grego claacutessico

Aristoacuteteles opta pela palavra philia principalmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco nos

livros VIII e IX oferecendo importantes contribuiccedilotildees com referecircncia ao termo

amizade que no sentido amplo se refere ao amor Na concepccedilatildeo aristoteacutelica

philia significa um tipo de amor abrangente identificado como amor entre famiacuteliares

entre amigos o amor e dedicaccedilatildeo a uma atividade e tambeacutem inclui o amor

especificamente entre casais Desse modo a noccedilatildeo de amor circunda a ideia de

sua aplicaccedilatildeo aos relacionamentos de um modo geral

345

O site httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseusabotlg00120011694 fornece informaccedilotildees precisas para localizaccedilatildeo de obras escritas no grego claacutessico que fazem uso dos termos philia aacutegape e eros Alguns exemplos podem ser citados sobre o uso de φιλεω com diversos significados Homero na Odisseia I421 e Iliacuteada II1694 Hesiacuteodo na Teogonia 97 Xenofontes no Simpoacutesio 821 Em Homero Odisseia 21289 aparece o termo ἀγάπη significando grande afeiccedilatildeo Na comeacutedia de Aristoacutefanes aparece na mesma fala tanto o termo referente ao verbo Philo na voz ativa quanto o verbo aacutegapo na voz passiva ὁτιὴ φιλῶ σ᾽ ὦ Δῆμ᾽ ἐραστής τ᾽ εἰμὶ σός (Because I adore you Mr Demos and because Irsquom your lover) 55

httpwwwloebclassicscomviewaristophanes-knights1998pb_LCL178227xml O termo eros significando amor eacute encontrado no Banquete de Platatildeo e em vaacuterios poetas como Euriacutepides e outros Na obra A Repuacuteblica Platatildeo usa a palavra philia em referecircncia ao amor agraves riquezas ( A Repuacuteblica IV 467b) Aristoacuteteles tambeacutem opta pela palavra philia tanto para referecircncia ao substantivo amizade quanto ao uso do verbo amar na obra Retoacuterica II4

284

Os tradutores da Septuaginta podem ter enfrentado certas dificuldades para

traduccedilatildeo da palavra amor do hebraico para o grego Conforme informaccedilatildeo de Stern

(2008 p 523) na liacutengua original dos judeus dois significados baacutesicos satildeo comuns

para se referir agrave ideia de amor Em um sentido ahavah eacute um significante que

contempla a noccedilatildeo de sublimidade de um sentimento chamado amor de forma

muito abrangente Em outro sentido a palavra chesed eacute definida como bondade

graccedila sem medida resultando como accedilatildeo positiva na manifestaccedilatildeo do amor Com

base nesses conceitos integrantes do original do Velho Testamento para traduccedilatildeo

da palavra amor no grego koineacute da Septuaginta346 estatildeo registrados os usos dos

dois termos philia e aacutegape A partir da traduccedilatildeo da Septuaginta o termo aacutegape

passa a ter uma ocorrecircncia mais acentuada no grego koineacute em relaccedilatildeo agraves

ocorrecircncias nos textos do grego claacutessico

No Novo Testamento tambeacutem aparecem os dois termos philia ou aacutegape mesmo

com referecircncia especiacutefica ao amor de Deus Exemplo bem singular pode ser

encontrado no evangelho de Joatildeo em que esses dois termos satildeo usados

indistintamente347

Essas justificativas expostas quanto ao uso dos trecircs vocaacutebulos philia aacutegape e eros

usados no grego claacutessico e koineacute tecircm como propoacutesito o de situar o posicionamento

de Paulo em relaccedilatildeo a escolha desses termos na sua escrita do grego koineacute Nos

textos das suas epiacutestolas aqui delimitados fica registrado o uso do termo aacutegape

significando amor em sentido muito amplo tanto em referecircncia ao amor fraternal

como tambeacutem ao amor de Deus Assim o termo aacutegape se manteacutem como

significante poreacutem com diferentes significados referentes ao amor

41 A ORIGEM DO AMOR

A cenografia constituiacuteda nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto como analisada

na segunda parte desta pesquisa eacute identificada como um manual de

aconselhamento que gira em torno do tema ldquoo amorrdquo Determinados problemas

346

Becker (2007 p 361) sugere que eacute possiacutevel supor que na escrita das epiacutestolas Paulo pressupotildee o conhecimento da Septuaginta por parte de seus destinataacuterios (cf 1 Cor 99 1421) 347

αυτος γαρ ο πατηρ φιλει υμας οτι υμεις εμε πεφιληκατε και πεπιστευκατε οτι εγω παρα του θεου εξηλθον (Pois o mesmo Pai vos ama visto como voacutes me amastes e crestes que saiacute de Deus Joatildeo 1627) Neste verso natildeo eacute usado aacutegape como em Joatildeo 316a Porque Deus amou o mundo [] ουτως γαρ ηγαπησεν ο θεος τον κοσμον []

285

naquela igreja estavam causando desuniatildeo Eacute nesses termos que logo apoacutes o

introito da epiacutestola de acordo com o gecircnero epistolograacutefico Paulo jaacute adiciona o

termo koinonia (кοινωνία) ou comunhatildeo colocando Jesus Cristo na interligaccedilatildeo

entre Deus e a igreja

Fiel eacute Deus pelo qual fostes chamados para a comunhatildeo de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor (1Cor 19)

Jesus Cristo eacute a representaccedilatildeo visiacutevel da fonte do amor que estaacute em Deus e eacute

distribuiacutedo agrave humanidade A mais altissonante declaraccedilatildeo ldquoDeus eacute amorrdquo (ο θεὁς

αγαπή ὲστιν) estaacute registrada na primeira epiacutestola de Joatildeo 4 8 Joatildeo proclama que

ldquonisto se manifestou o amor de Deus para conosco em que Deus enviou seu Filho

unigecircnito ao mundo (1 Joatildeo 49) O conselho do apoacutestolo Joatildeo ldquoAmados se Deus

assim nos amou noacutes tambeacutem devemos amar-nos uns aos outrosrdquo (1 Joatildeo 411)

ressoa e se conjuga tambeacutem aos conselhos de Paulo agrave igreja de Corinto

Rogo-vos irmatildeos em nome de nosso Senhor Jesus Cristo que sejais concordes no falar e que natildeo haja dissensotildees entre voacutes antes sejais unidos no mesmo pensamento e no mesmo parecer (1 Cor 110)

De acordo com a observaccedilatildeo de Brakemeir (2008 p27) quando Paulo requer a

uniatildeo da igreja de Corinto ldquoem nome de nosso Senhor Jesus Cristordquo ele respalda

sua proacutepria exortaccedilatildeo na autoridade de Jesus que representa o siacutembolo da maior

prova de amor

Ao avaliar o contexto social da comunidade que compunha a igreja de Corinto

Heyer (2008 p 102) interpreta os conselhos de Paulo como pertencentes ao campo

da eacutetica Esse autor alerta sobre a necessidade de se levar em conta a transmissatildeo

do discurso de Paulo atraveacutes da escrita de suas epiacutestolas a partir do lugar e

momento em que a enunciaccedilatildeo eacute efetivada Assim um dos pontos chave na eacutetica de

Paulo eacute a conduccedilatildeo dos atos com sabedoria pois a origem desta natildeo se apoia no

intelecto ou conhecimento humano como concebida pelos gregos Em suas

orientaccedilotildees sobre a eacutetica que tem como base o amor a sabedoria que tambeacutem eacute

divinamente inspirada deve servir como buacutessola para guiar a rota da caminhada

terrena e o modo de agir na vida diaacuteria Ao longo da primeira epiacutestola aos Coriacutentios

Paulo trata dos problemas suscitados evocando sempre o valor da praacutetica do amor

fraternal principalmente em relaccedilatildeo agraves divergecircncias em diferentes assuntos que

estavam causando desentendimentos

286

Paulo ressalta em sua epiacutestola que seus ensinamentos e exortaccedilotildees natildeo estatildeo

fundamentados na sabedoria humana mas naquela concedida por Deus como

manifestaccedilatildeo do seu amor

Mas como estaacute escrito As coisas que olhos natildeo viram nem ouvidos ouviram nem penetraram o coraccedilatildeo do homem satildeo as que Deus preparou para os que o amam (1Cor 29)

348

Porque desde a antiguidade natildeo se ouviu nem com ouvidos se percebeu nem com os olhos se viu um Deus aleacutem de ti que opera a favor daquele que por ele espera (Isaias 644)

Paulo recorre ao Velho Testamento sem deixar nenhuma pista para identificaccedilatildeo da

localizaccedilatildeo exata349 De acordo com as pesquisas sobre o uso do Velho Testamento

no Novo Testamento Ciampa e Rosner (2014 p 874) identificam que haacute um

paralelo bem proacuteximo entre a citaccedilatildeo feita por Paulo e a passagem biacuteblica de Isaias

644 Segundo esses autores este texto citado circulava no judaiacutesmo mais primitivo

enfatizando a real incapacidade humana de compreensatildeo dos misteacuterios de Deus

Atraveacutes dessa referecircncia ao velho testamento Paulo intensifica o valor e amplitude

da sabedoria de Deus que culmina na execuccedilatildeo do seu plano de salvaccedilatildeo O que

estes dois textos tecircm em comum por um lado eacute a indicaccedilatildeo da limitaccedilatildeo da raccedila

humana em alcanccedilar a manifestaccedilatildeo da sabedoria de Deus Por outro lado este

privileacutegio eacute reservado para os que amam a Deus como estaacute fundamentado na lei de

Moiseacutes ldquoAmaraacutes pois ao Senhor teu Deus de todo o teu coraccedilatildeo de toda a tua

alma e de todas as tuas forccedilasrdquo (Deut 65) No primeiro plano o que se nota no

discurso de Paulo eacute uma heterogeneidade mostrada pela estrateacutegia argumentativa

da indicaccedilatildeo de um texto conhecido que faz remissatildeo direta a outro discurso No

segundo plano a heterogeneidade constitutiva estaacute presente nas camadas

sobrepostas a outros discursos gerando um efeito de discursividade em relaccedilatildeo ao

tema abordado a partir de sentidos resultantes de efeitos do interdiscurso

Pela escolha da referecircncia ao texto antigo Paulo remete seus leitores agrave voz

profeacutetica de Isaias que pelo seu discurso traz agrave lembranccedila o fato de que o

relacionamento do ser humano com Deus proveacutem do amor e natildeo da sabedoria ou

348

αλλα καθως γεγραπται α οφθαλμος ουκ ειδεν και ους ουκ ηκουσεν και επι καρδιαν ανθρωπου ουκ ανεβη α ητοιμασεν ο θεος τοις αγαπωσιν αυτον (προς κορινθίους α 29) No texto da Septuaginta a citaccedilatildeo eacute identificada em Isaias 643 ἀπὸ τοῦ αἰῶνος οὐκ ἠκούσαμεν οὐδὲ οἱ ὀφθαλμοὶ ἡμῶν εἶδον θεὸν πλὴν σοῦ καὶ τὰ ἔργα σου ἃ ποιήσεις τοῖς ὑπομένουσιν ἔλεον 349

Brakemeier (2008 41) defende que a citaccedilatildeo de Paulo em 1Cor 29 se refere a um texto apoacutecrifo ainda natildeo identificado pela pesquisa exegeacutetica mas que haacute algumas passagens no Velho Testamento que tecircm alguns pontos em comum com essa citaccedilatildeo

287

conhecimento Com base nesta premissa Paulo direciona seus ensinamentos e

aconselhamentos com base no amor de Deus que eacute a fonte da sabedoria

Na primeira epiacutestola aos Coriacutentios as exortaccedilotildees e conselhos de Paulo estatildeo

voltados para a urgente necessidade da igreja de Corinto colocar em praacutetica a

essecircncia e o verdadeiro significado do amor Nesta epiacutestola o ethos de Paulo se

manifesta na figura de um liacuteder rigoroso em relaccedilatildeo ao cumprimento dos princiacutepios

cristatildeos norteadores da missatildeo e propoacutesitos daquela igreja Segundo Schreiner

(2015 p 286) ldquoo amor eacute o coraccedilatildeo e a alma da eacutetica paulinardquo Este autor ainda

observa que o tema sobre o amor permeia os discursos de Paulo nas demais

epiacutestolas a outros destinataacuterios como na epiacutestola agrave igreja de Roma ldquoA ningueacutem

devais coisa alguma a natildeo ser o amor com que vos ameis uns aos outros porque

quem ama aos outros cumpriu a leirdquo (Romanos 138) Assim o amor eacute a virtude

suprema e todas as demais estatildeo vinculadas a ele como origem e fundamento

Na segunda epiacutestola em sua correspondecircncia de aconselhamento e instruccedilotildees

Paulo parte do princiacutepio de que as admoestaccedilotildees e os ensinamentos jaacute haviam sido

ministrados anteriormente enfatizando agora o valor da prova de que o amor se

revela pelas accedilotildees Por isso ele se coloca tanto no lugar de quem eacute beneficiaacuterio da

manifestaccedilatildeo do amor de Deus como tambeacutem de quem se predispotildee a compartilhar

desse amor aos outros

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo o Pai das misericoacuterdias e Deus de toda a consolaccedilatildeo que nos consola em toda a nossa tribulaccedilatildeo para que tambeacutem possamos consolar os que estiverem em alguma tribulaccedilatildeo pela consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos consolados por Deus (2 Cor13-4) Porque em muita tribulaccedilatildeo e anguacutestia de coraccedilatildeo vos escrevi com muitas laacutegrimas natildeo para que vos entristececircsseis mas para que conhececircsseis o amor que abundantemente vos tenho (2 Cor 24)

No introito desta segunda epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo deixa revelado seu

ethos que se enuncia a partir de costumes da tradiccedilatildeo judaica Kruse (2008 p 60)

afirma que a expressatildeo Blessed be God350 faz parte da liturgia judaica nas

sinagogas desde o Velho Testamento Em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo judaica Paulo

acrescenta um novo elemento agrave expressatildeo ldquoBendito seja o Deus e Pai de nosso

Senhor Jesus Cristordquo Nessa atitude de agradecimento como rito judaico Paulo

350

Blessed be God eacute uma traduccedilatildeo da Biacuteblia King James Na nova versatildeo a traduccedilatildeo eacute Praise be to the God Para a maioria das traduccedilotildees em liacutengua portuguesa se manteve ldquoBendito seja o Deusrdquo []

288

inclui em sua gratidatildeo de forma indireta a figura de Jesus Cristo como filho de

Deus

Outro destaque no texto desta introduccedilatildeo da epiacutestola de Paulo eacute verificado no uso

da palavra consolaccedilatildeo Kruse (2008 p 61) explica que o termo grego παρακαλεω

tem dois sentidos distintos exortar e consolar No sentido de exortar o uso era

comum entre os gregos e judeus helecircnicos No sentido de consolo ou conforto a

aplicaccedilatildeo do termo eacute mais frequente na Septuaginta Observa-se que o sentido de

consolaccedilatildeo identificado no texto de Paulo remonta tambeacutem aos textos profeacuteticos

em uma relaccedilatildeo de intertextualidade Esse fato contribui para os sentidos que Paulo

procura extrair de seu discurso ao mencionar a consolaccedilatildeo que vem de Deus como

fonte para consolaccedilatildeo aos outros

O reconhecimento da consolaccedilatildeo de Deus nutre em Paulo a capacidade de se abrir

atraveacutes da correspondecircncia diante da igreja de Corinto a fim de colocar-se como

sujeito que emite um dizer verdadeiro sobre si mesmo A esse respeito encontra-se

nas pesquisas de Foucault sobre a espiritualidade cristatilde na Antiguidade um

comentaacuterio pertinente a esse comportamento de Paulo diante de seus destinataacuterios

Foucault (2010a p 325) aponta que ldquoo dizer verdadeiro sobre si mesmo tornou-se

um princiacutepio fundamental na relaccedilatildeo do sujeito consigo mesmo e um elemento

necessaacuterio ao pertencimento do indiviacuteduo a uma comunidaderdquo Nesse contexto

quando Paulo declara ldquoPorque em muita tribulaccedilatildeo e anguacutestia de coraccedilatildeo vos

escrevi com muitas laacutegrimasrdquo [] ele revela um ethos parresiaacutestico demonstrando

coragem e ousadia em expor-se diante de seus destinataacuterios Na conclusatildeo de sua

confissatildeo ele declara ldquopara que conhececircsseis o amor que abundantemente vos

tenhordquo Paulo efetiva seus argumentos com seu proacuteprio exemplo como modelo para

aquela comunidade sob sua lideranccedila

42 O AMOR PROMOVE A UNIAtildeO

A primeira epiacutestola de Paulo agrave igreja de Corinto toca em vaacuterios assuntos que

estavam causando perturbaccedilotildees e dissensotildees entre os participantes daquela

comunidade Na concepccedilatildeo de Heyer (2008 p 115) pode-se considerar que uma

grande dificuldade encontrada por Paulo era lidar com um grupo heterogecircneo em

vaacuterios aspectos gregos judeus ricos pobres intelectuais iletrados escravos

livres entre outras desigualdades Um dos momentos cruciais das desavenccedilas

289

ocorriam pontualmente no evento que marcava a celebraccedilatildeo da ceia Heyer (2008

115) relata que o ritual da ceia propriamente dito era antecedido por uma ceia

ordinaacuteria em que cada um era responsaacutevel pela sua proacutepria refeiccedilatildeo As diferenccedilas

eram visivelmente realccediladas entre os que possuiacuteam maiores condiccedilotildees financeiras

para aquisiccedilatildeo dos alimentos para aquele momento estipulado em relaccedilatildeo aos

menos favorecidos Assim o clima para a realizaccedilatildeo da segunda parte era

totalmente desfavoraacutevel A esse respeito Becker (2007 p359) tambeacutem contribui

com suas informaccedilotildees apontando que na primeira parte daquele cerimonial a

comunhatildeo dos fieacuteis deveria expressar-se no momento da refeiccedilatildeo comum Na

segunda parte o lugar central deveria ser ocupado pelo exerciacutecio das palavras de

instituiccedilatildeo do memorial que transmitiam agrave comunidade a lembranccedila da morte

sacrificial e salvadora de Jesus Cristo

Supostamente Paulo deve ter recebido queixas a respeito daquelas ocorrecircncias

que estavam promovendo alteraccedilotildees no verdadeiro sentido daquelas reuniotildees Ele

reage de modo enfaacutetico para tratar o problema e exortar sobre a falta de uniatildeo que

estava ocorrendo e a ausecircncia da disposiccedilatildeo em compartilhar Seu ethos na escrita

da epiacutestola se mostra eneacutergico mas ao mesmo tempo paciente para repetir todas

as instruccedilotildees jaacute conhecidas O amor deveria ser o ingrediente principal no ambiente

daquele ajuntamento que acontecia em espaccedilos de tempo determinados por cada

comunidade

Porque antes de tudo ouccedilo que quando vos ajuntais na igreja haacute entre voacutes dissensotildees e em parte o creio (1 Cor1118) porque quando comeis cada um toma antes de outrem a sua proacutepria ceia e assim um fica com fome e outro se embriaga Natildeo tendes porventura casas onde comer e beber Ou desprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada tecircm Que vos direi Louvar-vos-ei Nisto natildeo vos louvo (1 Cor 112122)

Paulo evoca os problemas que circundavam o acontecimento do memorial da ceia

do Senhor para corrigir as discrepacircncias que estavam causando as distorccedilotildees do

verdadeiro significado daquela ordenanccedila de Jesus ldquoFazei isto em memoacuteria de

mimrdquo Por meio desta citaccedilatildeo Paulo atualiza o modelo que deveria ser seguido na

celebraccedilatildeo da ceia

[] Porque eu recebi do Senhor o que tambeacutem vos entreguei que o Senhor Jesus na noite em que foi traiacutedo tomou patildeo e havendo dado graccedilas o partiu e disse Isto eacute o meu corpo que eacute por voacutes fazei isto em memoacuteria de mim Semelhantemente tambeacutem depois de cear tomou o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o novo pacto no meu sangue fazei isto todas as vezes que o beberdes em memoacuteria de mim Porque todas as vezes que comerdes deste

290

patildeo e beberdes do caacutelice estareis anunciando a morte do Senhor ateacute que ele venha (1Cor 1123-26)

Pode-se pensar que atraveacutes da igreja primitiva em Jerusaleacutem originou-se o

costume de reuniatildeo para compartilhar da ceia Por certo deveria haver um espiacuterito

de comunhatildeo que com o passar do tempo foi se descaracterizando O significado

mais profundo do cerimonial da ceia pressupotildee como pano de fundo o verdadeiro

sentido do amor O memorial tem como finalidade lembrar o sacrifiacutecio de Jesus na

cruz dando seu corpo e seu sangue pela humanidade Paulo traz agrave memoacuteria de

seus destinataacuterios a cena da uacuteltima ceia realizada por Jesus no acontecimento da

paacutescoa judaica

Entre alguns estudiosos que levantam certos questionamentos sobre a fonte usada

por Paulo na descriccedilatildeo da cena da uacuteltima ceia Heyer (2008 p 116) atenta para

alguns pontos a respeito do intertexto desta descriccedilatildeo de Paulo com a do Evangelho

de Lucas

E tomando patildeo e havendo dado graccedilas partiu-o e deu-lho dizendo Isto eacute o meu corpo que eacute dado por voacutes fazei isto em memoacuteria de mim Semelhantemente depois da ceia tomou o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o novo pacto em meu sangue que eacute derramado por voacutes (Lucas 2219-20)

De acordo com informaccedilotildees de Heyer (2008 p 117) a fonte que foi utilizada por

Lucas no relato da ceia pascoal deve ter sido a mesma usada por Paulo jaacute que a

escrita desta epiacutestola eacute anterior agrave dos evangelhos Com essa citaccedilatildeo Paulo procura

resgatar o verdadeiro significado da celebraccedilatildeo destacando a importacircncia dos

elementos simbolizados por meio do patildeo e do vinho Os efeitos de intertextualidade

entre os dois textos contribuem como recurso argumentativo para os ensinamentos

de Paulo Em sua homilia sobre esta passagem biacuteblica Joatildeo Crisoacutestomo faz a

seguinte indagaccedilatildeo retoacuterica ldquoCristo deu o seu corpo e tu natildeo daacutes igualmente nem o

patildeo comumrdquo (Homilia XXVII 24) Para Crisoacutestomo o foco de atenccedilatildeo dos

conselhos de Paulo estava centrado no problema das divisotildees entre os participantes

da igreja de Corinto que se agravavam no momento das reuniotildees de participaccedilatildeo da

ceia Assim Crisoacutestomos argumenta ldquoA igreja de fato natildeo foi construiacuteda para nos

dividirmos quando nos reunimos mas a fim de nos unirmos quando divididosrdquo

(Homilia XXVII 22)

Atraveacutes do recurso da citaccedilatildeo Paulo transmite seus ensinamentos exortando seus

leitores a respeito do verdadeiro significado do patildeo e do vinho no ato daquela

291

celebraccedilatildeo A representaccedilatildeo daqueles siacutembolos estava sendo desvirtuada pois nos

ajuntamentos o partir do patildeo servia para realccedilar as desigualdades entre os grupos e

o vinho para embriaguez daqueles que se afastaram dos propoacutesitos daquele

memorial

Paulo daacute sequecircncia agraves suas exortaccedilotildees e ensinamentos quanto agrave uniatildeo da igreja

pelos laccedilos do amor lanccedilando matildeo do uso da metaacutefora das funccedilotildees de partes do

corpo Haacute de se notar que o uso dessa metaacutefora como recurso argumentativo eacute

identificado em alguns textos da Antiguidade Um exemplo desse uso eacute encontrado

em Aristoacuteteles quando ele reflete ldquoassim como o olho a matildeo o peacute e em geral cada

parte do corpo tem evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que o

homem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas [] (Eacutetica a

Nicocircmaco I1098a) Aristoacuteteles usa esta metaacutefora como analogia agraves diferentes

funccedilotildees que cada pessoa exerce e o significado que isto resulta em cada um Na

epiacutestola de Paulo o uso desta mesma metaacutefora relacionada ao toacutepos ldquouniatildeo do

corpordquo eacute mais amplo e detalhado indo aleacutem da aplicaccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

adquirindo novos sentidos naquele contexto

Pois em um soacute Espiacuterito fomos todos noacutes batizados em um soacute corpo quer judeus quer gregos quer escravos quer livres e a todos noacutes foi dado beber de um soacute Espiacuterito Porque tambeacutem o corpo natildeo eacute um membro mas muitos Se o peacute disser Porque natildeo sou matildeo natildeo sou do corpo nem por isso deixaraacute de ser do corpo E se a orelha disser Porque natildeo sou olho natildeo sou do corpo nem por isso deixaraacute de ser do corpo Se o corpo todo fosse olho onde estaria o ouvido Se todo fosse ouvido onde estaria o olfato Mas agora Deus colocou os membros no corpo cada um deles como quis E se todos fossem um soacute membro onde estaria o corpo Agora poreacutem haacute muitos membros mas um soacute corpo E o olho natildeo pode dizer agrave matildeo Natildeo tenho necessidade de ti nem ainda a cabeccedila aos peacutes Natildeo tenho necessidade de voacutes Antes os membros do corpo que parecem ser mais fracos satildeo necessaacuterios e os membros do corpo que reputamos serem menos honrados a esses revestimos com muito mais honra e os que em noacutes natildeo satildeo decorosos tecircm muito mais decoro ao passo que os decorosos natildeo tecircm necessidade disso Mas Deus assim formou o corpo dando muito mais honra ao que tinha falta dela para que natildeo haja divisatildeo no corpo mas

que os membros tenham igual cuidado uns dos outros (1Cor 1213-25)

Em seu comentaacuterio da primeira epiacutestola aos Coriacutentios Brakemeier (2008 p 164)

analisa algumas questotildees enfrentadas por Paulo em relaccedilatildeo aos problemas

existentes naquela comunidade Este autor procura identificar o modo como Paulo

relaciona diversidade e unidade atraveacutes da imagem do corpo humano e seus

membros Brakemeier (2008 p165) relata que na tradiccedilatildeo estoica essa metaacutefora

292

era recorrente e tambeacutem fazia parte da faacutebula de Menenio Agripa351como aquele

personagem que conseguiu debelar um conflito de classe em Roma usando esta

metaacutefora como estrateacutegia retoacuterica de persuasatildeo no desenvolvimento do toacutepos

ldquouniatildeo do corpordquo

Ao usar uma metaacutefora que circulava como origem em um lugar comum Paulo extrai

dela aplicaccedilotildees bem especiacuteficas agrave realidade vivenciada por aquela comunidade

para unir a ideia de diversidade com a de unidade As indagaccedilotildees retoacutericas vatildeo

sendo colocadas para reflexatildeo da importacircncia do papel que cada membro exerce

para funcionamento do corpo Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo para nenhum membro do

corpo pois cada um tem a sua especificidade sem condiccedilotildees de um tomar o lugar

do outro ou esperar que outro exerccedila o papel que eacute proacuteprio de cada um Eacute nessa

direccedilatildeo do raciociacutenio que Paulo coloca a importacircncia da unidade na adversidade ldquoE

se todos fossem um soacute membro onde estaria o corpo Agora poreacutem haacute muitos

membros mas um soacute corpordquo Nos ensinamentos de Paulo o elo que une os

membros em um soacute corpo eacute o amor natildeo pela capacidade e sabedoria humana mas

o amor que proveacutem de Deus A esse respeito Schreiner (2015 p 308) compreende

que esta unidade defendida por Paulo se manifesta no cuidado de um pelo outro de

modo que todos tenham oportunidade de participar das alegrias ou tristezas uns dos

outros Nessas condiccedilotildees os membros tornam-se um soacute corpo sem distinccedilotildees ou

privileacutegios

No uacuteltimo capiacutetulo da primeira epiacutestola aos participantes da comunidade de Corinto

Paulo incentiva-os a colocar em praacutetica os seus ensinamentos anteriores ajudando

alguns grupos da igreja de Jerusaleacutem que por razotildees natildeo mencionadas estavam

enfrentando algumas necessidades

No primeiro dia da semana cada um de voacutes ponha de parte o que puder conforme tiver prosperado guardando-o para que se natildeo faccedilam coletas quando eu chegar E quando tiver chegado mandarei os que por carta aprovardes para levar a vossa daacutediva a Jerusaleacutem (1Cor 16 23)

351

Tito Liacutevio (ab vrbe condita II 32-33) conta que Menenio narrou aos soldados uma faacutebula sobre as partes do corpo humano e como cada uma tinha seu propoacutesito no objetivo maior que eacute o funcionamento do corpo O resto do corpo acreditou que o estocircmago estava se aproveitando e assim resolveu parar de nutri-lo Logo outras partes comeccedilaram a ficar fatigadas e incapazes de funcionar pois perceberam que o estocircmago tinha uma funccedilatildeo e o resto do corpo era nada sem ele Na histoacuteria o estocircmago representa os patriacutecios e o resto do corpo a plebe No fim foi firmado um acordo entre os dois grupos

293

Segundo Heyer (2008 123) a ideia de unidade da igreja eacute abrangente para aleacutem

dos limites de Corinto No fechamento da primeira epiacutestola Paulo orienta a igreja

sobre a oferta que deveria ser enviada agrave igreja de Jerusaleacutem Natildeo se sabe ao certo

que tipo de necessidade havia naquela igreja mas a igreja de Corinto jaacute estaria

ciente do problema Becker (2007 p 371) avalia que Paulo natildeo se deteve nas

causas do empobrecimento de grupos da comunidade primitiva de Jerusaleacutem

Aquela pobreza era motivo suficiente para despertar nas comunidades cristatildes a

responsabilidade de levar as cargas uns dos outros como o proacuteprio Paulo escreve

tambeacutem aos gaacutelatas ldquoLevai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de

Cristordquo352 (Gaacutel 62)

Heyer (2008 123) enfatiza a postura de Paulo em unir dois mundos gregos e

judeus Esta natildeo era somente uma prova de amor e solidariedade mas tambeacutem de

uniatildeo mais ampla das igrejas como corpo de Cristo

De modo geral haacute uma concordacircncia de que na segunda epiacutestola agrave igreja de

Corinto Paulo daacute mais ecircnfase agraves suas instruccedilotildees e fornece mais detalhes sobre a

importacircncia de ofertar natildeo como obrigaccedilatildeo ou imposiccedilatildeo mas como demonstraccedilatildeo

de amor Ele inicia suas admoestaccedilotildees com o exemplo das igrejas da Macedocircnia

como argumento de convencimento

Tambeacutem irmatildeos vos fazemos conhecer a graccedila de Deus que foi dada agraves igrejas da Macedocircnia como em muita prova de tribulaccedilatildeo a abundacircncia do seu gozo e sua profunda pobreza abundaram em riquezas da sua generosidade (2 Cor 812) Ora assim como abundais em tudo em feacute em palavra em ciecircncia em todo o zelo no vosso amor para conosco vede que tambeacutem nesta graccedila abundeis Natildeo digo isto como quem manda mas para provar mediante o zelo de outros a sinceridade de vosso amor pois conheceis a graccedila de nosso Senhor Jesus Cristo que sendo rico por amor de voacutes se fez pobre para que pela sua pobreza focircsseis enriquecidos E nisto dou o meu parecer pois isto vos conveacutem a voacutes que primeiro comeccedilastes desde o ano passado natildeo soacute a participar mas tambeacutem a querer agora pois levai a termo a obra para que assim como houve a prontidatildeo no querer haja tambeacutem o cumprir segundo o que tendes Porque se haacute prontidatildeo de vontade eacute aceitaacutevel segundo o que algueacutem tem e natildeo segundo o que natildeo tem Pois digo isto natildeo para que haja aliacutevio para outros e aperto para voacutes mas para que haja igualdade suprindo neste tempo presente na vossa abundacircncia a falta dos outros para que tambeacutem a abundacircncia deles venha a suprir a vossa falta e assim haja igualdade como estaacute escrito Ao que muito colheu natildeo sobrou e ao que pouco colheu natildeo faltou (2 Cor 8 7 -15)

352

A lei de Cristo eacute ldquoUm novo mandamento vos dou que vos ameis uns aos outros como eu vos amei a voacutes (Joatildeo 1334)

294

Aleacutem de Paulo fazer menccedilatildeo agrave atitude dos cristatildeos da Macedocircnia como exemplo

ele tambeacutem lanccedila matildeo da citaccedilatildeo para reforccedilar seus argumentos Ele remete seu

dito agraves experiecircncias do povo de Israel na caminhada do deserto quando eram

alimentados pelo manaacute que caiacutea do ceacuteu Como de costume ela afirma estaacute escrito

mas natildeo indica a citaccedilatildeo ldquoAo que muito colheu natildeo sobrou e ao que pouco colheu

natildeo faltourdquo texto este que pode ser identificado no livro de Exocircdo353 Com referecircncia

ao manaacute todos se saciavam e natildeo faltava e nem sobrava o alimento pois o

abastecimento era especificamente para o consumo diaacuterio Kruse (2008 p 154)

interpreta esta citaccedilatildeo como uma ilustraccedilatildeo para mostrar o senso de igualdade na

experiecircncia da comunidade israelita Quando Deus provinha o manaacute do ceacuteu cada

famiacutelia recolhia a quantidade suficiente para os habitantes de sua tenda Havia

igualdade entre todos cada famiacutelia recolhia o manaacute de acordo com suas

necessidades Com esta citaccedilatildeo Paulo centraliza seu foco na igualdade como

relevacircncia para as comunidades cristatildes

No ano anterior eacutepoca em que foi escrita a primeira epiacutestola os cristatildeos de Corinto

haviam contribuiacutedo para ajudar a igreja de Jerusaleacutem Na segunda epiacutestola Paulo

relembra [] ldquoprimeiro comeccedilastes desde o ano passado natildeo soacute a participar mas

tambeacutem a quererrdquo[] A manifestaccedilatildeo de amor da igreja de Corinto para com a de

Jerusaleacutem serviu de exemplo agraves igrejas da Macedocircnia como o proacuteprio Paulo relata

[] porque bem sei a vossa prontidatildeo pela qual me glorio de voacutes perante

os macedocircnios dizendo que a Acaia estaacute pronta desde o ano passado e o vosso zelo tem estimulado muitos (2Cor 92)

Na sequecircncia da segunda epiacutestola Paulo continua animando e incentivando a igreja

a agir com amor e fidelidade pois Deus ama ao que oferta com inteireza de coraccedilatildeo

Cada um contribua segundo propocircs no seu coraccedilatildeo natildeo com tristeza nem

por constrangimento porque Deus ama ao que daacute com alegria (2Cor 97)

O termo referente a amor354 usado no grego como aacutegape (αγαπη) eacute identificado na

escrita de Paulo indistintamente tanto com referecircncias ao amor fraternal quanto ao

353

Quando poreacutem o mediam com o gocircmer nada sobejava ao que colhera muito nem faltava ao que colhera pouco colhia cada um tanto quanto podia comer (Ecircxodo 1618) Gocircmer eacute uma medida de secos equivalente a mais ou menos um litro e meio 354

Na traduccedilatildeo Vulgata o termo amor tem uso distinto para amor fraternal e amor de Deus et caritate ex nobis in vobis ( 2Cor 87 no vosso amor para conosco) e hilarem enim datorem diligit Deus (2 Cor 97 Deus ama ao que daacute com alegria)

295

amor de Deus Na culminacircncia de seus aconselhamentos Paulo destaca que o

amor que impulsiona o ato de ofertar se reverte em favor dos que contribuem

Ora aquele que daacute a semente ao que semeia e patildeo para comer tambeacutem daraacute e multiplicaraacute a vossa sementeira e aumentaraacute os frutos da vossa justiccedila ( 2Cor 910)

Atraveacutes da interdiscursividade desses ensinamentos de Paulo percebe-se atraveacutes

de seus conselhos um princiacutepio judaico norteador do ato de ofertar como

identificado em Malaquias 310355 O posicionamento de Paulo indica que a

recompensa dada por Deus a quem contribui com alegria natildeo se firma no campo da

troca mas na recompensa natural pela disponibilidade de quem age impulsionado

pelo amor ao proacuteximo sabendo que Deus supre mais do que o suficiente Pensar no

outro eacute uma forma de estabelecer a permanecircncia do amor nos relacionamentos e

sobretudo a uniatildeo que faz refletir o amor de Deus

O incentivo e estiacutemulo que Paulo exerce sobre a igreja de Corinto quanto agrave

manifestaccedilatildeo de amor ao ajudar os outros tambeacutem estaacute presente em suas epiacutestolas

agraves outras igrejas como a de Roma a da Galaacutecia e de Filipos Portanto seu ethos se

mostra como ajudador e colaborador passando para seus leitores o valor da

unidade em meio agrave diversidade de etnias niacutevel social e intelectual entre outras e o

valor do ato de doar como prova de amor

43 A GRANDEZA DO AMOR

O capiacutetulo treze356 da primeira epiacutestola aos Coriacutentios pode ser interpretado como

um hino357 ao amor nos termos que Brakemeier (2008 p 171) sustenta ldquoPode-se

355

Trazei todo o diacutezimo ao Tesouro da Casa para que haja alimento em minha casa testai-me agora nisto ndash diz o Eterno dos Exeacutercitos ndash (e vereis) se natildeo vos abrirei as janelas do ceacuteu e vos derramarei uma becircnccedilatildeo para que haja mais do que o suficiente (Mal 310 Biacuteblia Hebraica) 356

Ainda que eu falasse as liacutenguas dos homens e dos anjos e natildeo tivesse amor seria como o metal que soa ou como o ciacutembalo que retine E ainda que tivesse o dom de profecia e conhecesse todos os misteacuterios e toda a ciecircncia e ainda que tivesse toda feacute de maneira tal que transportasse os montes e natildeo tivesse amor nada seria E ainda que distribuiacutesse todos os meus bens para sustento dos pobres e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado e natildeo tivesse amor nada disso me aproveitaria O amor eacute sofredor eacute benigno o amor natildeo eacute invejoso o amor natildeo se vangloria natildeo se ensoberbece natildeo se porta inconvenientemente natildeo busca os seus proacuteprios interesses natildeo se irrita natildeo suspeita mal natildeo se regozija com a injusticcedila mas se regozija com a verdade tudo sofre tudo crecirc tudo espera tudo suporta O amor jamais acaba mas havendo profecias seratildeo aniquiladas havendo liacutenguas cessaratildeo havendo ciecircncia desapareceraacute porque em parte conhecemos e em parte profetizamos mas quando vier o que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino pensava como menino mas logo que cheguei a ser homem acabei com as coisas de menino Porque agora vemos como por espelho em enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei plenamente como tambeacutem sou plenamente

296

perfeitamente falar num ldquohinordquo ao amor ou num ldquocacircnticordquo embora natildeo se trate de

poesia em sentido riacutegido e sim de prosa lavrada em estilo solene e lapidadordquo Fato

este que se justifica pois sua mensagem evoca exatamente o louvor agrave grandeza de

um amor que segundo Stern (2008 p 520) se expressa em ldquoatos de benevolecircncia

bondade e misericoacuterdia nos quais mente e vontade estatildeo unidos porque receberam

de Deus a motivaccedilatildeo e o poderrdquo

Ruden (2013 p193) destaca o uso da metaacutefora usada por Paulo logo no iniacutecio do

capiacutetulo ldquose natildeo tivesse amor seria como o metal que soa ou como o ciacutembalo que

retinerdquo358 No contexto em que satildeo introduzidas essas reflexotildees sobre o amor havia

uma preocupaccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo na convivecircncia daquela comunidade Um dos

fatos que agravava as desavenccedilas era certo tumulto que ocorria na hora do

ajuntamento por causa das liacutenguas estranhas que eram pronunciadas ao mesmo

tempo Paulo usa o recurso retoacuterico da metaacutefora para exatamente alertar que tudo

aquilo poderia acontecer mas se o amor estivesse ausente tudo aquilo seria como

o metal que soa ou como ciacutembalo que retine Esta menccedilatildeo agravequeles sons359

altissonantes eacute relacionada agraves orgias nas festas profanas frequentes desde a

Greacutecia antiga portanto era efetivamente uma imagem negativa para o contexto dos

cristatildeos Com esse argumento metafoacuterico Paulo intensifica seus aconselhamentos

mostrando que o amor eacute base para uniatildeo de todos como um soacute corpo

Paulo aponta mais diretamente para o tema amor como norteador dos seus

aconselhamentos Ela usa uma estrateacutegia loacutegica para definir os vaacuterios sentidos que

podem ser extrair do amor em forma de accedilatildeo A partir de entatildeo ele comeccedila

apresentar o amor como personificaccedilatildeo mostrando o que ele eacute como fator positivo e

o que natildeo eacute como negativo ou seja o amor eacute sofredor eacute benigno amor natildeo eacute

invejoso natildeo busca os seus proacuteprios interesses natildeo se irrita natildeo suspeita mal natildeo

se regozija com a injusticcedila Na composiccedilatildeo desses conceitos ele usa a estrateacutegia

conhecido Agora pois permanecem a feacute a esperanccedila o amor estes trecircs mas o maior destes eacute o amor (1Cor131-13) 357

Em seus estudos sobre o apoacutestolo Paulo Ruden (2013 p 193) comenta que soacute alcanccedilou o significado deste hino ao amor descrito por Paulo quando ela leu o texto no grego koineacute chegando a seguinte conclusatildeo ldquoO amor eacute algo que jaacute existe algo que atrai de volta a si a mente e o coraccedilatildeordquo 358

Ruden (2013 p 193) comenta que no contexto em que eacute introduzido o texto de 1 Coriacutentios 13 havia uma preocupaccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo na convivecircncia daquela comunidade Um dos fatos que agravava as desavenccedilas era um certo tumulto que ocorria na hora do ajuntamento por causa das liacutenguas estranhas que eram pronunciadas ao mesmo tempo 359

Segundo Brakemeier (2008 p172) o chalcos - χαλκος (bronze) deve ser imaginado como uma espeacutecie de gongo e o kymbalon (ciacutembalo) como uma vasilha de metal que se batia produzindo um som muito estridente

297

das oposiccedilotildees ideia positiva e ideia negativa como um jogo argumentativo para

provocar retoricamente a rejeiccedilatildeo do lado negativo da questatildeo Em seguida satildeo

apresentadas algumas qualidades positivas de um amor personificado o amor se

regozija com a verdade tudo sofre tudo crecirc tudo espera tudo suporta A sequecircncia

do raciociacutenio eacute loacutegica360 pois a personificaccedilatildeo induz agrave ideia do efeito da accedilatildeo na

praacutetica da vida do indiviacuteduo De acordo com as observaccedilotildees de Lakoff e Johnson

(2002 p 89) conceber algo abstrato em termos humanos tem um poder explicativo

que facilita a compreensatildeo no campo da linguagem Pode-se dizer entatildeo que as

qualidades humanas aplicadas agrave ideia de amor como o amor tudo sofre o amor

tudo suporta entre outras funcionam como expressotildees metafoacutericas que identificam

a metaacutefora ontoloacutegica O AMOR Eacute UMA PESSOA Com a aplicaccedilatildeo deste conceito

metafoacuterico ficam realccediladas as boas qualidades humanas que podem ser aplicadas

ao entendimento do amor como uma entidade abstrata

Por meio dessa construccedilatildeo personificada Paulo aponta que ldquoo amor se regozija com

a verdaderdquo (αγαπη συγχαιρει δε τη αληθεια) De acordo com essa concepccedilatildeo

Foucault identifica que o verdadeiro amor conteacutem as caracteriacutesticas da aletheia

(αληθεια) de acordo com seus sentidos361 na cultura grega Na visatildeo de Foucault

(2011 p194) o verdadeiro amor e a verdadeira vida satildeo duas instacircncias que desde

o platonismo se pertencem sendo que o chamado platonismo cristatildeo retoma

amplamente este tema Na exposiccedilatildeo de Foucault (2011 p 309) com base histoacuterica

nos dois primeiros seacuteculos dC o verdadeiro amor impulsiona o cuidado de si e o

cuidado do outro sendo a verdadeira vida o propoacutesito de culminacircncia da passagem

da vida terrena para a vida eterna

Na concepccedilatildeo de Ciampa e Rosner (2014 p 918) o amor eacute o tema central do eacutetico

em Paulo As reflexotildees do tema amor na epiacutestola enfatizam diferentes dimensotildees jaacute

estabelecidas na cultura hebraica nos ensinamentos do Velho Testamento O texto

da epiacutestola dialoga fundamentalmente com comentaacuterios da lei de Moiseacutes ldquoAmaraacutes

ao teu proacuteximo como a ti mesmordquo (Lev 1918) Este eacute um princiacutepio baacutesico do

judaiacutesmo que tambeacutem eacute atualizado no Novo Testamento

360

Kierkgard (2005 p308) faz a seguinte reflexatildeo filosoacutefica ldquoMas o amor verdadeiro o amor que se sacrifica ama toda e qualquer pessoa de acordo com seu caraacuteter proacuteprio pois ele natildeo procura seu interesserdquo 361

Sentidos da aletheia dizer sincero natildeo dissimulado que natildeo engana natildeo altera e nem acrescenta eacute reto conforme a retidatildeo existe e se manteacutem em detrimento de qualquer mudanccedila

298

No texto de 1Coriacutentios 13 verifica-se um efeito de interdiscursividade que permite a

leitura de diferentes discursos que estatildeo interpostos agrave linearidade textual no ato

enunciativo Becker (2007 p 88) comenta que Paulo mostra na escrita de suas

epiacutestolas que parte de sua formaccedilatildeo eacute heleniacutestica Becker (2008 p 90) ainda

enfatiza que ldquonatildeo se pode ignorar as referecircncias formais e de conteuacutedo da tradiccedilatildeo

heleniacutestica no assim chamado hino ao amorrdquo Este autor pondera que sem o cuidado

destas constataccedilotildees dificilmente se conseguiraacute uma descriccedilatildeo adequada do pano

de fundo histoacuterico cultural deste texto A partir deste entendimento observa-se que

alguns pontos de contato entre Paulo e Platatildeo podem ser identificados atraveacutes de

partes de seus discursos

A primeira identificaccedilatildeo constatada pode ser autenticada na fala de Agatatildeo nos

diaacutelogos da obra de Platatildeo O Banquete (O Simpoacutesio) que tem como discussatildeo

exatamente o tema ldquoamorrdquo Agatatildeo faz uma descriccedilatildeo do amor que em algumas

partes coincide com a de Paulo

Agatatildeo ndash O amor natildeo comete nem sofre injusticcedila Aleacutem da justiccedila da maacutexima temperanccedila ele compartilha (O Banquete 196b)

Paulo ndash O amor natildeo se regozija com a injusticcedila mas se regozija com a verdade tudo sofre tudo crecirc tudo espera tudo suporta (1 Cor 13 67)

Levando em conta que Paulo teve sua formaccedilatildeo inicial em um ambiente

culturalmente ecleacutetico decerto vivendo a experiecircncia de uma educaccedilatildeo heleniacutestico-

judaica natildeo eacute possiacutevel negar sua competecircncia como um patrimocircnio proacuteprio que ele

soube utilizar e adequar aos ensinamentos dos princiacutepios cristatildeos Paulo parte de

um lugar comum para refletir sobre o tema referente ao amor desenvolvendo e

acrescentando outros elementos ao que jaacute era discutido desde os antigos gregos A

grande contribuiccedilatildeo de Paulo eacute situar essa concepccedilatildeo filosoacutefica de amor agrave realidade

das comunidades cristatildes as quais ele orientava indicando em Deus a sublime fonte

desse amor Vale relembrar que Paulo usa o termo grego αγαπη referente a amor

como usado na Septuaginta e natildeo eros (ερως) como no Banquete em Platatildeo ou

philia (φιλια) como usado em Aristoacuteteles Na expectativa da impossibilidade de se

alcanccedilar os significados mais profundos do que representa o amor verdadeiro e o

total conhecimento de Deus que eacute a origem e a fonte desse amor Paulo reflete

ldquoPorque agora vemos como por espelho em enigma mas entatildeo veremos face a

face agora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei plenamente como tambeacutem

sou plenamente conhecidordquo (1Cor 1312)

299

Em sua anaacutelise desse verso Stern (2008 p 521) sugere que se faccedila uma

comparaccedilatildeo dessa passagem com a alegoria da caverna362na obra A Republica

Por meio desta alegoria Platatildeo reflete sobre as consequecircncias do aprisionamento

na escuridatildeo da ignoracircncia em que o olhar eacute impossibilitado de alcanccedilar a luz como

forma de captar a realidade No transcorrer do diaacutelogo eacute aventada a possibilidade

da libertaccedilatildeo e as mudanccedilas e transformaccedilotildees que ela pode causar

[] se o arrancarem agrave forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de tais violecircncias E quando tiver chegado agrave luz poderaacute com os olhos ofuscados pelo seu brilho distinguir uma soacute das coisas que ora denominamos verdadeiras [] Precisaria creio habituar-se para contemplar o mundo superior De iniacutecio perceberia mais facilmente as sombras ao depois as imagens dos homens e dos outros objetos refletidos na aacutegua por uacuteltimo os objetos e no rosto deles o que se encontra no ceacuteu e o proacuteprio ceacuteu [] (A Republica (VII 516a)

O questionamento de Platatildeo sobre a condiccedilatildeo de escuridatildeo que aprisiona encontra

soluccedilatildeo no poder da luz que ilumina as trevas e metaforicamente a luz eacute a verdade

Pode-se dizer que o evangelho de Joatildeo363 aponta a soluccedilatildeo para esta questatildeo []

ldquoe conhecereis a verdade e a verdade vos libertaraacuterdquo 364 em grego se destaca a

palavra aletheia (και γνωσεσθε την αληθειαν και η ελευθερωσει υμας Joatildeo 832)

com todos aqueles sentidos subjacentes a este termo verdade Eacute possiacutevel

conjecturar que o apoacutestolo Paulo reuacutene as aplicaccedilotildees da alegoria de Platatildeo com os

362

No interior da caverna permanecem seres humanos que nasceram e cresceram ali Ficam de costas para a entrada acorrentados sem poder mover-se forccedilados a olhar somente a parede do fundo da caverna sem se poder ver uns aos outros ou a si proacuteprios Atraacutes dos prisioneiros haacute uma fogueira separada deles por uma parede baixa por detraacutes da qual passam pessoas carregando objetos que representam homens e outras coisas viventes As pessoas caminham por detraacutes da parede de modo que os seus corpos natildeo projetam sombras mas sim os objetos que carregam Os prisioneiros natildeo podem ver o que se passa atraacutes deles e veecircm apenas as sombras que satildeo projetadas na parede em frente a eles Pelas paredes da caverna tambeacutem ecoam os sons que vecircm de fora de modo que os prisioneiros associando-os com certa razatildeo agraves sombras pensam ser eles as falas das mesmas Desse modo os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade (PLATAtildeO A Repuacuteblica VII 514a 514c) 363

No contexto em que Jesus estaacute revelando quem ele eacute surge a afirmaccedilatildeo ldquoEu sou a luz do mundo quem me segue de modo algum andaraacute em trevas mas teraacute a luz da vida (Joatildeo 812) Na sequecircncia Joatildeo relata Dizia pois Jesus aos judeus que nele creram Se voacutes permanecerdes na minha palavra verdadeiramente sois meus disciacutepulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertaraacute (Joatildeo 83132) 364

Sobre esta expressatildeo ldquoa verdade vos libertaraacuterdquo na obra A Trindade (IV XVIII24) Agostinho faz a seguinte reflexatildeo [] ldquopor isso cremos que o mesmo aconteceraacute conosco quando a feacute atingir a verdade Eis como ele fala aos que crecircem para que permaneccedilam na palavra da feacute e passem agrave verdade e conduzidos agrave eternidade sejam libertados da morte Se permanecerdes em minha palavra sereis em verdade meus disciacutepulos E como lhe fosse perguntado ldquoQual eacute a vantagemrdquo diz em seguida conhecereis a verdade E de novo como lhe dissessem ldquoQue aproveita aos mortais a verdaderdquo diz e a verdade vos libertaraacute (Jo 83132) De que Da morte da corrupccedilatildeo da mutabilidade Pois a verdade eacute sempre imortal incorruptiacutevel e imutaacutevel Mas a verdadeira imortalidade a verdadeira incorruptabilidade a verdadeira imutabilidade eacute a eternidaderdquo

300

ensinamentos de Jesus como fundamentaccedilatildeo de seus ensinamentos aos cristatildeos

de Corinto pois na base de seu discurso torna-se viaacutevel outras leituras na

constitutividade do interdiscurso Assim os discursos constituintes se entrecruzam

no ponto em que o discurso religioso se apoia no discurso filosoacutefico para auxiacutelio na

compreensatildeo da exposiccedilatildeo do tema ldquoo amorrdquo

Alguns pontos da aplicaccedilatildeo desta alegoria de Platatildeo podem ir ao encontro do que

Paulo parece aproveitar em seu discurso Platatildeo fala da dificuldade para se enxergar

a realidade e por causa do aprisionamento na caverna eacute impossiacutevel a captaccedilatildeo da

verdadeira imagem Em Paulo a impossibilidade para o ser humano eacute de ver a

imagem de Deus e conhececirc-lo plenamente pelo motivo do ser humano estar

acorrentado pelo pecado em um corpo corruptiacutevel na escuridatildeo das trevas Para os

leitores familiarizados com os textos de Platatildeo o efeito da intertextualidade se

realiza pela aplicaccedilatildeo da analogia da metaacutefora da caverna com partes dos

ensinamentos que Paulo quer transmitir aos seus destinataacuterios E assim as imagens

validadas na memoacuteria dos leitores quando trazidas para a enunciaccedilatildeo funcionam

como recurso argumentativo

A questatildeo de que no presente ldquovemos por espelho365 em enigmardquo eacute interpretada por

Agostinho (A Trindade XV 4 15-16) na perspectiva de que espelho e enigma satildeo

dois termos usados por Paulo representando uma mesma ideia ou seja a forma

imperfeita de se ver Deus Mas Paulo transpotildee o presente apontando para a

esperanccedila do futuro ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei plenamente

como tambeacutem sou plenamente conhecidordquo Eacute nessa perspectiva do futuro que Paulo

conclui Agora pois permaneccedila a feacute a esperanccedila e o amor mas o maior destes eacute o

amor Kierkegaard366 (2005 p280) compreende que o amor se encarrega da feacute e da

365

Possivelmente a superfiacutecie da aacutegua inspirou a criaccedilatildeo do espelho No livro de Ecircxodo haacute uma descriccedilatildeo da construccedilatildeo do tabernaacuteculo e as peccedilas que foram colocadas nos compartimentos O espelho eacute citado como um utensiacutelio para uso das mulheres ldquoFez tambeacutem a pia de cobre com a sua base de cobre dos espelhos das mulheres que se reuniam para servir agrave porta da tenda da congregaccedilatildeordquo (Exocircdo 388) 366

Na segunda parte do livro ldquoAs obras do amorrdquo Kierkegaard (2005) explora o texto de 1 Coriacutentios 13 que pertence ao discurso constituinte religioso A partir do discurso primeiro o comentaacuterio eacute distribuiacutedo em capiacutetulos com tiacutetulos distintos transformando-se em discurso segundo em relaccedilatildeo ao discurso religioso Poreacutem sua funccedilatildeo no discurso constituinte filosoacutefico passa a ser exercida como discurso primeiro como resultado da dinacircmica que ocorre no intercacircmbio entre discursos constituintes Na anaacutelise de Almeida e Pires Jr (2013 p 78) haacute uma aproximaccedilatildeo entre Foucault e Kierkegaard quando este com base em 1 Coriacutentios 81 afirma ldquoO amor edificardquo Foucault remete a questatildeo da edificaccedilatildeo e da interioridade onde descer o mais profundo de si mesmo eacute instalar-se sobre si mesmo [] e depois de edificado esse si mesmo promove a reduplicaccedilatildeo entre o si mesmo e o proacuteximo

301

esperanccedila pois quem ama confia e espera A ideia de permanecer remete ao amor

que sustenta toda a existecircncia concluindo-se que a fonte deste amor vem de Deus

pela sua proacutepria natureza de eternidade Entatildeo o fechamento da exaltaccedilatildeo ao amor

coloca este amor originaacuterio em Deus e quando praticado pelo indiviacuteduo apresenta

todas essas caracteriacutesticas e qualidades identificadas e detalhadas pelo apoacutestolo

Paulo Na finalizaccedilatildeo da segunda epiacutestola no antepenuacuteltimo versiacuteculo Paulo

apresenta uma siacutentese de todos os seus conselhos nas duas epiacutestolas dirigidas agrave

igreja de Corinto sinalizando em sua conclusatildeo367 que a eficaacutecia do amor eacute a base

para o viver cristatildeo

Quanto ao mais irmatildeos regozijai-vos sede perfeitos sede consolados sede de um mesmo parecer vivei em paz e o Deus de amor e de paz seraacute convosco (2Cor 1311)

Na totalidade da escritura das duas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto verifica-

se uma superposiccedilatildeo de vaacuterios discursos que satildeo apreendidos de um jaacute-dito

apropriados para fortalecimento da escrita que revela a formaccedilatildeo de discursos

verdadeiros Nessa perspectiva Foucault esclarece que

[] natildeo se trata de constituir para si um mosaico de proposiccedilotildees de diferentes origens mas de constituir uma trama soacutelida de proposiccedilotildees que valham por prescriccedilotildees discursos verdadeiros que sejam ao mesmo tempo princiacutepios de comportamento (FOUCAULT 2010a p 320)

O tema filosoacutefico o amor eacute norteador das epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios e a

enunciaccedilatildeo eacute atravessada por outros dicursos tanto o religioso na vertente judaico-

cristatilde quanto o filosoacutefico e literaacuterio que em conjunto cooperam para o

robustecimento argumentativo da concepccedilatildeo de amor que ele quer passar para os

destinataacuterios de suas epiacutestolas

367

Kruse (2008 p 215) em sua finalizaccedilatildeo da anaacutelise da segunda epiacutestola aos Coriacutentios conclui que essa exortaccedilatildeo de Paulo no fechamento da epiacutestola pressupotildee uma grande dose de encorajamento para os cristatildeos que estatildeo dispostos a ouvir e obedecer como tambeacutem uma indicaccedilatildeo de que a fonte do poder para conduzir as accedilotildees estaacute em Deus que representa toda a siacutentese do significado do amor

302

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE III

Esta terceira parte da pesquisa funciona como fechamento no tratamento das trecircs

provas do discurso ethos pathos e logos O discurso eacute considerado como logos

pela forma de expressar o raciociacutenio pelo uso da palavra e a retoacuterica exerce a

funccedilatildeo de organizar esse discurso de tal forma que possa atingir o pathos De

acordo com os postulados da anaacutelise do discurso em foco nesta pesquisa o

enunciador manifesta seu ethos no discurso posicionando-se discursivamente no

ato enunciativo O co-enunciador eacute o receptor do discurso e seus sentimentos satildeo

alcanccedilados pelo efeito do discurso Assim o recurso do uso do toacutepos ldquofalar francordquo eacute

determinante para a enunciaccedilatildeo do discurso verdadeiro nas epiacutestolas de Secircneca e

Paulo pois a franqueza eacute marca de sinceridade e afeto estando diretamente

relacionada ao toacutepos da amizade Portanto o ldquofalar francordquo estaacute interligado a outros

toacutepoi de acordo com o contexto em que eacute usado

Nas epiacutestolas de Secircneca a parresiacutea como modalidade da verdade eacute perceptiacutevel na

manifestaccedilatildeo do ethos e eacute interligada agrave modalidade filosoacutefica de como tratar a

verdade no gecircnero epistolar Na anaacutelise das epiacutestolas de Paulo o ethos

parresiaacutestico se revela por meio de sua franqueza em transmitir a verdade profeacutetica

que ele assume como missatildeo evangelizadora e a manutenccedilatildeo da koinonia

comunhatildeo entre os participantes da eklesia assembleia dos santos reunidos

Entre as possibilidades de identificaccedilatildeo de recursos perceptiacuteveis como fonte para

argumentaccedilatildeo nas epiacutestolas selecionadas satildeo identificados os exemplos como

especificados por Aristoacuteteles Ao constatar o uso de exemplos no gecircnero epistolar

nota-se que seu uso natildeo se limita ao campo do exemplo histoacuterico que funciona

como uma fonte eficaz na estrateacutegia argumentativa O exemplo pessoal no gecircnero

epistolograacutefico aleacutem da forccedila persuasiva da importacircncia da experiecircncia pessoal do

remetente como meio de convencimento gera uma oportunidade do Eu abrir-se

diante do Tu na escrita de si O exemplo pessoal por parte do remetente eacute sinal de

experiecircncia em um determinado plano que pode servir de fundamento para os

aconselhamentos Este fato eacute observaacutevel nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

Assim no corpus de anaacutelise o uso de exemplos histoacutericos ou seja os retirados de

uma fonte jaacute reconhecida fornecem uma discursividade distinta daqueles exemplos

resultantes da vivecircncia do proacuteprio remetente

303

Nesse mesmo campo semacircntico as citaccedilotildees tambeacutem exercem uma funccedilatildeo

persuasiva no discurso podendo ser tratadas como lugares comuns regidos pela

deduccedilatildeo semelhante ao funcionamento da maacutexima em seu papel de proximidade

com o entimema As citaccedilotildees diferem dos exemplos pela forma de sua penetraccedilatildeo

no discurso pois a voz que se introduz na enunciaccedilatildeo exerce uma funccedilatildeo de

autoridade para fortalecer o posicionamento discursivo do enunciador O apoio de

uma voz externa causa o efeito de intertextualidade que permite o atravessamento

de outros discursos no niacutevel dialoacutegico da linguagem

Quanto ao uso de metaacuteforas Alexandre Juacutenior em seus comentaacuterios na traduccedilatildeo da

Retoacuterica (2005 p 48) conclui que existe uma correlaccedilatildeo entre raciociacutenio metafoacuterico

e silogiacutestico Isso eacute indicado pela proacutepria semelhanccedila entre o uso retoacuterico de

metaacutefora e o de entimema ou seja parte-se do conhecido para o desconhecido ou

do concreto para o abstrato Aleacutem desses fundamentos herdados de Aristoacuteteles

quanto ao valor da metaacutefora no campo da argumentaccedilatildeo pode-se pensar tambeacutem a

metaacutefora conceitual como um indiacutecio da elaboraccedilatildeo cognitiva do raciociacutenio na

construccedilatildeo de conceitos metafoacutericos que se manifestam pela linguagem pois a sede

da metaacutefora eacute o pensamento368

O uso da metaacutefora como argumento retoacuterico como indicado por Aristoacuteteles (Ret III

11 1412a) tem a funccedilatildeo de indicar ldquoas coisas apropriadas ao objeto em causa mas

natildeo oacutebvias tal como na filosofia eacute proacuteprio do espiacuterito sagaz estabelecer a

semelhanccedila mesmo com entidades tatildeo diferentesrdquo Pode-se pensar que na

Antiguidade a imagem do atleta tornou-se um siacutembolo metafoacuterico que ocupou

relevacircncia em um lugar comum de onde poderiam ser retiradas analogias variadas

com aplicaccedilotildees das mais diversas no campo da retoacuterica Secircneca e Paulo recorrem a

este toacutepos do ldquocuidado do corpordquo representado pela figura do atleta dando

significados de acordo com o discurso constituinte que norteia a cada um Este

toacutepos eacute recorrente nas epiacutestolas de Secircneca com diferentes aplicaccedilotildees Na epiacutestola

catorze Secircneca afirma ldquoAdmito que eacute inata em noacutes a estima pelo proacuteprio corpo

admito que temos o dever de cuidar delerdquo (Ep 141) Com o uso da metaacutefora do

atletismo especialmente usada na epistola aos Coriacutentios Paulo aproveita-se do

368

Segundo Lakoff e Johnson (2002) a sede da metaacutefora eacute o pensamento e natildeo a linguagem Uma abordagem da metaacutefora conceitual torna-se importante por mostrar como o homem pensa o mundo e o conceitualiza manifestando na linguagem sua elaboraccedilatildeo mental do mundo que o cerca Sendo assim o comportamento cotidiano do indiviacuteduo identifica a forma de compreensatildeo de suas experiecircncias Nesses termos a heranccedila cultural eacute fundamental na formaccedilatildeo de conceitos

304

favorecimento do ambiente pois Corinto se situa como sede dos jogos iacutestmicos

Assim Paulo demonstra sua inter-relaccedilatildeo com a cultura local e tambeacutem sua

liberdade em salientar suas proacuteprias tribulaccedilotildees sem ser derrotado com a imagem

do atleta em seus cuidados e preparaccedilatildeo na meta para o alcance da vitoacuteria

O que se pode observar na produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e de Paulo

aos Coriacutentios eacute a presenccedila de um tema que se desenvolve na enunciaccedilatildeo de acordo

com o lugar e momento que cada um deles ocupa no ato enunciativo Se Secircneca

admite sua proacutepria velhice o tema sobre o tempo eacute essencial para o

desenvolvimento de uma filosofia moral que ele desenvolve a partir da concepccedilatildeo

estoica sobre a vida Alguns toacutepoi satildeo identificados no tratamento dos toacutepicos

retirados do tema e o recurso da metaacutefora favorece a localizaccedilatildeo dos lugares

comuns

Na situaccedilatildeo de Paulo ele constata a desuniatildeo que havia se estabelecido na igreja

de Corinto assim o assunto de sua epiacutestola se desenvolve em torno do tema o

amor Nas duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Paulo orienta os seus

aconselhamentos em torno de vaacuterias facetas ligadas ao tema amor lanccedilando matildeo

de recursos originaacuterios de um lugar comum que abriga opccedilotildees variadas na

composiccedilatildeo do tema fornecidos pelo discurso religioso filosoacutefico e literaacuterio

O toacutepos ldquofalar francordquo os argumentos retoacutericos e os temas desenvolvidos nas

epiacutestolas de Secircneca e de Paulo se revestem de uma discursividade originaacuteria no

discurso constituinte que determina o posicionamento discursivo de cada enunciador

ocupa na composiccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico

305

CONCLUSAtildeO

A trajetoacuteria da proposta da pesquisa aqui desenvolvida chega ao seu final e alguns

pontos devem ser destacados para apresentar algumas questotildees de relevacircncia a

respeito do que foi observado e analisado O confronto realizado entre os dois

epistolograacuteficos Secircneca e Paulo natildeo eacute um tema novo pelo contraacuterio desde a

Patriacutestica autores como Tertuliano Agostinho e Jerocircnimo dentre outros satildeo

apontados como os que fizeram menccedilatildeo a uma possiacutevel aproximaccedilatildeo entre Secircneca

e Paulo Em sua pesquisa intitulada The apocryphal correspondence between

Seneca and Paul Mitchell (2010 28) avalia que as conjecturas de que Secircneca teria

se convertido ao cristianismo natildeo procedem Mitchell (2010 p 248) chama a

atenccedilatildeo para o fato de que Secircneca e Paulo viviam em posiccedilotildees sociais opostas

Secircneca era um aristocrata a serviccedilo da corte e Paulo rejeitado por seus proacuteprios

compatriotas Os textos dos dois se aproximam quando o tema em questatildeo eacute

direcionado agraves virtudes e aos viacutecios pois a eacutetica tatildeo valorizada pelos estoicos

tambeacutem eacute conveniente para a escrita de Paulo

Comparando o posicionamento discursivo na escrita das epiacutestolas de Secircneca e de

Paulo notam-se caracteriacutesticas bem distintas entre os dois pelos proacuteprios propoacutesitos

que os diferenciam A escolha do gecircnero epistolar eacute comum a eles mas os objetivos

satildeo bem diferenciados Secircneca tem experiecircncias em lidar com outros gecircneros no

acircmbito da literatura sendo talvez o gecircnero epistolar o espaccedilo mais favoraacutevel para

discussatildeo de seu pensamento estoico pois os outros gecircneros usados satildeo

caracterizados por uma circulaccedilatildeo peculiar como no caso da trageacutedia e da saacutetira

Segundo Long (2013 p 213) ldquoSecircneca usa a forma epistolar como meio de pensar

os princiacutepios morais estoicos e de avaliar os progressos de seu autor e de seu

destinataacuteriordquo Secircneca tambeacutem expressa-se a respeito da oportunidade de ao

mesmo tempo ensinar e aprender ldquoEu natildeo desejo outra coisa senatildeo transmitr-te

toda a minha experiecircncia aprender daacute-me sobretudo prazer porque me torna apto a

ensinarrdquo (Ego vero omnia in te cupio transfundere et in hoc aliquid gaudeo discere

ut doceam Ep 64)

Na situaccedilatildeo de Paulo o objetivo eacute atender a necessidade de sua comunicaccedilatildeo com

as comunidades cristatildes destinataacuterias pelo motivo principal da distacircncia Na

enunciaccedilatildeo que permite identificar a elaboraccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo a decircixis

306

discursiva revela um enunciador que se situa em uma topografia discursiva que se

biparte em dois espaccedilos distintos judeu e cristatildeo Ao mesmo tempo existe um

ponto de uniatildeo entre estes espaccedilos o periacuteodo Heleniacutestico A cronografia discursiva

permite a identificaccedilatildeo de um novo tempo no qual Paulo estaacute inserido em

consequecircncia de sua conversatildeo ao tornar-se judeu-cristatildeo

O ponto crucial de afastamento entre os textos de Secircneca e Paulo eacute a concepccedilatildeo

que cada um deles tem a respeito do conceito de deus Em vaacuterias partes das

epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio eacute reafirmada a convicccedilatildeo da existecircncia dos deuses e a

necessidade da prestaccedilatildeo de culto a eles sendo a referecircncia focada com

recorrecircncia no plural E mesmo a ideia de deus uno assume diferentes designaccedilotildees

como natureza providecircncia entre outras O que se observa eacute que por parte de

Secircneca haacute um reconhecimento do poder e majestade dos deuses pois eles cuidam

do universo Como visto haacute certos conceitos que impotildeem uma diferenccedila

fundamental entre estoicos e cristatildeos como mostra a declaraccedilatildeo de Secircneca ldquoos

deuses velam pela seguranccedila da espeacutecie humana mesmo quando natildeo se

preocupam com cada homem individualmenterdquo (Ep 9550) Dos postulados retirados

do exemplo mencionado dois pontos baacutesicos podem ser identificados entre os

posicionamentos discursivos de Seneca e Paulo pluralidade de deuses e

distanciamento deles com a individualidade humana fato que implica o conceito

monoteiacutesta e politeiacutesta de deus e a noccedilatildeo de imanecircncia transcendecircncia

A colocaccedilatildeo de Secircneca ao afirmar que os deuses natildeo se preocupam com cada

homem individualmente indica uma concepccedilatildeo antiga dos gregos a esse respeito

Foucault (2008) analisa que na Antiguidade ocidental a recorrecircncia agrave metaacutefora do

piloto do navio como aquele que estaacute no controle da cidade deixa impliacutecita a

ideia de que o alvo de atenccedilatildeo para o que governa natildeo satildeo os indiviacuteduos O capitatildeo

do navio natildeo governa os marujos governa o navio Em oposiccedilatildeo a essa ideia entre

os hebreus o tema do pastorado se intensificou e a metaacutefora do pastor como guia

do rebanho adquiriu uma importacircncia fundamental para a religiosidade na

cultura hebraica A Biacuteblia estaacute atravessada pelas metaacuteforas do pastor de ovelhas

desde o Velho ateacute o Novo Testamento como expresso no verso ldquoO Senhor eacute meu

pastor e nada me faltaraacuterdquo (Salmos 231) Foucault faz um levantamento de vaacuterias

ocorrecircncias da importacircncia da figura do pastor no texto biacuteblico apontando para

as dimensotildees que o poder pastoral atingiu com o advento do cristianismo

307

Portanto pode-se notar que as noccedilotildees de deus e de governo do mundo estatildeo

inteiramente relacionadas tanto para a cultura greco-romana quanto para a

hebraica que se expande para o cristianismo

O posicionamento discursivo de Paulo na escrita de suas epiacutestolas identifica seu

lugar na enunciaccedilatildeo como judeu-cristatildeo Dessa posiccedilatildeo ele traz para a comunidade

dos pertencentes agrave igreja de Corinto exemplos que evidenciam a concepccedilatildeo

monoteiacutesta de Deus indicando sua soberania na sustentaccedilatildeo do universo mas

tambeacutem a sua atenccedilatildeo individualizada para com o povo hebreu na caminhada para

a terra prometida Por meio do exemplo Paulo apresenta a prova contundente da

relaccedilatildeo do cuidado de Deus para com o povo pela manutenccedilatildeo da porccedilatildeo diaacuteria do

manaacute para alimentaacute-los e a aacutegua fornecida pela rocha que os acompanhava A partir

da base doutrinal deste exemplo Paulo faz uma aplicaccedilatildeo alegoacuterica como forma de

transmitir agrave igreja algumas liccedilotildees retiradas da imagem da travessia do mar vermelho

o manaacute e a rocha como siacutembolos a serem aplicados agraves situaccedilotildees que aquela

comunidade estava vivenciando em relaccedilatildeo ao memorial da ceia e do batismo O

ponto central pode ser visto como a revelaccedilatildeo do amor de Deus atraveacutes de seu

cuidado Com o exemplo exposto Paulo desenvolve o toacutepos ldquocuidado de Deusrdquo

apontando vaacuterias facetas aplicaacuteveis agrave igreja de Corinto Com esses ensinamentos

Paulo combate a idolatria ou seja a veneraccedilatildeo a diferentes deuses e tambeacutem as

consideraccedilotildees filosoacuteficas do estoicismo sobre as concepccedilotildees de deus e deuses

A leitura da coleccedilatildeo Epistolae Morales permite observar que em determinados

momentos Secircneca parece distanciar-se das concepccedilotildees estoicas de deus e

aproximar-se do pensamento judaico-cristatildeo mas na realidade essa posiccedilatildeo natildeo se

sustenta A respeito desse fato Reale (1994b p71) faz as seguintes observaccedilotildees

ldquoSecircneca eacute certamente um dos expoentes do Poacutertico no qual satildeo mais evidentes a

oscilaccedilatildeo a respeito do pensamento sobre deus a tendecircncia a sair do panteiacutesmordquo

[] Reale avalia que o posicionamento de Secircneca em manter-se fiel ao estoicismo

prevalece sobre todas as questotildees duacutebias pois ele tem alguns vislumbres filosoacuteficos

intuitivos mas natildeo haacute disposiccedilatildeo para elaborar categorias que possam substituir os

postulados estoicos

Secircneca se posiciona favoraacutevel agrave separaccedilatildeo entre corpo e alma e critica certos

estoicos que pensam o contraacuterio sem citar nenhum nome ldquonatildeo faccedilo minhas as

palavras daqueles estoicos para quem a alma de um homem esmagado sob uma

308

massa de grande peso natildeo poderia permanecer unardquo (Ep 578) Apesar de sua

concordacircncia a respeito da imortalidade da alma quanto ao seu destino ele diverge

em seu proacuteprio posicionamento ldquoapoacutes a morte a alma ou passa a uma forma

superior de vida ascendendo agrave esfera divina ou pode confundir-se no todo da

naturezardquo (Ep 7116) Percebe-se que Secircneca natildeo se mostra seguro em suas

convicccedilotildees sobre o destino da alma basta para ele saber que ela eacute imortal

Em algumas epiacutestolas de Secircneca pode ser identificado o conceito metafoacuterico A VIDA

Eacute UMA VIAGEM Este conceito implica a ideia da separaccedilatildeo corpo e alma Uma

forma desta expressatildeo estaacute assim registrada ldquoEstou preparado para partir e assim

gozo tanto mais a vida quanto menos me preocupa saber quanto tempo o futuro

ainda me reservardquo (Ep 612) Este conceito metafoacuterico que permeia o discurso de

Secircneca sinaliza seu posicionamento discursivo em relaccedilatildeo agrave sua expectativa sobre

a morte Se a vida eacute anaacuteloga a uma viagem ela eacute uma passagem por este mundo e

nesse sentido ele reforccedila que a vida eacute uma caminhada para a morte ou o caminho

de volta A velhice eacute um processo que se instaura desde o nascimento como

preparaccedilatildeo para a morte Nesse contexto de perspectiva de vida que se manifesta

no discurso de Secircneca o cuidado de si tem o significado de fortalecimento para o

enfrentamento da morte Foucault (2010a p 70) nota que em Secircneca o cuidado de

si eacute a preparaccedilatildeo para a velhice como completude da vida Secircneca postula que a

fundamentaccedilatildeo para este posicionamento se encontra na filosofia como ele declara

ldquoSomente a filosofia poderaacute acordar-nos de um sono pesado dedica-te inteiramente

a elardquo E ele ainda complementa esta convicccedilatildeo ldquoPara repelir todas as violecircncias do

acaso a filosofia possui um incriacutevel poderrdquo (Ep 53 812)

A noccedilatildeo de separaccedilatildeo entre corpo e alma eacute identificada nas epiacutestolas de Paulo de

acordo com a base do discurso constituinte religioso ldquoMas temos confianccedila e

desejamos antes deixar este corpo para habitar com o Senhorrdquo (2Cor 58) Na

percepccedilatildeo de Paulo natildeo haacute duacutevida quanto ao destino da alma redimida pois a

expressatildeo habitar com o Senhor indica o ceacuteu como essa morada A ideia de

habitaccedilatildeo da alma depois da separaccedilatildeo do corpo eacute colocada na obra de Platatildeo A

Repuacuteblica369 como desenvolvimento da noccedilatildeo de julgamento entre justos e injustos

369

Platatildeo relata a histoacuteria de um homem que morreu em um combate e depois de dez dias seu corpo foi encontrado sem se decompor Quando foram colocaacute-lo na pira ele se levantou e narrou que havia morrido e presenciado a seguinte cena [] ldquoalguns juiacutezes que depois de enunciarem a sentenccedila mandavam os justos subirem pelo caminho da direita rumo ao ceacuteu depois de fixar-lhes na frente um

309

Na paraacutebola do rico e Laacutezaro narrada no evangelho de Lucas (16 1-31) o ceacuteu eacute

citado como o paraiso e o hades como lugar do sofrimento

Nos ensinamentos de Paulo o cuidado de si tem um caraacuteter apocaliacuteptico ou seja

preparaccedilatildeo para a volta de Cristo que pressupotildee a ressurreiccedilatildeo Eacute nesse contexto

que na construccedilatildeo das epiacutestolas satildeo identificados dois pilares de sustentaccedilatildeo amor

e ressurreiccedilatildeo Esses dois temas tecircm pontos de interligaccedilatildeo pois ao falar de

ressurreiccedilatildeo toca-se nos significados do amor de Deus que fornece o canal de

acesso agrave salvaccedilatildeo e seus efeitos no acontecimento da ressurreiccedilatildeo Decerto a

compreensatildeo do conceito de tempo interfere no entendimento do significado da

ressurreiccedilatildeo resultando na abordagem do tempo linear e visatildeo escatoloacutegica370 no

campo religioso Entre os proacuteprios participantes da igreja de Corinto existiam

duacutevidas sobre a ressurreiccedilatildeo entatildeo Paulo introduz o assunto fazendo um relato de

todos os acontecimentos da ressurreiccedilatildeo de Cristo mencionando as testemunhas

que o encontraram e por fim daacute seu proacuteprio exemplo ldquoe por derradeiro de todos

apareceu tambeacutem a mim como a um abortivordquo (1Cor 158) Paulo continua sua

defesa e argumentos sobre a ressurreiccedilatildeo com o recurso da pergunta retoacuterica e

formulaccedilatildeo entimemaacutetica da questatildeo

Ora se prega que Cristo foi ressuscitado dentre os mortos como dizem alguns entre voacutes que natildeo haacute ressurreiccedilatildeo de mortos Mas se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo de mortos tambeacutem Cristo natildeo foi ressuscitado E se Cristo natildeo foi ressuscitado logo eacute vatilde a nossa pregaccedilatildeo e tambeacutem eacute vatilde a vossa feacute (1Cor 1512-14)

O exemplo da ressurreiccedilatildeo de Cristo eacute a representaccedilatildeo figurativa para o

entendimento da ressurreiccedilatildeo dos mortos Paulo continua argumentando sobre o

assunto relevante para o entendimento daquela comunidade ou seja a separaccedilatildeo

corpo e alma Ele usa a metaacutefora da semente para ilustrar a ideia de que a semente

precisa morrer para depois nascer e brotar Com o recurso dessa imagem Paulo

escrito com o teor da sentenccedila e os injustos pelo caminho da esquerda ladeira abaixo os quais tambeacutem levavam nas costas o relato de quanto haviam praticadordquo (A Rep X 614c) 370 Conforme exposiccedilatildeo de Le Goff (1990 p 344) ldquosatildeo de notar duas caracteriacutesticas ndash uma teoacuterica outra histoacuterica ndash da escatologia do antigo Judaiacutesmo A primeira eacute ruptura com o tempo ciacuteclico e exprime-se como crenccedila num tempo final De um modo diferente das religiotildees que a rodeiam apoiadas apenas em mitos e em ritos o judaiacutesmo daacute um certo sentido ao tempo e agrave histoacuteria que Deus conduz para um fim O judaiacutesmo eacute a religiatildeo da espera e da esperanccedila isto eacute da proacutepria essecircncia da escatologia No cristianismo a ressurreiccedilatildeo de Cristo eacute o sinal do domiacutenio de Jesus sobre o tempo do fim a antecipaccedilatildeo da ressurreiccedilatildeo futura dos homens e a instauraccedilatildeo definitiva do reino de Deus Este reino estaacute aberto a todos Deixa de existir privileacutegio para Israel A partir daqui escatologia judaica e cristatilde separam-se O judaiacutesmo espera sempre o Messias e a realizaccedilatildeo da promessa O cristianismo defende que com Jesus a escatologia entrou na histoacuteria e comeccedilou a realizar-serdquo

310

explica que eacute necessaacuterio morrer para perder o corpo material e adquirir o corpo

espiritual pela ressurreiccedilatildeo ldquoE assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestialrdquo (1Cor 1549) Essa ideia pressupotildee a

manutenccedilatildeo da identidade de cada um em oposiccedilatildeo agraves ideias dos pitagoacutericos371

que defendiam a teoria da vida ciacuteclica pelo meio da reencarnaccedilatildeo372

Na segunda epiacutestola aos Coriacutentios Paulo aborda novamente o tema sobre a morte

ldquoPorque sabemos que se a nossa casa terrestre deste tabernaacuteculo se desfizer

temos de Deus um edifiacutecio uma casa natildeo feita por matildeos eterna nos ceacuteus (2Cor

51) Paulo comeccedila usando o recurso retoacuterico da metaacutefora para voltar ao assunto

sobre corpo e alma ligando corpo com a perenidade e alma com a eternidade

Pois o amor de Cristo nos constrange porque julgamos assim se um morreu por todos logo todos morreram e ele morreu por todos para que os que vivem natildeo vivam mais para si mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou (2 Cor 51415)

Paulo interliga o amor de Cristo agrave sua morte e ressurreiccedilatildeo e se expressa atraveacutes de

um raciociacutenio entimemaacutetico para argumentar que a humanidade estaacute fadada agrave

morte mas se Cristo ressuscitou logo a morte foi vencida

Secircneca tambeacutem concebe a morte como um inimigo ameaccedilador e reconhece que ldquoa

vida nos foi dada com a morte como termo para o qual caminhamos (Ep 30 10 17)

Assim pode notar-se que em Paulo o tratamento do tema sobre a morte se

diferencia do de Secircneca com base exatamente no tema sobre o amor Paulo

postula que atraveacutes da demonstraccedilatildeo do amor de Cristo a humanidade pode ser

liberta da morte eterna

371

Secircneca faz algumas referecircncias a Pitaacutegoras relatando para Luciacutelio certos detalhes ldquo Uma vez que comecei a descrever-te o entusiasmo enorme depois mitigado pela idade com que eu jovem me dediquei agrave filosofia natildeo sentirei vergonha em revelar-te tambeacutem a paixatildeo que Pitaacutegoras despertou em mim [] Pitaacutegoras por seu lado afirmava o parentesco absoluto em todos os seres vivos a ligaccedilatildeo entre todas as almas e a respectiva transmigraccedilatildeo de corpo para corpo A crer o que ele diz nenhuma alma perece nem cessa de agir senatildeo o breve espaccedilo de tempo em que passa de um corpo para outro Ao fim de quanto tempo e atraveacutes de quantas moradas transitoacuterias a alma volta a encarnar num ser humano eacute assunto que deixo em suspenso Para jaacute Pitaacutegoras incutiu nos homens o medo de cometerem um crime um parriciacutedio pois eacute possiacutevel inadvertidamente darmos com a alma de um parente e violar matando-o ou comendo-o o corpo em que de momento se alberga o espiacuterito de nosso familiarrdquo (Ep 108 1719) 372

A respeito dos postulados pitagoacutericos sobre o tempo circular o poeta Borges (2011 p12) observa que a ideia do tempo ciacuteclico foi ldquorefutada por Santo Agostinho em A cidade de Deus Santo Agostinho diz com uma bela metaacutefora que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estoicosrdquo

311

Em Secircneca o tema amor tem algumas aproximaccedilotildees com os ensinamentos

paulinos mas as referecircncias ao tema se limitam agrave ideia de amizade e gratidatildeo entre

os humanos com base na aquisiccedilatildeo da sabedoria

A amizade estabelece entre noacutes uma comunhatildeo total de interesses nem a felicidade nem a adversidade satildeo fenocircmenos individuais vivemos para a comunidade (Ep 482) [] apenas o saacutebio sabe amar e sabe ter amizade Ora manifestar gratidatildeo eacute um componente do amor e da amizade (SEcircNECA Ep 8112)

Embora o tema amor natildeo esteja no primeiro plano do discurso de Secircneca ele faz

algumas referecircncias ao seu valor defendendo que a amizade eacute um instinto natural

(Ep 918) Assim ele cita uma maacutexima para servir de conselho a Luciacutelio ldquoSe que

queres ser amado amardquo Para Secircneca a sabedoria capacita a condiccedilatildeo de amor

Nesse sentido ele afirma ldquoa filosofia ensina-nos a respeitar o divino e amar o

humanordquo (Ep 903) Como pode ser percebido o conceito de deus em Secircneca natildeo

concebe uma relaccedilatildeo pessoal pois ele estaacute presente na natureza mas natildeo dispotildee

de uma forma de relacionamento individual com o homem Secircneca admite que no

acircmbito da filosofia estoica o valor do respeito estaacute vinculado agrave divindade mas o

amor somente se presentifica nas relaccedilotildees humanas Isto se explica pela concepccedilatildeo

da imanecircncia de Deus

Secircneca afirma textualmente ldquoapenas o saacutebio sabe amar apenas o saacutebio sabe ter

amizaderdquo (Ep 8112) Essa premissa eacute resultante de suas confabulaccedilotildees sobre

gratidatildeo e ingratidatildeo ao longo da epiacutestola oitenta e um que ele finaliza construindo

a seguinte maacutexima ldquoNatildeo haacute oacutedio mais violento do que o proveniente de um

benefiacutecio natildeo honradordquo (Ep 8132) Secircneca admite o amor no plano material e o liga

agrave virtude que se alcanccedila pela sabedoria que na epiacutestola de Paulo eacute referida como

sabedoria deste mundo Assim virtude e viacutecio para Secircneca satildeo concebidos no

campo material enquanto Paulo se refere agrave virtude como frutos do espiacuterito e viacutecios

como frutos da carne Nesses termos Segurado e Campos (1991 p XXXIV) em seus

comentaacuterios da traduccedilatildeo alega que eacute inegaacutevel o materialismo dos estoicos por

entenderem que tudo eacute de natureza material inclusive o espiacuterito de acordo com a

teoria dos corpoacutereos e incorpoacutereos

Eacute possiacutevel perceber na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo que os

instrumentos usados como recursos retoacutericos satildeo retirados de um lugar comum

como fornecedor de toacutepicos adequados ao gecircnero epistolar Os exemplos citaccedilotildees

e metaacuteforas satildeo acionados como recursos argumentativos que datildeo sustentaccedilatildeo aos

312

toacutepoi como elementos dos entimemas que formam os conteuacutedos dos discursos por

meio da formaccedilatildeo das ideias que satildeo desenvolvidas O que diferencia a utilizaccedilatildeo

destes eacute o posicionamento que cada enunciador ocupa na construccedilatildeo do discurso

de acordo com seus objetivos e interesses a partir dos discursos constituintes

Conclui-se que estes meios estabelecidos em forma de exemplos citaccedilotildees e

metaacuteforas funcionam como facilitadores da circulaccedilatildeo dos discursos constituintes

na cena enunciativa

Mesmo retirando toacutepicos dos temas sobre o tempo e amor de reservatoacuterios que

contecircm toacutepoi que caracterizam um lugar comum Secircneca e Paulo tratam estes

assuntos explorando facetas distintas em alguns aspectos mas com pontos de

semelhanccedilas entre outros pela heranccedila da influecircncia heleniacutestica

Esse fato pode ser notado no uso do toacutepos ldquoem uma comunhatildeo consiste a amizaderdquo

mencionado por Aristoacuteteles na obra Eacutetica a Nicocircmaco (VIII 1159b) e ele cita o

proveacuterbio ldquoos amigos possuem tudo em comumrdquo A partir desta identificaccedilatildeo pode-

se inferir que ldquoo amor promove a uniatildeordquo como um toacutepos que subjaz ao tema amor

se destaca como lugar comum na cultura heleniacutestica pelas proacuteprias circunstacircncias

da integraccedilatildeo cultural entre diferentes povos ou situaccedilatildeo social Nesse contexto

Paulo declara ldquoPois em um soacute Espiacuterito fomos todos noacutes batizados em um soacute corpo

quer judeus quer gregos quer escravos quer livres e a todos noacutes foi dado beber de

um soacute Espiacuteritordquo (1Cor 1213) Paulo usa a metaacutefora da imagem do corpo e seus

membros em suas diversas funccedilotildees sendo cada parte importante para a unidade do

corpo ldquoPorque tambeacutem o corpo natildeo eacute um membro mas muitosrdquo (1Cor 1214) O

amor exerce a funccedilatildeo de ligar metaforicamente as partes do corpo para que haja

uniatildeo Este eacute um princiacutepio que norteia o toacutepos ldquoo amor promove a uniatildeordquo pois o ser

humano eacute por natureza social e tem necessidade de viver em grupo Por esta razatildeo

Secircneca afirma ldquoNatildeo eacute mesmo possiacutevel algueacutem viver feliz se apenas preocupar

consigo se reduzir tudo agraves suas proacuteprias conveniecircncias tem de viver para os outros

quem quiser viver para si mesmordquo (Ep 482) Como visto o toacutepos identificado em

Aristoacuteteles ldquoem uma comunhatildeo consiste a amizaderdquo eacute recorrente nas geraccedilotildees

posteriores mesmo tendo aplicaccedilotildees distintas a cada situaccedilatildeo em que se envolve o

tema amor

Um ponto comum que pode ser observado na escrita de Secircneca e Paulo eacute a visiacutevel

ameaccedila e exposiccedilatildeo agrave morte Nesse aspecto parresiacutea em Secircneca e Paulo significa

313

tambeacutem a coragem de enfrentar o final da vida pois a origem da ameaccedila de morte

aos dois poderia estar fundada em um lugar comum ou seja no poder imperial

Veyne (1995 p 181) pondera que a morte de Secircneca natildeo foi uma imitaccedilatildeo da de

Soacutecrates que morreu agradecendo a Esculaacutepio por livrar sua alma do corpo Secircneca

se inspirou no estoicismo agradecendo ao deus estoico por ter lhe dado meios

intelectuais de morrer voluntariamente Como relata Veyne Nero ordenou ao oficial

a retornar ao local onde estava Secircneca para indicar-lhe que deveria matar-se

Secircneca jaacute havia manifestado na epiacutestola setenta a opccedilatildeo do suiciacutedio como

significado de liberdade ldquoNenhuma meditaccedilatildeo eacute tatildeo imprescindiacutevel como a

meditaccedilatildeo da morterdquo (Ep 70 18) Secircneca se fortalece com o exemplo de Catatildeo

lembrando como voluntariamente ele optou pela morte ldquoCatatildeo arranjou-se de modo

a que a ningueacutem coubesse o direito de mataacute-lo ou a possibilidade de salvaacute-lordquo (Ep

246) Em um mesmo contexto histoacuterico de ameaccedilas poliacuteticas e religiosas Paulo se

mostra corajoso diante da morte ldquoE assim noacutes que vivemos estamos sempre

entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste

tambeacutem na nossa carne mortalrdquo (2 Cor 411)

De acordo com o discurso constituinte que rege a enunciaccedilatildeo das epiacutestolas de

Secircneca e Paulo o discurso filosoacutefico daacute sustentaccedilatildeo ao ethos de Secircneca como guia

para o corajoso enfrentamento das circuntacircncias tanto no embate da vida quanto no

da morte Em Paulo o discurso constituinte religioso quebra a oposiccedilatildeo vida e morte

que se unificam por uma razatildeo especiacutefica ldquopor amor de Jesusrdquo

Conclui-se entatildeo que entre a escrita das epiacutestolas de Secircneca e as de Paulo satildeo

observados elementos que funcionam ora como aproximaccedilatildeo entre suas posiccedilotildees

discursivas e ora como afastamento destas Tais posicionamentos satildeo evindeciados

pela conduccedilatildeo do discurso constituinte filosoacutefico nas epiacutestolas de Secircneca e o

discurso constituinte religioso nas epiacutestolas de Paulo

314

REFEREcircNCIAS

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Page 2: O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE

ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS

O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE TOacutePOI E

ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA

E PAULO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espiacuterito Santo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Orientadora Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite

VITOacuteRIA

2017

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-publicaccedilatildeo (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espiacuterito Santo ES Brasil)

Santos Zilda Andrade Lourenccedilo dos 1947- S237d O discurso constituinte como determinante no uso de toacutepoi e argumentos retoacutericos na construccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Zilda Andrade Lourenccedilo dos Santos ndash 2017 335 f Orientador Leni Ribeiro Leite Tese (Doutorado em Letras) ndash Universidade Federal do Espiacuterito Santo Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais 1 Secircneca 2 Paulo Apoacutestolo Santo 3 Epiacutestola latina 4 Anaacutelise do discurso literaacuterio 5 Literatura antiga 6 Histoacuteria antiga I Leite Leni Ribeiro 1979- II Universidade Federal do Espiacuterito Santo Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais III Tiacutetulo

CDU 82

ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS

O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE TOacutePOI E

ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E

PAULO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espiacuterito Santo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Orientadora Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite

COMISSAtildeO EXAMINADORA

______________________________________ Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite Universidade Federal do Espiacuterito Santo Orientadora

______________________________________ Prof Dr Gilvan Ventura da Silva Universidade Federal do Espiacuterito Santo

______________________________________ Profordf Drordf Juacutelia Maria Costa de Almeida Universidade Federal do Espiacuterito Santo

______________________________________ Prof Dr Deacutecio Orlando Soares da Rocha Universidade Estadual do Rio de Janeiro

______________________________________ Prof Dr Faacutebio da Silva Fortes Universidade Federal de Juiz de Fora

______________________________________ Prof Dr Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho Universidade Federal do Espiacuterito Santo ______________________________________ Profordf Drordf Isabella Tardin Cardoso Universidade Estadual de Campinas

In memoriam

Aos meus pais

Que partiram cedo e natildeo chegaram agrave uacuteltima estaccedilatildeo da vida mas deixaram como legado uma bagagem de valores

insubstituiacuteveis

Pr Oliveira de Arauacutejo

Viveu lutou e partiu haacute trecircs meses Ensinou uma grande liccedilatildeo

Vale a pena sonhar

AGRADECIMENTOS

Gratidatildeo a Deus pela renovaccedilatildeo diaacuteria da capacidade fiacutesica mental e emocional

como condiccedilotildees baacutesicas para a produccedilatildeo deste trabalho Em momentos de fraqueza

e desacircnimo um texto biacuteblico muito inspirador e reconfortante funcionou como uma

forccedila de recarga do acircnimo e coragem ldquoNatildeo temas porque eu sou contigo natildeo te

assombres porque eu sou teu Deus eu te fortaleccedilo e te ajudo e te sustento com a

destra da minha justiccedilardquo (Isaias 4110) Agrave Capes pela ajuda financeira que me

permitiu a realizaccedilatildeo das viagens natildeo somente atraveacutes dos textos mas a

oportunidade de visitar lugares historicamente marcados pela Antiguidade claacutessica

e tambeacutem a participaccedilatildeo no congresso internacional na Faculdade de Letras do

Porto Agrave coordenaccedilatildeo e funcionaacuterios do PPGL pelos serviccedilos prestados e a atenccedilatildeo

aos alunos do programa Agrave minha orientadora profordf Drordf Leni Ribeiro Leite por

depositar confianccedila nas possibilidades do meu desempenho na academia o

incentivo pontual as leituras cuidadosas e orientaccedilotildees na minha produccedilatildeo textual O

estiacutemulo acadecircmico na promoccedilatildeo e coordenaccedilatildeo dos encontros e debates do grupo

de pesquisa fato que contribuiu para a construccedilatildeo das minhas ideias em partes

cruciais da pesquisa Aos professores Dr Gilvan e Drordf Juacutelia pela excelecircncia na

ministraccedilatildeo das aulas nas quais participei na poacutes-graduaccedilatildeo As valiosas

contribuiccedilotildees em minha qualificaccedilatildeo e as observaccedilotildees pertinentes ajudaram nortear

o meu trabalho Aos professores Dr Deacutecio Rocha e Dr Faacutebio Fortes que

atenciosamente aceitaram o convite para composiccedilatildeo desta banca

Agraves colegas Kaacutetia e Marihaacute pela ministraccedilatildeo das aulas de latim como suporte para

lidar com os textos latinos Ao professor Fernando por compartilhar seus

conhecimentos do grego claacutessico Ao professor Kosmaacutes por abrir as portas do

Centro de Cultura Grega e oferecer a oportunidade de introduccedilatildeo aos estudos do

grego koineacute base indispensaacutevel para identificaccedilatildeo de palavras gregas nos textos

receptus das epiacutestolas do apoacutestolo Paulo Aos colegas do grupo de pesquisa Ana

Camilla Natan Marihaacute Kaacutetia Luiza Alessandro Bruno Iana Fabrizia Mariane

Baacuterbara e Irlan por formarem uma equipe tatildeo coesa e amiga responsaacutevel e alegre

Ao meu esposo Paulo companheiro fiel e dedicado com sua forccedila sustentadora agrave

minha irmatilde parceira atuante na realizaccedilatildeo das viagens em 2013 e 2016 ao mundo

claacutessico aos meus familiares e amigos pela expectativa incentivadora do meu

desempenho neste compromisso acadecircmico assumido

Natildeo chegaraacute aos nossos ouvidos o que os pocircsteres diratildeo de noacutes mas decerto nas suas palavras embora sem o sentirmos continuaremos a ser uma presenccedila Secircneca (Ep 7918) Porque agora vemos por espelho em enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecido Paulo (1Cor 132)

RESUMO

Esta pesquisa foi elaborada a partir da construccedilatildeo de um paralelo entre a produccedilatildeo

das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo durante o primeiro seacuteculo de nossa era O

discurso constituinte eacute o elemento determinante na forma de conduccedilatildeo da trajetoacuteria

do gecircnero epistolar Secircneca se direciona pelos caminhos do discurso filosoacutefico

enquanto Paulo respalda seu texto com base no discurso religioso Como ponto de

partida conta-se com o apoio de Foucault em suas investigaccedilotildees sobre a escrita de

si como um ingrediente na receita do cuidado de si na Antiguidade Nota-se que a

epistolografia exerce um papel fundamental naquele momento histoacuterico funcionando

natildeo somente como meio de comunicaccedilatildeo entre remetente e destinataacuterio mas

tambeacutem como uma forma de exposiccedilatildeo da subjetividade que se revela pela

aquisiccedilatildeo dos discursos verdadeiros Estes discursos manifestam-se no modo de

agir do indiviacuteduo determinando a posiccedilatildeo discursiva ocupada pelo ethos na

enunciaccedilatildeo Os pressupostos da anaacutelise do discurso de base enunciativa na

abordagem de Maingueneau e outros pesquisadores nessa mesma linha fornecem

suporte teoacuterico para as anaacutelises Na cena geneacuterica da enunciaccedilatildeo ocorre a

construccedilatildeo do gecircnero do discurso e este requer uma cenografia discursiva que o

direciona no ato enunciativo revelando o ethos do enunciador responsaacutevel pelo

discurso A epiacutestola como gecircnero na escrita de Secircneca e Paulo fornece espaccedilo

para que cada um desenvolva suas argumentaccedilotildees segundo os fundamentos

baacutesicos da retoacuterica antiga A partir dos discursos constituintes filosoacutefico e religioso

estes autores recorrem a determinados toacutepoi lugares comuns e argumentos

retoacutericos que satildeo desenvolvidos na construccedilatildeo de suas epiacutestolas Nas fronteiras dos

discursos filosoacutefico literaacuterio e religioso encontram-se as influecircncias da cultura

heleniacutestica que contribuem para aproximaccedilatildeo destes discursos constituintes

exercendo um efeito de entrecruzamento causando o fenocircmeno do interdiscurso

Assim as posiccedilotildees discursivas de Secircneca e Paulo ora se aproximam ora se

afastam tendo em vista os discursos constituintes que as direcionam

Palavras-chave Secircneca e Paulo discurso constituinte gecircnero epistolar ethos

toacutepoi

ABSTRACT

This research was elaborated from the construction of a parallel between the

production of the epistles of Seneca and Paul during the first century of our era

The constituent discourse is the determining element in the way of conducting the

trajectory of the epistolary genre Seneca is guided by the paths of philosophical

discourse while Paul supports his text based on religious discourse As a starting

point one counts on the support of Foucault in his investigations on the writing of

itself like an ingredient in the prescription of the care of itself in the Antiquity It is

noted that epistolography plays a fundamental role in that historical moment

functioning not only as a means of communication between the sender and

recipient but a form of exposition of the subjectivity that is revealed by the

acquisition of the true discourses These discourses are manifested in the

individuals way of acting determining the discursive position occupied by the ethos

in the enunciation The assumptions of discourse analysis with an enunciative

basis in Maingueneaus approach and other researchers in this same line provide

theoretical support for the analyzes In the generic scene of the enunciation occurs

the construction of the discourse genre and this requires a discursive scenography

that directs it in the enunciative act revealing the ethos of the enunciator

responsible for the discourse The epistle as genre in the writings of Seneca and

Paul provides space for each one to develop their arguments according to the

basic foundations of ancient rhetoric Starting from the constituent discourses

philosophical and religious these authors resort to certain topoi commonplace and

rhetorical arguments that are developed in the construction of their epistles At the

frontiers of philosophical literary and religious discourses are the influences of

Hellenistic culture that contributes to the approximation of these constituent

discourses exerting an effect of intercrossing causing the interdiscourse

phenomenon Thus the discursive positions of Seneca and Paul sometimes come

closer together and sometimes departing in view of the constituent discourses that

direct them

Keywords Seneca and Paul constituent discourse epistolary genre ethos topoi

RESUMEN

Esta investigacioacuten fue elaborada a partir de la construccioacuten de un paralelo entre la

producioacuten de las epiacutestolas de Seacuteneca y Pablo durante el primer siglo de nuestra

era El discurso constituyente es el elemento determinante en el modo de la

conduccioacuten de la trayectoria del geacutenero epistolar Seacuteneca se vuelve a los caminos

del discurso filosoacutefico mientras Pablo sigue con su texto basado en el discurso

religioso Como punto de partida se cuenta con el apoyo de Foucault en sus

investigaciones sobre la escrita de si como ingrediente en el cuidado de siacute en la

Antiguumledad Se observa que la epistolografiacutea desempentildea un papel clave en ese

momento histoacuterico actuando no soacutelo como un medio de comunicacioacuten entre el

remitente y el receptor pero tambieacuten una forma de exposicioacuten de la subjetividad que

se revela por la aquisicioacuten de los discursos verdadeiros Estos se manifiestan en los

actos individuales determinando la posicioacuten discursiva ocupada por el ethos en la

enunciacioacuten Los supuestos del anaacutelisis del discurso de la base enunciaciativa en el

enfoque de Maingueneau y otros investigadores en esta misma linea de ideas

proporcionan soporte teoacuterico para el anaacutelisis En la escena de la enunciacioacuten ocurre

la construccioacuten del geacutenero del discurso y esto requiere una cenografia discursiva

que lo direciona en el acto enunciativo revelando el ethos del enunciador

responsable por el discurso La epiacutestola como geacutenero en la escritura de Seacuteneca y

Pablo proporciona espacio para cada uno exponer sus argumentos seguacuten los

fundamentos baacutesicos de la retoacuterica antigua A partir de los discursos constituyentes

filosoacutefico y religioso estos autores recurren a determinados toacutepoi lugares comunes

y argumentos retoacutericos que se desarrollan en la construccioacuten de sus epiacutestolas En

las fronteras de los discursos filosoacutefico literaacuterio y religioso estaacuten presentes las

influeacutencias de la cultura heleniacutestica que contribuyen para la aproximacoacuten de los

discursos constituyentes ejerciendo un efecto de entrecrusiamento entre los

discursos causando el fenoacutemeno del interdiscurso Asiacute las posiciones discursivas

de Seacuteneca y Pablo ora se aproximan ora se apartan en vista de los discursos

constituyentes que las dirigen

Palabras-clave Seacuteneca y Pablo discursos constituyentes geacutenero epistolar toacutepoi ethos

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 13

PARTE I

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE O QUADRO TEOacuteRICO 30

2 CONTRIBUICcedilOtildeES DE FOUCAULT PARA OS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE 35

21 A ESCRITA DE SI 43

22 SUJEITO E AUTORIA 50

3 A RETOacuteRICA NA ANTIGUIDADE 54

31 CONTRIBUICcedilOtildeES DE GREGOS E ROMANOS PARA A RETOacuteRICA 55

32 O TOacutePOS NA RETOacuteRICA E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA 66

33 PARRESIacuteA E RETOacuteRICA 74

4 A ANAacuteLISE DO DISCURSO E SUA RELACcedilAtildeO COM A RETOacuteRICA 82

41 DISCURSOS CONSTITUINTES 83

42 GEcircNERO DO DISCURSO 86

43 CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO 91

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE I 97

PARTE II

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CENA DA ENUNCIACcedilAtildeO NAS

EPIacuteSTOLAS DE PAULO E DE SEcircNECA 99

2 A EPISTOLOGRAFIA SEU LUGAR NA ANTIGUIDADE E SUA

CONTINUIDADE NA HISTOacuteRIA 102

21 PAULO E SUAS EPIacuteSTOLAS AgraveS IGREJAS 123

22 SEcircNECA E AS EPISTULAE MORALES 129

23 CONJECTURAS SOBRE A TROCA DE CORRESPONDEcircNCIA ENTRE

PAULO E SEcircNECA 134

3 FORMACcedilAtildeO JUDAICO-HELENIacuteSTICA DE PAULO E SEU POSICIONAMENTO

DISCURSIVO NAS EPIacuteSTOLAS 138

31 MANUAL DE INSTRUCcedilOtildeES DE PAULO Agrave IGREJA DE CORINTO 154

32 ETHOS DISCURSIVO DE PAULO DIANTE DE SEUS LEITORES 159

4 FILOSOFIA LITERATURA E POLIacuteTICA NA TRAJETOacuteRIA DE SEcircNECA E A

CONSTITUICcedilAtildeO DA CENOGRAFIA EM SUAS EPIacuteSTOLAS 166

41 CONSTRUCcedilAtildeO DA CENOGRAFIA COMO TRATADO FILOSOacuteFICO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA 180

42 ETHOS DE SEcircNECA DE ACORDO COM SUA POSICcedilAtildeO DISCURSIVA 186

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE II 194

PARTE III

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CONSTITUICcedilAtildeO DO DISCURSO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO 198

2 TOacutePOS FILOSOacuteFICOMORAL E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NAS

EPIacuteSTOLAS 209

21 TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL ldquoFALAR FRANCOrdquo 210

211 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 213

212 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto 216

22 O EXEMPLO COMO RECURSO RETOacuteRICO 220

221 Exemplos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 221

222 Exemplos nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto 230

23 CITACcedilOtildeES E ENTRECRUZAMENTO DE DISCURSOS CONSTITUINTES 238

231 Citaccedilotildees de maacuteximas e versos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 240

232 Citaccedilotildees de Paulo nas epiacutestolas aos Coriacutentios 248

24 USO DE METAacuteFORAS RETIRADAS DE UM LUGAR COMUM 257

241 A imagem do atleta em diferentes epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 262

242 A metaacutefora do atleta na primeira epiacutestola aos Coriacutentios 265

3 O TEMPO NAS CONCEPCcedilOtildeES FILOSOacuteFICAS DE SEcircNECA 269

31 O VALOR DO TEMPO 271

32 O TEMPO Eacute CIRCULAR 275

33 FLUIDEZ DO TEMPO 279

4 O TEMA O AMOR NAS EPIacuteSTOLAS DE PAULO 283

41 A ORIGEM DO AMOR 284

42 O AMOR PROMOVE A UNIAtildeO 288

43 A GRANDEZA DO AMOR 295

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE III 302

CONCLUSAtildeO 305

REFEREcircNCIAS 314

13

INTRODUCcedilAtildeO Pois assim que o nosso pensamento encontra as palavras ele jaacute natildeo eacute interno nem estaacute realmente no acircmago da sua essecircncia Quando comeccedila existir para os outros ele deixa de viver em noacutes como o filho que se desliga da matildee ao iniciar a proacutepria existecircncia

Arthur Schopenhauer (2005 p14)

Esta pesquisa visa atender os interesses dos estudos da Antiguidade claacutessica

colocando em cena dois personagens de relevacircncia na histoacuteria do impeacuterio romano

Por um lado Secircneca eacute representativo no campo da filosofia poliacutetica e literatura no

contexto do Principado na vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era Por outro lado

no mesmo periacuteodo destaca-se a figura de Paulo no campo da religiatildeo judaico-cristatilde

fortalecendo os primoacuterdios do cristianismo atraveacutes de sua missatildeo evangelizadora e

iniciativa de orientaccedilatildeo agraves igrejas por ele formadas por meio do recurso do gecircnero

epistolar Em especial o ponto comum entre esses dois autores eacute o uso do gecircnero

epistolograacutefico o que tambeacutem contribui para a hipoacutetese de contato entre eles

Ebbeler (2001 p1) informa que na obra de Jerocircnimo De Viris Illustribus (392 dC) eacute

mencionada a suposta correspondecircncia entre Seneca o filosoacutefo estoico e o

apoacutestolo Paulordquo A tentativa de aproximaccedilatildeo entre Secircneca e Paulo tambeacutem levanta

questotildees sobre a relaccedilatildeo entre estoicismo e cristianismo Para Candiotto (2012 p

106-108) uma das contribuiccedilotildees dos estudos de Foucault com foco na Antiguidade

eacute estabelecer de forma indireta oposiccedilotildees entre a praacutetica do cuidado de si entre

estoicos e cristatildeos Pode-se dizer indireta porque Foucault aponta diferenccedilas entre

os estoicos dos dois primeiros seacuteculos dC e o cristianismo institucionalizado que

naquele momento histoacuterico ainda natildeo havia se estabelecido se comparado agrave

antiguidade institucional do estoicismo

A primeira indagaccedilatildeo que se instaura inicialmente eacute que relevacircncia esta pesquisa

pode oferecer para os estudos acadecircmicos Necessariamente uma pesquisa

comparativa coloca em evidecircncia um paralelo entre pontos de vista diferenciados

Por essa razatildeo este trabalho estaacute investido na busca de observar como os

discursos filosoacutefico e literaacuterio funcionam como direcionamento na produccedilatildeo das

epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e a determinaccedilatildeo do discurso religioso na conduccedilatildeo

14

da produccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo dirigidas agrave igreja de Corinto Assim ao situar as

produccedilotildees de Secircneca no campo da literatura e filosofia as investigaccedilotildees contribuem

para as reflexotildees e descobertas tanto na aacuterea da literatura quanto na aacuterea da

filosofia nos estudos claacutessicos Quanto agraves produccedilotildees de Paulo no campo religioso

e literaacuterio as contribuiccedilotildees desta pesquisa visam atender os interesses das

investigaccedilotildees histoacutericas no campo da religiatildeo e os estudos teoloacutegicos e

hermenecircuticos voltados para o Novo Testamento visto ser esta uma literatura de

amplitude popular

Outro marco de relevacircncia neste trabalho eacute o interesse em compreender a escritura

da correspondecircncia na Antiguidade aproveitando as contribuiccedilotildees de Michel

Foucault na uacuteltima fase de suas pesquisas em especial o foco dado por ele ao

estoicismo dos dois primeiros seacuteculos de nossa era Ainda a escolha do quadro

teoacuterico da anaacutelise do discurso francesa de base enunciativa oferece categorias de

anaacutelise1 que podem ser produtivas nos estudos claacutessicos de acordo com postulados

desenvolvidos por Maingueneau

O interesse nesta tese em comparar a escrita das epiacutestolas de Secircneca e a de Paulo

surgiu a partir de um trabalho elaborado como requisito para a conclusatildeo do curso

Literatura e Histoacuteria em 2011 Ao analisar as possibilidades de possiacuteveis inter-

relaccedilotildees entre os discursos de Secircneca e Paulo no contexto histoacuterico do primeiro

seacuteculo de nossa era foram observadas certas manifestaccedilotildees de estrateacutegias

retoacutericas como forma de aproximaccedilatildeo entre posiccedilotildees discursivas entre esses dois

autores Este foi o ponto inicial que possibilitou o interesse na ampliaccedilatildeo dessa

investigaccedilatildeo como resultado das persistentes indagaccedilotildees por que pesquisar o

gecircnero epistolar na escritura de Secircneca e Paulo Que implicaccedilotildees resultam do uso

do gecircnero epistolograacutefico em tipos de discursos distintos como o filosoacutefico e o

1 Discurso constituinte gecircnero do discurso cenografia e ethos satildeo categorias de anaacutelise oferecidas

pela anaacutelise do discurso que atendem aos interesses de anaacutelise desta pesquisa Como registrado no Dicionaacuterio de anaacutelise do discurso Charaudeau e Maingueneau (2008 p 126) informam que a noccedilatildeo de discurso constituinte foi introduzida por Maingueneau e Cossutau (1995) para delimitar um conjunto de discursos que servem de alguma forma como fiadores de outros discursos e que natildeo tendo eles mesmos discursos que os validem devem gerir em sua enunciaccedilatildeo seu estatuto de alguma maneira ldquoauto-fundadordquo A escolha do gecircnero do discurso eacute definida pelo enunciador no direcionamento do modo de conduccedilatildeo do seu discurso Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008 p 96) a cenografia eacute imposta pelo gecircnero de discurso mas eacute instituiacuteda pelo proacuteprio discurso sendo validada pela proacutepria enunciaccedilatildeo Portanto o discurso se desenvolve a partir da cenografia que se estabelece sem modificar o gecircnero do discurso Na definiccedilatildeo de Amossy (2005 p 127) o ethos eacute compreendido como o conjunto das caracteriacutesticas que se relacionam agrave pessoa do orador e a situaccedilatildeo na qual esses traccedilos se manifestam e permitem construir sua imagem

15

religioso Aleacutem destes questionamentos iniciais no transcorrer da pesquisa outros

pontos de interrogaccedilatildeo foram se apresentando em relaccedilatildeo agrave identificaccedilatildeo do uso da

epistolografia Observou-se a importacircncia de identificar a retoacuterica e seus efeitos na

escritura epistolar situar os argumentos retoacutericos orientados a partir de Aristoacuteteles

entendido como recurso estrateacutegico na argumentaccedilatildeo congregar a noccedilatildeo de toacutepos

sugerida por Aristoacuteteles agrave praacutetica do uso do lugar comum na literatura latina no

sentido amplo da produccedilatildeo do texto escrito

Como hipoacutetese inicial pleiteou-se dar um tratamento indistinto entre o uso dos

termos carta e epiacutestola na Antiguidade Poreacutem ao deparar-se com as discussotildees

sobre a diferenccedila entre carta e epiacutestola em que Deissmann (1927 p 218) eacute ponto

de referecircncia nota-se uma preocupaccedilatildeo em classificar os tipos de correspondecircncia

pelas caracteriacutesticas que as diferenciam por meio de seus conteuacutedos Para

Deissmann a principal distinccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo literaacuteria e natildeo literaacuteria ou seja uma

relaccedilatildeo direta com os objetivos da correspondecircncia em termos de privado e puacuteblico

Entatildeo a noccedilatildeo de literaacuteria estaacute interligada agrave ideia de publicaccedilatildeo enquanto a natildeo

literaacuteria se reveste de um interesse particular entre os parceiros na correspondecircncia

A partir desta abordagem a correspondecircncia literaacuteria eacute designada como epiacutestola e a

natildeo literaacuteria como carta De acordo com esta posiccedilatildeo Paulo teria escrito carta por

ser caracterizada como natildeo literaacuteria e Secircneca teria escrito epiacutestola pelo caraacuteter

literaacuterio com vistas agrave publicaccedilatildeo Prosseguindo nas leituras e diversas comparaccedilotildees

de autores que lideram as abordagens desse tema foi necessaacuteria uma tomada de

posiccedilatildeo Oserva-se que na Antiguidade independente do objetivo da

correspondecircncia o termo de uso corrente era epiacutestola tanto no grego quanto no

latim e o uso dos termos carta ou letter referentes agrave correspondecircncia eacute posterior agrave

Antiguidade Portanto eacute necessaacuterio identificar as distinccedilotildees inerentes ao gecircnero

epistolar e classificar os subgecircneros que se enquadram na epistolografia Assim fica

estabelecido no tratamento desta tese o uso exclusivo do termo epiacutestola2 mediante

a conclusatildeo de que na Antiguidade o vocaacutebulo carta natildeo era considerado sinocircnimo

de epiacutestola no mesmo campo semacircntico

Outra questatildeo polecircmica eacute a concepccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca como tratado ou

ensaio e natildeo como gecircnero epistolar como explorado por grupos especializados em

2 Neste trabalho foi definido o uso do vocaacutebulo epiacutestola mas a maioria das traduccedilotildees e comentaacuterios

dos textos antigos usa o termo carta e letter e neste caso nas citaccedilotildees satildeo mantidos os vocaacutebulos estabelecidos pelos tradutores

16

estudos sobre ensaios Uma das contribuiccedilotildees favoraacuteveis agrave tomada de posiccedilatildeo

quanto ao gecircnero da correspondecircncia de Secircneca se deve agrave anaacutelise das epiacutestolas

pelo vieacutes da anaacutelise do discurso de base enunciativa Na enunciaccedilatildeo da primeira

epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio como abertura da coleccedilatildeo de epiacutestolas a constituiccedilatildeo

da cenografia se instaura como tratado filosoacutefico mas o gecircnero de discurso eacute

identificado em suas caracteriacutesticas como gecircnero epistolograacutefico Wilson (2001

2007) Inwood (2007) e Ebbeler (2001) satildeo pesquisadores voltados para a

Antiguidade concordantes de que Secircneca usa o gecircnero epistolograacutefico para seus

questionamentos filosoacuteficos Portanto estes autores servem de apoio para a decisatildeo

assumida em considerar as epiacutestolas de Secircneca como gecircnero epistolar filosoacutefico e

as de Paulo como gecircnero epistolar de aconselhamento

A concepccedilatildeo de retoacuterica na Antiguidade eacute outra questatildeo a ser tratada visto que

tanto Secircneca quanto Paulo se negam a assumir eloquecircncia e rebuscamento da

linguagem em suas epiacutestolas Como entatildeo situar a concepccedilatildeo de retoacuterica naquele

momento histoacuterico para compreender o posicionamento de Secircneca e de Paulo No

dizer de Alexandre Jr (2005 30) pode-se distinguir uma tendecircncia para a retoacuterica

filosoacutefica e outra para a retoacuterica poeacutetica No periacuteodo Heleniacutestico os estoicos

Cleantes e Crisipo defendiam a retoacuterica como a arte do bem dizer privilegiando o

componente esteacutetico-estiliacutestico Quintiliano (Institutio Oratoacuteria V 10 54) tambeacutem

assume uma posiccedilatildeo semelhante ao referir-se agrave retoacuterica como a arte de falar bem

Diante das divergecircncias de posicionamentos no modo de conceber a atuaccedilatildeo da

retoacuterica Secircneca e Paulo tendem a privilegiar a retoacuterica que se aproxima da filosofia

com sua origem em Platatildeo tendo continuidade e redefiniccedilatildeo em Aristoacuteteles e sendo

redimensionada em alguns de seus aspectos a partir do periacuteodo Heleniacutestico Com

base nessas consideraccedilotildees procura-se observar a retoacuterica como desenvolvida

pelos gregos e romanos como tambeacutem os sentidos que advecircm do uso de toacutepoi3 na

Antiguidade Tais preceitos satildeo evidenciados na cultura greco-romana e

reelaborados por Ciacutecero no contexto da filosofia e literatura latina sendo tambeacutem

identificados nas concepccedilotildees e produccedilotildees de Quintiliano na vigecircncia do primeiro

seacuteculo dC

3 Na obra Retoacuterica de Aristoacuteteles toacutepoi eacute um termo grego com a ideia de lugares que funcionam

como arquivos de onde satildeo retirados os toacutepicos como recursos retoacutericos na argumentaccedilatildeo

17

A partir do propoacutesito de comparaccedilatildeo entre os dois autores aqui em foco esta

pesquisa se empenha em observar analisar e comparar as epiacutestolas de Secircneca a

Luciacutelio com as de Paulo aos Coriacutentios procurando identificar os lugares comuns que

os aproximam e o posicionamento singular que cada um assume em seu discurso

de acordo com os discursos constituintes que os direcionam como tambeacutem os

efeitos da retoacuterica em suas produccedilotildees Essa comparaccedilatildeo se justifica por algumas

razotildees pertinentes aos interesses para os quais se voltam este trabalho Secircneca e

Paulo viveram e produziram seus discursos no transcorrer do primeiro seacuteculo dC

tendo como referecircncias as bases da retoacuterica em evidecircncia naquele periacuteodo mesmo

sem assumir a totalidade de suas implicaccedilotildees Observa-se que Secircneca e Paulo

apresentam maior disposiccedilatildeo em optar pela retoacuterica filosoacutefica em detrimento da

retoacuterica poeacutetica Kennedy (1994 p 173) analisa algumas epiacutestolas4 de Secircneca e

nota que ele natildeo pretende recorrer aos recursos da retoacuterica para transmissatildeo de

seus preceitos filosoacuteficos da mesma forma que estes eram aplicados agrave oratoacuteria

As argumentaccedilotildees de Secircneca sobre a transmissatildeo dos ensinamentos da filosofia

contribuem para certa distinccedilatildeo entre o tipo de retoacuterica adequado agrave aplicaccedilatildeo no

exerciacutecio da oratoacuteria e o tipo de retoacuterica ideal para compartilhar os preceitos

filosoacuteficos O papel da retoacuterica na oratoacuteria tem certas peculiaridades que evidenciam

diferenccedilas de sua funccedilatildeo e uso na escrita do gecircnero epistolar do qual Secircneca e

Paulo lanccedilam matildeo para elaborar suas ideias por meio da correspondecircncia A esse

respeito Segurado e Campos5 (1991 p XVII) comenta sobre o posicionamento de

Secircneca quanto ao uso dos recursos da retoacuterica mostrando que seu texto apresenta

certa ausecircncia do rigor da tradiccedilatildeo retoacuterica fato que provoca a criacutetica de Quintialiano

(Inst Or X 1130) ao seu estilo de escritor

Foucault (2010a 2010b) compreende a despreocupaccedilatildeo de Secircneca com o rigor

retoacuterico tradicional na produccedilatildeo de suas epiacutestolas por voltar-se para questotildees

sobre a parresia o falar franco e sincero Este ponto eacute comum entre Secircneca e

Paulo pelo proacuteprio caraacuteter do uso do gecircnero epistolar Tal fato eacute apontado por

Muhana (2000 p 341) pois a epiacutestola requer veracidade e sinceridade na

4 Na epiacutestola 404 Secircneca diz ldquoos filosoacutefos devem transmitir preceitos aos disciacutepulosrdquo Nesta mesma

epiacutestola Secircneca acrescenta ldquoo estilo filosoacutefico deve ter forccedila mas sem perder a moderaccedilatildeordquo (Ep 408) 5 Joseacute Antocircnio Segurado e Campos eacute o tradutor para o portuguecircs do texto latino Annae Senecae ad

Lucilium epistulae morales segundo o texto da Oxford University Press 1965 intitulado em portuguecircs de Portugal Cartas a Luciacutelio Luacutecio Aneu Seacuteneca

18

revelaccedilatildeo da primeira pessoa do remetente no discurso epistolar o que natildeo

aconteceria por exemplo em uma obra exclusivamente filosoacutefica

Secircneca produziu textos optando por diferentes gecircneros como trageacutedia saacutetira e

tratado e a epistolografia representa sua escolha de fechamento de suas

produccedilotildees Ele foi favorecido pelo gecircnero epistolar nos objetivos de sua escrita

filosoacutefica pela liberdade de expressatildeo e organizaccedilatildeo do discurso que este gecircnero

possibilita A produccedilatildeo da escrita de Secircneca6 na obra L Annaei Seneccae ad

Lucilium Epistulae Morales forma um conjunto de cento e vinte quatro epiacutestolas

distribuiacutedas em vinte livros caracterizando a organizaccedilatildeo das epiacutestolas como

coleccedilatildeo

Quanto agraves hipoacuteteses de um destinataacuterio fictiacutecio nessa correspondecircncia Paul Veyne

(1995 p 253) defende que a figura de Luciacutelio natildeo eacute simplesmente representativa ou

ficcional visto que a seacuterie de epiacutestolas aponta situaccedilotildees reais de encontros viagens

e a proacutepria adesatildeo de Luciacutelio em atendimento aos conselhos de Secircneca7 Paul

Veyne (1995 p 255) pondera que as epiacutestolas dirigidas a Luciacutelio natildeo satildeo de caraacuteter

privado visto que Secircneca declara sua intenccedilatildeo de publicaccedilatildeo8 Secircneca assumiu sua

correspondecircncia com Luciacutelio natildeo exclusivamente pelas necessidades deste mas

as de seus leitores incluiacutedos como destinataacuterios

Os textos da produccedilatildeo de Paulo satildeo referentes essencialmente agraves sete epiacutestolas9

do Novo Testamento reconhecidas como de sua autoria Young (2004 p 10) atribui

importacircncia agraves contribuiccedilotildees de Foucault em suas formulaccedilotildees de questotildees sobre

as funccedilotildees do autor fato este que interfere nas discussotildees relacionadas ao

processo de formaccedilatildeo do cacircnon neotestamentaacuterio Segundo Young (2004 p 10) as

teorias criacuteticas da poacutes-modernidade com sua ecircnfase na morte do autor procuram

enfocar a natureza dos textos originaacuterios de comunidades do cristianismo primitivo

6 As epiacutestolas de Secircneca que formam o corpus de anaacutelise foram selecionadas de acordo com a

identificaccedilatildeo da cenografia e o tema recorrente na enunciaccedilatildeo o uso do toacutepos falar franco e dos argumentos retoacutericos como exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas 7 Veyne (1995 p253-254) aponta que em epiacutestolas anteriores Secircneca aconselhou Luciacutelio a retirar-se

da vida puacuteblica Tempos depois Secircneca escreve ldquoEstou de acordo com a tua decisatildeo abriga-te no teu oacutecio mas coloca o teu oacutecio ao abrigo dos deusesrdquo (Ep 681) O oacutecio refere-se ao retiro das atividades puacuteblicas a aposentadoria e para Secircneca essa era uma oportunidade para dedicaccedilatildeo agrave filosofia 8 ldquoO mesmo que Epicuro prometeu ao seu amigo eu to prometo a ti Luciacutelio a posteridade haacute de

recordar-se de mim hei de fazer com que alguns nomes perdurem por estarem ligados ao meurdquo (Ep 215) 9 As epiacutestolas consideradas pseudo-paulinas satildeo Efeacutesios Colossenses 2 Tessalonicenses e as

pastorais Tito e 1 e 2 Timoacuteteo

19

sem identificaccedilatildeo de autoria e que buscam credibilidade no nome do apoacutestolo

Paulo Esse fenocircmeno resulta no surgimento das pseudos epiacutestolas paulinas e

outros textos apoacutecrifos do mesmo periacuteodo Diante dessa posiccedilatildeo Young pondera

que reflexotildees sobre essa concepccedilatildeo atual de sujeitoautor como tratada nas

formulaccedilotildees de Foucault influenciaram a tomada de posiccedilatildeo que se tornou

determinante para o estabelecimento das questotildees de autoria relativas agraves epiacutestolas

paulinas

Para estabelecer uma comparaccedilatildeo entre a produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e de

Paulo torna-se imprescindiacutevel a identificaccedilatildeo do funcionamento do gecircnero epistolar

da Antiguidade claacutessica ateacute a praacutetica do uso deste gecircnero nos primeiros seacuteculos de

nossa era Fato que ajuda compreender a razatildeo da existecircncia das pseudos epiacutestolas

paulinas A escolha das duas epiacutestolas10 de Paulo dirigidas agrave igreja de Corinto

definidas como corpus principal de anaacutelise se justifica por estas fazerem parte da

composiccedilatildeo do cacircnon paulino de acordo com o consenso da academia Outro fato

relevante para esta escolha eacute a formaccedilatildeo judaico-heleniacutestica de Paulo e sua

identificaccedilatildeo cultural com a comunidade de Corinto tendo a liacutengua grega como meio

de comunicaccedilatildeo Estas questotildees apontadas formam um conjunto que favorece a

aproximaccedilatildeo de Paulo com a cidade de Corinto Outro ponto favoraacutevel em escolher

as epiacutestolas aos Coriacutentios para comparaccedilatildeo com as epiacutestolas de Secircneca eacute a

identificaccedilatildeo do caraacuteter de aconselhamento o uso dos toacutepoi e a ocorrecircncia de

recursos retoacutericos O aconselhamento como toacutepos no protocolo do gecircnero epistolar

eacute uma questatildeo que possibilita certa proximidade com a forma de tratamento tanto

nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio quanto nas de Paulo aos Coriacutentios

A organizaccedilatildeo desta tese requer uma divisatildeo em partes pelo caraacuteter de

comparaccedilatildeo entre dois autores na realizaccedilatildeo da composiccedilatildeo dos textos Assim a

primeira parte estaacute destinada agraves contribuiccedilotildees e formulaccedilotildees teoacutericas que servem de

base para as investigaccedilotildees e anaacutelises Inicialmente conta-se com a colaboraccedilatildeo de

Foucault em suas investigaccedilotildees sobre sujeito e verdade na Antiguidade focalizando

o cuidado de si como constituiccedilatildeo do sujeito A escrita de si eacute um fator que contribui

para o enriquecimento da compreensatildeo sobre o funcionamento do gecircnero epistolar

nos dois primeiros seacuteculos de nossa era Ligadas agrave noccedilatildeo de sujeito algumas

10

As traduccedilotildees das epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios satildeo retiradas da Biacuteblia ediccedilatildeo Almeida Corrigida e revisada fiel

20

questotildees sobre autoria satildeo levantadas por Foucault em uma fase que se pregava a

morte do autor

Com um foco na Antiguidade observa-se a funccedilatildeo da retoacuterica a partir dos gregos

identificando-se a releitura sobre a retoacuterica claacutessica realizada pelos romanos

Aritoacuteteles efetivou a inclusatildeo dos toacutepicos como recursos retoacutericos na argumentaccedilatildeo

e este funcionamento se estabeleceu na retoacuterica romana em alguns de seus

aspectos expandido para aplicaccedilotildees no campo da oratoacuteria e da literatura Segundo

Rezende (2009 p 29) a retoacuterica na Antiguidade se constituiacutea como um programa

abrangente que visava atender agrave oratoacuteria capacitando o cidadatildeo para seu

desempenho na vida puacuteblica por esta razatildeo seu objetivo era contribuir para o bom

desempenho do orador Nessa mesma perspectiva Foucault (2010a p 462-463)

observa que a retoacuterica em Roma voltava-se para a preparaccedilatildeo do cidadatildeo romano e

era defendida como arte que se ensina Segundo Foucault (2010a p 463) ldquoo que

define a retoacuterica para Ciacutecero para Quintiliano eacute essencialmente como sabemos o

assunto tratadordquo Nesse aspecto a retoacuterica como teacutecnica orienta sobre a

pertinecircncia do que deve ser dito e o modo como se deve expressar

Foucault observa que no periacuteodo Heleniacutestico a parresiacutea como falar franco e

honesto entra em concorrecircncia com a retoacuterica tradicional contribuindo para a

aproximaccedilatildeo entre retoacuterica e filosofia Segundo Foucault Filodemo11 tem destaque

nesta contribuiccedilatildeo ao considerar que ldquoo homem saacutebio e filoacutesofo aplica o franco-falar

(a parresiacutea) na medida em que raciocina conjecturando por meio de argumentos

plausiacuteveis e sem rigidezrdquo (FOUCAULT 2010a p 347) A aproximaccedilatildeo entre retoacuterica

filosofia e parresiacutea eacute tambeacutem observada por Foucault (2010a p 137) por meio da

escrita de uma epiacutestola de Pliacutenio12 o Jovem (Ep I1-10) em seu elogio a Eufrates

11

Segundo Foucault (2010a p 347) Filodemo era um filoacutesofo epicurista que se instalara em Roma bem no final da Repuacuteblica e era o conselheiro filosoacutefico o conselheiro privado de Lucius Piso Filodemo foi muito importante quer pelo conteuacutedo significativo de seus escritos quer por ter sido um dos fundadores um dos inspiradores do movimento epicurista do final do seacuteculo I ac - ou logo no comeccedilo do seacuteculo I dC Foucault analisa a influecircncia de Filodemo por meio de fragmentos de sua obra Peri Parresiacutea 12

Pliacutenio elogia o filoacutesofo Estrabatildeo na epiacutestola dirigida Ao amigo Aacutecio Clemente ldquoSe alguma vez nossa cidade floresceu por causa das artes liberais ela agora floresce em seu maacuteximo 2 Haacute muitos e ilustres exemplos apenas um seria suficiente Eufrates o filoacutesofo 5 Ele argumenta tecircnue seacuteria e elegantemente aleacutem disso com frequecircncia aplica aquela sublimidade e grandeza de Platatildeo Seu discurso eacute copioso e variado agradaacutevel principalmente de modo que move e conduz ateacute mesmo os relutantesrdquo (PLIacuteNIO Ep I 125) Traduccedilatildeo de Kaacutetia Regina Giesen ldquoSobre o elogiado sabe-se que era um filoacutesofo estoacuteico natural de Tiro rival de Apolocircnio de Tiana e disciacutepulo de Musocircnio Rufordquo (GIESEN 2016 p 132)

21

filoacutesofo estoico pela forma como este ministrava seus ensinos filosoacuteficos valendo-

se de recursos retoacutericos Outra questatildeo que se extrai da praacutetica da parresiacutea na

Antiguidade eacute o uso do toacutepos ldquofalar francordquo que eacute identificado nas epiacutestolas de

Secircneca e Paulo perceptiacutevel mediante a constituiccedilatildeo da cenografia que se instaura a

partir de partes das epiacutestolas que introduzem o discurso de acordo com o gecircnero

epistolar Foucault (2010a p 344) afirma que ldquoem textos de Secircneca encontramos

particularmente na carta setenta e cinco uma verdadeira teoria do franco-falarrdquo

Alguns postulados da retoacuterica antiga se mantiveram e a anaacutelise do discurso

francesa de base enuncitiva resgatou de Aristoacuteteles (Ret I 2 1356a) as trecircs

provas teacutecnicas do discurso que se efetivam pela accedilatildeo do orador ecircthos reaccedilatildeo do

ouvinte paacutethos e pela realizaccedilatildeo do discurso loacutegos Para Maingueneau (2005

p69-74) a noccedilatildeo oradorauditoacuterio expande-se para a de textoleitor e no texto o

ethos emite uma voz silenciosa atraveacutes do enunciador que alcanccedila o pathos isto eacute

a recepccedilatildeo do co-enunciador Nesta abordagem enunciativa dos discursos

Maingueneau desenvolve alguns postulados teoacutericos que favorecem a identificaccedilatildeo

do discurso a partir de sua proacutepria constituiccedilatildeo Os discursos filosoacutefico religioso

literaacuterio e cientiacutefico apresentam caracteriacutesticas de independecircncia e autossuficiecircncia

pois cada um destes se sustenta sem depender do outro A esse fenocircmeno

Maingueneau (2008 p 38) designou de discursos constituintes Estes datildeo origem e

direccedilatildeo aos gecircneros do discurso que a eles estatildeo ligados Para expansatildeo e

desenvolvimento do gecircnero do discurso eacute acionada a cenografia que conduz a

enunciaccedilatildeo recorrendo agraves cenas validadas na memoacuteria do leitor ou ouvinte A

definiccedilatildeo da cenografia no discurso direciona as escolhas linguiacutesticas no ato

enunciativo e a proacutepria enunciaccedilatildeo valida o papel da cenografia e tambeacutem eacute

validada por ela

A determinaccedilatildeo do quadro de fundamentaccedilatildeo teoacuterica na primeira parte eacute seguida na

segunda parte pelas categorias de anaacutelise fornecidas pelos postulados da anaacutelise

do discurso cenografia e ethos13 tendo como pano de fundo o contexto histoacuterico em

que Secircneca e Paulo se situam no momento da produccedilatildeo de suas epiacutestolas A partir

do gecircnero do discurso epistolar como praticado na Antiguidade algumas questotildees

satildeo levantadas colocando em discussatildeo a concepccedilatildeo baacutesica do uso do termo

13

Os vocaacutebulos ethos pathos e logos referidos na anaacutelise do discurso natildeo satildeo acentuados seguindo a forma da transcriccedilatildeo recorrente na escrita em textos da liacutengua portuguesa

22

epiacutestola em oposiccedilatildeo ao termo carta Na sequecircncia os debates sobre as pseudo

epiacutestolas de Paulo satildeo contemplados de acordo com as vertentes de posiccedilotildees

favoraacuteveis e contraacuterias agrave autoria de Paulo em relaccedilatildeo agraves treze epiacutestolas integrantes

no Novo Testamento O ponto seguinte destaca as opiniotildees que se formulam em

torno das consideraccedilotildees sobre o enquadramento das epiacutestolas de Secircneca no

gecircnero epistolar Ainda focalizando o gecircnero epistolograacutefico na Antiguidade alguns

comentaacuterios satildeo mostrados sobre as conjecturas de suposta troca de

correspondecircncia entre Paulo e Secircneca

Para situar o momento em que Paulo e Secircneca produzem suas epiacutestolas um

panorama histoacuterico contribui para localizaacute-los no tempo e espaccedilo de suas atuaccedilotildees

e os efeitos discursivos na produccedilatildeo de seus discursos Algumas partes de textos

das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e de Paulo aos Coriacutentios satildeo usadas como forma

de citaccedilatildeo ao longo da primeira e segunda parte desta tese no desenvolvimento e

aplicaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo teoacuterica

Para identificaccedilatildeo da constituiccedilatildeo da cenografia na segunda parte foram

selecionados a primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio e o primeiro capiacutetulo de cada

epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios como corpus de anaacutelise A cenografia constituiacuteda

nas epiacutestolas de Secircneca se apresenta como um tratado filosoacutefico em que o tema ldquoo

tempordquo eacute introduzido e se torna recorrente em toda a coleccedilatildeo das epiacutestolas no

acontecimento da enunciaccedilatildeo A construccedilatildeo da cenografia nas epiacutestolas de Paulo

explora o tema ldquoo amorrdquo que eacute revalidado em toda a cena enunciativa no conjunto

das duas epiacutestolas Ainda na segunda parte eacute colocado em pauta alguns aspectos

da manifestaccedilatildeo do ethos observado na constituiccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e

Paulo

Na continuidade da pesquisa na terceira parte o foco eacute para o terceiro elemento do

meio de prova ou seja o loacutegos entendido como o raciociacutenio desenvolvido e

expressado por meio da linguagem na formaccedilatildeo do discurso No segundo capiacutetulo

procura-se identificar o toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas selecionadas como lugar

comum entre os dois autores Na sequecircncia verifica-se a ocorrecircncia dos mesmos

argumentos retoacutericos tanto nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio quanto em capiacutetulos

das duas epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios servindo como paracircmetro de

comparaccedilatildeo delimitados como exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas Tal proposta

constitui-se como uma ferramenta para uma possiacutevel identificaccedilatildeo do uso dos

23

argumentos retoacutericos determinados pela conduccedilatildeo do discurso constituinte de base

na enunciaccedilatildeo A comparaccedilatildeo entre o uso dessas estrateacutegias contribui para a

observaccedilatildeo de aproximaccedilotildees e afastamentos de posiccedilotildees discursivas entre Secircneca

e Paulo No terceiro capiacutetulo o criteacuterio para delimitaccedilatildeo das epiacutestolas a serem

analisadas eacute o desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo que se estabelece a partir da

construccedilatildeo da cenografia Nas epiacutestolas de Secircneca o tema direcionador eacute o tempo e

nas de Paulo eacute o amor analisado no quarto capiacutetulo A partir da recorrecircncia ao toacutepos

ldquofalar francordquo ligado agrave parresia eacute possiacutevel identificar este toacutepos como filosoacutefico pela

origem dos seus sentidos ligados agrave verdade moral porque estaacute ligado agrave eacutetica em

relaccedilatildeo ao modo de agir que se manifesta atraveacutes do ethos

A seleccedilatildeo dos corpora de anaacutelise dos recursos retoacutericos e temas eacute apresentada por

meio de esquemas em forma de quadros tendo a finalidade de identificar as partes

de epiacutestolas que contecircm os toacutepoi e argumentos retoacutericos observados como

tambeacutem os temas desenvolvidos a partir da construccedilatildeo das cenografias nas

epiacutestolas de Secircneca e Paulo No procedimento das anaacutelises alguns destaques do

corpus selecionado satildeo colocados em evidecircncia Quando a citaccedilatildeo em destaque

natildeo atinge mais de trecircs linhas eacute usado o recurso de caixas como forma de destacar

a citaccedilatildeo e situaacute-la fora do corpo do texto A delimitaccedilatildeo do corpus relacionado agraves

epiacutestolas de Secircneca eacute resultado do recorte feito para anaacutelise Como ponto de

partida a primeira epiacutestola eacute analisada para identificaccedilatildeo da construccedilatildeo da

cenografia Nesta mesma epiacutestola a introduccedilatildeo do tema ldquoo tempordquo eacute ponto de

referecircncia para constataccedilatildeo da cenografia como tratado filosoacutefico As partes das

epiacutestolas em que a noccedilatildeo de libertas aparece como liberdade no modo de falar

contribuem para a localizaccedilatildeo do uso do toacutepos ldquofalar francordquo As epiacutestolas que

contecircm exemplos e citaccedilotildees foram selecionadas de acordo com a ocorrecircncia do

tema introdutoacuterio que se desdobra em toacutepoi que abordam questotildees sobre a velhice e

a morte As epiacutestolas que registram o uso da metaacutefora do atletismo fornecem

elementos para o desenvolvimento do toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo como

preparaccedilatildeo para o enfrentamento da velhice e da morte como forma do cuidado de

si As partes de epiacutestolas que atendem a finalidade da verificaccedilatildeo do

desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo satildeo portadoras de diferentes abordagens como

o valor do tempo o tempo eacute circular e a fluidez do tempo Cada abordagem funciona

24

como um toacutepos que se localiza na memoacuteria do falante e serve como argumento para

as aplicaccedilotildees das liccedilotildees filosoacuteficas sobre o tempo

O corpus retirado das epiacutestolas de Paulo segue o mesmo criteacuterio da seleccedilatildeo feita

nas de Secircneca O que diferencia os corpora eacute a delimitaccedilatildeo dos textos para fonte de

anaacutelise pois as epiacutestolas de Secircneca definidas como corpus compotildeem o conjunto da

coleccedilatildeo Em relaccedilatildeo agraves epiacutestolas de Paulo do conjunto de sete foram selecionadas

as duas dirigidas agrave igreja de Corinto e destas foram retiradas partes de capiacutetulos

Para identificaccedilatildeo da cenografia foi delimitado o primeiro capiacutetulo de cada epiacutestola

escolhida Os versiacuteculos que contecircm o termo parresiacutea (παρρησια) satildeo localizados

para identificaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo Na composiccedilatildeo do corpus satildeo

selecionados outros versos que detecircm uma carga semacircntica similar ao uso de

parresiacutea Os exemplos satildeo encontrados em textos de epiacutestolas que fazem remissatildeo

ao Velho Testamento como apoio e sustentaccedilatildeo As citaccedilotildees ou alusotildees satildeo

encontradas nas epiacutestolas em que o discurso busca autoridade em uma fonte

externa seja religiosa literaacuteria ou filosoacutefica O recurso do uso da metaacutefora que toma

a imagem do atleta como modelo eacute encontrado no capiacutetulo nove de 1 Coriacutentios

focalizando o toacutepos ldquoeacute preciso exercita-se espiritualmenterdquo sendo o cuidado de si

um objetivo que auxlia no alcance final da vitoacuteria O tema amor eacute desenvolvido por

meio de diferentes abordagens como a origem do amor o amor promove a uniatildeo a

grandeza do amor Estes toacutepicos satildeo encontrados em diferentes capiacutetulos e versos

sendo desenvolvidos como toacutepoi que os leitores satildeo capazes de identificar como

lugares comuns

O texto das epiacutestolas de Secircneca eacute traduzido por Segurado e Campos (1991) e sua

introduccedilatildeo e tambeacutem as notas satildeo usadas como referecircncia bibliograacutefica O tiacutetulo

original eacute L ANNAEI SENECAE AD LUCILIUM EPISTULAE MORALES (Segundo o

texto da Oxford University Press 1965) Segurado e Campos traduziu o tiacutetulo para o

portuguecircs de Portugal Cartas a Luciacutelio Luacutecio Aneo Seacuteneca Os textos retirados das

epiacutestolas de Paulo satildeo referentes agrave traduccedilatildeo Almeida Corrigida e Revisada Fiel 4

ed 2011

Na organizaccedilatildeo da seleccedilatildeo do corpus o quadro 1 registra a indicaccedilatildeo do toacutepos

filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo e os trecircs recursos retoacutericos definidos como estrateacutegias

argumentativas no discurso exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora O exemplo eacute um recurso

valorizado por Aristoacuteteles pela sua eficaacutecia na estrateacutegia argumentativa A citaccedilatildeo

25

em seu sentido mais amplo natildeo faz parte direta das indicaccedilotildees feitas por

Aristoacuteteles mas eacute veriacutedico seu funcionamento como forccedila de sustentaccedilatildeo na

argumentaccedilatildeo visto que Aristoacuteteles recomenda a citaccedilatildeo de maacuteximas e ele mesmo

se utliza destas para ilustrar suas ideias no desenvolvimento da teoria proposta O

uso da metaacutefora tambeacutem eacute indicado por Aristoacuteteles pelo efeito de analogia que ela

produz na aacuterea do raciciacutenio dedutivo semelhante ao silogismo No lado esquerdo do

quadro 1 estatildeo indicados o toacutepos filosoacuteficomoral e os argumentos retoacutericos no

centro encontra-se a identificaccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca selecionadas e no lado

direito a seleccedilatildeo dos textos das epiacutestolas aos Coriacutentios

Corpus de anaacutelise de epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

Argumentos retoacutericos ndash Toacutepoi como fonte de um lugar comum

Quadro 1

TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL

ARGUMENTOS RETOacuteRICOS

SEcircNECA

PAULO

Toacutepos falar franco

Exemplo

Ep 14 Ep 251 Ep 87

Ep85 28 Ep 88 29

Ep 805 Ep 89 17

Ep 754 Ep 62

Ep 829 Ep 1110 Ep 249

Ep 612 Ep 82 9-5 Ep 962

Ep 95 68-69 Ep 77 10-12

1Cor 21 1Cor 45

2Cor 117 2Cor 312

2Cor 102

1Cor 10 1-11 1Cor 311

2Cor 4 7-11 2Cor 217

1Cor 111

Citaccedilatildeo

Ep 2 5-6 Ep 268

Ep 291011 Ep 82 15-18

Ep 412 Ep 7712 Ep 219

Ep 422 Ep 9427-88

Ep 95 55-69

TOPOacuteS RETOacuteRICO

1Cor 99 1Cor 1023 - 26

1Cor 1533 1Cor 1542

2Cor 62

Ep 596

Metaacutefora Ep 132 Ep 7816 1Cor 924-27

Ep 80 3-4 Ep 943

26

No quadro 2 o corpus selecionado eacute referente ao tema que eacute desenvolvido a partir

da construccedilatildeo da cenografia nas epiacutestolas de Secircneca Nota-se que no transcorrer da

enunciaccedilatildeo a abordagem filosoacutefica do tema ldquoo tempordquo se desdobra em reflexotildees

distintas No desenvolvimento desses temas satildeo usados recursos retoacutericos como

exemplo citaccedilatildeo maacuteximas e metaacuteforas Do lado esquerdo do quadro 2 satildeo

identificadas algumas abordagens que Secircneca desenvolve a partir do tema ldquoo

tempordquo no centro satildeo mencionados os recursos retoacutericos utilizados e do lado direito

a identificaccedilatildeo das principais epiacutestolas analisadas

Corpus de anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca

Tema _______________________ Tempo

Quadro 2

ABORDAGENS

RECURSOS RETOacuteRICOS

EPIacuteSTOLAS

Valor do tempo

Metaacutefora

Expressotildees metafoacutericas

Exemplo

Citaccedilatildeo e Maacutexima

Ep11-5 Ep2212-17

Ep 451213

Ep 621-2

Ep 8842 Ep 11732

O tempo eacute circular

Metaacutefora

Expressotildees metafoacutericas

Citaccedilatildeo

Maacutexima

Ep 126-8 Ep191

Ep 2420-21

Ep 774 Ep 191

Ep 2420-21 Ep 964-5

A fluidez do tempo

Citaccedilatildeo

Maacutexima

Metaacutefora

Expressotildees Metafoacutericas

Ep 6511 Ep 493

Ep 21 Ep 254

Ep 5822-23 Ep 997

Ep 701- 4 Ep 10824

27

O quadro 3 apresenta o tema filosoacutefico-teoloacutegico ldquoo amorrdquo constituiacutedo nas epiacutestolas

de Paulo agrave igreja de Corinto a partir da construccedilatildeo da cenografia Este tema se

expande para outras abordagens que funcionam como toacutepoi unindo-se ao tema

central Os recursos retoacutericos exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora satildeo usados como

estrateacutegias argumentativas na sustentaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo do tema Os recursos

argumentativos usados favorecem o entrecruzamento dos discursos constituintes

contribuindo para a discursividade que se estabelece no ato enunciativo Do lado

esquerdo satildeo mostrados os trecircs desdobramentos contidos no tema amor

desenvolvidos por Paulo no centro do quadro satildeo identificados os recursos retoacutericos

como argumentaccedilatildeo e do lado direito a delimitaccedilatildeo das partes das epiacutestolas que

formam o corpus

Corpus de anaacutelise das duas epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios

Tema _____________________________ Amor (Aacutegape)

Quadro 3

ABORDAGENS

RECURSOS RETOacuteRICOS

EPIacuteSTOLAS

A origem do amor

Citaccedilatildeo

Exemplo

1Cor 1910 1Cor 29

2Cor 1 3 2Cor 2 4

O amor faz a uniatildeo

Citaccedilatildeo

Metaacutefora

Exemplo

1Cor112122 1Cor11 23-26

1Cor 12 13-25 1Cor 16 2-3

2Cor 8 10-15 2Cor 9 2-10

A grandeza do amor

Metaacutefora

Citaccedilatildeo

Exemplo

1Cor 13

2Cor 12 14-15

2Cor 13 11-13

Estes quadros apresentam a siacutentese da seleccedilatildeo dos argumentos retoacutericos e temas

definidos a paritr da cenografia com seus desdobramentos em que estatildeo contidos

28

diferentes toacutepoi no percurso da enunciaccedilatildeo e as partes dos textos das epiacutestolas de

Secircneca e de Paulo como corpora delimitados como fonte para as anaacutelises

A funccedilatildeo da terceira parte desta tese eacute confrontar o uso do ldquofalar francordquo e o uso

dos recursos retoacutericos nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo tendo um lugar comum

como fonte Os discursos constituintes fornecem base de sustentaccedilatildeo ao

desenvolvimento dos assuntos dando lugar ao uso de toacutepoi que apontam para

diferentes aspectos de abordagens do tema escolhido Secircneca estaacute investido em

sua posiccedilatildeo discursiva pelos efeitos do discurso filosoacutefico e Paulo pelo discurso

religioso Os discursos destes autores satildeo atravessados por outros discursos pela

influecircncia e efeitos da cultura heleniacutestica

Outro fenocircmeno da linguagem identificado no corpus de anaacutelise desta tese eacute a

ocorrecircncia de conceitos metafoacutericos identificados por meio de expressotildees

metafoacutericas Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 245) ldquomuitas das similaridades

que percebemos satildeo resultado de metaacuteforas convencionais que satildeo parte de nosso

sistema conceptualrdquo As metaacuteforas designadas convencionais satildeo constituiacutedas a

partir das correlaccedilotildees resultantes das experiecircncias que satildeo vivenciadas em

determinada cultura Natildeo eacute objetivo desta pesquisa analisar os conceitos

metafoacutericos presentes nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo mas identificar que esses

conceitos satildeo relacionados aos lugares comuns como forma de expressatildeo da

linguagem no desenvolvimento dos temas com o recursos dos toacutepoi

Nas abordagens de metaacutefora conceitual defendidas por Lakoff e Jonhson (2002 p

45-85) as metaacuteforas que ocorrem no cotidiano dos falantes satildeo identificadas em

trecircs modos distintos metaacuteforas estruturais metaacuteforas orientacionais e metaacuteforas

ontoloacutegicas Um dos conceitos que estes autores colocam como exemplo eacute TEMPO

Eacute DINHEIRO identificado pelo uso de expressotildees metafoacutericas como ganhar tempo

perder tempo investir tempo reservar tempo poupar tempo Esta eacute uma metaacutefora

estrutural porque um conceito mais abstrato (tempo) eacute pensado em termos de outro

mais concreto (dinheiro) As metaacuteforas orientacionais datildeo direccedilatildeo espacial ao

conceito como por exemplo ALEGRIA Eacute PARA CIMA TRISTEZA Eacute PARA BAIXO

Estes conceitos podem ter suas origens em experiecircncias fiacutesicas e culturais de uma

sociedade Estar alegre pode significar alto astral e estar triste baixo astral pois

positivo eacute para cima e negativo eacute para baixo As metaacuteforas ontoloacutegicas consistem

nas formas de conceber eventos atividades ideias emoccedilotildees como entidades e

29

substacircncias O uso de metaacuteforas ontoloacutegicas eacute bem variado e frequente entre os

falantes no contexto de diferentes culturais Na cultura brasileira por exemplo o

conceito INFLACcedilAtildeO Eacute UMA ENTIDADE permite identificaacute-la como um monstro ela

precisa ser combatida e assim por diante Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 88)

ldquoa personificaccedilatildeo eacute uma categoria geral que cobre uma enorme gama de metaacuteforas

e o que elas tecircm em comum eacute o fato de serem extensotildees de metaacuteforas ontoloacutegicas

permitindo dar sentido aos fenocircmenos do mundo em termos humanosrdquo

Em especial no desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo nas epiacutestolas de Secircneca

algumas metaacuteforas estruturais satildeo identificadas como por exemplo A VIDA Eacute UMA

VIAGEM Nas epiacutestolas de Paulo identificam-se ocorrecircncias do conceito metafoacuterico

ontoloacutegico O AMOR Eacute UMA PESSOA no transcorrer do desenvolvimento do tema ldquoo

amorrdquo pelo uso de expressotildees metafoacutericas o amor eacute sofredor o amor eacute benigno o

amor natildeo eacute invejoso o amor natildeo trata com leviandade o amor natildeo se ensoberbece

(1Cor 134) Essa eacute uma forma de corporificar um conceito abstrato de amor

fornecendo qualidades que possam identificaacute-lo Nos estudos da Linguiacutestica

cognitiva dirigidos por Lakoff e Johnson os conceitos metafoacutericos satildeo escritos em

letras maiuacutesculas o que tambeacutem seraacute mantido neste trabalho

Na finalizaccedilatildeo desta pesquisa satildeo apresentados alguns pontos demarcados para

comparaccedilatildeo entre a escrita de Paulo e de Secircneca com base nas anaacutelises

realizadas ao longo da elaboraccedilatildeo desta tese Para a identificaccedilatildeo de certas

aproximaccedilotildees ou afastamentos de posiccedilotildees discursivas entre estes dois autores satildeo

retomados os recursos argumentativos e temas por eles desenvolvidos por meio do

do gecircnero epistolar O papel do discurso constituinte no ato enunciativo eacute relevante

na determinaccedilatildeo dos posicionamentos que Secircneca e Paulo assumem em seus

discursos sendo fundamental tambeacutem para o direcionamento do desenvolvimento

dos toacutepoi e recursos retoacutericos responsaacuteveis pela dinacircmica do discurso

30

PARTE I

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE O QUADRO TEOacuteRICO

Entretanto uma obra natildeo pode viver nos seacuteculos futuros se natildeo reuacutene em si de certo modo os seacuteculos passados Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto eacute em sua atualidade) natildeo desse continuiacutedade ao passado e natildeo mantivesse com ele um viacutenculo substancial natildeo poderia viver no futuro Tudo que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele Mikhail Bakhtin (2006 p 363)

Nesta primeira parte o foco de atenccedilatildeo eacute dado agraves bases teoacutericas que servem de

sustentaccedilatildeo e orientaccedilatildeo para a anaacutelise do corpus delimitado Esta parte representa

o ponto de partida para uma viagem agrave Antiguidade Para realizaccedilatildeo do

planejamento dessa viagem metafoacuterica conta-se com algumas contribuiccedilotildees de

Foucault (1996 2004 2010a 2010b 2011) concebidas pela experiecircncia de seu

empreendimento de visita agrave Antiguidade Aleacutem disso o local e o tempo histoacuterico que

ele elegeu como um dos pontos de estadia em sua viagem coincidem com os

interesses da pesquisa aqui proposta Foucault (2010a p 44) estava empenhado

em identificar a relaccedilatildeo entre sujeito e verdade e o fenocircmeno da subjetivaccedilatildeo como

efeito dessa relaccedilatildeo Sua opccedilatildeo prestigiou os estoicos da terceira fase situados

temporalmente nos seacuteculos I e II dC As anaacutelises que Foucault fez de textos de

Secircneca Plutarco e Marco Aureacutelio sobre a escrita de si e o cuidado de si tambeacutem

podem ser aplicaacuteveis agraves epiacutestolas de Paulo escritas no mesmo ambiente cultural e

temporal de Secircneca

Foucault (2010a p 36) deteve-se em analisar questotildees sobre subjetividade e

verdade observando que para apreensatildeo da verdade era necessaacuterio o exerciacutecio de

um conjunto de praacuteticas determinadas que contribuiam para a transformaccedilatildeo do

modo de ser do sujeito qualificando-o para um tipo de comportamento almejado A

subjetividade como concebida por Foucault no contexto da Antiguidade eacute

considerada como um processo de subjetivaccedilatildeo que se instaura no indiviacuteduo de

acordo com os resultados de escolhas de certo modo de vida Essa concepccedilatildeo natildeo

estaacute atrelada agrave identificaccedilatildeo de um sujeito como categoria previamente dada ou

ontologicamente invariaacutevel mas a modos de agir a processos de subjetivaccedilatildeo

modificaacuteveis e plurais Essa eacute a razatildeo pela qual Foucault (2010a p 36) opta por

31

observar o cuidado de si como forma de subjetivaccedilatildeo visto que para os estoicos e

epicuristas o cuidado de si tornava-se uma obrigaccedilatildeo permanente do indiviacuteduo ao

longo de sua existecircncia

Paul Veyne (1995 p 13) alega que a partir dos anos oitenta em especial na

Franccedila houve um efeito de ressurgimento da figura de Secircneca graccedilas a um ciacuterculo

editorial ligado a Michel Foucault Inwood (2007 p 133) tambeacutem faz comentaacuterio

semelhante observando que o grande interesse de Foucault em observar os textos

das epiacutestolas de Secircneca fez renascer o sentido da importacircncia da escrita de si

atraveacutes da correspondecircncia

O tema sobre a escrita de si abordado por Foucault (2004) com base em

correspondecircncias com destaque para as epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio serviu como

suporte para Foucault pensar sobre o cuidado de si naquele momento histoacuterico

Pelas proacuteprias caracteriacutesticas inerentes ao fenocircmeno da correspondecircncia a

relevacircncia do gecircnero epistolar se sobressai como escolha para exposiccedilatildeo do

pensamento estoico Para se pensar sobre a circulaccedilatildeo do gecircnero epistolar na

vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era faz-se necessaacuterio observar como circulam

os preceitos de retoacuterica e verdade na Antiguidade situando o modo como se daacute a

construccedilatildeo da verdade na filosofia estoica e na religiatildeo judaico-cristatilde e o papel que

a retoacuterica ocupa na transmissatildeo do discurso verdadeiro14 endereccedilado ao sujeito

A discussatildeo suscitada por Foucault (2010a 2010b e 2011) sobre o tema parresiacutea

que na Antiguidade grega indicava tambeacutem o falar franco e sincero estando

associada agrave noccedilatildeo de discurso verdadeiro levanta algumas questotildees sobre o

relacionamento entre filosofia e retoacuterica na fase das produccedilotildees das epiacutestolas de

Secircneca e de Paulo A noccedilatildeo de parresiacutea contribui para a instituiccedilatildeo do toacutepos ldquofalar

francordquo que pode ser identificado na construccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo

14

Para Foucault (2010a p 288) na filosofia estoica o discurso verdadeiro resulta de liccedilotildees apreendidas de equipamento material do logos sendo discursos existentes em sua materialidade como proposiccedilotildees fundadas na razatildeo Esse discurso se investe de uma racionalidade que ao mesmo tempo diz o verdadeiro e prescreve o que eacute preciso fazer Satildeo persuasivos no sentido em que acarretam natildeo somente a convicccedilatildeo mas tambeacutem os proacuteprios atos Eacute necessaacuterio que esses discursos sejam natildeo apenas adquiridos mas dotados de uma espeacutecie de presenccedila permanente Foucault (2010b p 66) defende que a concepccedilatildeo de discurso verdadeiro estaacute vinculada ao posicionamento de quem enuncia o seu discurso Pode-se notar que este posicionamento eacute determinado pelo discurso constituinte sendo distinta a concepccedilatildeo de verdade para os discursos religioso filosoacutefico e cientiacutefico

32

Quando se pensa a respeito de lugar comum no campo da retoacuterica toma-se como

referecircncia a palavra grega toacutepos15 Com base na retoacuterica antiga Charaudeau e

Maingueneau registram (2008 p 474) que a palavra toacutepos no singular e toacutepoi no

plural foi emprestada do grego (τόπος τόποι) e corresponde ao latim locus

communis do qual resultou lugar comum que consistia numa ideia favoraacutevel agrave

aceitaccedilatildeo por determinado grupo a partir de elementos sobre especificado problema

e a viabilidade de fundamentaccedilatildeo para a persuasatildeo Um toacutepos eacute um esquema

discursivo caracteriacutestico de um tipo de argumento Discussotildees de questotildees sobre o

sentido de toacutepos e sua aplicaccedilatildeo na retoacuterica antiga tecircm ampliado a compreensatildeo de

seu uso na Antiguidade como observado nas pesquisas de Curtius (1996) e Thom

(2003) em estudos que acrescentam novas consideraccedilotildees aos sentidos mais

originais do termo

Aristoacuteteles (Ret II18 1392a) usa esse princiacutepio de lugar comum quando desenvolve

os pontos sobre os toacutepicos como fonte de argumentaccedilatildeo Em seus estudos no

contexto da nova retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p 95) adotam o termo

lugares em substituiccedilatildeo ao termo toacutepoi Partindo das reflexotildees de Aristoacuteteles sobre

toacutepica Perelman e Olbrechts-Tyteca ponderam que os lugares formam um arsenal

indispensaacutevel do qual de um modo ou de outro quem quiser persuadir outrem

deveraacute lanccedilar matildeo Nesta presente pesquisa o toacutepos ldquofalar francordquo seraacute considerado

no seu valor como forma de apoio que possibilita a sustentaccedilatildeo de argumentos que

favoreccedilam as condiccedilotildees para um determinado propoacutesito advindo do enunciador no

desnvolvimento do discurso

Com base em textos herdados da Antiguidade vislumbram-se possibilidades de se

perceber o modo como Secircneca e Paulo satildeo identificados no uso de argumentos

retoacutericos em seus escritos Vinculada a esta observaccedilatildeo por um lado pleiteia-se

tambeacutem a verificaccedilatildeo da ocorrecircncia de influecircncia da retoacuterica como forma de

aproximaccedilatildeo entre os dois autores Por outro lado torna-se necessaacuteria uma busca

de compreensatildeo de posiccedilotildees discursivas16 desses autores que na produccedilatildeo de

seus discursos estabelecem sentidos vinculados agraves posiccedilotildees do lugar que cada um

ocupa na enunciaccedilatildeo atraveacutes da escrita de suas epiacutestolas

15

Com base na retoacuterica antiga Charaudeau e Maingueneau (2008 p 474) apontam que um toacutepos eacute um elemento de uma toacutepica sendo uma toacutepica heuriacutestica uma arte de coletar informaccedilotildees e fazer emergirem argumentos 16

Para Charaudeau e Maingueneau (2008 p 392) a posiccedilatildeo discursiva diz respeito agrave instauraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma identidade enunciativa

33

Alguns elementos do quadro teoacuterico da anaacutelise do discurso foram selecionados para

aplicaccedilatildeo na anaacutelise do corpus A escolha recaiu sobre a anaacutelise do discurso de

base enunciativa que tem como pressupostos a manifestaccedilatildeo do discurso como

enunciaccedilatildeo Assim na enunciaccedilatildeo o enunciador (remetente) dirige-se ao co-

enunciador (destinataacuterio) como parceiro na comunicaccedilatildeo de acordo com seu

posicionamento discursivo que orienta de que lugar e momento ele profere seu

discurso Esta abordagem eacute produtiva para se pensar a comparaccedilatildeo entre as

epiacutestolas de Secircneca e Paulo e o posicionamento que cada um deles ocupa em seus

discursos Nesses termos a retoacuterica pode ser considerada como um modo de

organizar o discurso em seu acontecimento na cena enunciativa Destaca-se

tambeacutem a escolha dos argumentos no campo da retoacuterica e o modo do

funcionamento desses recursos segundo o direcionamento dos discursos

constituintes

No exame de textos pertencentes agraves epiacutestolas produzidas por Secircneca e Paulo tem-

se instaurada a evidecircncia de um desafio nesta pesquisa ou seja uma tentativa de

se apreender a dinacircmica desses discursos no bojo da influecircncia do interdiscurso ou

seja o atravessamento constitutivo que movimenta a circulaccedilatildeo de diferentes

discursos na base da enunciaccedilatildeo De acordo com algumas reflexotildees de

Maingueneau (2007 p 23) pode-se pensar o discurso para aleacutem da simplificaccedilatildeo

da ideia de um conjunto de textos Todo discurso eacute uma construccedilatildeo social e deve

ser analisado na perspectiva de seu contexto histoacuterico-social e de suas condiccedilotildees

de produccedilatildeo como eacute tratado na parte II desta pesquisa O proacuteprio Maingueneau

resgata o uso da terminologia praacutetica discursiva17 herdada de Foucault e assim

justifica

O sistema de restriccedilotildees semacircnticas para aleacutem do enunciado e da enunciaccedilatildeo permite tornar esses textos comensuraacuteveis com a ldquorede institucionalrdquo de um ldquogrupordquo aquele que a enunciaccedilatildeo discursiva ao mesmo tempo supotildee e torna possiacutevel (MAINGUENEAU 2007 p 23)

Nessa abordagem toma-se a noccedilatildeo de discurso na articulaccedilatildeo do funcionamento

discursivo em consonacircncia com sua inscriccedilatildeo histoacuterica Assim o ato enunciativo

pode ser circunscrito historicamente em sua apreensatildeo atraveacutes do interdiscurso

Maingueneau (2007 p17-21) sustenta que ldquoo interdiscurso tem precedecircncia sobre o 17

Foucault na obra Arqueologia do Saber (2007 p 133) faz uso do termo praacutetica discursiva definindo-o como um conjunto de regras anocircnimas histoacutericas sempre determinadas no tempo e no espaccedilo que definiram em uma dada eacutepoca e para uma determinada aacuterea social econocircmica geograacutefica ou linguiacutestica as condiccedilotildees de exerciacutecio da funccedilatildeo enunciativa

34

discursordquo A unidade de anaacutelise natildeo estaacute focada no discurso especificamente mas

no espaccedilo de troca entre vaacuterios discursos levando-se em conta o direcionamento

efetuado por meio do discurso constituinte que permite circular outros discursos

mantendo sua proacutepria autonomia e prevalecircncia determinantes no posicionamento

discursivo do enunciador

O gecircnero epistolar tem sua funccedilatildeo no ato enunciativo em estreita relaccedilatildeo com a

cenografia e o ethos Todo esse conjunto participante da cena geneacuterica da

enunciaccedilatildeo se estabelece a partir do discurso constituinte que eacute tomado como base

no acontecimento enunciativo Estas consideraccedilotildees abordadas nesta parte

introdutoacuteria estatildeo desenvolvidas ao longo da primeira parte da tese

35

2 CONTRIBUICcedilOtildeES DE FOUCAULT PARA OS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE

Os uacuteltimos anos das pesquisas de Foucault foram enriquecidos com a produccedilatildeo de

alguns postulados que favorecem a compreensatildeo de como o sujeito se constitui ou eacute

constituiacutedo ao longo da histoacuteria Com tal objetivo Foucault nas aulas ministradas no

Collegravege de France retomou a histoacuteria da Antiguidade observando que ao longo da

passagem dos seacuteculos houve uma transformaccedilatildeo na visatildeo filosoacutefica As aulas de

Foucault no Collegravege de France foram permanentes de 1971 a 1984 mas em

especial os cursos de 1980 a 1984 tinham como foco as questotildees sobre

subjetividade e verdade a partir da Antiguidade O material coletado das aulas

gravaccedilotildees e dossiecircs forneceram material para compilaccedilatildeo de algumas obras e as

trecircs uacuteltimas traduzidas para o portuguecircs satildeo A hermenecircutica do sujeito (2010a

3ed) O governo de si e dos outros (2010b) e A coragem da verdade (2011)

Na manifestaccedilatildeo do pensamento dos preacute-socraacuteticos podem-se observar mudanccedilas

que paulatinamente atravessaram tambeacutem a cultura heleniacutestica Foucault18 destaca

que no caminhar da histoacuteria percebe-se um distanciamento das origens do

pensamento socraacutetico fazendo emergir gradativamente na Idade Meacutedia a

concepccedilatildeo de um sujeito cartesiano A posiccedilatildeo de Descartes implementou outro

modo de acesso agrave verdade em detrimento do cuidado de si Foucault (2010a p 15)

examinou possiacuteveis consequecircncias desse pensamento apontando que na

abordagem de Descartes natildeo eacute o sujeito que deve transformar-se Portanto para

que o sujeito tenha acesso ao conhecimento da verdade basta que ele seja ele

mesmo sendo sua proacutepria estrutura de sujeito a garantia que o habilita ao alcance

da verdade

Na primeira fase de seus estudos Foucault nas deacutecadas de sessenta e setenta

apontou exatamente para a sujeiccedilatildeo de um indiviacuteduo que na eacutepoca da Modernidade

estava vulneraacutevel agraves dominaccedilotildees da vontade de verdade Tais dominaccedilotildees satildeo

impostas pela vontade de saber submetendo-se ao que foi constituiacutedo

institucionalmente como discurso verdadeiro19 No segundo momento de suas

18

Nas aulas introdutoacuterias de 1982 no Collegravege de France Foucault (2010a) fez um levantamento histoacuterico das concepccedilotildees filoacutesoficas desde Soacutecrates ateacute Descartes para situar suas colocaccedilotildees sobre subjetividade e verdade e o cuidado de si 19

Em suas seis conferecircncias realizadas na PUC do Rio de Janeiro em 1973 Foucault apresentou suas concepccedilotildees de verdade naquelas conferecircncias que mais tarde foram compiladas no livro intitulado A verdade e as formas juriacutedicas (FOUCAULT 2005)

36

pesquisas a partir de 1980 Foucault se situou nos estudos de teacutecnicas de

existecircncia promovidas pela Antiguidade grega e romana20 incluindo o periacuteodo

Heleniacutestico deixando aparecer outra figura do sujeito natildeo constituiacutedo como

demonstrado na fase da Modernidade mas constituindo-se atraveacutes de praacuteticas

regradas na fase da Antiguidade Em A Hermenecircutica do Sujeito Foucault (2010a)

declarou seu interesse em buscar na Antiguidade grega e romana suportes que

contribuiacutessem para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre sujeito e verdade Como meta

em sua investigaccedilatildeo ele partiu de uma anaacutelise da noccedilatildeo de cuidado de si como

orientaccedilatildeo na trajetoacuteria de sua pesquisa Ao refletir sobre o ensinamento milenar de

Soacutecrates ldquoConhece-te a ti mesmordquo Foucault argumentou sobre possiacuteveis

significados que esta maacutexima sustenta Os valores que dirigem a vida do ser

humano estariam em um patamar mais elevado do que o saber aparente que se

julga ter no questionamento de si mesmo O fundamental natildeo eacute saber mas ser de

acordo com um determinado modo de vida Nessa busca Foucault (2010a p 9)

verificou que Soacutecrates natildeo se limitava a pensar o homem do conhecimento de si

mas o homem do cuidado de si Desse modo o cuidado de si implica o

conhecimento de si que para Soacutecrates era um reconhecer-se que efetivamente

buscava uma recuperaccedilatildeo da memoacuteria da verdade

Na Antiguidade havia um relacionamento entre o ato do conhecimento e

espiritualidade no campo da filosofia A partir dessa concepccedilatildeo Foucault (2010a p

26) pondera que a espiritualidade pode ser vista como condiccedilatildeo de acesso agrave

verdade Com base na sua fonte de pesquisa Foucault (2010a p171) argumenta

que a filosofia antiga de um modo geral era detentora de um pressuposto

fundamental de que a conversatildeo21 era a garantia de acesso agrave verdade ou seja o

20

No curso oferecido no Collegravege de France em 1982 Foucault apresentou sua pesquisa voltada para a cultura greco-romana situando pensadores como Soacutecrates estendendo sua anaacutelise para o periacuteodo Heleniacutestico relacionando seu trabalho de investigaccedilatildeo com a construccedilatildeo das subjetividades Essas aulas estatildeo compiladas no livro Hermenecircutica do Sujeito (2010a) No ano seguinte em 1983 deu continuidade agraves suas pesquisas trabalhando questotildees voltadas para o tema sobre o governo de si e o governo do outro (2010b) Nesse periacuteodo ele elaborou o texto A escrita de si (2004) enfocando escritores romanos dos seacuteculos I e II de nossa era voltados para o estoicismo da terceira fase No ano de 1984 ao ministrar suas aulas deu continuidade ao tema governo de si aprofundando questotildees sobre parresiacutea fechando o curso com uma anaacutelise raacutepida sobre a parresiacutea entre os preacute-cristatildeos Sua intenccedilatildeo era dar continuidade no ano seguinte analisando a parresiacutea no cristianismo mas infelizmente sua morte natildeo lhe permitiu As aulas de 1984 estatildeo compiladas no livro intitulado A coragem da verdade ndash o governo de si e dos outros II (2011) 21

Termos como salvaccedilatildeo e conversatildeo pertenciam agraves diferentes correntes da filosofia antiga Segundo Foucault (2010a p176) salvaccedilatildeo era relacionada ao cuidado de si e cuidado dos outros como aparece em textos de Epitecto que apontam para o fato de que quando o sujeito busca seu proacuteprio bem faz bem tambeacutem aos outros O termo converter-se aparece em Secircneca com a expressatildeo

37

indiviacuteduo deveria passar por um processo de transformaccedilotildees para se tornar

capacitado para apreensatildeo da verdade Esse fato pode ser identificado no

pensamento de Secircneca

Verifico Luciacutelio que natildeo apenas me estou corrigindo antes me estou transfigurando Natildeo garanto nem sequer espero que nada jaacute reste em mim sem necessitar de mudanccedila Como natildeo hei de ter ainda muito que deva ser refreado ou diminuiacutedo ou elevado Mas jaacute eacute uma prova de que o espiacuterito alcanccedilou um degrau superior o fato de reconhecer os defeitos que ateacute entatildeo permaneciam ignorados (SEcircNECA Ep 61)

A partir dessa base filosoacutefica dos estoicos sobre a conversatildeo Secircneca se coloca

como algueacutem que se encontra nesse processo de transformaccedilatildeo que eacute constante

Ao mesmo tempo por um lado percebe-se uma auto avaliaccedilatildeo positiva dos

resultados alcanccedilados e por outro lado a consciecircncia da necessidade de outras

mudanccedilas como um processo permanente Essa epiacutestola de Secircneca coloca em

evidecircncia que o conhecimento de si favorece o proacuteprio cuidado de si pois o efeito da

conversatildeo a si eacute a subjetivaccedilatildeo da verdade pela qual algueacutem procura transformar

seu modo de ser Nesse percurso Foucault desenvolve sua anaacutelise a respeito das

relaccedilotildees entre conhecimento de si e cuidado de si e assim comenta

Temos pois se quisermos no niacutevel das praacuteticas de si trecircs grandes modelos que historicamente se sucederam uns aos outros O modelo que eu chamaria ldquoplatocircnicordquo gravitando em torno da reminiscecircncia O modelo ldquoheleniacutesticordquo que gira em torno da auto finalizaccedilatildeo da relaccedilatildeo a si E o modelo ldquocristatildeordquo que gira em torno da exegese de si e da renuacutencia a si [] A moral austera do modelo heleniacutestico foi retomada e trabalhada pelas teacutecnicas de si definidas pela exegese e pela renuacutencia a si proacutepria do modelo ldquocristatildeordquo (FOUCAULT 2010a p 231)

A praacutetica de si de acordo com os trecircs grandes modelos apontados por Foucault

pode ser identificada nos conteuacutedos das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Os conselhos

emitidos atraveacutes daquelas missivas se constituem como alertas e instruccedilotildees aos

leitores sobre diferentes facetas do cuidado de si como modo de fortalecer e dar

credibilidade aos discursos constituiacutedos como verdadeiros e seus efeitos na praacutetica

por meio da accedilatildeo mostrada pelo comportamento Os ensinamentos contidos nas

epiacutestolas de Paulo serviram tambeacutem de sustentaccedilatildeo na implantaccedilatildeo do cristianismo

caracterizando o modelo cristatildeo ao qual Foucault se refere

Rogo-vos pois irmatildeos pela compaixatildeo de Deus que apresenteis os vossos corpos em sacrifiacutecio vivo santo e agradaacutevel a Deus que eacute o vosso culto racional E natildeo sede conformados com este mundo mas sede transformados pela renovaccedilatildeo do vosso entendimento para que

transfigurar-se (Ep 61) Posteriormente os termos salvaccedilatildeo e conversatildeo foram assimilados pela linguagem relacionada aos fundamentos do cristianismo

38

experimenteis qual seja a boa agradaacutevel e perfeita vontade de Deus (Rom 121-2)

Paulo tambeacutem se refere agrave renovaccedilatildeo do entendimento como sustentaccedilatildeo baacutesica

para o processo de transformaccedilatildeo do sujeito Para Foucault a noccedilatildeo de cuidado de

si na Antiguidade revela a fundamentaccedilatildeo da moral em um momento bem anterior

ao cristianismo22 sendo um fio condutor de ligaccedilatildeo De acordo com a posiccedilatildeo

adotada por Foucault o cuidado de si estaacute interligado agrave concepccedilatildeo de sujeito e

verdade No contexto da cultura heleniacutestica Foucault procurou articular

subjetividade e verdade a partir de sua proacutepria visatildeo de um passado histoacuterico que

lhe permitisse resgatar um entendimento do processo de subjetivaccedilatildeo Os textos

demarcados para anaacutelise na realizaccedilatildeo de sua pesquisa estatildeo contidos em

produccedilotildees de escritura socraacutetica e heleniacutestica avanccedilando para os dois primeiros

seacuteculos de nossa era Nas ministraccedilotildees de suas aulas no Collegravege de France de

oitenta a oitenta e quatro Foucault procurou identificar como o indiviacuteduo se relaciona

consigo mesmo e com o outro como praacuteticas de apropriaccedilatildeo do discurso

verdadeiro

Foucault (2010a p 373) delineou sua forma de anaacutelise no que concerne sua

abordagem sobre discurso verdadeiro ldquoEm suma atraveacutes das regras do silecircncio e

dos princiacutepios da parresiacutea23 do franco-falar tentarei estudar um pouco as regras de

formulaccedilatildeo transmissatildeo e aquisiccedilatildeo do discurso verdadeirordquo Assim Foucault

(2010a p 282) aponta que entre os gregos e os romanos da Antiguidade a

aacuteskesis24 era considerada o ponto chave para o dizer-verdadeiro constituindo-se

como o modo de ser do sujeito A constataccedilatildeo de que a virtude podia ser adquirida

por meio da aacuteskesis jaacute se anunciava nos textos pitagoacutericos antigos Em Platatildeo25 eacute

22

Para Foucault (2010a p 231) o modelo heleniacutestico centrado em torno da auto finalizaccedilatildeo da relaccedilatildeo a si da conversatildeo a si foi o lugar de uma formaccedilatildeo moral que o cristianismo herdou repatriou e elaborou 23

Parresiacutea- expressatildeo originaacuteria do grego ndash παρρησία Segundo Foucault (2010b p 64) A parresiacutea eacute a livre coragem pela qual algueacutem se vincula a si mesmo no ato de dizer a verdade Ou ainda a parresiacutea eacute a eacutetica do dizer-a-verdade em seu ato arriscado e livre (A grafia parresiacutea eacute usada neste trabalho como transcriccedilatildeo do original ndash παρρησία) 24

Aacuteskesis (ascese) eacute um termo grego ἄσκησις que na Antiguidade significava praacutetica treinamento ou exerciacutecio Segundo Foucault (2010a p 377) haacute uma diferenccedila entre as praacuteticas de exerciacutecios da ascese no contexto histoacuterico do platonismo neoplatonismo e estoico-ciacutenica Se comparada agrave asceacutetica dos ciacutenicos e dos estoicos ao que era formulado no Alcebiacuteades na eacutepoca heleniacutestica e romana haacute uma desvinculaccedilatildeo do valor do conhecimento teoacuterico em detrimento de um conhecimento posto em praacutetica Essa eacute a razatildeo pela qual Foucault delimitou os seacuteculos I e II dC para analisar a praacutetica de si naquele contexto histoacuterico 25

Na obra A Repuacuteblica (VII 518e) Platatildeo faz a seguinte reflexatildeo ldquoQuanto agraves chamadas virtudes da alma apresentam certa afinidade com as do corpo pois natildeo sendo inatas podem ser posteriormente

39

citado o termo na obra A Repuacuteblica apontando para o valor da aacuteskesis como

exerciacutecio e haacutebito na aquisiccedilatildeo da virtude Nos textos de Platatildeo era fundamental a

concepccedilatildeo de filosofia como aacuteskesis Tambeacutem os ciacutenicos insistiam no valor da

praacutetica do exerciacutecio para aleacutem do valor do conhecimento teoacuterico Com o propoacutesito de

alcanccedilar sentidos tatildeo abstratos sobre a aquisiccedilatildeo do discurso verdadeiro Foucault

faz as seguintes observaccedilotildees

[] a aacuteskesis em razatildeo de seu objetivo final que eacute a constituiccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de si para consigo plena e independente tem essencialmente por funccedilatildeo por objetivo primeiro e imediato a constituiccedilatildeo de uma paraskeueacute (uma preparaccedilatildeo um equipamento) E o que eacute essa paraskeueacute Eacute creio a forma que os discursos verdadeiros devem tomar para constituir a matriz dos comportamentos razoaacuteveis (FOUCAULT 2010a p 291)

A ideia da ascese26 como exerciacutecio pode ser identificada atraveacutes do uso da

metaacutefora do atleta27 tanto em textos de Secircneca como nos de Paulo A identificaccedilatildeo

do uso dessa metaacutefora seraacute analisada na parte III como lugar comum nos discursos

destes dois autores O bom atleta engaja-se na praacutetica de movimentos especiacuteficos

por meio dos quais se fortalece face aos acontecimentos cotidianos tendo por

adversaacuterio as fatalidades da existecircncia Esses sentidos se aplicavam tambeacutem agrave

maneira ideal de aquisiccedilatildeo das virtudes Como Foucault ressalta nos periacuteodos que

marcaram a Antiguidade a ascese era fundamental como suporte na aquisiccedilatildeo do

discurso verdadeiro pois permitia ao sujeito se fortalecer interiormente para

enfrentar os acontecimentos A ascese tambeacutem direcionava a escuta e recepccedilatildeo do

discurso verdadeiro Por isso Foucault (2010a p 283) comenta que ldquoa ascese natildeo eacute

uma maneira de submeter o sujeito agrave lei eacute uma maneira de ligar o sujeito agrave

verdaderdquo Pode-se pensar que essa ideia evidencia uma forma de sustentaccedilatildeo para

compreensatildeo do posicionamento do apoacutestolo Paulo em sua epiacutestola aos Romanos

em sua tentativa de intermediar os conflitos entre os primeiros cristatildeos Segundo

Heyer (2009 p 202) havia um embate entre judeus e gentios visto que a imposiccedilatildeo

do cumprimento da lei mosaica por parte dos judeus convertidos provocava certa

desestabilidade na harmonia e convivecircncia entre os dois grupos Na epiacutestola aos

Romanos no capiacutetulo trecircs Paulo endurece seu discurso a respeito do

adquiridas pelo haacutebito e pelo exerciacutecio (aacuteskesis) Nesse texto aacuteskesis tem o sentido de exerciacutecio e treinamentordquo 26

Doravante as referecircncias ao termo grego ἄσκησις seratildeo mencionadas pelo uso da palavra ascese como traduzida para o portuguecircs 27

Secircneca Ep 80 3-4 Paulo I Cor 924-27

40

comportamento dos judeus em relaccedilatildeo agraves intransigecircncias polecircmicas do

cumprimento da lei mosaica

Foucault (2010a p374) deu um tom mais pessoal aos seus estudos anunciando

que optou pelo uso do termo asceacutetica28 ao inveacutes de ascese a qual tem certas

caracteriacutesticas em sua origem que natildeo se enquadram no todo do corpus de sua

anaacutelise O conceito de asceacutetica eacute posto por ele da seguinte forma ldquoasceacutetica eacute o

conjunto mais ou menos coordenado de exerciacutecios disponiacuteveis recomendados ateacute

mesmo obrigatoacuterios ou utilizaacuteveis pelos indiviacuteduos em um sistema moral filosoacutefico e

religiosordquo Para Foucault (2010a p 374) os exerciacutecios promovidos pela asceacutetica

constituiacuteam a praacutetica da cultura de si na vigecircncia do Principado Nesse ambiente

observado havia certa prescriccedilatildeo que podia ser analisada como uma questatildeo

teacutecnica daiacute o uso da expressatildeo teacutecnicas de si Esta eacute uma caracteriacutestica do

estoicismo da terceira fase situado nos seacuteculos I e II d C Nesse contexto histoacuterico

Foucault encontrou uma rica fonte para suas anaacutelises na asceacutetica estoica29

observando como os exerciacutecios de abstinecircncia contribuiacuteam para a constituiccedilatildeo de

um estilo de vida Foucault (2010a p 387) identifica um paralelo entre prova e

abstinecircncia como um conjunto de praacuteticas asceacuteticas Poreacutem a prova comporta

certas caracteriacutesticas que a diferencia da abstinecircncia O singular eacute que na prova

uma auto avaliaccedilatildeo eacute oportuna para algueacutem definir-se como capacitado ou natildeo em

determinadas situaccedilotildees Haacute certo conhecimento de si quando a experiecircncia de uma

prova eacute assumida o que natildeo se evidencia na abstinecircncia que eacute simplesmente uma

privaccedilatildeo voluntaacuteria Para contextualizar a noccedilatildeo de prova Foucault (2010a p 385)

toma como exemplo trechos da epiacutestola dezoito de Secircneca a Luciacutelio com a

finalidade de identificar a distinccedilatildeo entre prova e abstinecircncia Secircneca escreve a

Luciacutelio expondo suas ideias sobre um evento anual denominado Saturnais30 que

acontecia em Roma durante um periacuteodo do mecircs de dezembro

28

Foucault (2010a p 374) justifica que optou usar o termo asceacutetica para evitar a palavra ascetismo porque estaacute relacionada agrave uma atitude de renuacutencia ou mesmo de mortificaccedilatildeo anteriormente entre os ciacutenicos e posteriormente entre os cristatildeos Tambeacutem a palavra ascese remete a um comportamento individual envolvendo exerciacutecios para purificaccedilatildeo pessoal ou recompensa espiritual 29

Como observa Segurado e Campos (1991 XXXIX) ldquoo estoicismo que Secircneca defendia talvez ateacute com mais rigor do que seus antecessores admitia que qualquer coisa um objeto uma accedilatildeo uma ocupaccedilatildeo intelectual uma ideia soacute possuiriam valor se visassem a obtenccedilatildeo do bem moral que propusesse tornar o homem melhor do que erardquo 30

As Saturnais serviam de pano de fundo para algumas produccedilotildees do poeta Marcial Por um lado Alexandre Agnolon (2013 p 14) menciona como as Saturnais desempenharam um papel preponderante na produccedilatildeo de epigramas de Marcial Pode-se dizer que aquele festival fornecia

41

Estamos em dezembro a cidade estaacute coberta de suor A ostentaccedilatildeo desregrada invadiu toda a vida coletiva Fazem-se estrepitosamente enormes preparativos como se existisse alguma diferenccedila entre periacuteodo das Saturnais e os dias uacuteteis O fato eacute que natildeo haacute qualquer diferenccedila e por isso mesmo acho que tem toda a razatildeo quem afirma que se dezembro em tempos foi um mecircs agora eacute um ano inteiro (SEcircNECA Ep 181)

Nessa epiacutestola Secircneca compartilha com Luciacutelio suas reflexotildees expondo suas

opiniotildees sobre a gigantesca preparaccedilatildeo para o evento das Saturnais Desse modo

ele questiona se haveria necessidade de se quebrar toda uma rotina cotidiana por

causa daqueles festejos tatildeo prolongados e se expressa ldquodezembro em tempos foi

um mecircs agora eacute um ano inteirordquo (Ep 181) Outro questionamento ligado agravequelas

comemoraccedilotildees se volta para o efeito da troca da toga pelas roupas de festa Secircneca

identifica que em outros tempos a troca da toga tinha outros significados

Se estivesses aqui de boa vontade trocaria impressotildees contigo sobre qual te parece a atitude a adotar ou natildeo alterar em nada os nossos haacutebitos cotidianos ou entatildeo para natildeo nos julgarem contraacuterios aos costumes da maioria darmos algo de animaccedilatildeo ao jantar e abstermo-nos de usar a toga Na realidade enquanto antigamente ldquomudaacutevamos de roupardquo em situaccedilotildees de grande agitaccedilatildeo e de calamidade puacuteblicas agora fazemo-lo em atenccedilatildeo aos prazeres e aos dias de festa (SEcircNECA Ep 182)

Secircneca pondera sobre a melhor atitude a ser tomada diante dos fatos expostos Sua

sugestatildeo segue o caminho da moderaccedilatildeo Por um lado Secircneca constata que seria

um prova segura de firmeza de acircnimo natildeo se deixar levar pelos iacutempetos do

desregramento da multidatildeo Por outro lado seria significativo manter-se luacutecido no

meio de uma multidatildeo eacutebria O importante seria natildeo se colocar agrave margem mas

participar da festa com comportamentos moderados

Se bem te conheccedilo no caso de teres que atuar como aacuterbitro natildeo consentirias que focircssemos nem totalmente semelhantes nem totalmente diferentes da multidatildeo A menos que consideremos dever ser sobretudo exigentes com a nossa alma em dias festivos e sermos os uacutenicos a renunciar aos prazeres numa ocasiatildeo em que toda a gente se lhes entrega Seraacute de fato uma prova segura de firmeza de acircnimo natildeo acompanhar natildeo se deixar guiar por um ambiente aliciador de concessotildees agrave voluacutepia seraacute mais moderada a nossa atitude se nos natildeo situarmos agrave margem natildeo nos tornando notados nem nos deixando absorver na turbaAfinal de contas eacute possiacutevel participar numa festa sem cair no deboche (SEcircNECA Ep18 3-4)

Ao usar essa epiacutestola de Secircneca em sua anaacutelise sobre prova e abstinecircncia

Foucault aponta para o exerciacutecio da prova como uma praacutetica do conhecimento de si

metaforicamente uma variedade de elementos aplicaacuteveis agrave criatividade daquele poeta na construccedilatildeo de gecircneros de epigramas os mais diversificados o simpoacutesio o amor eroacutetico o riso o caraacuteter luacutedico Por outro lado Leni Ribeiro Leite (2011 p 92) observa que ldquoo livro de epigramas eacute por seu gecircnero proacuteprio para a eacutepoca das Saturnais Adequado aos momentos de oacutecio e lazer eacute breve para ser lido durante um banqueterdquo

42

Torna-se viaacutevel considerar que tambeacutem Paulo em sua epiacutestola aos Coriacutentios

manifestou sua opiniatildeo a respeito do comportamento que se deveria adotar frente a

determinadas situaccedilotildees como exerciacutecio da prova ldquoTodas as coisas me satildeo liacutecitas

mas nem todas as coisas convecircm Todas as coisas me satildeo liacutecitas mas eu natildeo me

deixarei dominar por nenhumardquo (1Cor 612) Pode-se dizer que nesse verso se

encontra uma siacutentese do modo de aconselhamento de Paulo em relaccedilatildeo aos

princiacutepios que ele procurava transmitir aos destinataacuterios de sua epiacutestola Esse

ensinamento de Paulo converge para algum ponto de semelhanccedila entre os

conselhos de Secircneca acerca da diferenccedila de significados entre abstinecircncia e prova

Segundo Foucault (2010a p 387) para os estoicos a prova tornava-se uma atitude

em face do real que se apresentava ao sujeito implicando a noccedilatildeo do exerciacutecio do

conhecimento de si Diante dessas conjecturas os exerciacutecios de abstinecircncia tinham

seu valor como um propoacutesito na formaccedilatildeo de um estilo de vida e natildeo exerciacutecios para

regrar a vida diante de interdiccedilotildees e proibiccedilotildees Em consonacircncia com essas ideias

estoicas Foucault observou que o cuidado de si natildeo tem por finalidade eximir o eu

do mundo que o rodeia mas capacitaacute-lo para o enfrentamento dos acontecimentos

como um sujeito verdadeiro em seus atos sendo essa a fundamentaccedilatildeo da ascese

estoica31

Esse estaacutegio da ascese na cultura romana que Foucault cognominou de asceacutetica

transforma o discurso verdadeiro ou seja a verdade em ecircthos32 no sentido da

manifestaccedilatildeo da maneira de ser e modo de existecircncia do indiviacuteduo Eacute nessa linha de

pensamento que no ano de 1983 Foucault (2010b) se debruccedilou sobre as noccedilotildees de

governo de si e governo do outro considerando o discurso verdadeiro33 como

princiacutepio permanente e ativo no desempenho do sujeito

31

No contexto histoacuterico dos primeiros anos do seacuteculo XX Max Weber (2007 p 166) analisou a importacircncia que o racionalismo asceacutetico teve para a organizaccedilatildeo das comunidades sociais Nesse estudo sobre a religiosidade asceacutetica ele fez um contraponto entre ascetismo protestante e ascetismo catoacutelico o primeiro mais voltado para o racionalismo e o segundo para o humanismo 32

Segundo Spinelli (2009 p 9) a distinccedilatildeo entre eacutethos e ecircthos se deu bem cedo no contexto da cultura grega O termo ecircthos grafado com eta (ἦθος)) era usado por Homero e o eacutethos com epsiacutelon (έθος) era usado por Eacutesquilo o fundador da trageacutedia grega O ecircthos na grafia de Homero remonta ao seacuteculo VII aC e comparece com uma significaccedilatildeo um tanto abstrata na medida em que designa os usos e os costumes enquanto relativos a modos (geneacutericos) de viver ou seja a uma sabedoria Eacutethos em Eacutesquilo designa mais ou menos a mesma coisa mas fundamentalmente a tradiccedilatildeo no sentido de o que eacute habitual corriqueiro usual As discussotildees sobre ethos seratildeo retomadas no final desta primeira parte 33

Para Foucault (2010a p 288) na filosofia estoica o discurso verdadeiro resulta de liccedilotildees apreendidas de equipamento material do logos sendo discursos existentes em sua materialidade como proposiccedilotildees fundadas na razatildeo Esse discurso se investe de uma racionalidade que ao mesmo tempo diz o verdadeiro e prescreve o que eacute preciso fazer Satildeo persuasivos no sentido em que

43

Naquele momento especiacutefico Foucault analisou a escrita de si como processo da

subjetivaccedilatildeo recorrendo em especial a trecircs pensadores Secircneca Plutarco e Marco

Aureacutelio34 inseridos no contexto histoacuterico do impeacuterio romano nos seacuteculos I e II dC A

escrita de si como praacutetica de apropriaccedilatildeo do discurso verdadeiro natildeo tem como

propoacutesito a apreensatildeo da verdade nem do mundo em volta e nem de si mesmo

Assim o saber adquirido tem a funccedilatildeo de auxiliar o sujeito a agir corretamente

diante das circunstacircncias Na obra de Plutarco Foucault encontrou uma qualificaccedilatildeo

de verdade como etopoieacutetica35 que tornava possiacutevel identificar a verdade atraveacutes da

manifestaccedilatildeo de atos realizados e posturas assumidas pelo sujeito

O modo como Foucault lanccedilou seu olhar direcionado agrave Antiguidade nos seacuteculos I e

II d C eacute instigante para se tentar localizar e fundamentar a escrita epistolar de

Secircneca e Paulo de acordo com as condiccedilotildees de produccedilatildeo favorecidas naquele

periacuteodo

21 A ESCRITA DE SI

Quanto agraves discussotildees sobre verdade Detienne (1988 p17-23) aponta o

deslocamento que a noccedilatildeo de verdade ndash aleacutetheia36 ndash sofreu mais ou menos entre os

seacuteculos XII e VI a C A memoacuteria do poeta permitia-lhe decifrar o invisiacutevel sendo um

acarretam natildeo somente a convicccedilatildeo mas tambeacutem os proacuteprios atos Eacute necessaacuterio que esses discursos sejam natildeo apenas adquiridos mas dotados de uma espeacutecie de presenccedila permanente 34

Marco Aureacutelio (121 dC - 180 dC) foi imperador romano e dedicou-se agrave filosofia especialmente agrave corrente filosoacutefica do estoicismo da terceira fase e escreveu a obra Meditaccedilotildees Na introduccedilatildeo da traduccedilatildeo inglesa dessa obra Staniforth (2002 p13) comenta que o estoicismo migrou do Oriente para o Ocidente e foi introduzido no mundo romano assumindo um aspecto diferente Os ensinamentos morais de Zenatildeo despertaram atenccedilatildeo e o seu valor praacutetico foi adequado aos ideais da cultura romana Um coacutedigo que era humano racional e moderado um coacutedigo que insistia num procedimento justo e virtuoso na autodisciplina numa forccedila moral inabalaacutevel adequava-se ao caraacutecter romano A influecircncia do estoicismo ampliou-se ao longo dos seacuteculos que assistiram ao decliacutenio da repuacuteblica e ao nascimento do Principado e por altura da ascensatildeo de Marco Aureacutelio ao trono tinha jaacute atingido sua culminacircncia e supremacia 35

Segundo Bruno ( 2007 p 43) o termo etopoieacutetica eacute uma junccedilatildeo das palavras gregas εθος (eacutethos) e ποίησις (poiesis) O ethos era definido como o caraacuteter de uma pessoa e a poiesis significava em determinados contextos um modo de escrever com a finalidade de exercer influencia sobre o outro A expressatildeo etopoieacutetica eacute identificada no modo de produccedilatildeo de Plutarco pois determinadas praacuteticas de si tinham a escrita como ponto de partida O ato de escrever era tomado como urna espeacutecie de poiacuteesis no sentido de transformaccedilatildeo do modo de ser dos indiviacuteduos Essa ethopoiesis foI exercida principalmente atraveacutes de duas formas de escrita os hupomnecircmata como recurso de anotaccedilotildees para auxiacutelio da memoacuteria e consulta e a correspondecircncia como forma de expressatildeo do EU que se abre diante do outro atraveacutes da escrita 36

Detienne (1988 p 23) informa que aleacutetheia (ἀλήθεια) encobria o sentido de verdade como uma revelaccedilatildeo miacutetico-religiosa O poeta era o mestre da verdade pois se ele estava inspirado sua palavra se fundava em um dom de videcircncia assim ocorrendo a palavra passava a ser identifiacada com a verdade Aleacutetheia - verdade no sentido de desvelamento de a- negaccedilatildeo e lethe esquecimento Para os antigos gregos aleacutetheia designava verdade e realidade simultaneamente

44

privilegiado por ter acesso a outra dimensatildeo revelando os misteacuterios apreendidos

com o uso da palavra cantada Sendo essa palavra cantada inspirada pelas musas

os poetas se tornavam sacralizados como videntes possuidores da palavra que as

musas por meio da memoacuteria o permitiam cantar Sendo o poeta dotado

divinamente pela capacidade de videcircncia esse dom o autorizava a transmitir a

verdade que lhe era revelada Nesse momento histoacuterico da Greacutecia arcaica a

aleacutetheia natildeo representava uma concordacircncia com determinada proposiccedilatildeo de certo

objeto ou mesmo de um grupo com outro Natildeo havia naquele momento uma

oposiccedilatildeo entre falso e verdadeiro O que importava era o dom de videcircncia do poeta

que o autorizava a dizer pois ele era o mestre da verdade

A partir do final do seacuteculo VI aC evidecircncias da separaccedilatildeo entre discurso verdadeiro

e discurso falso comeccedilaram a ser manifestadas Naquele contexto o discurso

verdadeiro natildeo mais estava vinculado agrave praacutetica do poder da palavra de quem era

possuidor inquestionaacutevel da verdade como responsaacutevel pela enunciaccedilatildeo Na Greacutecia

arcaica havia a forccedila da palavra maacutegico-religiosa mas com a implantaccedilatildeo da poacutelis

surge a forccedila da palavra dialoacutegica Como consequecircncia das evidentes mudanccedilas

histoacutericas a aleacutetheia passa a ser valorizada pelas seitas filosoacuteficas enquanto

sofiacutestica e retoacuterica privilegiam a apaacutete37

Considerando algumas contribuiccedilotildees de Detienne (1988 p17) sobre a construccedilatildeo

da verdade na cultura grega nota-se que a passagem da cultura da oralidade para

a cultura da escrita foi um processo lento que contribuiu para uma nova maneira de

pensar e elaborar o proacuteprio conhecimento A memoacuteria valorizada na poesia jaacute natildeo eacute

considerada como fonte exclusiva de busca da verdade Desse modo a verdade

natildeo eacute dada no seu produto final de acordo com a inspiraccedilatildeo do poeta mas passa a

ser construiacuteda e conquistada

Outra fonte que conteacutem abordagens sobre oralidade e escrita eacute encontrada em

resultados das pesquisas de Havelock (1986 p 23-24) que apontam Soacutecrates

como um ponto central entre a escrita e a oralidade na Antiguidade grega sendo um

37

Segundo Detienne (1988 p 61) no campo da poesia a doxa (opiniatildeo) se opotildee agrave aleacutetheia com afinidades com a apaacutete (engano) e com a ambiguidade e como termo teacutecnico-poliacutetico mais do que religioso Detienne (1988 p 58) cita o poeta Simocircnides de Ceacuteos (556 aC 468 aC) poeta grego que passa a praticar a poesia como um ofiacutecio produzindo seus poemas por encomenda e cobrando honoraacuterios por seus serviccedilos Para Simocircnides a memoacuteria eacute o instrumento que contribui para o aprendizado de um ofiacutecio e no lugar da aleacutetheia ele reivindica a doxa Simocircnides era um poeta que tambeacutem se dedicava agrave criaccedilatildeo de epigramas e eacute citado por Quintiliano (Inst Or XI 211-12)

45

mantenedor da tradiccedilatildeo da oralidade natildeo como um exerciacutecio de memorizaccedilatildeo

poeacutetica mas como um instrumento prosaico que pudesse romper com os ditames

praticados desde a Greacutecia arcaica Soacutecrates aprimorou e reelaborou certos aspectos

da manifestaccedilatildeo da linguagem oral tanto no uso do vocabulaacuterio quanto na

organizaccedilatildeo da estrutura da liacutengua Seus continuadores atraveacutes da dinacircmica da

escrita em forma de diaacutelogo de certo modo demonstraram o valor da oralidade e

contribuiacuteram para um avanccedilo no campo da loacutegica Segundo Havelock (1986 p 24-

27) a literatura grega havia sido poeacutetica porque a poesia cumpria uma funccedilatildeo

social pois visava preservar a tradiccedilatildeo que era ensinada e memorizada pela

oralidade A oposiccedilatildeo de Platatildeo agrave poesia poderia estar direcionada agrave essa funccedilatildeo

didaacutetica da poesia O surgimento do platonismo identificado com a apariccedilatildeo da

prosa escrita em forma de diaacutelogo representou uma fase de transiccedilatildeo entre

oralidade e escrita A permanecircncia da influecircncia da oralidade se manteve de forma

indireta atraveacutes do funcionamento do teatro em que os diaacutelogos eram valorizados A

forma de diaacutelogo tambeacutem contribuiu para a comunicaccedilatildeo entre ausentes por meio

da correspondecircncia unindo oralidade e escrita Foucault situou suas pesquisas

nesse ambiente da cultura letrada procurando observar o modo como a escrita

contribuiacutea para a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo e o processo de subjetivaccedilatildeo que o

envolvia naturalmente

Na aula introdutoacuteria do curso de 1982 Foucault expocircs seu objetivo em analisar o

cuidado de si observaacutevel a partir do seacuteculo V a C partindo de Soacutecrates em sua

reflexatildeo do jaacute mencionado aforismo grego ldquoconhece-te a ti mesmordquo Foucault (2004

p 151) fez um levantamento dos modos e efeitos da escrita de si entre os estoicos

da terceira fase apontando para essa escrita etopoieacuteitica que aparece nos escritos

na forma dos hupomnecircmata38 e correspondecircncia Nessa abordagem os

hupomnecircmata contribuem para a constituiccedilatildeo de si mesmo atraveacutes de uma accedilatildeo

intencional e racional que permite a apropriaccedilatildeo de um jaacute dito selecionado pelo

exerciacutecio da leitura constituindo dessa forma o processo de subjetivaccedilatildeo na

elaboraccedilatildeo dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros O ato de

38

No dicionaacuterio grego-portuguecircs (2008) o termo υπόμνημα (hupomnema) eacute uma palavra grega no singular e o plural eacute υπομνήματα (hupomnecircmata) Este termo no plural se refere aos registros em uma caderneta de notas usada para destaques de leituras realizadas comentaacuterios e observaccedilotildees Foucault (2004 p 147) informa que na Antiguidade as notas serviam como um guia de conduta para um puacuteblico que as usava como fonte de consulta Nas anotaccedilotildees eram registrados fragmentos de obras anotaccedilotildees reflexotildees testemunhos de coisas vistas e ouvidas Esse material catalogado servia como memoacuteria das mais variadas leituras em todos os sentidos

46

escrever e a praacutetica das anotaccedilotildees favoreciam a aquisiccedilatildeo e internalizaccedilatildeo dos

discursos verdadeiros

Para situar a importacircncia do valor da leitura e anotaccedilotildees como uma praacutetica de

exerciacutecios pode-se tambeacutem encontrar no contexto do I seacuteculo dC algumas

contribuiccedilotildees de Quintiliano na obra Institutio Oratoria

Deve-se igualmente deixar reservado um espaccedilo no qual se registrem todas as ideias que aos que escrevem costumam ocorrer fora de ordem ou seja satildeo ideias diferentes relativamente aos assuntos que no momento estejam sendo tratados Irrompem agraves vezes excelentes ideias que nem eacute conveniente as inserir naquele exato momento nem eacute seguro deixaacute-las agrave solta pois nesse espaccedilo de tempo elas se esvaem elas impedem de outras descobertas aqueles que as querem guardar de memoacuteria Assim o melhor a fazer eacute que estejam em depoacutesito (QUINTILIANO Inst Or X 3 33)

As contribuiccedilotildees da escrita dos hupomnecircmata e da correspondecircncia satildeo distintas

entre si mas complementares Quanto agrave correspondecircncia Foucault (2004 p156)

afirma que ldquoa reciprocidade que a correspondecircncia estabelece natildeo eacute simplesmente

a do conselho e da ajuda ela eacute a do olhar e do examerdquo Assim nessa mesma

passagem esse autor considera que ldquoa carta que como exerciacutecio trabalha para a

subjetivaccedilatildeo do discurso verdadeiro para sua assimilaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo como um

bem proacutepriordquo Quanto aos hupomnecircmata cuja funccedilatildeo eacute a constituiccedilatildeo de si a partir

dos discursos dos outros depois de internalizados contribuem para a aquisiccedilatildeo e

instauraccedilatildeo do discurso verdadeiro atingindo o caraacuteter da accedilatildeo

O discurso verdadeiro como tratado por Foucault (1996 p 14-20) estaacute diretamente

ligado agrave concepccedilatildeo de sujeito e verdade como percebidos por ele tanto em

diferentes contextos histoacutericos da Modernidade quanto da Antiguidade Na

Modernidade o sujeito eacute constituiacutedo pela forccedila da influecircncia do saber e do poder

geradores da vontade de verdade que determina a orientaccedilatildeo do discurso

verdadeiro Na Antiguidade em especial os seacuteculos I e II dC o sujeito se constituiacutea

pela busca do discurso verdadeiro atraveacutes de exerciacutecios e teacutecnicas como a leitura e

a escrita que contribuiacuteam para uma constituiccedilatildeo de ecircthos39 de verdade Entatildeo o

39

Aristoacuteteles na Retoacuterica (I 2 1356a) considera o ecircthos em uma perspectiva da argumentaccedilatildeo em que o papel primordial do orador eacute argumentar e convencer o ouvinte a aceitar suas posiccedilotildees e ideias Quintiliano na obra Institutio Oratoria (VI 211-13) observa que o ecircthos (ἦθος) pode ser apreendido como formas de manifestaccedilatildeo do comportamento humano O que estaacute relacionado ao caraacuteter do indiviacuteduo eacute revelado atraveacutes de seu proacuteprio discurso Fica subentendido nas consideraccedilotildees de Quintiliano que determinadas virtudes devem estar latentes no orador para que ele tenha controle sobre seu discurso e saiba lidar com sabedoria mediante reaccedilotildees imprevisiacuteveis por parte do ouvinte A concepccedilatildeo de ethos na anaacutelise de do discurso engloba os dois sentidos recorrentes na retoacuterica grega e romana sem uso de acento na palavra

47

fato preponderante que favorece as condiccedilotildees para o discurso ser designado como

verdadeiro eacute o fato de estar submetido ao princiacutepio da accedilatildeo que possibilita ao

indiviacuteduo a capacidade de enfrentamento de desafios ao longo da proacutepria

existecircncia

Ao refletir sobre a escrita de si Foucault (2004) resgatou da Antiguidade algumas

consideraccedilotildees que demonstram determinadas razotildees desse tipo de escrita

Inicialmente no texto de Foucault satildeo feitas algumas abordagens sobre a escrita

como forma de exerciacutecio que auxilia na apreensatildeo do sentido de viver sendo a

escrita o resultado de recolha das diferentes leituras tanto de textos escritos como

tambeacutem da proacutepria vida

O papel da escrita eacute constituir com tudo que a leitura constituiu um corpo E este corpo haacute que entendecirc-lo natildeo como um corpo de doutrinas mas sim - de acordo com a metaacutefora tantas vezes evocada da digestatildeo - como o proacuteprio daquele que ao transcrever as suas leituras se apossou delas e fez sua a respectiva verdade a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forccedila e em sangue Ela transforma-se no proacuteprio escritor num princiacutepio de accedilatildeo racional (FOUCAULT 2004 p 152)

Na continuidade de sua busca na Antiguidade Foucault encontrou em Secircneca uma

rica fonte de reflexotildees tanto para essas consideraccedilotildees sobre o papel da escrita

como tambeacutem para a concepccedilatildeo de identidade do escritor a partir das influecircncias

que a proacutepria leitura imprime na subjetividade sendo o sentido de leitura

considerado em sua ampla abrangecircncia

Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora deve tornar-se possiacutevel formar para si proacuteprio uma identidade atraveacutes da qual se lecirc uma genealogia espiritual inteira Num mesmo coro haacute vozes altas baixas e medianas timbres de homem e de mulher Nenhuma voz individual se pode aiacute distinguir soacute o conjunto se impotildee ao ouvido Assim quero eu que seja com a nossa alma que ela faccedila boa provisatildeo de conhecimentos de preceitos de exemplos tirados de mais do que uma eacutepoca mas

convergentes numa unidade (FOUCAULT 2004 p153)

Foucault tomou o proacuteprio texto de Secircneca como base do desenvolvimento de

argumentos sobre a manifestaccedilatildeo de si na escrita da missiva Assim ele avalia as

condiccedilotildees histoacutericas que formam o pano de fundo na ocorrecircncia da troca de

correspondecircncia entre Secircneca e Luciacutelio O momento em que Secircneca escreve

Epiacutestolas Morais eacute localizado no final de sua carreira profissional40 encontrando-se

40

Secircneca se abre para Luciacutelio dizendo ldquoretirei-me natildeo soacute dos homens como dos negoacutecios comeccedilando com os meus proacuteprios estou trabalhando para a posteridade Vou compondo alguma

48

retirado de suas funccedilotildees puacuteblicas Pelo contraacuterio Luciacutelio como estinataacuterio fictiacutecio ou

real das epiacutestolas estava em plena atividade exercendo funccedilotildees puacuteblicas

importantes Destaca-se que a figura de Secircneca nesse cenaacuterio natildeo se limita em

suas epiacutestolas agraves informaccedilotildees ou aconselhamentos como princiacutepio de conduta A

esse respeito o proacuteprio Secircneca comenta ldquoComo natildeo havemos de gostar de receber

uma correspondecircncia que nos traz a marca autecircntica a escrita pessoal de um amigo

ausenterdquo (Ep 401)

Em uma anaacutelise de texto autobiograacutefico Rago (2011 p 7) interliga essa produccedilatildeo

textual a uma escrita que problematiza a sujeiccedilatildeo e identidade daquele que escreve

A escrita de si eacute uma demonstraccedilatildeo da subjetividade que se torna aberta ao outro

em suas diferentes formas de apariccedilatildeo O gecircnero autobiograacutefico com prestiacutegios de

identificador da escrita de si em determinados aspectos apresenta certa

proximidade com o gecircnero epistolar como espaccedilo enunciativo que constitui a

presenccedila de um locutor em primeira pessoa Mesmo trazendo outras vozes para a

enunciaccedilatildeo a responsabilidade eacute a de um EU como remetente que se dirige a um

TU como destinataacuterio das epiacutestolas Em vaacuterias partes de sua correspondecircncia

Secircneca se coloca em primeira pessoa dirigindo-se ao seu destinataacuterio

Fico sempre muito alegre quando recebo cartas tuas Elas enchem-me de esperanccedila e mais do que promessas jaacute me trazem certezas a teu respeito Continua assim eacute o que te peccedilo com toda a insistecircncia (Ep 191) Natildeo penses que te escrevo para dizer como o inverno que aliaacutes foi curto e pouco rigoroso se portou bem conosco ou como a primavera estaacute desagradaacutevel ou como o frio chegou fora do tempo Isso satildeo frioleiras de quem fala por falar Eu soacute escrevo aquilo que sinto ter utilidade quer para ti quer para mim (SEcircNECA Ep 231)

Nessa escrita epistolar de si mesmo trata-se de fazer coincidir o olhar do outro e

aquele que se lanccedila sobre si mesmo ao comparar suas accedilotildees cotidianas com as

regras de uma teacutecnica de vida Fenocircmeno semelhante ao que ocorre na instauraccedilatildeo

da cena enunciativa da escrita das epiacutestolas de Secircneca presentifica-se tambeacutem na

constituiccedilatildeo da enunciaccedilatildeo do discurso na epiacutestola de Paulo agrave igreja de Corinto

atraveacutes de uma evocaccedilatildeo do uso da escrita em primeira pessoa ldquoAleacutem disto eu

Paulo vos rogo pela mansidatildeo e benignidade de Cristo eu que na verdade

quando presente entre voacutes sou humilde mas ausente ousado para convosco (2

Cor 101)

coisa que lhe possa vir a ser uacutetil passo ao papel alguns conselhos salutares como as receitas dos remeacutedios uacuteteis (Ep 82)

49

Pode-se tambeacutem ressaltar que a escrita epistolar apresenta dois distintos aspectos

a necessidade do adestramento pessoal na colocaccedilatildeo de si mesmo como remetente

e a necessidade do contato com outro como interlocutor e colaborador na

elaboraccedilatildeo da leitura da imagem daquele que escreve revelando o ecircthos de

verdade Em Secircneca e Paulo a correspondecircncia exerce uma funccedilatildeo instrutora do

ensino Nesses termos os hupomnecircmata contribuem para a constituiccedilatildeo de si

mesmo como objeto de accedilatildeo racional pela apropriaccedilatildeo de um jaacute dito fragmentaacuterio e

escolhido que pelo processo da subjetivaccedilatildeo eacute incorporado ao sujeito comunicante

Por isso o repertoacuterio demonstrado atraveacutes da escrita das epiacutestolas reflete a

presenccedila de elementos resultantes de leituras estudos e ainda uma cuidadosa

observaccedilatildeo do cotidiano da vida formando desse modo uma construccedilatildeo doutrinaacuteria

de acordo com a posiccedilatildeo discursiva de cada autor Para Secircneca leitura e escrita

deveriam andar de matildeos dadas por essa razatildeo ele dizia eacute preciso ler mas tambeacutem

escrever

[] devemos imitar as abelhas discriminar os elementos colhidos nas diversas leituras e depois aplicando-lhes toda a atenccedilatildeo todas as faculdades da nossa inteligecircncia transformar num produto de sabor individual todos os vaacuterios sucos coligidos de modo a que mesmo quando eacute visiacutevel a fonte donde cada elemento proveacutem ainda assim resulte um produto diferente daquele onde se inspirou (SEcircNECA Ep 845)

Secircneca usa a imagem da abelha na colheita dos elementos que ela suga para

resultar na produccedilatildeo do mel Essa metaacutefora eacute utilizada para reflexatildeo sobre a

importacircncia da leitura como colheita de elementos que contribuem para proveito e

enriquecimento intelectual do leitor Por um lado essa epiacutestola conteacutem partes

profundas para reflexatildeo do destinataacuterio que a recebe Por outro lado ela reflete por

parte do remetente o prazer e realizaccedilatildeo no campo da leitura Na escrita do gecircnero

epistolar Secircneca e Paulo natildeo se limitavam a dar notiacutecias ou conselhos aos seus

destinataacuterios mas continuavam a se exercitar por dois princiacutepios invocados eacute

necessaacuterio adestrar-se durante toda a vida e contar com a ajuda do outro na

elaboraccedilatildeo da alma sobre si mesma Tais consideraccedilotildees intensificam o princiacutepio de

que quem ensina se instrui pois a epiacutestola que eacute enviada para ajudar ao

destinataacuterio constitui-se tambeacutem em um treino para aquele que escreve Assim a

escrita que ajuda o destinataacuterio arma aquele que escreve e eventualmente terceiros

que a leiam

50

Amossy (2005 p 9) afirma que ldquotodo ato de tomar a palavra implica a construccedilatildeo

de uma imagem de si Para tanto natildeo eacute necessaacuterio que o locutor faccedila seu

autorretrato detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de sirdquo Eacute

nessa perspectiva que se torna possiacutevel situar a escrita de si e sua manifestaccedilatildeo no

discurso em especial no gecircnero epistolar que tem sua base no diaacutelogo A partir do

momento em que o remetente ocupa seu lugar na interaccedilatildeo da correspondecircncia

naturalmente a imagem de si eacute recebida pelo destinataacuterio

Essas colocaccedilotildees contribuem como auxiacutelio na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e

Paulo como remetentes que se colocam em primeira pessoa apresentando-se como

conselheiros que passam suas experiecircncias para os destinataacuterios reafirmando

tambeacutem suas proacuteprias convicccedilotildees e valores direcionados por fundamentos de

discursos constituintes

22 SUJEITO E AUTORIA

Na aula inaugural como professor no Collegravege de France (1971) Foucault tambeacutem

abordou o tema da autoria retomando alguns pontos da conferecircncia de 1969

intitulada O que eacute o autor Atualmente reivindica-se o retorno do autor fortalecido

principalmente com as obras autobiograacuteficas Poreacutem o conceito de autor pensado

na atualidade natildeo retoma a mesma identificaccedilatildeo do sujeito cartesiano Nos

paracircmetros desse novo olhar do sujeito se apresenta uma duplicidade que o proacuteprio

binocircmio sujeitoautor sugere Partindo das discussotildees sobre autoria Foucault

levantou questotildees fundamentais para revisatildeo das abordagens que enfocavam o

desaparecimento do autor Ele procurou mostrar que havia um equiacutevoco quanto agrave

ideia das funccedilotildees do autor Ao se considerar o poder e autoridade do autor sobre o

seu proacuteprio texto natildeo se levou em conta que as reais funccedilotildees do autor natildeo estavam

ligadas ao domiacutenio do texto Para delinear o caminho que seria percorrido como

resposta agrave sua proacutepria indagaccedilatildeo Foucault procurou distinguir e identificar na obra

determinadas funccedilotildees inerentes ao autor

Um nome de autor natildeo eacute simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento que pode ser substituiacutedo por um pronome etc) ele exerce certo papel em relaccedilatildeo ao discurso assegura uma funccedilatildeo classificatoacuteria tal nome permite reagrupar certo nuacutemero de textos delimitaacute-los deles excluir alguns opocirc-los a outros [] o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso [] A funccedilatildeo autor eacute portanto caracteriacutestica do modo de existecircncia de circulaccedilatildeo e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade (FOUCAULT 2001 p 273-274)

51

Essas contribuiccedilotildees de Foucault para as discussotildees de autoria satildeo de suma

importacircncia porque elas natildeo se fecham em uma classificaccedilatildeo restrita de funccedilotildees do

autor Tais posturas adotadas favorecem o estabelecimento de novas concepccedilotildees

que podem ser apreendidas com relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees tomadas pelo sujeito no

discurso em diferentes momentos histoacutericos Chartier em suas indagaccedilotildees sobre

questotildees da autoria faz os seguintes comentaacuterios em relaccedilatildeo agraves colocaccedilotildees de

Foucault

A funccedilatildeo autor implica portanto uma distacircncia radical entre o indiviacuteduo que escreveu o texto e o sujeito ao qual o discurso estaacute atribuiacutedo Eacute uma ficccedilatildeo semelhante agraves ficccedilotildees construiacutedas pelo direito que define e manipula sujeitos juriacutedicos que natildeo correspondem a indiviacuteduos concretos e singulares mas que funcionam como categorias do discurso legal Do mesmo modo o autor como funccedilatildeo do discurso estaacute fundamentalmente separado da realidade e experiecircncia fenomenoloacutegica do escritor como indiviacuteduo singular Por outro lado a funccedilatildeo autor que garante a unidade e a coerecircncia do discurso pode ser ocupada por diversos indiviacuteduos colaboradores ou competidores Ao contraacuterio a pluralidade das posiccedilotildees do autor no mesmo texto pode ser referida a um soacute nome proacuteprio (CHARTIER 1999 p 99)

Nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio eacute verificaacutevel um fenocircmeno de linguagem que

corrobora a afirmativa de Chartier de que a coerecircncia do discurso pode ser ocupada

por diversos indiviacuteduos Como determinado por Secircneca no final de algumas

epiacutestolas a Luciacutelio as maacuteximas aparecem ora como um brinde ora como tributo ora

como um precircmio e no final do Livro I ele assim se expressa

Diraacutes tu ldquoEsta frase eacute de Epicuro para quecirc recorrer agrave propriedade alheiardquo Tudo quanto eacute verdade pertence-me E vou continuar a citar-te Epicuro para que todos quantos juram pelas palavras e se interessam natildeo pela ideia mas pelo seu autor fiquem sabendo que as ideias corretas satildeo pertenccedilas de todos (SEcircNECA Ep 1211)

Este trecho da epiacutestola de Secircneca aponta tambeacutem para determinadas questotildees que

identificam discussotildees atuais sobre autor Secircneca tambeacutem questiona a dominaccedilatildeo

autoral defendendo que as ideias lanccediladas pelo autor satildeo de domiacutenio puacuteblico

Foucault procurou analisar esse aspecto da liberdade de acesso aos discursos

identificando que as funccedilotildees de autor na Antiguidade natildeo eram equivalentes agraves da

Modernidade Indiretamente ele demonstrou essa questatildeo atraveacutes dos proacuteprios

textos que ele selecionou para anaacutelise O que Foucault (2001) designou de funccedilotildees

do autor eacute significante no estabelecimento da formaccedilatildeo do cacircnon de textos

sagrados no iniacutecio da era cristatilde Young (2004 p 486) observa que a resposta de

Foucault agraves discussotildees sobre a morte do autor satildeo relevantes para os estudos da

52

literatura cristatilde A questatildeo da atribuiccedilatildeo de autoridade agraves figuras histoacutericas no iniacutecio

do cristianismo evidencia que o tipo coerente do ecircthos do autor era essencial Na

obra Institutio Oratoria (I pr 7) no prefaacutecio Quintiliano informa que apoacutes vinte anos

de dedicaccedilatildeo ao ensino resolveu atender as solicitaccedilotildees de seus amigos para

escrever um manual sobre a arte de falar a partir dos seus ensinamentos de

retoacuterica Nesse contexto Quintiliano menciona que jaacute circulavam dois livros como se

fosse de sua autoria mas na verdade era produccedilatildeo de seus alunos que tomaram as

aulas de retoacuterica como fonte recorrendo ao nome de Quintiliano com a

responsabilidade da autoria como forma de homenageaacute-lo Portanto nota-se que

naquele periacuteodo histoacuterico as questotildees de autoria eram mediadas por haacutebitos da

proacutepria cultura Esse fato contribui para o entendimento da proliferaccedilatildeo de obras

consideradas apoacutecrifas Secircneca sobre a citaccedilatildeo de outros pensadores assim se

expressa ldquofiquem sabendo que as ideias corretas satildeo pertenccedilas de todosrdquo (Ep

1211) Por um lado fica evidente que a funccedilatildeo de autor naquele momento da

histoacuteria natildeo era de exclusividade e posse de seu proacuteprio texto Por outro lado havia

um valor moral para o sentido de ldquoideias corretasrdquo

De acordo com as concepccedilotildees de funccedilotildees que o sujeito pode exercer como autor

Ruden (2013 p13) em suas pesquisas sobre a trajetoacuteria literaacuteria da Antiguidade

claacutessica ressalta que Paulo foi indubitavelmente considerado como um autor e

identificado como escritor greco-romano Sua posiccedilatildeo institucional seus escritos em

primeira pessoa colocados como resultado de seus pensamentos e experiecircncias o

tornam um personagem histoacuterico definido pela responsabilidade de seu proacuteprio

nome Se o sujeito eacute responsaacutevel pela execuccedilatildeo de funccedilotildees do autor logo seraacute

considerado autor quando estiver no exerciacutecio dessa funccedilatildeo

Na segunda epiacutestola aos Coriacutentios percebe-se uma colocaccedilatildeo de Paulo que o situa

exatamente nessa regiatildeo fronteiriccedila entre sujeito e autor como pensado atualmente

ldquoNatildeo quero dar impressatildeo de incutir-vos medo por meio de minhas cartas pois as

cartas dizem satildeo severas e energeacuteticas mas ele uma vez presente eacute homem

fraco e sua linguagem eacute despreziacutevelrdquo (2 Cor10 8-10) Na visatildeo desses comentaacuterios

de Paulo percebe-se uma dualidade que favorece uma contraposiccedilatildeo entre as

figuras de autor e de sujeito mas que na realidade satildeo elementos inseparaacuteveis pois

um natildeo existe sem o outro Nesse sentido Maingueneau (2012 p 136) argumenta

que as formas de subjetivaccedilatildeo natildeo satildeo justapostas pelo desempenho de um sujeito

53

biograacutefico e um sujeito enunciador mas o discurso eacute circunscrito em uma base que

se apoia em trecircs instacircncias a pessoa o escritor e o inscritor41 Vale ressaltar que

cada instacircncia eacute atravessada pelas outras natildeo havendo uma ordem e nem

valoraccedilatildeo de sua presenccedila no discurso pois as trecircs se sustentam reciprocamente

Natildeo haacute a predominacircncia da pessoa com sua identidade pessoal em seguida o

escritor que define as escolhas da trajetoacuteria de sua escritura e o enunciador

responsaacutevel pela direccedilatildeo da cena enunciativa Essas instacircncias formam um anel e

satildeo inseparaacuteveis

De acordo com a abordagem de Foucault as funccedilotildees do autor recaem sobre um

sujeito que responde por elas O autor deve ser concebido natildeo simplesmente como

o indiviacuteduo que pronunciou ou escreveu seu discurso mas como ldquoprinciacutepio de

agrupamento do discurso como unidade e origem de suas significaccedilotildees como foco

de sua coerecircnciardquo (FOUCAULT 1996 p 25) Segundo Maingueneau (2012 p 135)

ao mesmo tempo o sujeito do fazer literaacuterio incorpora as trecircs instacircncias

sujeitopessoa sujeitoescritor e sujeitoinscritor Desse modo essas trecircs instacircncias

inseparaacuteveis e responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do discurso tambeacutem respondem pelas

funccedilotildees de autor que delas dependem

Young (2004 p 486) relaciona as funccedilotildees do autor com os trecircs elementos que

compotildeem a prova do discurso na retoacuterica antiga ecircthos paacutethos e loacutegos Assim eacute

essencial o ecircthos de autor o reconhecimento dos leitores e a importacircncia da forccedila

persusiva do discurso Nota-se que a retoacuterica no contexto imperial romano tinha

como papel destacar a importacircncia do inventio na determinaccedilatildeo do objeto a ser

tratado no discurso alcanccedilando um estilo que permitisse abordar os toacutepicos a serem

desenvolvidos A formalidade da retoacuterica como teacutecnica de organizaccedilatildeo do discurso

surge na Greacutecia e encontra ambiente favoraacutevel para sua estabilizaccedilatildeo entre os

latinos tornando-se um meio dinamizador no sistema educacional romano

41

Segundo Maingueneau (2012 p 136) o termo pessoa refere-se ao indiviacuteduo dotado de um estado civil de uma vida privada O escritor designa o ator que define uma trajetoacuteria na instituiccedilatildeo que ele representa O inscritor eacute o responsaacutevel pelas formas de subjetivaccedilatildeo enunciativa da cena de fala contida no texto como tambeacutem a cena que o proacuteprio gecircnero adotado impotildee

54

3 A RETOacuteRICA NA ANTIGUIDADE

A retoacuterica natildeo eacute simplesmente recurso de ornamento mas condiccedilatildeo da estrutura do discurso e o direcionamento para o meacutetodo da meditaccedilatildeo Albrech (2008 p 124)

De acordo com Detienne (1988 p 60) a lenta passagem da fase da oralidade para

implementaccedilatildeo da escrita promoveu significantes mudanccedilas nas caracteriacutesticas

originais do pensamento na Greacutecia arcaica A poesia amplia sua atuaccedilatildeo ajustando

sua finalidade reveladora no ambiente do sagrado ao setor profano pois a atividade

poeacutetica42 passa a atender uma demanda de caraacuteter mais social e poliacutetica Nessa

fase histoacuterica identifica-se o surgimento progressivo da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a

verdade

Conforme apontamentos de Pernot (2005 p 7) Homero natildeo tratou das leis da

retoacuterica mas estabeleceu uma relaccedilatildeo entre as ideias de seu tempo com a

importacircncia da palavra pronunciada Este fato tem suas contribuiccedilotildees na retoacuterica do

mundo antigo Alexandre Jr (2005 p 16) pondera que ldquose a literatura eacute nosso

melhor veiacuteculo de acesso agrave cultura e civilizaccedilatildeo gregas o fato eacute que essa literatura

foi em larga medida moldada pela retoacutericardquo

Segundo Alexandre Jr (2005 p18) Peacutericles foi um personagem na poliacutetica grega

que atuou em Atenas em um momento que representa a passagem da Greacutecia de

dominacircncia da poeacutetica (Homero Hesiacuteodo Safo Esquilo e outros) para a Greacutecia de

reflexatildeo da prosa e eloquecircncia poliacutetica da filosofia e da ciecircncia Com o advento da

prosa no campo da filosofia e histoacuteria surge uma nova literatura fornecendo

condiccedilotildees para reconhecimento do discurso retoacuterico O desenvolvimento da

democracia em Atenas contribuiu para a oportunidade de o cidadatildeo expressar-se

por meio do discurso Pernot (2005 p 9) observa que na metade do seacuteculo V aC

Heroacutedoto incluiu em sua obra debates no campo da poliacutetica em relaccedilatildeo agraves accedilotildees

dos persas Nesse momento histoacuterico os sofistas43 tambeacutem desenvolvem uma

42

Detienne (1988 p 58) cita o poeta Simocircnides de Ceacuteos (556 aC 468 aC) poeta grego que passa a praticar a poesia como um ofiacutecio produzindo seus poemas por encomenda e cobrando honoraacuterios por seus serviccedilos Para Simocircnides a memoacuteria eacute o instrumento que contribui para o aprendizado de um ofiacutecio e no lugar da aleacutetheia ele reivindica a doxa Simocircnides era um poeta que tambeacutem se dedicava agrave criccedilatildeo de epigramas e eacute citado por Quintiliano (Inst Or XI 211-12) 43

Segundo Pernot (2005 p 12) certo nuacutemero de pensadores da segunda metade do seacuteculo V aC era tradicionalmente chamado de sofistas Eram originaacuterios de diferentes partes do mundo grego

55

justaposiccedilatildeo de discursos retoacutericos contraditoacuterios no tratamento de temas poliacuteticos

Segundo Pernot (2005 p 10) os sofistas natildeo formavam nenhuma escola ou

movimento e suas produccedilotildees se perderam restando poucos fragmentos Os sofistas

manifestavam um modo de pensar baseado no kairoacutes44 ou seja o tempo oportuno

para a verdade e a justiccedila como construccedilatildeo do discurso Nesse mesmo contexto

Protaacutegoras expotildee uma seacuterie de argumentos aplicados ao mesmo toacutepico construindo

vaacuterios contraacuterios por meio da palavra A partir da noccedilatildeo do valor e o poder da

palavra natildeo era considerada a possibilidade da preacute-existecircncia da justiccedila e da

verdade mas pronunciadas e efetivadas apoacutes o debate A partir de posicionamentos

dos sofistas determinados aspectos da linguagem e do discurso adquiriram novos

sentidos no campo da gramaacutetica como por exemplo distinccedilatildeo de tipos de nomes

sinocircnimos entre outros Os sofistas natildeo limitaram suas atuaccedilotildees nas consideraccedilotildees

teoacutericas mas ampliaram o foco da educaccedilatildeo para o campo da retoacuterica com o

objetivo de tornar o cidadatildeo capacitado em termos de uma fala inteligente

31 CONTRIBUICcedilOtildeES DE GREGOS E ROMANOS PARA A RETOacuteRICA

Vislumbram-se a partir do seacuteculo V aC posicionamentos que permitiram florescer

as primeiras colocaccedilotildees documentadas sobre retoacuterica Alexandre Jr (2005 p 18)

menciona que a partir desse periacuteodo decisivo a democracia se impocircs agrave tirania e

entatildeo Coacuterax e Tiacutesias45 publicaram o primeiro manual de desenvolvimento de uma

retoacuterica com a ideia baacutesica da triparticcedilatildeo proecircmio argumentaccedilatildeo e epiacutelogo

De acordo com as colocaccedilotildees de Shiappa e Hamm (2007 p 5) a maioria dos

pesquisadores sobre retoacuterica concorda que das obras que sobreviveram Goacutergias de

Platatildeo eacute a mais antiga que conteacutem menccedilatildeo ao uso do termo retoacuterica46 Nessa obra

identifica-se na enunciaccedilatildeo dialeacutetica de Platatildeo uma postura criacutetica em combate ao

pensamento sofista com relaccedilatildeo agrave retoacuterica e ao orador Kennedy (1994 p 37)

atuando como educadores com realizaccedilatildeo de palestras e publicaccedilotildees Da lista dos sofistas podem ser citados Protaacutegoras Goacutergias Hiacutepias Proacutedico Criacutetias e outros 44

Conforme informaccedilatildeo de Kennedy (1994 p 35) o conceito de kairoacutes eacute atribuiacutedo a Goacutergias significando o momento oportuno e tempo ideal para dizer ou fazer a coisa certa 45

Alexandre Jr (2005 P 15) menciona que Coacuterax e Tiacutesias eram originaacuterios de Siracusa sendo Coacuterax o mestre de Tiacutesias Eles produziram uma retoacuterica puramente sintagmaacutetica uma retoacuterica que se ocupa das partes do discurso e tem sobretudo a ver com os dispositios organizaccedilatildeo dos argumentos 46

Shiappa e Hamm (2007 p 5) informam que a palavra retoacuterica eacute formada pela junccedilatildeo de dois termos gregos rheacutetor- executor do discurso e ikecirc - arte ou habilidade

56

expotildee que na construccedilatildeo do diaacutelogo de Platatildeo em Goacutergias47 Soacutecrates como

personagem argumenta que a retoacuterica eacute uma teacutecnica ou arte com base no

conhecimento De cordo com este postulado duas categorias de arte podem ser

apontadas a que atinge a alma e a que afeta o corpo Legislaccedilatildeo e justiccedila

estabelecem a boa condiccedilatildeo da alma a ginaacutestica e a medicina garantem o bem

estar do corpo Segundo Kennedy (1994 p 38) a importacircncia da construccedilatildeo deste

diaacutelogo de Platatildeo estaacute em colocar questotildees da moralidade da retoacuterica na sociedade

e a necessidade do conhecimento como base na comunicaccedilatildeo

Posteriormente Platatildeo escreveu o diaacutelogo Fedro48 estabelecendo alguns criteacuterios

acerca de formulaccedilotildees sobre a retoacuterica Kennedy (1994 p 42) apresenta um

resumo desta obra salientando que alguns pontos devem ser considerados O

emissor do discurso deve ter bom conhecimento do objeto em discussatildeo uma boa

compreensatildeo da prova loacutegica e conhecimento da psicologia humana que torna a

argumentaccedilatildeo adequada agrave audiecircncia A partir desses postulados o objetivo da

persuasatildeo deve ser voltado para a accedilatildeo virtuosa justiccedila e a crenccedila na verdade

Ainda remontando aos gregos no acircmbito da retoacuterica Habinek (2005 p 80-83) faz

um paralelo entre Isoacutecrates e outros pensadores gregos em especial Platatildeo e

Aristoacuteteles49 Habinek acentua o papel que Isoacutecrates exerceu no campo da retoacuterica

procurando destacaacute-lo no contexto histoacuterico dos gregos da Antiguidade Segundo

Habinek (2005 p 81) para Isoacutecrates a qualidade do discurso estaacute interligada ao

47

Alexandre Jr (2005 p 21) comenta que Goacutergias imprimiu na retoacuterica uma nova perspectiva de natureza paradigmaacutetica valorizando o estilo e a composiccedilatildeo que tecircm a ver com o elocutio Sua contribuiccedilatildeo foi ter submetido a prosa ao coacutedigo retoacuterico propagando-a como discurso erudito e objeto esteacutetico Fez introduzir a prosa agrave retoacuterica e esta agrave estiliacutestica Kennedy (1994 p 35) relata que em Goacutergias de Platatildeo Soacutecrates visita a casa em que Goacutergias estava em Atenas O diaacutelogo eacute dividido em trecircs partes na primeira Soacutecrates interroga Goacutergias sobre retoacuterica na segunda Goacutergias eacute recolocado pelo seu seguidor Polo na terceira Soacutecrates debate com Caacutelicles sobre justiccedila As questotildees filosoacuteficas do debate se apresentam resumidas sendo mais desenvolvidas em outros diaacutelogos posteriores como A Repuacuteblica e Fedro 48

Na concepccedilatildeo de Alexandre Jr (2005 p 28) a retoacuterica no diaacutelogo de Goacutergias eacute mais sofiacutestica e no diaacutelogo Fedro eacute mais filosoacutefica Aristoacuteteles desenvolve os postulados da retoacuterica com algumas influecircncias de Platatildeo mas eacute mais pragmaacutetico em relaccedilatildeo agrave heranccedila da retoacuterica em Fedro Para Aristoacuteteles a funccedilatildeo da retoacuterica natildeo eacute persuadir como no Goacutergias e no Fedro mas sim teorizar sobre o modo de persuadir (Ret 11355b) 49

Segundo Habinek (2005 p 81) ldquounlike Aristotle who accepts that rhetoric is the art of finding the most effective means of persuasion and thus seeks to systematize its study and presentation Isocrates makes of rhetoric a collaborative process of deliberation one that claims to produce both sound political judgment and trustworthy political agentsrdquo (Diferente de Aristoacuteteles que aceita a retoacuterica como arte de encontrar os meios mais eficazes de persuasatildeo e assim procura sistematizar o seu estudo e apresentaccedilatildeo Isoacutecrates faz da retoacuterica um processo colaborativo de deliberaccedilatildeo que pretende produzir tanto juiacutezo poliacutetico soacutelido como agentes poliacuteticos confiaacuteveis)

57

estatuto moral do orador pois aqueles oradores que satildeo dignos de confianccedila satildeo os

que melhor cuidam de seu discurso em todos os aspectos A heranccedila desse

pensamento de Isoacutecrates serve como influecircncia para os romanos fenocircmeno esse

identificaacutevel nas formulaccedilotildees de Quintiliano no que diz respeito agrave retoacuterica na obra

Institutio Oratoria (VI 2 17-18) pois o ecircthos denota o caraacuteter moral do orador

No que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre retoacuterica e verdade Aristoacuteteles tomou outra

direccedilatildeo em suas reflexotildees Em sua pesquisa sobre a retoacuterica antiga Mosca (2004)

comenta que Aristoacuteteles procurou demonstrar uma ligaccedilatildeo da retoacuterica com a

persuasatildeo desvinculando-a da noccedilatildeo de verdade Aristoacuteteles contribuiu para a

ampliaccedilatildeo das discussotildees referentes agrave dialeacutetica entre verdade e aparecircncia da

verdade indicando que a representaccedilatildeo da verdade ldquoemerge do senso comum e se

corporifica nos discursos do homemrdquo (MOSCA 2004 p 21)

Aristoacuteteles formulou alguns pontos de sua teoria atraveacutes da obra Retoacuterica definindo

o tratamento dessa retoacuterica como o estudo dos meios de persuasatildeo Provavelmente

com base nas discussotildees e anotaccedilotildees das aulas na academia de Platatildeo construiu

pressupostos da retoacuterica que posteriormente serviram de fontes para posiccedilotildees

concordantes e discordantes tambeacutem No Livro I Aristoacuteteles estabelece uma

diferenciaccedilatildeo entre as funccedilotildees da dialeacutetica e da retoacuterica e o conceito desta assume

uma posiccedilatildeo abrangente ldquoEntendemos por retoacuterica a capacidade de descobrir o que

eacute adequado a cada caso com o fim de persuadirrdquo (Ret I 2 1356a )50 No decorrer do

Livro II Aristoacuteteles desenvolve todo um percurso com demonstraccedilotildees de estrateacutegias

para um possiacutevel ecircxito da argumentaccedilatildeo no discurso Como destaque para o

alcance de uma determinada finalidade no discurso ele aponta o uso das maacuteximas

como uma investidura para alcance do propoacutesito moral de um discurso ldquoTecircm caraacuteter

eacutetico os discursos que manifestam claramente a intenccedilatildeo do oradorrdquo A esta

premissa Aristoacuteteles acrescenta que ldquotodas as maacuteximas cumprem essa funccedilatildeo

porque exprimem de forma geral as intenccedilotildees daquele que as enunciardquo (Ret II

1395b) Nota-se que Secircneca era concordante com essa postura de Aristoacuteteles visto

que no final de suas epiacutestolas ele fazia questatildeo de registrar uma maacutexima que

pudesse concorrer para o fortalecimento de seus conselhos como nas epiacutestolas

iniciais de sua coleccedilatildeo ele escolhe a citaccedilatildeo de maacuteximas de Epicuro ldquoEacute um bem

50

As traduccedilotildees da obra Retoacuterica de Aristoacuteteles usadas nesta pesquisa satildeo de Manuel Alexandre

Junior (2005)

58

desejaacutevel conservar a alegria na pobrezardquo (Ep 26) Da mesma forma Paulo

tambeacutem usou desse recurso como por exemplo na segunda epiacutestola aos Coriacutentios

ldquoa letra mata mas o espiacuterito vivicardquo (2Cor 3 6)51 O uso de maacuteximas nas epiacutestolas

de Secircneca e de Paulo eacute abordado e analisado na terceira parte deste trabalho

No livro III Aristoacuteteles volta-se para o estilo da linguagem e a forma de organizaccedilatildeo

do discurso Algumas questotildees satildeo levantadas sobre o valor do uso das metaacuteforas

na composiccedilatildeo estiliacutestica do discurso Alexandre Jr (2005 p 48) observa que

ldquoAristoacuteteles faz correlaccedilatildeo entre o raciociacutenio metafoacuterico e o silogiacutestico pois as regras

fundamentais para o uso retoacuterico das metaacuteforas satildeo as mesmas para o uso

silogiacutesticordquo Em alguns aspectos as metaacuteforas implicam enigmas e um bom enigma

pode fornecer uma boa metaacutefora (Ret III 21405b) Pode-se pensar que em muitas

situaccedilotildees as analogias das metaacuteforas devem ser inferidas pois mesmo natildeo estando

claramente referidas uma observaccedilatildeo mais atenta pode contribuir para captar os

sentidos Quanto ao efeito do uso da metaacutefora Aristoacuteteles faz o seguinte

comentaacuterio

A maioria das expressotildees ldquoelegantesrdquo deriva da metaacutefora e radica no engano preacutevio do ouvinte Pois torna-se mais evidente que se aprende algo se os elementos resultam ao contraacuterio do que se esperava e o espiacuterito parece dizer ldquocomo eacute verdade e eu estava enganadordquo (Ret III 1412a)

A partir das contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles para os estudos da retoacuterica a forccedila da

metaacutefora no discurso eacute um ponto de destaque para esta pesquisa No percurso da

anaacutelise que se estabelece neste trabalho a funccedilatildeo retoacuterica da metaacutefora eacute pontuada

como uma forccedila argumentativa e persuasiva nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo Para

realizaccedilatildeo dos propoacutesitos definidos parte-se do princiacutepio de que o lugar comum

representa uma fonte de conhecimentos compartilhados em que se pode extrair

argumentos aplicaacuteveis agrave execuccedilatildeo de um determinado discurso Hansen (2012 p

161) observa que na retoacuterica antiga os termos toacutepos em grego e locus em latim

significam o encontro de algo jaacute estabelecido entre falantes possibilitando a

descoberta de novos aspectos e sentidos a serem introduzidos no discurso O uso

de determinadas metaacuteforas nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo funciona como marca

que pode ser estabelecida como um lugar comum que contribui para sustentar

51

No conto O Livro Borges (2011 p 13) faz referecircncia a essa passagem biacuteblica como uma intertextualidade com as ideias do pensamento pitagoacuterico ldquoConsideremos o primeiro caso Pitaacutegoras Sabemos que Pitaacutegoras optou por natildeo escrever Natildeo escreveu porque natildeo quis se prender a uma palavra escrita Sentiu sem duacutevida aquela histoacuteria de que a letra mata mas o espiacuterito vivifica que depois estaria na Biacutebliardquo

59

certos argumentos no desenvolvimento de toacutepicos que constituem o discurso Os

postulados teoacutericos desenvolvidos por Aristoacuteteles tiveram continuidade na histoacuteria da

retoacuterica antiga sendo redimensionados e adaptados nos estudos que se seguiram

Alexandre Jr (2005 p 54-54) considera que no periacuteodo Heleniacutestico a expansatildeo do

desenvolvimento das escolas filosoacuteficas manteve certas ligaccedilotildees com o aristotelismo

e alexandrismo na continuidade da histoacuteria da retoacuterica possibilitando o fundamento

das raiacutezes da retoacuterica filosoacutefica em Roma52 Alexandre Jr (2005 p 59) ressalta as

produccedilotildees de Teofrasto (sucessor de Aristoacuteteles) sobre as virtudes do estilo e os

estudos de Demeacutetrio de Faleros53 sobre o periacuteodo oratoacuterio o estilo e a composiccedilatildeo

Na sequecircncia dos destaques Heacutermagoras de Temnos54 eacute citado por sua

contribuiccedilatildeo para a vinculaccedilatildeo da tese agrave retoacuterica e o desenvolvimento da teoria dos

estados de causa aproveitando e diversificando o sistema retoacuterico aristoteacutelico

Deve-se tambeacutem a Hermaacutegoras a teoria da inventio e sua influecircncia na Rhetorica

ad Herennium e nos escritos de Ciacutecero e Quintiliano55

Segundo as observaccedilotildees de Kennedy (1994 p 121) natildeo haacute nenhum conhecimento

de alguma fonte hIstoacuterica que certifique a autoria do tratado Retoacuterica a Herecircnio que

foi estudado durante a Idade Meacutedia como um trabalho de Cicero conhecido como

Rhetorica Secunda Os latinistas renascentistas perceberam a natildeo veracidade da

autoria de Ciacutecero e defenderam o nome de Cornificio como possiblidade de

responsabilidade pela obra com base em referecircncias apresentadas por Quintiliano

52

Segundo Kennedy (1994 p 90) no periacuteodo Heleniacutestico os estudos retoacutericos eram frequentes entre os orientais da Aacutesia Menor O estoicismo tornou-se a mais popular escola filosoacutefica e especialmente entre os romanos a austeridade moral estoica assemelhou-se aos ideais dos valores da tradiccedilatildeo romana A teoria retoacuterica estoacuteica eacute provavelmente derivada de escritos de Dioacutegenes da Babilocircnia liacuteder da escola na primeira metade do seacuteculo II a C As contribuiccedilotildees estoacuteicas para a retoacuterica vieram em parte de seu estudo de gramaacutetica Kennedy (1994 p160) informa que Apolodoro de Peacutergamo foi escolhido por Juacutelio Ceacutesar para mestre de retoacuterica de Otaacutevio (45 aC) Teodoro de Gadara foi seguidor de Apolodoro e mestre do futuro imperador Tibeacuterio 53

Alexandre Jr (2005 p 59) expotildee que haacute uma discussatildeo sobre a autenticidade da autoria de Demeacutetrio de Faleros da obra De elocutione Em razatildeo desse questionamento agraves vezes a designaccedilatildeo aparece como Pseudo-Demeacutetrio 54

Segundo Kennedy (1994 p 167) Hermaacutegoras de Temnos o reacutetor que atuou em Roma no seacuteculo II aC estabeleceu a distinccedilatildeo entre tese e hipoacutetese nos estudos retoacutericos A tese trata de assuntos gerais e a hipoacutetese de casos particulares do tema geral Hermaacutegoras era um mestre grego e escreveu sobre os fundamentos retoacutericos em sua proacutepria liacutengua 55

O proacuteprio Quintiliano (Inst Or III 1 15-16) indica as contribuiccedilotildees de Isoacutecrates mas ressalta que a obra de Aristoacuteteles eacute mais completa Ele cita tambeacutem Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles mencionando sua cuidadosa produccedilatildeo em retoacuterica A estes satildeo acrescentados tambeacutem os peripateacuteticos e estoicos e o zelo devotado aos estudos da retoacuterica Nas referecircncias agraves contribuiccedilotildees de retoacutericos estaacute incluiacutedo tambeacutem Hermaacutegoras em sua proacutepria trajetoacuteria seguida pelos seus disciacutepulos Apoacutes a apresentaccedilatildeo de uma lista de citaccedilotildees de retoacutericos do periacuteodo Heleniacutestico Quintiliano (Inst Or III 1 19-20) acrescenta o romano Catatildeo o Censor como abertura da seacuterie dos nomes que contribuiacuteram para o estabelecimento da retoacuterica romana

60

Na obra Institutio Oratoria (III 1 17-18) Quintiliano menciona que Ciacutecero esclareceu

sobre a praacutetica da teoria da oratoacuteria e combinou o dom da eloquecircncia com o ensino

da arte Logo em seguida Quintiliano afirma que Cornifiacutecio escreveu sobre o mesmo

assunto Portanto o autor de Retoacuterica a Herecircnio56 pode ou natildeo ter sido nomeado

Cornificio mas mesmo que fosse natildeo se sabe mais nada sobre ele exceto que era

um romano de classe alta

Na obra Retoacuterica a Herecircnio identificam-se pontos em comum com a Retoacuterica de

Aristoacuteteles e que podem ser apontados como forma de observar certas

continuidades do aristotelismo que foram adaptadas aos valores da formaccedilatildeo do

cidadatildeo romano

Retoacuterica de Aristoacuteteles (I 3 1358b) Retoacuterica a Herecircnio (I 2)

Trecircs gecircneros de discurso retoacuterico Trecircs Gecircneros na accedilatildeo da retoacuterica

Deliberativo Deliberativo

Juriacutedico JudiciaacuterioForense

Epidiacutetico Demonstrativo

As definiccedilotildees de cada tiacutetulo apresentam certas semelhanccedilas em seus significados

pois o deliberativo consiste em aconselhar e persuadir e tambeacutem efetiva-se na

discussatildeo que inclui aconselhar e desaconselhar o juriacutedico atua na defesa ou

acusaccedilatildeo e o judiciaacuterio contempla a controveacutersia legal e acusaccedilatildeo puacuteblica ou

reclamaccedilatildeo em juiacutezo com defesa o epidiacutedico consiste em elogiar ou censurar

algueacutem e o demonstrativo destina-se ao elogio ou vitupeacuterio Tanto na Retoacuterica de

Aristoacuteteles como na Retoacuterica a Herecircnio o capiacutetulo sobre estilo eacute tratado por uacuteltimo

separadamente O gecircnero judiciaacuterio eacute o mais discutido na Retoacuterica a Herecircnio e

segundo Kennedy (1994 p 122) eacute tomado como base a stasis que na traduccedilatildeo

original latina significa constitutio questotildees baacutesicas para o discurso As concepccedilotildees

teoacutericas da retoacuterica de Hermaacutegoras tambeacutem servem de apoio agraves questotildees que

dizem respeito agraves controveacutersias na constituiccedilatildeo da retoacuterica latina

56

Kennedy (1994 p 122) afirma que natildeo se sabe quem era Herecircnio o destinataacuterio do tratado Haacute algumas suposiccedilotildees que poderia ser um tribuno identificado como Herecircnio mas natildeo haacute fontes que confirmam De acordo com esta hipoacutetese e pelas caracteriacutesticas do tratado sua produccedilatildeo poderia ter ocorrido entre 85 aC e 80 aC

61

Partindo do objetivo de identificaccedilatildeo de pontos em comum e diferenccedilas entre a obra

Retoacuterica de Aristoacuteteles e a retoacuterica latina vale registrar duas citaccedilotildees que auxiliam

na observaccedilatildeo da releitura que os romanos fizeram da retoacuterica grega Na Retoacuterica

de Aristoacuteteles encontra-se a seguinte afirmaccedilatildeo ldquoA funccedilatildeo da retoacuterica natildeo eacute

persuadir mas discernir os meios de persuasatildeo mais pertinentes a cada casordquo (Ret

I 1355b) Na Retoacuterica a Herecircnio (I 2) ldquoo ofiacutecio do orador eacute poder discorrer sobre as

coisas que os costumes e as leis instituiacuteram para o uso civil mantendo o

assentimento dos ouvintes ateacute onde for possiacutevelrdquo Para os romanos os meios de

alcance do ecircxito nos efeitos da argumentaccedilatildeo estatildeo diretamente ligados aos

interesses e necessidades do povo romano

A retoacuterica na histoacuteria dos romanos torna-se mais relevante a partir da atuaccedilatildeo de

Ciacutecero que nesse campo constroacutei uma ligaccedilatildeo entre gregos e romanos57 Na

exposiccedilatildeo de Dominik ( 2012 p 97 ) ldquouma imagem do sistema de educaccedilatildeo retoacuterica

no iniacutecio do primeiro seacuteculo aC pode ser construiacutedo a partir dos primitivos manuais

de retoacutericardquo Os manuais De Inventione de Ciacutecero58 e Rhetorica ad Herennium satildeo

considerados fundadores em liacutengua latina

Na obra De Oratore Ciacutecero desenvolve suas questotildees sobre retoacuterica em forma de

diaacutelogo comentando posiccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles entre outros e acrescentado

suas proacuteprias ideias Para Ciacutecero a retoacuterica divide suas funccedilotildees em delectare

docere e movere (agradar instruir e comover) Para agradar o orador precisaria usar

uma variedade de estilos para instruir uma inteligecircncia desenvolvida para comover

seria necessaacuterio conhecer as expectativas do ouvinte (De oratore 2 310-12) Os

postulados de Ciacutecero deixaram como heranccedila uma concepccedilatildeo de retoacuterica que serviu

de fortalecimento agrave oratoacuteria

57

Segundo Dominik (2012 p 97) ldquoa partir dos tratados de retoacuterica parece que houve duas principais vias de entrada para a retoacuterica grega em Roma atraveacutes de estudiosos familiarizados com a retoacuterica que como professores vieram da Greacutecia e da Magna Greacutecia para Roma e por meio de romanos que com o objetivo de estudar viajavam para a Greacutecia especialmente Atenas e Rhodes e em seguida retornavam a Romardquo 58

Dominik (2012 p 121) expotildee que ldquoo mais antigo tratado romano de retoacuterica existente eacute o De Inventione de Ciacutecero que pode ter aparecido em torno de 876 aC ou um pouco depois a data eacute baseada na proacutepria observaccedilatildeo de Ciacutecero de que o De Inventione foi composto em sua juventude (De Or 115) provavelmente em 88 aC na idade de 18 anos depois de ter estudado filosofia sob as ordens de Filatildeo de Larissa em Roma (Cic Fam 13 Tusc 23) O De Inventione sucedeu quase ao mesmo tempo possivelmente entre 86-82 ou mesmo mais tarde de acordo com a Rhetorica ad Herennium de autoria incerta que eacute o primeiro tratado completo de retoacuterica escrito em latim a sobreviver pois da obra De Inventio somente sobreviveram os dois primeiros livros Ambas as obras satildeo derivadas de atividade acadecircmica e de uma fonte grega comum que provavelmente se desenvolveu na ilha de Rhodes um importante centro de retoacuterica de modo que fornecem um vislumbre do estado de retoacuterica em Roma nas primeiras duas deacutecadas do primeiro seacuteculo aCrdquo

62

Habinek (2005 p27) em seu levantamento biograacutefico de oradores da Antiguidade

claacutessica situa e analisa a oratoacuteria de Ciacutecero atraveacutes do seu desempenho tanto no

campo da jurisprudecircncia quanto na poliacutetica Eacute possiacutevel perceber que se tornam

indissociaacuteveis as accedilotildees de Ciacutecero em sua militacircncia juriacutedica e poliacutetica na Roma

republicana de suas convicccedilotildees e posturas diante de suas concepccedilotildees de retoacuterica

Habinek (2005 25) identifica que no contexto das atividades produtivas de Ciacutecero o

discurso contra Catilina realccedila importantes marcas da figura do orador Por um lado

aponta para o orador que facilmente adapta seu estilo e argumento a tipos

diversificados de audiecircncia Por outro lado o desempenho de Ciacutecero permite-lhe

estabelecer uma possiacutevel uniatildeo entre povo e aristocracia Em sua oratoacuteria era

fundamental convencer o ouvinte orientando-o para a concretizaccedilatildeo da idealizaccedilatildeo

do cidadatildeo romano Nessa direccedilatildeo a retoacuterica de Ciacutecero se aproxima mais de

Aristoacuteteles no que se refere ao binocircmio retoacuterica e verdade59

Segundo consideraccedilotildees de Kennedy (1994 p 166) no seacuteculo I aC a declamaccedilatildeo

era uma praacutetica nas escolas de retoacuterica em Roma Os alunos coletavam passagens

que eram valorizadas na tradiccedilatildeo literaacuteria e exerciam com habilidade o uso da

memoacuteria para recitaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo nos seus discursos A maior fonte de

informaccedilotildees sobre declamaccedilatildeo eacute encontrada nas obras Crontoveacutersias e Suasoacuterias

de Secircneca o Velho que defende a novidade do termo na execuccedilatildeo dos exerciacutecios

nas escolas de retoacuterica Kennedy (1994 p 171) aponta que desde o impeacuterio

augustano as escolas retoacutericas dominaram o campo da educaccedilatildeo formal e a praacutetica

da declamaccedilatildeo representou uma continuidade na atividade popular para adultos A

influecircncia dos ensinos retoacutericos se fez presente na produccedilatildeo de gecircneros literaacuterios

tradicionais como eacutepica saacutetira trageacutedia epigrama historiografia e filosofia Rezende

(2009 p 138) pontua que a funccedilatildeo da declamaccedilatildeo na educaccedilatildeo romana

representava a passagem para o niacutevel mais elevado da formaccedilatildeo do aluno que

nessa fase seria capaz de criar um discurso que se sustentasse de acordo com a

causa em questatildeo A praacutetica da declamaccedilatildeo era uma metodologia conveniente para

o desenvolvimento da escrita Esta se efetivava por meio de exerciacutecios com base em

59

Habinek (2005 p73) The very form of the Ciceronian dialogue with its lengthy speeches and genial conversation rather than the intense dialectical inquiry that characterizes Platorsquos dialogues enacts its commitment to the construction of truth as a social enterprise (A proacutepria forma do diaacutelogo Ciceroniano com seus estensos discursos e conversaccedilatildeo ao inveacutes do inqueacuterito da dialeacutetica intensa que caracteriza os diaacutelogos de Platatildeo representa seu compromisso com a construccedilatildeo da verdade como um empreendimento social)

63

uma questatildeo escolhida e sua exposiccedilatildeo diante de ouvintes e estes se colocavam

como criacuteticos no julgamento da produccedilatildeo do discurso apresentado O meacutetodo

praticado era desenvolvido por meio de controveacutersias discussatildeo contra e a favor de

determinada questatildeo como preparaccedilatildeo para as causa judiciais as suasoacuterias se

fundamentavam em argumentaccedilotildees com base em situaccedilotildees fictiacutecias Observa-se

que controveacutersias e suasoacuterias natildeo representavam tipos de gecircnero mas uma

metodologia de elaboraccedilatildeo do discurso Nesse contexto como observa Dominik a

metodologia com recursos da declamaccedilatildeo era ajustaacutevel agraves expectativas dos ideais

da educaccedilatildeo romana

A declamaccedilatildeo era valorizada nas escolas porque forneceu o treinamento retoacuterico necessaacuterio ao avanccedilo poliacutetico e social em Roma Os exerciacutecios declamatoacuterios que promoviam a agilidade mental e exigiam a capacidade de envolver-se em argumento engenhoso natildeo soacute tiveram a vantagem de proporcionar a praacutetica em temas mais amplos (embora ainda limitados) e em situaccedilotildees mais extremas do que as que eram encontradas em casos reais mas tambeacutem permitiram aos praticantes o emprego de expressotildees mais elaboradas do que as normalmente utilizadas numa sala de tribunal ou numa reuniatildeo puacuteblica (DOMINIK 2012 p106)

A partir das obras Controveacutersias e Suasoacuterias Fairweather (2007 p 321) considera

que na visatildeo de Secircneca o Velho a educaccedilatildeo retoacuterica poderia ser beneacutefica ao futuro

filosoacutefo No tratamento dos temas questotildees sobre eacutetica e moral eram levantadas

nas controveacutersias na declamaccedilatildeo de suasoacuterias eram discutidos determinados

questionamentos sobre intervenccedilatildeo dos deuses na vida humana como tambeacutem se

haveria possibilidade de previsatildeo do futuro Fairweather (2007 p 322) defende que

em sua obra Secircneca o Velho limita a ampliaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas por natildeo

haver condiccedilotildees de conclusotildees pontuais para todas as questotildees

Secircneca o Jovem se volta para um interesse mais especiacutefico de engajamento na

filosofia estoica60 e na literatura latina procurando extrair da retoacuterica grega

heleniacutestica e romana o que eacute identificaacutevel e satisfatoacuterio aos seus valores na

produccedilatildeo de suas obras O desempenho de Secircneca no campo da filosofia tinha

como base o pensamento estoico inaugurando como representante a terceira fase

da filosofia estoica Novak (1999 p168) expotildee que o pensamento moralista da

filosofia estoica era compatiacutevel com as expectativas da moralidade romana As

especulaccedilotildees fiacutesicas e loacutegicas dos estoicos da primeira fase cedem lugar ao caraacuteter

praacutetico dos romanos valorizando o aconselhamento moral muito recorrente entre os

60

Segundo Novak (1999 p 268) a terceira fase do estoicismo iniciada por Secircneca restringe a loacutegica e a fiacutesica em benefiacutecio da moral O seu cenaacuterio eacute principalmente Roma

64

estoicos romanos integrantes da uacuteltima fase Segundo Sharples61 (1996 p 4)

Secircneca eacute reconhecido como fundador da terceira fase do estoicismo mas sabia

aproveitar e aplicar em sua filosofia estoica o que era conveniente do pensamento

epicurista Na segunda parte desta tese estatildeo contidas algumas informaccedilotildees sobre

a origem do estoicismo e a sua penetraccedilatildeo no impeacuterio romano

Na obra Epiacutestolas Morais Secircneca expressa seu pensamento abordando partes da

filosofia estoica que ele procura ministrar ao seu destinataacuterio Luciacutelio Na epiacutestola

quarenta haacute uma seacuterie de toacutepicos especiacuteficos que tratam da oratoacuteria no discurso do

filosoacutefo pois ldquoum estilo oratoacuterio que visa a transformaccedilatildeo da mentalidade deve

descer ateacute ao mais fundo de noacutes mesmosrdquo (Ep 40 4) Continuando em suas

intruccedilotildees a Luciacutelio sobre a oratoacuteria Secircneca comenta

De resto entendo que certos estilos podem ser mais ou menos convenientes conforme os povos Entre os gregos por exemplo jaacute este estilo (em passo de corrida) seria possiacutevel enquanto noacutes temos o haacutebito de fazer pausas mesmo ao escrever Ateacute mesmo o nosso Ciacutecero o homem que elevou ao cume a eloquecircncia romana andava a passo O estilo romano eacute mais circunspecto sabe avaliar o seu valor e submete-se agrave avaliaccedilatildeo dos outros (SEcircNECA Ep 4011)

Essa questatildeo da oratoacuteria no discurso filosoacutefico que Secircneca aborda eacute retratada com

uso da seguinte metaacutefora ldquoO estilo filosoacutefico deve ter forccedila mas sem perder a

moderaccedilatildeo deve ser um rio a fluir e natildeo uma torrenterdquo (Ep 40 8) No final da

epiacutestola Secircneca apresenta um comentaacuterio encerrando com a criaccedilatildeo de uma

maacutexima ldquopara terminar a suacutemula dos meus conselhos eacute esta secirc lento a falarrdquo (Ep

4014) Segundo Kennedy (1994 p175) a marca do meacutetodo da declamaccedilatildeo nas

epiacutestolas de Secircneca eacute a criaccedilatildeo de suas proacuteprias sentenccedilas e a citaccedilatildeo das de

outros autores

Quintiliano (Inst Or II 11-10) aponta o valor e utilidade da declamaccedilatildeo como

exerciacutecio na produccedilatildeo do discurso tanto na escrita quanto na oralidade mas

ressalta a adequaccedilatildeo agrave maturidade e niacutevel escolar do aluno Na posiccedilatildeo de

continuador de Ciacutecero no campo da retoacuterica Quintiliano sistematizou seus estudos

sobre a retoacuterica latina formalizando-os em sua obra Institutio Oratoria Quintiliano

(Inst Or II 14) procura definir retoacuterica aludindo ao fato de que os tradutores do seu

tempo procuraram traduzir retoacuterica como oratoacuteria Depois de levantar algumas

61

Sharples (1996 p 4) afirma que ldquoSeneca though writing as a Stoic is ready to make use of Epicurean doctrines too where they suit his purposerdquo (Secircneca atraveacutes dos escritos como estoico faz tambeacutem uso das doutrinas epicuristas no que diz respeito aos seus propoacutesitos filosoacuteficos)

65

questotildees sobre o termo em pauta Quintiliano registra sua proacutepria defesa em optar

pelo termo retoacuterica como originaacuterio do grego sem tentativa de traduccedilatildeo para o

latim E ainda ressalta que o proacuteprio Ciacutecero fez uso do termo ldquoE por fim jaacute que M

Tuacutelio nos primeiros livros que escreveu sobre o tema usou o termo grego natildeo haacute

que de todo nos envergonharmos por parecer agir temerariamente ao creditarmos

ao maior dos oradores o nome da sua arterdquo (QUINTILIANO Inst Or II 14 4) Na

sequecircncia da exposiccedilatildeo de suas ideias Quintiliano (Inst Orat II XIV 5) reafirma

ldquorethorice pois que utilizaremos esta designaccedilatildeo sem medo da polecircmicardquo No livro II

da obra Institutio Oratoria Quintiliano realiza uma retrospectiva remontando aos

gregos para definir retoacuterica na perspectiva de uma discussatildeo sobre os significados

e efeitos da persuasatildeo no discurso Em suas referecircncias no livro II Quintiliano

pondera que Platatildeo natildeo concebia a retoacuterica como um mal poreacutem defendia que

somente um homem bom eacute capaz de alcanccedilar a retoacuterica verdadeira Ainda na

defesa de Platatildeo Quintiliano (Inst Or II 14 28-29) assim se posiciona ldquoIsto ainda

eacute mais manifesto no diaacutelogo Fedro pois que natildeo se pode exercer cabalmente a

retoacuterica sem o conhecimento da justiccedila opiniatildeo esta que tambeacutem eu partilhordquo62

Ao fazer um passeio histoacuterico sobre produccedilotildees de escritores gregos e latinos

Quintiliano elabora o seguinte comentaacuterio ldquoOs oradores nossos podem

especialmente fazer a eloquecircncia latina em paracircmetro de igualdade com a gregardquo

Ainda ele exalta a literatura e a retoacuterica latinas enfatizando que sem nenhuma

hesitaccedilatildeo ele oporia Ciacutecero a qualquer um dos oradores gregos e complementa sua

defesa objetando que ldquoem Demoacutestenes nada se pode suprimir e em Ciacutecero nada se

pode acrescentarrdquo (QUINTILIANO Inst Or X 1105)63

Quintiliano no livro X de Institutio Oratoria fornece algumas contribuiccedilotildees de suas

ideias sobre discurso oral e escrito apontando determinadas vantagens do escrito

alegando que a leitura eacute livre nem mesmo transcorre como o iacutempeto de um discurso

proferido sendo permitido ir e voltar vaacuterias vezes ao texto seja porque ainda restam

duacutevidas ou se queira fixar na memoacuteria Na sequecircncia de suas ideias Quintiliano usa

metaacuteforas para clarear a expressatildeo de seu pensamento

O texto escrito permite montar e remontar tal como os alimentos que mastigados e liquefeitos para que sejam mais facilmente digeridos engolimos assim tambeacutem a leitura natildeo crua mas moiacuteda repetidas vezes e

62

Traduccedilatildeo de Antonio Fidalgo 63

As traduccedilotildees do livro X de Intitutio Oratoria satildeo de Antonio Martinez Rezende

66

como que dissolvida pode ser entregue agrave memoacuteria e agrave imitaccedilatildeo (QUINTILIANO InstOr X 119)

64

A metaacutefora usada por Quintiliano toma a imagem do alimento para representar a

leitura O processo da mastigaccedilatildeo e absorccedilatildeo do alimento pelo corpo eacute comparado

aos efeitos da leitura na mente do leitor que a absorve extraindo dela a essecircncia

que pode ser incorporada ao modo de agir

Observa-se que Quintiliano eacute ponto de referecircncia para se pensar a retoacuterica naquele

momento da segunda metade do primeiro seacuteculo dC Habinek (2005 p 61)65

ressalta que no final da obra Institutio Oratoria Quintiliano argumenta que a

finalidade da retoacuterica eacute a formaccedilatildeo de um homem que combine a sabedoria do

grego com a praticidade do romano Complementando esta posiccedilatildeo Shiappa e

Hamm (2007 p 6) apontam que Quintiliano direciona a retoacuterica romana em dois

caminhos retoacuterica destinada agrave oratoacuteria e retoacuterica educacional Tal fato fortalece a

afirmativa de que na Antiguidade podem ser citadas algumas formas diferentes de

aplicaccedilatildeo do termo retoacuterica retoacuterica como forma de organizaccedilatildeo do discurso como

teacutecnica persuasiva como funccedilatildeo taacutetica da linguagem como um programa

educacional e como uma teoria da comunicaccedilatildeo humana Portanto observar as

diferentes concepccedilotildees de retoacuterica entre gregos e romanos contribui para situar os

discursos de Secircneca e de Paulo no campo da retoacuterica no contexto social e poliacutetico

do impeacuterio romano no Seacuteculo I dC

No amplo campo da retoacuterica identifica-se que nos postulados aristoteacutelicos a noccedilatildeo

de toacutepos para os gregos e lugar comum para os latinos torna-se parte integrante

dos estudos retoacutericos e desempenho na oratoacuteria Em relaccedilatildeo aos toacutepoi como

recursos retoacutericos na organizaccedilatildeo do discurso Aristoacuteteles implementou um ponto de

partida que os romanos seguiram dando novas conotaccedilotildees e aplicaccedilotildees

32 O TOacutePOS NA RETOacuteRICA E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA

Aristoacuteteles utiliza a palavra toacutepos (τoacuteπoς) com referecircncia ao lugar fazendo menccedilatildeo

aos recursos da linguagem que servem como ponto de partida ou fonte para uma

argumentaccedilatildeo originando a ideia de toacutepicos como eacute defendida por ele Nessa

64

Traduccedilatildeo de Antonio Martinez Rezende 65

Habinek (2005 p 61) tambeacutem comenta que ldquothe final book of Quintilianrsquos Institutio Oratoria argues that the end of rhetoric is the formation of a Romanus sapiens someone who combines the wisdom of a Greek sage with the practicality of a Roman man of actionrdquo (No final da obra Institutio Oratoria Quintiliano argumenta que o objetivo da retoacuterica eacute a formaccedilatildeo de um romano saacutebio algueacutem que combina a sabedoria de um grego com a accedilatildeo praacutetica de um homem romano)

67

abordagem Aristoacuteteles faz o seguinte comentaacuterio ldquoQuem se predispotildee a assumir o

papel de questionador deve encontrar o lugar a partir do qual vai conduzir a

argumentaccedilatildeordquo (Toacutep VII 1 155b) A partir desses pressupostos Aristoacuteteles recorre

ao termo toacutepos como um dispositivo que permite acionar de um determinado lugar

os recursos da linguagem acessiacuteveis a quem produz o discurso

Por meio do uso da expressatildeo konoacutei topoacutei (Кοινοigrave τοπoacuteι) lugares comuns

Aristoacuteteles estaacute referindo-se aos toacutepicos que de uma mesma forma podem ser

usados em qualquer um dos trecircs gecircneros de discurso oratoacuterio deliberativo judicial e

epidiacutedico Assim ele delimita e distingue os toacutepicos que satildeo aplicaacuteveis agrave retoacuterica

orientados pelo raciociacutenio dedutivo (entimemas) e indutivo (exemplos) e os

aplicaacuteveis agrave dialeacutetica voltados para a loacutegica

Quanto agrave expressatildeo lugar comum como usada por Aristoacuteteles nota-se uma

diversificaccedilatildeo de usos conforme constataccedilatildeo de Segurado e Campos

Emprega-se actualmente a expressatildeo laquolugar-comumraquo para designar uma frase um dito uma ideia que de tatildeo usada se banalizou em extremo a ponto de o seu emprego carecer de qualquer impacto como recurso retoacuterico ou literaacuterio Ora laquolugar-comumraquo natildeo eacute mais do que a traduccedilatildeo para portuguecircs ou qualquer outra liacutengua moderna do latim locus communis que por sua vez reproduz a expressatildeo grega κοινograveς τόπος Deve notar-se no entanto que as expressotildees das liacutenguas modernas possuem uma conotaccedilatildeo negativa de laquobanalidaderaquo ausente da expressatildeo original grega Na realidade enquanto em laquolugar-comumraquo o adjectivo laquocomumraquo equivale a laquogastoraquo laquobanalraquo laquomil vezes repetidoraquo em grego κοινograveς apenas denotava que um dado laquoesquema argumentativoraquo era comum isto eacute podia ser empregado em muitas situaccedilotildees discursivas diferentes (SEGURADO E CAMPOS 2007 p 109)

Nos estudos da retoacuterica Aristoacuteteles daacute ecircnfase agrave importacircncia dos toacutepicos (Ret II 22-

23-24) Algumas concepccedilotildees identificadas por ele podem ser observadas tambeacutem

em alguns aspectos da produccedilatildeo da retoacuterica entre os romanos Na obra Retoacuterica a

Herecircnio o termo toacutepico eacute traduzido para o latim locus communis (lugar comum)

significando o que era de praxe para ser dito e discutido pelo orador mediante

determinada situaccedilatildeo como pode ser visto no Livro II 2466 Os lugares comuns

nessas causas satildeo o do acusador contra aquele que embora jaacute tenha confessado o

delito ainda reteacutem os juiacutezes com seu discurso o da defesa sobre a humanidade e a

misericoacuterdia em tudo se deve considerar a intenccedilatildeo67

66

Loci communis in his causis accusatoris contra eum qui cum pecasse confiteatur tamem oratione iudices demoretur defensoris de humanitate misericordia uoluntatem in omnibus rebus spectari conuenire quae consulto facta non sint ea fraudei esse non oportere (Ret Her II 24) 67

Traduccedilatildeo de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra

68

A reestruturaccedilatildeo que Ciacutecero deu agrave noccedilatildeo de toacutepica desenvolvida por Aristoacuteteles

ajuda a ampliar a sua aplicabilidade no discurso Na obra sobre os toacutepicos68 Ciacutecero

consegue estabelecer uma junccedilatildeo entre a ideia de toacutepos como forma de

argumentaccedilatildeo e a toacutepica como a teoria dessa forma A esse respeito Aristoacuteteles

trabalhou em separado o papel dos entimemas69 na loacutegica da argumentaccedilatildeo

tratando no final as figuras de linguagem como estilo na forccedila persuasiva Ciacutecero

coloca no mesmo bloco a importacircncia das figuras de linguagem no discurso e o

efeito na argumentaccedilatildeo que elas podem oferecer Ele observa que o uso da

metaacutefora eacute muito produtivo na apreensatildeo das semelhanccedilas a siacutemile contribui para

efeito de comparaccedilatildeo e a hipeacuterbole torna-se argumento tanto nas questotildees grandes

quanto nas pequenas Concepccedilotildees idecircnticas a essas se confirmam tambeacutem na obra

Retoacuterica a Herecircnio (IV 58-69)

Na liacutengua portuguesa a recorrecircncia ao termo lugar comum tornou-se corriqueira

em relaccedilatildeo ao significado de origem e eacute ateacute mesmo considerada como um clichecirc no

linguajar do cotidiano Segurado e Campos (2007 p111) tanto na introduccedilatildeo como

em nota aponta as dificuldades relacionadas a uma definiccedilatildeo de lugar comum visto

que nem o proacuteprio Aristoacuteteles fornece uma conceituaccedilatildeo clara Entre algumas

colocaccedilotildees Segurado e Campos apresenta a de Ciacutecero que semelhante agraves de

outros tantos tenta uma definiccedilatildeo com recursos metafoacutericos70

Ciacutecero faz referecircncia mais ligada aos toacutepicos definidos por Aristoacuteteles como

funcionais e uacuteteis na argumentaccedilatildeo Secircneca aponta para outra forma de uso do

lugar comum fazendo alusatildeo ao tratamento de um determinado tema acessiacutevel aos

poetas Na epiacutestola setenta e nove ele tece alguns comentaacuterios com Luciacutelio sobre o

monte Etna desafiando-o a registrar na criaccedilatildeo de seu poema uma descriccedilatildeo do

Etna visto ser este um toacutepos que atraiacutea muitos poetas

68

Toacutepicos ndash Traduccedilatildeo para espanhol e notas de Bulmaro Reyes Coria 69

O entimema eacute um silogismo formulado em funccedilatildeo de seu efeito retoacuterico contendo uma premissa impliacutecita em seu uso na argumentaccedilatildeo Na Retoacuterica Aristoacuteteles (I 2 1357a) coloca o entimema como silogismo formado de poucas premissas e em geral menos do que as do silogismo primaacuterio Porque se alguma destas premissas for bem conhecida nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la pois o proacuteprio ouvinte a supre 70

Segurado e Campos cita em latim o dito de Ciacutecero sobre lugar comum ut igitur earum rerum quae absconditae sunt demonstrato et notato loco facilis inuentio est sic cum peruestigare argumentum aliquod uolumus locos nosse debemus sic enim appellatae ab Aristotele sunt eae quasi sedes e quibus argumenta promuntur (Ciacutecero Top 7) Na nota 188 da p111 da introduccedilatildeo de Toacutepicos de Aristoacuteteles a citaccedilatildeo de Ciacutecero estaacute traduzida para o portuguecircs ldquoassim como se torna faacutecil encontrar coisas escondidas quando se indica e assinala o lugar delas assim tambeacutem quando queremos analisar um argumento qualquer devemos conhecer os lsquolugaresrsquo deles pois eacute este o nome que Aristoacuteteles daacute agravequela espeacutecie de lsquoesconderijosrsquordquo

69

Tema que nem o fato de Vergiacutelio o ter desenvolvido impediu Oviacutedio de tambeacutem o tratar tal como ambos estes poemas natildeo dissuadiram Corneacutelio Severo de igualmente o versar De resto foi este um tema que se prestou a todos eles em abundacircncia parece-me a mim que os poetas mais antigos longe de esgotarem o assunto apenas indicaram os toacutepicos a desenvolver (SEcircNECA Ep 795)

Nesta abordagem Secircneca apresenta a exploraccedilatildeo de um tema que se posiciona em

um lugar comum em que a mateacuteria ganha amplitude pela agregaccedilatildeo de novas

exposiccedilotildees Hansen (2013 p 28) eacute concordante com essa colocaccedilatildeo de Secircneca ao

afirmar que ldquoo mesmo lugar nunca eacute repeticcedilatildeo simples do idecircntico pois a cada vez eacute

a diferenccedila efetuada pela sua variaccedilatildeo elocutivardquo

Referecircncias ao uso do lugar comum satildeo encontradas tambeacutem em Quintiliano (Inst

Or II 1 9) Eacute possiacutevel verificar que ele tambeacutem remonta suas ideias aos contextos

mais antigos mencionando o uso de lugar comum como fonte para retirada de

temas a serem discutidos nos exerciacutecios de retoacuterica mas natildeo entra no meacuterito da

questatildeo e nem sinaliza nenhum aprofundamento que contribua para a formulaccedilatildeo

dessa ideia de prazer inovador ao lugar comum

Eacute indiacutecio certo de vigor criativo expandir o que pela natureza veio condensado ampliar o resumido dar variedade agrave mesmice e prazer inovador ao lugar comum enfim dizer com clareza e elegacircncia muitas coisas a respeito de assuntos de pouca relevacircncia (QUINTILIANO Inst Or

X 5 11)

O que se nota nas explicaccedilotildees de Quintiliano eacute a ecircnfase em valorizar o ato criativo

no tratamento de um mesmo tema originaacuterio de um lugar comum dando a ele certos

destaques ainda natildeo abordados fazendo valer as potencialidades que o tema

oferece

Mediante essas concepccedilotildees sobre toacutepoi e a dificuldade de se estabelecer uma uacutenica

funccedilatildeo para o uso deles Thom (2003 p 556) fornece algumas sugestotildees

resultantes de suas proacuteprias experiecircncias na identificaccedilatildeo de toacutepoi no Novo

Testamento Este autor aponta que a anaacutelise de toacutepoi usados na Antiguidade

enriquecem o entendimento da moral e religiatildeo no contexto do Novo Testamento

Thom (2003 557) faz referecircncias agraves limitaccedilotildees do uso do termo toacutepos e destaca a

contribuiccedilatildeo de Curtius em situar os toacutepoi como funccedilatildeo intelectual de abordagens de

temas desenvolvidos e modificados de acordo com a preferecircncia do autor Curtius

(1999 p 131) faz alguns levantamentos sobre o encontro de temas identificados

como topoacutei na Antiguidade e cita a seguinte referecircncia ldquoa posse do saber obriga a

70

comunicaacute-lo a outremrdquo Curtius identifica este toacutepos em Horaacutecio (Odes II 21) e

tambeacutem em Secircneca quando diz ldquoeu natildeo desejo outra coisa senatildeo transmitir-te toda

a minha experiecircnciardquo (Ep 64) Curtius aponta que este toacutepos aparece de igual modo

no texto biacuteblico ldquoSabedoria oculta e tesouro escondido para que servem ambosrdquo

(Ecl 2032)

Voltado para um interesse em ampliar as discussotildees sobre o uso de toacutepos Thom

(2003 p 566) observa que este pode ser empregado no uso do argumento retoacuterico

ou na aplicaccedilatildeo de valores eacuteticos e morais Portanto um toacutepos expressa um

consenso cultural Mesmo sendo organizado como estrateacutegia retoacuterica o espaccedilo

cognitivo ordena seu uso e eacute culturalmente determinado Assim Thom (2003 p

567) distingue trecircs tipos de toacutepoi O primeiro tipo pode ser chamado toacutepos retoacuterico

que funciona como estrateacutegia para delinear a linha de argumentaccedilatildeo no esquema do

pensamento e este tipo eacute apresentado na obra Retoacuterica de Aristoacuteteles O segundo

tipo pode ser denominado de toacutepos literaacuterio consistindo em temas literaacuterios ou

assuntos que satildeo usados e retomados a partir de novas perspectivas Este toacutepos

era recorrente entre os poetas latinos conforme mencionado por Secircneca na epiacutestola

795 em seu pedido a Luciacutelio para incluir em seu poema uma descriccedilatildeo do Etna

tema comum que Secircneca identifica na obra de poetas como Vergiacutelio71 e Oviacutedio O

terceiro tipo se enquadra como toacutepos filosoacutefico sendo identificado nos escritos da

cultura heleniacutestica em abordagens sobre a moral ou temas filosoacuteficos que tambeacutem

satildeo tratados e retomados em diferentes textos

Assim os toacutepoi que apresentam temas desmembram-se em coleccedilotildees de teses pois

cada tema pode subdividir-se em partes que colaboram para a formaccedilatildeo de sentidos

do tema geral Este fato eacute observado na construccedilatildeo do tema ldquoo tempordquo nas

epiacutestolas de Secircneca e ldquoo amorrdquo nas epiacutestolas de Paulo confome mostrado na

constituiccedilatildeo das cenografias na segunda parte deste trabalho Pode-se afirmar que

a identificaccedilatildeo dos toacutepoi tem seu valor na interpretaccedilatildeo dos textos e a conexatildeo com

outros textos A contribuiccedilatildeo de Thom sobre os tipos de toacutepoi eacute aproveitada na

terceira parte desta tese na anaacutelise dos corpora que compotildeem a seleccedilatildeo das

epiacutestolas de Secircneca e Paulo O uso do toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo eacute

identificado nas epiacutestolas dos dois autores e analisado segundo o posicionamento

71

A grafia Vergiacutelio ao inveacutes de Virgiacutelio seraacute mantida neste trabalho conforme usada pelo tradutor das epiacutestolas de Secircneca Segurado e Campos

71

discursivo de cada um de acordo com o discurso constituinte que funciona como

base da enunciaccedilatildeo Os toacutepoi retoacutericos satildeo identificados indiretamente por meio dos

exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas que funcionam como contribuiccedilatildeo argumentativa na

produccedilatildeo das epiacutestolas A recorrecircncia a estes argumentos retirados de lugares

comuns pressupotildeem partes integrantes de um discurso enunciado em momento e

lugar anteriores e funcionam nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo como um

fenocircmeno dialoacutegico que permite cruzar diferentes discursos no ato da enunciaccedilatildeo

Ao analisar o corpus desta pesquisa de forma comparativa eacute essencial uma

abordagem dialoacutegica da linguagem que permita auxiliar na identificaccedilatildeo do modo

como Secircneca e Paulo recorrem ao uso dos recursos retoacutericos em conexatildeo com

outros discursos na fronteira com os discursos constituintes por eles assumidos As

reflexotildees de Bakhtin e seu ciacuterculo muito tecircm contribuiacutedo para os estudos da

linguagem principalmente as que se referem ao princiacutepio dialoacutegico Bakhtin

considera que o dialogismo eacute princiacutepio constitutivo e caracteriacutestica essencial da

linguagem sendo condiccedilatildeo do sentido do discurso Na visatildeo de Bakhtin (2006 p

366) num encontro dialoacutegico entre culturas elas natildeo se fundem nem se confundem

cada uma manteacutem a sua unidade e a sua integridade aberta mas elas se

enriquecem mutuamente Nesse sentido a cultura do periacuteodo Heleniacutestico tanto

exerce influecircncia na escrita de Secircneca em sua origem ocidental como tambeacutem em

Paulo em sua origem oriental promovendo o entrecruzamento dos discursos

Nos seus estudos sobre dialogismo Bakhtin afirma que existe diaacutelogo natildeo somente

entre interlocutores mas entre enunciados tambeacutem Portanto a produccedilatildeo da

linguagem num enfoque dialoacutegico se articula duplamente na situaccedilatildeo de interaccedilatildeo

(comunicaccedilatildeo oral ou escrita entre falantes) e entre discursos que circulam nos

meios sociais A esse respeito Bakhtin argumenta

Os enunciados natildeo satildeo indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns aos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva (BAKHTIN 2006 p 297)

Um enunciado pode ser introduzido no outro sob formas variadas numa interaccedilatildeo

dialeacutetica com o proacuteprio texto o que estabelece novos dados para a compreensatildeo de

outros textos num processo dinacircmico para garantir a comunicaccedilatildeo Maingueneau e

Charaudeau (2008 p 286-287) postulam que a produccedilatildeo do discurso se realiza no

72

bojo do interdiscurso e em linhas gerais pode-se dizer que o interdiscurso eacute

constituiacutedo pela relaccedilatildeo existente entre os discursos Entende-se que essa relaccedilatildeo

particulariza um determinado discurso como tambeacutem sustenta historicamente os

sentidos nele inscritos

No dizer de Bakhtin (2006 p298) ldquoa expressatildeo do enunciado em maior ou menor

grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e

natildeo soacute a relaccedilatildeo com os objetos do seu enunciadordquo Essa contribuiccedilatildeo bakhtiniana

sobre o dialogismo que se instaura na comunicaccedilatildeo por meio das palavras e

enunciados eacute fundamental para compreensatildeo da visatildeo dialoacutegica da linguagem

que se estabelece tambeacutem na forma do discurso epistolar que eacute a base do corpus

de anaacutelise aqui pretendida De acordo com essa perspectiva dialoacutegica da linguagem

a palavra se apresenta com ecos de outros enunciados de algo dito em outro lugar

em outro momento A expressatildeo da palavra como recurso da linguagem concebe o

diaacutelogo de uma liacutengua com outra liacutengua ou ainda de cultura para cultura Palavras

obras enunciados ecoam as tradiccedilotildees de cada eacutepoca e de cada cultura Nessa

direccedilatildeo tais contribuiccedilotildees favorecem certos aspectos do diaacutelogo entre culturas no

contexto das produccedilotildees grega e latina na Antiguidade em especial no periacuteodo

Heleniacutestico como abordado na segunda parte deste trabalho

Nesse percurso de abordagem do dialogismo destaca-se a importacircncia da

fundamentaccedilatildeo teoacuterica herdada de Bahktin para concepccedilotildees de intertextualidade e

interdiscursividade que contribuem na operaccedilatildeo de anaacutelise de discursos de Secircneca

e Paulo O dialogismo na enunciaccedilatildeo deve ser apreendido como meio de

identificaccedilatildeo de outros discursos presentes no ato da enunciaccedilatildeo o que em anaacutelise

do discurso eacute concebido como heterogeneidade enunciativa

A partir dos estudos bakhtinianos Authier-Revuz (1990 p 25) apresenta duas

concepccedilotildees de heterogeneidade no discurso a heterogeneidade mostrada e a

constitutiva A heterogeneidade mostrada caracteriza-se como forma de inscrever o

outro na sequecircncia do discurso como o discurso citado por exemplo Segundo

Authier-Revuz (1990 p 33) ldquoas formas marcadas da heterogeneidade mostrada

reforccedilam confirmam e asseguram o eu [] dando forma ao sujeito enunciadorrdquo Esta

autora expotildee que a heterogeneidade mostrada revela-se ao introduzir o outro no

discurso de variadas formas Este fenocircmeno eacute observado na introduccedilatildeo de citaccedilotildees

73

e maacuteximas como tambeacutem imagens atraveacutes de exemplos que Secircneca e Paulo usam

como recursos retoacutericos em suas epiacutestolas

A heterogeneidade constitutiva da linguagem como forma da tessitura do discurso

eacute vista por Authier-Revuz (1990 p34) na concepccedilatildeo do discurso como produto do

interdiscurso Esta autora defende que a metaacutefora e jogos de palavra conduzem os

discursos mais proacuteximos da heterogeneidade constitutiva

Maingueneau (1997 p 75) oferece uma siacutentese sobre heterogeneidade enunciativa

concordando que a mostrada incide sobre manifestaccedilotildees expliacutecitas introduzidas no

discurso enquanto a constitutiva natildeo eacute marcada na superfiacutecie do discurso mas

pode ser formulada com o recurso de hipoacuteteses atraveacutes do interdiscurso

recuperaacutevel pelo posicionamento discursivo do enunciador Nesse aspecto o

diaacutelogo entre enunciados anteriormente produzidos resulta nas relaccedilotildees

interdiscursivas ou seja na interaccedilatildeo discursiva entre enunciados

Ainda sobre questotildees do dialogismo outro aspecto a ser pensado eacute o jaacute-dito72 nas

entrelinhas dos discursos e o efeito de intertextualidade que esse fenocircmeno fornece

a um determinado direcionamento do discurso como tambeacutem os significados que

podem ser estabelecidos Em seus postulados sobre a nova retoacuterica Perelman e

Olbrechts-Tytec defendem que o posicionamento assumido por aquele que escreve

conduz o texto agrave determinadas intertextualidades como resultado de um efeito que

gera uma estreita relaccedilatildeo entre ldquoposicionamento memoacuteria intertextual e

investimento em um gecircnerordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 2005 p104)

No dicionaacuterio de anaacutelise do discurso elaborado por Maingueneau e Charaudeau

(2008 p 289) a noccedilatildeo de intertextualidade73 eacute definida como um termo que

apresenta determinadas propriedades Por um lado a intertextualidade se mostra

integrante da constitutividade de qualquer texto Por outro lado a intertextualidade

forma um conjunto de relaccedilotildees expliacutecitas ou impliacutecitas entre os textos em forma de

intertexto Portanto o intertexto pode ser recuperaacutevel pelo fenocircmeno da citaccedilatildeo

72

Charaudeau e Maingueneau (2008 p 401) definem que a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo pode ser entendida como a marca no enunciado de um discurso anterior jaacute-dito e esta noccedilatildeo estaacute intimamente ligada agrave de interdiscurso 73

Charaudeau e Maingueneau (2008 p288) elaboraram o conceito de intertextualidade citando as contribuiccedilotildees de Kristeva sobre a noccedilatildeo de intertextualidade para estudo da literatura Esses autores ainda acrescentaram tambeacutem algumas consideraccedilotildees de Genette ao pensar a intertextualidade como um dos aspectos da transtextualidade relacionando o papel da intertextualidade agrave ideia da presenccedila de um texto em outro por meio da citaccedilatildeo alusatildeo e outras formas

74

mas em certas situaccedilotildees ele eacute anocircnimo agraves vezes tornando-se impossiacutevel a

recuperaccedilatildeo de sua fonte se natildeo for indicada por aquele que enuncia Para

sintetizar essas noccedilotildees Maingueneau e Charaudeau (2008 p 289) conceituam o

intertexto como ldquoo conjunto de fragmentos convocados (citaccedilotildees alusotildees

paraacutefrases) em um corpus dadordquo A intertextualidade funciona como em ldquosistema de

regras impliacutecitas que subjaz a esse intertextordquo Os efeitos da intertextualidade podem

ser vistos como resultado do dialogismo no discurso Pode-se dizer que essas

regras satildeo ditadas de acordo com o posicionamento do enunciador no discurso A

ocorrecircncia de citaccedilotildees exemplos e metaacuteforas tem um efeito de intertextualidade na

construccedilatildeo discursiva das epiacutestolas de Secircneca e Paulo determinando os sentidos

captados pela presenccedila de outros discursos auxiliando tambeacutem na identificaccedilatildeo de

posicionamentos dos enunciadores em seus discursos

Os recursos retoacutericos de argumentaccedilatildeo os temas desenvolvidos com seus

desdobramentos pelo uso dos toacutepoi como manifestaccedilotildees da linguagem satildeo

identificados nas estrateacutegias retoacutericas no uso do gecircnero epistolar O jaacute-dito promove

o dialogismo da linguagem pois atraveacutes de citaccedilotildees de maacuteximas versos exemplos

e metaacuteforas ecos de enunciados pertencentes a outro tempo e outro lugar se

atualizam na enunciaccedilatildeo com diferentes funccedilotildees segundo o posicionamento

discursivo do enunciador

Pode-se considerar tambeacutem que a heterogeneidade enunciativa contribui para o

exerciacutecio da construccedilatildeo do discurso verdadeiro A partir dos postulados de Foucault

compreende-se que a captaccedilatildeo do jaacute dito por meio das leituras e anotaccedilotildees

fundamenta as convicccedilotildees que depreendem de outros discursos A apreensatildeo do

discurso verdadeiro e seu efeito na constituiccedilatildeo da subjetividade funcionam tambeacutem

como direcionamento do falar sincero e franco designado como parresiacutea

33 PARRESIacuteA E RETOacuteRICA

Ao retornar ao assunto do uso da parresiacutea Foucault (2010b p 10) apresentou uma

siacutentese do contexto histoacuterico em que circulava o uso do termo grego parresiacutea

(παρρησία) que em sua origem significava ldquodizer tudordquo Esse termo aparece em

Demoacutestenes na Primeira Fiacutelipica (I1) em que ele diz que vai expor seu pensamento

sem nada dissimular Contudo Foucault menciona que na Greacutecia antiga a palavra

parresiacutea tambeacutem era usada com intuito pejorativo no sentido de se dizer qualquer

75

coisa que passasse pela cabeccedila Nos textos de Platatildeo Foucault (2010b p 189)

identificou a parresiacutea como ldquoaccedilatildeo a exercer natildeo apenas no corpo da cidade mas

sobre a alma dos indiviacuteduos seja a alma do priacutencipe seja a alma dos cidadatildeosrdquo

Nesse contexto a parresiacutea eacute identificada como uma questatildeo da accedilatildeo filosoacutefica o

que Foucault designou de parresiacutea filosoacutefica74

Na ministraccedilatildeo das aulas do curso de 1983 Foucault (2010b p 64) argumenta que

parresiacutea como procedimento ou maneira de dizer as coisas efetivamente usa os

recursos da retoacuterica antiga que por sua vez integra os modos de organizaccedilatildeo do

discurso Nota-se entatildeo que a parresiacutea pode ser identificada pelo modo como o

efeito de seu proacuteprio dizer a verdade pode produzir no locutor em sua relaccedilatildeo

comunicativa com o interlocutor Foucault ainda expotildee que ldquoo parresiasta eacute o

indiviacuteduo veriacutedico ou seja aquele que tem a coragem de arriscar dizer a verdade

num pacto consigo mesmo precisamente na medida em que eacute o enunciador da

verdaderdquo (FOUCAULT 2010b p 64)75

O conceito de parresiacutea como falar franco e verdadeiro contribuiu para a anaacutelise de

Foucault (2011) quando este buscou identificar as estruturas que sustentam

discursos que se datildeo ou que satildeo recebidos como verdadeiros Por isso eacute preciso

analisar as condiccedilotildees de como o sujeito se representa para si e para os outros como

um possuidor um enunciador da verdade De acordo com a parresiacutea o discurso

verdadeiro emerge na relaccedilatildeo do sujeito com seu exterior Por um lado essa

condiccedilatildeo do falar franco e honesto torna o enunciador corajoso como algueacutem que

natildeo recua diante de enfrentamentos Por outro lado a parresiacutea indica os princiacutepios

necessaacuterios para o discurso verdadeiro coincidir com o sujeito que fala

74

Para Foucault (2010b p 296) ldquofilosofar se ocupar de si mesmo exortar os outros a se ocupar deles mesmos e isso escrutando testando provando o que sabem e o que natildeo sabem os outros eacute nisso que consiste a parresiacutea filosoacutefica que se identifica natildeo simplesmente com um modo de discurso com uma teacutecnica de discurso mas com a proacutepria vidardquo 75

Sobre os procedimentos da parresiacutea na enunciaccedilatildeo do discurso verdadeiro Foucault assim argumenta ldquoA anaacutelise da parresiacutea eacute a anaacutelise dessa dramaacutetica do discurso verdadeiro que revela o contrato do sujeito falante consigo mesmo no ato do dizer-a-verdade E creio que poderiacuteamos dessa maneira fazer toda uma anaacutelise da dramaacutetica e das diferentes formas dramaacuteticas do discurso verdadeiro o profeta o adivinho o filoacutesofo o cientista Todos eles quaisquer que sejam efetivamente as determinaccedilotildees sociais que podem definir seu estatuto todos eles de fato empregam uma certa dramaacutetica do discurso verdadeiro isto eacute tecircm uma certa maneira de se vincular como sujeitos agrave verdade do que dizem E eacute claro que eles natildeo se ligam da mesma maneira agrave verdade do que dizem conforme falem como adivinhos conforme falem como profetas conforme falem como filoacutesofos ou conforme falem como cientistas dentro de uma instituiccedilatildeo cientiacutefica Esse modo muito diferente de vinculaccedilatildeo do sujeito agrave proacutepria enunciaccedilatildeo da verdade eacute o que a meu ver abriria o campo para estudos possiacuteveis sobre a dramaacutetica do discurso verdadeirordquo (FOUCAULT 2010b p 66)

76

Esse tema parresiacutea do dizer a verdade instigou a curiosidade de Foucault

incentivando-o a retomaacute-lo em suas aulas no Collegravege de France em 1983 e

posteriormente no uacuteltimo curso oferecido em 1984 Foucault relembrou ao seu

puacuteblico ouvinte o seu objetivo em refletir sobre as questotildees sobre sujeito e verdade

Ele insistiu no ponto crucial de seu interesse de pesquisa em natildeo olhar para ldquoo

discurso que poderia dizer a verdade sobre o sujeito mas a do discurso de verdade

que o sujeito eacute capaz de dizer sobre si mesmordquo (FOUCAULT 2010b p5)

Na aula de abertura em fevereiro de 1984 Foucault (2011 p 5) declarou seu

entusiasmo ao descobrir na moral da Antiguidade greco-romana a importacircncia do

princiacutepio ldquoeacute preciso dizer a verdade sobre si mesmordquo Talvez essa seja uma razatildeo

que justifica a recorrecircncia da escrita epistolar naquele periacuteodo que ele analisou

Foucault cita como exemplo a riqueza que se pode obter na busca de fontes nas

epiacutestolas de Secircneca Pliacutenio o Jovem e Marco Aureacutelio Ele tambeacutem menciona a

importacircncia do uso frequente dos cadernos de anotaccedilotildees e lamentou o fato da

ausecircncia de publicaccedilatildeo e registro daquele tipo de material tatildeo valioso que poderia

servir de fonte para anaacutelises atuais

A viagem por textos da Antiguidade possibilitou a Foucault a identificaccedilatildeo de formas

diferentes do uso do termo parresiacutea Na uacuteltima aula do curso de 1984 ele

apresentou o resultado de um levantamento feito em textos da cultura heleniacutestico-

judaica principalmente os da Septuaginta76 e os de Fiacutelon de Alexandria Como

indica Foucault (2011 p 187) nesses textos parresiacutea toma outra conotaccedilatildeo

significando o relacionamento do homem com Deus Nessa relaccedilatildeo vertical o

homem se abre de forma sincera se oferecendo diante do olhar de Deus

A parresiacutea se situa por assim dizer natildeo mais no eixo (horizontal) das relaccedilotildees do indiviacuteduo com os outros daquele que tecircm a coragem diante dos que se enganam A parresiacutea se situa agora no eixo vertical de uma relaccedilatildeo com Deus onde de um lado a alma eacute transparente e se abre para Deus e em que por outro lado ela se eleva ateacute Ele (FOUCAULT 2011 p 187)

Ligado ao sentido de relaccedilatildeo do homem com Deus nos textos de Fiacutelon de

Alexandria o termo parresiacutea faz referecircncia ao significado de prece Apontando as

semelhanccedilas Foucault (2011 p 287) comenta que ldquoa parresiacutea continua a ser em

76

Foucault (2011 p 287) identifica que na versatildeo da Septuaginta ao traduzir do hebraico para o grego uma expressatildeo no livro de Joacute 2226 faraacutes entatildeo do Todo-Poderoso tuas deliacuteciasrdquo eacute utilizado o verbo parresiaacutezesthai como signifacado dessa expressatildeo no sentido de relaccedilatildeo no contato com Deus de alegria e gozo quando a alma se encontra nessa comunhhatildeo Joacute 22 26 (εἶτα παρρησιασθήσῃ ἔναντι κυρίου ἀναβλέψας εἰς τὸν οὐρανὸν ἱλαρῶς)

77

certo sentido um dizer a verdade mas jaacute natildeo eacute nem mesmo um dizer eacute a abertura

da alma que se manifesta em sua verdade a Deus e leva essa verdade ateacute Elerdquo

Na literatura neotestamentaacuteria situada em torno do primeiro seacuteculo de nossa era a

noccedilatildeo de parresiacutea adquire outros contornos no contexto do preacute-cristianismo

Foucault assim analisa

[] agora o termo parresiacutea interveacutem certo nuacutemero de vezes e com um sentido diferente do que acabamos de ver na tradiccedilatildeo judaico-heleniacutestica diferente tambeacutem eacute claro do que encontramos no uso grego Duas mudanccedilas importantes A primeira eacute que doravante nessa literatura neotestamentaacuteria a parresiacutea natildeo aparece mais como uma modalidade da manifestaccedilatildeo divina Deus natildeo eacute mais o parresiasta que era na versatildeo dos setenta e ateacute certo ponto de Fiacutelon de Alexandria A parresiacutea eacute simplesmente um modo de ser um modo de atividade humana Segunda mudanccedila esse modo humano de atividade comporta ateacute certo ponto em certo contexto e em certas circunstacircncias a conotaccedilatildeo de coragem da ousadia de falar mas eacute tambeacutem uma atitude de coraccedilatildeo uma maneira de ser que natildeo tem necessidade de se manifestar no discurso e na palavra (FOUCAULT 2011 p 289)

Outra marca da parresiacutea neotestamentaacuteria eacute a intensificaccedilatildeo da atitude corajosa dos

apoacutestolos na pregaccedilatildeo do evangelho Pode-se pensar na ideia de coragem na forma

de assumir o discurso de cristatildeo como caracteriacutestica inerente ao apostolado pelo

enfrentamento agraves perseguiccedilotildees naquele momento histoacuterico como mostrado na

narrativa de Lucas ldquoE disse o Senhor em visatildeo a Paulo Natildeo temas mas fala e natildeo

te calesrdquo (Atos 189) Nesse contexto existe uma recuperaccedilatildeo de pontos de

semelhanccedila com a parresiacutea grega principalmente quanto ao uso corajoso da

palavra Foucault aponta o apoacutestolo Paulo como exemplo naquela cena em que ele

se apresentou no areoacutepago em Atenas e discutiu com os gregos apresentando-lhes

o Deus desconhecido conforme narrativa no livro de Atos (1715-34) Aceitando o

desafio de falar publicamente em local que registra a presenccedila de epicuristas e

estoicos Paulo teve a oportunidade de expor o evangelho aos atenienses mas eles

tentaram tirar-lhe a vida Nessa linha de raciociacutenio Foucault (2011 p 290) faz a

seguinte anaacutelise ldquoo fato de Paulo tomar a palavra discutir com os gregos pondo em

risco a proacutepria vida eacute caracterizado como sendo parresiacuteardquo Essas concepccedilotildees de

parresiacutea nas pesquisas de Foucault auxiliam no modo de identificaccedilatildeo de diferenccedilas

no uso do termo mas na essecircncia do significado haacute estreita ligaccedilatildeo com a noccedilatildeo de

verdade no que se refere ao modo de expressatildeo do discurso sem dissimulaccedilatildeo

78

Foucault (2010b p310) avaliou que o sentido original de parresiacutea na antiga Greacutecia

estava mais ligado ao campo da poliacutetica e aos poucos foi se tornando fundamental

no contexto da filosofia em determinados aspectos

Em suma a parresiacutea essa funccedilatildeo que consiste em dizer livre e corajosamente a verdade se desloca pouco a pouco desloca seus acentos e entra cada vez mais no campo do exerciacutecio da filosofia Fique claro mais uma vez que o que eacute a filha da parresiacutea natildeo eacute certamente toda a filosofia natildeo eacute a filosofia desde a sua origem natildeo eacute a filosofia sob todos os seus aspectos mas eacute a filosofia entendida como livre coragem de dizer a verdade e dizendo assim corajosamente a verdade de adquirir ascendecircncia sobre os outros para conduzi-los convenientemente e isso num jogo que deve aceitar de parte do proacuteprio parresiasta o risco que pode chegar ateacute agrave morte (FOUCAULT 2010b p310)

Sua insistecircncia em analisar a parresiacutea na Antiguidade claacutessica permitiu-lhe

identificaacute-la na cultura do Principado romano na esfera da eacutetica interligada agrave moral

Nesse contexto histoacuterico a parresiacutea consistia em se dizer a verdade sem

subterfuacutegios e nem mesmo ornamento retoacuterico que pudesse mascaraacute-la Foucault

confirma essa praacutetica do franco falar usando o exemplo de Secircneca que procura

colocar diante de seu destinataacuterio Luciacutelio certa oposiccedilatildeo entre retoacuterica e oratoacuteria

como vivenciada pelos oradores de seu tempo na praacutetica mais valorizada da

eloquecircncia

Mesmo que eu estivesse discutindo contigo natildeo me iria pocircr na ponta dos peacutes nem fazer grandes gestos nem elevar a voz tudo isso seriam artifiacutecios de oradores enquanto a mim me bastaria comunicar-te o meu pensamento num estilo nem grandiloquente nem vulgar De uma coisa apenas eu te quereria convencer de que sentia tudo que dissesse [] (SEcircNECA Ep

752-3)

Nesta epiacutestola Secircneca natildeo se coloca avesso agrave retoacuterica mas critica a formalidade da

postura dos oradores e a falta de liberdade imposta pelas regras da oratoacuteria Assim

para Secircneca o falar sincero e franco deveria se sobrepor agraves exigecircncias formais da

oratoacuteria Esse posicionamento encontra eco no pensamento de Aristoacuteteles (Ret III

21404b) no sentido de suas consideraccedilotildees sobre a composiccedilatildeo da prosa ao

colocar que os autores natildeo devem mostrar que ldquofalam com artificialidade mas sim

com naturalidade pois este uacuteltimo modo resulta persuasivo o anterior o opostordquo

O proacuteprio Foucault (2010b p 297 2010a p 346)77 reitera os penosos embates

entre filosofia e retoacuterica na Antiguidade e suscita questionamentos que advecircm da

77

Segundo Foucault (2010b p 197) ldquoEm certo sentido o problema filosofiaretoacuterica perpassa toda a obra de Platatildeordquo O que Soacutecrates discute no diaacutelogo Fedro eacute a relaccedilatildeo entre verdade (filosofia) e retoacuterica Foucault (2010b p 301) aponta ldquoEacute aiacute que Soacutecrates desenvolve sua concepccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o discurso e a verdade mostrando como a verdade deve ser natildeo a condiccedilatildeo preacutevia de certo

79

relaccedilatildeo entre parresiacutea e retoacuterica Poreacutem admite que para se obter certos resultados

no discurso direcionado pela parresiacutea torna-se necessaacuterio recorrer-se a elementos

indispensaacuteveis do campo da retoacuterica Mediante essa constataccedilatildeo ele pondera que

natildeo se deve prender agraves regras ou manejos da retoacuterica mas usaacute-la pela diagonal ou

seja aproveitando do seu meacutetodo o que conveacutem ser aplicado no bojo do discurso

movido pela parresiacutea A esse respeito Alexandre Jr faz o seguinte comentaacuterio sobre

o posicionamento de Secircneca em relaccedilatildeo ao uso da retoacuterica

A sua anaacutelise mostra-nos com particular clareza a convicccedilatildeo de que soacute uma retoacuterica conforme a natureza eacute capaz de verbalizar com eficaacutecia e vigor os princiacutepios que a filosofia conceptualiza e os valores que implementa Sem perder de vista o fim real da filosofia Seacuteneca vecirc na retoacuterica o meio necessaacuterio agrave comunicaccedilatildeo da verdade que aquela encarna O que ele defende eacute um estilo amplo fluente e natildeo desprovido de energia um estilo de tal maneira bem conseguido que na aparecircncia se ldquonatildeo mostre trabalhado nem rebuscado em excessordquo Pois como diz na Carta 100 ldquoao filoacutesofo natildeo conveacutem a excessiva preocupaccedilatildeo com o estilordquo Este poreacutem natildeo revela negligecircncia mas naturalidade e seguranccedila Ao inveacutes de nele se encontrar qualquer vulgaridade o estilo filosoacutefico inspira-se numa retoacuterica que mais se adequa ao ritmo da natureza (ALEXANDRE JR 2002 p 4)

Vale destacar na anaacutelise de Alexandre Jr a forma como ele identifica o sentido e

uso da retoacuterica nas epiacutestolas de Secircneca a Lucilio Assim na posiccedilatildeo de filoacutesofo

estoico Secircneca lanccedila matildeo da retoacuterica como recurso na comunicaccedilatildeo do discurso

verdadeiro como efeito de um ethos de verdade

Na busca de identificar pontos comuns de aproximaccedilatildeo entre oratoacuteria e filosofia

Alexandre Jr vislumbra a descoberta de uma possibilidade de encontrar em Ciacutecero

a sustentaccedilatildeo para suas hipoacuteteses

Foi Cicero quem tomou o que viu de melhor nas duas posiccedilotildees para sustentar de forma ecleacutetica e natildeo muito dogmaacutetica a sua proacutepria visatildeo da oratoacuteria e a seguir pintar o seu idiossincraacutetico e surpreendente quadro do orador ideal o quadro do estadista romano que combina eloquecircncia com conhecimento ou saber universal acute[] Cicero promoveu na pratica a uniatildeo da retoacuterica com a filosofia fazendo a filtragem de toda a tradiccedilatildeo retoacuterica e imprimindo-lhe uma forma um conteuacutedo e um estilo marcadamente originais Poderiacuteamos quase dizer que ele representa a siacutentese mais destilada e final das tendecircncias platocircnica e aristoteacutelica isocraacutetica e estoica

modo psicoloacutegica da praacutetica da arte oratoacuteria mas a cada instante aquilo a que esse discurso se relaciona Ele mostra isso primeiro procedendo a uma generalizaccedilatildeo brutal que vai ficar em suspenso durante toda uma parte da discussatildeo e como a retoma e como a realoca Diz ele no fundo o que eacute essa arte da retoacuterica que quer persuadir Pois bem diz ele essa arte da retoacuterica nada mais eacute que uma forma geral de algo que ele chama de psykhagogiacutea diagrave tocircn logocircn (psicagogia pelos discursos) o que quer dizer que a retoacuterica nada mais eacute que uma maneira de conduzir as almas por intermeacutedio dos discursos Por conseguinte o problema que ele vai colocar ele natildeo vai colocar no acircmbito da simples retoacuterica vai colocaacute-lo no acircmbito muito mais geral dessa categoria no interior da qual a retoacuterica se situa ou deveria se situar que eacute a psicagogia (a conduta das almas) diagrave focircn logocircn (pelos discursos)rdquo

80

na sua congeminaccedilatildeo de uma retorica perfeita (ALEXANDRE JR 2005a p 10-11)

Nota-se que Secircneca no seu tempo estava mais voltado para a retoacuterica aplicada ao

texto escrito e natildeo aos discursos requeridos pela oratoacuteria dirigidos a um puacuteblico

ouvinte Pela sua formaccedilatildeo educacional a retoacuterica servia de meacutetodo para

construccedilatildeo do discurso O que Secircneca defendia era uma postura que se aliava agrave de

Ciacutecero em relaccedilatildeo agrave necessidade da retoacuterica na produccedilatildeo do discurso filosoacutefico

Nota-se que no posicionamento de Secircneca e de Paulo a retoacuterica como ornamento

natildeo significa eficaacutecia em seus discursos mas a base da retoacuterica que lhes eacute

conveniente eacute a que contribui para a construccedilatildeo do discurso verdadeiro orientado

pelo ldquofalar francordquo lugar comum que os aproxima

Ao situar alguns aspectos da retoacuterica na Antiguidade claacutessica percebe-se que

alguns pontos contribuem para os estudos atuais O retorno a essas antigas

discussotildees eacute assumido pela nova retoacuterica com a publicaccedilatildeo do tratado da retoacuterica

de Perelman e Olbrechts-Tyteca Na introduccedilatildeo de seu tratado de argumentaccedilatildeo

Perelman e Olbrechts-Tyteca 78 (2005 p 7) destacam a constitutividade da retoacuterica

no discurso reaproveitando algumas ideias dos pensadores claacutessicos As

ponderaccedilotildees desses autores ao pensar o texto escrito como um discurso dirigido a

algueacutem fornecem contribuiccedilotildees relevantes para as pesquisas que se apoiam em

pressupostos teoacutericos da anaacutelise do discurso de base enunciativa Nessa mesma

perspectiva Kennedy (1984 p 9) menciona algumas caracteriacutesticas da retoacuterica na

Antiguidade que se mantiveram como constitutivas do discurso Para este

pesquisador as marcas mais recorrentes que se destacam satildeo as formas de

tratamento dos assuntos o uso de evidecircncias e argumentaccedilatildeo

A releitura da retoacuterica antiga que se efetua atualmente faz emergir em maior ou

menor grau a interligaccedilatildeo entre discurso e sujeito Ao refletir sobre a heranccedila

retoacuterica Amossy expotildee

Sabemos que a histoacuteria da disciplina natildeo se furtou a comentar abundantemente a trilogia aristoteacutelica do logos do ethos e do pathos Dedicamos-nos essencialmente agraves glosas dos conceitos de Aristoacuteteles e

78

A respeito da nova retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p7) assim colocam ldquoO que conservamos da retoacuterica tradicional eacute a ideia mesmo de auditoacuterio que eacute evocada assim que se pensa num discurso Todo discurso se dirige a um auditoacuterio sendo muito frequente esquecer que se daacute o mesmo com todo o escrito Enquanto o discurso eacute concebido em funccedilatildeo direta do auditoacuterio a audiecircncia material de leitores pode levar o escritor a crer que estaacute sozinho no mundo conquanto na verdade seu texto seja sempre condicionado consciente ou inconscientemente por aqueles a quem pretende dirigir-serdquo

81

tambeacutem aos estudos das modificaccedilotildees a que eles foram submetidos pelos textos de Ciacutecero e Quintiliano Um dos pontos que sobressaem dessa confrontaccedilatildeo toca de perto nosso objeto Trata-se de fato de saber se o ethos eacute como pretendia Aristoacuteteles a imagem de si construiacuteda no discurso ou como entendiam os romanos um dado preexistente que se apoia na autoridade individual e institucional do orador (a reputaccedilatildeo de sua famiacutelia seu estatuto social o que se sabe do seu modo de vida etc) Na arte oratoacuteria romana inspirada mais em Isoacutecrates do que em Aristoacuteteles o ethos pertence agrave esfera do caraacuteter (AMOSSY 2005 p 17)

Esses apontamentos de Amossy convergem para uma siacutentese da contribuiccedilatildeo de

pensadores claacutessicos no campo da retoacuterica Em concordacircncia com as ideias desta

autora procura-se destacar as influecircncias da Antiguidade que contribuiacuteram para as

concepccedilotildees atuais de ethos e seu papel fundamental no discurso Nesse aspecto a

anaacutelise do discurso desenvolvida por Maingueneau Amossy entre outros tem a

retoacuterica antiga como ponto de partida

82

4 A ANAacuteLISE DO DISCURSO E SUA RELACcedilAtildeO COM A RETOacuteRICA

A anaacutelise do discurso de base enunciativa toma como apoio alguns pontos da

retoacuterica claacutessica de acordo com as formulaccedilotildees aristoteacutelicas De acordo com a

afirmaccedilatildeo de Maingueneau (2005 p 69) ldquoa noccedilatildeo de ethos pertence agrave tradiccedilatildeo

retoacutericardquo Os estudos da linguagem que apreendem o discurso em sua base

enunciativa contribuem tambeacutem para uma expansatildeo das ideias desenvolvidas por

Perelman e Olbrechts-Tyteca na nova retoacuterica A esse respeito torna-se produtivo

colocar em pauta alguns postulados de Maingueneau que podem contribuir para

uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica desta pesquisa Quanto agraves referecircncias relacionadas ao

fenocircmeno da enunciaccedilatildeo Maingueneau (1997 p41) recorre agraves formulaccedilotildees

teoacutericas de Benveniste afirmando que a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo eacute considerada

como um conjunto formado por um enunciador um destinataacuterio um momento e um

lugar especiacutefico Pensar o discurso como ato enunciativo eacute conceber a noccedilatildeo de

enunciaccedilatildeo como um fenocircmeno da linguagem que coloca os falantes de uma liacutengua

como atores da cena no acontecimento da comunicaccedilatildeo

Maingueneau ao longo de suas produccedilotildees79 ressalta a importacircncia da metaacutefora

teatral por ele mostrada para situar as condiccedilotildees em que eacute possiacutevel a apreensatildeo de

um discurso A cena de enunciaccedilatildeo eacute concebida sob trecircs diferentes formas cena

englobante cena geneacuterica e cenografia As duas primeiras cenas num conjunto

podem ser denominadas de quadro cecircnico o qual estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo

de gecircnero do discurso A cena englobante estaacute relacionada ao tipo de discurso que

pelas suas caracteriacutesticas e formas pode ser engendrado no ato enunciativo Pode-

se definir a que tipo de discurso pertence determinado texto identificando a

finalidade pela qual ele foi produzido As caracteriacutesticas que um texto fornece

servem para localizaacute-lo Mesmo o texto de um simples folheto pode ser apreendido

como discurso publicitaacuterio religioso poliacutetico entre outros Essas consideraccedilotildees

cooperam para o direcionamento desta pesquisa em observar o tipo de discurso que

abriga o gecircnero de discurso epistolar na produccedilatildeo da escrita de Secircneca e Paulo

79

Nas obras de Maingueneau sempre haacute uma retomada dos temas baacutesicos de sua teoria Por esse motivo nas referecircncias expostas neste item do capiacutetulo I natildeo se menciona uma determinada obra desse autor visto que haacute repeticcedilatildeo dos assuntos nas obras subsequentes Nesta pesquisa foram selecionadas as obras que estatildeo mencionadas na bibliografia (1995 1997 2000 2005 2007 2008a 2008b 2012)

83

A respeito da caracteriacutestica englobante na cena enunciativa Maingueneau (2012 p

251) observa que a identificaccedilatildeo do tipo de discurso por si soacute natildeo eacute suficiente na

captaccedilatildeo de um discurso Nesse funcionamento e desenrolar da enunciaccedilatildeo a cena

geneacuterica estaacute na gestatildeo do gecircnero de discurso que com sua especificidade define

a orientaccedilatildeo do discurso Por essa razatildeo Maingueneau (2008a 155) considera

que um gecircnero de discurso delineia o direcionamento da enunciaccedilatildeo constituindo-

se no interior de um tipo de discurso englobante Isso serve para indicar que o

gecircnero epistolar pode manter sua forma protocolar tanto no discurso filosoacutefico

quanto no religioso entre outros No ato enunciativo a cenografia estaacute interligada ao

gecircnero do discurso pois ela se constitui como caracterizaccedilatildeo da cena enunciativa Eacute

na cenografia que se consolida a presenccedila do enunciador e co-enunciador80 como

tambeacutem o momento e lugar que se situam na enunciaccedilatildeo

Os tipos de discursos estatildeo ligados agrave fonte que lhes daacute origem ou seja os tipos de

discursos surgem a partir dos discursos constituintes como sendo os discursos

fundadores identificados como os discursos que constitutivamente se estabelecem

A partir da necessidade de comunicaccedilatildeo da linguagem e o exerciacutecio da praacutetica entre

os falantes estes discursos oferecem estabilidade por meio de sua permanecircncia

como arquivos de manutenccedilatildeo da memoacuteria e da linguagem

41 DISCURSOS CONSTITUINTES

Na conferecircncia de abertura de sua aula inaugural no Collegravege de France em 1971

Foucault desenvolveu o tema A ordem do discurso Em um dos pontos abordados

ele focaliza o fenocircmeno dos discursos que em sua origem ocupam lugares de

fundadores sendo apreendidos como discursos primeiros e que datildeo origem aos

outros Foucault menciona que os discursos primeiros estatildeo na origem de certos

nuacutemeros de atos de fala que os retomam os transformam ou seja ldquoos discursos

que indefinitivamente para aleacutem de sua formulaccedilatildeo satildeo ditos permanecem ditos e

estatildeo ainda por dizerrdquo (FOUCAULT 1996 p 22-24)

80

O termo co-enunciador usado por Maingueneau fortalece a ideia da cooperaccedilatildeo entre os pares na comunicaccedilatildeo O prefixo co serve para demonstrar que o enunciador eacute dependente de uma parceria para que a comunicaccedilatildeo se realize a contento Maingueneau justifica que prefere usar o termo co-enunciador em lugar de destinataacuterio porque identifica o caraacuteter interativo da comunicaccedilatildeo verbal (MAINGUENEAU 2005 p 91 nota 6)

84

O discurso primeiro daacute origem ao comentaacuterio pelo seu estatuto de discurso sempre

retualizaacutevel com possibilidades de significados muacuteltiplos ou mesmo escondidos a

ser revelados Assim o comentaacuterio tem a finalidade de dizer o que estaacute

silenciosamente articulado no texto primeiro Em relaccedilatildeo ao texto o comentaacuterio

permite dizer outra coisa mas com a condiccedilatildeo de que seja esse mesmo texto a ser

dito O novo natildeo estaacute naquilo que eacute dito mas no acontecimento do seu retorno

Maingueneau assimila essa abordagem desenvolvida por Foucault sobre discurso

primeiro e comentaacuterio acrescentando outras concepccedilotildees introduzindo a noccedilatildeo de

discursos constituintes Maingueneau (2012 p 21) propotildee que ldquoos discursos

constituintes satildeo discursos que conferem sentido aos atos da coletividaderdquo Assim

pode considerar-se que o discurso constituinte eacute garantia para a multiplicidade de

gecircneros do discurso O que se depreende deste postulado eacute que a partir do discurso

constituinte outros tipos de discursos se fazem estabelecer

Segundo Maingueneau (2008a p 38) os discursos constituintes possuem um

estatuto singular que daacute suporte a outros discursos natildeo constituintes Por exemplo

os discursos jornaliacutestico e poliacutetico apoiam-se em discursos constituintes81 como o

religioso filosoacutefico literaacuterio ou cientiacutefico Maingueneau (2012 p 63) observa que os

discursos constituintes relacionam-se entre si e nesta inter-relaccedilatildeo um eacute

atrevessado pelo outro Haacute entre estes discursos uma forccedila que os atraem e ao

mesmo tempo os afastam Esta relaccedilatildeo que simultaneamente provoca aproximaccedilatildeo

e afastamento pode ser notada por exemplo entre discurso cientiacutefico e discurso

religioso

Conforme postula Maingueneau (2008b p 201) os discursos constituintes tecircm um

duplo caraacuteter pois satildeo autoconstituintes e heteroconstituintes Sendo

autoconstituinte o discurso se constitui tematizando sua proacutepria constituiccedilatildeo

podendo desempenhar um papel constituinte para outros discursos Como

heteroconstituinte o discurso se constitui mobilizando outros discursos constituintes

81

Maingueneau (2012 p 63) lembra que ldquooutrora o discurso filosoacutefico e o discurso religioso lutaram para saber qual deles estava estabelecido de modo a atribuir um lugar a cada discurso Essa pretensatildeo foi contestada pelos defensores da superioridade do discurso cientiacutefico que se desenvolve afastando a todo instante a ameaccedila do religioso ou do filosoacutefico Maingueneau (2000 p 6) ainda postula que pode-se partir de uma observaccedilatildeo banal quando haacute um debate sobre um problema social solicita-se a opiniatildeo de sujeitos que falam em nome da religiatildeo da ciecircncia da filosofia Tem-se com efeito a impressatildeo de que os discursos dos quais eles satildeo porta-vozes satildeo de alguma forma discursos uacuteltimos para aleacutem dos quais natildeo haacute senatildeo o indiziacutevel de que eles se confrontam com o Absoluto

85

na realizaccedilatildeo de seu proacuteprio ato enuncitivo O fenocircmeno heteroconstitutivo do

discurso pode ser observado na filosofia estoica pois sua divisatildeo tripartida em

fiacutesica loacutegica e eacutetica promove sua relaccedilatildeo com o discurso religioso Algra (2009

p189) afirma que a teologia era parte integrante da fiacutesica estoica pois os

postulados sobre destino e providecircncia estatildeo interligados agrave concepccedilatildeo de deus no

estoicismo Conforme observaccedilatildeo de Algra (2009 p 193) na relaccedilatildeo do estoicismo

com o campo religioso tanto a criacutetica quanto a apropriaccedilatildeo das tradiccedilotildees religiosas

reaparecem nos textos estoicos da era imperial romana

Secircneca procura instruir Luciacutelio a respeito do objetivo e papel da filosofia frente agraves

concepccedilotildees religiosas que por ela estatildeo atravessadas

A toda hora nos vemos em inuacutemeras situaccedilotildees em que carecemos de um conselho pois eacute a filosofia que no-lo pode dar Haveraacute quem diga De que me vale a filosofia se existe o destino De que me serve ela se haacute um deus que tudo dirige De que me vale ela se tudo obedece ao acaso De fato tatildeo impossiacutevel eacute alterar o que estaacute predeterminado como tomar providecircncias em relaccedilatildeo ao que eacute incerto pois ou as minhas decisotildees jaacute foram antecipadas por um deus que me indicou como agir ou entatildeo eacute a fortuna que nada deixa entregue ao meu arbiacutetrio Qualquer que seja caro Luciacutelio o valor destes argumentos e mesmo que sejam todos vaacutelidos devemos praticar a filosofia Quer nos determine a lei inexoraacutevel do destino quer algum deus moderador do universo ordene todos os acontecimentos quer seja o acaso que desordenadamente empurre aos baldotildees o curso da vida humana a filosofia deveraacute proteger-nos Ela nos incitaraacute a obedecer espontaneamente agrave divindade a resistir a peacute firme agrave fortuna ela nos ensinaraacute a seguir agrave divindade ou a suportar o acaso (SEcircNECA Ep 16 5-

6)

Esta convicccedilatildeo de Secircneca a respeito do valor da filosofia e sua contribuiccedilatildeo na

instruccedilatildeo do modo de agir permite essa parceria entre filosofia e religiatildeo Neste

contexto ldquoa filosofia natildeo consiste em palavras mas em accedilotildeesrdquo (Ep 163) Eacute nessa

perspectiva que marcadamente na Patriacutestica a religiatildeo eacute atravessada pela filosofia

Agostinho na obra Cidade de Deus (VIII I-XI) procura desenvolver sua teologia

partindo de concepccedilotildees filosoacuteficas de vaacuterias correntes declarando sua preferecircncia

pelo platonismo em vista de uma aproximaccedilatildeo mais estreita das ideias82

82

Na obra Cidade de Deus (VIII XI) Agostinho faz algumas indagaccedilotildees ldquoAlguns que nos estatildeo unidos pela graccedila de Cristo admiram-se quando lecircem ou ouvem dizer que Platatildeo teve de Deus concepccedilotildees que reconhecem estatildeo em estreita concordacircncia com a verdade da nossa religiatildeo Por isso alguns tecircm pensado que tendo ido Platatildeo ao Egipto poderia ter ouvido Jeremias ou lido os seus escritos profeacuteticos durante a viagem Eu mesmo consignei esta opiniatildeo em alguns dos meus livros Mas um caacutelculo mais apurado das datas tais como se conteacutem na histoacuteria cronoloacutegica mostra que Platatildeo nasceu cerca de cem anos depois da eacutepoca em que Jeremias profetizou Com efeito ele viveu oitenta anos ora do ano da sua morte ateacute agravequele em que Ptolomeu rei do Egipto pediu agrave Judeia os livros dos profetas hebreus para os mandar traduzir para seu uso por setenta hebreus que tambeacutem conheciam o grego passaram--se cerca de sessenta Portanto Platatildeo natildeo pocircde no decurso

86

A partir dessa ideia de interaccedilatildeo entre discursos constituintes Maingueneau

sustenta que o ato enunciativo eacute o gestor em potencial que favorece a circulaccedilatildeo do

discurso constituinte

O discurso constituinte natildeo eacute um simples vetor de ideacuteias ele articula atraveacutes do dispositivo enunciativo textualidade e espaccedilo institucional Ele investe na instituiccedilatildeo que o torna possiacutevel legitimando (ou deslegitimando) o universo social onde ele se inscreve Haacute constituiccedilatildeo precisamente na medida em que o dispositivo enunciativo funda de maneira por assim dizer performativa sua proacutepria possibilidade fazendo o possiacutevel para parecer que ele extrai essa legitimidade de uma Fonte da qual ele seria a encarnaccedilatildeo (o Verbo revelado a Natureza a Razatildeo a Lei) Esse processo se desenrola em trecircs registros - O discurso mostra sua cenografia a representaccedilatildeo que ele constroacutei de sua proacutepria situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo - A mobilizaccedilatildeo de um coacutedigo de linguagem lhe permite validar sua autoridade jogando com a diversidade irredutiacutevel das liacutenguas e das zonas e registros de liacutenguas -Atraveacutes de sua voz ele confere a sua instacircncia enunciadora um corpo fixando assim o ethos associado a sua cenografia e a seu coacutedigo de

linguagem (MAINGUENEAU 2000 p10)

Os trecircs elementos cenografia coacutedigo de linguagem e ethos estatildeo imbricados na

articulaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo apoiando-se no gecircnero de discurso que se dirige agraves

comunidades discursivas de base e sustentaccedilatildeo aos discursos constituintes nos

quais estatildeo inseridas

42 GEcircNERO DO DISCURSO

As questotildees sobre a relaccedilatildeo entre gecircnero do discurso e linguagem refletem

preocupaccedilotildees nas discussotildees desse tema Entre os pesquisadores se destaca

Braund (2001 p 258) enfatizando que o termo gecircnero usado na identificaccedilatildeo de

forma de determinadas construccedilotildees literaacuterias tem histoacuteria recente em relaccedilatildeo agrave

Antiguidade Essa autora destaca a preocupaccedilatildeo de classificaccedilatildeo dos tipos de

literatura praticados na Antiguidade claacutessica lembrando o exemplo de Quintiliano

em suas discussotildees sobre as formas literaacuterias que deveriam compor o arsenal de

leitura do orador Braund (2001 p 261) entatildeo interroga ldquocomo foi formada essa

ideia de gecircnero que circula em nossa atualidaderdquo Para essa autora as discussotildees

sobre gecircneros literaacuterios evidenciam uma seacuterie de problemas que demonstram

dificuldades de encaixamento de uma obra na especificidade de um gecircnero

determinado Pode-se pensar que as questotildees levantadas por Braund sobre

da sua viagem nem ver Jeremias morto desde haacute muito tempo nem ler as suas Escrituras ainda natildeo traduzidas para grego liacutengua em que era exiacutemio A menos talvez que apaixonado estudioso como era tenha delas tido conhecimento por inteacuterpretes como aconteceu com as egiacutepcias mdash sem se tratar duma traduccedilatildeo escrita (insigne favor que diz-se mereceu Ptolomeu ele que pelo poder da sua realeza tambeacutem podia inspirar algum temor) mas sem duacutevida que conseguiu com as suas conversaccedilotildees tomar conhecimento na medida do possiacutevel do seu conteuacutedordquo

87

gecircneros literaacuterios podem ser aplicadas tambeacutem aos demais tipos de gecircneros pois

desde a Antiguidade natildeo havia criteacuterios baacutesicos no campo da retoacuterica para a

concepccedilatildeo do que na atualidade eacute chamado de gecircnero do discurso

Com base em sua anaacutelise da obra Institutio Oratoria Rezende (2009) argumenta

que a noccedilatildeo de literatura na Antiguidade se vincula a uma instituiccedilatildeo retoacuterica

definindo o modo de divulgaccedilatildeo dos discursos A partir de Quintiliano Rezende

(2009 p 67) expotildee que o termo literatura ldquorepresenta o conjunto de saberes que

permitiam as vaacuterias formas de acesso agrave obra escrita muito aleacutem portanto do que

representaria um acervo da produccedilatildeo poeacutetica latinardquo Rezende aponta que

Quintiliano (Inst Or X 1 4) defende que literatura eacute o correspondente latino para o

vocaacutebulo gramaacutetica83 de origem grega Nota-se que os termos literatura e

gramaacutetica como tratados na retoacuterica antiga natildeo satildeo equivalentes aos seus

significados na atualidade

Como salienta Alexandre Jr (2005 p 38) Aristoacuteteles na obra Retoacuterica acrescenta

os modos deliberativo e o epidiacutetico como produccedilatildeo retoacuterica de discursos pois ateacute

entatildeo os retoacutericos se atentavam especialmente ao discurso judicial ou forense As

caracteriacutesticas do discurso deliberativo como exortaccedilotildees e dissuasotildees que visam

mostrar as vantagens e desvantagens de uma determinada accedilatildeo podem ser

identificadas na construccedilatildeo do discurso nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

Poreacutem natildeo havia uma classificaccedilatildeo de gecircneros que se encaixasse nesse modo de

construccedilatildeo do discurso e nem mesmo o uso da terminologia gecircnero para essa

situaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo da linguagem Rezende (2009 p 86) observa que

Quintiliano fazia uso do termo gecircnero (geneus)84 com uma variedade extensa de

aplicaccedilotildees natildeo definindo exatamente um uso especiacutefico

Na obra Retoacuterica a Herecircnio (I 45) aparece o uso do termo ldquogecircnerordquo como uma

forma voltada para uma orientaccedilatildeo da organizaccedilatildeo dos discursos Assim eacute notoacuterio

83

Rezende (2009 p71) cita e traduz as colocaccedilotildees de Quintiliano sobre literatura e gramaacutetica Nos ipsam nunc uolumus significare substantiam ut grammatice litteratura est non litteratrix quem ad modum oratrix nec litteratoria quem ad modum oratoria uerum id in rhetorice non fit (Queremos agora fazer valer o significado da proacutepria substacircncia de tal forma que gramaacutetica eacute literatura mas natildeo literatrix como se poderia formar oratrix nem mesmo literatoria como se fosse formada tal qual oratoacuteria Em verdade nenhuma das duas derivaccedilotildees eacute possiacutevel para retoacuterica (Inst Or II 14 4) 84

A palavra genus que traduzimos entre outras coisas por gecircnero eacute de uma abrangecircncia semacircntica muito grande e por isso de largo emprego Na Institutio por exemplo genus aparece aproximadamente 500 vezes com os mais diferentes sentidos o que torna difiacutecil localizar com maior precisatildeo no emprego dessa palavra a significaccedilatildeo de um conceito mais estrito (REZENDE 2009 p 86)

88

observar como era fundamental a identificaccedilatildeo do gecircnero na construccedilatildeo do texto

ldquoDa causa eacute preciso considerar seu gecircnero para que possamos fazer o exoacuterdio com

mais facilidaderdquo O autor ainda acrescenta que ldquoo gecircnero entatildeo pode ser

caracterizado como escolha da postura do orador honesto torpe duacutebio e humilderdquo

Nessa abordagem nota-se a necessidade da definiccedilatildeo de um gecircnero como

direcionador do discurso mas natildeo havia um modo de determinar a identificaccedilatildeo

designaccedilatildeo ou classificaccedilatildeo de um discurso de acordo com as caracteriacutesticas de

sua proacutepria constitutividade Por exemplo no campo epistolografia sabe-se da

ocorrecircncia de formas variadas de correspondecircncia mas natildeo haacute registro de estudos

na retoacuterica latina que dessem atenccedilatildeo a esse tipo de escrita As formulaccedilotildees sobre

o estilo na retoacuterica na obra de Demeacutetrio de Faleros (Sobre o estilo IV 234)

fornecem alguns questionamentos sobre a epistolografia Determinadas formas de

correspondecircncia circulavam desde a implantaccedilatildeo da escrita como meio de

comunicaccedilatildeo entre pessoas separadas pela distacircncia Demeacutetrio aponta certas

caracteriacutesticas e funccedilotildees da escrita de epiacutestolas por ele citadas mas natildeo especifica

uma classificaccedilatildeo formal para cada tipo

Outra abordagem que se destaca no enfoque da noccedilatildeo de gecircnero na Antiguidade eacute

apresentada por Cairns (2010 p 5-6) que resume tal noccedilatildeo como classificaccedilatildeo em

termos de forma literaacuteria como poeacutetica Compreende-se que a identificaccedilatildeo de

certos elementos primaacuterios presentes numa determinada obra contribuem para

explicitar o tipo de gecircnero em evidecircncia Na Antiguidade o reconhecimento de tais

elementos na obra tornava possiacutevel a identificaccedilatildeo do suposto gecircnero poeacutetico Aleacutem

dos elementos primaacuterios determinantes tambeacutem eram valorizados os elementos

secundaacuterios Cairns (2010 p 6) faz referecircncia a esses elementos secundaacuterios como

sendo os toacutepoi Este autor salienta que os recursos que permitiam lanccedilar matildeo de

toacutepoi favoreciam a identificaccedilatildeo de lugares comuns e a esses se recorria de

diferentes formas na ocorrecircncia de um mesmo gecircnero Mas vale ressaltar que os

elementos primaacuterios eram portadores das caracteriacutesticas fundamentais de um

gecircnero Portanto os mesmos toacutepoi poderiam ser encontrados em diferentes

formatos de gecircneros ou entatildeo aparecer em um mesmo tipo de gecircnero de forma

variada da elaboraccedilatildeo mas mantendo a caracteriacutestica central do tema pretendido

Observa-se entatildeo que na Antiguidade os discursos se organizavam de acordo com

as instruccedilotildees da retoacuterica e da poeacutetica de forma interligada ou seja a retoacuterica era o

89

ponto central de fornecimento de ensinamentos tanto no campo da prosa quanto no

da poesia de modo integrado Na prosa os discursos eram deliberativos epidiacutedico

ou judiciaacuterio de acordo com as delimitaccedilotildees da retoacuterica Na poeacutetica a noccedilatildeo de

gecircnero era vinculada ao modo e forma de produzir a arte da poesia que seguia

modelos como fonte de um lugar comum Na obra Institutio Oratoria (II 4 1-4)

Quintiliano expotildee sobre os objetivos das instruccedilotildees da retoacuterica abordando o valor

das diferentes formas de narrativas no processo da composiccedilatildeo do discurso Satildeo

apontados trecircs tipos narrativa ficcional para uso da construccedilatildeo de trageacutedias e

comeacutedias narrativa realiacutestica que guarda semelhanccedila com a vida cotidiana como

explorado pela comeacutedia narrativa histoacuterica que representa a exposiccedilatildeo de

acontecimentos e fatos Assim os estudos retoacutericos favoreciam o campo da

literatura pelo uso da construccedilatildeo das narrativas poeacuteticas

Kennedy (1994 p 201) menciona que no iniacutecio da era augustana na literatura latina

identifica-se a influecircncia de exerciacutecios em composiccedilatildeo os quais se tornavam como

ferramentas para construccedilatildeo de gecircneros literaacuterios Kennedy (1994 p 2002) ressalta

que a repercussatildeo dos ensinos de composiccedilatildeo e a praacutetica dos exerciacutecios85 nas

escolas de retoacuterica eacute notada nas obras de Oviacutedio em especial na Metamorfoses

Nesta obra identifica-se o desenvlvimento de narrativas pelo uso de mitos

personificaccedilatildeo comparaccedilatildeo e outras caracteriacutesticas A obra de Oviacutedio eacute uma mostra

de como o uso de exerciacutecios e composiccedilatildeo era produtivo na criaccedilatildeo poeacutetica sem o

compromisso restrito de seguir modelos anteriores que se enquadrassem em um

determinado padratildeo

A partir da Antiguidade avanccedilos nos estudos no campo da linguagem se sucederam

e as questotildees sobre gecircnero tornaram-se relevantes nas pesquisas Bakhtin (2006 p

283) sustenta ldquoOs gecircneros do discurso organizam o nosso discurso quase da

mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos

a moldar o nosso discurso em formas de gecircnerordquo Seguindo ainda a abordagem de

Bahktin (2006 p286) sobre gecircnero do discurso nota-se que ldquoa concepccedilatildeo sobre a

forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado gecircnero do discurso

guia-nos no processo de nosso discursordquo o que significa dizer que a escolha de um

determinado gecircnero implica certas normas a ele vinculadas

85

Kennedy (1994 p 202) menciona que nas escolas de gramaacutetica e retoacuterica os exerciacutecios para preparaccedilatildeo de composiccedilatildeo eram chamados de progymnasmata e representavam a base para a declamaccedilatildeo como estaacutegio avanccedilado nas escolas de retoacuterica

90

Quanto ao uso das palavras em um determinado gecircnero Bakhtin (2006 p 293)

indica que dada palavra costuma funcionar de acordo com o gecircnero que a sustenta

pois ldquoeacute o eco da totalidade do gecircnero que ecoa na palavrardquo As palavras adquirem

expressividade no interior do discurso em funccedilatildeo das caracteriacutesticas de um gecircnero e

recebem os sentidos que o proacuteprio gecircnero estabelece Esta eacute uma razatildeo para o

funcionamento da polissemia na linguagem pois um mesmo termo pode variar de

sentido de acordo com o gecircnero de discurso que o abriga

Com base nas contribuiccedilotildees de Bakhtin os postulados desenvolvidos por

Maingueneau (2008 p 116) apontam que na enunciaccedilatildeo a cena geneacuterica eacute definida

pelo proacuteprio gecircnero sendo parte de um contexto em que os papeacuteis dos parceiros e

as finalidades da comunicaccedilatildeo satildeo definidos Pode-se considerar que a cena

enunciativa se estabelece em inteira relaccedilatildeo com o gecircnero do discurso pois a cada

gecircnero associam-se momentos e lugares especiacuteficos de enunciaccedilatildeo e um ritual

apropriado Desse modo os falantes aprendem a moldar a fala de acordo com as

formas do gecircnero e na comunicaccedilatildeo com o outro a identificar o gecircnero que se

estabelece na interaccedilatildeo

A identificaccedilatildeo do gecircnero na cena enunciativa eacute fundamental no estabelecimento da

compreensatildeo do texto Partindo desse princiacutepio toma-se como base no

desenvolvimento desta tese a concepccedilatildeo de gecircnero adotada pela anaacutelise do

discurso de base enunciativa Assim o gecircnero epistolograacutefico identificado na

produccedilatildeo de Secircneca e de Paulo torna-se o elemento de base para a investigaccedilatildeo

que interliga esses dois autores Vale destacar a importacircncia desse gecircnero no

primeiro seacuteculo de nossa era observando a ocorrecircncia de seu uso de acordo com

as conveniecircncias de cada autor Tambeacutem eacute relevante a identificaccedilatildeo do contexto

sociocultural que serve de base e fundamentaccedilatildeo para a produccedilatildeo da escrita

epistolar naquele momento

Na cultura heleniacutestica percebe-se certa flexibilidade no modo da escrita epistolar o

que torna possiacutevel a identificaccedilatildeo de diferentes escolhas na produccedilatildeo da

epistolografia resultando na diversidade de opccedilotildees do formato protocolar nas

variaccedilotildees da produccedilatildeo textual fatos esses que contribuem para ampliaccedilatildeo de

classificaccedilatildeo do proacuteprio gecircnero epistolar Pode ser observado que o uso do gecircnero

epistolar em Secircneca e Paulo apresenta caracteriacutesticas especiacuteficas de acordo com

os propoacutesitos que cada remetente focaliza para alcanccedilar seu destinataacuterio Por outro

91

vieacutes nota-se que permanece uma estrutura baacutesica que define e identifica o gecircnero

epistolar As epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio contecircm a saudaccedilatildeo breve Seneca Lucilio

suo salutem86 e a despedida Vale As de Paulo apresentam remetente e

destinataacuterio com saudaccedilotildees mais extensas e a despedida com recomendaccedilotildees Os

objetivos de Secircneca e de Paulo ao recorrer ao gecircnero epistolograacutefico direcionam

seus interesses ligados aos discursos constituintes que norteiam suas proacuteprias

escolhas

Essas questotildees apontadas satildeo destacadas logo a seguir nas discussotildees sobre a

inter-relaccedilatildeo entre gecircnero do discurso cenografia e ethos como base para a

constituiccedilatildeo enunciativa do discurso nas produccedilotildees das epiacutestolas de Paulo e de

Secircneca

43 CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO

A noccedilatildeo de cenografia eacute desenvolvida por Maingueneau (2008 p115) a partir de um

quadro teoacuterico que se insere em uma base enunciativa Para ele o termo cenografia

possui um conteuacutedo preciso diante do fenocircmeno denominado cena de enunciaccedilatildeo

de um texto O termo cenografia comporta radical grafia que no dizer de

Maingueneau (2012 p 253) ldquoremete a um processo fundador a inscriccedilatildeo

legitimadora de um texto em sua dupla relaccedilatildeo com a memoacuteria de uma enunciaccedilatildeo

que se situa na filiaccedilatildeo de outras enunciaccedilotildees e que reivindica certo tipo de

reempregordquo

No desenvolvimento de seus postulados como jaacute mencionado na p 82

Maingueneau fundamenta o conceito de enunciaccedilatildeo com base em Benveniste que

concebe a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo a partir dos trecircs elementos que compotildeem a

decircixis linguiacutestica EUTU ndash AQUI ndash AGORA Em analogia a este triacircngulo decircitico

linguiacutestico Maingueneau (1995 p 126) introduz o termo decircixis discursiva para

identificaccedilatildeo de locutor e destinataacuterio discursivos assim como a cronografia

(momento) e topografia (lugar) discursivos Com essa opccedilatildeo Maingueneau (1997

p42) aponta que a decircixis discursiva exerce um papel de acesso inicial agrave cenografia

a partir de um determinado posicionamento discursivo Na construccedilatildeo da cenografia 86

A saudaccedilatildeo e a despedida satildeo colocadas respectivamente no iniacutecio e fim de todas as epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio mas o tradutor Segurado e Campos apenas registra a despedida no final da primeira epiacutestola colocando em nota que no original vale eacute despedida padratildeo em todas as epiacutestolas A saudaccedilatildeo eacute uma forma bem simplificada de Secircneca ao desejar sauacutede a Luciacutelio cumprindo o modo protocolar da escrita romana de epiacutestola

92

as cenas validadas87 podem funcionar como enunciaccedilotildees anteriores das quais a

decircixis atual retira parte de sua legitimidade Quanto agraves cenas validadas na

composiccedilatildeo da cenografia Miangueneau (1997 p45) enfatiza que ldquolonge de ser

simplesmente um aparato retoacuterico esses processos de identificaccedilatildeo desempenham

um papel crucial no exerciacutecio da discursividaderdquo

A partir da noccedilatildeo de cenografia discursiva nota-se que as marcas empiacutericas da

decircixis linguiacutestica estabelecem seu lugar pontual na identificaccedilatildeo dos atores da

enunciaccedilatildeo em contexto espaccedilo-temporal As marcas linguiacutesticas de pessoa tempo

e lugar no discurso definem o ponto de partida do qual o leitor se apropria como

base para construccedilatildeo de sentidos Progressivamente o co-enunciador vai captando

a forma textual dos enunciados identificando certo distanciamento entre empiacuterico e

discursivo na linearidade do discurso se apropriando do fenocircmeno da discursividade

que a enunciaccedilatildeo possibilita

Maingueneau (2008a p 115-118) reafirma que a cena de enunciaccedilatildeo de um texto

associa trecircs cenas de fala A primeira trata da cena englobante sendo a que

caracteriza o tipo de discurso (literaacuterio poliacutetico religioso filosoacutefico) Nas epiacutestolas de

Secircneca o tipo de discurso que caracteriza a cena englobante eacute identificado como

discurso filosoacutefico Nas epiacutestolas de Paulo a cena englobante eacute associada ao

discurso religioso A segunda cena geneacuterica confronta o gecircnero de discurso que na

produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo eacute definido como gecircnero epistolar como eacute

tratado neste trabalho A terceira cena eacute a cenografia que se constitui na

enunciaccedilatildeo de acordo com o gecircnero do discurso e esta natildeo eacute imposta nem pelo tipo

de discurso e nem pelo gecircnero mas eacute instituiacuteda pelo proacuteprio discurso A cenografia

valida a enunciaccedilatildeo na forma linguiacutestica de conduccedilatildeo do discurso e tambeacutem eacute

confirmada por ela no transcorrer do ato enunciativo O leitor eacute capaz de identificar

a cenografia instaurada jaacute no iniacutecio do texto e no desenrolar da enunciaccedilatildeo torna-se

mais evidente sua compreensatildeo de que aquela eacute a cenografia que foi mobilizada

para fornecer o encaminhamento discursivo ao gecircnero do discurso

87

Na obra Novas Tendecircncias em Anaacutelise do Discurso Maingueneau (1997 p 42) faz uso do termo ldquodecircixis fundadorardquo no sentido de captaccedilatildeo de uma enunciaccedilatildeo anterior que se institui a favor da decircixis atual Nas obras que se seguiram Maingueneau usou o termo cenas validadas em lugar de decircixis fundadora Maingueneau (2012 p 255-256) expotildee que a cena de enunciaccedilatildeo validada pode se mostrar atraveacutes de citaccedilotildees menccedilotildees a outro texto marcas no proacuteprio texto que revindicam cenas de fala em outras enunciaccedilotildees antecedentes

93

A captaccedilatildeo da discursividade favorece a apreensatildeo do ethos pelo processo em que

a enunciaccedilatildeo se autolegitima ao instituir um enunciador e um co-enunciador de

acordo com um conteuacutedo desenvolvido no proacuteprio texto Ao enunciar o locutor

constroacutei sua proacutepria imagem em funccedilatildeo da que ele constroacutei do leitor e nesse

aspecto o enunciador se apropria de representaccedilotildees sociais valorizadas pelos seus

interlocutores Charaudeau (2006 p 115) observa que ldquoo ethos relaciona-se ao

cruzamento de olhares olhar do outro sobre aquele que fala olhar daquele que fala

sobre a maneira que ele pensa que o outro o vecircrdquo

Eacute pertinente observar que o uso do gecircnero epistolar nos discursos de Secircneca e

Paulo eacute influenciado pelo modo como se constitui a cenografia na cena enunciativa

contribuindo para caracterizaccedilatildeo de modos distintos de produccedilatildeo do gecircnero

epistolar Nas epiacutestolas de Secircneca a identificaccedilatildeo eacute de uso do gecircnero epistolar

filosoacutefico enquanto nas epiacutestolas de Paulo o discurso eacute designado como gecircnero

epistolar de aconselhamento Partindo da constituiccedilatildeo da cenografia pouco a pouco

o enunciador (remetente) desenvolve sua reflexatildeo a partir do ponto lanccedilado no

introito da epiacutestola com vistas a alcanccedilar seus propoacutesitos na interlocuccedilatildeo com o co-

enunciador (destinataacuterio)

A concepccedilatildeo de ethos nos postulados da anaacutelise do discurso de base enunciativa

toma como ponto de partida a concepccedilatildeo de ecircthos retoacuterico88 na Antiguidade

Habinek (2005 p 82 83) lembra que Isoacutecrates relacionava a eloquecircncia ao caraacuteter

individual do orador sendo fundamental o fato de que persuadir o outro significa

falar com autoridade como evidecircncia do proacuteprio exemplo O homem eloquente eacute

considerado capaz quando examina os problemas com suas proacuteprias habilidades

Mediante esta expectativa da retoacuterica Isoacutecrates enfocava aspectos externos e

internos do caraacuteter do orador Para ele o discurso era o guia das accedilotildees e do

pensamento A partir dessas concepccedilotildees interior e exterior seriam dois lados de

uma mesma moeda sendo indissociaacutevel um bom homem um bom caraacuteter e um

bom orador

88

Na Antiguidade o conceito de ethos retoacuterico eacute ligado agrave oratoacuteria e na nova retoacuterica e anaacutelise do discurso esse conceito eacute aplicado tambeacutem ao discurso em forma textual Eacute nessa perspectiva atual que a categoria de ethos torna-se viaacutevel na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Em anaacutelise do discurso o termo natildeo eacute acentuado por ser abrangente no seu significado incluindo os diferentes sentidos de uso na Antiguidade

94

Na concepccedilatildeo de Ciacutecero (De Oratore I V 17-19) a postura do orador (ecircthos) estaacute

inteiramente atrelada ao tipo de audiecircncia (paacutethos) visto que o orador precisa estar

ligado aos interesses de tal audiecircncia para conseguir alcanccedilaacute-la Assim a

eloquecircncia se constitui em duas dimensotildees a eacutetica que direciona a conduta do

orador a outra dimensatildeo se estabelece no campo da emoccedilatildeo tanto do ecircthos

daquele que se dirige ao ouvinte quanto a reaccedilatildeo que faz despertar nele De acordo

com esse ritual as manifestaccedilotildees corporais do orador causam efeito na recepccedilatildeo do

ouvinte

Quintiliano menciona sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves terminologias ἦθος (ecircthos) e πάθος

(paacutethos) como usadas de forma mais recorrente no grego Ele identificou mores

como equivalente de ecircthos e sugere que alguns aspectos deveriam ser

acrescentados aos significados desses termos usados pelos oradores antigos e os

de seu tempo jaacute que a relaccedilatildeo oradorouvinte deveria ser pensada de forma mais

ampla (Ins Or VI 2 8) Quintiliano expotildee suas ideias acerca de suas concepccedilotildees

de ecircthos e paacutethos e quando ele analisa tal relaccedilatildeo ele pondera que a caracteriacutestica

que os diferencia tem como base o lugar que cada um ocupa no efeito do discurso

na oratoacuteria Entatildeo agrave medida que o orador expotildee o seu discurso tambeacutem marcas de

seu caraacuteter satildeo mostradas diante dos ouvintes Quintiliano defende que o orador

deveria ser afaacutevel e humano dirigindo-se ao puacuteblico de maneira suave e sem

arrogacircncia e que o seu discurso natildeo fosse uma vatilde repeticcedilatildeo mas expressado com

sinceridade Por um lado atraveacutes do ecircthos do orador os ouvintes deveriam ser

tocados em seus sentimentos (paacutethos) de tal forma que o discurso pudesse ser

convincente Por outro lado o orador (ecircthos) deveria demonstrar eacutetica e moderaccedilatildeo

para permitir-lhe agir com sabedoria mediante qualquer tipo de ouvinte Por isso as

instruccedilotildees de Quintiliano natildeo se limitam somente ao discurso juriacutedico mas se

aplicam a qualquer discurso (Inst Or VI 2 9-18)

Foucault (2010a p342) identifica em sua anaacutelise que Quintiliano considerava que a

teacutekhne que integrava a retoacuterica deveria ser indexada agrave verdade Poreacutem a verdade

referida por ele natildeo eacute aquela que estaacute contida no discurso de quem fala mas a

verdade tal como eacute conhecida por aquele que fala Portanto as qualidades de um

ecircthos satildeo determinantes para o efeito de verdade sustentado pelo orador

Foucault (2004) identifica que as consideraccedilotildees sobre subjetivaccedilatildeo do ecircthos

naquele contexto do primeiro seacuteculo dC estavam diretamente ligadas agraves

95

concepccedilotildees do binocircmio filosofia e retoacuterica Foucault (2004 p147) observa que os

conhecimentos selecionados em uma perspectiva da formaccedilatildeo moral seriam

adquiridos e internalizados pelo indiviacuteduo Assim tais conhecimentos poderiam ser

adquiridos atraveacutes dos hupomnecircmata resultante da observaccedilatildeo das leituras das

anotaccedilotildees e a incorporaccedilatildeo do jaacute-dito Todo esse processo contribuiacutea para a

internalizaccedilatildeo daquilo que o sujeito elaborava e apreendia como discurso

verdadeiro Por isso a praacutetica da leitura e da escrita eacute capaz de produzir o ethos e

modificar a maneira de ser de algueacutem Portanto a funccedilatildeo etopoieacutetica pode ser vista

como accedilatildeo e efeito do ethos ou seja a maneira de ser de um indiviacuteduo e o modo de

se mostrar diante do outro demonstrando que subjetividade e ethos satildeo

manifestados retoricamente no discurso

A partir de uma visatildeo da heranccedila retoacuterica como base para as formulaccedilotildees sobre

argumentaccedilatildeo nos estudos atuais Amossy (2005 p 122) coloca em pauta a trilogia

lanccedilada por Aristoacuteteles ecircthos paacutethos e loacutegos Esse retorno ao passado natildeo se

prende exclusivamente agraves contribuiccedilotildees herdadas de Aristoacuteteles mas se volta

tambeacutem para as modificaccedilotildees desses pressupostos nos trabalhos de Ciacutecero e

Quintiliano De acordo com essas concepccedilotildees de Amossy o ethos nos postulados

da anaacutelise do discurso eacute visto de forma que abrange tanto os postulados da retoacuterica

na Antiguidade quanto os desenvolvidos a partir da nova retoacuterica

Os estudos da nova retoacuterica desenvolvidos a partir de Perelman e Olbrechts-Tyteca

fornecem para os estudos de Maingueneau o embasamento para ampliaccedilatildeo da

noccedilatildeo de ethos para o texto escrito concebendo o discurso como uma enunciaccedilatildeo

Desse modo Maingueneau (2005 p 69) defende que o ethos pode ser apreendido

tanto no discurso oral quanto no escrito O texto embora soacute escrito eacute sustentado

por uma lsquovozrsquo e um lsquocorpo enunciantersquo89 e ldquoa noccedilatildeo de ethos aleacutem da persuasatildeo

por argumentos permite de fato refletir sobre o processo mais geral da adesatildeo de

sujeitos a uma certa posiccedilatildeo discursivardquo

89

Ao se referir agrave expressatildeo ldquocorpo enuncianterdquo Maingueneau (2005 p 72-73) lanccedila matildeo do conceito de incorporaccedilatildeo para designar a maneira pela qual o co-enunciador se relaciona com o ethos de um discurso que pode atuar em trecircs registros indissociaacuteveis Por um lado a enunciaccedilatildeo do texto confere uma corporalidade ao fiador cuja figura o leitor deve construir com base em indiacutecios tectuais Por outro lado o co-enunciador incorpora assimila um conjunto de esquemas que correspondem agrave maneira especiacutefica de relacionar-se com o mundo habitando em seu proacuteprio corpo O texto natildeo eacute para ser contemplado ele eacute enunciaccedilatildeo voltada para um co-enunciador que eacute necessaacuterio mobilizar para fazecirc-lo aderir fisicamente a um certo universo de sentido

96

Sintetizando e inter-relacionando as abordagens claacutessicas sobre ecircthos torna-se

pertinente pensar que o ecircthos mostrado pode ser concebido tanto como o ecircthos

apontado por Aristoacuteteles quanto o ecircthos na perspectiva de Ciacutecero No que diz

respeito ao ecircthos defendido por Quintiliano este se identifica com o ethos preacute-

discursivo Maingueneau observa que essas formas de apreensatildeo do ethos podem

se apresentar em uma interligaccedilatildeo entre essas instacircncias

O ethos de um discurso resulta da interaccedilatildeo de diversos fatores ethos preacute-discursivo ethos discursivo (ethos mostrado) mas tambeacutem os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua proacutepria enunciaccedilatildeo (ethos dito) ndash diretamente (ldquoeacute um amigo que lhes falardquo) ou indiretamente por meio de metaacuteforas ou de alusotildees a outras cenas de fala por exemplo A distinccedilatildeo entre ethos dito e mostrado se inscreve nos extremos de uma linha contiacutenua uma vez que eacute impossiacutevel definir uma fronteira niacutetida entre o ldquoditordquo sugerido e o puramente ldquomostradordquo pela enunciaccedilatildeo (MAINGUENEAU 2008a p 71)

O ethos no texto escrito eacute identificado de acordo com sua forma de expressatildeo e

construccedilatildeo do discurso As escolhas do leacutexico das adjetivaccedilotildees dos verbos e das

construccedilotildees sintaacuteticas revelam o enunciador natildeo havendo separaccedilatildeo entre ethos e

coacutedigo de linguagem proacuteprios de uma posiccedilatildeo discursiva que se identifica no

discurso No texto os recursos linguiacutesticos satildeo marcas que propiciam o

reconhecimento do ethos e sua relaccedilatildeo com o leitor-modelo de acordo com uma

imagem preacute-construiacuteda

Nessa abordagem o ethos eacute integrante da cena de enunciaccedilatildeo para aleacutem de seu

papel na instacircncia argumentativa do discurso como o proacuteprio Maingueneau (2005

p69) afirma ldquoAleacutem da persuasatildeo por argumentos a noccedilatildeo de ethos permite de

fato refletir sobre o processo mais geral da adesatildeo de sujeitos a certa posiccedilatildeo

discursivardquo Essas concepccedilotildees de ethos adotadas por Maingueneau servem de

paracircmetro para anaacutelise neste trabalho pois elas conjugam os diferentes sentidos de

ethos como tratados na Antiguidade greco-romana

Essa visatildeo bem sumaacuteria da integraccedilatildeo entre gecircnero do discurso cenografia e ethos

contribui para a apreensatildeo do gecircnero epistolograacutefico nas produccedilotildees dos discursos

de Secircneca e Paulo e o modo da inter-relaccedilatildeo na constituiccedilatildeo da cenografia e ethos

97

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE I

Esta primeira parte cumpre a funccedilatildeo de um embasamento teoacuterico que fornece

sustentaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo desta pesquisa A reuniatildeo de colocaccedilotildees e posiccedilotildees de

diferentes pesquisadores oriunda de colaboraccedilotildees variadas conjunga postulados

de eficaacutecia na Antiguidade e redefiniccedilatildeo na atualidade como sucede nos estudos da

retoacuterica

Foucault representa um ponto de interligaccedilatildeo com a Antiguidade ao estabelecer seu

propoacutesito em analisar a constituiccedilatildeo de sujeito e verdade focalizando a filosofia

socraacutetica como fundadora da noccedilatildeo do cuidado de si e os desdobramentos do

aforisma ldquoconheccedila-te a ti mesmordquo nos primeiros seacuteculos de nossa era

Foucault (2004 2010a) mostra que a escrita de si o cuidado de si e do outro satildeo

caracteriacutesticas inerentes agrave escrita epistolar Assim o gecircnero epistolar eacute um espaccedilo

que se abre para a comunicaccedilatildeo entre ausentes e a oportunidade para exposiccedilatildeo

da proacutepria subjetividade na forma como se mostra o ethos

A instituiccedilatildeo da cenografia na enunciaccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico contribui para a

verificaccedilatildeo do encadeamento que interliga ethos paacutethos e loacutegos ou seja

enunciador co-enunciador e discurso O papel da cenografia no gecircnero epistolar eacute

determinante na identificaccedilatildeo do subgecircnero Na enunciaccedilatildeo das epiacutestolas de

Secircneca identifica-se a cenografia de um tratado que fornece caracteriacutesticas para a

classificaccedilatildeo de uma epiacutestola filosoacutefica Na produccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo a

cenografia eacute de um manual de instruccedilotildees eacuteticas caracterizando uma epiacutestola de

aconselhamento

A retoacuterica integra o discurso atraveacutes dos recursos e modo como o enunciador

estabelece sua comunicaccedilatildeo com o co-enunciador Os argumentos retoacutericos servem

de sustentaccedilatildeo para o efeito de verdade que a argumentaccedilatildeo promove no discurso

Na funccedilatildeo de ativar o discurso verdadeiro a parresiacutea na sua forma original como

falar franco e sincero se torna fundamental para identificaccedilatildeo dos posicionamentos

no discurso assumidos por Secircneca e Paulo partindo do uso de um lugar comum

que eacute o ldquofalar francordquo

As discussotildees sobre retoacuterica na Antiguidade contribuem com algumas concepccedilotildees

desse tema como praticado entre gregos e romanos e ainda permite extrair

98

elementos das formulaccedilotildees teoacutericas da retoacuterica antiga que satildeo aplicaacuteveis aos

discursos como as noccedilotildees de ethos paacutethos e loacutegos Essa accedilatildeo de releitura da

retoacuterica antiga eacute exercida pela nova retoacuterica a qual exerce influecircncia tambeacutem nas

formulaccedilotildees dos postulados teoacutericos no surgimento da anaacutelise do discurso de base

enunciativa

Conclui-se que a abordagem que Maingueneau desenvolve sobre discursos

constituintes eacute aplicaacutevel agrave anaacutelise das epiacutestolas de Seacuteneca e de Paulo tendo em

vista a definiccedilatildeo do gecircnero de discurso subjugada ao discurso constituinte que o

institui Seguindo os postulados da anaacutelise do discurso de base enunciativa em

Secircneca o uso do gecircnero epistolar eacute produzido na esfera do discurso filosoacutefico e em

Paulo no discurso religioso A identificaccedilatildeo da cenografia eacute a chave que permite

observar as epiacutestolas de Secircneca como gecircnero epistolar filosoacutefico e as de Paulo

gecircnero epistolar de aconselhamento

A segunda parte a seguir situa a cena enunciativa geneacuterica que institui o gecircnero de

discurso o ethos e a cenografia Uma revisatildeo histoacuterica sobre gecircnero epistolograacutefico

se faz necessaacuteria para compreensatildeo da contextualizaccedilatildeo da escrita de Secircneca e

Paulo neste gecircnero e tambeacutem a identificaccedilatildeo do uso do termo epiacutestola como

praticado na Antiguidade

O conhecimento de parte do contexto histoacuterico em que Paulo e seus destinataacuterios

estatildeo inseridos eacute produtivo na construccedilatildeo de sentidos dos textos das epiacutestolas

dirigidas agrave igreja de Corinto Os dados histoacutericos contribuem para observaccedilatildeo da

construccedilatildeo discursiva da imagem do apoacutestolo Paulo no contexto de sua formaccedilatildeo

cultural e religiosa como heranccedila da influecircncia do periacuteodo Heleniacutestico As influecircncias

do periacuteodo Heleniacutestico tambeacutem satildeo marcadas na trajetoacuteria de Secircneca e seu

engajamento na filosofia estoica fornece significados para observaacute-lo na apropriaccedilatildeo

do discurso verdadeiro na escrita de si e do outro e na manifestaccedilatildeo do discurso A

identificaccedilatildeo do ambiente histoacuterico-cultural que serve de base para a formaccedilatildeo

educacional e moral na vida de Secircneca e de Paulo contribui para o entendimento da

constituiccedilatildeo do ethos de cada um deles dando suporte para o entendimento da

identificaccedilatildeo do posicionamento discursivo que cada um deles ocupa em seus

discursos

99

PARTE II

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CENA DA ENUNCIACcedilAtildeO NAS

EPIacuteSTOLAS DE PAULO E DE SEcircNECA

A ideia que temos da forma do nosso enunciado isto eacute de um gecircnero preciso do discurso dirige-nos em nosso processo discursivo

Bakhtin (2006 p 305)

A partir das contribuiccedilotildees da anaacutelise do discurso desenvolvidas por Maingueneau e

outros pesquisadores os discursos de Paulo e Secircneca produzidos via epiacutestolas

seratildeo analisados na esfera do acontecimento enunciativo ou seja o sujeito enuncia

situado em um determinado posicionamento discursivo dirigindo-se a um TU que o

EU identifica como ponto alvo do seu proacuteprio discurso O espaccedilo de onde se fala eacute

determinado por um contexto histoacuterico-social e o tempo da enunciaccedilatildeo se localiza

nos acontecimentos que antecedem e atualizam a enunciaccedilatildeo

Assim nesta parte da tese o foco eacute o estabelecimento da reuniatildeo de elementos que

contribuam para identificar historicamente o contexto em que Paulo e Secircneca

podem ser situados na vigecircncia do seacuteculo I dC Tais elementos estatildeo relacionados

aos campos que englobam poliacutetica educaccedilatildeo literatura filosofia e religiatildeo

Todo esse conjunto de dados que procura situar as aspiraccedilotildees e os valores eacuteticos

da moral idealizados pelo cidadatildeo greco-romano serve como base empiacuterica ou

seja o ponto de partida para compreensatildeo das praacuteticas discursivas que funcionam

como identificaccedilatildeo de posicionamentos que cada enunciador ocupa na produccedilatildeo de

seu texto A intensidade da heranccedila do pensamento filosoacutefico platocircnico e aristoteacutelico

influencia o surgimento e continuidade das correntes filosoacuteficas que se voltam para a

eacutetica como conduta o que resulta na tendecircncia de uma adesatildeo ora ao pensamento

estoico ora ao epicurista acrescentando-se o aproveitamento de outras tendecircncias

pitagoacutericas e ciacutenicas Todos os campos do saber com suas ligaccedilotildees e ramificaccedilotildees

tecircm como suporte e sustentaccedilatildeo a base na influecircncia heleniacutestica que contribui para

conjugar os valores esteacuteticos morais sociais poliacuteticos como um ideal a ser buscado

e alcanccedilado

100

O discurso filosoacutefico assumido por Secircneca e o religioso por Paulo satildeo tipos de

discurso que se estabelecem na esfera dos discursos constituintes Assim como jaacute

observado o gecircnero epistolograacutefico como recurso de organizaccedilatildeo dos discursos de

Secircneca e de Paulo satildeo identificados em campos discursivos diferentes de acordo

com o tipo de discurso que os abriga Entatildeo o gecircnero epistolar eacute um recurso do

registro de manifestaccedilatildeo da linguagem que pode ser identificado como um gecircnero

adaptaacutevel aos diferentes tipos de discurso filosoacutefico religioso literaacuterio e outros O

discurso constituinte eacute responsaacutevel pelo posicionamento central do enunciador

apontando para a origem daquele tipo de discurso em uso

Como jaacute apontado neste trabalho na produccedilatildeo do gecircnero do discurso configuram-se

dois elementos essenciais para o desenvolvimento do processo enunciativo a

cenografia e o ethos pois estes satildeo constituiacutedos em harmonia com o discurso

constituinte que os sustenta Sendo a cenografia uma categoria que se legitima com

base nas trecircs instacircncias enunciativas ela se estabelece no triacircngulo da enunciaccedilatildeo

EU-TU AQUI AGORA Estas questotildees relembradas neste ponto da pesquisa

interligam os postulados de base enunciativa com as condiccedilotildees de produccedilatildeo no

espaccedilo e momento em que Paulo e Secircneca pronunciam seus discursos

As condiccedilotildees de produccedilatildeo contribuem para a realizaccedilatildeo linguiacutestica do discurso pois

segundo Charaudeau e Maingueneau (2008 p 115) por um lado ldquoo sujeito falante eacute

sempre parcialmente sobredeterminado pelos saberes crenccedilas e valores que

circulam no grupo social ao qual pertencerdquo por outro lado ldquoele eacute igualmente

sobredeterminado pelos dispositivos de comunicaccedilatildeo nos quais se insere para falar

e que lhe impotildeem certos lugares papeis e comportamentosrdquo

Conveacutem situar o gecircnero epistolograacutefico como recurso de comunicaccedilatildeo no primeiro

seacuteculo de nossa era com suas funccedilotildees variadas que tambeacutem possibilitavam a

circulaccedilatildeo do pensamento de um enunciador remetente que mesmo tendo um

destinataacuterio exclusivo como Luciacutelio a quem Secircneca se dirige ou a igreja de Corinto

a quem Paulo escreve tornava-se relevante o seu valor puacuteblico em relaccedilatildeo aos

possiacuteveis e diferentes leitores como destinataacuterios Este eacute um assunto que na

atualidade ainda se discute na tentativa de se estabelecer uma diferenccedila entre carta

e epiacutestola enquadrando a carta no setor privado e a epiacutestola no puacuteblico Como

contribuiccedilatildeo para esses questionamentos este tema eacute abordado situando

101

diferentes posicionamentos procurando um acordo que melhor se enquadre agrave

concepccedilatildeo de gecircnero epistolar na Antiguidade

Segundo Guarniere (2016 p 51) mesmo natildeo havendo uma fixaccedilatildeo determinada de

gecircnero epistolar na Antiguidade a formaccedilatildeo retoacuterica oferecia ao escritor de

epiacutestolas certas ferramentes para o manejo das convenccedilotildees da epistolografia Por

isso alguns tipos de epiacutestolas se ajustavam ao modo do discurso deliberativo

quando o objetivo maior eram os conselhos as admoestaccedilotildees e as reflexotildees dos

valores morais Ainda os conteuacutedos poderiam estar voltados para as questotildees de

amizade reconhecimento agradecimento e outros sendo mais adequados ao

discurso epidiacutetico Decerto os trecircs modos retoacutericos de organizaccedilatildeo dos discursos

judiciaacuterio epidiacutetico e deliberativo satildeo interligados na composiccedilatildeo epistolar Estes

discursos satildeo fundamentais como definiccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da correspondecircncia e

a relaccedilatildeo com a retoacuterica antiga

A ideia de epiacutestola eacute abrangente na Antiguidade em especial o sentido originaacuterio

do grego cuja finalidade eacute o envio de uma mensagem O significado se manteacutem de

acordo com os propoacutesitos originais mas diversifica-se nas vaacuterias modalidades das

formas de circulaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo Alguns desses aspectos satildeo abordados a

seguir na busca de uma compreensatildeo da importacircncia do desempenho do gecircnero

epistolar em sua trajetoacuteria na Antiguidade

102

2 A EPISTOLOGRAFIA SEU LUGAR NA ANTIGUIDADE E SUA

CONTINUIDADE NA HISTOacuteRIA

Eacute bem visiacutevel na histoacuteria dos antigos gregos a praacutetica do uso do gecircnero

epistolograacutefico tendo uma diversidade de caracteriacutesticas e objetivos Na sua

essecircncia as finalidades eram de manutenccedilatildeo do contato entre pessoas distantes

aconselhamento advertecircncia exortaccedilatildeo sendo as epiacutestolas portadoras de temas

relevantes no campo da filosofia doutrinaacuteria da poliacutetica da moral da religiatildeo e como

fonte documental nas transaccedilotildees de negoacutecios Um exemplo notoacuterio se encontra na

coleccedilatildeo de epiacutestolas de Platatildeo90 a diferentes destinataacuterios com destaque para suas

discussotildees filosoacuteficas e poliacuteticas tendo Dioniacutesio I rei de Siracusa o lugar de

personagem em destaque Em sua correspondecircncia Platatildeo faz referecircncias ao

costume do envio de epiacutestolas defendendo o valor destas em detrimento da

distacircncia como causa da ausecircncia entre amigos Na epiacutestola III ele faz a seguinte

colocaccedilatildeo [] ldquona verdade natildeo ousaria relembrar quantas cartas enviastes tu e

outros solicitados por ti da Itaacutelia e da Siciacutelia tanto a familiares como a amigos

meusrdquo91 Nesta mesma missiva Platatildeo levanta a questatildeo sobre o protocolo da

introduccedilatildeo de uma epiacutestola ldquoterei eu encontrado para minha carta a melhor forma de

saudaccedilatildeo Ou escreverei antes como eacute meu costume quando me dirijo aos meus

amigos lsquoBoa sortersquordquo

Quanto agraves origens do uso de epiacutestolas Alexandre Juacutenior fornece as seguintes

informaccedilotildees

O termo epistolē (epiacutestola ou carta) referia-se originalmente a uma mensagem oral enviada por um arauto ou mensageiro Mas acabou por se aplicar sobretudo aos documentos escritos enviados por alguma entidade ou instituiccedilatildeo a um destinataacuterio especiacutefico O verbo epistellein significava simplesmente lsquotransmitir ou enviar uma mensagemrsquo dar ou receber ordens por escrito [] Com o tempo as cartas vieram a revelar-se instrumentos privilegiados de comunicaccedilatildeo mais ou menos literaacuteria [] Na eacutepoca heleniacutestica era ainda mais corrente a literatura epistolar tanto oficial como privada Augusto desenvolveu um sistema de correios cujo serviccedilo se prestava por jovens na idade militar Para o tornar mais funcional e eficaz o imperador construiu uma rede de estalagens por terra e de barcos por mar

90

As tradutoras portuguesas Conceiccedilatildeo Gomes da Silva e Maria Adozinha Melo optaram por traduzir o termo grego epiacutestolas como cartas na obra de Platatildeo Na coleccedilatildeo as trecircs primeiras cartas e a uacuteltima satildeo escritas de Platatildeo para o rei Dioniacutesio I denominado tirano de Siracusa O teor das cartas eacute de conselhos repreensatildeo e discussatildeo quanto aos temas filosoacuteficos e poliacuteticos Os outros destinataacuterios satildeo Dion de Siracusa e seus amigos e parentes Hermias Aristodoro Lodamas e Arquitas de Tarento

103

devidamente protegidos para fazer que o correio chegasse ao seu destino com a maior celeridade e seguranccedila possiacutevel Era tatildeo corrente a circulaccedilatildeo epistolar no seacuteculo I aC que soacute de Ciacutecero haacute notiacutecia de mais de oitocentas cartas (ALEXANDRE JR 2015 p 167)

A praacutetica do envio de correspondecircncias como mostram os dados fornecidos por

Alexandre Jr eacute identificada tambeacutem nos textos biacuteblicos mais tardios na eacutepoca do

Velho Testamento No tempo do cativeiro babilocircnico havia o costume do envio de

um arauto para conduzir uma mensagem como narrado no livro de Daniel92 Aleacutem

desse fato no livro de Baruc o capiacutetulo quatro eacute composto pela citaccedilatildeo da coacutepia de

uma epiacutestola do profeta Jeremias aos judeus A introduccedilatildeo do capiacutetulo tem o

seguinte teor ldquocoacutepia da carta que Jeremias enviou aos que iam ser levados para

Babilocircnia como prisioneiros pelo rei dos babilocircnios a fim de lhes dar a conhecer o

que lhe fora ordenado por Deusrdquo (Baruc 61)93

Situados no periacuteodo Heleniacutestico os livros biacuteblicos de I e II Macabeus contecircm

informaccedilotildees sobre o envio de mensagens atraveacutes de epiacutestolas sendo protocolar o

tipo de saudaccedilatildeo na introduccedilatildeo ldquoSauacutede aos nossos irmatildeos judeus que estatildeo no

Egito Seus irmatildeos os judeus residentes em Jerusaleacutem e no paiacutes de Judaacute auguram-

lhes uma paz venturosardquo (II Macabeus 11)94 O teor das correspondecircncias ou visava

uma comunicaccedilatildeo entre os judeus de Jerusaleacutem com os do Egito e outros ou

mesmo primava pelas relaccedilotildees com setor poliacutetico interno e externo e comunicaccedilatildeo

com outras naccedilotildees No tratamento das questotildees de aproximaccedilotildees poliacuteticas a

epiacutestola do rei Antiacuteoco IV tem o seguinte introito ldquoaos honrados cidadatildeos judeus da

parte de Antiacuteoco rei e chefe do exeacutercito muitas saudaccedilotildees e votos de sauacutede e bem

estarrdquo (2 Macabeus 919)95 Estas indicaccedilotildees textuais servem como forma de

92

ldquoE o arauto apregoava em alta voz ordena-se a voacutes oacute povos naccedilotildees e liacutenguas Quando ouvirdes o som da buzina da flauta da harpa da sambuca do salteacuterio da gaita de foles e de toda a espeacutecie de muacutesica prostrar-vos-eis e adorareis a estaacutetua de ouro que o rei Nabucodonosor tem levantado E qualquer que natildeo se prostrar e natildeo a adorar seraacute na mesma hora lanccedilado dentro da fornalha de fogo ardenterdquo (Daniel 34-6) 93

Os textos citados estatildeo contidos na traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem Na Nova Vulgata o termo traduzido como carta no portuguecircs aparece como epistula em latim Exemplum epistulae quam mi sit Ieremias ad abducendos cap tivos in Babyloniam a rege Babyloniorum ut nuntiaret illis secundum quod praeceptum est ei a Deo (Baruc 61) 94

De acordo com nota deste texto na Biacuteblia de Jerusaleacutem as epiacutestolas dos judeus de Jerusaleacutem aos do Egito tinham como objetivo conclamar os judeus para a celebraccedilatildeo de dedicaccedilatildeo do templo Segundo Leacutevecircque (1987 p 47) Antiacuteoco IV partidaacuterio da helenizaccedilatildeo dominou Jerusaleacutem construiu um ginaacutesio ao peacute do Monte Siatildeo profanou o templo com sacrifiacutecios sangrentos e laacute instalou uma estaacutetua de zeus Deu-se entatildeo a revolta liderada por Judas Macabeu e Jerusaleacutem foi retomada em 165 aC Depois do templo restaurado foi realizada a festa de dedicaccedilatildeo 95

Na narrativa do livro de 2 Macabeus 9 o rei Antiacuteoco IV depois de derrotado em suas uacuteltimas batalhas ficou gravemente doente e antes de sua morte escreveu aos judeus uma epiacutestola de conciliaccedilatildeo

104

exemplo do protocolo de introduccedilatildeo de uma epiacutestola no periacuteodo Heleniacutestico aleacutem de

mostrar tambeacutem que no texto da Septuaginta o termo epiacutestola (ἐπιστολὴ) eacute

recorrente Ocorre nas traduccedilotildees dessas citaccedilotildees biacuteblicas para a liacutengua portuguesa

a opccedilatildeo pelo termo carta e natildeo epiacutestola Tanto no comentaacuterio de Alexandre Juacutenior

como nas citaccedilotildees indicadas de 2 Macabeus estatildeo contidas informaccedilotildees sobre a

praacutetica do recurso da epistolografia como meio de comunicaccedilatildeo na Antiguidade mas

as referecircncias aos termos epiacutestola e carta satildeo indistintas sendo os vocaacutebulos em

pauta tratados como sinocircnimos

Houmlrster (2012 p 47) afirma que uso dos termos carta e epiacutestola na Antiguidade

ofereciam sentidos distintos em suas particularidades Poreacutem este autor natildeo avanccedila

em relaccedilatildeo agrave apresentaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo desses usos nos textos em suas origens

Desse modo o sentido de epiacutestola transita paralelo ao de carta nas opccedilotildees da

escolha linguiacutestica sendo este um ponto comum nos debates entre muitos

pesquisadores como seraacute visto mais adiante

Os registros sobre o uso da epistolografia na Antiguidade satildeo muito restritos A

produccedilatildeo de epiacutestolas era significativa mas existem poucas fontes para estudos

relacionados agraves especificidades dessas produccedilotildees Uma das poucas fontes

acessiacuteveis tem como base o texto de Demeacutetrio de Faleros96 De elocutione (Sobre o

estilo) em que ele toca brevemente em algumas questotildees sobre epistolografia De

saiacuteda no livro IV satildeo citadas as epiacutestolas de Aristoacuteteles como fortalecimento para a

ideia de que a epiacutestola tem base no princiacutepio do diaacutelogo Demeacutetrio usa a

terminologia em grego επιστολή (epiacutestola) mas nas traduccedilotildees para o inglecircs e

portuguecircs o termo eacute registrado como letter e carta Demeacutetrio pondera que natildeo se

pode negar a constituiccedilatildeo da epiacutestola como diaacutelogo mas acrescenta outras

caracteriacutesticas inerentes a esta

Mas que a carta tenha ao maacuteximo uma mostra do caraacuteter tal como o diaacutelogo Pois cada qual escreve uma carta quase como uma imagem de sua alma Eacute de fato possiacutevel notar o caraacuteter do escritor em qualquer discurso poreacutem em nenhum outro como na carta (Sobre o estilo IV 227)

97

Em sua anaacutelise da correspondecircncia como escrita de si Foucault (2004 p 156)

ressalta a concepccedilatildeo de Demeacutetrio sobre a produccedilatildeo da epiacutestola e a importacircncia da

96

Demeacutetrio de Faleros (350 aC - 282 aC) Na obra Sobre o estilo introduz algumas consideraccedilotildees sobre epistolografia usando o termo grego επιστολάςacute ldquoE uma vez que o tipo epistolar requer simplicidade tambeacutem a seu respeito falaremosrdquo (Sobre o estilo IV 223) 97

Todas as traduccedilotildees de Demeacutetrio de Faleros satildeo de Gustavo Arauacutejo de Freitas (2011) que na traduccedilatildeo opta pelo tiacutetulo Sobre o estilo

105

manutenccedilatildeo de um estilo simples que permita e favoreccedila a revelaccedilatildeo da alma

Demeacutetrio comenta a respeito de diferentes tipos de epiacutestolas que circulavam em sua

eacutepoca e faz menccedilatildeo agraves de Platatildeo e Aristoacuteteles

Mas como tambeacutem agraves vezes escrevemos a cidades e a reis que se admita que tais cartas sejam pouco mais elevadas pois se deve ter em vista tambeacutem o destinataacuterio Elevada sim mas natildeo a ponto de se tornar em lugar de uma carta um tratado como ocorre com aquelas de Aristoacuteteles a Alexandre ou com a de Platatildeo aos amigos de Diacuteon (Sobre o estilo IV

234)98

Um questionamento eacute levantado quanto agraves finalidades da escrita das epiacutestolas e

Demeacutetrio defende que as produccedilotildees destas deveriam seguir alguns paracircmetros que

pudessem identificaacute-las em seus objetivos principais Ao extrapolar em sua extensatildeo

e e desenvolvimentoo dos assuntos o que a princiacutepio seria uma epiacutestola passaria a

ser um tratado Possivelmente essa colocaccedilatildeo de Demeacutetrio tem influenciado

autores que nomeiam determinadas epiacutestolas como tratado

O que se nota nas colocaccedilotildees de Demeacutetrio eacute a preocupaccedilatildeo de uma especificaccedilatildeo

da aplicaccedilatildeo do termo epiacutestola que na praacutetica era usado de forma abrangente e

sem nenhuma designaccedilatildeo de acordo com os diferentes tipos de correspondecircncia

Vale enfatizar que essa observaccedilatildeo de Demeacutetrio evidencia a praacutetica do uso do termo

epiacutestola para qualquer tipo de correspondecircncia havendo estabilidade no uso do

termo sem ser trocado por outro equivalente Esse fato contribui para a relevacircncia

no cuidado ao transportar termos de uso exclusivo na Antiguidade para a atualidade

como ocorre na traduccedilatildeo da designaccedilatildeo epiacutestola como letter em inglecircs e carta no

portuguecircs provocando um distanciamento do caraacuteter original do vocaacutebulo Esta

pode ser uma das questotildees que interferem nas discussotildees atuais sobre a

delimitaccedilatildeo de sentidos dos termos epiacutestolalettercarta como abordado nas

discussotildees que se seguem

Existe um interesse no acircmbito da academia em decifrar o funcionamento da

correspondecircncia na Antiguidade Os papiros de Oxirrinco99 descobertos no final do

seacuteculo XVIII satildeo considerados uma produtiva fonte de pesquisa dos textos antigos

98

Como apontado por Demeacutetrio a carta VII De Platatildeo aos amigos e parentes de Dion eacute muito extensa pois Platatildeo narra com detalhes as viagens o seu relacionamento poliacutetico em Siracusa daacute conselhos e oferece ensinamentos de seus princiacutepios filosoacuteficos 99

Os papiros de Oxirrinco (Oxyrhychus papyri) satildeo uma seacuterie de manuscritos a maioria em papiro descobertos nas escavaccedilotildees arqueoloacutegicas no Egito a partir de 18961897 Trapp (2003 p 7-11) menciona a importacircncia desta descoberta para a identificaccedilatildeo de tipos de epistolas escritas em grego e em latim na Antiguidade que tratam de diferentes assuntos tanto no sentido puacuteblico quanto no privado

106

trazendo tambeacutem a discussatildeo sobre a correspondecircncia classificada como epiacutestola

Deissmann eacute um dos pesquisadores nesse campo que faz uma separaccedilatildeo entre

carta e epiacutestola Para este autor o que distingue ambas eacute o fato de somente a

epiacutestola ser literaacuteria Para Deissmann (1927 p 218) o natildeo literaacuterio focaliza em

especial os parceiros da comunicaccedilatildeo emissaacuterio e destinataacuterio A carta por sua

finalidade natildeo literaacuteria se reveste de caraacuteter particular com um objetivo direcionado

e estipulado A epiacutestola eacute generalizada quanto ao seu puacuteblico alvo tendo um

objetivo mais abrangente quanto ao alcance de possiacuteveis destinataacuterios razatildeo que

justifica sua caracterizaccedilatildeo como literaacuteria100

Deissmann (1927 p 225) alega que com o recurso da anaacutelise dos documentos dos

textos biacuteblicos encontrados foi feita uma comparaccedilatildeo entre as cartas de Paulo e as

dos demais apoacutestolos Esse material serviu de fonte para sua proacutepria conclusatildeo de

que somente as cartas de Paulo eram dirigidas agraves comunidades especiacuteficas ou a

uma pessoa como a carta de Filemom101 natildeo sendo consideradas literaacuterias As

outras correspondecircncias satildeo de caraacuteter mais geral em relaccedilatildeo aos destinataacuterios

podendo ser classificadas como epiacutestolas por serem literaacuterias Hale discorda dessa

posiccedilatildeo de Deissmann com as seguintes alegaccedilotildees

Deissmann com esta teoria procurou mostrar que as Epistolas do Novo Testamento em especial as de Paulo eram na verdade cartas particulares e natildeo epiacutestolas Eacute de maneira geral aceito hoje que Paulo natildeo escreveu conscientemente neste sentido teacutecnico Ele escreveu para pessoas ou igrejas especiacuteficas com problemas especiacuteficos Contudo vecirc-se facilmente que as cartas de Paulo demonstram a autoridade apostoacutelica consciente que torna os conteuacutedos normativos para igrejas e pessoas de outras aacutereas e eacutepocas As cartas satildeo bem construiacutedas para demonstrarem um plano cuidadosamente elaborado Elas satildeo cartas particulares quanto ao tom ao espirito e ao propoacutesito contudo ao mesmo tempo elas satildeo obras-primas de composiccedilatildeo A extensatildeo media das cartas particulares naquela eacutepoca era de cerca de noventa palavras e a epiacutestola tinha a meacutedia de 200 palavras A carta mais curta de Paulo Filemom tem 335 palavras e a mais extensa Romanos 7101 Neste sentido as cartas de Paulo natildeo podem incidir dentro da categoria normal de uma carta regular Os teores de suas cartas pressupotildeem algo aleacutem de uma carta particular normal Deve ser acrescentado que os escritos de Paulo tecircm toda caracteriacutestica de uma carta particular mas a universalidade dos conteuacutedos fez com que eles fossem classificados sob o termo teacutecnico de composiccedilotildees literaacuterias conhecidas como epiacutestolas (HALE 1983 p 145)

100

A expressatildeo literaacuterio no contexto das discussotildees sobre carta e epiacutestola tem uma distinccedilatildeo de natildeo literaacuterio pela forma elaborada do tratamento dos assuntos podendo ser considerada uma produccedilatildeo artiacutestica enquanto seu oposto tem forma popular de tratamento dos conteuacutedos Pode-se pensar que o significado de literaacuterio fornecido por Deissmann (1927 p148) pode ser visto pelo acircmbito do institucional ou seja o que passa do acircmbito privado para o do puacuteblico via instituiccedilotildees de divulgaccedilatildeo 101

Na traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem o nome da uacuteltima epiacutestola da coleccedilatildeo de Paulo eacute traduzido como Filecircmon enquanto nas outras traduccedilotildees usadas nesta pesquisa o registro eacute Filemom

107

Outro pesquisador que se destaca assumindo tambeacutem a posiccedilatildeo da dualidade carta

e epiacutestola eacute Meechan (2004) Este toma como base em sua investigaccedilatildeo o

resultado de que as cartas descobertas nas escavaccedilotildees de Oxirrinco

representavam uma comunicaccedilatildeo privada entre pessoas que se encontravam

separadas pela distacircncia Os conteuacutedos das cartas eram emitidos de acordo com o

niacutevel de relacionamento entre os correspondentes Em determinadas cartas havia

uma reflexatildeo da vida pessoal do emissor revelando o grau do relacionamento em

relaccedilatildeo ao destinataacuterio A partir dessas evidecircncias Meechan (2004 p 40) coloca

uma diferenccedila entre carta e epiacutestola pois esta era considerada um documento

literaacuterio por ser de formato impessoal Este autor ainda reforccedila a distinccedilatildeo entre

carta e epiacutestola alegando que mesmo uma carta publicada natildeo perde seu caraacuteter

particular mas pode transformar-se em literatura enquanto a epiacutestola em sua

origem jaacute eacute caracterizada como literaacuteria

Trapp (2003 p 10) analisa o material linguiacutestico encontrado nos papiros das

escavaccedilotildees de Oxirrinco abordando um aspecto distinto de pesquisadores

anteriores Ele conclui que a variedade das cartas descobertas permite uma

comparaccedilatildeo entre elas em termos de forma e conteuacutedo Para este pesquisador o

valor do material encontrado se impotildee pela possibilidade de observaccedilatildeo dos

conjuntos de epiacutestolas e seu valor na literatura latina As coleccedilotildees de epiacutestolas satildeo

identificadas a partir de Ciacutecero e formam a maior coleccedilatildeo em escrita latina A

coleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio circulavam como livro102 Posterior a

Secircneca a outra coleccedilatildeo conhecida eacute formada pelas epiacutestolas de Pliacutenio o Jovem

pois estas tambeacutem circulavam nesse mesmo formato103 Nos dois primeiros seacuteculos

dC a epistolografia se destaca na sua organizaccedilatildeo como coleccedilatildeo podendo ser

mencionadas tambeacutem as epiacutestolas de Corneacutelio Fronto tutor de retoacuterica do futuro

imperador Marco Aureacutelio

102

Na obra Marcial e o livro Leni Ribeiro Leite (2011 p 32) comenta que no seacuteculo I d C as formas que caracterizavam os livros eram o rolo ou o coacutedex Os materiais eram retirados da pele de animais em especial a pele de cabra por ser mais leve para confecccedilatildeo do pergaminho A planta do papiro com tiras entrelaccediladas era confeccionado em formato de folhas (charta) A montagem final poderia ser em formato de rolo ou coacutedex Naquela eacutepoca o mais usado era o rolo de pergaminho com uma certa quantidade de folhas costuradas de acordo com a extensatildeo do texto na composiccedilatildeo da obra A partir do seacuteculo II d C tornou-se mais frequente a preferecircncia pelo coacutedex pela facilidade do manuseio na hora da leitura 103

Neil (2015 p 6) informa que tanto a coleccedilatildeo de epiacutestolas de Pliacutenio com exceccedilatildeo do livro X como as de Secircneca a Luciacutelio circulavam enquanto seus autores ainda viviam

108

Para as pesquisas atuais as descobertas arqueoloacutegicas contribuem para dar uma

luz ao entendimento de como alguns aspectos do processo de comunicaccedilatildeo

funcionavam atraveacutes da correspondecircncia no contexto dos dois primeiros seacuteculos de

nossa era Trapp (2003 p 22) observa que naquele periacuteodo existia uma tendecircncia

em transformar cartas privadas em um tipo de literatura atestado pelas coleccedilotildees

que sobreviveram Desde a era augustana jaacute era notoacuteria a combinaccedilatildeo entre tema

filosoacutefico e forma de epiacutestola em verso principalmente nas produccedilotildees de Horaacutecio se

acentuando na prosa nas produccedilotildees de temas variados nas epiacutestolas de Ciacutecero que

serviram de modelo para a posteridade

De certa forma havia uma influecircncia da tradiccedilatildeo de epistolografia filosoacutefica herdada

de Epicuro104 De acordo com a observaccedilatildeo de Trapp (2003 p 25) Secircneca em sua

coleccedilatildeo de epiacutestolas aleacutem de se espelhar no exemplo de Epicuro ainda compartilha

com Horaacutecio alguns aspectos da filosofia moral e as instruccedilotildees eacuteticas Em seus

conselhos a Luciacutelio Secircneca combina exortaccedilatildeo reflexatildeo instruccedilatildeo doutrinal e

recorre tambeacutem aos diversos exemplos

A contribuiccedilatildeo de Marcus Wilson se torna relevante na pesquisa aqui desenvolvida

pelo seu interesse em considerar a correspondecircncia de Secircneca a Luciacutelio como

epiacutestolas e natildeo como tratado Na obra Senecarsquos epistles reclassifed (2001) Wilson

discute essa questatildeo da coleccedilatildeo de epiacutestolas na Antiguidade e analisa em especial

a obra de Secircneca no conjunto das epiacutestolas dirigidas a Luciacutelio Assim este autor se

posiciona favoraacutevel agrave ideia da coletacircnea ser composta de epiacutestolas e natildeo um

tratado105 Ele observa que cada uma delas abre a mensagem com um cumprimento

e fecha com a despedida sendo que dessa forma a estrutura eacute apresentada de

acordo com o protocolo epistolar

Um embate nos estudos atuais desse tema se deve agrave concepccedilatildeo de epiacutestola como

ensaio que se configura no campo da reclassificaccedilatildeo106 de obras antigas

104

Epicuro desenvolveu sua filosofia usando o formato de epiacutestolas a diferentes destinataacuterios A Epiacutestola a Heroacutedoto (seu disciacutepulo) eacute uma das que concentra os princiacutepios da filosofia epicurista 105

Braren (1999 p 39) aponta algumas questotildees que justificam as razotildees de Secircneca ter escrito epiacutestola e natildeo tratado ldquoEpiacutestolas permitem oferecer doutrinaccedilatildeo filosoacutefica sem o necessaacuterio rigor de um plano de redaccedilatildeo de um tratado filosoacutefico As epiacutestolas se sucedem ao sabor das reflexotildees do momento O conteuacutedo natildeo necessita seguir uma ordenaccedilatildeo global uacutenica Diferentes assuntos podem ser tratados topicamente desde que obedeccedilam agrave proposta pedagoacutegica de ensinar o caminho para a sabedoria segundo um propoacutesito determinado agrave doutrinaccedilatildeo segundo os moldes do estoicismordquo 106

Segundo Gibson (2013 p 392) a reclassificaccedilatildeo resulta de uma nova organizaccedilatildeo das coleccedilotildees de epiacutestolas da Antiguidade obedecendo uma ordem cronoloacutegica que altera a proacutepria caracterizaccedilatildeo inicial da coleccedilatildeo pois visam trataacute-las como forma de biografia e histoacuteria

109

envolvendo alguns pesquisadores em defesa dessa ideia Wilson (2001 p 167)

pondera que pela razatildeo da falta de desenvolvimento de uma teoria sobre

epistolografia as pesquisas de formulaccedilotildees teoacutericas sobre ensaio tecircm aplicado a

base de seus princiacutepios agraves epiacutestolas de Secircneca Poreacutem surge o impasse no

momento de relacionar a parte pessoal das epiacutestolas com a filosoacutefica

Em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de reclassificaccedilatildeo de produccedilotildees em forma de coleccedilatildeo na

Antiguidade Wilson (2001 p164) alega que tal teacutecnica natildeo se aplica agrave coleccedilatildeo de

Secircneca designada Epistolae Morales ad Lucilium Este pesquisador afirma que natildeo

haacute base para tratar o trabalho de Secircneca como sendo ensaiacutesta exortativo ou

pedagoacutegico Ele menciona a epiacutestola vinte e sete de Secircneca107 como argumento de

sua afirmaccedilatildeo

Quem eacutes tu para me dar conselhos Acaso jaacute te aconselhaste a ti proacuteprio jaacute corrigiste o teu caraacuteter para te poderes armar em director de consciecircncia alheia Objeccedilatildeo justa a tua eu contudo natildeo sou tatildeo descarado que doente eu proacuteprio me aplique a dar remeacutedio aos outros Eacute como companheiro de sanatoacuterio que falo contigo de nossa comum enfermidade e te dou parte dos medicamentos que uso (SEcircNECA Ep 271)

Segundo Wilson (2001 164) essa parte da epiacutestola vinte e sete apresenta

caracteriacutesticas bem tiacutepicas da epistolografia Um dos temas recorrentes neste

gecircnero eacute identificado em diferentes formas de abordar assuntos sobre sauacutede e

medicamento Outro tema que Wilson natildeo cita mas que pode ser lembrado como

lugar comum na produccedilatildeo de epiacutestolas daquele periacuteodo eacute o da descriccedilatildeo detalhada

das atividades de um dia que pode ser verificado tanto na produccedilatildeo epistolar de

Secircneca Pliacutenio e Marco Aureacutelio108 Em Pliacutenio (Ep V 14 8)109 encontra-se tambeacutem o

uso do toacutepos que consiste em descriccedilotildees de partes das atividades de um dia em que

107

A traduccedilatildeo da epiacutestola 271 mencionada por Wilson eacute citada neste trabalho de acordo com a traduccedilatildeo de Segurado pois Wilson natildeo cita a parte da epiacutestola indicada mas soacute comenta seu conteuacutedo 108

Foucault (2010a p 144) observa na carta de Marco Aureacutelio a Frontatildeo o relato de si atraveacutes do relato do dia Alguns dos toacutepicos encontrados nesse relato identificam o uso de um lugar comum na epistolografia De iniacutecio satildeo fornecidos dados em relaccedilatildeo agrave sauacutede e alimentaccedilatildeo e em seguida o cumprimento dos deveres familiares e religiosos Em Secircneca Foucault (2010a p 147) identifica a necessidade de descarregar de diante de si a carga da proacutepria vida e do tempo que passou como uma revisatildeo e balanccedilo do que foi feito Para Foucault o gecircnero epistolar favorece essa exposiccedilatildeo do eu como um verdadeiro exame de consciecircncia 109

Em Pliacutenio a descriccedilatildeo de um momento de retiro das atividades puacuteblicas eacute introduzida na epiacutestola dirigida a amigo Pocircncio Alifono ldquoEstava com meu caro sogro estava com a tia da minha esposa estava com amigos que haacute muito tempo desejava ver percorria meus pequenos campos escutava muitas das reclamaccedilotildees dos camponeses lia minhas contas rapidamente e sem vontade ndash satildeo de fato outros os papeis e outras as letras nas quais fui instruiacutedo ndash e jaacute havia me preparado para a viagem pois estou limitado pela brevidade da minha licenccedila e ao escutar sobre a magistratura de Cornuto estou sendo lembrado da minha proacutepriardquo (Ep V 14 8) Trad Kaacutetia Regina Giesen (2016)

110

o destaque eacute a presenccedila de familiares dos mais diversos niacuteveis de parentesco A

esse respeito da recorrecircncia a determinados lugares comuns vale relembrar a

posiccedilatildeo de Cairns (2010 p 6) ao mostrar que todo gecircnero eacute portador de elementos

com caracteriacutesticas primaacuterias como pode ser identificado no gecircnero epistolograacutefico

para a proacutepria identificaccedilatildeo do gecircnero como tal e ainda de elementos de

caracterizaccedilatildeo secundaacuteria que se apresentam como toacutepoi (lugares comuns) como

apontado tambeacutem por Wilson nas epiacutestolas de Secircneca

A partir da identificaccedilatildeo do posicionamento de Secircneca na epiacutestola citada Wilson

(2001 p 174) nota que ele natildeo parece indicar que procura colocar sua produccedilatildeo

como gecircnero epistolar em uma categoria fixa como exortativa ou pedagoacutegica pois

ambas satildeo interligadas com muitas outras familiar de consolo autobiograacutefica

satiacuterica analiacutetica literaacuteria e filosoacutefica

Na abordagem de Wilson (2001 p 191) uma coleccedilatildeo de epiacutestolas mesmo ficcional

contrasta com a coleccedilatildeo de ensaios em relaccedilatildeo ao tempo As epiacutestolas de Secircneca

natildeo contecircm datas110 e o que caracteriza a sequecircncia eacute a ordem da composiccedilatildeo ou

seja a ordem em que o conteuacutedo deve ser recebido e lido Desse modo o arranjo eacute

cronoloacutegico pois o leitor lecirc as epiacutestolas natildeo exatamente como uma coleccedilatildeo mas

como uma seacuterie

Wilson (2001 p 182) tambeacutem concorda com outros pesquisadores admitindo que

Secircneca se identifica com a epistolografia filosoacutefica seguindo o exemplo de Epicuro

Tanto na esfera filosoacutefica quanto na literaacuteria Secircneca inova em relaccedilatildeo agrave

epistolografia grega Ele se inspira em fontes de escritores romanos em especial

nas epiacutestolas em versos de Horaacutecio111 nas saacutetiras e humor com comentaacuterios eacuteticos

Secircneca cria um novo ramo de epistolografia a partir de sua filiaccedilatildeo literaacuteria Entatildeo

Wilson (2001 p 191) designa esse novo gecircnero de epistolografia em seacuterie pois

cada epiacutestola eacute completa em si mesma relacionando-se com as demais no todo da

coleccedilatildeo

110

Na coleccedilatildeo Ad Familiares as epiacutestolas de Ciacutecero satildeo datadas mas este natildeo eacute o criteacuterio para organizaccedilatildeo da coleccedilatildeo pois as epiacutestolas satildeo agrupadas pelo nome dos destinataacuterios 111

Na Ep 8613 Secircneca faz a seguinte referecircncia a Horaacutecio ldquoDepois que se inventaram esses impecaacuteveis balneaacuterios os homens tornaram-se mais porcos O que diz Horaacutecio quando quer retratar um indiviacuteduo de maus costumes notaacutevel pelos seus excessivos requintes Diz que ldquoBucilo cheira a rebuccediladosrdquo Se Bucilo vivesse hoje em dia por pouco parecia cheirar a bode faria o papel daquele Gargocircnio que na mesma saacutetira Horaacutecio potildee em confronto com Bucilordquo (Horaacutecio Saacutetiras I 227)

111

Concordando com essas posiccedilotildees defendidas por Wilson Inwood alega que as

epiacutestolas de Secircneca satildeo constituiacutedas nos paracircmetros de epiacutestola filosoacutefica e emite

a seguinte opiniatildeo

Like the dialogues of Plato Senecarsquos letters create an atmosphere of interpersonal philosophical exchange with the difference that the medium of this exchange is not face-to-face conversation but intimate correspondence between friends (INWOOD 2010 p xii)

112

Na concepccedilatildeo de Inwood (2010 p xiv) a escolha de Secircneca do gecircnero epistolar

filosoacutefico se justifica por razotildees da proacutepria dimensatildeo de sua concepccedilatildeo de obra

literaacuteria visto ser ele um autor de inegaacutevel capacidade de produccedilatildeo em outros

gecircneros literaacuterios como trageacutedia poesia e saacutetira Outros fatores podem ter interferido

na escolha de Secircneca em relaccedilatildeo aos seus antecessores como as publicaccedilotildees da

correspondecircncia filosoacutefica de Epicuro e da coleccedilatildeo das epiacutestolas de Ciacutecero ao seu

amigo Aacutetico Pode-se considerar tambeacutem que Secircneca ao escolher o gecircnero

epistolograacutefico colabora para uma continuidade da tradiccedilatildeo grega de uso deste

gecircnero como identificado nas produccedilotildees das epiacutestolas de Platatildeo Pitaacutegoras

Aristoacuteteles Epicuro entre outros

O posicionamento de Wilson contribui para a fundamentaccedilatildeo da tese aqui

desenvolvida de que o gecircnero escolhido por Secircneca em sua correspondecircncia eacute

epistolograacutefico e natildeo tratado Nesse quadro de contribuiccedilotildees inclui-se tambeacutem

Inwood que concebe o gecircnero usado por Secircneca como epiacutestola filosoacutefica Mais

adiante essas questotildees seratildeo vistas com mais detalhes inclusive o papel da

cenografia como determinante na classificaccedilatildeo do gecircnero em questatildeo

Talvez um dos pontos nevraacutelgicos das discussotildees ateacute aqui levantadas sobre os

diferentes posicionamentos dos pesquisadores seja a falta de determinaccedilatildeo destes a

respeito das questotildees sobre o uso dos termos carta e epiacutestola na Antiguidade Natildeo

eacute objetivo deste trabalho uma investigaccedilatildeo exaustiva do modo como os vocaacutebulos

carta e epiacutestola aparecem nos textos da Antiguidade mesmo porque esta pesquisa

natildeo comporta a dimensatildeo dessa tarefa O que eacute viaacutevel em termos praacuteticos eacute

observar algumas amostras de textos relacionados agrave epistolografia e verificar a

ocorrecircncia do termo epiacutestola O que pode ser constatado eacute que tal termo era usado

na abrangecircncia do sentido de enviar uma mensagem Natildeo parece haver distinccedilatildeo do

112

Segundo Inwood (2010 p xii) ldquocomo os diaacutelogos de Platatildeo as cartas de Secircneca criam uma atmosfera de intercacircmbio filosoacutefico interpessoal com a diferenccedila de que o meio dessa troca natildeo eacute a conversa face a face mas a correspondecircncia iacutentima entre amigosrdquo

112

vocaacutebulo pela extensatildeo do texto ou de seus objetivos A consulta a dicionaacuterios de

termos gregos e latinos permite a identificaccedilatildeo dos dois vocaacutebulos carta e epiacutestola

(χάρτης επιστολή) como originaacuterios do grego com sentidos distintos Mantendo a

significaccedilatildeo original dos termos no uso do latim a palavra charta eacute a designaccedilatildeo do

material preparado em forma de folha113 destinado agrave escrita e epistula estaacute

relacionada agrave produccedilatildeo de uma mensagem a ser enviada a um destinataacuterio ausente

Os termos carta e epiacutestola satildeo tratados na atualidade como sendo equivalentes

provocando certa dificuldade em separaacute-los e visualizaacute-los na origem de seus usos

na Antiguidade Pela escassez de pesquisas nesse campo e mesmo de fontes que

permitam estabelecer o modo como o termo carta evoluiu do seu sentido de base

para o atual constata-se certa limitaccedilatildeo na distinccedilatildeo clara do uso desses dois

termos em questatildeo como concebidos no seu valor semacircntico na cultura greco-

romana Pode-se supor que a forccedila metoniacutemica tenha sido determinante no

emprego de um termo no lugar de outro ou seja a forma pelo conteuacutedo havendo

entre ambos uma estreita afinidade ou relaccedilatildeo de sentido Entatildeo a folha de papiro

designada como charta em latim progressivamente passou a designar um dos

conteuacutedos que nela era contido Esta eacute uma hipoacutetese que pode reivindicar uma

possiacutevel localizaccedilatildeo temporal da adesatildeo na inserccedilatildeo semacircntica do uso do termo

carta como forma compartilhado com significado de epiacutestola como conteuacutedo Uma

pesquisa linguiacutestica diacrocircnica com o favorecimento de recursos eletrocircnicos usados

pela linguiacutestica de corpus114 poderia ser requisitada como possibilidade de

rastreamento para localizaccedilatildeo do uso dos termos carta e epiacutestola em textos de

origem grega e posteriormente em textos latinos possibilitando a verificaccedilatildeo das

mudanccedilas ocorridas no transcorrer do tempo a partir da Antiguidade claacutessica

O que se percebe eacute que grande parte dos pesquisadores estaacute mais voltada para a

questatildeo da diferenccedila entre carta e epiacutestola em contextos atuais em termos de

conteuacutedo e natildeo exatamente com os seus sentidos fundadores

113

O termo charta em latim eacute apropriado para o uso em portuguecircs da palavra papel carta que eacute um tamanho um pouco menor do que o A4 adequado para escrita de cartas No word 2010 esse recurso natildeo estaacute mais disponiacutevel na paacutegina de configuraccedilatildeo mas pode ser adotado outro recurso na barra de ferramenta porque no setor comercial ainda eacute usado o sistema de envio de cartas Esta eacute uma evidecircncia de como as transformaccedilotildees tecnoloacutegicas afetam a permanecircncia de determinados gecircneros do discurso causando mudanccedilas na forma de comunicaccedilatildeo 114

De acordo com Sardinha (2000 p 325) a linguiacutestica de corpus ocupa-se da coleta e exploraccedilatildeo de corpora ou conjuntos de dados linguiacutesticos textuais que foram coletados criteriosamente com o propoacutesito de servirem para a pesquisa de uma liacutengua ou variedade linguiacutestica

113

Thompson (1893) realizou uma pesquisa bem detalhada e um dos seus interesses

foi mostrar como da proacutepria natureza se extraiacutea materiais como argila metais

papiro madeira pele de animais que eram preparados em forma de tabletes ou

folhas para receber a escrita O que se tem notiacutecia eacute que em especial o papiro

manufaturado com preparo para receber a escrita era designado khaacutertēs em grego e

charta em latim Thompson (1893 p 28) fornece essa informaccedilatildeo sobre a origem

grega do termo ldquoAmong the Greeks the papyrus material manufactured for writing

purposes was called χάρτης (Latin charta ) as well as by the names of the plant

itselfrdquo115 Horaacutecio116 eacute um dos escritores latinos que fez uso do termo charta no

sentido de material usado em sua escrita

Uma descriccedilatildeo proveitosa de Thompson (1893 p 20) em relaccedilatildeo aos materiais

confeccionados para a escrita eacute o uso de taacutebuas de madeira cobertas de cera com

recurso de uma ponta de metal para escrever Quando era somente uma taacutebua no

latim era chamado tabula e um conjunto de tabulae presas em um anel era

designado coacutedex117 Na Greacutecia antiga era comum o envio de mensagens escritas em

taacutebuas de madeira com acabamento em cera As pequenas mensagens eram

escritas nesse material e as mais extensas eram escritas em papiro de acordo com

as informaccedilotildees de Thompson (1893 p21) ldquoas to correspondence small tabletes

codicilli or pugillares118 were employed for short letters longer letters epistolae

were written on papyrusrdquo119 Este autor cita o exemplo de Secircneca (Ep 5511)120 que

em sua epiacutestola a Luciacutelio menciona a diferenccedila entre epistula e codicillus pois este

115

ldquoEntre os gregos o material de papiro manufaturado para fins de escrita era chamado khaacutertēs (charta em latim) bem como pelos nomes da proacutepria plantardquo (THOMPSON 1893 p28) 116

Uso do termo chartae em Horaacutecio (Ep XIII 6-7) Si te forte meae grauis uret sarcina chartae abicito potius quam quo perferre iuberis ldquoNo empenho de servir-me e teacutedio ao livro Com mal cabido zelo me granjeiesrdquo Alexandre Prudente Piccolo (2013) traduziu chartae como livro no sentido de muitos papeis escritos o termo granjeies estaacute explicado em nota como referente ao verbo granjear obter como resultado do trabalho O termo latino charta com significado de papiro como material da escrita eacute tambeacutem encontrado na troca de epiacutestolas entre Jerocircnimo e Agostinho 117

No tratado Brevidade da Vida (XIII 4) Secircneca faz referecircncia agrave origem grega e latina do termo coacutedice como uma armaccedilatildeo de taacutebuas de madeira em uma embarcaccedilatildeo [] plurium tabularum contextus caudex apud antiquos uocatur unde publicae tabulae codices dicuntur 118

Segundo o dicionaacuterio latino-portuguecircs (1967) o termo pugillares significa tabuinhas pequenas para escrever e cabem na matildeo fechada Secircneca usa o termo com a ideia de bloco de anotaccedilotildees ldquoNatildeo te digo que estejas sempre debruccedilado sobre um livro ou um bloco de apontamentosrdquo Neque ego te iubeo semper imminere libro aut pugillaribus (Ep 5 6) 119

Quanto agrave correspondecircncia taacutebuas pequenas codicilli ou pugillares eram empregadas para epiacutestolas curtas epiacutestolas mais longas eram escritas em papiros 120

Video te mi Lucili cum maxime audio adeo tecum sum ut dubitem an incipiam non epistulas sed codicellos tibi scribere Vale (Ep 5511)

114

era feito no formato de uma taacutebua pequena proacuteprio para conter mensagens curtas

como um simples bilhete Era comum a escrita de mensagens de amor em

codicillus121 pois o destinataacuterio poderia responder aproveitando o mesmo material

depois de apagado o texto recebido

Outro termo comumente usado em latim a respeito da escrita eacute a expressatildeo littera

com o mesmo significado da palavra letra em portuguecircs Nas epiacutestolas de Ciacutecero

os termos epistula e littera aparecem de modo indistinto em algumas epiacutestolas mas

haacute certas aplicaccedilotildees desses termos que parecem ser mais adequadas a

determinados contextos do que estaacute sendo dito Como exemplo na coleccedilatildeo de

epiacutestolas dirigidas ao seu amigo Aacutetico (Ad Aticcum I XIII) quando Ciacutecero faz

referecircncia ao recebimento ou envio de uma missiva ele opta pela designaccedilatildeo

epiacutestola Accepi tuas tres iam epistulas (Recebi agora tuas trecircs epiacutestolas) Em Ad

Familiares (I IX1) Ciacutecero usa o termo litterae que pode ser entendido tambeacutem como

referecircncia agraves palavras do texto da epiacutestola que ele recebeu de seu amigo

Periucundae mihi fuerunt litterae tuae (Tuas palavrasepiacutestolas foram gratificantes

para mim) Nessa perspectiva litterae no plural pode referir-se ao valor do texto122

Na coleccedilatildeo de suas epiacutestolas Pliacutenio tambeacutem recorre aos termos epistula e littera

como sinocircnimo em alguns contextos de um mesmo campo semacircntico Em outra

situaccedilatildeo Pliacutenio123 faz uso do termo litterae referindo-se ao amigo Tiacutecio Aristo

competente no direito puacuteblico e privado como homem das letras (litterae) e das

artes Secircneca tambeacutem costuma referir-se agrave littera como termo aplicado ao modo

da escrita ou aos estudos literaacuterios de forma abrangente

121

Pliacutenio usa o termo epistulas para se referir aos diversos tipos de correspondecircncia na primeira epiacutestola da coleccedilatildeo Frequenter hortatus es ut epistulas si quas paulo curatius scripsissem colligerem publicaremque (Ep I1) ldquoFrequentemente aconselhaste-me a reunir e publicar as epiacutestolas se as tivesse escrito um pouco mais esmeradamenterdquo (Trad Marco Antonio da Costa (2013) 122

No livro de Atos 2624 de acordo com o texto latino da nova vulgata haacute o relato do discurso de Paulo diante de Festo e este se dirige ao interrogado dizendo Sic autem eo rationem reddente Festus magna voce dixit ldquo Insanis Paule multae te litterae ad insaniam convertunt ldquoE dizendo ele isto em sua defesa disse Festo em alta voz Estaacutes louco Paulo as muitas letras te fazem delirarrdquo (Atos 2624) Nesse contexto o termo litterae denota um grau distinto de conhecimento na transmissatildeo do discurso e ldquomuitas letrasrdquo (litterae) tem emprego metoniacutemico 123

[] ut mihi non unus homo sed litterae ipsae omnesque bonae artes [] ldquopara mim natildeo eacute apenas um homem mas as proacuteprias letras e todas as boas artesrdquo (Ep I 22 1) Traduccedilatildeo de Kaacutetia Regina Giesen

115

Em relaccedilatildeo ao gecircnero epistolograacutefico a influecircncia de Ciacutecero eacute relevante e marcada

no periacuteodo da Patriacutestica e o seu modo de produzir epiacutestolas ecoa tambeacutem na escrita

de Satildeo Jerocircnimo e Santo Agostinho124 Com base na praacutetica da tradiccedilatildeo antiga

Jerocircnimo e Agostinho fazem uso dos termos epistula e littera como sinocircnimo125

Outros vocaacutebulos de valor semacircntico no campo da epistolografia romana aparecem

nas epiacutestolas dos dois correspondentes como usados na origem dos termos charta

codicillus tabelarius (mensageiro) Guarniere (2016 p 28) observa que por algumas

indicaccedilotildees encontradas na troca de correspondecircncia entre Jerocircnimo e Agostinho a

citaccedilatildeo ao material por eles usado na escrita das epiacutestolas era charta folha de

papiro Tal fato pode ter sido determinante para a migraccedilatildeo dos termos epistula e

littera do latim para carta em portuguecircs

Tanto as epiacutestolas de Ciacutecero quanto as de Jerocircnimo e Agostinho devem tambeacutem ter

contribuiacutedo para a permanecircncia do uso de littera como sinocircnimo de epistula Em um

documento que narra as viagens portuguesas agrave India entre 1500 e 1505 o tiacutetulo

tem o seguinte teor Copia de uma littera del Re de Portagallo madata al Re de

Castella Joaquim Arauacutejo foi o organizador e comentador desses documentos como

livro de memoacuterias (1892) e deu a seguinte traduccedilatildeo ao tiacutetulo Coacutepia de uma carta do

Rei de Portugal mandada ao Rei de Castella O que se constata eacute que em 1892 o

termo carta no portuguecircs jaacute havia se estabelecido em lugar de littera

Como visto de modo geral as designaccedilotildees no latim como charta tabula codicillus

eram referentes ao formato dado ao papiro pergaminho ou madeira como uma

espeacutecie de folha para utilizaccedilatildeo da escrita e littera como sinais da escrita na

composiccedilatildeo do texto Epistola na sua abrangecircncia nomeava a correspondecircncia de

mensagens enviadas com finalidades variadas Essas informaccedilotildees sobre recursos

124

Segundo informaccedilotildees de Furlan (2006 p 284) Jerocircnimo (347 - 420 dC) era profundo conhecedor dos textos biacuteblicos das liacutenguas grega aramaica e hebraica da literatura grega e latina retoacuterica e filosofia Aleacutem dos tratados haacute uma coleccedilatildeo de 120 cartas de sua autoria Entre 383 e 406 traduziu os textos da Septuaginta e a biacuteblia hebraica para o latim Jerocircnimo era mais ou menos vinte anos mais velho do que Agostinho A troca de correspondecircncia entre os dois funcionava tambeacutem como diaacutelogo no intercatildembio de ideias e opiniotildees 125

No iniacutecio de uma das epiacutestolas dirigidas a Agostinho Jerocircnimo usa os termos littera e epistula Tandem ex Africa vestrae litteras uninimitatis accepi et non me poenitet impudentiae qua tacentibus vobis epistulas meas frequenter ingressi ut rescriptum mererer et vos esse sospites [] ldquoEnfim recebi da Aacutefrica a carta de vossa unanimidade natildeo me incomoda minha ousadia ter malgrado vosso silecircncio insistido com frequecircncia em minhas cartas para que eu merecesse uma resposta rdquo [] ( Ep 1261) Em uma das respostas de Agostinho a Jerocircnimo eacute usado o termo littera e tambeacutem epistula [] ut vix possem meas dare vix recipere litteras tuas (por causa da distacircncia) [] ldquomal posso te enviar cartas minhas e receber as tuasrdquo (Ep 1661)[] in qua epistula etiam mei commemoratione benevolentissime facere dignatus es [] ldquocarta que tu tiveste a dignidade de fazer com muito boa vontade menccedilatildeo a mimrdquo (Ep 1668) Traduccedilotildees de Felipe de Medeiros Guarniere (2016)

116

materiais uacuteteis para a produccedilatildeo de epiacutestolas na vigecircncia do seacuteculo I aC e I e II d

C satildeo encontradas por exemplo nos textos das epiacutestolas de Ciacutecero Horaacutecio

Secircneca e Pliacutenio Nesse periacuteodo natildeo havia uma inclusatildeo sistemaacutetica da epistolografia

nos estudos da retoacuterica Quanto a essas questotildees Murphy (1981 p 195) comenta

sobre a ausecircncia de tratamento retoacuterico na produccedilatildeo de epiacutestolas entre os romanos

Tal registro soacute eacute identificado a partir do seacuteculo IV dC atraveacutes da obra Ars

Rhetorica de Caio Juacutelio Viacutetor escritor romano do seacuteculo IV dC que decidiu aplicar

os ensinamentos retoacutericos de Ciacutecero e Quintiliano agraves produccedilotildees de epiacutestolas

Segundo informaccedilotildees de Murphy (1981 p 196) Juacutelio Viacutetor procurou situar o gecircnero

epistolar dividindo-o em dois tipos oficiais e familiares As epistolas classificadas

como oficiais poderiam conter uma mateacuteria argumentativa mais erudita e o emprego

de linguagem figurada Nas familiares seria conveniente o desenvolvimento do

assunto de forma clara e breve Outro ponto de destaque seria o cuidado na redaccedilatildeo

do texto de acordo com o tipo de destinataacuterio Nessa abordagem de Juacutelio Viacutetor

verifica-se uma semelhanccedila com o comentaacuterio de Ciacutecero feito na Epiacutestola Ad

Familiares (II 41) sobre a existecircncia de vaacuterias formas de epiacutestolas em sua eacutepoca

Em suas colocaccedilotildees Ciacutecero relembra a importacircncia fundamental da epiacutestola como

comunicaccedilatildeo entre ausentes e ainda complementa que as formas de epiacutestolas que

mais lhe agradavam eram as familiares e jocosas como tambeacutem as de tom severo

e grave

Juacutelio Viacutetor desenvolve suas consideraccedilotildees e classificaccedilotildees do gecircnero epistolar com

base em referecircncias de Ciacutecero e ainda manteacutem o uso dos termos littera e epistola

como pertencentes ao mesmo campo semacircntico conforme o conteuacutedo apresentado

em sua obra Depois da investida de Juacutelio Viacutetor em tratar o retoacuterico no campo da

epistolografia somente seiscentos anos depois esse tema readquire o seu valor

com o ressurgimento da epistolografia Murphy (1981 p 203) destaca que o seacuteculo

XI ficou registrado por uma nova arte epistolar a ars dictaminis126 que fez renascer a

126

Murphy (1981 216) discute algumas questotildees sobre as inovaccedilotildees do ars dictaminis como tratado que se constitui como teoria para a elaboraccedilatildeo de uma epiacutestola Nas instruccedilotildees desse manual a estrutura da epiacutestola deveria compor trecircs partes exordium narratio e conclusio seguindo o modelo de Ciacutecero A novidade eacute que o exordium deveria ser antecedido pelo salutatio sendo essa organizaccedilatildeo exclusiva do gecircnero epistolar A escolha da forma do salutatio dependeria do tratamento a ser dado ao destinataacuterio

117

retoacuterica ciceroniana adaptando-a aos modos do gecircnero epistolar e se estendendo

aos seacuteculos seguintes127

Quando se faz uma relaccedilatildeo entre os termos epistula e littera nota-se que em

determinados campos da linguagem o vocaacutebulo littera exerceu certa predominacircncia

em sua permanecircncia Algumas questotildees histoacutericas contribuem para elucidar alguns

pontos que identificam possiacuteveis explicaccedilotildees Gary Scheiner (2005) elaborou uma

pesquisa no intento de verificar como a Inglaterra tambeacutem herdou da Antiguidade o

haacutebito da correspondecircncia sendo que Ciacutecero se constituiu como modelo pelo fato

de ter se dedicado agraves epiacutestolas familiares Scheiner (2005 p42) aponta para a

influecircncia da epistolografia da Antiguidade em escritores do seacuteculo IV d C e por

conseguinte em escritores dos seacuteculos XIV e XVI dC com destaque para Petrarca

que em 1345 descobriu no mosteiro de Verona um manuscrito contendo epiacutestolas de

Ciacutecero que se tornaram fonte de redescoberta da Antiguidade Outro destaque eacute

para Erasmo de Roterdatilde que escreveu a obra De Conscribendis Epistolis (A

composiccedilatildeo de epiacutestolas) e nos meados do seacuteculo XVI essa publicaccedilatildeo se tornou

popular na Europa contribuindo para o crescente interesse na produccedilatildeo das

diferentes formas de correspondecircncia

Segundo informaccedilotildees de Schneider (2005 p 43) no final do seacuteculo XVI na

Inglaterra jaacute se optava pela escrita das correspondecircncias com o uso da liacutengua

inglesa e natildeo mais o latim como era o costume E no seacuteculo seguinte passou-se a

escrever as epiacutestolas com mais preocupaccedilatildeo quanto agraves boas maneiras e eacutetica do

127 No dizer de Peacutecora (2001 p 28) a histoacuteria do seacuteculo XVI registrou um novo momento quanto agrave

importacircncia do gecircnero epistolar e pela lideranccedila de seu reformador Inaacutecio de Loyola fundador da ordem dos jesuiacutetas foi implantada a nova epistolografia servindo como elo de ligaccedilatildeo das ideias de Loyola com os membros da companhia que se espalharam por vaacuterios lugares inclusive o Mundo Novo Os primeiros missionaacuterios da Companhia de Jesus a chegar ao Brasil foram requisitados por D Joatildeo III em 1549 chefiados pelo Pe Manuel da Noacutebrega e o Pe Joseacute de Anchieta se agregou ao grupo em 1553 O Pe Heacutelio Abranches Viotti (1984 p 14) em suas notas da traduccedilatildeo das cartas de Anchieta relata que este por dominar a escrita da liacutengua latina foi designado por Noacutebrega para escrever as cartas destinadas aos grupos da companhia residentes em Roma e Portugal De quatro em quatro meses as informaccedilotildees do trabalho dos jesuiacutetas no Brasil eram enviadas e posteriormente anualmente Viotti (1984 p66) menciona que as cartas eram escritas em latim pelo fato de necessidade de publicaccedilatildeo do documento em paiacuteses da Europa sendo o latim a liacutengua mais favoraacutevel agrave escrita como forma de comunicaccedilatildeo Nos arquivos dessas cartas originais o tiacutetulo eacute identificado como Annuae litterae Provinciae Brasiliae anni 1581 Nesse contexto propiacutecio padre Vieira foi um continuador da praacutetica do recurso do gecircnero epistolar Segundo informaccedilotildees de Bettiol (2008 p 38) as 200 cartas de Vieira conservadas ou recuperadas foram organizadas em trecircs volumes por Joatildeo Luacutecio de Azevedo (1928) Vieira costumava escrever suas cartas em portuguecircs e tambeacutem em latim Esse fato eacute relevante para se pensar sobre a permanecircncia do latim na escrita influenciando o desenvolvimento da liacutengua portuguesa que progressivamente se estabeleceu definitivamente

118

que o modelo retoacuterico praticado anteriormente Outra ocorrecircncia determinante nos

seacuteculos XVI e XVII de acordo com o relato de Schneider (2005 p 49) foi o registro

das traduccedilotildees do latim para o inglecircs das coleccedilotildees de epiacutestolas de Ciacutecero Secircneca

Pliacutenio Jerocircnimo Erasmo e outros Na nova fase que se instaurou as epiacutestolas

produzidas poderiam ter um caraacuteter oficial familiar intelectual ampliando-se

tambeacutem para o campo da literatura Pode-se inferir que na transmissatildeo da escrita da

correspondecircncia do latim para o inglecircs o termo littera jaacute estabelecido como

sinocircnimo de epiacutestola na correspondecircncia de Ciacutecero passa a ser designado como

letter Assim como eacute possiacutevel o uso metoniacutemico de charta para significar a parte pelo

todo tambeacutem o vocaacutebulo littera em algumas situaccedilotildees tambeacutem seria usado como

metoniacutemia em que o todo assume a designaccedilatildeo das partes ou seja littera (letra) em

lugar de epistola Essas interferecircncias no uso da linguagem podem ter causado a

heranccedila progressiva do termo charta em latim para carta em portuguecircs e littera para

lettre em francecircs e letter em inglecircs transformando-se em sinocircnimo de epiacutestola

nessas liacutenguas

O que se pode extrair dessas consideraccedilotildees feitas eacute que apesar de epiacutestola e carta

ou epiacutestola e letter serem consideradas como sinocircnimo no portuguecircs e no inglecircs haacute

uma distacircncia temporal que separa o uso e signifcados dos termos Assim como a

palavras carta e letter por si soacute natildeo abarcam todas as formas de correspondecircncia

tambeacutem o mesmo acontecia com a designaccedilatildeo epiacutestola como questionada desde

os estudos de Demeacutetrio

Uma possibilidade de diferenciar o modo de produzir epiacutestola na Antiguidade seria

pensar essa questatildeo em termos de gecircnero de forma bem abrangente como

defendida por Gregory Hutchinson (2013 p 19) quando ele afirma The conception

of super-genres helps us to think further about genre128 A atenccedilatildeo deste autor se

volta em especial para a poesia pois na Antiguidade as formas especiacuteficas da

criaccedilatildeo poeacutetica eacute que designam o que ele defende como supergecircnero na falta de

um termo mais apropriado As formas poeacuteticas na Antiguidade satildeo classificadas

como hexacircmetro elegia liacuterica e drama sendo cada uma destas um supergecircnero

que abarca seus subgrupos especiacuteficos e estes tambeacutem podem ser desdobrados

Desse modo eacute adequado dizer que trageacutedia e comeacutedia estariam ligadas ao

128

ldquoA concepccedilatildeo de supergecircnero nos ajuda a pensar mais amplamente sobre o gecircnerordquo

119

supergecircnero drama Na comeacutedia seriam derivados os subconjuntos comeacutedia antiga

e comeacutedia nova

Essa maneira de pensar os gecircneros na poeacutetica da Antiguidade pode servir de

analogia para aplicaccedilatildeo aos gecircneros na prosa129 Visto que as discussotildees e

definiccedilotildees do conceito de epistolografia remontam aos tempos mais antigos vale

tentar compreender essas questotildees em termos de supergecircnero Hutchinson fornece

para a pesquisa aqui desenvolvida uma opccedilatildeo mais abrangente sobre o gecircnero

epistolograacutefico e sua conexatildeo com outros situados em suas fronteiras O gecircnero

epistolar poderia estar ligado a um gecircnero maior como centralizador de vaacuterios meios

de linguagem no campo da prosa que fossem detentores de uma identificaccedilatildeo

baacutesica em comum O esquema que se segue delineia de forma bem generalizada o

lugar que poderia ser ocupado pela epistolografia ao se interligar ao gecircnero diaacutelogo

como um ponto centralizador de inclusatildeo de subconjuntos como epiacutestolas e tratados

e cada um destes definiriam seus derivados

Filosoacutefica ndash Familiar ndash Instrutiva Filosoacutefico ndash Poliacutetico ndash Moral

A forma do diaacutelogo na escrita como estrateacutegia de argumentaccedilatildeo foi desenvolvida

na Antiguidade para atender a demanda da necessidade de transferecircncia da

expressatildeo oral para a escrita na composiccedilatildeo dos textos De acordo com o

comentaacuterio de Dioacutegenes Laeacutercio (Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres III 25)130

129

Hutchinson (2013) fornece para a pesquisa aqui desenvolvida uma contribuiccedilatildeo que possibilita uma opccedilatildeo mais abrangente e definida para se pensar o gecircnero epistolar 130

Dioacutegenes Laeacutercio (200-250) eacute considerado historiador e bioacutegrafo dos filoacutesofos gregos A sua maior obra eacute Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres organizada em dez livros que contecircm fontes de informaccedilotildees e comentaacuterios sobre o desenvolvimento da filosofia grega

Gecircnero centralizador - supergecircnero

Diaacutelogo

Epiacutestolas

Tratados

120

Zenatildeo de Eleia131 para alguns teria sido o fundador do gecircnero diaacutelogo e Aristoacuteteles

no livro Os Poetas afirma ter sido Alexacircmeno de Teos132 Partindo das

discordacircncias sobre tal questatildeo Dioacutegenes prefere creditar a Platatildeo o lugar de

fundador do gecircnero diaacutelogo Como justificativa de sua escolha Dioacutegenes (III 26) cita

as vaacuterias obras de Platatildeo em forma de diaacutelogo sobre a loacutegica fiacutesica moral

poliacutetica incluindo tambeacutem epiacutestolas

O ponto crucial da noccedilatildeo de diaacutelogo133 em textos da Antiguidade eacute a forma de

interaccedilatildeo entre falantes que se presentificam atraveacutes de sua voz no texto

participando como interlocutores no discurso Assim a finalidade do gecircnero diaacutelogo

eacute proporcionar a transformaccedilatildeo do sentido de ausecircncia fiacutesica de quem fala pela

presenccedila da manifestaccedilatildeo de sua voz no texto escrito Partindo desta premissa esta

eacute a marca centralizadora de identificaccedilatildeo do diaacutelogo que o condiciona a funcionar

como supergecircnero

Platatildeo inaugura a escrita em prosa na forma de diaacutelogo no prolongado periacuteodo de

transiccedilatildeo entre oralidade e escrita na produccedilatildeo dos textos na cultura grega

Havelock (1986 p 150) concebe a transferecircncia dessa oralidade como fator

determinante para a escolha do gecircnero diaacutelogo na produccedilatildeo de Platatildeo

Aleacutem do diaacutelogo servir como ponte para a passagem da oralidade para a escrita ele

tambeacutem eacute intermediaacuterio entre a poesia e a prosa Havelock (1986 p 35) expotildee

algumas consideraccedilotildees sobre a continuidade da influecircncia da trageacutedia grega sobre a

prosa em relaccedilatildeo agrave conservaccedilatildeo dos valores da tradiccedilatildeo oral O caraacuteter didaacutetico das

peccedilas foi transmitido tambeacutem aos diaacutelogos e retoacuterica por meio dos personagens que

defendiam os argumentos no discurso Desse modo a implantaccedilatildeo da escrita via

diaacutelogo serviu de suporte para a escritura do pensamento filosoacutefico platocircnico

influenciando a produccedilatildeo de outros gecircneros com raiacutezes no diaacutelogo

131

Zenatildeo de Eleia (aprox 490 a 430 aC) filoacutesofo preacute-socraacutetico da escola eleaacutetica Disciacutepulo de Parmecircnides de Eleia e defensor de suas ideias 132

De acordo com Fragmentos dos diaacutelogos de Aristoacuteteles vol X o primeiro autor do diaacutelogo teria sido Alexameno de Teos poreacutem nada se conhece a respeito desse autor 133

O diaacutelogo eacute tambeacutem usado na literatura hebraica o livro de Joacute eacute constituiacutedo de prosa na introduccedilatildeo e epiacutelogo e poesia em forma de diaacutelogo nas demais partes Os diaacutelogos em forma de poesia satildeo realizados atraveacutes dos discursos de Joacute com seus trecircs amigos Elifaz Bildade e Zofar surgindo Eliuacute como quarto personagem na discussatildeo O diaacutelogo se encerra com a conversa entre Joacute e Deus

121

A tentativa de compreensatildeo da forma como eram construiacutedos os diaacutelogos na

Antiguidade estaacute limitada a uma comparaccedilatildeo da produccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo134

e Ciacutecero135 Conclui-se que essa eacute a possibilidade mais razoaacutevel pela ausecircncia da

obra de Aristoacuteteles sobre diaacutelogo pois o que sobrevive desta satildeo fragmentos

extraiacutedos de citaccedilotildees e testemunhos de autores antigos O proacuteprio Ciacutecero (Ep Ad

At XIII XIX 4)136 fornece o seguinte depoimento ldquoO que escrevi naqueles tempos eacute

ao modo aristoteacutelico no qual a conversa dos outros eacute introduzida de tal forma que o

papel principal eacute reservado ao proacuteprio autorrdquo137 Com essa contribuiccedilatildeo pode-se

deduzir que Aristoacuteteles produz seus diaacutelogos de forma diferente e modificada em

relaccedilatildeo agraves produccedilotildees de seu mestre Platatildeo

A finalidade do paralelo feito entre os diaacutelogos platocircnicos e ciceronianos visa

contribuir para identificaccedilatildeo do uso do gecircnero diaacutelogo na Antiguidade Powell (2005

p 233) sustenta que haacute possibilidade de identificaccedilatildeo de alusotildees entre os diaacutelogos

de Platatildeo e Ciacutecero Mesmo sendo notoacuteria a influecircncia de Platatildeo em Ciacutecero haacute

peculiaridades na produccedilatildeo literaacuteria deste que marcam tambeacutem certa heranccedila

aristoteacutelica Por um lado Platatildeo natildeo se identifica como personagem em seus

diaacutelogos sendo Soacutecrates a figura principal no comando das discussotildees na maior

parte das produccedilotildees Por outro lado Ciacutecero tendo Aristoacuteteles como modelo conduz

o discurso em seus diaacutelogos como personagem principal

Mais de um seacuteculo depois Taacutecito escritor e historiador latino segue Ciacutecero como

paracircmetro optando pela escolha do uso do diaacutelogo na obra intitulada O diaacutelogo dos

oradores138 Em uma anaacutelise dessa produccedilatildeo Joly (2009 p 21) comenta que aleacutem

134

Platatildeo se manteacutem no anonimato na produccedilatildeo dos seus diaacutelogos Como a responsabilidade da direccedilatildeo dos debates recai sobre o personagem Soacutecrates o posicionamento de Platatildeo natildeo eacute declarado 135

Lima (2008 p126) comenta que nos diaacutelogos De finibus ldquoCiacutecero natildeo apenas se representa como personagem que tem papel importante em todos os trecircs diaacutelogos eacute tambeacutem ele que falando em primeira pessoa introduz cada um dos diaacutelogos particulares em proecircmios que antecedem as accedilotildees representadas Aleacutem disso basta lermos o iniacutecio da obra para reconhecermos outro elemento que natildeo encontraacutevamos nos modelos platocircnicos a obra toda como se fosse uma espeacutecie de epiacutestola eacute endereccedilada a um destinataacuterio a Marco Brutordquo 136

quae autem his temporibus scripsi Aristoteleion morem habent in quo ita sermo inducitur ceterorum ut penes ipsum sit principatus (Ep Ad At XIII XIX 4) 137

Traduccedilatildeo de Antonio de Castro Caeiro 138

Joly (2009 p 20) informa que Taacutecito a pedido de Faacutebio Justo propotildee-se a relatar um diaacutelogo que ouvira quando jovem acerca do decliacutenio da eloquecircncia Os interlocutores do diaacutelogo satildeo Maternus Aper Secundus e Messalla O acontecimento que desencadeou o debate foi a recepccedilatildeo negativa da trageacutedia Catatildeo produzida por Maternus e este eacute induzido a trocar a poesia pela oratoacuteria mas a sua atitude eacute a insistecircncia em favor da poesia Com a chegada de Messala o quarto participante o assunto circula em torno da defesa dos oradores antigos O tema do debate sobre o decliacutenio da

122

da identificaccedilatildeo de Taacutecito com o gecircnero diaacutelogo neste pode ser feito um paralelo

com De oratore de Ciacutecero tendo como ponto comum a discussatildeo sobre a oratoacuteria

Com o recurso da narrativa Taacutecito compotildee o diaacutelogo atraveacutes dos personagens que

o antecederam para trazer uma discussatildeo antiga mas ainda em voga em seu

tempo Powell (2005 p 236) comenta que a forma do gecircnero diaacutelogo possibilitou a

Taacutecito uma escolha loacutegica da apresentaccedilatildeo de contrastes entre pontos de vista

sobre a eloquecircncia Assim o gecircnero diaacutelogo funciona como um recurso de

aproximaccedilatildeo entre os ausentes que se aproximam pelo interesse da discussatildeo

interligados aos leitores separados pela distacircncia espaccedilo-temporal

O gecircnero epistolar e o tratado satildeo portadores de caracteriacutesticas que indicam suas

raiacutezes no diaacutelogo O proacuteprio Platatildeo fez uso desses gecircneros como estrateacutegia

educacional de seu cabedal filosoacutefico Goldschmidt (2002 p27) faz um paralelo

entre a epiacutestola VII de Platatildeo com o seu diaacutelogo sobre A Repuacuteblica identificando

traccedilos comuns entre partes dessas duas produccedilotildees filosoacuteficas Assim Aristoacuteteles no

papel de disciacutepulo de Platatildeo optou tambeacutem pelo uso do recurso do diaacutelogo como

desencadeador do gecircnero epiacutestolar como testemunha Demoacutestenes com a seguinte

informaccedilatildeo ldquoAacutertmon o editor de cartas de Aristoacuteteles disse que se deve do mesmo

modo escrever diaacutelogo e cartas pois a carta deve ser como uma das duas partes

do diaacutelogordquo (Sobre o estilo IV 223)

Na Antiguidade diaacutelogo tratado e epiacutestola conviviam em estreita relaccedilatildeo

ocasionando em determinadas situaccedilotildees a ausecircncia de limites entre as fronteiras

de cada gecircnero139 Entatildeo a diferenccedila estaacute mais focalizada no objeto do que na

forma de desenvolvimento do tema proposto como pode ser notado na composiccedilatildeo

da Repuacuteblica de Ciacutecero e a Histoacuteria Natural de Pliacutenio o Velho O toacutepico comum na

composiccedilatildeo do gecircnero era um preacircmbulo e dedicatoacuteria a algum personagem e o

caraacuteter didaacutetico do tratado fornecia o tom de conversa entre escritor e leitor

Segundo informaccedilotildees de Powell (2005 230) os tratados na Antiguidade tinham uma

estreita ligaccedilatildeo com a retoacuterica e a filosofia sendo que estas duas aacutereas se

mostraram favoraacuteveis agraves produccedilotildees de tratados na literatura latina

eloquecircncia eacute um toacutepos recorrente em outros autores como Secircneca o Velho Petrocircnio Pliacutenio Quintiliano e Secircneca na epiacutestola 114 1-2 indaga ldquo qual a causa que provoca em certas eacutepocas a decadecircncia geral do estilordquo O proacuteprio Secircneca enfatiza que a questatildeo eacute tatildeo antiga que os gregos ateacute fizeram dela um proveacuterbio ldquoo estilo eacute um reflexo da vidardquo 139

Powell (2005 p224) distingue as diferentes formas de tratados na Antiguidade como uma especialidade em um campo determinado ou simplesmente a sistematizaccedilatildeo de uma informaccedilatildeo

123

A fronteira que delimita diaacutelogo tratado e epiacutestola na Antiguidade eacute tecircnue e este

fenocircmeno causa discussotildees entre pesquisadores e diferentes posicionamentos

como jaacute visto ateacute aqui Como forma de ampliar a visatildeo sobre essas questotildees sobre

epistolografia Gibson (2013 p 388) alega que ldquothe letter does not lose its identity

when it plays host to other generic elementsrdquo140 Com esta afirmaccedilatildeo de Gibson de

que a carta natildeo perde sua identidade quando acolhe elementos de outros gecircneros

fica pressuposto que o essencial eacute a manutenccedilatildeo das caracteriacutesticas proacuteprias e

fundamentais de cada gecircnero

A epistolografia no lugar de subgrupo do diaacutelogo como gecircnero centralizador

manteacutem sua identidade proacutepria mas tambeacutem gera subgrupos que dela se originam

Por isso as epiacutestolas de Secircneca e de Paulo satildeo tratadas neste trabalho como

partes de um subgrupo do diaacutelogo que se subdivide mas que conserva as

caracteriacutesticas baacutesicas de epiacutestolas

Como jaacute discutido anteriormente a cena geneacuterica na enunciaccedilatildeo eacute identificada pelo

gecircnero do discurso o qual estabelece o modo de dizer na cena enunciativa

Maingueneau (2008a p 116) ressalta que ldquona medida em que os gecircneros satildeo

instituiccedilotildees de fala soacutecio-historicamente definidas sua instabilidade eacute grande e eles

natildeo se deixam apreender em taxonomias compactasrdquo Esta eacute uma observaccedilatildeo

pertinente para auxiacutelio na atenccedilatildeo necessaacuteria ao identificar o modo como o gecircnero

epistolar se estabelece e diversifica na escritura de Secircneca e de Paulo a partir do

discurso constituinte como base na elaboraccedilatildeo deste gecircnero em foco

21 PAULO E SUAS EPIacuteSTOLAS AgraveS IGREJAS

Eacute fundamental situar que Secircneca e Paulo viveram em um mesmo momento

histoacuterico e o diferencial na produccedilatildeo de suas epiacutestolas contribui para a observaccedilatildeo

da razoabilidade na flexatildeo da produccedilatildeo gecircnero epistolar naquele periacuteodo Outro

fator preponderante que se observa eacute o propoacutesito final daquelas epiacutestolas Becker

(2007 p 24) destaca o fato de Paulo ser pioneiro entre os primeiros cristatildeos no

uso do gecircnero epistolar para transmissatildeo de seus ensinamentos e juntamente com

os romanos que fizeram uso desse gecircnero serviu de modelo para o ressurgimento

da epistolografia no seacuteculo IV dC no periacuteodo da Patriacutestica

140

ldquoA carta natildeo perde a sua identidade quando acolhe outros elementos geneacutericos

124

Se comparadas as finalidades das produccedilotildees das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

mede-se uma distacircncia entre elas De acordo com Becker (2007 p 21) haacute uma

diferenccedila marcante entre os propoacutesitos da escrita das epiacutestolas de Paulo e as dos

escritores romanos Ebbeler (2001 p 68) menciona que no seacuteculo I dC as

epiacutestolas de Ciacutecero jaacute se integravam nos ciacuterculos de leitura fato que colaborou para

o reconhecimento do enquadramento da epiacutestola no campo da literatura latina

Ebeller (2001 p 67) ainda destaca que a composiccedilatildeo das coleccedilotildees de epiacutestolas de

Secircneca e Pliacutenio tinha como finalidade o encaminhamento agrave divulgaccedilatildeo e publicaccedilatildeo

Quanto a esse aspecto a influecircncia de Ciacutecero tornou-se fundamental na realizaccedilatildeo

desses propoacutesitos

Para os escritores romanos de um modo geral a obra literaacuteria servia como recurso

para sustentaccedilatildeo e permanecircncia da imagem de seu autor permitindo sua

imortalidade O proacuteprio Secircneca faz referecircncia a esse fato comentando sobre o valor

da correspondecircncia como forma de divulgar certos personagens possibilitando a

oportunidade de seus nomes serem perpetuados

Satildeo as cartas de Ciacutecero que natildeo deixam esquecer o nome de Aacutetico De nada lhe adiantaria ter tido como genro Agripa como genro-neto (progener) Tibeacuterio como bisneto Druso Ceacutesar no meio de tatildeo ilustres nomes o nome de Aacutetico permaneceria esquecido se Ciacutecero o natildeo tivesse ligado para sempre ao seu (SEcircNECA Ep214)

Segundo Becker as epiacutestolas de Paulo natildeo se encaixavam nesse objetivo da

produccedilatildeo literaacuteria visto que seus propoacutesitos se mostravam mais imediatos visando

atender as comunidades cristatildes como destinataacuterias diretas em seus

questionamentos e problemas Poreacutem independente de qualquer intencionalidade

as epiacutestolas de Paulo serviram de instruccedilotildees natildeo somente aos destinataacuterios

indicados mas tornaram-se fontes de ensinamentos fundamentais na implantaccedilatildeo e

expansatildeo do cristianismo

Ponderando os objetivos especiacuteficos e limitados que perseguem as cartas de Paulo eacute evidente que o Apoacutestolo conseguiu afrontar a situaccedilatildeo historicamente limitada em que se encontrou de forma que as outras comunidades desde aquele tempo ateacute hoje viram-se refletidas nelas e puderam ler e perceber seu conteuacutedo como orientaccedilatildeo Enfim elas se encontraram com uma compreensatildeo no cristianismo que se julgava de validade geral e que pelo visto conseguiu impor- se com forccedila persuasiva Essa luz interior de suas cartas demonstrou-se sem sombra de duacutevidas decisiva na coleccedilatildeo e conservaccedilatildeo de sua correspondecircncia (BECKER 2007 p 22)

125

O proacuteprio Becker expotildee que as epiacutestolas de Paulo natildeo eram detentoras de

propoacutesitos literaacuterios mas pela essecircncia e significados de seus conteuacutedos foram

ampliadas para um puacuteblico natildeo restrito possibilitando o seu encaixamento no

gecircnero literaacuterio visto que foram copiadas em manuscritos de diferentes origens o

que favoreceu a permanecircncia dos textos

O apoacutestolo Pedro fornece um depoimento em sua segunda epiacutestola que autentica a

credibilidade de Paulo e ressalta o seu valor

[] e tende por salvaccedilatildeo a longanimidade de nosso Senhor como tambeacutem o nosso amado irmatildeo Paulo vos escreveu segundo a sabedoria que lhe foi dada como faz tambeacutem em todas as suas epiacutestolas nelas falando acerca destas coisas nas quais haacute pontos difiacuteceis de entender que os indoutos e inconstantes torcem como o fazem tambeacutem com as outras Escrituras para sua proacutepria perdiccedilatildeo (2 Pedro 31516)

Os comentaacuterios de Pedro contribuem como informaccedilatildeo sobre a circulaccedilatildeo das

epiacutestolas de Paulo e a praacutetica da leitura fora da esfera especiacutefica dos destinataacuterios

Parece relevante a qualidade e profundidade dos textos e a forma responsaacutevel como

o gecircnero epistolar foi requisitado como recurso da comunicaccedilatildeo e ensinamentos de

concepccedilotildees espirituais tatildeo profundas ateacute mesmo inatingiacuteveis para alguns

Paulo tambeacutem usa o termo epiacutestola141 ao referir-se agraves suas correspondecircncias

destinadas agraves igrejas ldquoPelo Senhor vos conjuro que esta epiacutestola seja lida a todos

os irmatildeosrdquo (1 Tess 527) Lucas no livro de Atos faz uso do termo epiacutestola em

contexto diferente ldquoE pediu-lhe cartas para Damasco para as sinagogas a fim de

que se encontrasse alguns deste Caminho os conduzisse presos a Jerusaleacutemrdquo

(Atos 92)142 Lucas estaacute se referindo agrave perseguiccedilatildeo aos seguidores de Jesus

comandada por Paulo (Saulo) antes de sua conversatildeo Observa-se que em todas

as traduccedilotildees consultadas das biacuteblias em portuguecircs o termo grego epiacutestola eacute

traduzido como carta talvez como consequecircncia da tendecircncia de se estabelecer a

diferenccedila entre carta e epiacutestola como jaacute discutido anteriormente

141

O termo epiacutestola usado por Paulo aparece tanto no grego como no latim da nova vulgata ορκιζω υμας τον κυριον αναγνωσθηναι την επιστολην πασιν τοις αγιοις αδελφοις Adiuro vos per Dominum ut legatur epistula omnibus fratribus (1 Tess 527) 142

Nessa passagem de Atos 92 nota-se que tambeacutem o tipo de carta como um documento de autorizaccedilatildeo para Paulo perseguir os seguidores de Jesus eacute designado como epiacutestola tanto no texto grego quanto no latino Poreacutem as traduccedilotildees consultadas optam pelo uso do termo carta ητησατο παρ αυτου επιστολας εις δαμασκον προς τας συναγωγας οπως εαν τινας ευρη της οδου δεδεμενους αγαγη εις ιερουσαλημ et petiit ab eo epistulas in Damascum ad synagogas ut si quos invenisset huius vinctos perduceret in Ierusalem (Atos 92)

126

Como se mostra evidente a escolha da escrita da maioria dos livros canocircnicos de

composiccedilatildeo do Novo Testamente segue a forma de epiacutestolas Dos vinte e sete

livros somente seis natildeo se enquadram no gecircnero epistolar mas ainda pode-se

destacar que a epistolografia comparece no livro de Apocalipse por meio das

epiacutestolas dirigidas agraves sete igrejas da Aacutesia Menor Young (2005 p10) reforccedila essa

informaccedilatildeo fazendo comparaccedilatildeo com o interesse nesse tipo de escrita na cultura

greco-romana referindo-se agraves epiacutestolas de Secircneca dirigidas a Luciacutelio

Segundo Hale (1983 p 31) o texto grego mais antigo contendo epiacutestolas de Paulo

eacute o Papyrus P46 datado aproximadamente no final do seacuteculo II dC e foi

produzido no Egito143 Trobisch (2001 p14) tambeacutem identifica que o conjunto das

epiacutestolas de Paulo eacute tratado como coleccedilatildeo como mostram os manuscritos

existentes com destaque para o Papyrus 46P que eacute o manuscrito mais antigo em

forma de livro (coacutedex) pois ateacute o seacuteculo IV dC era mais frequente o uso de rolos

Os cristatildeos foram os primeiros a utilizar com mais frequecircncia o coacutedex pela facilidade

da leitura

As epiacutestolas que compotildeem o Novo Testamento norteiam a organizaccedilatildeo dos textos

nos manuscritos encontrados Os quatro mais antigos satildeo referentes ao seacuteculo IV d

C sendo catalogados e guardados em diferentes bibliotecas que lhes datildeo a

identificaccedilatildeo144 Segundo informaccedilotildees de Trobisch (2001 p 9) nesses quatro

manuscritos mais antigos completos do Novo Testamento estatildeo registradas

quatorze epiacutestolas de Paulo incluindo a de Hebreus A sequecircncia dos livros eacute a

mesma nos quatro manuscritos Romanos 1 e 2 Coriacutentios Efeacutesios Filipenses

Colossenses 1 e 2 Tessalonicenses Hebreus 1 e 2 Timoacuteteo Tito e Filemom Uma

regularidade que se manteacutem nesses manuscritos eacute a unidade do livro de Atos com

as epiacutestolas gerais Tiago 1 e 2 Pedro 1 2 3 Joatildeo e Judas

Euseacutebio de Cesareia faz um comentaacuterio em sua obra indicando que em seu tempo

havia duacutevidas quanto agrave autenticidade da autoria de Paulo da epiacutestola aos Hebreus

143

Segundo Trobisch (2001 p 14) Papyros 46P eacute um livro (coacutedex) que tem 52 folhas dobradas ao meio totalizando 104 folhas e 208 paacuteginas O texto eacute escrito em grego e existem epiacutestolas incompletas ou ateacute ausentes na coleccedilatildeo O manuscrito eacute dividido em dois volumes estando um em Dublin Islacircndia e o outro na Livraria da Universidade de Michigan 144

Hale (1983 p 33) informa que o Codex Vaticanus (B) estaacute na Biblioteca do Vaticano Este manuscrito conteacutem a maior parte do Velho Testamento e todos os livros do Novo Testamento (exceto Hebreus 915-1325 I e II Timoacuteteo Tito Filemom e Apocalipse) Estes livros e porccedilatildeo de Hebreus teriam formado cadernos separados que se perderam

127

De minha parte se hei de dar minha opiniatildeo eu diria que os pensamentos sim satildeo do Apoacutestolo mas o estilo e a composiccedilatildeo satildeo de algueacutem que evocava a memoacuteria dos ensinamentos do Apoacutestolo como um aluno que anota por escrito as coisas que seu mestre disse Por conseguinte se alguma igreja tiver esta carta como sendo de Paulo que tambeacutem por isto seja estimada pois natildeo sem motivo os antigos varotildees a transmitiram como de Paulo (EUSEacuteBIO HistEcles VI XXV 13)

Trobisch (2001 p10) relata que Martinho Lutero ao traduzir o Novo Testamento do

latim para o alematildeo com base na traduccedilatildeo de Erasmo de Roterdatilde145 mudou a

ordem dos livros retirando a epiacutestola aos Hebreus da coleccedilatildeo de Paulo colando-a

juntamente com as epiacutestolas gerais no final antes de Apocalipse

A autenticidade paulina de algumas epiacutestolas foi posta em duacutevida a partir do seacuteculo

XIX conforme os dados apresentados por Heyer (2008 p 6) De iniacutecio as

chamadas pastorais 1 e 2 Timoacuteteo e Tito e depois tambeacutem 2 Tessalonicenses

Efeacutesios e Colossenses As escolas acadecircmicas que investem na criacutetica da forma e

conteuacutedo da exegese biacuteblica satildeo responsaacuteveis pela apresentaccedilatildeo de argumentos

que rejeitam a autoria de Paulo dessas epiacutestolas citadas Heyer (2008 p 8) faz

algumas alegaccedilotildees concordando com a reclassificaccedilatildeo da coleccedilatildeo das epiacutestolas de

Paulo de treze para sete Aleacutem de sua adesatildeo agrave negaccedilatildeo da autoria de Paulo das

outras seis epiacutestolas Heyer justifica que soacute utiliza na escrita de sua obra essas sete

epiacutestolas146 autenticadas tomando-as como base para investigar a vida e o

pensamento de Paulo

A discussatildeo em relaccedilatildeo agrave autoria de Paulo forma nitidamente grupos favoraacuteveis e

contraacuterios Hale (1983) se agrega aos que defendem a autoridade de Paulo em

responder pela produccedilatildeo da coleccedilatildeo de treze epiacutestolas Hale (1983 p 141)147 toma

como base as fontes dos manuscritos que datildeo sustentaccedilatildeo para sua defesa Ele

apresenta justificativas dos que negam a autoria de Paulo das seis epiacutestolas e tece

145

Em 1516 Erasmo de Roterdatilde publicou uma nova ediccedilatildeo e traduccedilatildeo para o latim do Novo Testamento feita a partir dos manuscritos bizantinos dos seacuteculos XIII e XIV 146

As epiacutestolas autenticadas de Paulo satildeo Romanos 1 e 2 Coriacutentios Gaacutelatas Filipenses 1 Tessalonicenses e Filemom 147

Em seus relatos Hale (1983 p149) afirma que ldquoembora Clemente de Roma e Inaacutecio de Antioquia conhecessem algumas das cartas de Paulo a coleccedilatildeo concreta e existente mais antiga eacute o Cacircnon de Marciatildeo de cerca de 140-150 dC Esta lista inclui uma coleccedilatildeo editada de dez cartas de Paulo (em ordem Gaacutelatas I e II Coriacutentios Romanos I e II Tessalonicenses Laodicenses (Efeacutesios) Colossenses Filipenses e Filemom) As Pastorais foram provavelmente rejeitadas pelo fato de Marciatildeo ter sido um gnoacutestico O Fragmento Muratoriano (cerca de 180 dC) inclui as Pastorais nas treze epiacutestolas de Paulo mas Hebreus natildeo estaacute na coleccedilatildeo O mais antigo manuscrito grego (P 46 ) das epistolas de Paulo que foi preservado data de cerca do fim do segundo seacuteculo Este manuscrito pelo fato de colocar Hebreus entre Romanos e I Coriacutentios indica Paulo como sendo o autor de Hebreus II Tessalonicenses Filemom e as Pastorais estatildeo ausentes do manuscrito preservado mas a ausecircncia poderia ser devida a possiacutevel perda das ultimas folhas que conteriam estas cinco cartas

128

seus argumentos a favor da autoria de Paulo A ressalva de Hale (1983 p 247) eacute

quanto ao seu posicionamento favoraacutevel agrave ideia de anonimato da autoria do livro de

Hebreus por natildeo ser igual a nenhum outro livro do Novo Testamento pois comeccedila

como um tratado continua como um sermatildeo e conclui como uma epiacutestola

Na concepccedilatildeo de Becker (2007 p 24) o valor dado agraves coleccedilotildees de epiacutestolas no

contexto em que Paulo produziu suas correspondecircncias pode ter sido favoraacutevel ao

interesse na conservaccedilatildeo das epiacutestolas e talvez uma tentativa de rearranjo para

preservar e compilar as instruccedilotildees de Paulo como ponto de partida para a

instituiccedilatildeo do cristianismo Becker (2007 p25) indaga sobre a manipulaccedilatildeo em

algumas partes dos textos das epiacutestolas os supostos acreacutescimos148 agraves epiacutestolas aos

Romanos e aos Coriacutentios a criaccedilatildeo de epiacutestolas paralelas se natildeo poderiam ser

considerados como conclusatildeo redacional de uma coleccedilatildeo de epiacutestolas com vistas agrave

posteridade

Outro fator que interfere na expectativa da coleccedilatildeo dos escritos de Paulo eacute a

ausecircncia de outras epiacutestolas que ele poderia ter escrito como ele proacuteprio cita ldquoJaacute

lhes disse por carta que vocecircs natildeo devem associar-se com pessoas imoraisrdquo (1Cor

59) E ainda o comentaacuterio da epiacutestola recebida da igreja de Corinto ldquoOra quanto agraves

coisas que me escrevestesrdquo (1Cor 71)

Becker (2007 p 27) chama atenccedilatildeo para o valor de outras fontes externas agrave

coleccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo Estas fontes149 podem ser encontradas no cacircnon

148

Hale (1983 p142) analisa a discussatildeo sobre a integridade de Romanos 16 e alega que a maioria dos manuscritos de melhor evidencia inclui o capitulo 16 com a doxologia depois de 1623 Natildeo haacute nenhum manuscrito grego existente que natildeo inclui o capitulo 16 No que diz respeito agrave primeira epiacutestola aos Coriacutentios segundo Hale (1983 163) haacute falta de qualquer evidencia do manuscrito que apoiasse uma compilaccedilatildeo das duas primeiras cartas para formar uma Eacute por estas razotildees que a grande maioria dos estudiosos biblicos aceita a integridade da Primeira Epistola aos Coriacutentios canocircnica como assegurada Segundo Becker (2007 p 24) ldquohaacute boas razotildees para se supor que as comunidades colecionadoras natildeo soacute alinhavam os endereccedilos das cartas a que tinham acesso colocando talvez a carta a elas dirigida no inicio ou no final mas que tambeacutem interferiam no proacuteprio texto das cartas Sempre se chamou a atenccedilatildeo que a doxologia no final da Carta aos Romanos (Rm 1625-27) natildeo pertence agrave carta original ela apresenta uma linguagem que imita a de Paulo mas que eacute significativamente modificada e conteacutem uma teologia que se aproxima da teologia deutero-paulina presente em Efeacutesios ou Colossenses O mesmo sucede com partes das epiacutestolas aos Coriacutentios pelo menos mais duas passagens importantes do ponto de vista de conteuacutedo estatildeo sob suspeita de serem acreacutescimos natildeo-paulinos 1Cor 1433-36 e 2Cor 614-71 Esses acreacutescimos datildeo a entender que a coleccedilatildeo interessava a toda a cristandaderdquo 149

Com relaccedilatildeo agraves outras fontes que contribuem diretamente ou indiretamente com informaccedilotildees sobre a vida de Paulo Backer (2007 p 27) observa que ldquoeacute preciso antes de qualquer coisa fazer alusatildeo ao livro dos Atos dos Apoacutestolos que dedica mais do que a metade de seu texto a narrativas a respeito de Paulo Alem disso a primeira carta de Clemente e a carta de Inaacutecio de Antioquia citam os martiacuterios de Pedro e Paulo (cf XV3) Mesmo assim as duas citaccedilotildees satildeo comparativamente

129

que integra o Novo Testamento e oferecem mais credibilidade do que a literatura

apoacutecrifa No grupo de literatura apoacutecrifa destaca-se a coleccedilatildeo de epiacutestolas da

suposta correspondecircncia entre Paulo e Secircneca que teria deixado seus primeiros

vestiacutegios apoacutes o seacuteculo II dC Independente da veracidade do contato entre Paulo e

Secircneca ao analisar a escrita nas produccedilotildees destes dois autores identificam-se

certas proximidades quanto ao conteuacutedo eacutetico-moral de suas epiacutestolas

22 SEcircNECA E AS EPISTULAE MORALES

O tiacutetulo Epistulae Morales contribui para uma indicaccedilatildeo baacutesica do gecircnero no qual

Secircneca investe a produccedilatildeo de sua obra Natildeo basta identificar que o tiacutetulo da coleccedilatildeo

de Secircneca se engaja no gecircnero epistolar mas eacute necessaacuterio especificar o

subconjunto como gecircnero epistolar filosoacutefico Habinek (2005 p 85) analisa os

tratados e as epiacutestolas de Secircneca como um corpo de textos que podem ser

comparados para identificaccedilatildeo do interesse central que eacute a exortaccedilatildeo pois Secircneca

desenvolve um projeto filosoacutefico oferecendo aconselhamentos morais De acordo

com a opiniatildeo de Wilson (2001 p175) a hipoacutetese de Habinek eacute contraditoacuteria com a

teoria da epiacutestola antiga que natildeo eacute concebida como oportunidade para exortaccedilatildeo

mas como substituta da conversaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo de Wilson reforccedila a ideia da

ligaccedilatildeo da epiacutestola ao diaacutelogo

Wilson (2007 p437) comenta que no periacuteodo da uacuteltima fase das produccedilotildees de

Secircneca nota-se que ele adotou a epiacutestola como gecircnero literaacuterio por ser mais

favoraacutevel a um maior grau de liberdade em sua comunicaccedilatildeo Ainda o gecircnero

epistolar permitiu-lhe construir o discurso filosoacutefico como conversa privada como o

proacuteprio Secircneca assume em suas epiacutestolas optando pelo estilo coloquial

escassas O mesmo vale para as epiacutestolas deutero-paulinas (Efeacutesios Colossenses 2 Tessalonicenses 1 e 2 Timoteo Tito) que satildeo testemunhos de como o paulinismo se desenvolveu apoacutes a morte do Apoacutestolo Elas poreacutem somente podem ajudar de maneira limitada a projetar luz histoacuterica sobre Paulo (cf por exemplo 2Tm 311) Essa avaliaccedilatildeo eacute mais pertinente ainda acerca de escritos pertencentes aos apoacutecrifos no Novo Testamento antes de tudo acerca dos Atos de Paulo e da troca de correspondecircncia entre Seneca e Paulo Os Atos de Paulo jaacute satildeo atestados por Tertuliano Hipoacutelito e Oriacutegenes portanto a partir de 150 dC estatildeo amplamente divulgados As citaccedilotildees do filoacutesofo Secircneca deixam seus primeiros vestigios no seacuteculo II dC Jerocircnimo cita a correspondecircncia entre Secircneca e Paulo em 392 dC Ambos os escritos relacionados com o nome do Apoacutestolo Paulo estatildeo tatildeo distantes da teologia paulina e tatildeo claramente longiacutenquos de um conhecimento do tempo de Paulo que satildeo insignificantes para a interpretaccedilatildeo de Paulo O mesmo juiacutezo deve ser feito sobre a restante literatura paulina apoacutecrifa como por exemplo a carta agrave Laodiceia e os Atos Lendaacuterios de Paulo Tambeacutem as judeu-cristatildes e antipaulinas cartas pseudo-clementinas podem ser totalmente ignoradasrdquo

130

Se noacutes nos sentaacutessemos a conversar e discutiacutessemos passeando de um lado para o outro o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado pois eacute assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas que nada tenham de artificial e fingido (SEcircNECA Ep 751)

A partir dessa intervenccedilatildeo de Secircneca fica declarado seu propoacutesito de recorrer ao

gecircnero epistolograacutefico para exposiccedilatildeo de suas ideias de modo espontacircneo como

revelaccedilatildeo da alma Portanto o que importa natildeo eacute a literatura enquanto manifestaccedilatildeo

artiacutestica mas sua relaccedilatildeo entre escritor leitor e sua representatividade como obra

Edwards (2007 p 271) relaciona a epiacutestola em prosa com a produzida em verso

apontando para o caraacuteter literaacuterio na constitutividade da epiacutestola na Antiguidade

mencionando a qualidade literaacuteria da correspondecircncia de Ciacutecero Outro destaque

fornecido por Edwards (2007 p 274) eacute quanto agrave circulaccedilatildeo das coleccedilotildees das

epiacutestolas de Platatildeo e Epicuro consideradas textos literaacuterios de caraacuteter filosoacutefico Na

produccedilatildeo romana Horaacutecio interliga literaacuterio e filosoacutefico na criaccedilatildeo de suas epiacutestolas

em versos Na sequecircncia histoacuterica Oviacutedio adota o gecircnero epistolar em forma de

verso mas usa o mito e a ficccedilatildeo na conduccedilatildeo literaacuteria de suas epiacutestolas

Inwood (2007 p 137) se posiciona a favor da classificaccedilatildeo da correspondecircncia de

Secircneca no campo da epistolografia filosoacutefica e observa que o poder literaacuterio e a

influecircncia das epiacutestolas como um legado deixado por Secircneca despertou em

Foucault o interesse em compreender o estoicismo imperial do seacuteculo I dC atraveacutes

dessas produccedilotildees A respeito da escrita de si e do cuidado de si na Antiguidade

Foucault (2004 p157) toma como apoio a epistolografia recorrendo aos

personagens estoicos Secircneca e Marco Aureacutelio e algumas citaccedilotildees de Pliacutenio

observando que nesses autores ldquoa narrativa de si eacute a relaccedilatildeo consigo mesmordquo Os

postulados de Foucault contribuem como apoio aos que defendem a

correspondecircncia entre Secircneca e Luciacutelio como gecircnero epistolar pois pontos baacutesicos

na elaboraccedilatildeo das epiacutestolas caracterizam o gecircnero epistolar na Antiguidade150 Em

sua anaacutelise da epiacutestola setenta e oito Foucault (2004 p168) identifica um lugar

comum na produtividade da correspondecircncia na Antiguidade em que as notiacutecias

sobre a sauacutede eram assuntos recorrentes entre os interlocutores da missiva

ldquoLamento saber que sofres frequentemente de gripe e daquelas febres ligeiras e

150

Morello e Morrisson (2007 p ix) apontam que determinados toacutepicos satildeo regulares na epistolografia latina O toacutepico mais frequente eacute relacionado agraves questotildees de sauacutede por meio de recomendaccedilotildees conselhos ou ateacute mesmo metaacuteforas Outro toacutepico recorrente eacute a ministraccedilatildeo didaacutetica de teacutecnica de algum conhecimento

131

irritantes que as gripes prolongadas e jaacute quase ininterruptas arrastam consigordquo (Ep

781) A partir desse toacutepos Secircneca insere seus conselhos e recomendaccedilotildees ao

transcorrer de sua comunicaccedilatildeo ldquoum homem tem que lutar contra a dor de alma e

coraccedilatildeo se ceder agrave dor seraacute vencido mas se juntar com ela todas as forccedilas sairaacute

vencedorrdquo (Secircn Ep 7815) Outro toacutepos que Foucault (2004 p155) destaca em sua

anaacutelise eacute a aproximaccedilatildeo entre ausentes atraveacutes da correspondecircncia pois a epiacutestola

torna o remetente presente para aquele a quem ele envia ldquonunca recebo uma carta

tua sem que imediatamente fiquemos um na companhia do outrordquo (Secircn Ep 401)

Como jaacute discutido vale enfatizar que tanto gregos como romanos concebiam a

epiacutestola com caracteriacutesticas de forma literaacuteria e eacute nessa perspectiva que Alexandre

Jr (2015 p 170) identifica a ldquoinevitaacutevel influecircncia da retoacuterica no gecircnero epistolar

como um veiacuteculo de importacircncia no tracircnsito da comunicaccedilatildeo na Antiguidade claacutessica

e Heleniacutesticardquo Por isso este autor visualiza que a proacutepria funccedilatildeo do gecircnero epistolar

foi sempre maleaacutevel agrave aplicaccedilatildeo dos recursos da retoacuterica permitindo assim a

penetraccedilatildeo da argumentaccedilatildeo na construccedilatildeo nos discursos desse gecircnero

Aprofundando mais em suas consideraccedilotildees Alexandre Jr (2015 171) afirma que os

discursos de consolaccedilatildeo encontraram no gecircnero epistolar ldquoa forma retoacuterica e literaacuteria

que mais se prestou a veicular seus conteuacutedosrdquo Assim nas epiacutestolas em que a

retoacuterica eacute mais evidente satildeo perceptiacuteveis as trecircs partes do discurso abertura

desenvolvimento e conclusatildeo A flexibilidade no estilo era o fator fundamental A

epiacutestola sessenta e trecircs de Secircneca a Luciacutelio serve como indicaccedilatildeo dessa praacutetica

Logo na introduccedilatildeo ele daacute o tom de consolaccedilatildeo na sua mensagem ldquoLamento

profundamente o falecimento de seu amigo Flaco no entanto entendo que a tua dor

natildeo deve ultrapassar o limite do razoaacutevelrdquo (Secircn Ep 631) Apoacutes a introduccedilatildeo

(exordium) algumas reflexotildees vatildeo se desenvolvendo (narratio) ao longo da epiacutestola

entre exemplos e conselhos ldquoGozemos intensamente a companhia dos nossos

amigos ateacute porque natildeo podemos saber por quanto tempo o faremosrdquo (Secircn Ep

639) Na conclusatildeo (conclusio) o desfecho se liga agrave abertura [] ldquoateacute pode suceder

que tenham razatildeo os saacutebios e haja um lugar onde todos iremos residir apoacutes a morte

se assim for esse amigo que julgamos ter morrido limitou-se a partir para laacute agrave nossa

frenterdquo (Secircn Ep 6316)

Outro toacutepico a ser considerado na epistolografia eacute o fenocircmeno da relaccedilatildeo EUTU

que se fundamenta no princiacutepio do diaacutelogo Em sua contribuiccedilatildeo para os estudos

132

neste campo Braren identifica alguns toacutepicos inerentes ao gecircnero epistolar

destacando o aspecto elocutivo da enunciaccedilatildeo

Na verdade o extraordinaacuterio de um texto epistolograacutefico satildeo as marcas que estabelecem a ligaccedilatildeo entre o proacuteprio autor da carta e o missivista o enunciador natural em primeira pessoa seja em qualquer niacutevel que ocorrer Procuramos conhecer os sinais de identificaccedilatildeo reveladores da personalidade da ideologia ou da filosofia do eu que fala No caso da Antiguidade Claacutessica o texto eacute tudo ou quase tudo que temos Fornece-nos o material de investigaccedilatildeo que seraacute tanto mais vivo quando melhor estabelecer a comunicaccedilatildeo principal requisito do discurso epistolograacutefico (quer a comunicaccedilatildeo seja efetuada com o endereccedilado quer seja com o leitor) (BRAREN 1999 p 40)

No gecircnero epistolar predomina o modo elocutivo na organizaccedilatildeo do discurso no qual

Charaudeau (2008 p74) identifica como funccedilatildeo essencial o fato de ldquodar conta da

posiccedilatildeo do locutor com relaccedilatildeo ao interlocutor a si mesmo e aos outrosrdquo sendo

esse mecanismo um indicador do acontecimento enunciativo Eacute nessa perspectiva

que o gecircnero epistolar favorece a identificaccedilatildeo do cuidado de si como analisado por

Foucault em suas uacuteltimas pesquisas Por isso Secircneca declara ldquoa natureza

incumbe-me de cuidar de mimrdquo (Ep 12116)

Natildeo haacute registros de epiacutestolas de Luciacutelio em reposta a Secircneca mas Ebbeler (2001

p174) observa que Secircneca manteacutem a ficccedilatildeo da correspondecircncia e o diaacutelogo eacute

constituiacutedo pelas evidecircncias ldquoA tua carta encheu-me de satisfaccedilatildeo e restituiu-me um

pouco as forccedilas que me vatildeo faltando reavivou-me mesmo a memoacuteria que jaacute se me

vai tornando cansada e lentardquo (SEcircNECA Ep 741)

Segurado e Campos (1991 p XIV) analisa a interlocuccedilatildeo entre Secircneca e Luciacutelio

como apresentado nos textos das epiacutestolas e observa que haacute traccedilos que contribuem

para autenticar a veracidade da correspondecircncia Para este autor o que pode

confundir o leitor eacute a presenccedila de caracteriacutesticas da diatribe ciacutenica151 em alguns

aspectos da construccedilatildeo das epiacutestolas O traccedilo mais evidente da caracterizaccedilatildeo da

diatribe eacute o chamado interlocutor fictiacutecio como esclarece Segurado e Campos

151

Reale (1994a p 45) informa que o ciacutenico Bion de Boriacutestenes (335-245 aC) no periacuteodo Heleniacutestico exerceu um papel importante no iniacutecio do cinismo principalmente na aacuterea da literatura Foi ele quem provavelmente deu origem agrave forma literaacuteria da diatribe ndash um monoacutelogo argumentativo com interlocutores imaginaacuterios A paroacutedia eacute usada natildeo exatamente para obter efeitos cocircmicos mas para contestar as convenccedilotildees e regras da sociedade que os ciacutenicos rejeitavam Essas caracteriacutesticas influenciaram escritores romanos como Luciacutelio e Horaacutecio na produccedilatildeo das saacutetiras Nota-se que Paulo tambeacutem faz uso da diatribe como identificado nestes versos ldquoMas algueacutem diraacute Como ressuscitaratildeo os mortos E com que corpo viratildeo Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se primeiro natildeo morrerrdquo (1Cor 1535-36)

133

[] o processo eacute bem conhecido tanto da suasoriae propriamente ditas como ainda dos textos filosoacuteficos [] consiste o processo em o autor imaginar que uma sua afirmaccedilatildeo eacute objectada por algueacutem (interlocutor fictiacutecio) objeccedilatildeo essa que lhe daacute oportunidade para retornar sua ideia original e comprovaacute-la com novos argumentos ou ilustraacute-la com nova e mais impressionante exemplificaccedilatildeordquo (SEGURADO E CAMPOS 1991 p XV)

A ideia de um interlocutor fictiacutecio na enunciaccedilatildeo abre espaccedilo para que Secircneca faccedila

uso da diatribe expandindo suas reflexotildees filosoacuteficas por meio de um diaacutelogo

imaginaacuterio independente dos questionamentos reais do co-enunciador na figura de

Luciacutelio A estrateacutegia da diatribe introduz o uso de exemplos para dar sustentaccedilatildeo

aos argumentos e as maacuteximas para aplicaccedilatildeo moral aos ensinamentos Com esses

recursos Secircneca daacute sequecircncia agrave ordem das epiacutestolas de acordo com os assuntos

que vatildeo sendo introduzidos O proacuteprio Secircneca assume o uso da estrateacutegia da

diatribe ldquoMas jaacute chega de diatribe contra Baacuteias contra os viacutecios poreacutem nunca ela

seraacute excessivardquo (Ep 5113)

Apoiando a ideia da organizaccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca como coleccedilatildeo Inwood

(2005 p 137-146) expotildee que haacute uma variedade de formas identificadas nas

produccedilotildees das epiacutestolas Algumas satildeo mais teacutecnicas e doutrinaacuterias outras satildeo

mais informais permitindo ao autor falar de si mesmo e evidencia suas proacuteprias

experiecircncias Mesmo que a filosofia moral seja predominante outros temas satildeo

acrescentados inclusive a polecircmica contra outras escolas ou mesmo com

antecessores do estoicismo

Todas essas caracteriacutesticas apontadas contribuem para a identificaccedilatildeo das epiacutestolas

de Secircneca constituiacutedas como gecircnero epistolograacutefico e mais especificamente como

gecircnero epistolar filosoacutefico De acordo com as consideraccedilotildees de Edwards (2005 p

278) a leitura das epiacutestolas em sequecircncia permite estabelecer o niacutevel do progresso

filosoacutefico tendo em vista o destinataacuterio O caraacuteter filosoacutefico da obra eacute delineado a

partir da primeira epiacutestola e os temas vatildeo sendo tratados em um crescente e agraves

vezes satildeo revisitados sob outros acircngulos Os toacutepicos como lugar comum na

constituiccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico aparecem como garantia da caracterizaccedilatildeo

do proacuteprio gecircnero Esses toacutepicos satildeo variados de acordo com o remetente e

destinataacuterio podendo ser identificados como o falar de si mesmo abrir-se com o

outro dar conselhos e instruccedilotildees entre outros

Ao constatar a amplitude do uso da correspondecircncia Young (2005 p 11) observa

que a identificaccedilatildeo do gecircnero epistolar se torna crucial na determinaccedilatildeo de como o

134

texto deve ser lido Ainda pode-se acrescentar agrave essa colocaccedilatildeo de Young que a

epiacutestola como gecircnero estaacute ligada a um tipo de discurso que tem sua origem nos

discursos constituintes Esse eacute um fator essencial para a leitura das epiacutestolas de

Secircneca e de Paulo e o tratamento ao corpus de anaacutelise neste trabalho aqui

desenvolvido

23 CONJECTURAS SOBRE A TROCA DE CORRESPONDEcircNCIA ENTRE

PAULO E SEcircNECA

O interesse de aproximaccedilatildeo dos discursos de Paulo e Secircneca se efetua desde os

primoacuterdios do cristianismo Nota-se que a lenda que se criou de uma possiacutevel

correspondecircncia entre estes dois autores tem provocado o interesse de

pesquisadores em desvendar esse cenaacuterio especulativo Um dos pesquisadores

nesta aacuterea eacute Ferreira (2012)152 que deu o seguinte tiacutetulo ao seu trabalho Secircneca e

Paulo de Tarso conjecturas em torno de uma correspondecircncia incerta Ferreira

(2012 p149) observa que em fontes encontradas nos primeiros textos da literatura

cristatilde haacute referecircncias de Tertuliano153 quanto agraves ideias de Secircneca filosoacutefico mas

nenhuma menccedilatildeo quanto agrave aproximaccedilatildeo entre Secircneca e o apoacutestolo Paulo

A pesquisa realizada se mostra bastante minuciosa apontando as dificuldades de se

conceber as possibilidades de uma existecircncia real de tais epiacutestolas trocadas entre

Secircneca e Paulo O material referente agraves fontes toma como base a publicaccedilatildeo de

catorze epiacutestolas ndash oito de Secircneca e seis de Paulo Segundo Ferreira os

manuscritos desta correspondecircncia estatildeo situados entre os seacuteculos XII e XIII dC

No trabalho deste pesquisador eacute realizado um levantamento de dados como

resultado de uma busca histoacuterica que situa as fontes indicadas como suporte para

autenticar ou negar a existecircncia da suposta correspondecircncia Nessa pesquisa de

Ferreira eacute confirmada a referecircncia a jaacute conhecida circulaccedilatildeo das epiacutestolas trocadas

152

Parte integrante do livro produzido pelo Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra intitulado Paulo de Tarso grego e romano judeu e cristatildeo 153

Segundo Ferreira (2012 p 149) ldquodos Padres da Igreja o primeiro a mostrar um bom conhecimento de Seacuteneca foi Quinto Tertuliano que viveu entre 160 e 240 dC e por volta de 195 se converteu ao Cristianismo Entre os oito passos onde explicitamente se menciona o nome ou apenas se pressente o texto de Seacuteneca conta-se Anim 201rdquoSeneca saepe nosterrdquo Ferreira (2012 p 151) ainda menciona que ldquoapesar de se natildeo referirem a qualquer correspondecircncia entre Paulo e Seacuteneca jaacute os Actos Apoacutecrifos dos Apoacutestolos que devem ter sido compostos entre os seacutec II e IV dC relatavam a gesta de Paulo na corte de Nero E seria precisamente aqui que para Bocciolini Palagi estaria a origem da lenda do contacto entre Paulo de Tarso e Seacuteneca que teria servido de intermediaacuterio entre o apoacutestolo e Nerordquo

135

entre Secircneca e Paulo na obra de Jerocircnimo intitulada De uiris illustribus XII154

Ferreira (2012 p 151) assim registra sua traduccedilatildeo com base no texto de Barlow

em inglecircs155

Luacutecio Aneu Seacuteneca de Coacuterduba disciacutepulo do estoacuteico Soacutecion e tio paterno do poeta Lucano levou vida assaz regrada Natildeo o incluiria no cataacutelogo dos santos se a tal me natildeo tivessem induzido as cartas que satildeo lidas por muitos de Paulo a Seacuteneca ou de Seacuteneca a Paulo e onde embora mestre de Nero e o homem mais poderoso do tempo diz que desejava ser tido junto dos seus na mesma conta em que era tido Paulo junto dos Cristatildeos (De uiris illustribus XII)

Em torno dessa colocaccedilatildeo de Jerocircnimo circulam diferentes interpretaccedilotildees como

demonstrado por Ferreira fato que enfraquece a possiacutevel veracidade a respeito da

existecircncia das epiacutestolas citadas como sendo de Secircneca e Paulo no seacuteculo I dC

No seacuteculo IX de nossa era houve uma retomada bem marcada do tema controverso

sobre essa suposta troca de correspondecircncia Com esse mesmo objetivo Ligthfoot

(1892 p 318) faz uma anaacutelise do conteuacutedo das catorze epiacutestolas (oito de Secircneca e

seis de Paulo) e expotildee alguns comentaacuterios a respeito do assunto Para ele as

hipoteacuteticas epiacutestolas trocadas natildeo contecircm questotildees doutrinaacuterias e nem mesmo

alguma informaccedilatildeo histoacuterica relevante A mais provaacutevel inferecircncia que se obteacutem do

resumido comentaacuterio de Jerocircnimo eacute de que natildeo se aceita deliberadamente o fato

como genuiacuteno Ao olhar o comentaacuterio de Jerocircnimo com mais atenccedilatildeo percebe-se

um texto vago e a ausecircncia de informaccedilatildeo segura como pode ser observado ldquoNatildeo

o incluiria no cataacutelogo dos santos se a tal me natildeo tivessem induzido as cartas que

satildeo lidas por muitos de Paulo a Secircneca ou de Secircneca a Paulo []rdquo (De uiris

illustribus XII) Na mesma linha de conduta Agostinho156 natildeo acrescenta nenhum

dado novo repetindo casualmente as informaccedilotildees de Jerocircnimo Assim Ligthfoot

(1892 p 320) conclui ldquoThere is no reason to suppose that Jerome did believe the

correspondence to be genuine as I have shownrdquo157

154

392 dC eacute registrado como o ano da publicaccedilatildeo de De uiris illustribus Segundo Ferreira os manuscritos da correspondecircncia entre Paulo e Secircneca estatildeo situados nos seacuteculos XII e XIII dC 155

Ferreira (2012 p 151) cita o autor de onde retirou o texto base para sua traduccedilatildeo BARLOW C W Epistolae Senecae ad Paulum et Pauli ad Senecam ltquae uocanturgt Roma American Academy in Rome 1938 156

Ferreira (2012 p153) tambeacutem expotildee que ldquoalgum tempo depois mais propriamente em 413 eacute Santo Agostinho quem em Epistula ad Mecedonium se refere agrave correspondecircncia nestes termos Merito ait Seneca (qui temporibus Apostolorum fuit cuius etiam quaedam ad Paulum apostolum leguntur epistolae) ldquoJustamente Seacuteneca (que viveu no tempo dos Apoacutestolos e do qual ainda se lecircem algumas das cartas a Paulo Apoacutestolo)rdquo 157

Lightfoot (1892 p320) ldquoNatildeo haacute razatildeo para supor ser genuiacutena a correspondecircncia (entre Secircneca e Paulo) como eu tenho demonstradordquo

136

Ferreira se posiciona em relaccedilatildeo agraves impossibilidades de autenticidade dessas

epiacutestolas serem oriundas da escrita de Secircneca e de Paulo pelo fato delas se

apresentarem escritas em latim no mesmo patamar de igualdade do uso claacutessico da

liacutengua latina Pela identificaccedilatildeo da escrita das missivas o latim usado por Secircneca eacute

equivalente ao usado por Paulo158 A partir de entatildeo se estabelecem as duacutevidas

visto que as epiacutestolas de Paulo e os demais livros do Novo Testamento foram

escritos em grego e natildeo haacute prova histoacuterica do uso do latim em registros das

produccedilotildees de epiacutestolas de Paulo Nesse ponto Ferreira (2012 p 174) expressa sua

concordacircncia com alguns pesquisadores e expotildee ldquoParecem ter razatildeo quantos

defendem tratar de uma correspondecircncia forjada por quem queria mostrar que o

cristianismo natildeo tinha conquistado adeptos apenas nos estratos sociais mais

baixosrdquo

As discussotildees a respeito da suposta troca de correspondecircncia perpassam por

outras questotildees relacionadas agrave postura de Secircneca mediante os conceitos

fundadores do cristianismo Haveria uma afinidade ideoloacutegicamoral entre os dois

autores das epiacutestolas e natildeo exatamente uma identificaccedilatildeo religiosa Decerto esta

discussatildeo natildeo eacute recente e indica que aceitar a autenticidade do conteuacutedo da

hipoteacutetica correspondecircncia entre Secircneca e Paulo implica aceitar tambeacutem que

Secircneca se converteu ao cristianismo e este eacute o noacute da questatildeo Marcos Viniacutecius

Fernandes Miranda concluiu seu mestrado na Universidade Estadual de Maringaacute

(2008) com a dissertaccedilatildeo intitulada Do viacutecio agrave virtude uma proposta educativa em

Secircneca Em parceria com Joseacute Joaquim Pereira Melo Doutor em Histoacuteria e

professor do departamento de Fundamentos da Educaccedilatildeo da Universidade Estadual

de Maringaacute realizaram a traduccedilatildeo para o portuguecircs das chamadas epiacutestolas

apoacutecrifas de Secircneca e Paulo e informam que as fontes utilizadas satildeo a versatildeo para

liacutengua inglesa feita em 1924 por M R James medievalista da Universidade de

Cambridge e a traduccedilatildeo tambeacutem para o Inglecircs feita em 1938 por C W Barlow em

158

Na penuacuteltima epiacutestola da suposta troca de correspondecircncia entre Secircneca e Paulo o proacuteprio Secircneca faz algumas advertecircncias quanto ao uso do latim nas epiacutestolas de Paulo SEcircNECA PARA PAULO Ep 13 Saudaccedilotildees Em muitas partes do seu trabalho estatildeo incluiacutedas paraacutebolas e enigmas portanto a grande forccedila e talento que foram dados a vocecirc deveriam ser embelezados eu natildeo digo com palavras elegantes mas com certo cuidado Vocecirc natildeo deveria temer quando lhe lembro do que vocecirc frequumlentemente tem dito que muitos que se preocupam com tais coisas corrompem o pensamento e tornam degenerada a profundidade do assunto Eu queria que vocecirc me fizesse uma concessatildeo e adaptasse o genial Latim dando beleza agraves suas nobres palavras e que a grande daacutediva que tem sido concedida a vocecirc possa ser tratada com o devido valor Adeus Dada no dia antes de nones de junho Leo e Sabinus cocircnsules Trad de Marcos V F Miranda e Joseacute Joaquim P Melo

137

Roma No final da traduccedilatildeo Miranda e Melo expressam a seguinte opiniatildeo

As quatorze cartas autecircnticas ou natildeo produto da imaginaccedilatildeo ou uma estrateacutegia de legitimaccedilatildeo ao menos ilustram a inegaacutevel valorizaccedilatildeo de Luacutecio Aneu Secircneca por parte dos primeiros autores cristatildeos Ao contraacuterio de seus criacuteticos que na maioria dos casos se opunham ao seu pensamento e agrave sua praacutetica poliacutetica os cristatildeos adotaram uma postura diferenciada e se voltaram para as suas ideias suas sentenccedilas e sua doutrina orientaccedilatildeo que gerou em alguns deles a ideia comum e aceita de um Secircneca pagatildeo como precursor do cristianismo e em outros a de um Secircneca agraves veacutesperas da conversatildeo ao cristianismo Contudo os legados satildeo muacutetuos se no seacuteculo I dC Secircneca ldquoemprestourdquo seu prestiacutegio agrave feacute cristatilde provavelmente eacute a ela que ele deve a sua ldquosobrevivecircnciardquo e notoriedade ateacute os nossos dias (MIRANDA MELO 2007 p 8)

Na introduccedilatildeo de sua pesquisa sobre epistolografia Ebbeler (2001 p1) menciona a

circulaccedilatildeo da correspondecircncia entre Secircneca e Paulo que ela declara considerar

fictiacutecia Poreacutem esta autora admite que este fenocircmeno fortalece o valor dado agrave

epistolografia em especial no seacuteculo IV d C Em nota informativa fica indicado que

os manuscritos dessas catorze epiacutestolas datados do seacuteculo IX dC se encontram

em Vienna public library

A coleccedilatildeo da suposta correspondecircncia entre Secircneca e Paulo mostra que o gecircnero

epistolograacutefico requerido para aquelas produccedilotildees verdadeiras ou forjadas natildeo

segue os tipos de gecircnero epistolograacutefico usados por Secircneca e Paulo Seria um

terceiro gecircnero voltado para o interesse de comunicaccedilatildeo entre emissaacuterio e

destinataacuterio visando aproximaccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma possiacutevel amizade159

Ebbeler (2001 p 44) defende que a identificaccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico e sua

forma no ato enunciativo eacute essencial para a apreensatildeo do texto Ao revisitar

historicamente o desempenho da epiacutestola desde a Antiguidade eacute possiacutevel observar

a importacircncia desse gecircnero no seacuteculo I dC e o papel fundamental que Secircneca e

Paulo desempenharam como protagonistas na produccedilatildeo epistolar O uso da

correspondecircncia foi muito ampliado no periacuteodo Heleniacutestico pois este representou

um momento de interaccedilatildeo entre povos orientais e ocidentais Assim Paulo estaacute no

lado dos orientais e Secircneca dos ocidentais O ponto de uniatildeo entre ambos eacute o

gecircnero epistolar no contexto da cultura heleniacutestica a partir dos discursos

constituintes que os direcionam

159

SEcircNECA PARA PAULO Ep 3 - Saudaccedilotildees Eu estou compilando e organizando alguns escritos num volume Eu tambeacutem resolvi lecirc- los para Ceacutesar Se a sorte me ajudar que ele possa me ouvir com atenccedilatildeo Talvez vocecirc tambeacutem esteja laacute Caso contraacuterio eu marcarei um outro dia no qual possamos examinar juntos o trabalho Realmente eu natildeo poderia apresentar este trabalho a ele sem primeiro saber da sua opiniatildeo para que natildeo haja risco de vocecirc achar que esteja sendo relegado Adeus querido Paulo Trad de Marcos V F Miranda e Joseacute Joaquim P Melo (2007)

138

3 FORMACcedilAtildeO JUDAICO-HELENIacuteSTICA DE PAULO E SEU POSICIONAMENTO

DISCURSIVO NAS EPIacuteSTOLAS

No livro Greacutecia e Roma Funari (2002 p 75) procura esclarecer a distinccedilatildeo entre

helenismo e heleniacutestico Na origem desses vocabulaacuterios destaca-se o termo helenos

como designaccedilatildeo que identifica os gregos No primeiro plano helenismo significa

todo o movimento histoacuterico que envolve os helenos (gregos) Em segundo plano a

nomeaccedilatildeo heleniacutesticos contempla os povos dominados englobando o periacuteodo das

conquistas de Alexandre na expansatildeo do impeacuterio macedocircnico perdurando este ateacute

a data do domiacutenio de Roma sobre a Greacutecia

De acordo com as observaccedilotildees de Funari o termo helenismo agraves vezes eacute confundido

com o heleniacutestico entatildeo este autor oferece os seguintes esclarecimentos

Os gregos chamavam-se de helenos e os estudiosos modernos utilizaram o termo heleniacutestico para referir-se agrave civilizaccedilatildeo que se utilizava do grego como liacutengua oficial a partir das conquistas de Alexandre o Grande (336 aC) ateacute o domiacutenio romano da Greacutecia em 146 aC Ou seja eacute um termo que natildeo se confunde com helecircnico que eacute o mesmo que grego Embora seja aplicado a um periacuteodo de tempo relativamente curto este foi marcado por grandes interaccedilotildees culturais Alexandre conquistou um imenso territoacuterio as cidades gregas todas mas tambeacutem o Egito a Palestina a Mesopotacircmia a Peacutersia (Iratilde) chegando agrave Iacutendia Depois de sua morte prematura o Impeacuterio dividiu-se em trecircs reinos centrados na Macedocircnia no Egito e na Mesopotacircmia (FUNARI 2002 p 75)

Jaeger (1965 p 13) menciona que na origem do termo helenismo significava o

purismo da liacutengua grega sem outras influecircncias e interferecircncias e primava-se pelo

padratildeo no uso gramatical da liacutengua Nesse contexto os retoacutericos eram os guardiotildees

daquele ideal linguiacutestico e posteriormente o termo helenistas eacute aplicado na

identificaccedilatildeo daqueles que adotavam o grego como sua liacutengua de uso oficial

Portanto independente da nacionalidade o indiviacuteduo falante da liacutengua grega como

forma de comunicaccedilatildeo em seu ambiente de convivecircncia era considerado helenista

De acordo com as observaccedilotildees de Jaeger (1965 p15) algumas referecircncias sobre

helenistas160 estatildeo contidas no Novo Testamento o que pode ser identificado em

160

Vale destacar que essas designaccedilotildees cunhadas de helenismo heleniacutestico e helenistas natildeo fazem parte do arsenal linguiacutestico da Antiguidade pois foram convencionadas a partir do seacuteculo XIX Conforme indica Biazott (2015 p 182) Johann Gustav Droysen (1808 ndash 1884) publicou em 1833 Geschichte Alexanders des Grossen obra responsaacutevel por inaugurar o termo ldquohelenismordquo na era Moderna dando a ele um conceito que extrapolava as conataccedilotildees concebidas no campo religioso no qual seus sentidos estavam integrados

139

Atos 6 15161 conforme mencionado tambeacutem na anaacutelise de Silvatici (2006 p 176)

em sua tese sobre Os judeus helenistas e a primeira expansatildeo cristatilde Aleacutem dessa

indicaccedilatildeo biacuteblica analisada por Silcatici outro fato a ser destacado se encontra na

narrativa do evangelho de Joatildeo162 sobre os gregos que estavam em Jerusaleacutem para

as comemoraccedilotildees da paacutescoa e pediram a Filipe que os encaminhassem a Jesus

porque desejavam falar com Ele A referecircncia aos gregos que procuraram Jesus

aparece no texto biacuteblico em grego koineacute como ελλήνες (helenos) A nota deste

texto na Biacuteblia de Jerusaleacutem identifica que o termo grego eacute referente aos natildeo

judeus que aderiram o monoteiacutesmo de Israel e em certa medida as observacircncias

dos costumes judaicos Outro fato inerente a esse texto eacute a comunicaccedilatildeo daqueles

gregos com o disciacutepulo chamado Filipe por certo um falante da liacutengua grega o que

se justifica pela proacutepria origem do seu nome

Na perspectiva de Ramos (2002 p 197) o helenismo pode ser considerado como

fator de interculturaccedilatildeo entre parte do oriente e do ocidente ldquoNo caso dos hebreus

o pensamento biacuteblico aproveita-se de um espaccedilo cultural exterior ao seu mundo

natural do antigo orienterdquo Assim as condiccedilotildees daquela eacutepoca favorecem uma

adesatildeo e adaptaccedilatildeo agraves influecircncias culturais gregas por parte dos orientais das

regiotildees dominadas pelo impeacuterio macedocircnico Hale (1983 p 9) identifica Alexandre

como o responsaacutevel pela fusatildeo comercial dos paiacuteses orientais dominados tendo a

liacutengua grega como meio de interaccedilatildeo mais favoraacutevel para possibilitar o

relacionamento entre orientais e ocidentais

Conforme indicaccedilotildees de Leacutevecircque (1987 p19) a morte de Alexandre (323 aC) eacute

um marco histoacuterico para o iniacutecio do periacuteodo Heleniacutestico Documentos encontrados

em papiros contendo epiacutestolas de vaacuterios tipos material de estudos transaccedilotildees

comerciais entre outros servem de fonte para informaccedilotildees que contribuem para

161

ldquoIntervieram entatildeo alguns da sinagoga chamada dos libertos dos cireneus e alexandrinos dos da Ciliacutecia e da Aacutesia e puseram-se a discutir com Estevatildeordquo (Biacuteblia de Jerusaleacutem Atos 69) A nota referente a este verso daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquoOs helenistas judeus que viveram fora da Palestina haviam adotado certa cultura grega e dispunham em Jerusaleacutem de sinagogas particulares em que a biacuteblia era lida em gregordquo 162

ldquoOra havia alguns gregos entre os que tinham subido a adorar no dia da festa Estes pois dirigiram-se a Filipe que era de Betsaida da Galileacuteia e rogaram-lhe dizendo Senhor queriacuteamos ver a Jesusrdquo (Joatildeo 12 20-21) (ησαν δε τινες ελληνες εκ των αναβαινοντων ινα προσκυνησωσιν εν τη εορτη ουτοι ουν προσηλθον φιλιππω τω απο βηθσαιδα της γαλιλαιας και ηρωτων αυτον λεγοντες κυριε θελομεν τον ιησουν ιδειν )

140

identificaccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo da fase inicial do periacuteodo Heleniacutestico Leacutevecircque

oferece uma descriccedilatildeo bem detalhada sobre os conflitos que se intensificaram com

a perda da figura emblemaacutetica de Alexandre De acordo com os registros de

Leacutevecircque (1987 p 22) apoacutes quarenta anos de disputas internas de poder e a

impossibilidade da manutenccedilatildeo da governabilidade o impeacuterio foi dividido em trecircs

reinos o Egito sob o governo de Ptolomeu II a Aacutesia foi governada por Antiacuteoco I e a

Macedocircnia por Antiacutegono

No periacuteodo Heleniacutestico os judeus compunham-se em dois grupos distintos os que

viviam na Palestina e os da diaacutespora Leacutevecircque (1987 p 47) relata que a Judeia e

Siacuteria integraram o reino do Egito por algum tempo Nesse periacuteodo a cidade de

Alexandria se tornou o centro helenizado que concentrava a reuniatildeo de diferentes

etnias e muitos judeus se estabilizaram naquela regiatildeo Sendo a liacutengua grega o meio

de comunicaccedilatildeo de diferentes raccedilas transformaccedilotildees aconteceram naquele sistema

linguiacutestico surgindo entatildeo o grego koineacute considerado mais popular em relaccedilatildeo ao

claacutessico Leacutevecircque (1987 p 100) ressalta que durante o classicismo o dialeto aacutetico

atingiu uma inegaacutevel primazia sustentada pela superior intelectualidade de Atenas Eacute

este dialeto grego que constitui a base para a liacutengua koineacute com fins pragmaacuteticos

tornando-se numa liacutengua de uma cultura de vasta difusatildeo Nesse contexto Atenas

perde a centralidade das produccedilotildees literaacuterias com exceccedilatildeo da comeacutedia Aos

poucos Alexandria ocupa parte do espaccedilo deixado mas Atenas prevalece como

centro da filosofia e ciecircncias

Hale (1983 p10) observa que a Palestina sofreu uma helenizaccedilatildeo gradual sem

imposiccedilatildeo externa Um fenocircmeno de transformaccedilatildeo linguiacutestica afetou tambeacutem a

Judeia Gradativamente o hebraico na liacutengua falada havia cedido lugar ao

aramaico no periacuteodo dos setenta anos do exiacutelio babilocircnico O mesmo aconteceu

com o grego no domiacutenio do impeacuterio macedocircnico Entatildeo a adesatildeo agrave cultura

heleniacutestica influenciou a retirada de judeus para regiotildees de fala grega e ainda pelo

incentivo do direito de cidadania idecircntico aos macedocircnios concedido pelos

Ptolomeus163

163

Leacutevecircque (1987 p 22) informa que apoacutes a morte de Alexandre o impeacuterio foi governado por quatro dos seus generais Selecircuco ficou com parte da Siacuteria e Mesopotacircmia Ptolomeu com o Egito Palestina e parte da Siacuteria mantendo uma dinastia ateacute o domiacutenio romano Antiacutepatro (que logo foi substituiacutedo por seu filho Casandro) ficou com os domiacutenios da Macedocircnia e Greacutecia Lisiacutemaco governou a Traacutecia e parte da Aacutesia menor

141

A obra Histoacuteria dos hebreus de Flaacutevio Josefo (XI 8452) conteacutem informaccedilotildees a

respeito do contato histoacuterico de Alexandre com o sumo sacerdote Jado164 no

acontecimento da tomada de Jerusaleacutem Essa alianccedila feita entre Alexandre e os

judeus foi determinante na inauguraccedilatildeo do periacuteodo Heleniacutestico e interpenetraccedilatildeo de

costumes judaicos na cultura heleniacutestica pois a cultura judaica influenciou a cultura

heleniacutestica e tambeacutem foi fortemente influenciada por ela

Uma narrativa minuciosa de Flaacutevio Josefo fornece informaccedilotildees detalhadas sobre a

traduccedilatildeo da literatura judaica do hebraico para o grego designada Traduccedilatildeo LXX

em grego e Septuaginta em latim Demeacutetrio de Faleros eacute a figura que se destaca

na descriccedilatildeo de Josefo pois era o responsaacutevel pela biblioteca de Alexandria no

reinado de Ptolomeu II (Filadelfo) indicando obras do mundo inteiro que deveriam

compor o arsenal da biblioteca Josefo apresenta o seguinte relato da solicitaccedilatildeo de

Demeacutetrio ao priacutencipe

Eacute necessaacuterio pois se vossa majestade bem o julgar que se escreva ao sumo sacerdote dos judeus para que se escolha entre os principais de cada tribo os mais inteligentes e os que conhecem com mais perfeiccedilatildeo essas leis e vo-los enviem a fim de que se reuacutenam e faccedilam uma traduccedilatildeo exata e capaz de satisfazer plenamente os desejos de vossa majestade

(JOSEFO Hist Heb XII 11453)

164

Em Jerusaleacutem quando o sumo sacerdote soube que seria atacado por Alexandre e seu exeacutercito levantou um clamor a Deus junto com o povo Foi orientado em sonho para colocar as vestes sacerdotais e todos de branco receberiam Alexandre De acordo com a narrativa de Flaacutevio Josefo (Histoacuteria dos Hebreus) quando o exeacutercito e Alexandre se aproximaram viram um cenaacuterio inesperado Ao reconhecer o sacerdote com aquelas vestes Alexandre inclinou-se diante dele e entatildeo ldquoParmecircnio que desfrutava grande prestiacutegio perguntou-lhe como ele que era adorado em todo mundo adorava o sumo sacerdote dos judeus Respondeu Alexandre Natildeo eacute a ele ao sumo sacerdote que adoro mas ao Deus de quem ele eacute o ministro pois quando eu estava ainda na Macedocircnia e imaginava como poderia conquistar a Aacutesia ele me apareceu em sonhos com essas mesmas vestes e exortou-me a nada temer Disse-me que passasse corajosamente o estreito do Helesponto e garantiu que Deus estaria agrave frente de meu exeacutercito e me faria conquistar o impeacuterio dos persas Eis por que jamais tendo visto antes algueacutem revestido de trajes semelhantes a esses com que ele me apareceu em sonho natildeo posso duvidar de que tenha sido por ordem de Deus que empreendi esta guerra e assim vencerei Dario destruirei o impeacuterio dos persas e todas as coisas suceder-me-atildeo segundo os meus desejos Alexandre depois de assim responder a Parmecircnio abraccedilou o sumo sacerdote e os outros sacerdotes caminhou no meio deles ateacute Jerusaleacutem subiu ao Templo e ofereceu sacrifiacutecios a Deus da maneira como o sumo sacerdote lhe disse para fazer O sumo sacerdote mostrou-lhe em seguida o livro de Daniel no qual estava escrito que um priacutencipe grego destruiria o impeacuterio dos persas e disse-lhe que natildeo duvidava de que era dele que a profecia fazia menccedilatildeo Alexandre ficou muito contente No dia seguinte mandou reunir o povo e ordenou que dissessem que favores desejavam receber dele O sumo sacerdote respondeu que eles suplicavam permissatildeo para viver segundo as suas leis e as de seus antepassados e isenccedilatildeo no seacutetimo ano do tributo que lhe pagariam nos outros anos Ele concordou E tendo eles tambeacutem pedido que os judeus que moravam na Babilocircnia e na Meacutedia desfrutassem os mesmos favores ele o prometeu com grande bondade e disse que se algueacutem desejasse servir em seus exeacutercitos ele permitiria a tal pessoa viver segundo a sua religiatildeo e observar todos os seus costumesrdquo (JOSEFO Hist Heb XI 845)

142

Depois de lida essa solicitaccedilatildeo o rei aprovou o pedido e ordenou que fosse enviada

uma epiacutestola ao sumo sacerdote Eleazar complementado o pedido com uma

autorizaccedilatildeo de liberdade para todos os judeus submissos agrave escravidatildeo naquele

reino conforme orientaccedilatildeo dada por Demeacutetrio O sumo sacerdote dos judeus

respondeu favoravelmente e foram enviados seis tradutores pertencentes a cada

uma das doze tribos totalizando setenta e dois Assim houve a traduccedilatildeo dos textos

sagrados da literatura hebraica para o grego e ainda os tradutores incluiacuteram a

literatura produzida a partir do cativeiro babilocircnico Hale (1983 p 9) destaca a

importacircncia dessa traduccedilatildeo para os judeus165 dispersos tanto os do Egito como os

da Aacutesia e Macedocircnia falantes do grego

Conforme relato de Edersheim (1953 p1456) a Palestina foi governada pelos

Ptolomeus e posteriormente passou a ser dominada pela Siacuteria Antiacuteoco IV Epifacircnio

(175-164) determinou substituir o judaiacutesmo pelo helenismo momento em que

aconteceu a revolta dos macabeus Estes saiacuteram vencedores e estabeleceram uma

dinastia sacerdotal que se manteve de 142 a 63 aC Muitos conflitos e disputas

foram levantados nesse periacuteodo porque a famiacutelia dos macabeus natildeo era de

linhagem real (Davi) e nem sacerdotal (Aratildeo) como Flaacutevio Josefo cita na obra

Histoacuteria dos Hebreus (VIII 467)

Na continuidade de seus relatos Edersheim (1953 p 1468) informa que com a

tomada de Jerusaleacutem por Pompeu (63 aC) encerra-se a atuaccedilatildeo dos macabeus e a

independecircncia da Palestina passando esta para o domiacutenio romano com a obrigaccedilatildeo

de pagamento dos tributos Com o controle da Judeia pelos romanos Antipater foi

designado procurador e Hircano sumo-sacerdote Os filhos de Antipater Fasael e

Herodes foram designados governadores da Judeia e Galileia respectivamente

Com a morte de Antipater e Fasael Herodes recebeu de Antonio e Otaacutevio o tiacutetulo de

165 Aleacutem de Ptolomeu ter mantido o acordo com os judeus a respeito dos seus costumes e culto no impeacuterio romano essa liberdade se manteve Na obra Doze ceacutesares Suetocircnio (sdata p 66) faz menccedilatildeo a uma carta que o imperador Augusto escreveu a Tibeacuterio com o seguinte comentaacuterio sobre costumes judaicos ldquoNatildeo haacute judeu que jejue mais rigorosamente no dia do sabbat como eu jejuo hojerdquo Flaacutevio Josefo (Hist Heb XV 10 698) tambeacutem menciona as concessotildees feitas por Augusto a respeito da religiatildeo dos judeus Ceacutesar Augusto sumo sacerdote e administrador da Repuacuteblica ordena o que se segue Sendo a naccedilatildeo dos judeus natildeo somente no tempo presente mas tambeacutem no passado sempre fiel e afeiccediloada ao povo romano particularmente ao imperador Ceacutesar meu pai quando Hircano era o seu sumo sacerdote ordenamos com o consentimento do senado que os judeus vivam segundo as suas leis e costumes tal como faziam no tempo de Hircano sumo sacerdote do Deus Altiacutessimo que os seus Templos desfrutem sempre o direito de asilo que lhes seja permitido enviar a Jerusaleacutem o dinheiro consagrado ao serviccedilo de Deus que natildeo sejam obrigados a comparecer a julgamento no dia de saacutebado nem na vigiacutelia do saacutebado apoacutes as nove horasrdquo

143

rei dos judeus em 40 aC Herodes desenvolveu um projeto arrojado de construccedilotildees

de fortalezas cidades como a de Cesareia166 e ainda a reconstruccedilatildeo do templo de

Jerusaleacutem iniciada em 19 aC Foi nesse ambiente histoacuterico que Jesus nasceu em

Beleacutem distante de Jerusaleacutem 8 km de acordo com as narrativas dos Evangelhos de

Mateus e Lucas

O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia (vol II p 710-712) situa a morte de Herodes em 4 dC

e informa que seu reino foi dividido em trecircs aacutereas para contemplar seus herdeiros

Judeia e Samaria foram destinadas a Arquelau Galileia e Pereia a Antipas e os

territoacuterios do nordeste para Filipe O governo de Arquelau tornou-se insustentaacutevel e

uma delegaccedilatildeo da Judeacuteia e Samaria foi enviada a Roma para solicitar o afastamento

de Arquelau A partir desse fato a Judeacuteia tornou-se uma proviacutencia romana

passando a ser governada por procuradores nomeados pelo imperador O primeiro

procurador romano na Judeia foi Pocircncio Pilatos que atuou no julgamento de Jesus

Antipas foi denunciado por seu sobrinho Agripa167 que obteve sucesso no seu

intento Sendo seu tio Antipas afastado e exilado Agripa foi nomeado pelo

imperador Caliacutegula como rei O rei Agripa morreu subitamente e foi substituiacutedo por

seu filho Agripa (Herodes Agripa II) que governou como rei nos territoacuterios do norte e

nordeste da Palestina sendo seus domiacutenios ampliado por Nero em 56 dC Agripa

mudou o nome da capital Cesareia para Neronias em homenagem a Nero O

governo de Agripa II durou ateacute o iniacutecio da guerra contra Roma a partir de 66 dC

166

Flavio Josefo em Histoacuteria dos Hebreus (XV 13 669) oferece detalhes sobre a construccedilatildeo da cidade de Cesareia informando que do lado direito estavam duas colunas de pedra tatildeo grandes que superavam a altura da torre Via-se ao redor do porto uma fileira de casas cujas pedras eram muito bem talhadas e construiu-se sobre uma colina que estaacute meio o Templo consagrado a Augusto Os que navegam podem vecirc-lo de bem longe e haacute duas estaacutetuas uma de Roma e outra desse priacutencipe em honra do qual Herodes deu o nome de Cesareacuteia a essa cidade natildeo menos admiraacutevel pela riqueza de suas construccedilotildees que pela magnificecircncia de seus ornamentos Quanto agrave reconstruccedilatildeo do templo Herodes fez a seguinte proposta aos judeus ldquosabeis que o Templo que os nossos antepassados construiacuteram depois de seu regresso do cativeiro da Babilocircnia mede em altura sessenta cocircvados a menos que o construiacutedo por Salomatildeo mas natildeo devemos culpaacute-los pois desejavam tornaacute-lo mais suntuoso que o primeiro poreacutem estando entatildeo sujeitos aos persas e depois aos macedocircnios foram obrigados a seguir as medidas que lhes deram os reis Ciro e Dario filho de Histapes Agora que sou devedor a Deus da coroa que possuo e uso sobre minha cabeccedila da paz de que desfrutamos das riquezas que acumulei e o mais importante da amizade dos romanos que hoje satildeo senhores do mundo esforccedilar-me-ei por demonstrar o meu reconhecimento por tantos favores dando a essa obra a maior perfeiccedilatildeo (JOSEFO Hist Heb XV 14 676) 167

Agripa era filho de Aristoacutebulo e neto de Herodes o Grande Mariane esposa de Herodes e avoacute de Agripa era descendente dos macabeus neta do sumo sacerdote Hircano II A dinastia de Herodes era descendente dos edomitas (Idumeus) que foram dominados pelos macabeus no seacuteculo II aC (O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia vol II p712)

144

Os conflitos entre governantes romanos e governados judeus aumentaram

gradativamente resultando na revolta aberta em 66 dC tendo como desfecho a

invasatildeo da tropa de Tito e a destruiccedilatildeo do templo no ano 70 dC Essas lutas e

disputas tambeacutem coincidiram com a crise poliacutetica do impeacuterio romano que culminou

com a morte de Nero em 68 dC Sem duacutevida eacute inegaacutevel a contribuiccedilatildeo de Flaacutevio

Josefo como fonte para as pesquisas desse periacuteodo histoacuterico visto ser ele um judeu

que enuncia na posiccedilatildeo de romano como ele proacuteprio deixa transparecer em partes

de sua narrativa

Em Flaacutevio Josefo168 percebem-se os efeitos da heranccedila cultural do periacuteodo

Heleniacutestico que deixou marcas e influecircncia tanto na cultura judaica quanto na

histoacuteria dos primoacuterdios do cristianismo Jerocircnimo expressa sua opiniatildeo sobre o

modo como determinados judeus tornaram-se capacitados em vaacuterios campos do

conhecimento agregando agrave formaccedilatildeo judaica certos elementos da formaccedilatildeo

educacional heleniacutestica

Josefo para provar a antiguidade do povo judeu escreve dois livros contra Apiatildeo gramaacutetico alexandrino e expotildee tantos argumentos dos autores pagatildeos que a mim se me apresenta como um milagre como um homem hebreu educado desde a infacircncia com as letras sagradas tenha manuseado toda a biblioteca dos gregos Que poderia eu falar de Filatildeo que os criacuteticos proclamam ou o segundo Platatildeo ou o Platatildeo judeu (JEROcircNIMO Ep LXX 3)

Outro judeu que se destaca nos primoacuterdios de nossa era eacute Fiacutelon de Alexandria

Segundo Edersheim (1953 p 518) Fiacutelon era um judeu helenista e rabino na

sinagoga169 de Alexandria Algumas ideias deste judeu natildeo eram aceitas por rabinos

mais ortodoxos como por exemplo a noccedilatildeo de loacutegos Poreacutem os primeiros cristatildeos

incorporaram o conceito de loacutegos defendido por Fiacutelon como eacute registrado no

Evangelho de Joatildeo 11 para apresentar Jesus como a palavra de Deus encarnada

como segunda pessoa da trindade170

168

Na obra Histoacuteria dos Hebreus na parte Vida de Flaacutevio Josefo escrita por ele mesmo (p 957) em sua autobiografia Flaacutevio Josefo relata ldquoAos 19 anos iniciei-me na vida civil e abracei a seita dos fariseus que se aproxima mais que qualquer outra da dos estoicos entre os gregosrdquo 169

Hale (1983 p 13) informa que durante o exiacutelio dos judeus na Babilocircnia a instruccedilatildeo religiosa foi prosseguida pelos sacerdotes e levitas numa tentativa de conservar o conhecimento de Jeovaacute vivo Esses locais de adoraccedilatildeo e instruccedilatildeo tornaram-se conhecidos como sinagogas a palavra grega que significa reunidos juntos 170

No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus εν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος (Joatildeo 11)

145

Eacute nesse momento histoacuterico do seacuteculo I dC que se destaca o judeu Saulo em sua

origem chamado Paulo depois de sua conversatildeo ao cristianismo no contexto da

cultura romana Apesar de poucos dados a respeito de sua infacircncia171 alguns

informes biacuteblicos mostram que ele foi criado na tradiccedilatildeo judaica de acordo com a

afirmaccedilatildeo em Atos 223 ldquoSou judeu nascido em Tarso da Ciliacutecia mas criado nesta

cidade (Jerusaleacutem) Fui instruiacutedo rigorosamente por Gamaliel na lei de nossos

antepassadosrdquo Ele pertencia agrave tribo de Benjamim e era capaz de se comunicar em

hebraico aramaico e grego e tinha domiacutenio fluente do grego172 no contexto da

cultura heleniacutestica Paulo era descendente de famiacutelia judaica da diaacutespora nasceu

em Tarso cidade da Aacutesia Menor pertencente ao impeacuterio grego e posteriormente ao

domiacutenio do impeacuterio romano Becker faz algumas observaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo

judaica de Paulo no contexto heleniacutestico

Assim eacute de supor que ele desde a infacircncia fosse habituado a falar a liacutengua comum da diaacutespora como liacutengua franca Aleacutem disso deve-se mencionar que o niacutevel de educaccedilatildeo de Paulo por um lado estaacute concentrado na versatildeo grega da Biacuteblia (Paulo utiliza a Septuaginta) sendo por outro lado significativamente determinado pela cultura geral heleniacutestica Paulo enfim como cristatildeo tambeacutem visitou quase somente cidades heleniacutestico-romanas provavelmente tambeacutem um reflexo de sua socializaccedilatildeo em ambiente heleniacutestico urbano Isso por sua vez ajusta-se a cidade heleniacutestica de Tarso como lugar de sua juventude (BECKER 2007 p59)

De acordo com relatos de Pena (2010 p29) a cidade de Tarso estava localizada

numa regiatildeo helenizada durante a dinastia dos Selecircucidas Os habitantes da regiatildeo

mantinham como padratildeo cultural as tradiccedilotildees a literatura e a liacutengua grega Em 67

aC a cidade foi anexada agrave recente Proviacutencia romana da Ciliacutecia da qual se tornou

capital administrativa Em 51 a C teve como prococircnsul Marco Tuacutelio Ciacutecero

Em sua narrativa Grimal (2008 p 30-31) comenta que no periacuteodo do triunvirato

coube a Marco Antocircnio o governo da parte do oriente para conquista definitiva da

Alta Aacutesia Tarso era o local de apoio para as estrateacutegias militares e poliacuteticas de

Marco Antocircnio e foi nesse contexto que ele recebeu Cleoacutepatra em Tarso como uma

princesa vassala e a entrada triunfal dela teria sido por um portal que eacute conservado

ateacute os dias atuais como marco histoacuterico Atualmente a cidade de Tarso integra o 171

Natildeo haacute informaccedilatildeo exata sobre data de nascimento do apoacutestolo Paulo Becker (2007 p 55) verifica que na eacutepoca de sua vocaccedilatildeo Paulo jaacute havia concluiacutedo seu periacuteodo de formaccedilatildeo profissional bem como sua formaccedilatildeo farisaica Dai e possiacutevel e faz sentido supor uma idade entre 20 e 25 anos para a sua vocaccedilatildeo Isso leva a uma data de nascimento com toleracircncia de alguns anos para antes ou depois em torno de 10 dC portanto nos uacuteltimos anos do impeacuterio de Augusto (morto em 14 dC) 172

Becker (1983 2007 p 59) verifica que a liacutengua grega de Paulo usada na escrita das epiacutestolas natildeo soacute estaacute livre de fortes semitismos (portanto dificilmente aprendida mais tarde como liacutengua estrangeira em Jerusaleacutem) como tambeacutem segue com independecircncia o estilo grego

146

paiacutes da Turquia e eacute um local muito visitado pelo seu valor histoacuterico Na parte central

da cidade foi preservado e restaurado o portal de Cleoacutepatra porque essa era uma

ligaccedilatildeo do porto no mediterracircneo com a cidade

No seacuteculo I dC Tarso era um dos eixos do comeacutercio internacional entre o mundo

semita o planalto Anatoacutelio e as cidades gregas viradas para o Egito e a Europa A

posiccedilatildeo estrateacutegica da cidade de Tarso a colocou em destaque no contexto histoacuterico

do Oriente helenizado como afirma Pena (2010 p30) ldquotodos os ramos das artes

liberais figuravam em Tarso poesia retoacuterica e filosofia esta sobretudo com forte

ascendente na tradiccedilatildeo estoica localrdquo

Fabris (1996 p 25) menciona algumas figuras que foram destaque em Tarso ou que

reconheceram o seu valor cultural Atenedoro mestre de Augusto contribuiu para

que Tarso se ampliasse como um centro cultural O depoimento de Estrabatildeo eacute

elogioso agraves escolas de Tarso Outro destaque eacute a tradiccedilatildeo de poetas e filoacutesofos

naquele local como Antiacutepatro chefe da stoa mestre de Paneacutecio academia

platocircnica e o epicurista Liacutesias

A composiccedilatildeo da biografia de Paulo tem como base os dados fornecidos atraveacutes do

livro de Atos173 e de suas proacuteprias epiacutestolas na busca de interligar informaccedilotildees

biacuteblicas com as da proacutepria Histoacuteria De acordo com pesquisas de Fabris (1996 p

16) algumas fontes contribuem para o desenvolvimento cronoloacutegico da vida do

apoacutestolo Paulo entre estas eacute levado em conta o conjunto das sete epiacutestolas

consideradas autecircnticas Com esse material que forma uma documentaccedilatildeo interna

comparado agraves demais fontes externas de outros textos torna-se possiacutevel uma

ordem cronoloacutegica da vida desse apoacutestolo da sua conversatildeo ateacute sua prisatildeo em

Roma Em especial na epiacutestola aos Gaacutelatas Paulo fornece uma ordem temporal de

173

Em relaccedilatildeo a certos desencontros entre informaccedilotildees contidas na narrativa de Atos e a epiacutestola aos Gaacutelatas Becker faz a seguinte observaccedilatildeo ldquoa participaccedilatildeo do autor de Atos na descriccedilatildeo de Paulo certamente natildeo consiste somente na coleccedilatildeo de tradiccedilotildees isoladas nem soacute na remodelaccedilatildeo literaacuteria das mesmas ou na sua interligaccedilatildeo Bem mais Atos mostra (juntamente com o terceiro evangelho) um esboccedilo teoloacutegico proacuteprio que se enraiacuteza na situaccedilatildeo eclesial do final do primeiro seacuteculo e que quer estar a serviccedilo dessa Igreja A apresentaccedilatildeo de Paulo nos Atos insere-se nesse interesse Por essa razatildeo Paulo natildeo eacute descrito como pessoa biograficamente significativa dos iniacutecios da Igreja nem como teoacutelogo de destaque da primeira geraccedilatildeo cristatilde mas eacute caracterizado como ator decisivo no desenvolvimento do cristianismo desde a comunidade primitiva de Jerusaleacutem ateacute a Igreja espalhada pelo mundo todo Essa eacute a razatildeo porque soacute se alude de passagem ao martiacuterio de Paulo (2025 38 2113) e inversamente a permanecircncia do Apoacutestolo na capital do Impeacuterio Romano aparece como final glorioso dos Atos Por isso mesmo nenhum discurso paulino nos Atos valoriza a teologia do grande missionaacuterio Discursos satildeo colocados na boca de Paulo para mostrar em que direccedilotildees vatildeo os acontecimentos eclesiais segundo a visatildeo de Atosrdquo (BECKER 2007 p 30)

147

suas atividades o que permite uma associaccedilatildeo com outros fatos histoacutericos para

situar as provaacuteveis datas dos acontecimentos Alguns dados nas epiacutestolas aos

Coriacutentios ajudam a decifrar as possiacuteveis eacutepocas de alguns acontecimentos como o

relato do levantamento da oferta de colaboraccedilatildeo agrave igreja de Jerusaleacutem em que

Paulo menciona em 2 Coriacutentios (92) o incentivo que as igrejas da Macedocircnia

tiveram em ajudar pelo exemplo da atitude da igreja de Corinto174

A biografia de Paulo eacute introduzida no livro de Atos com a narrativa do momento da

sua conversatildeo A histoacuteria eacute contada em trecircs momentos diferentes Na primeira vez o

narrador eacute Lucas e nas outras vezes o proacuteprio Paulo conta sua experiecircncia Sendo

um judeu zeloso pertencente ao grupo dos fariseus empenhou-se na perseguiccedilatildeo

contra os seguidores de Jesus Segundo a narrativa de Lucas175 (Atos 9 1-31)

quando Saulo se dirigia a Damasco para executar as prisotildees de seus perseguidos

de repente brilhou ao seu redor uma luz vinda do ceacuteu Nesta visatildeo Jesus o indaga

Saulo por que vocecirc me persegue A partir desse encontro aconteceu a conversatildeo

de Saulo tendo iniacutecio sua trajetoacuteria como missionaacuterio pois conversatildeo e chamada na

vida de Paulo satildeo entendidas a partir de um processo conjunto

Pode-se entatildeo dizer que dois fenocircmenos inseparaacuteveis aconteceram na vida de

Paulo sua conversatildeo e sua chamada missionaacuteria A conversatildeo na vida dele

significou mudanccedila de meta objetivos e nova atitude no modo de pensar e agir

Schreiner (2015 p 42) atenta para o fato de que a partir do evento da conversatildeo

Paulo estabeleceu uma nova leitura e significado da lei de Moiseacutes e o lugar do

judaiacutesmo no plano de Deus para salvaccedilatildeo da humanidade Um ponto comum nas

trecircs narrativas em Lucas sobre a conversatildeo de Paulo eacute a imagem da luz forte que

brilhou causando-lhe cegueira Quando sua visatildeo voltou sua perspectiva de

enxergar o mundo era outra razatildeo da sua disposiccedilatildeo em desbravar os mares para

alcanccedilar os natildeo contemplados com a notiacutecia da vinda morte e ressurreiccedilatildeo de

Jesus

174

ldquoPorque bem sei a prontidatildeo do vosso acircnimo da qual me glorio de voacutes para com os macedocircnios que a Acaia estaacute pronta desde o ano passado e o vosso zelo tem estimulado muitosrdquo (2 Cor 92) 175

No Novo Testamento Atos dos Apoacutestolos se caracteriza como um livro histoacuterico para o iniacutecio do Cristianismo Lucas autor do Evangelho que leva seu nome se coloca como um historiador dirigindo-se a Teoacutefilo nos seguintes termos ldquoeu mesmo investiguei tudo cuidadosamente desde o comeccedilo e decidi escrever-te um relato ordenado oacute excelentiacutessimo Teoacutefilo (Lucas 13) Ele eacute identificado tambeacutem como autor de Atos dos Apoacutestolos e assim introduz os relatos ldquoem meu livro anterior Teoacutefilo escrevi a respeito de tudo que Jesus comeccedilou a fazer e ensinar (Atos 11)

148

Com o objetivo de alcanccedilar a evangelizaccedilatildeo dos gregos integrantes do impeacuterio

romano Paulo manifesta pensamentos filosoacuteficos que remetem a pensadores da

Antiguidade grega por ser familiar ao grupo a que ele se dirige Conforme opiniatildeo

de Johnson (2012 p 134) quando se lanccedila um olhar para o primeiro seacuteculo dC

situa-se o apoacutestolo Paulo na conjuntura do iniacutecio do cristianismo Como

disseminador dos ensinamentos de Jesus Cristo aos gentios (natildeo judeus) falantes

do grego Paulo identificou-se com um puacuteblico de base comum no contexto da

cultura heleniacutestica fato determinante na exposiccedilatildeo de pontos de vista na

transmissatildeo de sua mensagem

Nos fatos levantados por Fabris (1996) nota-se que Paulo natildeo menciona sua terra

de nascimento e nem comenta sobre sua cidadania romana sendo esses dados

informados apenas no livro de Atos No entanto Fabris (1996 p 24) faz algumas

inferecircncias baseadas em alguns relatos de Paulo que podem contribuir para uma

ligaccedilatildeo agraves narrativas de Lucas no livro de Atos Na epiacutestola aos Gaacutelatas Paulo

informa que depois de sua trajetoacuteria176 apoacutes sua conversatildeo ele foi para Araacutebia e em

seguida para Damasco e soacute depois de trecircs anos voltou agrave Jerusaleacutem onde esteve

com Pedro por quinze dias concluindo ldquodepois fui para as partes da Siacuteria e da

Ciliacuteciardquo (Gaacutelatas 121) Assim pode-se deduzir que havia uma identificaccedilatildeo de Paulo

com essa regiatildeo sabendo-se que Tarso onde supostamente ele nasceu fazia parte

da regiatildeo da Ciliacutecia

Quanto ao questionamento sobre a cidadania romana de Paulo Heyer (2008 p 17)

argumenta que eacute impossiacutevel encontrar no conteuacutedo das epiacutestolas por ele escritas

alguma sinalizaccedilatildeo que possa concordar com o relato de Lucas no livro de Atos

onde haacute informaccedilotildees sobre sua cidadania romana177 por direito de nascimento

Quanto a essa questatildeo este autor pondera que o silecircncio de Paulo se presta ao fato

de estar mais interessado em provar que eacute judeu para justificar sua identidade e

seu posicionamento diante de seus opositores nas sinagogas

176

ldquoNem tornei a Jerusaleacutem a ter com os que jaacute antes de mim eram apoacutestolos mas parti para a Araacutebia e voltei outra vez a Damasco Depois passados trecircs anos fui a Jerusaleacutem para ver a Pedro e fiquei com ele quinze dias E natildeo vi a nenhum outro dos apoacutestolos senatildeo a Tiago irmatildeo do Senhorrdquo Depois fui para as partes da Siacuteria e da Ciliacuteciardquo (Gaacutelatas 1 17-20) 177

E vindo o tribuno disse-lhe Dize-me eacutes tu romano E ele disse Sim E respondeu o tribuno Eu com grande soma de dinheiro alcancei este direito de cidadatildeo Paulo disse Mas eu o sou de nascimento (Atos 22 27 28)

149

As viagens missionaacuterias de Paulo estatildeo diretamente relacionadas agraves igrejas por ele

fundadas e sua comunicaccedilatildeo com algumas delas por meio das epiacutestolas Lucas

registra que Barnabeacute enviado pela igreja de Jerusaleacutem aos que se reuniam em

Antioquia da Siacuteria foi a Tarso para obter a ajuda de Paulo em seu trabalho entre os

gentios de Antioquia (Atos 1125) Barnabeacute e Paulo permaneceram ensinando em

Antioquia por mais ou menos um ano e Lucas registra que naquele local os

disciacutepulos pela primeira vez foram chamados cristatildeos (Atos 1126)

A igreja de Antioquia enviou Paulo e Barnabeacute para a realizaccedilatildeo oficial da primeira

viagem missionaacuteria Eles navegaram para Selecircucida e de laacute para Chipre Nota-se

que o trajeto da primeira viagem incluiacutea duas ilhas de importacircncia na cultura grega

Funari (2002 p15) informa que a principal cidade de Creta Knossos era um centro

administrativo monumental Creta foi a diretriz da regiatildeo da Greacutecia na eacutepoca do

Bronze Em meados do segundo milecircnio Creta conheceu o apogeu da chamada

Talassocrassia minoense178 ou seja o poder mariacutetimo de Creta influenciava toda a

regiatildeo

De Creta chegaram a Salamina179 onde havia uma sinagoga dos judeus e laacute

ministraram os ensinamentos aos judeus e gentios Salamina fica distante de Atenas

cerca de 30 km Local histoacuterico importante pois laacute no seacuteculo V aC foi travada a

luta vitoriosa dos gregos contra os persas

Schreiner (2015 p 45) argumenta que o chamado de Paulo foi especiacutefico para levar

o evangelho aos natildeo judeus e na epiacutestola aos Gaacutelatas ele assume seu papel de

apoacutestolo aos gentios Assim Paulo se coloca como responsaacutevel pelo evangelho da

incircunsiccedilatildeo ou seja o evangelho destinado aos natildeo judeus

E conhecendo Tiago Cefas e Joatildeo que eram considerados como as colunas a graccedila que me havia sido dada deram-nos as destras em comunhatildeo comigo e com Barnabeacute para que noacutes focircssemos aos gentios e eles agrave circuncisatildeo (Gaacutelatas 29)

Aleacutem dos natildeo judeus havia tambeacutem os judeus helecircnicos e na percepccedilatildeo de Ramos

(2002 p 210) nos relatos do Novo Testamento estes formam um grupo de judeus

que parece ser bastante numeroso pois eles falam grego e frequentam mais as

178

Segundo Funari (2002 p15) pela imponecircncia dos palaacutecios cretenses os gregos criaram a histoacuteria do labirinto e do minotauro criatura meio homem e meio touro Surgiu o heroacutei grego Teseu que matou o monstro e descobriu a saiacuteda do labirinto Atualmente o siacutetio arqueoloacutegico em Creta oferece uma visatildeo magnifica da arquitetura do palaacutecio de Knossos 179

ldquoE chegados a Salamina anunciavam a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus e tinham tambeacutem a Joatildeo como cooperador (Atos 135)

150

sinagogas do que o templo de Jerusaleacutem Este grupo constitui-se como um dos

principais na recepccedilatildeo da mensagem de Jesus sendo participantes dos

fundamentos do cristianismo que acabou por se firmar como religiatildeo institucional

As viagens de Paulo serviram como oportunidade de seu contato com a cultura do

mundo grego e os relacionamentos firmados em cada lugar foram essenciais para o

processo de evangelizaccedilatildeo aleacutem das fronteiras da Judeia Quando os disciacutepulos

receberam a incumbecircncia da propagaccedilatildeo do evangelho Lucas relata as instruccedilotildees

deixadas por Jesus ldquoMas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito Santo e

ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda a Judeacuteia e Samaria e

ateacute os confins da terrardquo (Atos18)

Apoacutes encerrada a terceira viagem missionaacuteria Paulo retornou a Jerusaleacutem e laacute foi

preso sendo enviado ao Procurador Romano em Cesareia180 no governo do

Imperador Nero181 No tempo do aprisionamento de Paulo em consequecircncia do

atrito religioso com os judeus em Jerusaleacutem Feacutelix era procurador182 da Judeia No

livro de Atos 23 haacute o relato do modo como Paulo foi conduzido de Jerusaleacutem para

Cesareia

E escreveu uma carta que continha isto Claacuteudio Liacutesias183

a Feacutelix potentiacutessimo presidente sauacutede Esse homem foi preso pelos judeus e estando jaacute a ponto de ser morto por eles sobrevim eu com a soldadesca e

180

Segundo as informaccedilotildees de Flaacutevio Josefo quando os romanos dominaram a Judeia as cidedes foram sendo conquistadas e ldquoPompeu restituiu aos seus antigos habitantes as que estavam bem dentro em terra firme a saber Hipona Citoacutepolis Pela Diom Samara Maressa Azoto Jamnia e Aretusa como tambeacutem as que a guerra destruiacutera completamente Quis ele que as cidades mariacutetimas ficassem livres e fizessem parte da proviacutencia a saber Gaza Jope Adora e a torre de Estratatildeo que Herodes depois mandou reconstruir com grande magnificecircncia e enriqueceu com portos e belos Templos mudando-lhe o nome para Cesareacuteiardquo (JOSEFO His Heb XIV 8 577) 181

Taacutecito (Anais XV 44) na narrativa da acusaccedilatildeo de Nero aos cristatildeos como responsaacuteveis pelo incecircndio de Roma cita o procurador Pocircncio Pilatos no julgamento da morte de Cristo o personagem que deu origem ao movimento dos cristatildeos 182

A funccedilatildeo do procurador na Judeia era de controle da proviacutencia responsaacutevel pelo exeacutercito de ocupaccedilatildeo que ficava aquartelado em Cesareia com um destacamento em Jerusaleacutem na fortaleza de Antonia Tinha poder nos julgamentos e podia reverter sentenccedilas capitais decretadas pelo sineacutedrio as quais tinham que ser-lhe submetidas O procurador nomeava o sumo sacerdote e era guardiatildeo das vestes sacerdotais Os procuradores da Judeia (governadores) eram sujeitos agrave autoridade superior do legado imperial (propreter) da Siacuteria Sua sede de governo ficava em Cesareia (O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia vol III p 1317) 183

Claacuteudio Liacutesias tribuno militar aparece pela primeira vez na narrativa dos Atos quando protege Paulo de uma multidatildeo hostil de judeus do lado de fora do Templo de Jerusaleacutem O texto natildeo afirma explicitamente o motivo pelo qual o tribuno prende Paulo mas presume-se que ele foi preso para investigaccedilatildeo como fica claro mais adiante durante o interrogatoacuterio Sabendo da intenccedilatildeo dos judeus em tirar a vida de Paulo Claudio Liacutesias organizou uma escolta militar para conduzi-lo a Cesareia

151

o livrei informado de que era romano E querendo saber a causa por que o acusavam o levei ao seu conselho (Atos 23 25-28)

184

Nota-se que no texto em grego o termo traduzido como carta estaacute grafado epiacutestola

no acusativo (επιστολήν) O introito da epiacutestola segue o modelo romano ldquoClaacuteudio

Liacutesias a Feacutelix potentiacutessimo presidente sauacutederdquo Pode-se dizer que esta eacute uma

epiacutestola documento pois faz parte de um protocolo de registro de accedilotildees tomadas

por parte dos responsaacuteveis por setores da procuradoria romana instalada em

regiotildees da Palestina

Paulo foi encaminhado oficialmente para ser julgado pelo procurador romano em

Cesareia Para evitar qualquer possibilidade de julgamento em Jerusaleacutem com a

participaccedilatildeo dos judeus alegando a prerrogativa de cidadatildeo romano Paulo apelou

para a corte de Ceacutesar Segundo Fabris (1996 p 23) o argumento mais favoraacutevel agrave

questatildeo da cidadania de Paulo eacute o fato de seu pedido para ser julgado em Roma

oriundo de um processo iniciado em Cesareia perante o procurador romano Paulo

aguardou pelo julgamento por dois anos ateacute a substituiccedilatildeo do procurador Felix pelo

receacutem chegado Festo Em sua visita a Jerusaleacutem o novo procurador romano foi

interpelado pelo sumo sacerdote e os principais dos judeus insistindo na acusaccedilatildeo

contra Paulo Festo assim relata a situaccedilatildeo ao rei Agripa

Acerca do qual estando presentes os acusadores nenhuma coisa apontaram daquelas que eu suspeitava Tinham poreacutem contra ele algumas questotildees acerca da sua supersticcedilatildeo e de um tal Jesus morto que Paulo afirmava viver E estando eu perplexo acerca da inquiriccedilatildeo desta causa disse se queria ir a Jerusaleacutem e laacute ser julgado acerca destas coisas E apelando Paulo para que fosse reservado ao conhecimento de Augusto mandei que o guardassem ateacute que o envie a Ceacutesar (Atos 2518-21)

Para cumprimento do apelo de Paulo para ser julgado em Roma foi empreendida

uma viagem narrada por Lucas com muitos detalhes Apoacutes um naufraacutegio a

tripulaccedilatildeo e os presos permanecerem na Ilha de Malta durante trecircs meses depois

tomaram um navio que se dirigia a Alexandria e chegando a Roma Paulo

permaneceu em uma prisatildeo domiciliar por dois anos

Natildeo haacute relatos biacuteblicos sobre as viagens de Paulo empreendidas depois de seu

primeiro aprisionamento em Roma e nem fonte segura que forneccedila informaccedilotildees

sobre sua morte mas conjecturas a partir de outros acontecimentos histoacutericos

Supotildee-se que depois do incecircndio de Roma em 64 dC o imperador Nero teria

184

γραψας επιστολην περιεχουσαν τον τυπον τουτον κλαυδιος λυσιας τω κρατιστω ηγεμονι φηλικι χαιρειν (Atos 2325)

152

culpado e punido os cristatildeos e que possivelmente nesse momento Paulo teria

sido preso novamente Haacute uma versatildeo que indica o segundo aprisionamento e

morte de Paulo em Roma sustentado por algumas indicaccedilotildees na epiacutestola 2

Timoacuteteo185

Essa eacute uma das versotildees que vigora tambeacutem na apresentaccedilatildeo dos locais histoacutericos

em Roma Junto ao local do forum romano existe o chamado caacutercere Mamertinum

onde os apoacutestolos Pedro e Paulo teriam ficado nos momentos que antecederam o

martiacuterio final deles Atualmente o local da antiga prisatildeo funciona como museu e

duas igrejas que estatildeo superpostas ao espaccedilo subterracircneo do caacutercere186

No final de sua obra Becker (2007 p 657) apresenta duas vertentes sobre a morte

de Paulo uma com base em Clemente187 e a outra em Euseacutebio188 Quanto a

correspondecircncia de Clemente escrita de Roma agrave igreja de Corinto no final do

primeiro seacuteculo da era cristatilde teraacute sido produzida mais ou menos na mesma eacutepoca

de Atos dos Apoacutestolos Poderia inclusive constituir-se no documento mais antigo

referente a morte de Paulo Com base em I Clemente (5 47) Becker observa a

185

Na segunda epiacutestola a Timoacuteteo algumas referecircncias contribuem para o entendimento de que Paulo estava preso em Roma ldquoPortanto natildeo te envergonhes do testemunho de nosso Senhor nem de mim que sou prisioneiro seurdquo (2 Tim 18) ldquoO Senhor conceda misericoacuterdia agrave casa de Onesiacuteforo porque muitas vezes me recreou e natildeo se envergonhou das minhas cadeias Antes vindo ele a Roma com muito cuidado me procurou e me achourdquo (2 Tim 1 16-17) ldquoNingueacutem me assistiu na minha primeira defesa antes todos me desampararamrdquo (2 Tim 416) ldquoPorque eu jaacute estou sendo oferecido por aspersatildeo de sacrifiacutecio e o tempo da minha partida estaacute proacuteximordquo (2 Tim 46) 186

Com base em uma visita em agosto de 2016 ao local da prisatildeo chamada Mamertina junto ao forum romano as informaccedilotildees indicam que a prisatildeo foi usada em 63 aC para aprisionar os membros da segunda conspiraccedilatildeo de Catilina Supotildee-se que Pedro e Paulo estiveram presos naquele local ateacute o momento da condenaccedilatildeo final Natildeo se sabe quando a prisatildeo deixou de ser usada permanentemente mas o lugar foi utilizado pelos cristatildeos desde os tempos medievais e eacute atualmente ocupado por duas igrejas superpostas San Giuseppe dei Falegnami na parte superior e San Pietro in Carcere na parte inferior 187

Satildeo Clemente (35- 100 dC) tambeacutem conhecido como Clemente Romano era o bispo de Roma Segundo Jaeger (1965 p 26) o documento mais antigo posterior aos apoacutestolos eacute a epiacutestola de Clemente aos Coriacutentios escrita na uacuteltima deacutecada do primeiro seacuteculo de nossa era Jaeger (1965 p 27-28) observa que Clemente tambeacutem usa os recursos da retoacuterica pelas referecircncias aos exemplos mais antigos e os mais recentes O propoacutesito da epiacutestola toma como base o toacutepos ldquoa discoacuterdia interna tem feito cair grandes reis e destruiacutedo Estados poderososrdquo Para Jaeger este toacutepos era usado como exploraccedilatildeo e diferentes aplicaccedilotildees em diversas situaccedilotildees de conflitos 188

No prefaacutecio da obra Histoacuteria Eclesiaacutestica (2012) o tradutor Wolfgang Fischer informa que ldquoEuseacutebio bispo de Cesareacuteia nasceu em cerca de 270 faleceu no ano 339340 A data de seu nascimento soacute pode ser inferida de sua obra pois ele narra a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos sob Valeriano (258-260) como sendo algo do passado e os eventos seguintes como sendo contemporacircneos seus Natildeo se sabe onde nasceu mas passou a maior e mais importante parte de sua vida em Cesareacuteia na eacutepoca a maior cidade romana da Palestina Era de famiacutelia desconhecida mas certamente cristatilde como indica seu nome Euseacutebio nada fala de si mesmo em sua extensa obra Foi bispo de Cesareacuteia de 313 ou 315 em dianterdquo

153

concordacircncia da versatildeo de Clemente189 com a da tradiccedilatildeo cristatilde de que Paulo e

Pedro foram condenados em Roma

Na versatildeo de Euseacutebio em sua obra Histoacuteria Eclesiaacutestica (II 222) Paulo teria

recuperado a liberdade em Roma realizado seu projeto de visita agrave Espanha e entatildeo

em seu retorno teria sido aprisionado e condenado Essa posiccedilatildeo tem como base

uma tentativa de harmonizar o livro de Atos com a Epiacutestola aos Romanos e 2

Timoacuteteo Diante das incertezas Becker (2007 p 657) em relaccedilatildeo agraves informaccedilotildees

sobre a morte de Paulo finaliza ldquoAssim sendo no caso de Paulo brilham ate hoje

com mais claridade seus testemunhos epistolaresrdquo

As epiacutestolas de Paulo tecircm uma grande relevacircncia como fonte nos estudos que

procuram examinar a histoacuteria dos cristatildeos primitivos do seacuteculo I dC sabendo-se

que ele procurou responder indagaccedilotildees e conflitos daquela eacutepoca na perspectiva de

uma pluralidade cultural em que as influecircncias do periacuteodo Heleniacutestico ainda

perduravam tanto na cultura romana quanto na judaica

Os co-enunciadores (destinataacuterios) de Paulo satildeo identificados como participantes

das Igrejas com as quais ele se comunica atraveacutes das epiacutestolas Vale destacar que

ao se dirigir a uma determinada comunidade cristatilde os argumentos que se

estabelecem procuram enfocar alguma situaccedilatildeo em destaque visto que o

tratamento nas epiacutestolas se difere pelas caracteriacutesticas e problemas enfrentados por

cada comunidade Haacute uma extensatildeo dos ensinamentos para os leitores em geral

visto que os problemas que atingiam os primeiros cristatildeos se identificam em

qualquer eacutepoca ou cultura sendo que os conselhos e instruccedilotildees desenvolvidos em

cada epiacutestola satildeo aplicaacuteveis agraves comunidades cristatildes em geral tanto no passado

quanto no presente

Vale ressaltar que natildeo haacute exclusividade de destinataacuterios tanto no discurso de

Secircneca quanto no de Paulo e nessa perspectiva Mainguenau (2008 p 129 130)

coloca que mesmo que a enunciaccedilatildeo seja marcada pela suposiccedilatildeo de um co-

enunciador outros destinataacuterios tecircm a possibilidade de entrar no circuito da

enunciaccedilatildeo 189

Segundo sua primeira versatildeo da morte de Paulo com base em Clemente Becker (2007 p 657) relata ldquoo texto (1Clem 55-7) diz lsquoPor seu zelo e sua luta recebeu o precircmio reservado a paciecircncia sete vezes acorrentado exilado apedrejado fez-se arauto no oriente e no ocidente e mereceu a verdadeira gloria Depois de pregar a justiccedila a todo o mundo tendo chegado ao confim do ocidente tendo dado testemunho diante dos poderosos deixou o mundo e recolheu-se ao lugar santo tornando-se o maior exemplo de paciecircncia

154

31 MANUAL DE INSTRUCcedilOtildeES DE PAULO Agrave IGREJA DE CORINTO

Como fonte para delimitaccedilatildeo do corpus de anaacutelise neste trabalho foram

selecionadas as duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Essa escolha se justifica por

razotildees jaacute delineadas anteriormente sobre a penetraccedilatildeo da liacutengua grega na cultura

judaica sendo a comunidade de Corinto situada em um dos centros da cultura

heleniacutestica e ao mesmo tempo romanizada em decorrecircncia de sua ocupaccedilatildeo como

proviacutencia do impeacuterio romano No siacutetio arqueoloacutegico da antiga Corinto os vestiacutegios da

civilizaccedilatildeo romana satildeo notoriamente identificados pela exposiccedilatildeo de peccedilas no

museu que sinalizam a predominacircncia dos haacutebitos e costumes romanos visiacutevel

tambeacutem na arquitetura

Kruse (1987 p 16) destaca pelo menos duas razotildees que justificam a importacircncia de

Corinto frente agraves outras proviacutencias romanas Por um lado sua privilegiada

localizaccedilatildeo portuaacuteria que atraiacutea o interesse comercial entre orientais e ocidentais

Por outro lado foi o local de sede dos jogos bienais do istmo de Corinto Agregado a

esses fatos acrescenta-se tambeacutem o papel da cidade de Corinto como local de culto

pagatildeo190

Como observa Kruse (1987 p17) nos tempos de Paulo Corinto havia conquistado

o lugar de polis cosmopolitana pelo fato de agregar representantes de diferentes

nacionalidades A cidade foi totalmente destruiacuteda em 146 aC pelo efeito de guerras

e disputas entre romanos e gregos Poreacutem a reconstruccedilatildeo por Juacutelio Ceacutesar em 44

dC devolveu agrave cidade seu lugar de prestiacutegio no contexto da navegaccedilatildeo

mariacutetima191

Segundo a narrativa do livro de Atos (18 12-17) a primeira visita de Paulo a Corinto

aconteceu durante a uacuteltima fase da segunda viagem missionaacuteria Quando esteve em

Corinto (Acaia) Paulo entrou em contato com Priscila e Aacutequila judeus cristatildeos que

haviam recentemente se transferido de Roma para aquele local onde trabalhavam

produzindo tendas Paulo se juntou a eles nessa atividade e laacute permaneceu por mais

ou menos um ano e meio e de laacute escreveu a primeira epiacutestola agrave igreja de

Tessalocircnica Nesse tempo Paulo foi acusado por um grupo de judeus perante o 190 Pena (2012 p39) lembra que em Corinto vigoravam ainda alguns dos mais traacutegicos e

perturbadores mitos gregos da Antiguidade Medeia Jasatildeo Siacutesifo e Eacutedipo 191 Entre o Golfo de Corinto e o Golfo Sarocircnico haacute uma estreita faixa de terra que liga a peniacutensula do Peloponeso agrave parte continental da Greacutecia o Istmo de Corinto que tambeacutem separa o mar Jocircnico do

mar Egeu Na zona sul desse istmo estaacute localizada a cidade de Corinto 80 km a oeste de Atenas

155

novo prococircnsul de Acaia Gaacutelio192 (irmatildeo de Secircneca) mas Paulo foi inocentado das

acusaccedilotildees que o ameaccedilavam

A narrativa da Terceira Viagem Missionaacuteria focaliza os trecircs anos de Paulo em Eacutefeso

(Atos 19) e nesse periacuteodo ele escreveu as epiacutestolas agrave igreja em Corinto193 O siacutetio

arqueoloacutegico de Eacutefeso eacute um dos mais bem conservados inclusive a fachada da

biblioteca Em partes da rua principal satildeo encontrados pisos de maacutermore Em

algumas residecircncias a estrutura arquitetura piso e decoraccedilatildeo artiacutestica estatildeo sendo

mantidas e restauradas respeitando a forma original

Durante o periacuteodo que Paulo viveu em Eacutefeso194 foram grandes as tribulaccedilotildees e

perseguiccedilotildees por parte dos proacuteprios judeus que rejeitavam os seus ensinos Toda a

situaccedilatildeo vivida por Paulo desde a sua conversatildeo contribui para sua proacutepria

convicccedilatildeo de sua transformaccedilatildeo e missatildeo em compartilhar sua nova visatildeo do

judaiacutesmo Eacute nessa perspectiva que ele se apropriou do recurso da produccedilatildeo de

epiacutestolas para contar sobre sua nova vida a partir da luz que brilhou no seu trajeto

para Damasco Essa mesma luz iluminou sua mente para compreender os

significados mais profundos da lei de Moiseacutes enxergando-a como uma releitura que

se ligava ao sacrifiacutecio de Cristo como demonstraccedilatildeo de amor ao mundo Eacute nesse

espiacuterito que Paulo realizou suas viagens missionaacuterias e manteve contato com os

grupos que ele jaacute havia organizado como igrejas As epiacutestolas agrave igreja de Corinto

192

Hale (1983 p 164) observa que a menccedilatildeo de Gaacutelio eacute um dos poucos itens histoacutericos mencionados no Novo Testamento que podem ser determinados com um razoaacutevel grau de certeza ldquoUma inscriccedilatildeo encontrada no templo de Delfos confirma que Lucio Junio Aneu Galio tornou-se prococircnsul de Acaia durante a vigeacutesima sexta aclamaccedilatildeo de Claudio (que ocorreu em 51 dC) Se Lucas estaacute certo em relatar que Paulo trabalhou em Corinto dezoito meses antes da vinda de Gaacutelio e com o edito de Claudio datado por volta de 49 dC eacute razoavelmente seguro dizer-se que Paulo estava em Corinto nos anos 49-51 dC Becker (2007 p 52) tambeacutem fornece sua contribuiccedilatildeo informando que Lucius Junius Gallio irmatildeo mais velho do filoacutesofo Secircneca e como ele nascido em Cordoba na Espanha foi prococircnsul da Acaia sob Claudio completando depois sua carreira politica Assim como seu irmatildeo Secircneca foi obrigado a escolher sob Nero a morte voluntaacuteria Seu proconsulado na Acaia eacute atestado por meio de um edito imperial gravado em pedra e dirigido agrave cidade de Delfos (a assim chamada inscriccedilatildeo de Gaacutelio) Seu governo tambeacutem pode ser estabelecido cronologicamente com bastante certeza da primavera de 51 ate a primavera de 52 dC (possivel fator de incerteza um ano mais cedo)rdquo 193

Segundo Hale (1983 p166) ldquose Paulo chegou a Eacutefeso em 52 dC os trecircs anos ali duraram ateacute 55 dC De Atos 2016 fica-se sabendo que Paulo estava em Corinto antes de Pentecostes de 56 dC Ali ele deve ter escrito 2 Corintios no outono de 55 dC para dar tempo de passar os trecircs meses em Corinto (At 203) antes de partir para Jerusaleacutem A escrita de 1 Corintios teria sido feita entatildeo durante o fim do inverno de 54-55 dC ou inicio da primavera de 55 dCrdquo 194

Hale (1983 p 143) observa que a narrativa da Terceira Viagem Missionaria (52-56 dC) eacute transferida quase que inteiramente para o ministeacuterio de trecircs anos de Paulo em Eacutefeso (At 19) Quando em Eacutefeso Paulo escreveu pelo menos trecircs cartas agrave igreja em Corinto uma carta perdida (referida em 1 Cor 59) a 1 Coriacutentios canocircnica e uma carta angustiosa (referida em 2 Cor 24 78) De 2 Corintios (1214 131) sabe-se que Paulo fez uma raacutepida visita a Corinto e voltou a Eacutefeso Deixando Eacutefeso apoacutes o tumulto Paulo foi para Trocircade e depois para a Macedocircnia e laacute ele escreveu 2 Coriacutentios

156

satildeo mostras dessa atitude de Paulo pois o contato entre pessoas separadas pela

distacircncia era favorecido pelo uso do gecircnero epistolograacutefico que servia como meio

de sua aproximaccedilatildeo com a igreja

No periacuteodo Heleniacutestico as formas de abertura da escritura de uma epiacutestola seguiam

o modelo grego ou o oriental Brakemeier (2008 p 19) exemplifica a epiacutestola de

Tiago que serve como identificaccedilatildeo da forma grega que eacute resumida condensada em

uma uacutenica sentenccedila ldquoTiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo agraves doze

tribos que andam dispersas sauacutederdquo (Tiago 11) O modelo oriental traz a saudaccedilatildeo

em uma segunda frase Paulo segue a forma oriental mas amplia o modelo com

adendos explicativos se estendendo aleacutem da forma protocolar como mostra a

primeira epiacutestola agrave igreja de Corinto

Paulo chamado apoacutestolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus e o irmatildeo Soacutestenes Agrave igreja de Deus que estaacute em Corinto aos santificados em Cristo Jesus chamados santos com todos os que em todo o lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo Senhor deles e nosso Graccedila e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (1Cor 11-3)

Na primeira epiacutestola Paulo se coloca junto de seu companheiro Soacutestenes195 para

efetuar a saudaccedilatildeo O introito da segunda epiacutestola tambeacutem segue o modelo oriental

sendo que o companheiro incluiacutedo na saudaccedilatildeo eacute Timoacuteteo

Paulo apoacutestolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus e o irmatildeo Timoacuteteo agrave igreja de Deus que estaacute em Corinto com todos os santos que estatildeo em toda a Acaia Graccedila a voacutes e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo (2 Cor 11-2)

Nas duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Paulo tambeacutem afirma ser apoacutestolo de Jesus

Cristo A partir dessa sua posiccedilatildeo na enunciaccedilatildeo declara seu ethos de apoacutestolo e

como enunciador ele dirige-se agrave igreja de Corinto ldquoPaulo chamado a ser apoacutestolo

de Cristo Jesus agrave igreja de Deus que estaacute em Corintordquo Diferente da Epiacutestola aos

Romanos em que natildeo haacute menccedilatildeo de um direcionamento especiacutefico agrave igreja local

na primeira epiacutestola dirigida agrave igreja de Corinto os destinataacuterios satildeo indicados como

os integrantes daquela comunidade196 Ao direcionar sua epiacutestola agrave igreja de Deus

195

Segundo informaccedilotildees de Brakmeier (2008 p 20) ldquoa menccedilatildeo de Soacutestenes como co-remetente reforccedila a natureza oficial da carta O testemunho tal como Paulo o transmite tem o apoio tambeacutem de outros pregadores Soacutecrates natildeo pode ser considerado co-autor porque a partir do verso 4 Paulo se dirige aos seus destinataacuterios em primeira pessoa do singular O que se nota eacute que Paulo estaacute unido a Soacutestenes na defesa do evangelhordquo 196

Mesmo direcionando sua epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo acrescenta a ideia de universalizaccedilatildeo de sua mensagem [] ldquocom todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo Senhor deles e nossordquo (1Cor 12)

157

que estaacute em Corinto (τη εκκλησια του θεου τη ουση εν κορινθω) Paulo197 escolhe em

sua escrita o uso do termo ekklesia para se referir agrave reuniatildeo daquela comunidade de

Corinto a qual ele se dirige o que eacute transcrito ecclesia para o latim na Vulgata

(ecclesiae Dei quae est Corinthi) Conforme as informaccedilotildees de Brakemeier (2008 p

20) o uso do termo grego εκκλησια (assembleia ou ajuntamento popular) de origem

no discurso poliacutetico aparece no grego koineacute da Septuaginta para traduzir o termo

hebraico kahal (congregaccedilatildeo de Deus) Portanto o termo ekklesia passa a ter um

sentido religioso para os judeus

Outra caracteriacutestica na forma de saudaccedilatildeo entre os judeus eacute o uso da expressatildeo

shalom (paz) que no grego koineacute e traduzido como ειρηνη198 Na epistolografia

oriental tambeacutem aparece o uso do sintagma ldquomisericoacuterdia e pazrdquo o que Paulo em

1Cor 13 substitui por ldquograccedila e pazrdquo (χαρις υμιν και ειρηνη) Segundo Brakemeier

(2008 p 21) Paulo introduz o termo charis (graccedila) para evidenciar a essecircncia do

evangelho que eacute a proclamaccedilatildeo da graccedila de Deus em doar seu filho para salvaccedilatildeo

da humanidade Na sequecircncia da introduccedilatildeo epistolar Paulo faz o fechamento das

saudaccedilotildees com expressotildees de accedilotildees de graccedilas de acordo o modelo epistolar mas

particulariza como meio de intercessatildeo e gratidatildeo a Deus pela igreja de Corinto

O propoacutesito da epiacutestola evidencia a construccedilatildeo de uma cenografia que se instaura

na enunciaccedilatildeo mediante a situaccedilatildeo dos problemas enfrentados por aquela igreja

ldquoEu vos exorto irmatildeos em nome do nosso Senhor Jesus Cristo guardai a concoacuterdia

uns com os outros de sorte que natildeo haja divisotildees entre voacutesrdquo (1Cor 110) Assim a

cenografia construiacuteda a partir dessa parte introdutoacuteria no primeiro capiacutetulo eacute

apreendida como um ldquomanual de instruccedilotildees e conselhosrdquo

Atraveacutes de cenas validadas pelo lugar comum do tema sabedoria Paulo conclama

os irmatildeos daquela igreja a se portarem mediante os preceitos da sabedoria tatildeo

valorizada pelos gregos Mas essa sabedoria referida por Paulo se distingue daquela

sabedoria almejada pela Antiguidade claacutessica Paulo esta fazendo referecircncia agrave

sabedoria divina Segundo a observaccedilatildeo de Lopes (2008 p 44) ldquoo conhecimento de

Deus natildeo eacute produto da investigaccedilatildeo humana mas da revelaccedilatildeordquo Deus se revelou

197

Nas epiacutestolas aos Romanos e Filipenses Paulo se dirige aos santos e natildeo usa o termo ekklesia (igreja) 198

Na narrativa de Lucas 24 36 Jesus aparece aos seus disciacutepulos cumprimentando-os com a expressatildeo ldquopaz seja convoscordquo (ειρηνη υμιν)

158

ao homem por meio do loacutegos e entatildeo a palavra (λoacuteγος) se fez carne e habitou entre

os homens na figura de Jesus Cristo199

A partir da introduccedilatildeo da primeira epiacutestola Paulo se coloca como enunciador em

seu ethos parresiasta determinando os significados dos termos recorrentes na

cultura heleniacutestica no enquadramento do discurso religioso Assim a cenografia

construiacuteda como manual de instruccedilotildees e conselhos deveraacute tomar no transcorrer da

enunciaccedilatildeo os princiacutepios ditados pela constituiccedilatildeo do discurso religioso

Na segunda epiacutestola Paulo manteacutem sua proacutepria designaccedilatildeo de apoacutestolo de Jesus

Cristo dirigindo-se tanto agrave igreja de Corinto como a todos os santos que se

encontravam na Acaia200 Ao se apresentar como apoacutestolo Paulo reitera seu

chamado semelhante ao que os doze disciacutepulos de Jesus receberam Ele tambeacutem

segue o mesmo modelo da primeira epiacutestola fazendo introito tradicional de acordo

com os costumes orientais

A postura de Paulo na segunda epiacutestola aos Coriacutentios logo no exoacuterdio identifica-o

em seu ethos de ldquofalar francordquo como algueacutem que usa a escrita da epiacutestola para

abrir-se diante de seus destinataacuterios tanto como aquele que consola quanto aquele

que eacute consolado rdquoE a nossa esperanccedila a vosso respeito eacute firme sabemos que

compartilhando os nossos sofrimentos compartilhareis tambeacutem a vossa consolaccedilatildeordquo

(2 Cor 17)

As cenas validadas que servem para sustentar a enunciaccedilatildeo satildeo principalmente as

que conduzem a memoacuteria do leitor aos sofrimentos de Cristo ldquoAssim como os

sofrimentos de Cristo satildeo copiosos para noacutes assim tambeacutem por Cristo eacute copiosa a

nossa consolaccedilatildeordquo (2 Cor 15) Nessa direccedilatildeo a cenografia na enunciaccedilatildeo eacute

captada pela forma como o enunciador vai se expressando a respeito do sofrimento

O texto da epiacutestola assume um aspecto de desabafo fornecendo algumas

identificaccedilotildees da subjetividade de Paulo Quanto agraves consideraccedilotildees aqui feitas sobre

199

ldquo No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deusrdquo(Joatildeo 11) ldquoE o Verbo se fez carne e habitou entre noacutes e vimos a sua gloacuteria como a gloacuteria do unigecircnito do Pai cheio de graccedila e de verdaderdquo (Joatildeo 114) εν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος (Joatildeo 11) και ο λογος σαρξ εγενετο και εσκηνωσεν εν ημιν και εθεασαμεθα την δοξαν αυτου δοξαν ως μονογενους παρα πατρος πληρης χαριτος και αληθειας (Joatildeo 114) 200

Acaia era uma proviacutencia romana que ficava na regiatildeo leste da Greacutecia e era uma proviacutencia senatorial de grande prestiacutegio Segundo Stern (2008 p534) possivelmente Paulo se refere a uma parte da Acaia que incluiacutea Corinto Atenas e Cencreia onde havia sido implantado o trabalho missionaacuterio

159

essa cenografia pode-se interligaacute-la agraves concepccedilotildees de Foucault sobre a escrita de

si atraveacutes da correspondecircncia

Escrever eacute portanto ldquose mostrarrdquo se expor fazer aparecer seu proacuteprio rosto perto do outro E isso significa que a carta eacute ao mesmo tempo um olhar que se lanccedila sobre o destinataacuterio (pela missiva que ele recebe se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar atraveacutes do que lhe eacute dito sobre si mesmo (FOUCAULT 2004 p 156)

Por um lado na primeira epiacutestola Paulo conclama a comunidade de Corinto a viver

em amor uns com outros Por outro lado na segunda o desejo eacute o afeto dele para

com a igreja e da igreja para com ele Assim nas duas epiacutestolas o tema explorado eacute

o amor Becker (2007 p 256) aponta que Paulo percebe que Deus chama pelo

evangelho e o homem responde com feacute amor esperanccedila trilogia que constitui a

linha fundamental na qual ele se centra Quando Paulo afirma em 1 Coriacutentios 1313

que esses trecircs dons deveriam permanecer ele enfatiza que dos trecircs o maior eacute o

amor Pois a origem do amor estaacute em Deus porque Ele demonstrou seu amor para

conosco pelo fato de Cristo ter morrido por noacutes quando eacuteramos ainda pecadores

Por isso Paulo considera que o amor induz o modo de pensar do indiviacuteduo a partir

do outro e natildeo de si mesmo e entatildeo ele declara ldquoJaacute estou crucificado com Cristo e

vivo natildeo mais eu mas Cristo vive em mimrdquo (Gaacutel 220) Se Cristo vive em mim eacute a

partir dessa convicccedilatildeo que devo enxergar o outro Assim Paulo vai mostrando sua

subjetividade que tem a marca da vida transformada e seu ethos pode ser

apreendido pelo seu modo de se colocar na escritura de suas epiacutestolas

32 ETHOS DISCURSIVO DE PAULO DIANTE DE SEUS LEITORES

Em sua opiniatildeo sobre os efeitos da conversatildeo na vida de Paulo Becker (2007 p

59) nota que ldquoa vocaccedilatildeo eacute por ele experimentada como reorientaccedilatildeo das motivaccedilotildees

e crise de identidade com o que a vida anterior se torna quase sem importacircncia

tornando-se o periacuteodo posterior ao chamado a sua vida propriamente ditardquo Pode ser

essa uma razatildeo da ausecircncia de dados biograacuteficos da vida de Paulo pois na epiacutestola

agrave comunidade cristatilde em Filipos ele declara ldquoesquecendo-me das coisas que atraacutes

ficam e avanccedilando para as que estatildeo diante de mim prossigo para o alvo pelo

precircmio da soberana vocaccedilatildeo de Deus em Cristo Jesusrdquo (Filip313 -14) E ainda na

epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo declara ldquoAssim que se algueacutem estaacute em Cristo

nova criatura eacute as coisas velhas jaacute passaram eis que tudo se fez novo (2 Cor

517) Os poucos informes fornecidos atraveacutes das epiacutestolas e algumas pontuaccedilotildees

160

percebidas na narrativa de Atos permitem a conexatildeo de alguns dados com o modo

de enunciar de Paulo e seu ethos no discurso

Segundo Kennedy (1984 p4) a retoacuterica pode ser considerada como uma qualidade

do discurso atraveacutes do qual o leitor procura decifrar seus propoacutesitos A escolha e

arranjo das palavras satildeo formas teacutecnicas que a retoacuterica disponibiliza na produccedilatildeo

dos enunciados Kennedy (1984 p 7) alega que retoacuterica eacute um fenocircmeno cultural e

difere de cultura para cultura e nesse sentido o Novo Testamento eacute contextualizado

no acircmago de diferenccedilas culturais marcantes entre judeus e gregos mas o fato do

proacuteprio Novo Testamento ter sido escrito em grego pressupotildee certa condiccedilatildeo da

capacidade intelectual dos leitores destinataacuterios A partir dessa visatildeo Kennedy

(1984 p 15) coloca que ethos pode ser compreendido como caraacuteter e credibilidade

que o oradorescritor estabelece em sua comunicaccedilatildeo A audiecircncialeitor confia no

que eacute dito de acordo com a emoccedilatildeo despertada em seu interior e o loacutegos revela o

argumento loacutegico desenvolvido no discurso Em qualquer retoacuterica ou comunicaccedilatildeo

persuasiva esses trecircs fatores satildeo universais

Becker (2007 p 601) chama atenccedilatildeo para o fato de que Paulo atraveacutes de seus

ensinos e conselhos procura despertar em seus destinataacuterios os valores eacuteticos que

deveriam ser almejados e praticados Os conteuacutedos concretos do ethos defendido

por Paulo estatildeo profundamente enraizados no sistema de normas daquela eacutepoca

resultantes ainda dos efeitos da cultura heleniacutestica Poreacutem ao recorrer aos valores

eacuteticos e normas morais do seu tempo Paulo congrega os valores da heranccedila de sua

formaccedilatildeo aos compromissos da vida cristatilde

O conhecimento e relacionamento com as culturas judaica grega e romana se

tornam evidentes em partes dos textos de suas Epiacutestolas e assim citaccedilotildees ou

alusotildees a pensadores da Antiguidade como tambeacutem citaccedilotildees da Septuaginta201

emergem desses textos como auxiacutelio retoacuterico aos seus ensinamentos pois uma das

facetas da escola de preparaccedilatildeo religiosa do grupo dos fariseus era exegese dos

textos biacuteblicos Alguns exemplos e citaccedilotildees identificados na epiacutestolas aos Coriacutentios

satildeo analisados na terceira parte deste trabalho

201

Segundo Becker (2007 p 86) Paulo em sua correspondecircncia via de regra cita a Septuaginta como a memorizou nos tempos de escola utilizando tambeacutem aqui e ali o proacuteprio texto da Septuaginta

161

Segundo as descriccedilotildees histoacutericas de Flaacutevio Josefo (Hist Heb X 520-544) no

seacuteculo II aC surgiram duas correntes religiosas entre os judeus Os saduceus

integravam a aristocracia sacerdotal influenciados pela cultura heleniacutestica adotaram

valores que os afastavam do judaiacutesmo tradicional Tornaram-se conciliaacuteveis com

algumas praacuteticas heleniacutesticas eram mais materialistas quanto ao modo de vida O

ponto fundamental que os distinguia era a rejeiccedilatildeo da concepccedilatildeo filosoacutefica da

imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos mortos Quanto aos fariseus eram

observadores rigorosos da lei mosaica acreditavam em anjos e democircnios na

ressurreiccedilatildeo dos mortos e favoraacuteveis agrave concepccedilatildeo da separaccedilatildeo corpo e alma Na

narrativa de Atos202 Paulo se identifica como fariseu no momento de sua defesa

diante do sumo sacerdote em Jerusaleacutem Quando ele escreveu agrave igreja de Filipos

anunciou sobre sua origem judaica e de sua ligaccedilatildeo com os fariseus ldquoCircuncidado

ao oitavo dia da linhagem de Israel da tribo de Benjamim hebreu de hebreus

segundo a lei fui fariseurdquo (Filip 36) A fusatildeo das trecircs culturas judaiacuteca heleniacutestica e

romana interferem na manifestaccedilatildeo do ethos de Paulo como bem observa Becker

Paulo eacute um fariseu rigoroso quanto a Lei mas ao mesmo tempo um habitante de uma cidade helenista que era um centro de formaccedilatildeo helenista Igualmente o direito de cidadania romana da famiacutelia de orientaccedilatildeo farisaica testemunha a favor de uma abertura ao Impeacuterio Romano o que para uma parte do judaiacutesmo da diaacutespora certamente era tiacutepico Paulo portanto integra dois mundos em sua pessoa judaiacutesmo e helenismo (BECKER 2007 p 67)

A construccedilatildeo discursiva203 do ethos dito de Paulo como apoacutestolo se mostra como

sustentaccedilatildeo da sua funccedilatildeo de enviado de Jesus Heyer (2008 p 169) aponta para

as questotildees que colocavam em duacutevida esta posiccedilatildeo [] ldquoconsequentemente nos

momentos menos oportunos sua condiccedilatildeo de apoacutestolo seraacute questionada Seu

passado estava exposto a discussotildees e isso o fazia vulneraacutevelrdquo204 Quando Paulo

202

E Paulo sabendo que uma parte era de saduceus e outra de fariseus clamou no conselho Homens irmatildeos eu sou fariseu filho de fariseu no tocante agrave esperanccedila e ressurreiccedilatildeo dos mortos sou julgado E havendo dito isto houve dissensatildeo entre os fariseus e saduceus e a multidatildeo se dividiu Porque os saduceus dizem que natildeo haacute ressurreiccedilatildeo nem anjo nem espiacuterito mas os fariseus reconhecem uma e outra coisa (Atos 23 6-8) 203

A construccedilatildeo discursiva do ethos de Paulo se estabelece em seu proacuteprio discurso como enunciador que se apresenta como apoacutestolo O ethos pode ser considerado dito porque ele proacuteprio se designa como apoacutestolo de Jesus Cristo 204

Mas faccedilo-vos saber irmatildeos que o evangelho que por mim foi anunciado natildeo eacute segundo os homens Porque natildeo o recebi nem aprendi de homem algum mas pela revelaccedilatildeo de Jesus Cristo Porque jaacute ouvistes qual foi antigamente a minha conduta no judaiacutesmo como sobremaneira perseguia a igreja de Deus e a assolava E na minha naccedilatildeo excedia em judaiacutesmo a muitos da minha idade sendo extremamente zeloso das tradiccedilotildees de meus pais Mas quando aprouve a Deus que desde o ventre de minha matildee me separou e me chamou pela sua graccedila revelar seu Filho em mim para que o pregasse entre os gentios natildeo consultei a carne nem o sangue nem tornei a Jerusaleacutem a ter com

162

escreve agrave igreja na Galaacutecia ele ressalta que eacute apoacutestolo por causa de seu chamado

ldquoPaulo apoacutestolo natildeo da parte dos homens nem por homem algum mas por Jesus

Cristo e por Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortosrdquo Assim como os outros

apoacutestolos ele era testemunha da ressurreiccedilatildeo de Cristo pois o encontrou e foi por

Ele convocado para uma missatildeo especial

Euseacutebio comenta que o nuacutemero dos apoacutestolos natildeo era restrito aos doze disciacutepulos

que acompanharam o ministeacuterio de Jesus mas se estendia tambeacutem aos setenta

enviados205 os quais natildeo se datildeo a conhecer os nomes poreacutem supotildee-se que

Barnabeacute companheiro de Paulo nas viagens missionaacuterias compunha aquele grupo

dos setenta E assim Euseacutebio conclui ldquoPortanto de qualquer forma os apoacutestolos agrave

imagem dos doze eram muitos mais - o proacuteprio Paulo o erardquo (Hist Ecles I XII5)

Ao expor suas ideias a respeito da duplicidade da formaccedilatildeo cultural de Paulo Pena

(2012 p36) enfatiza que ldquoPaulo integra no seu curriculum alguns dos princiacutepios

estruturantes da paideia grega desde Homerordquo Este autor citado toma como

exemplo o recurso retoacuterico da imagem do atleta usado por Paulo na primeira

epiacutestola agrave igreja de Corinto Pena acrescenta que pela descriccedilatildeo de Paulo da figura

do atleta ele poderia estar enunciando do lugar de algueacutem que viveu a experiecircncia

do atletismo em sua formaccedilatildeo na cultura heleniacutestica206

Quanto agrave paidea grega Jaeger (1995) analisa os vaacuterios campos do saber na cultura

grega e a soma do conjunto dos seus valores na formaccedilatildeo do cidadatildeo Este autor

toca no tema da conversatildeo ao bem como um alvo da educaccedilatildeo filosoacutefica que

origina a ideia de ldquoconversatildeordquo Este termo encontra parte de seu significado na

Repuacuteblica de Platatildeo em especial no episoacutedio da caverna Jaeger (1995 p 889)

define que a conversatildeo ldquoeacute um volver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luzrdquo Nota-se

que essa definiccedilatildeo eacute naturalmente associada agrave experiecircncia da conversatildeo de Paulo

que se torna uma ponte para apropriaccedilatildeo do termo filosoacutefico conversatildeo por parte da

Patriacutestica associando-o ao o sentido religioso

os que jaacute antes de mim eram apoacutestolos mas parti para a Araacutebia e voltei outra vez a Damasco (Gaacutelatas 111-17) 205

E depois disto designou o Senhor ainda outros setenta e mandou-os adiante da sua face de dois em dois a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir (Lucas 101) 206

Pena (2012 p 36) assevera que ldquoa participaccedilatildeo dos Judeus da Aacutesia nos espetaacuteculos do mundo pagatildeo eacute um facto bem conhecido Em Mileto por exemplo os Judeus tinham lugares reservados no teatro e gozavam de vaacuterios outros privileacutegiosrdquo

163

Fabris (1993 p 33) chama a atenccedilatildeo para o fato de que Paulo vive e atua no

contexto da heranccedila da cultura heleniacutestica cosmopolita do seacuteculo I dC mas

consegue integraacute-la com aquela que tem suas raiacutezes no ambiente biacuteblico e judaico-

cristatildeo Sua postura de apoacutestolo chamado para alcanccedilar os natildeo judeus com a sua

mensagem contribui para a manifestaccedilatildeo de seu ethos de pregador que auto se

sustenta sem ser pesado financeiramente agraves comunidades com as quais manteve

relacionamento mais proacuteximo Em Corinto durante sua estadia de aproximadamente

um ano e meio ele se juntou a Aacutequila e Priscila na confecccedilatildeo de tendas provando

pela proacutepria accedilatildeo a sua convicccedilatildeo de independecircncia econocircmica para o proacuteprio

sustento Sendo um missionaacuterio independente Paulo natildeo contava com recursos

externos para mantecirc-lo nas atividades evangeliacutesticas Essa eacute a razatildeo de sua

argumentaccedilatildeo diante da igreja de Corinto a respeito do apostolado que ele assumiu

arcando com as despesas de sua sobrevivecircncia sem ser pesado a ningueacutem

demonstrando sua atitude de amor se colocando no papel de pai que procura cuidar

dos filhos como ele expotildee

Os sinais do meu apostolado foram manifestados entre voacutes com toda a paciecircncia por sinais prodiacutegios e maravilhas Pois em que tendes voacutes sido inferiores agraves outras igrejas a natildeo ser que eu mesmo vos natildeo fui pesado Perdoai-me este agravo Eis aqui estou pronto para pela terceira vez ir ter convosco e natildeo vos serei pesado pois que natildeo busco o que eacute vosso mas sim a voacutes porque natildeo devem os filhos entesourar para os pais mas os pais para os filhos Eu de muito boa vontade gastarei e me deixarei gastar pelas vossas almas ainda que amando-vos cada vez mais seja menos amado Mas seja assim eu natildeo vos fui pesado mas sendo astuto vos tomei com dolo (2 Cor 1212-16)

O ethos de liberdade de accedilatildeo que Paulo mostra diante da comunidade de Corinto

tambeacutem se revela diante da igreja de Tessalocircnica ldquoPorque bem vos lembrais

irmatildeos do nosso trabalho e fadiga pois trabalhando noite e dia para natildeo sermos

pesados a nenhum de voacutes vos pregamos o evangelho de Deusrdquo (1 Tessal 29) Sua

franqueza em admitir seu proacuteprio sustento chama a atenccedilatildeo para o fato de que a

missatildeo do seu apostolado eacute realizada pelo amor como ele mesmo coloca ldquoAssim

como bem sabeis de que modo vos exortaacutevamos e consolaacutevamos e

testemunhaacutevamos a cada um de voacutes como o pai a seus filhos (1Tess 211) A

tocircnica sobre o amor que Paulo desenvolve a partir da construccedilatildeo da cenografia das

epiacutestolas agrave igreja de Corinto se mostra no decorrer de seu discurso ora focalizando

a atitude de manifestaccedilatildeo de amor entre os participantes da comunidade ora da

comunidade para com ele e dele para com a comunidade Ele eacute o fundador da igreja

164

e se coloca no lugar de pai tanto quanto aos conselhos e exortaccedilatildeo quanto agrave sua

proacutepria dedicaccedilatildeo de pai para filho Segundo Becker (2007 p 197) na elaboraccedilatildeo

do discurso de Paulo nota-se uma relaccedilatildeo entre o ethos de apoacutestolo do evangelho

que Paulo constroacutei de si mesmo com o ethos de liberdade de accedilatildeo que se

manifesta na prova de seu amor com a igreja O ethos de apoacutestolo tambeacutem estaacute

inter-relacionado com seu ethos de convertido

Pensando o significado de ethos em sua origem como habitaccedilatildeo da alma a

definiccedilatildeo de conversatildeo como volver da alma para a luz contribui para o

entendimento do novo direcionamento que o ethos de Paulo experimentou em

associar toda sua formaccedilatildeo cultural herdada de diferente etnias para se concentrar

nos significados que a nova vida de convertido lhe impunha Pena (2012 p 37)

pondera que o significado do ldquologos como palavra razatildeo e inteligibilidade fazia

parte do patrimoacutenio cultural dos gregosrdquo Este autor ainda acrescenta que logos

tambeacutem estaacute associado agrave liberdade de palavra ou parresiacutea Eacute exatamente este

termo em grego (παρρησια) que Paulo usa na segunda epiacutestola agrave igreja de Corinto

ldquoTendo pois tal esperanccedila usamos de muita ousadia no falarrdquo (2 Cor 312)207

Pena (2012 p 38) constata que em vaacuterias intervenccedilotildees de Paulo nomeadamente o

discurso do Areoacutepago com claras alusotildees agrave filosofia estoacuteica do deus uacutenico deixaraacute

marcas indeleacuteveis na filosofia patriacutestica

O areoacutepago natildeo era exatamente destinado agraves discussotildees filosoacuteficas ou temaacuteticas

mas a finalidade do local era destinada agrave reuniotildees do conselho e decisotildees de

assuntos da justiccedila Ele ficava situado sobre uma pequena colina bem proacutexima da

parte mais alta onde situava a Acroacutepole Uma visita ao local permite vislumbrar que

em volta do pequeno elevado onde estava construiacutedo o areoacutepago haacute muitas aacutervores

que demarcam os locais onde situavam as diversas estaacutetuas representando os

vaacuterios deuses Entre estas estava uma dedicada ao deus desconhecido que se

transformou em referecircncia para a proclamaccedilatildeo da mensagem de Paulo

O discurso de Paulo no areoacutepago208 tornou-se referecircncia para os primeiros cristatildeos

e a parresiacutea como modelo a ser seguido da manifestaccedilatildeo do seu ethos A partir de

207

εχοντες ουν τοιαυτην ελπιδα πολλη παρρησια χρωμεθα (2Cor 312) 208

ldquoE enquanto Paulo os esperava em Atenas o seu espiacuterito se comovia em si mesmo vendo a cidade tatildeo entregue agrave idolatria De sorte que disputava na sinagoga com os judeus e religiosos e todos os dias na praccedila com os que se apresentavam E alguns dos filoacutesofos epicureus e estoacuteicos contendiam com ele e uns diziam Que quer dizer este paroleiro E outros Parece que eacute pregador de deuses estranhos porque lhes anunciava a Jesus e a ressurreiccedilatildeo (Atos 17 16-18)

165

uma forma retoacuterica exemplar Paulo apresentou aos atenienses o Deus

desconhecido partindo da proacutepria expectativa deles em relaccedilatildeo aos deuses A

conjunccedilatildeo ecircthos paacutethos e loacutegos procedeu harmoniosamente no registro do seu

discurso Mesmo que momentaneamente aquele discurso natildeo tenha causado

grandes efeitos aparentes diante dos ouvintes mas a partir daquela experiecircncia o

exemplo da ousadia e coragem no falar continuou a ser um desafio para os cristatildeos

O ldquofalar francordquo como resultado da coragem em assumir o discurso com todos os

seus riscos eacute captado pelo narrador de Atos no relato do discurso de Paulo no

areoacutepago Este mesmo toacutepos eacute identificado no discurso de Paulo ao escrever as

epiacutestolas aos Coriacutentios Eacute justo afirmar que o ethos de Paulo ecoou a partir de sua

proacutepria escrita das epiacutestolas e por meio da narrativa de Lucas O nuacutemero de seus

leitores tornou-se infinitamente maior do que seus destinataacuterios especiacuteficos das

epiacutestolas e assim o ethos de Paulo estaacute sempre se mostrando desafiador como um

processo interpretativo que se iniciou no seacuteculo I dC perdurando ativamente na

atualidade

Como observado neste capiacutetulo a formaccedilatildeo judaico-heleniacutestica de Paulo contribui

para a organizaccedilatildeo de seu pensamento que se expressa pelo discurso com os

recursos retoacutericos que naturalmente favorecem sua comunicaccedilatildeo atraveacutes do gecircnero

epistolar O posicionamento discursivo de Paulo eacute definido como resultado de sua

formaccedilatildeo de suas experiecircncias e heranccedila cultural O discurso constituinte religioso

direciona seus posicionamentos no ato enunciativo e eacute deste lugar discursivo que

ele pronuncia seus discursos

O ponto de aproximaccedilatildeo entre a formaccedilatildeo educativa de Paulo e a de Secircneca pode

ser identificado pelas influecircncias do periacuteodo Heleniacutestico O que Paulo herda do

periacuteodo Heleniacutestico interfere em seu posicionamento religioso e o que Secircneca

recebe daquele periacuteodo eacute determinante no seu posicionamento filosoacutefico

166

4 FILOSOFIA LITERATURA E POLIacuteTICA NA TRAJETOacuteRIA DE SEcircNECA E A

CONSTITUICcedilAtildeO DA CENOGRAFIA EM SUAS EPIacuteSTOLAS

As condiccedilotildees de produccedilatildeo contribuem para realizaccedilatildeo linguiacutestica do discurso pois

segundo os autores Charaudeau e Maingueneau (2008 p 115) por um lado ldquoo

sujeito falante eacute sempre parcialmente sobredeterminado pelos saberes crenccedilas e

valores que circulam no grupo social ao qual pertencerdquo por outro lado ldquoele eacute

igualmente sobredeterminado pelos dispositivos de comunicaccedilatildeo nos quais se

insere para falar e que lhe impotildeem certos lugares papeis e comportamentosrdquo

Vale relembrar que a escolha do gecircnero adotado na produccedilatildeo do discurso eacute

fundamental na construccedilatildeo dos sentidos e a cenografia orienta os rumos da

enunciaccedilatildeo a partir de um determinado contexto sociocultural que valida uma

memoacuteria coletiva Por isso faz-se necessaacuterio compreender as condiccedilotildees de

produccedilatildeo que determinam os discursos de Secircneca suas experiecircncias nos vaacuterios

campos do saber e criaccedilatildeo literaacuteria sua atuaccedilatildeo na esfera social e poliacutetica e seu

papel como continuador do estoicismo na implantaccedilatildeo da terceira fase no priacuteodo do

seacuteculo I dC

O estoicismo teve seu iniacutecio no periacuteodo Heleniacutestico e Sedley (2003 p 8) menciona

que esta escola filosoacutefica foi fundada por Zenatildeo de Ciacutetio sob o acircngulo do encontro

entre dois mundos oriente e ocidente A famiacutelia de Zenatildeo era originaacuteria de regiatildeo

mediterracircnea do oriente e transferiu-se para Ciacutetio aacuterea portuaacuteria na ilha de Chipre

Natildeo haacute muitas informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo de Zenatildeo mas sabe-se que ele era

um leitor dos pensamentos socraacuteticos Aos vinte e dois anos ele se fixou em Atenas

e seu primeiro mestre foi Crates da escola dos ciacutenicos Alguns princiacutepios filosoacuteficos

daquele grupo influenciaram as ideias de Zenatildeo em alguns aspectos morais do

estoicismo209 por ele fundado

Segundo registros de Sedley (2003 p 8) Zenatildeo permaneceu em Atenas ateacute sua

morte em 262 aC sendo sucedido por seu disciacutepulo Cleantes de Assos (Trocircade

regiatildeo da Turquia) Na sequecircncia das substituiccedilotildees dos dirigentes da escola entra

209

As reuniotildees de Zenatildeo com seus disciacutepulos aconteciam no Poacutertico colorido de Atenas denominado Stoa (Estoaacute) A partir deessa origem o grupo passou a ser chamado estoicos

167

em cena outro filoacutesofo oriental Crisipo originaacuterio da Ciliacutecia e foi seguido por

Dioacutegenes da Babilocircnia e Antiacutepatro210 de Tarso mestre de Paneacutecio de Rodes

No periacuteodo Heleniacutestico Rodes tornou-se um centro avanccedilado que abrigava o

estoicismo No siacutetio arqueoloacutegico da acroacutepole de Lindos eacute possiacutevel identificar a maior

parte das colunas que sustentava o poacutertico que abrigava os participantes da escola

estoica que laacute se reuniam Do alto da acroacutepole avista-se a Baia de Satildeo Paulo onde

o apoacutestolo teria aportado na eacutepoca de sua terceira viagem missionaacuteria211 A praia de

Lindos e o local do Colosso de Rodes uma das seacutetimas maravilhas do mundo

antigo tambeacutem satildeo contemplados laacute do alto da acroacutepole de Lindos

De acordo com observaccedilotildees de Sedley (2003 27) nos dois uacuteltimos seacuteculos aC

houve uma tendecircncia de descentralizaccedilatildeo do estoicismo em Atenas e o

funcionamento da Stoa em Rodes eacute uma demonstraccedilatildeo da opccedilatildeo do regionalismo

como forma de reunir participantes da escola estoica Paneacutecio de Rodes foi

substituiacutedo por Possidocircnio que assumiu a lideranccedila da escola mas optou pela

centralizaccedilatildeo em Rodes Sedley (2003 p 30) identifica que aos poucos o

afastamento de Atenas conduziu os filoacutesofos para outras aacutereas do impeacuterio romano

a partir da metade do uacuteltimo seacuteculo aC Tarso tambeacutem foi uma opccedilatildeo tardia de

concentraccedilatildeo de filoacutesofos pois de laacute originaram trecircs liacutederes do estoicismo Zenatildeo de

Tarso Antiacutepatro de Tarso e os pais de Crisipo tambeacutem eram daquela cidade A

importacircncia dessa concentraccedilatildeo regional de filoacutesofos em Tarso eacute comprovada pela

proacutepria escolha por parte do futuro imperador Augusto do seu mestre e conselheiro

Atenodoro de Tarso212

Desde o iniacutecio da fundaccedilatildeo da escola os estoicos procuravam associar

intelectualmente em seu sistema eacutetico a virtude com a sabedoria a partir da

influecircncia socraacutetica ponto baacutesico que se manteve em todas as fases a despeito

das modificaccedilotildees que se sucederam No periacuteodo Heleniacutestico predominaram quatro

210

Em algumas traduccedilotildees o nome de Antiacutepatro aparece como Antiacutepater mas para manter uma uacutenica designaccedilatildeo opta-se por seguir o seu nome grego Antiacutepatro de Tarso (em grego Ἀντίπατρος) 211

ldquoE aconteceu que separando-nos deles navegamos e fomos correndo caminho direito e chegamos a Coacutes e no dia seguinte a Rodes de onde passamos a Paacutetarardquo (Atos 211) 212

Atenodoro de Tarso (74 ndash 07 aC) foi aluno de Posidocircnio de Rodes e professor de Otaviano (futuro Augusto) em Apoloacutenia Em 44 aC seguiu Otaviano ateacute Roma e continuou a ser seu mentor Sedley (2003 p 31) informa sobre a importacircncia dos filoacutesofos de Tarso no ensino do estoicismo em Roma pois Atenodoro e Estrabatildeo foram escolhidos pelo imperador Augusto para funccedilotildees poliacuteticas e ensino da filosofia em Roma Atenodoro era conselheiro de Augusto e escreveu sobre eacutetica e moral tendo suas obras influenciado a formaccedilatildeo estoica de Secircneca

168

novas correntes filosoacuteficas sendo o ceticismo e o cinismo213 direcionados por uma

filosofia mais popular e as escolas de linha mais dogmaacuteticas e competidoras entre

si foram o estoicismo e o epicurismo214 As quatro linhas filosoacuteficas que se

destacaram tiveram suas origens nos postulados socraacuteticos e cada uma tomou uma

determinada direccedilatildeo de acordo com as concepccedilotildees filosoacuteficas de seus fundadores

Segundo Hadot (2004 p 153) no platonismo aristotelismo e estoicismo prevalece a

tradiccedilatildeo socraacutetica de que o ldquoamor do bem eacute o instinto primordial do ser humanordquo

Nestas escolas permanece a dupla finalidade da formaccedilatildeo nos campos da poliacutetica e

da filosofia

No estoicismo Zenatildeo concebia uma filosofia tripartida que consistia na loacutegica fiacutesica

e eacutetica Sedley (2003 p 12) expotildee que a eacutetica era respaldada em uma revisatildeo da

moral dos ciacutenicos a fiacutesica no Timeu de Platatildeo acrescentando-se o elemento fogo

inspirado em Heraacuteclito a loacutegica contempla natildeo soacute o estudo formal dos argumentos

mas inclui tambeacutem a tese de como a impressatildeo sensorial eacute um guia infaliacutevel para

apreensatildeo da verdade sendo a impressatildeo cognitiva considerada um tipo de

percepccedilatildeo sensorial Essas questotildees sobre loacutegica foram retomadas pelos

continuadores da primeira fase do estoicismo em especial Crisipo dando

fundamentaccedilatildeo agraves discussotildees e postulados nos estudos da gramaacutetica

desenvolvendo as concepccedilotildees teoacutericas de significante e significado215

A segunda fase do estoicismo eacute marcada pela lideranccedila de Paneacutecio de Rodes e a

caracteriacutestica mais acentuada desta fase eacute o ecletismo com a adesatildeo a

pensamentos de Platatildeo e Aristoacuteteles Gourunat e Barnes (2009 p26) na introduccedilatildeo

da obra Ler os estoicos relatam que Paneacutecio de Rodes se fixou por algum tempo

213

Segundo Hadot (2004 p 153) a corrente do cetismo foi iniciada por Pirro e a do cinismo por Dioacutegenes o Ciacutenico Essas duas correntes natildeo tinham dogmas e nem organizaccedilatildeo escolar mas representavam um modo de vida Sexto Empiacuterico era ceacutetico e atraveacutes de suas criacuteticas ao estoicismo e epicurismo eacute que se conservaram textos que conteacutem informaccedilotildees destas duas escolas criticadas por ele 214

Novak (1999 p 258) menciona que ldquoEpicuro de Samos (342341-271270) cidadatildeo ateniense teria sido disciacutepulo do platocircnico Pacircnfilo (Cic ND I 26 72) Dos dezoito aos vinte anos efebo em Atenas e companheiro de Menandro teria ouvido liccedilotildees na Academia e no Liceu A seguir por razotildees poliacuteticas natildeo pode voltar a Samos e passa os anos seguintes em Colofatildeo Mitilene e Lacircmpsaco provavelmente vai tambeacutem a Rodes Elabora o que podemos chamar a sua teoria moral Em 306 volta a Atenas e cria a Escola do Jardimrdquo 215

Em seu artigo A definiccedilatildeo de Zenatildeo da fantasia kataleptike Sedley (2014 p148) fornece a seguinte explicaccedilatildeo ldquoa teoria de Zenatildeo natildeo eacute apenas empirista mas de fato identifica seu criteacuterio fundamental de verdade a impressatildeo cognitiva com um tipo de percepccedilatildeo sensorial Aleacutem disso a teoria da percepccedilatildeo sensorial em questatildeo eacute causal Nossas impressotildees sensoriais diretas ou antes um subconjunto privilegiado delas obteacutem sua apreensatildeo infaliacutevel do mundo porque satildeo diretamente causadas por ( ἀπὸ ndash lsquoa partir dersquo) coisas externas das quais satildeo impressotildeesrdquo

169

em Roma e laacute se tornou orientador filosoacutefico de Cipiatildeo e o acompanhou nas

expediccedilotildees orientais Paneacutecio se esforccedilou por adaptar a eacutetica estoica aos costumes

romanos adotando alguns pontos das doutrinas poliacuteticas de Platatildeo e Aristoacuteteles

advertindo para as formas mistas de governo Escreveu sobre o oacutecio a tranquilidade

da alma e a providecircncia temas proacuteprios para o espiacuterito romano destacando-se o

tiacutetulo Sobre os deveres obra mencionada por Ciacutecero Tambeacutem foram de sua autoria

Da Providecircncia e um comentaacuterio ao Timeu de Platatildeo Poreacutem de suas obras restaram

apenas fragmentos e referecircncias doxograacuteficas

O continuador de Paneacutecio na segunda fase do estoicismo foi Possidocircnio mestre de

Ciacutecero e amigo de Pompeu Com sua competecircncia vasta Possidocircnio se interessou

por histoacuteria continuando o trabalho de Poliacutebio assuntos de teologia e de geometria

A terceira fase do estoicismo eacute situada em Roma em um novo contexto histoacuterico

natildeo mais centrada na escola institucionalizada mas emergindo de diferentes

filoacutesofos independentes enfatizando a eacutetica como ponto central da filosofia estoica

aproximando-se dos interesses e praticidade do cidadatildeo romano Hadot (2004 p

2016) pontua que ldquoo fenocircmeno da dispersatildeo das escolas teve consequecircncias para o

proacuteprio ensinordquo Nesse novo contexto o ensino consiste em explicar textos da

lsquoautoridadesrsquo como por exemplo os diaacutelogos de Platatildeo os tratados de Aristoacuteteles e

as obras de seus continuadores e reformadores Nesse clima havia uma tendecircncia

de aplicaccedilatildeo do conhecimento dos dogmas das quatro grandes escolas (platocircnicos

aristoteacutelicos epicuristas e estoicos) sem objetivo de uma especializaccedilatildeo Nessas

circunstacircncias amplia-se o interesse pela cultura geral Em muitas situaccedilotildees a

filosofia passa a ser concebida como ldquoprogresso espiritual como meio de

transformaccedilatildeo interiorrdquo

Integrando esse novo cenaacuterio surge Secircneca como filoacutesofo estoico que manteacutem

princiacutepios da escola fundadora no campo da moral sustentando que a virtude pode

ser adquirida via sabedoria a qual tem seus ensinamentos na filosofia A vida de

Secircneca coincide tambeacutem com o novo marco temporal da histoacuteria do ocidente e parte

do oriente pois ele nasceu em Coacuterdoba aproximadamente no ano 1 do seacuteculo I

aC Ele era integrante de uma famiacutelia respeitada em Roma pois seu pai Annaeus

Secircneca conhecido como Secircneca o Velho tem destaque na Histoacuteria por suas

contribuiccedilotildees como renomado retoacuterico por meio de suas obras produzidas

170

Controversiae e Suasoriae De acordo com observaccedilotildees de Wilson (2007 p 425)

haacute uma clara influecircncia paterna na formaccedilatildeo de Secircneca

Ainda na infacircncia Secircneca desenvolveu seus estudos em Roma tendo como base a

oratoacuteria e filosofia Na epiacutestola cento e oito Secircneca216 recorda a primeira fase de

sua formaccedilatildeo com os mestres pitagoacutericos Soacutetion e Fabiano Passada a experiecircncia

com os pitagoacutericos Secircneca se identificou com os estoicos e ele faz o seguinte

comentaacuterio a respeito do seu mestre Aacutetalo

[] nos tempos em que frequentava a sua escola (onde era sempre o primeiro a chegar e o uacuteltimo a sair) ateacute mesmo durante os passeios do mestre eu o aliciava agrave discussatildeo de um ou outro problema aproveitando-me do facto de ele estar sempre pronto a ir ao encontro dos interesses dos seus disciacutepulos (Secircn Ep 108 3)

Com base nas condiccedilotildees da educaccedilatildeo romana Secircneca se destacou no campo da

filosofia literatura e poliacutetica na vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era Assim a

sua formaccedilatildeo filosoacutefica tem como fonte os pensadores estoicos do periacuteodo

Heleniacutestico Veillard (2013 p 230) registra que a histoacuteria da penetraccedilatildeo do

estoicismo em Roma tem seus primoacuterdios mais ou menos 155 a C quando Atenas

acusada por questotildees de desentendimentos nos assuntos poliacuteticos enviou trecircs dos

seus filoacutesofos mais importantes para defenderem suas posiccedilotildees diante do senado

romano Carneacuteades217 era o representante da academia de Platatildeo e discursou sobre

os fundamentos da justiccedila Critolau o peripateacutetico e Dioacutegenes da Babilocircnia

representando os estoicos A partir dessa experiecircncia dois filoacutesofos estoicos

passaram a ocupar o centro de atenccedilatildeo por debaterem questotildees sobre a justiccedila e

poliacutetica Veillard (2013 p 232) constata que por um lado Antiacutepatro de Tarso

(disciacutepulo e sucessor de Dioacutegenes da Babilotildenia) ldquofavorece primeiramente os

reformadores que insistem na igualdade de todos os homensrdquo Para os problemas

dos fundamentos da igualdade a orientaccedilatildeo eacute dada por Dioacutegenes agrave legitimidade de

direitos Por outro lado ldquoos aristocratas apoiam-se no respeito agrave propriedade privada

afirmado por Dioacutegenes mas apelam a Antiacutepatro para rejeitar a definiccedilatildeo do justo

como igualdade estrita das partesrdquo A diferenccedila de tratamento dos problemas

levantados por parte de Antiacutepatro e Dioacutegenes pode ser concebida natildeo como

questatildeo de princiacutepio mas de meacutetodo O posicionamento de Antiacutepatro teve certo

216

Em suas epiacutestolas Secircneca natildeo costuma fornecer dados biograacuteficos que possam contribuir para uma montagem cronoloacutegica de sua trajetoacuteria poreacutem agraves vezes escapam algumas informaccedilotildees como as que ele fornece ao longo da epiacutestola 108 em que faz algumas menccedilotildees agrave sua juventude 217

Carneaacutedes eacute citado por Ciacutecero na obra Da Repuacuteblica III XVII

171

alcance diante dos romanos e Veillard (2013 p 233) reconhece que haacute alguns

pontos de contato entre seus ensinamentos com a nova legislaccedilatildeo sobre o direito

privado editada pelo imperador Augusto218 em 18 aC

Nota-se que naquele periacuteodo filosofia e poliacutetica estavam interligadas em detrimento

do bom funcionamento da repuacuteblica e em seguida do impeacuterio romano Paul Veyne

(1995 p11) observa que Ciacutecero criou um modelo de homem total que deveria ser

senador literato e filoacutesofo Nesse aspecto Secircneca foi sucessor de Ciacutecero em

relaccedilatildeo ao desempenho desse triplo papel

Na concepccedilatildeo de Veillard (2013 p 235) Secircneca investe em harmonizar poliacutetica e

filosofia procurando atender outras questotildees que natildeo foram privilegiadas nas

discussotildees de seus antecessores estoicos mais imediatos Ele se respalda em

Crisipo para abordar a noccedilatildeo de favor como um ato de benevolecircncia ldquopois se trata

de querer o bem do outro e transformar essa intenccedilatildeo em accedilatildeordquo A ideia de Secircneca

confronta a praacutetica do conceito de favor no campo poliacutetico econocircmico que no seu

tempo e contexto visavam alianccedilas forccediladas aprisionando indiviacuteduos em diacutevidas de

favores como acontecia no modo de agir do patronato219

Secircneca natildeo se limitou a ocupar o lugar de expectador do transcorrer da histoacuteria

poliacutetica no Principado romano220 mas se engajou como participante Sua famiacutelia

ocupava posiccedilatildeo ativa na vida poliacutetica de Roma sendo seu irmatildeo Lucio Gaacutelio221

prococircnsul (administrador puacuteblico) na proviacutencia da Acaia no tempo do Imperador

218

Segundo Veillard (2013 p234) os ensinamentos de Antiacutepatro defendem que a finalidade do casamento natildeo eacute apenas a procriaccedilatildeo mas em primeiro lugar a vida em comum dos casais entrelaccedilando alma e corpo Na lei de Augusto havia puniccedilatildeo para o desrespeito e infidelidade entre os casais tentando corrigir costumes decadentes fazendo da ceacutelula conjugal um espaccedilo de estabilidade e de virtude na valorizaccedilatildeo do respeito muacutetuo 219

Venturini (2001 p 2015-2016) informa que ldquoo termo patrono era usado para descrever o papel que um indiviacuteduo tinha na sociedade bem como a atenccedilatildeo que ele recebia em funccedilatildeo de suas capacidades materiais e morais estas lhe davam a autoridade (auctoritas) para atuar publicamente tornando possiacutevel a reuniatildeo de um grupo de amici ao seu redor Desse modo havia um contexto romano para a praacutetica do patronato A amicitia natildeo era somente um laccedilo subjetivo de afeiccedilatildeo mas tambeacutem uma ligaccedilatildeo objetiva baseada na assistecircncia muacutetua e na fides isto eacute na lealdade entre os amicirdquo 220

Grimal (2008 p 53) menciona que a designaccedilatildeo princeps era usada no periacuteodo da Repuacuteblica para indicar pessoa que ocupava posiccedilatildeo de autoridade e honra como no caso do liacuteder nas tomadas de decisotildees no senado Nesse contexto Augusto era princeps senatus em razatildeo de sua credibilidade autoridade poliacutetica e moral O termo Principado como regime poliacutetico eacute de uso posterior a esse momento histoacuterico Portanto o Principado eacute a fase convencionada pelos historiadores para designar o Impeacuterio Romano a partir de 27 aC quando o senado investiu Otaviano o futuro Augusto no poder supremo com a denominaccedilatildeo de priacutencipe (princeps) ldquoo homem que os deuses designaram como guiardquo 221

O prococircnsul Luacutecio Gaacutelio foi citado no livro de Atos ldquoMas sendo Gaacutelio prococircnsul da Acaia levantaram-se os judeus concordemente contra Paulo e o levaram ao tribunalrdquo (Atos 1812)

172

Claudio Secircneca foi testemunha da ascensatildeo de quatro imperadores romanos

Tibeacuterio Caliacutegula Claudio e Nero Na epiacutestola 108 Secircneca fornece alguns dados

biograacuteficos mencionando alguns fatos ldquoO meu tempo de juventude coincidiu com o

acesso de Tibeacuterio Ceacutesar222 no Principado Por essa eacutepoca praticavam-se em Roma

vaacuterios cultos exoacuteticosrdquo223 Secircneca faz um retrospecto remontando ao tempo de sua

juventude para abordar sobre sua transiccedilatildeo do pitagorismo ao estoicismo e a

importacircncia e desafio de se encontrar um mestre que vivesse de acordo com seus

proacuteprios ensinamentos

No governo de Caliacutegula Secircneca se destacava como escritor e era alvo de criacuteticas

do imperador como relata Suetocircnio (sdata p 134)224 A simples inveja do

imperador colocou a vida de Secircneca em risco Mas Caliacutegula foi alertado sobre a

debilidade da sauacutede do escritor e assim natildeo cumpriu seu ato de puniccedilatildeo planejado

Referecircncias indiretas a esse respeito satildeo feitas na epiacutestola setenta e oito Secircneca

comenta sobre o problema de sauacutede de Luciacutelio lembrando que na juventude ele

proacuteprio passara por situaccedilatildeo ainda mais grave ficando quase tuberculoso Na

sequecircncia do relato ele diz ldquomuitos homens houve a que a doenccedila adiou sua morte

iminenterdquo (Ep 786)

Conforme as informaccedilotildees de Shotter (2008 p 2829) no governo do imperador

Claudio Secircneca jaacute era participante oficial do senado e em 41 dC foi exilado na ilha

de Coacutersega por acusaccedilatildeo de envolvimento com a sobrinha do imperador e laacute

permaneceu ateacute 49 dC Durante esse tempo Secircneca escreveu uma de suas obras

222

Segurado e Campos informa em nota explicativa (Ep 108 22) que Tibeacuterio Ceacutesar subiu ao poder em 14 dC e nesse tempo tempo Secircneca deveria ter entre 15 ou 16 anos 223

De acordo com os comentaacuterios de Secircneca (Ep 108 19-23) os pitagoacutericos estavam disseminando as suas doutrinas que incluiacuteam a abstinecircncia da carne de animais Secircneca esteve ligado aos pitagoacutericos e por um ano se absteve de carne mas seu pai o convenceu de abandonar aquela seita filosoacutefica Taacutecito (Anais II 85) fornece algumas informaccedilotildees ldquoTratou-se de abolir tambeacutem os cultos egiacutepcios e judaicos e um senatusconsulto mandou deportar para a Sardenha quatro mil da classe dos libertos imbuiacutedos dessas supersticcedilotildees e em idade militar [] os outros foram mandados sair da Itaacutelia se ateacute determinado dia natildeo abjurassem os ritos profanos Em sua dissertaccedilatildeo de mestrado Miranda (2008 p 47) relata que Secircneca aos 25 anos sentindo sua sauacutede abalada foi tratar-se no Egito Por certo as ameaccedilas e perseguiccedilatildeo de Tibeacuterio aos pitagoacutericos forccedilaram a retirada de Secircneca Em Alexandria estabeleceu relaccedilotildees com filoacutesofos e a religiatildeo oriental Permaneceu por seis anos naquele retiro e retornou agraves suas funccedilotildees poliacuteticas em Roma em 31 dC Foi nomeado senador em 33 dC e tribuno da peble em 37 dC A partir dessa fase se destacou como orador despertando a inveja de Caliacutegula sendo ameaccedilado de morte 224 Suetocircnio (sdata p 134) informa que quando Caliacutegula tinha de falar em publico ldquodizia que ia lanccedilar os traccedilos das suas vigiacutelias desprezando aliaacutes o modo de escrever mais moderado e mais aprimorado ao ponto de chamar aacutes obras de Seacuteneca o autor entatildeo mais em voga amplificaccedilotildees escolaacutesticas e de as comparar a edifiacutecios onde natildeo ha senatildeo pedra ou areia sem cal nem cimento tinha o costume de responder aacutes arengas dos oradores mesmo os mais afamadosrdquo

173

intitulada Consolaccedilatildeo agrave minha matildee Heacutelvia Algumas informaccedilotildees sobre

relacionamento filial de Secircneca com sua matildee estatildeo registradas nesta obra Ao

mesmo tempo em que Secircneca consola sua matildee desenvolve argumentos sobre o

significado de consolar como um lugar comum em especial no gecircnero epistolar Agrave

medida que ele busca compreender as perdas que afetaram a vida de sua matildee

fornece informaccedilotildees biograacuteficas sobre alguns acontecimentos Nesta obra (Cons

HeacutelvII4) Secircneca relata sobre o pequeno intervalo em que ela perdeu o irmatildeo e

um mecircs depois o esposo (Secircneca o Velho) Nessa produccedilatildeo em que Secircneca

consola sua matildee o motivo destacado eacute o exiacutelio que o separou da famiacutelia Em suas

consideraccedilotildees Secircneca argumenta ldquoexiacutelio eacute na substacircncia uma mudanccedila de lugarrdquo

(Cons Heacutelv VI1) O modo como ele discorre filosoficamente sobre o significado do

exiacutelio revela seu posicionamento estoico pois ele toca em vaacuterios aspectos

defendidos pela escola quando desdobra a ideia de mudanccedila de lugar em variados

postulados estoicos225

Em 49 dC com a morte de Messalina esposa do Imperador Claudio a suposta

responsaacutevel pela acusaccedilatildeo e exiacutelio de Secircneca o Imperador casou-se com Agripina

e esta solicitou o retorno de Secircneca a Roma para cuidar da educaccedilatildeo de seu filho

Nero que estava com 11 anos de idade

Segundo Mendes em 54 dC conforme uma das versotildees da histoacuteria da morte do

Imperador Claudio a execuccedilatildeo do seu envenenamento foi atribuiacuteda agrave sua esposa

Agripina Nessas circunstacircncias o imperador foi sucedido por Nero sendo este

aclamado pelos pretorianos e tendo sido ratificado tal ato pelo senado Como Nero

ainda era muito jovem (17 anos) foi orientado por dois tutores Secircneca e Afracircnio

Burro prefeito do Pretoacuterio A partir de tal composiccedilatildeo poliacutetica nos primeiros cinco

anos do mandato de Nero ldquoa ideologia imperial reflete as ideias heleniacutesticas sobre

valor piedade justiccedila e clemecircnciardquo (MENDES 2006 p44)

Secircneca procurou orientar o jovem Imperador para uma poliacutetica justa e humanitaacuteria

de acordo com os valores estoicos Graccedilas aos dois preceptores de Nero os

225

Ao discorrer sobre o movimento Secircneca comenta na obra Consolaccedilatildeo agrave minha matildee Heacutelvia VI 8 que ldquotodas as coisas rodam e passam vatildeo de um ao outro ponto como ordena a inexoraacutevel lei do mundo quando teratildeo terminado durante um determinado periacuteodo de tempo sua volta faratildeo novamente o caminho percorridordquo Sobre o destino na mesma obra (VIII 5) Secircneca comentardquo por isso alegres e de cabeccedila erguida iremos com passo intreacutepido aonde quer que a sorte nos leverdquo[] Sobre corpoalma (XI7) ldquoEacute esse nosso miacutesero corpo prisatildeo e corrente da alma que pode ser jogado em qualquer lugar sobre ele tecircm poder os supliacutecios os roubos as doenccedilas a alma eacute sagrada e eterna e ningueacutem lhe pode fazer violecircnciardquo (Trad de Giulio Davide Leoni)

174

primeiros anos de seu reinado evidenciaram alguma semelhanccedila com o reinado de

Augusto Eacute nesse contexto que Secircneca escreveu o tratado De Clemencia Segundo

Grimal (1993 p 95) ldquocom Secircneca surge explicitamente uma teoria do poder

imperial no acircmbito do principado augustanordquo O programa proposto por Secircneca

pode ser identificado pela ideologia estoica atraveacutes daquele tratado destinado a

Nero a quem ele se dirige em uma dedicatoacuteria no exoacuterdio Percebe-se que Secircneca

como enunciador se propotildee a enfatizar as qualidades de Nero226 como Imperador e

a partir desse propoacutesito toma como tema a clemecircncia numa busca de expor seus

significados com base nos valores estoicos referindo-se a ela como uma virtude que

eacute ldquouma inclinaccedilatildeo do espiacuterito para a brandura ao executar a puniccedilatildeordquo (De Clem II

I2)

Como afirma Shotter (2008 p 89) o objetivo de Secircneca era apresentar a Nero a

afirmaccedilatildeo clara do modelo que ele proacuteprio prometera aderir na apresentaccedilatildeo de seu

primeiro discurso no senado Shotter (2008 p 41) lembra que Nero tivera diferentes

mestres em retoacuterica e filosofia mas seu interesse maior era focado em diversos

campos culturais como arte arquitetura e muacutesica durante sua formaccedilatildeo escolar

Para os mestres e tutores responsaacuteveis pela educaccedilatildeo em Roma a literatura

contribuiacutea como apoio textual tanto no exerciacutecio da leitura quanto no treinamento de

formulaccedilatildeo de ideias atraveacutes dos textos Quintiliano faz referecircncia ao valor dessa

praacutetica em mirar-se na produccedilatildeo literaacuteria quando ele assim se expressa

[] Verdadeiramente dos poetas se busca o sopro que eacute vida nas ideias a

sublimidade que se eleva nas palavras todos os movimentos que se agitam nos afetos a caracterizaccedilatildeo que existe nas personagens em especial porque a mente desgastada no agir diaacuterio do foacuterum como que se restaura no seu melhor por meio desta liberdade de tudo Exatamente por isto Ciacutecero entende que se deva descansar neste tipo de leitura (Inst Or X I27)

As instruccedilotildees de Quintiliano sobre a formaccedilatildeo educacional ideal para o homem

romano delineadas no livro X da obra Institutio Oratoria oferecem possibilidades de

compreensatildeo de que retoacuterica e literatura eram naturalmente vinculadas Rezende

(2008 p76) chama a atenccedilatildeo para esse fato observando que Quintiliano toma

226

Como relata Flaacutevio Josefo (Hist Heb III 22176) ldquoQuando Nero se viu guindado ao aacutepice do poder num cuacutemulo de prosperidade abusou de tal modo de sua fortuna que eu natildeo poderia fazer uma descriccedilatildeo fiel de suas accedilotildees sem causar horror Assim contentar-me-ei em dizer em geral que ele chegou a um espantoso excesso de crueldade e de loucura que manchou suas matildeos no sangue de seu irmatildeo de sua mulher de sua proacutepria matildee e de outras pessoas parentes e amigosrdquo

175

Ciacutecero como exemplo no exerciacutecio da praacutetica juriacutedica contribuindo para que retoacuterica

oratoacuteria e literatura fossem constitutivas do proacuteprio discurso

No que diz respeito agrave importacircncia da educaccedilatildeo filosoacutefica na formaccedilatildeo do cidadatildeo

romano ao analisar o funcionamento da filosofia na eacutepoca inicial do impeacuterio romano

Grimal (1993 p 73) defende que ldquoa persistecircncia do grego como linguagem da vida

moral contribui para unir entre si as duas metades do imperiumrdquo Pode-se dizer que

o pensamento filosoacutefico em suas variadas facetas estava ligado agrave heranccedila grega

Nesse ambiente de formaccedilatildeo do intelectual romano no seacuteculo I dC Secircneca eacute visto

como o poeta-filoacutesofo pois de acordo com algumas colocaccedilotildees de Cardoso (2003

p 45 a 47) a linguagem usada por Secircneca contribui para a identificaccedilatildeo de

caracteriacutesticas do entrecruzamento entre discurso literaacuterio e filosoacutefico em suas

produccedilotildees Ele permite refletir em sua obra literaacuteria aspectos do pensamento

estoico visto que nos cacircnticos corais por ele produzidos satildeo ressaltados temas

cosmoloacutegicos e metafiacutesicos De acordo com as informaccedilotildees histoacutericas Secircneca se

torna uma importante referecircncia da trageacutedia romana deixando como heranccedila a ideia

de continuidade que serviu de influecircncia para o teatro no periacuteodo do Renascimento

com destaque para Shakespeare na Inglaterra e Cervantes na Espanha

Secircneca se inspirou nas trageacutedias gregas ao produzir as trageacutedias latinas Uma visita

ao teatro de Epidauro227 oferece uma oportunidade de se avaliar o funcionamento

dos teatros gregos e sua importacircncia como exposiccedilatildeo das obras dos poetas que

produziam trageacutedias e comeacutedias A qualidade da acuacutestica faz notar a capacidade da

engenharia arquitetocircnica da eacutepoca fazendo valer os recursos naturais para atender

a demanda de uma ampla assistecircncia puacuteblica desde a nobreza ateacute a mais popular

O teatro de Epidauro serviu de Palco para apresentaccedilatildeo de trageacutedias gregas de

Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes Estes poetas tambeacutem serviram de modelo para

Secircneca

227

A conservaccedilatildeo do teatro quase intacta se deve ao fato de com o passar do tempo ele foi sendo abandonado coberto pela vegetaccedilatildeo local e soterramento das colinas em volta Nada mais nada menos que seis metros de solo o protegeram por esse longo periacuteodo Foi apenas no seacuteculo XIX que um arquiteto grego chamado Panagis Kavadias impulsionado pela descriccedilatildeo do geoacutegrafo grego Pausacircnias acerca do monumental esplendor arquitetocircnico do teatro de Epidauro o redescobriu sob as jaacute citadas colinas mais precisamente em 1881 O trabalho das escavaccedilotildees durou 6 anos vendo surgir o imponente teatro (Informaccedilotildees turiacutesticas fornecidas na visita realizada ao teatro de Epidauro em 10 de agosto de 2016)

176

Furlan (2006 p 258) menciona que o seacuteculo II aC representou uma significante

fase da trageacutedia romana atraveacutes das produccedilotildees de Pacuacutevio (220-130 aC) e Aacutecio

(170-86 aC) Pode-se notar que os romanos aproveitaram algumas caracteriacutesticas

do modelo do teatro grego228 mas inovaram com a tecnologia dos arcos e tornaram

seu uso mais diversificado em termos populares A princiacutepio o teatro romano foi

palco da comeacutedia nova com destaque para Plauto e Terecircncio A construccedilatildeo do

espaccedilo para as apresentaccedilotildees do teatro romano natildeo era definitiva visto o caraacuteter

ambulante dos apresentadores

O interesse mais evidente no entretenimento que reunia multidotildees passou a ser a

realizaccedilatildeo dos jogos fato esse que contribuiu para mudanccedilas nos acontecimentos e

caracteriacutesticas dos jogos de origem grega tanto quanto modificaccedilotildees no

funcionamento do proacuteprio teatro Como observa Cardoso (2003 p 43) no seacuteculo I

dC o teatro nos moldes claacutessicos jaacute natildeo atraia a plateia que preferia os mimos

danccedilas entre outras apresentaccedilotildees

Essas consideraccedilotildees sobre o teatro romano comparado ao grego contribuem para

o surgimento de certas hipoacuteteses de que as peccedilas de Secircneca natildeo eram destinadas

agraves apresentaccedilotildees nos palcos teatrais pois eram mais voltadas para leitores do que

para espectadores Como bem afirma Taacutecito (Anais XIII3) ldquoos escritos de Secircneca

eram perfeitamente adaptaacuteveis ao gosto de seus contemporacircneosrdquo

De acordo com as colocaccedilotildees de Furlan (2006 p 258) as dez peccedilas traacutegicas

construiacutedas por Secircneca partem de um lugar comum que era a exploraccedilatildeo de mitos

lendas e histoacuterias Dessas fontes Secircneca extrai diferentes temas que de certa

forma permitem a dramatizaccedilatildeo de valores da filosofia estoica Para Cardoso (2003

p 43) a falta de teatralidade nas peccedilas escritas por Secircneca justificam essa

concepccedilatildeo do objetivo de leitura e natildeo de representaccedilatildeo no teatro ldquoSecircneca

escreveu peccedilas possivelmente para serem lidas em sessotildees puacuteblicas frequentadas

por uma elite familiarizada com os velhos mitosrdquo Outro diferencial que Cardoso

(2003 p 44) aponta na comparaccedilatildeo entre as peccedilas gregas e as de Secircneca eacute a

228

Cardoso (2003 p 39 40) informa que o surgimento da trageacutedia helecircnica origina dos rituais religiosos quando os coros participavam nos festejos religiosos Aos poucos foram ocorrendo mudanccedilas e havia alternacircncias entre um cantor uacutenico e posteriormente em algumas passagens um ator substituiacutea o cantor declamando o texto e representando por meio de gestos e movimentos Aos poucos a trageacutedia foi se tornando uma estrutura intercalada por coro e atores Em Roma Livio Andronico traduziu a Odisseia como primeira apresentaccedilatildeo Continuou seu trabalho de traduccedilatildeo colocando os romanos em contato com o teatro grego Em seguida surgiram outros poetas como Neacutevio Ecircni Pacuacutevio e Aacutecio Das demais trageacutedias da era augustana pouco se conservou

177

movimentaccedilatildeo quase estaacutetica que este autor imprime agraves cenas tornando-as

inadequadas agrave encenaccedilatildeo teatral Para Cardoso mesmo partindo de modelos do

teatro grego Secircneca inova no modo de construccedilatildeo das personagens realccedilando os

traccedilos do caraacuteter e caricaturas traacutegicas Neste mesmo sentido Albrech (2008 p

124) argumenta que para Secircneca o uso de material dos escritores anteriores natildeo eacute

impedimento para originalidade mas senso literaacuterio

Grimal (2011 p 71) observa que em Roma aos poucos o teatro literaacuterio abandonou

o palco tornando-se em recitatio Conforme Wilson tambeacutem registra Secircneca iniciou

sua formaccedilatildeo no campo da retoacuterica com o uso da praacutetica da declamaccedilatildeo segundo

a forma pedagoacutegica defendida por seu pai Secircneca o Velho a partir da aplicaccedilatildeo do

recitatio como exerciacutecios da retoacuterica e oratoacuteria

Seneca like other Romans of his generation was trained in rhetoric and practiced in declamation In fact he was one of the addressees of his fatherrsquos Controversiae and Suasoriae which indicate that in his youth he

was an eager student of rhetorical techniques (WILSON 2007 p 425)229

Aleacutem de apoiar-se nos modelos do teatro grego como referecircncias para construir

suas trageacutedias230 Secircneca tambeacutem se inspira em Oviacutedio231 que representa a quebra

do ritual na produccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios de seu tempo com a criaccedilatildeo da obra

Metamorfoses marcando uma mudanccedila de expectativa no campo da literatura

Auhagen (2007 p 415) verifica que na obra Controveacutersias Secircneca232 o Velho

menciona a habilidade de Oviacutedio na retoacuterica e seu talento na declamaccedilatildeo de

controveacutersias (leis fictiacutecias sobre determinado caso) poreacutem Oviacutedio preferia suasoacuteria

(discursos fictiacutecios de persuasatildeo) Ainda segundo Auhagen (2007 p415) Secircneca

o Velho menciona a capacidade de Oviacutedio em transferir seu talento no campo da

retoacuterica para seu proacuteprio desempenho na arte poeacutetica Pode-se dizer que Oviacutedio

representou um exemplo para Secircneca o Jovem pois a partir de sua educaccedilatildeo e

influecircncia paterna conseguiu utilizar seus conhecimentos da retoacuterica interligando a

filosofia aos gecircneros literaacuterios que ele habilmente conseguiu desenvolver Assim

229

Secircneca como outros de sua geraccedilatildeo foi treinado em retoacuterica e declamaccedilatildeo De fato ele era um dos endereccedilados das obras Controversiae e Suasoriae de seu pai O que indica que em sua juventude ele era um estudante dedicado na aacuterea de teacutecnicas retoacutericas 230

Trageacutedias de Secircneca As loucuras de Heacutercules As troianas As feniacutecias Medeia Fedra Eacutedipo Agamenon Tiestes Heacutercules no Fta Octaacutevia (atribuiacuteda a Secircneca) 231

Citaccedilatildeo da preferecircncia de leitura de Oviacutedio quanto agraves duas produccedilotildees de Secircneca o Velho 232

Grimal (2011 p 72) observa que ldquoo livro de Secircneca Pai intitulado Suasoriae et controvesiae (discurso para persuadir e discurso para defender uma causa) revela os principais nomes dos mestres de retoacuterica no principado de Augusto e os seus meacutetodos de ensinordquo

178

Secircneca inova ligando literatura e filosofia ao enxertar na produccedilatildeo das trageacutedias

certos princiacutepios do estoicismo

Fantham (2005 p 123124) esclarece que natildeo haacute fontes de informaccedilotildees precisas

quanto agraves datas das produccedilotildees das trageacutedias de Secircneca Algumas conjecturas satildeo

levantadas com base no conteuacutedo e contexto histoacuterico localizando hipoteticamente

a produccedilatildeo de algumas peccedilas entre 41 a 54 d C e outras de 55 a 62 d C Esta

autora tambeacutem aponta o valor das influecircncias de poetas romanos pois Secircneca

constroacutei suas trageacutedias em cinco atos forma esta recomendada por Horaacutecio

Na produccedilatildeo das trageacutedias Secircneca manteacutem o valor da imitatio como explorado

pelos poetas da literatura greco-latina e esse recurso da criaccedilatildeo poeacutetica pode ser

apontado como uso de um lugar comum de uma fonte que permite caracterizar a

forma e modo de cada produccedilatildeo Na epiacutestola oitenta e quatro Secircneca discorre

sobre o valor das ideias que satildeo coligidas das leituras usando a imagem da abelha

como metaacutefora ldquocomo soe dizer devemos imitar as abelhas que deambulam pelas

flores escolhendo as mais apropriadas ao fabrico do mel e depois trabalham o

material recolhido distribuem-no pelos favosrdquo (Ep 843) Assim a leitura serve a

Secircneca como meio de coleta de material para sua criaccedilatildeo dos temas literaacuterios e

filosoacuteficos

Rezende (2008 p 109) entende o conceito de imitatio na concepccedilatildeo de Quintiliano

ldquocomo um exerciacutecio um procedimento uma estrateacutegia pedagoacutegica que se faz

mediaccedilatildeo sem fim em si mesma portanto entre um saber jaacute construiacutedo e outro

saber que se pretende aprimorarrdquo Eacute nesse vieacutes que Quintiliano (Inst Or X 21)

argumenta [] ldquonatildeo haacute que duvidar de que uma grande parte da arte esteja

circunscrita agrave imitaccedilatildeordquo

Partindo da influecircncia de seus antecessores no campo da literatura Secircneca busca

nos personagens da mitologia grega a accedilatildeo para suas trageacutedias e quanto agrave

aplicaccedilatildeo moral das peccedilas ele toma a literatura do periacuteodo augustano como fonte

para situar seus personagens no enquadramento da moral romana Eacute nessa

perspectiva que Secircneca encontra o caminho para explorar os princiacutepios da filosofia

estoica Wilson (2007 428) focaliza Secircneca no contexto em que ele recoloca a

filosofia na escrita latina libertando-a de sua ligaccedilatildeo exclusiva com a liacutengua grega

transpondo termos filosoacuteficos gregos para a liacutengua latina Com base em sua

179

formaccedilatildeo e habilidade no campo da retoacuterica Secircneca foi capaz de adaptar a filosofia

agrave literatura e poliacutetica reunindo eloquecircncia e argumentaccedilatildeo

A capacidade de Secircneca em integrar filosofia retoacuterica e poliacutetica garantiu-lhe o

prestiacutegio de ser escolhido para exercer o papel de tutor do futuro imperador Nero

Taacutecito (Anais XIII 2) menciona que Secircneca aleacutem de professor de Nero foi

responsaacutevel pela produccedilatildeo de alguns discursos pronunciados pelo jovem imperador

Confirmando esse desempenho de Secircneca Taacutecito (Anais XIII 3) relata que no

funeral do imperador Claudio Nero fez o elogio protocolar usando o discurso escrito

por Secircneca Taacutecito elogia o discurso dizendo que fora composto com muita arte

pois Secircneca era um homem de sedutor engenho ldquomuito ao gosto daquela eacutepocardquo

Por um periacuteodo de cinco anos (54 a 59 dC) Secircneca no papel de conselheiro foi

capaz de intermediar uma conciliaccedilatildeo entre poliacutetica e filosofia no principado de

Nero Acontecimentos que se sucederam como a morte de Agripina e

posteriormente a de Bruto provocaram certa instabilidade na poliacutetica imperial e

nesse ambiente acontece o afastamento de Secircneca Segundo Veyne dos anos 62

ateacute 65 dC Secircneca recolhe-se ao oacutecio dedicando-se agrave sua obra e meditaccedilatildeo

ldquoSeus uacuteltimos anos satildeo cercados por sua escritura de um suacutedito de Nero que sabe

que seus dias estatildeo contados Secircneca se isola na solidatildeo de um oacutecio letrado para

continuar a poliacutetica por esses outros meios de accedilatildeordquo (VEYNE1995 p168)

Quanto agrave escolha de Secircneca em finalizar sua carreira optando pelo gecircnero

epistolograacutefico Wilson (2007 p 436) comenta que este gecircnero permitiu-lhe construir

de forma pessoal o discurso filosoacutefico e seguir mais proacuteximo o movimento de sua

mente cultivando a ideia de uma conversa privada e natildeo de um discurso puacuteblico

permitindo-lhe o tracircnsito livre nas mudanccedilas e direccedilatildeo do pensamento Este autor

remete aos gregos para lembrar que por um lado a epiacutestola tem sua heranccedila no

diaacutelogo filosoacutefico como gecircnero podendo a epiacutestola ser tratada como metade do

diaacutelogo pelas circunstacircncias da ausecircncia do destinataacuterio Por outro lado Secircneca

adota o gecircnero epistolar transferindo a linguagem filosoacutefica da sua oralidade para

sua condiccedilatildeo de escrita O proacuteprio Secircneca aponta este fato ao mencionar que o

discurso de seu mestre Fabiano era construiacutedo para a mente dos leitores e natildeo para

os ouvidos de uma audiecircncia (Ep 100 2-3)

180

Portanto Secircneca elege o gecircnero epistolograacutefico seguindo a forma protocolar

inerente a esse formato e ainda contribui construindo a cenografia de um tratado

filosoacutefico caracterizando o gecircnero como epiacutestola filosoacutefica

41 CONSTRUCcedilAtildeO DA CENOGRAFIA COMO TRATADO FILOSOacuteFICO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA

O corpus selecionado nesta pesquisa para anaacutelise especiacutefica dos toacutepoi filosoacuteficos e

argumentos retoacutericos tem como fonte determinadas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

jaacute sinalizadas e apresentadas nos quadros de organizaccedilatildeo indicadas na introduccedilatildeo

deste trabalho nas p 25 26 e 27 A produccedilatildeo da escrita de Secircneca na obra Annae

Senecae ad Lucilium Epistulae Morales eacute norteada pela opccedilatildeo do gecircnero

epistolograacutefico como jaacute apresentado anteriormente A coleccedilatildeo que eacute composta de

cento e vinte quatro epiacutestolas233 organizadas em vinte livros apresenta-se

consistente de acordo com a caracterizaccedilatildeo do gecircnero escolhido Em relaccedilatildeo a

Luciacutelio como destinataacuterio existem indagaccedilotildees se ele seria um personagem real ou

fictiacutecio Segurado e Campos (1991 p VI-VII) faz algumas observaccedilotildees em sua

introduccedilatildeo da obra alegando que haacute certas evidecircncias da existecircncia de Luciacutelio no

contexto histoacuterico-social de Secircneca A despeito dos escassos dados de sua

biografia devendo sua imortalidade ao proacuteprio Secircneca que o elegeu como

destinataacuterio de suas epiacutestolas sabe-se que seu nome completo era Gaio Luciacutelio

Juacutenior originaacuterio de Pompeia na Campacircnia o que se deduz por algumas

referecircncias de Secircneca Quanto agrave data de seu nascimento natildeo haacute referecircncia para

esta informaccedilatildeo somente comentaacuterios234 de Secircneca que fazem supor ser ele

proacuteprio um pouco mais velho do que Luciacutelio No fechamento da epiacutestola oito Secircneca

oferece o brinde costumeiro de uma maacutexima ao seu destinataacuterio aproveitando para

refletir sobre o valor e citaccedilatildeo de maacuteximas e de versos Apoacutes a citaccedilatildeo de um verso

de Publilio Secircneca prestigia Luciacutelio afirmando ldquoa mesma ideia exprimiste tu bem

me lembro num verso natildeo menos brilhante e concisordquo - Natildeo eacute verdadeiramente teu

o que eacute teu por dom da sorte (Ep 810) E Secircneca ainda acrescenta mais um verso

233

Segundo Reynolds (1957 p 5) a princiacutepio a coleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca foi dividida em dois volumes O primeiro era formado pelas epiacutestolas de 1-88 compondo um manuscrito do seacuteculo IX dC e o segundo volume eacute composto pelas epiacutestolas de 89-124 em outro manuscrito do seacuteculo X dC Esses manuscritos serviram de base para as traduccedilotildees para o inglecircs 234

Na epiacutestola 267 Secircneca se refere a Luciacutelio como mais novo ldquoEacutes mais novo do que eu mas isso natildeo importa o que conta natildeo satildeo os anosrdquo Na epiacutestola 352 Secircneca comenta que a diferenccedila de idade entre os dois natildeo eacute tatildeo significativa [] ldquosei que o que minha idade jaacute perdeu em vigor poderaacute recebecirc-lo da tua embora natildeo muito distanterdquo

181

de Luciacutelio dizendo ldquonatildeo me esqueccedilo tambeacutem de outro verso teu melhor aindardquo ndash

Bem que se pode dar pode tambeacutem tirar-se (Ep 810) Em outra epiacutestola Secircneca

confirma seu apreccedilo por Luciacutelio como poeta ldquoQue presente queres tu que eu te

ofereccedila para te dissuadir de incluiacuteres no teu poema a descriccedilatildeo do Etnardquo (Ep 795)

No discurso construiacutedo por Secircneca natildeo importa se Luciacutelio eacute simplesmente um

personagem fictiacutecio pois a enunciaccedilatildeo se estabelece a partir da imagem dele como

destinataacuterio Na constituiccedilatildeo da cenografia o EU que se dirige ao TU toma uma

posiccedilatildeo de comando e instruccedilotildees a partir da construccedilatildeo imageacutetica do receptor da

epiacutestola Assim Secircneca trata Luciacutelio como um disciacutepulo procurando convencecirc-lo da

superioridade do estoicismo sobre o epicurismo Gazola (2008 p 101) observa que

Secircneca usa a didaacutetica para ensinar Luciacutelio atraveacutes das epiacutestolas e assim se

posiciona ldquoNatildeo se pode perder de vista que Secircneca natildeo estaacute expondo os detalhes

teoacutericos mais complexos da ontologia estoicardquo Na verdade os ensinamentos de

Secircneca partem de uma visatildeo praacutetica dos princiacutepios filosoacuteficos estoicos

No quadro da cenografia que se constitui na enunciaccedilatildeo o papel do enunciador eacute de

mestre que se dirige ao seu co-enunciador como disciacutepulo Hadot (1999 p 21)

pontua que o discurso do mestre de filosofia na Antiguidade toma a forma de um

exerciacutecio espiritual agrave medida que ldquoesse discurso se apresente sob forma tal que o

disciacutepulo do mesmo modo que o ouvinte o leitor ou o interlocutor possa progredir

espiritualmente e transformar-se interiormenterdquo

A primeira epiacutestola de Secircneca eacute o ponto de partida para o estabelecimento da

cenografia de todo o conjunto da coleccedilatildeo A introduccedilatildeo se daacute por meio de certo

afastamento do modo da escrita epistolar convencional Assim Secircneca natildeo faz uso

da saudaccedilatildeo introdutoacuteria protocolar simplificando-a com a expressatildeo Seneca

Lucilio suo salutem Na epiacutestola quinze ele registra alguns comentaacuterios sobre a

tradiccedilatildeo de seguir o modelo de introduccedilatildeo no gecircnero epistolograacutefico fato que

justifica sua escolha da forma de saudaccedilatildeo no gecircnero epistolar por ele adotado

Costumavam os antigos (e o uso conservou-se ateacute ao meu tempo) escrever logo a seguir agrave epiacutegrafe das cartas estas palavras ldquoSe estaacutes de boa sauacutede tanto melhor eu estou de boa sauacutederdquo Quanto a noacutes teremos antes razotildees para dizer ldquose te aplicas agrave filosofia tanto melhorrdquo De fato eacute na filosofia que reside a sauacutede verdadeira (Ep 151)

Essa colocaccedilatildeo de Secircneca comprova seu afastamento da forma usual da escritura

na abertura da epiacutestola sinalizando o objeto central de seu foco que eacute a filosofia

182

conformando-se com a cenografia de um tratado Nessa epiacutestola quinze tem-se a

confirmaccedilatildeo da cenografia que foi instaurada a partir da introduccedilatildeo da coleccedilatildeo

como tratado filosoacutefico Ao mesmo tempo Secircneca escreve essa epiacutestola quinze

entre outras tambeacutem fazendo uso do toacutepico sobre questotildees de sauacutede recorrente no

gecircnero epistolograacutefico Nessa conjectura ele se manteacutem enquadrado nas

caracteriacutesticas do gecircnero mas adapta o seu modo ao campo filosoacutefico quando ele

afirma ldquoCultiva portanto em primeiro lugar a sauacutede da alma e soacute em segundo lugar

a do corpordquo (Ep 152)

Maingueneau analisa uma situaccedilatildeo de debate puacuteblico em que o discurso eacute

construiacutedo a partir de uma cenografia epistolar e assim ele aborda a carta natildeo

como gecircnero mas como cenografia de carta privada235 Atraveacutes das discussotildees ele

faz a seguinte observaccedilatildeo quanto agrave importacircncia do papel da cenografia na

enunciaccedilatildeo

A cenografia epistolar como qualquer cenografia tem inevitavelmente por efeito fazer passar a cena englobante e a cena geneacuterica ao segundo plano de modo que o leitor se encontre preso numa armadilha se a cenografia eacute bem explorada ele recebe esse texto como uma carta e natildeo como um libelo (MAINGUENEAU 2008 p117)

Essa anaacutelise do Maingueneau contribui para chamar a atenccedilatildeo sobre a importacircncia

de se captar a cenografia na enunciaccedilatildeo e identificaacute-la em seu funcionamento no

discurso Talvez a discussatildeo que se levanta entre os que defendem as epiacutestolas de

Secircneca como tratado no papel de gecircnero do discurso se encaixe nessa armadilha

que a cenografia bem explorada provoca A cenografia como tratado na construccedilatildeo

discursiva das epiacutestolas natildeo invalida o gecircnero epistolar pois este se manteacutem em

suas caracteriacutesticas de definiccedilatildeo do gecircnero

Na epiacutestola introdutoacuteria da coleccedilatildeo a figura que primeiramente se destaca eacute a do

destinataacuterio estabelecendo o diaacutelogo pretendido entre EU emissaacuterio e TU

destinataacuterio

Procede deste modo caro Luciacutelio reclama o direito de dispores de ti concentra e aproveita todo o tempo que ateacute agora te era roubado te era subtraiacutedo que te fugia das matildeos Convence-te de que as coisas satildeo como as descrevo uma parte do tempo eacute nos tomada outra parte vai-se sem darmos por isso outra deixamo-la escapar Mas o pior de tudo eacute o tempo esperdiccedilado por negligecircncia Se bem reparares durante grande parte da

235

Maingueneau (2008 115-135) escolhe o libelo religioso e o programa poliacutetico eleitoral como gecircneros do discurso distintos que recorrem ao uso da cenografia epistolar para a construccedilatildeo do discurso

183

vida agimos mal durante a maior parte natildeo agimos nada durante toda a vida agimos inutilmente (Ep 11)

Muhana (2000 p 341) argumenta que uma das caracteriacutesticas preconizadas no

gecircnero epistolar desde a Antiguidade eacute a imagem do destinataacuterio em primeiro

lugar Fato este que evidencia a importacircncia do tu em relaccedilatildeo ao eu na interlocuccedilatildeo

entre ausentes Esta caracteriacutestica apontada pode ser identificada na epiacutestola

introdutoacuteria de Secircneca a Luciacutelio Eacute notoacuterio observar que no papel de mestre Secircneca

valoriza a figura do disciacutepulo colocando-o em destaque na abertura de sua epiacutestola

O assunto a ser abordado eacute introduzido girando em torno do tema filosoacutefico ldquoo

tempordquo como um direcionamento para toda a organizaccedilatildeo da coleccedilatildeo de epiacutestolas

Os assuntos giram em torno de variadas reflexotildees sobre o tempo e os seus

desdobramentos em toacutepicos Esse pode ser considerado o tema filosoacutefico

centralizador em torno do qual gera a produccedilatildeo argumentativa da obra por meio de

toacutepoi e argumentos retoacutericos

O tema filosoacutefico ldquoo tempordquo eacute identificado na primeira epiacutestola e segue sendo

desenvolvido por meio de subtemas direcionados pela filosofia estoica Segundo

Gazola (2008 p 109) o tempo para os estoicos eacute o intervalo do movimento236 pois o

intervalo eacute a marca do ponto inicial ateacute o ponto final do movimento designado como

tempo Os anos de vida de uma pessoa satildeo marcados do nascimento ateacute a morte e

este intervalo eacute entendido pelos estoicos como tempo Assim o tema ldquoo tempordquo nas

epiacutestolas de Secircneca se desdobra em subtemas como nascimento vida velhice e

morte Apoacutes a apresentaccedilatildeo do interlocutor no funcionamento do TU no diaacutelogo

emerge a presenccedila marcada do EU no ato da enunciaccedilatildeo

Talvez te apeteccedila perguntar como procedo eu que dou todos esses preceitos Dir-te-ei com franqueza como algueacutem que vive bem mas sem esbanjamento Tenho as minhas contas em dia Natildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de que modo o perco (Ep I4)

236

Eacutemile Breacutehier (2012 95-103) expotildee que a tese de Zenatildeo sobre o tempo se aproxima da de Aristoacuteteles Para Zenatildeo o tempo eacute o intervalo do movimento e para Aristoacuteteles o tempo eacute o nuacutemero do movimento Crisipo defendia que o tempo eacute o intervalo que acompanha o movimento do cosmo Segundo Aristoacuteteles o tempo eacute medido por um tempo definido a unidade de tempo Este tempo definido eacute medido por um movimento definido que eacute o movimento circular do ceacuteu pois soacute ele eacute uniforme A teoria de que o tempo eacute o movimento do ceacuteu eacute atribuiacuteda a Platatildeo mas natildeo tem o mesmo sentido da teoria estoica de que o tempo eacute o intervalo do movimento do mundo Para os estoicos o tempo eacute incorpoacutereo pois sua forma eacute vazia e os acontecimentos se sucedem segundo leis que o tempo natildeo possui Os incorpoacutereos satildeo desprovidos de ser tendo sua existecircncia marcada a partir do contato de um corpo com outro

184

A expressatildeo fatebor ingenue237 identifica um ethos parresiasta do enunciador ou

seja o franco falar a liberdade a abertura para se dizer o que deve ser dito Esse

modo de dizer a verdade aponta para a subjetividade do enunciador quando fala de

si ldquoNatildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de

que modo o percordquo Nesta situaccedilatildeo pode ser aplicada a explanaccedilatildeo de Foucault

(2010a p 334) sobre parresiacutea ao afirmar que ldquoo termo parresiacutea refere-se por um

lado agrave qualidade moral agrave atitude moral ao ethos e por outro lado ao procedimento

teacutecnico indispensaacutevel para transmitir o discurso verdadeirordquo

No desfecho desta primeira epiacutestola o enunciador menciona a maacutexima

Jaacute vem tarde a poupanccedila quando o vinho estaacute no fundo

Dois aspectos importantes contribuem para a instituiccedilatildeo da cenografia o uso do

tema sobre o tempo como lugar comum e o fechamento da epiacutestola com uma

maacutexima Na Antiguidade era recorrente entre os escritores greco-romanos o uso de

uma maacutexima como brinde de acordo com o tema em pauta Braren identifica essa

praacutetica nas epiacutestolas de Secircneca fazendo conexatildeo com o toacutepico do uso de maacuteximas

em epiacutestolas de Ciacutecero

Natildeo se deve entretanto esquecer outro toacutepico importante fornecido pela epistolografia antiga que consiste em considerar que a finalidade de uma carta eacute ofertar algum brinde toacutepico condensado por Ciacutecero em poucas palavras polliceri aliquid ldquoofertar algordquo (BRAREN 1999 p 42)

238

Na Antiguidade aleacutem das maacuteximas ou sententiae funcionarem como brinde no

gecircnero epistolograacutefico outras funccedilotildees destas podem ser observadas na construccedilatildeo

do discurso Costriano (2010 p 37) menciona que Secircneca o Velho opta por uma

abordagem mais didaacutetica no exerciacutecio da declamaccedilatildeo usando sententiae como

parte do elocutio por serem adequadas ao iniacutecio ou encerramento de uma

argumentaccedilatildeo ou mesmo para enfatizar um determinado assunto Portanto

Secircneca busca situar a ideia de tempo como tema filosoacutefico e uso de uma maacutexima239

237

ldquoconfesso com franquezardquo 238

Braren (1999 p 42) identifica Ciacutecero recorrendo ao uso de maacuteximas como brinde nas epiacutestolas Fam 4 13 6 e Fam 6 10 6 Secircneca segue o mesmo protocolo reforccedilando o caraacuteter argumentativo desse recurso 239

O que os tradutores de Aristoacuteteles chamam de maacutexima na retoacuterica latina era designado como sententia Quintiliano (Inst Or VIII 53) alega que o termo usado pelos latinos como sententia significava o que para o gregos era gnome O proacuteprio Secircneca usa o termo sententia aplicando-o em diferentes contextos como por exemplo ideia ou opiniatildeo como usado no grego (γνώμη ) e natildeo especificamente para se referir aos ditos de algueacutem Sic est non muto sententiam (Ep 101) Eacute assim

como te digo natildeo mudo de opiniatildeo Em Aristoacuteteles (Ret II 21 2) ἔστι δὴ γνώμη ἀπόφανσις[] a maacutexima eacute uma afirmaccedilatildeo (declaraccedilatildeo) ou seja a opiniatildeo eacute uma afirmaccedilatildeo

185

como argumento retoacuterico na busca de cenas validadas para mobilizar a instauraccedilatildeo

da cenografia A partir desta cenografia ficam delineados os toacutepoi e recursos

retoacutericos como estrateacutegias argumentativas na conduccedilatildeo do discurso

No todo da primeira epiacutestola que serve de abertura para o conjunto da coleccedilatildeo o

proacuteprio texto mostra a cenografia que o torna possiacutevel Assim fica evidenciada a

cenografia de um lsquotratado filosoacutefico estoicorsquo pela proacutepria intertextualidade que a

enunciaccedilatildeo mobiliza Nessa ordem a noccedilatildeo de cenografia como Maingueneau

(2005 2008 2012) postula em sua abordagem teoacuterica coopera para uma

compreensatildeo do processo pelo qual a enunciaccedilatildeo se autolegitima ao instituir um

enunciador e um co-enunciador de acordo com um conteuacutedo desenvolvido no

proacuteprio texto Essa abordagem intensifica a ideia de que o destinataacuterio Luciacutelio se

constitui na decircixis empiacuterica como o TU na enunciaccedilatildeo mas na decircixis discursiva ele

pode ser a figura dos leitores de Secircneca O estabelecimento da cenografia nessa

obra tambeacutem concorre para definir o enunciador como o filoacutesofo estoico

responsaacutevel pelo tratado filosoacutefico constituiacutedo na cenografia Dessa forma a decircixis

linguiacutestica serve como ponto de partida mas aos poucos vai cedendo lugar agrave decircixis

discursiva permitindo a apreensatildeo do ethos discursivo que se mostra na

enunciaccedilatildeo A topografia tambeacutem tem o lugar fiacutesico como partida empiacuterica para se

chegar ao discursivo ou seja Secircneca fala do lugar do seu retiro ou oacutecio fora da

poliacutetica e suas implicaccedilotildees sociais Aos poucos a discursividade da ideia desse

lugar ocupa variados sentidos no discurso

Como visto na contextualizaccedilatildeo histoacuterica que aponta para diferentes facetas que

englobam a vida de Secircneca tais dados contribuem para localizar discursivamente o

lugar de onde ele enuncia No momento histoacuterico em que ele escreve as epiacutestolas

percebe-se efeitos de seu deslocamento de posiccedilatildeo poliacutetica destacada para um

afastamento de todo o ambiente social e aristocrata Esse novo espaccedilo eacute o ldquoaquirdquo

que identifica o lugar da meditaccedilatildeo reflexatildeo e avaliaccedilatildeo O tempo percebido

empiricamente eacute toda trajetoacuteria que culmina na velhice como ele mesmo declara

Na cenografia que utiliza o tempo como tema direcionador da enunciaccedilatildeo a

cronografia pode ser vista como um ldquoagorardquo que prevecirc um momento final proacuteximo

Nesse contexto Secircneca tira proveito das vantagens do gecircnero epistolograacutefico e faz

dele o meio de depositar suas ideias e conselhos finais que vatildeo ao encontro de seu

destinataacuterio Luciacutelio Atraveacutes desse gecircnero epistolar cumprem-se os propoacutesitos da

186

escrita de si e cuidado de si como tambeacutem o cuidado do outro favorecendo a

Secircneca a perenidade de seu discurso atraveacutes da coleccedilatildeo de epiacutestolas por ele

produzidas e divulgadas

42 ETHOS DE SEcircNECA DE ACORDO COM SUA POSICcedilAtildeO DISCURSIVA

A construccedilatildeo do ethos de Secircneca atraveacutes da leitura de sua obra em especial com

base no foco de sua correspondecircncia com Luciacutelio compactua com a ideia de

Aristoacuteteles sobre as trecircs provas apontadas como constituintes do discurso ecircthos

paacutethos e loacutegos Inwood indica possibilidades de captaccedilatildeo da subjetividade de

Secircneca demonstrada atraveacutes da composiccedilatildeo de sua obra e faz o seguinte

comentaacuterio

In the corpus of his writing and in the relatively rich historical record we possess about him we see Seneca in many guises as an occasionally Machiavellian political figure of great but transient power as an eloquent orator devoted to the artfulness of fine speech as much as to its power to persuade as a dark but brilliant poet as a friend son and brother as a philosopher of surprisingly wide interests and as a moral adviser (INWOOD 2010 p ix)

240

De acordo com essa interpretaccedilatildeo de Inwood o ethos de Secircneca se revela nos

variados campos em que ele atuou como poliacutetico orador poeta e filoacutesofo A

fundamentaccedilatildeo para as manifestaccedilotildees da subjetividade de Secircneca estaacute contida no

estoicismo o qual direciona seu posicionamento discursivo nos vaacuterios campos do

saber Nessa mesma expectativa de apreensatildeo do ethos de Secircneca Wilson faz as

seguintes observaccedilotildees

He is able to present himself in a variety of roles as teacher counsellor comforter fellow student satirist literary critic moralist autobiographer friend or scientific observer Stoic or admirer of Epicurus physician psychotherapist or companion in suffering In the Epistles he resituates himself in every letter in a new set of circumstances in a new mood in a new reflective contex (WILSON 2007 433)

241

240

Inwood (2010 p xi) ldquoNo corpus da escrita e no registro histoacuterico relativamente rico que noacutes possuiacutemos sobre a vida de Secircneca noacutes o vemos de muitas formas como uma figura poliacutetica ocasionalmente maquiaveacutelica como um orador eloquente devotado agrave astuacutecia do bom discurso tanto quanto o seu poder de persuadir como um obscuro mas brilhante poeta como amigo filho e irmatildeo como filoacutesofo de interesses surpreendentemente amplos e como um conselheiro moralrdquo Observa-se na colocaccedilatildeo de Inwood que a expressatildeo maquiaveacutelica se refere agrave legitimidade e poder do governante compromissado com as virtudes inerentes ao posto poliacutetico ocupado 241 Wilson (2007 p 433) ldquoEle eacute capaz de apresentar-se em uma variedade de papeacuteis como mestre

conselheiro consolador colega de estudos satiacuterico criacutetico literaacuterio moralista autobioacutegrafo amigo ou observador cientiacutefico estoacuteico ou admirador de Epicuro meacutedico psicoterapeuta ou companheiro amigo ou observador cientiacutefico estoacuteico ou admirador de Epicuro meacutedico psicoterapeuta ou

187

Wilson observa que em cada epiacutestola dirigida a Luciacutelio Secircneca revela seu caraacuteter

oferecendo oportunidades para que a sua subjetividade seja identificada em

diferentes aspectos de acordo com o assunto em pauta e mesmo revendo e

reavaliando suas proacuteprias atitudes Como visto na construccedilatildeo da cenografia a partir

da primeira epiacutestola como abertura da coleccedilatildeo marcas do ethos de estoico satildeo

mostradas pela revelaccedilatildeo da subjetividade do enunciador que se coloca diante do

co-enunciador como parceiro na enunciaccedilatildeo ldquoTalvez te apeteccedila perguntar como

procedo eu que dou todos esses preceitosrdquo (Ep I4) O modo de proceder no papel

de estoico estaacute vinculado aos princiacutepios da proacutepria filosofia que lhes daacute o

direcionamento na forma de agir Na organizaccedilatildeo loacutegica da proposiccedilatildeo de Secircneca o

ato de proceder antecede ao de ensinar porque a forccedila do exemplo eacute fundamental

nos ensinamentos Para os estoicos romanos242 o disciacutepulo deve se espelhar no

mestre como aponta Secircneca ldquoa via atraveacutes de conselhos eacute longa atraveacutes de

exemplos eacute curta e eficazrdquo (Ep 65) Secircneca menciona esse fato em sua juventude

quando traz agrave proacutepria lembranccedila a imagem de seu mestre Aacutetalo ldquoAinda guardo na

memoacuteria um preceito que ouvi a Aacutetalo nos tempos em que frequentava a sua escolardquo

(Ep 1083) Atraveacutes dessas recordaccedilotildees Secircneca relata sua admiraccedilatildeo e atenccedilatildeo

em ouvir seu mestre sendo o primeiro a chegar aos encontros e o uacuteltimo a sair

Nessas reuniotildees dizia Aacutetalo ldquoo docente e o discente se devem unir num propoacutesito

comumrdquo (Ep 1084) Na sequecircncia de seu raciociacutenio Secircneca propotildee a Luciacutelio

ldquoFaccedilamos com que nosso estudo transforme as palavras em atordquo (Ep 10836)

Como indica Foucault (2010a p291) ldquoa paraskueacute243 eacute a estrutura permanente dos

discursos verdadeiros ancorados no sujeito em princiacutepios de comportamentos

moralmente aceitaacuteveisrdquo Entatildeo a paraskeueacute eacute o elemento de transformaccedilatildeo do

conhecimento em praacutetica que se revela no ethos

Toda preparaccedilatildeo que Secircneca recebeu ao longo de sua trajetoacuteria contribuiu para

sua formaccedilatildeo e adesatildeo ao estoicismo Ele proacuteprio relata que em sua juventude seu

primeiro mestre foi um pitagoacuterico fato que influenciou em sua adesatildeo a alguns

princiacutepios e regras de comportamento daquele grupo

companheiro em sofrimento Nas Epiacutestolas ele se recoloca em cada uma delas em um novo conjunto de circunstacircncias num novo clima num novo contexto reflexivordquo 242

Segundo Gourinat (2013 p 221) ldquona eacutepoca romana alguns estoicos encarnavam o estoicismo de maneira exemplar a comeccedilar por Catatildeo de Utica que Secircneca propotildee como modelo de saacutebio 243

No Novo Testamento o termo grego paraskeueacute (παρασκευε) tem o sentido de preparaccedilatildeo e no evangelho de Joatildeo 1914 aparece como preparaccedilatildeo da paacutescoa - Eν δε παρασκευε του πασχα

188

Foucault ((2010a p 283) analisa a noccedilatildeo de discurso verdadeiro na Antiguidade

como um processo da asceacutetica244 que estimula a escuta e a recepccedilatildeo na aquisiccedilatildeo

dos conhecimentos e estes fornecem meios para preparaccedilatildeo e constituiccedilatildeo da

subjetividade que se revela no indiviacuteduo por meio do ethos Partindo desses

princiacutepios observa-se que Secircneca se apropriou dos fundamentos do estoicismo e

vivenciou estas experiecircncias formando seu caraacuteter de filoacutesofo estoico Nas epiacutestolas

a Luciacutelio Secircneca procura convencecirc-lo de suas proacuteprias convicccedilotildees e assim passa

a exercer o papel de mestre diante do disciacutepulo

Em Secircneca o ethos de mestre cumpre a funccedilatildeo de ensinamentos dos postulados da

filosofia natildeo como dogmas mas como direcionamento do cuidado de si Foucault

(2011 p 410) analisa a diferenccedila entre o cuidado de si em Platatildeo e os estoicos

informando que para estes ldquopor intermeacutedio da faculdade da razatildeo de decisatildeo sobre

o controle das demais faculdades que se deve realizar o cuidado de sirdquo O que se

extrai dessa afirmativa eacute a ideia de que quando o indiviacuteduo lanccedila seu olhar sobre si

mesmo permite agrave razatildeo observar julgar e controlar os proacuteprios atos E Foucault

acrescenta ldquoO que faz a grande diferenccedila entre os animais e os humanos eacute que os

animais natildeo tecircm que se ocupar consigo mesmosrdquo

A partir de sua postura de formaccedilatildeo estoica sobre o cuidado de si Secircneca procura

investir seu tempo oferecendo seus ensinamentos a Luciacutelio com o objetivo de

ajudaacute-lo a alcanccedilar uma racionalidade no modo de agir que revertesse no cuidado

de si Na epiacutestola cento e seis Secircneca ressalta seu ethos de mestre procurando

convencer Luciacutelio a encarar o destino245 de forma racional e natural ldquoA melhor

atitude a tomar eacute aceitar o que natildeo podemos alterar e conformarmos sem

resmungar com os desiacutegnios da divindade que rege o curso do universordquo (Ep 107

9) Como estrateacutegia retoacuterica Secircneca cita versos do poema de Cleantes dedicado a

Zeus e ainda informa ter feito a traduccedilatildeo imitando Ciacutecero que costumava traduzir

obras do grego para o latim Do poema Secircneca escolheu versos que abordam os

postulados estoicos sobre o determnismo fechando com o verso ldquoO destino guia

quem o segue e arrasta quem o resisterdquo (Ep 10711)

244

Lembrando que para Foucault (2010a p374) asceacutetica eacute o conjunto mais ou menos coordenado de exerciacutecios disponiacuteveis recomendados ateacute mesmo obrigatoacuterios ou utilizaacuteveis pelos indiviacuteduos em um sistema moral filosoacutefico e religiosordquo 245

Gazolla (2008 p 125) menciona que Ciacutecero defende que ldquonatildeo se deve compreender destino por meio da adivinhaccedilatildeo do tempo futuro ligado ao passado como fazem os adivinhos pois trata-se de um princiacutepio coacutesmico um modo de ser de todas as coisas e natildeo de passado e futuro de algueacutemrdquo

189

Outra demonstraccedilatildeo do ethos de mestre identificado em Secircneca eacute observado em

seus ensinamentos a Luciacutelio sobre o tema pobreza Nessa questatildeo aparentemente

Secircneca se mostra incoerente com seu proacuteprio discurso pois sendo ele rico pregava

a teacutecnica do exerciacutecio da pobreza Os estoicos eram criticados pelos paradoxos que

externamente se manifestavam em seus discursos e assim Secircneca ironiza sobre

essa criacutetica ao introduzir esse assunto em seus ensinamentos a Luciacutelio ldquoNaufraguei

antes mesmo de embarcar Natildeo vou dizer-te como isto sucedeu mas natildeo fiques

pensando que se trata de mais um paradoxo estoicordquo (Ep 871) Com esta

introduccedilatildeo Secircneca comeccedila a argumentar com Luciacutelio sobre o assunto do

antogonismo entre riqueza e pobreza Para convencer Luciacutelio do seu papel de

mestre estoico ele relata nesta mesma epiacutestola sobre uma passeio por ele

realizado na companhia de um amigo encarando as condiccedilotildees miacutenimas de

sobrevivecircncia em relaccedilatildeo ao abrigo para o repouso e a alimentaccedilatildeo reduzida a patildeo

e figo O meio de transporte normalmente realizado em carruagem foi substituiacutedo

por uma carroccedila de campo guiada por uma mula vagarosa e um carroceiro

descalccedilo Diante desta cena Secircneca confessa

Dificilmente consigo de mim proacuteprio a confissatildeo aberta que uma tal carroccedila me pertence Ainda me natildeo libertei por completo dessa vergonha de agir bem sempre que vem ao nosso encontro algum grupo mais aparantoso coro embora contrariado Isto soacute prova como aquele modo de agir que eu considero digno e louvaacutevel ainda natildeo se fixou de modo definitivo e inabalaacutevel no meu espiacuterito (Ep 874)

Essa revelaccedilatildeo de Secircneca indica que ele estaacute procurando reformular seu conceito

de riqueza e pobreza compatiacutevel com teoria e praacutetica Segundo Foucault (2010a p

413) ldquono estoicismo o olhar sobre si deve ser a prova constitutiva de si como sujeito

de verdade e deve secirc-lo pelo exerciacutecio reflexivo da meditaccedilatildeordquo

Quando Secircneca escolhe o gecircnero epistolar para comunicar princiacutepios da filosofia

estoica ele tem consciecircncia da liberdade de escrita que este gecircnero oferece Este

fato sustenta o que Foucault (2004) defende sobre a escrita de si na

correspondecircncia Desse modo Secircneca se abre diante de seu amigo Luciacutelio

mostrando um ethos de sinceridade e ausecircncia de subterfuacutegios para encarar as

proacuteprias limitaccedilotildees em atingir a posiccedilatildeo ideal de um estoico

Paul Veyne (1995 p 28) situa alguns pontos sobre o tema riqueza na Antiguidade e

expotildee que na Roma antiga as consideraccedilotildees sobre a riqueza poderiam ser vistas

sob dois modos distintos Por um lado se o entendimento por moral se refere agrave

190

atitude de algueacutem consciente do que deve ou natildeo deve ser feito entatildeo a posse de

riquezas representa uma consciecircncia sem escruacutepulos Por outro lado se por moral

se compreende um coacutedigo taacutecito de comportamento implicado nas condutas

consideradas normais entatildeo a riqueza eacute objeto de prestiacutegio e sua posse naquela

situaccedilatildeo significava uma espeacutecie de dever para os poliacuteticos em especial para os

senadores Na posiccedilatildeo de poliacutetico a riqueza para Secircneca era uma condiccedilatildeo social e

nesse contexto ele escreveu o tratado sobre os benefiacutecios e de certa forma para

ele a riqueza oferecida por um beneficiador se torna para quem recebe natildeo uma

questatildeo de aceitaccedilatildeo mas de obediecircncia Tal fato evidencia o ethos de Secircneca no

papel de poliacutetico em seu envolvimento e exerciacutecio no cumprimento de suas

responsabilidades no senado que se torna indissociaacutevel em alguns aspectos com

seu ethos de estoico na concepccedilatildeo romana

O conceito de pobreza para os estoicos tem implicaccedilotildees filosoacuteficas que compactuam

com certos postulados pitagoacutericos e ciacutenicos ou seja pobreza eacute a ausecircncia de

acuacutemulo de bens desnecessaacuterios agrave sobrevivecircncia humana Eacute nessa perspectiva que

a beneficecircncia pregada por Secircneca se situa no contexto de sua vida puacuteblica natildeo

consistindo em oferecer bens aos pobres mas aos que solicitavam ajuda e

poderiam devolver o benefiacutecio o que demonstrava atitude de reconhecimento ou

gratidatildeo no ambiente poliacutetico do patronato

No dizer de Paul Veyne (1995 p 31) no campo da poliacutetica Secircneca escrevia como

filoacutesofo e natildeo como senador lanccedilando-se em um desafio de filosofar a poliacutetica

Assim Secircneca engrandece a praacutetica da escrita da filosofia em latim246 e se reafirma

como filoacutesofo expandido sua capacidade versaacutetil de aplicar os princiacutepios filosoacuteficos

que defendia nas formas bem diversificados de gecircneros do discurso como trageacutedia

saacutetira e epistolografria Eacute no gecircnero epistolar que Secircneca encontrou o espaccedilo

apropriado para registrar suas convicccedilotildees filosoacuteficas deixando-as para a

posteridade

O retiro de Secircneca da poliacutetica vai ao encontro de seu ideal de dedicaccedilatildeo exclusiva agrave

filosofia Como informa Taacutecito (Anais XIV 53-56 ) em 62 dC oficialmente Secircneca

solicitou a Nero o seu afastamento de sua funccedilatildeo de conselheiro do imperador

246

Como observa Paul Veyne (1995 p 31) em Roma a liacutengua teacutecnica para escrita da filosofia e medicina era o grego Nesse aspecto Ciacutecero e Secircneca introduziram o uso da liacutengua latina no campo da filosofia por reconhecerem a importacircncia de valorizar a liacutengua nacional e se considerarem capazes de fazecirc-lo

191

procurando tambeacutem devolver os bens recebidos e acumulados durante sua gestatildeo

indicando que a riqueza era o suporte da vida poliacutetica e a partir de seu afastamento

ambas perdiam o sentido e utilidade em sua vida Mediante a recusa de Nero247

Secircneca permaneceu em seu posto mas mudou seu modo de vida Evitou a clientela

e as companhias do seu meio social sendo visto raramente em ambiente puacuteblico

dedicando-se quase exclusivamente agrave filosofia Somente depois do incecircndio de

Roma eacute que aconteceu o afastamento definitivo de Secircneca248

Na epiacutestola setenta e trecircs Secircneca registra seu agradecimento ao priacutencepe por

permitir-lhe a oportunidade de dedicaccedilatildeo agrave filosofia Ainda sob o efeito da produccedilatildeo

de seu proacuteprio tratado sobre os benefiacutecios Secircneca mostra um ethos de gratidatildeo

originaacuterio de sua postura de saacutebio como consequecircncia dos ensinamentos

apreendidos da filosofia

Os filoacutesofos portanto que nos seus esforccedilos com vista a uma vida consagrada agrave moral soacute tem a beneficiar com a seguranccedila social veneram como a um pai o priacutencipe a quem devem tal benesse tem mesmo para com ele uma diacutevida muito superior agrave dos que vivem no meio da agitaccedilatildeo da poliacutetica pois estes embora muito devam aos priacutencipes muito tambeacutem exigem deles (Ep 732) [] o homem sincero e puro que abandona o senado o foro e todos os demais cargos administrativos do Estado esse homem soacute sente estimativa pelo priacutencipe que lhe permite a libertaccedilatildeo apenas esse homem pode testemunhar desinteressadamente em favor do priacutencipe e ter em relaccedilatildeo a ele sem que este o saiba uma enorme diacutevida de gratidatildeo (Ep 734)

Quando Secircneca se desliga de suas obrigaccedilotildees poliacuteticas ele se recolhe em um

ambiente mais propiacutecio agrave meditaccedilatildeo e eacute nesse contexto que ele produz sua obra

247

Taacutecito (Anais XIV 56) relata que Nero deu a seguinte resposta agrave solicitaccedilatildeo de Secircneca ldquoSe me restituiacuteres as tuas propriedades ou te retirares agrave vida privada a opiniatildeo puacuteblica o atribuiraacute a avareza de minha parte ou a receios teus de crueldade minha e se principalmente merecer aplausos tua abnegaccedilatildeo natildeo seraacute decoroso para tua sabedoria receber louvores deixando em descreacutedito teu amigordquo 248

As supostas epiacutestolas trocadas entre Secircneca e Paulo satildeo datadas a partir de 58 dC ateacute 64 dC Na antepenuacuteltima epiacutestola Secircneca escreve falando sobre o incecircndio em Roma SEcircNECA PARA PAULO Saudaccedilotildees meu querido Paulo Pensa que eu natildeo estou triste e aflito por seu povo inocente ser frequentemente condenado a sofrer E tambeacutem porque todos acham que vocecirc eacute tatildeo insensiacutevel e tatildeo propenso ao crime que eacute o suposto autor de cada infortuacutenio da cidade Vamos suportar isto pacientemente e contentar-nos com o que a sorte nos traz ateacute que a suprema felicidade coloque fim aos nossos problemas Nos tempos antigos era preciso suportar os macedocircnios o filho de Felipe e depois Dario Dioniacutesio e em nossos dias temos que suportar Gaius Ceacutesar para todos eles seus desejos eram lei O fogo devastou as planiacutecies de Roma mas se os homens humildes pudessem falar sem risco nesse tempo de trevas tudo se tornaria evidente para todos Cristatildeos e judeus satildeo comumente executados como os autores do incecircndio Quem quer que seja o criminoso cujo prazer eacute o de um accedilougueiro e que se esconde atraacutes de uma mentira ele teraacute sua hora e como o melhor homem foi sacrificado por muitos assim ele jurado de morte por todos seraacute queimado com o fogo Cento e trinta e duas casas e quatro quarteirotildees foram queimados em seis dias o seacutetimo trouxe uma pausa Eu rezo para que vocecirc esteja bem irmatildeo Dado em 5 das calendas de abril Frugi e Bassus ndash cocircnsules (64 dc) Trad Marcos Viniacutecius Fernandes Miranda e Joseacute Joaquim Pereira Melo

192

Epistulae Morales Nesse espaccedilo favoraacutevel ao desenvolvimento do pensamento

estoico Secircneca eacute capaz de conciliar discurso e praacutetica de vida permitindo emergir

em seu discurso seu ethos de filoacutesofo estoico Secircneca se dirige a Luciacutelio exortando-

o a abdicar-se das prisotildees impostas pela riqueza defendendo que ldquoa pobreza limita-

se a satisfazer as necessidades mais prementesrdquo e ele ainda acrescenta ldquoo estudo

da filosofia natildeo daraacute fruto se natildeo adotares uma vida frugal ora a frugalidade natildeo

passa de pobreza voluntaacuteriardquo (Ep 175) Com esses ensinamentos a Luciacutelio

Secircneca declara que a filosofia ensina o indiviacuteduo a morrer bem

No estoicismo os aconselhamentos sobre determinismo riqueza e tempo estatildeo

interligadados em alguns pontos de uniatildeo Secircneca alerta Luciacutelio a se afastar das

miragens sedutoras da riqueza ldquoPara quecirc esquecer-me da fragilidade humana e

pocircr-me a acumular bens Para quecirc penar por eles Este dia seraacute o meu uacuteltimo dia

e se acaso o natildeo for decerto que o meu fim jaacute natildeo estaacute distanterdquo (Ep 1511)

Na fase de afastamento de Secircneca pelas implicaccedilotildees poliacuteticas em seu contexto

histoacuterico ele vive uma situaccedilatildeo de inteira convicccedilatildeo da aproximaccedilatildeo do momento da

morte A epiacutestola setenta eacute uma amostra evidente da espectativa de Secircneca em

relaccedilatildeo agrave aproximaccedilatildeo do fim de sua vida justificando o suiciacutedio como uma

alternativa racional Assim ele declara ldquomorrer mais cedo morrer mais tarde eacute

questatildeo irrelevante relevante eacute sim saber se morre-se com dignidade ou sem ela

pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo de viver sem elardquo (Ep 70 6)

Nesta mesma epiacutestola Secircneca coloca diante de Luciacutelio algumas consideraccedilotildees

sobre a melhor atitude de um condenado diante da iminente morte O conceito A

VIDA Eacute UMA VIAGEM aparece no seu argumento metafoacuterico ldquose eu escolho o navio

em que vou navegar ou a casa em que vou habitar tambeacutem ao deixar esta vida

posso escolher a forma como morrerrdquo (Ep 7011) E ainda no mesmo raciociacutenio

metafoacuterico Secircneca alega ldquoeacutes livre de regressar ao lugar de onde viesterdquo (Ep

7015)

Na constituiccedilatildeo da cenografia a partir da primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacuteclio o

tema filosoacutefico ldquoo tempordquo eacute definido como norteador na elaboraccedilatildeo dos conselhos

Ligado ao tempo as instruccedilotildees de Secircneca como mestre tomam como base a

sabedoria que eacute adquirida atraveacutes da filosofia Saber viver eacute preparar-se para morrer

e o tempo precisa ser aproveitado e valorizado Eacute nessa perspectiva que Foucault

aponta que a meditaccedilatildeo sobre a morte eacute um exerciacutecio que permite ao indiviacuteduo

193

perceber a si mesmo A partir da expectativa da iminecircncia da morte cada dia ou

momento deve ser pensado como se fosse o uacuteltimo ldquoPortanto o pensamento sobre

a morte eacute que permite a retrospecccedilatildeo e a memorizaccedilatildeo valorativa da vidardquo

(FOUCAULT 2010a p 430) Portanto eacute desse lugar enunciativo que Secircneca

produz seu discurso optanto pelo gecircnero epistolar para atraveacutes deste tanto abrir-se

diante do outro revelando seu ethos de filoacutesofo estoico como tambeacutem compartilhar

com o outro os princiacutepios da filosofia estoica colocando-se como mestre que

tambeacutem procura ser coerente com seu discurso e praacutetica conforme expectativas

impostas pelo proacuteprio ideal do cidadatildeo romano

194

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE II

Nesta segunda parte da tese o propoacutesito de enfocar a cena geneacuterica da enunciaccedilatildeo

eacute relevante por evidenciar o gecircnero epistolar como definidor do discurso

desenvolvido atraveacutes das epiacutestolas de Paulo e de Secircneca O gecircnero do discurso

cenografia ethos pathos e logos satildeo elementos indissociaacuteveis da cena geneacuterica no

ato enunciativo O posicionamento ocupado pelos enunciadores eacute o meio de

interligaccedilatildeo que toma como base o discurso constituinte

O gecircnero epistolar como concebido na Antiguidade era abrangente no sentido de

variedades no seu uso como epiacutestola filosoacutefica epiacutestola de aconselhamento

epiacutestola de consolo epiacutestola documental entre outros Como visto o gecircnero

epistolar poderia ser diversificado na sua forma de conteuacutedo e apresentaccedilatildeo mas a

sua designaccedilatildeo era mantida como epiacutestola Assim a discussatildeo sobre diferenccedilas

entre carta e epiacutestola na Antiguidade se torna inadequada visto que o termo carta

naquele momento histoacuterico natildeo funcionava como sinocircnimo de epiacutestola

Para esclarecer como o uso do termo carta adquiriu um domiacutenio semacircntico entre os

falantes Orlandi (2005 p 104) analisa o tiacutetulo do documento249 Carta da Terra e os

possiacuteveis significados que acarretam essa escolha Esta autora parte de

pressupostos teoacutericos de que ldquoas palavras natildeo significam por si mas na relaccedilatildeo com

a exterioridade que inclui os sujeitos que as falam a memoacuteria discursiva e as

condiccedilotildees de produccedilatildeordquo A primeira indagaccedilatildeo eacute sobre o uso do termo Carta ao

inveacutes de Declaraccedilatildeo de Direitos Tratado de Intenccedilotildees entre outras opccedilotildees

Primeiramente o sentido de carta migra do discurso poliacutetico global para uma

situaccedilatildeo mais privada e familiar de correspondecircncia fortalecendo a ideia de que o

mundo eacute uma grande famiacutelia Em segundo lugar o termo carta remete agrave cartografia

mapa sinalizando a ideia de territoacuterio Nessas conjecturas Orlandi (2005 p 105)

aponta que ldquoo discurso resulta da inscriccedilatildeo da liacutengua na histoacuteriardquo e do termo carta

ldquoressoam efeitos de sentidos submetidos a uma filiaccedilatildeo de falas que jaacute se

249 Carta da Terra (Earth Charter) eacute resultado de um diaacutelogo mundial que teve seus primeiros esboccedilos no Foacuterum Mundial da Eco 92 no Rio de Janeiro A Carta da Terra teve seu lanccedilamento oficial no palaacutecio da Paz em Haia no dia 29 de junho de 2000 O grande objetivo do conteuacutedo do documento eacute o da criaccedilatildeo de um mundo sustentaacutevel Disponiacutevel em

httpwww2camaralegbrresponsabilidade-socialecocamaraarquivosCARTAdaTERRA

195

estabilizaram como sendo as que organizam as outrasrdquo Desse modo natildeo haacute como

enunciar uma palavra dando a ela o sentido que se deseja pois ldquoelas significam pelo

jogo de relaccedilotildees de forccedila e de sentido (memoacuteria do dizer) no imaginaacuterio em que

estatildeo imersasrdquo Esta anaacutelise de Orlandi pode ser aplicada ao fenocircmeno da

insistecircncia do uso do termo carta ao inveacutes de epiacutestola mesmo pensando em textos

da Antiguidade Assim as colocaccedilotildees sobre o uso do termo carta apontam para

questotildees de linguagem que satildeo influenciadas pelo jogo de forccedilas de sentido e

memoacuteria do dizer como se nota tambeacutem na tentativa de transpor o uso atual do

termo carta para o de epiacutestola na Antiguidade

A discussatildeo sobre o uso dos termos carta e epiacutestola como sinocircnimo no contexto da

Antiguidade natildeo eacute simplesmente uma questatildeo de vocabulaacuterio mas inclui tambeacutem a

concepccedilatildeo de gecircnero epistolograacutefico em sua funccedilatildeo de uso abrangente na

Antiguidade O que se observa eacute que as epiacutestolas de Paulo e de Secircneca

enquadram-se no gecircnero epistolograacutefico mas se diversificam de acordo com os

subconjuntos que compotildeem o gecircnero como um todo Desse modo Paulo estabelece

sua correspondecircncia a partir do gecircnero epistolar de conselhos e Secircneca o gecircnero

epistolar filosoacutefico Vale destacar que estes gecircneros escolhidos por estes autores

natildeo mantecircm uma forma exclusiva mas se abrem para abrigar outros subconjuntos

de gecircneros Isto indica que as epiacutestolas de Paulo natildeo se limitam agraves caracteriacutesticas

do aconselhamento mas se dispotildeem para aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos

religiosos culturais e assim por diante O tom de aconselhamento eacute a forma que se

expande como base para desenvolver os propoacutesitos dos ensinamentos paulinos via

epiacutestola

Segundo Inwood (2007 p136) as epiacutestolas filosoacuteficas de Secircneca estatildeo organizadas

em forma de coleccedilatildeo fato este que lhe permite uma variedade na totalidade de

produccedilatildeo epistolar no conjunto da obra Algumas epiacutestolas satildeo mais doutrinaacuterias e

teacutecnicas algumas satildeo informais ou mesmo pessoais outras satildeo mais naturais do

que artificiais Mesmo que a coleccedilatildeo das Epistolae Morales seja formada por

epiacutestolas que apresentam diferentes propoacutesitos a constituiccedilatildeo da cenografia na

epiacutestola introdutoacuteria corrobora para a manutenccedilatildeo do gecircnero epistolar filosoacutefico

No discurso de Paulo a escolha do gecircnero epistolar direcionado pela cenografia de

um manual de aconselhamento tem como base o discurso constituinte religioso Por

um lado o judaiacutesmo eacute influenciado pela cultura heleniacutestica tanto na esfera da

196

filosofia quanto no campo da literatura Por outro lado as tradiccedilotildees judaicas250 satildeo

mantidas como tambeacutem relata Flaacutevio Josefo em Histoacuteria dos Hebreus Em sua

correspondecircncia Paulo procura harmonizar valores da cultura judaica e heleniacutestica

somando-os ao seu novo modo de conceber seu proacuteprio lugar no discurso religioso

a partir de sua conversatildeo A formaccedilatildeo educativa de Paulo na convergecircncia do

mundo oriental e ocidental serviu de base para o desempenho de sua missatildeo e seu

relacionamento com as comunidades cristatildes que ele proacuteprio ajudou organizar O

papel de Paulo como remetente de suas epiacutestolas agrave igreja de Corinto permite-lhe

demonstrar seu ethos de apoacutestolo251 missionaacuterio e conselheiro

Paralelo a Paulo Secircneca em sua carreira de escritor transita entre dois discursos

constituintes o literaacuterio e o filosoacutefico A influecircncia da cultura heleniacutestica em Secircneca

se daacute em vista de sua proacutepria decisatildeo de escolha pelo estoicismo A grande parte

dos liacutederes e disciacutepulos da escola estoica eacute de origem oriental252 Decerto esse fato

contribui para o intercacircmbio entre cultura oriental e ocidental visto que a formaccedilatildeo

intelectual desses liacutederes tomava como base a filosofia socraacutetica Quando Secircneca

escreve as trageacutedias ele lanccedila matildeo da cultura grega para construccedilatildeo do enredo e da

cultura heleniacutestica para a aplicaccedilatildeo moral de acordo com os princiacutepios da filosofia

estoica

Secircneca procura dar sua contribuiccedilatildeo agrave poliacutetica do impeacuterio romano pelo prisma da

filosofia estoica Segundo Griffin (2013 p 14) as duas obras de Secircneca De

beneficiis e De clementia marcam afinidades com o desenvolvimento da imagem

idealizada do priacutencipe

Nos uacuteltimos anos de sua vida Secircneca dedicou-se agrave filosofia e decidiu pela inclusatildeo

do gecircnero epistolar como meio mais favoraacutevel para expressatildeo de seu pensamento

e discussotildees de questotildees eacuteticas

250

Paulo escrevendo aos gaacutelatas diz E na minha naccedilatildeo excedia em judaiacutesmo a muitos da minha idade sendo extremamente zeloso das tradiccedilotildees de meus pais (Gaacutelatas 114) 251

Natildeo sou eu apoacutestolo Natildeo sou livre Natildeo vi eu a Jesus Cristo Senhor nosso Natildeo sois voacutes a minha obra no Senhor Se eu natildeo sou apoacutestolo para os outros ao menos o sou para voacutes porque voacutes sois o selo do meu apostolado no Senhor (1 Coriacutentios 912) Porque aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisatildeo esse operou tambeacutem em mim com eficaacutecia para com os gentios (Gaacutelatas 28) 251

Zenatildeo era originaacuterio da Feniacutecia Crisipo Antiacutepater e Aquedemo eram de Tarso Cleantes era da Aacutesia Menor Dioacutegenes da Babilotildenia e Apolodoro da Caldeia

197

Na segunda parte desta pesquisa nota-se que a cena geneacuterica na enunciaccedilatildeo eacute

promovida pelo gecircnero do discurso e cenografia que incorporam os trecircs elementos

do discurso ethos pathos e logos A anaacutelise do ethos de Secircneca e de Paulo

contribui para identificaccedilatildeo do posicionamento discursivo que cada um deles ocupa

no discurso A partir da posiccedilatildeo de enunciador constituiacuteda na enunciaccedilatildeo o discurso

eacute construiacutedo com a finalidade de atingir as emoccedilotildees do co-enunciador como

parceiro no ato enunciativo A cenografia eacute instituiacuteda em funccedilatildeo do pathos pois o

texto no quadro da enunciaccedilatildeo eacute voltado para o co-enunciador que deve ser

mobilizado para que haja adesatildeo aos propoacutesitos do discurso

Na terceira parte que se segue o destaque eacute para o logos concebido a partir do

modo como o discurso se desenvolve na cena enunciativa pela participaccedilatildeo do

ethos que se dirige ao pathos Os corpora253 delimitados satildeo analisados com a

finalidade de observar o funcionamento dos toacutepoi e argumentos retoacutericos nas

epiacutestolas de Secircneca e Paulo e a utilizaccedilatildeo destes no desenvolvimento dos temas

que satildeo abordados a partir da construccedilatildeo da cenografia

253

Aleacutem das seleccedilotildees dos corpora de anaacutelise que identifcam as epiacutestolas que contecircm marcas do toacutepos ldquofalar francordquo exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas como argumentos retoacutericos temas ldquoo tempordquo e ldquoo amorrdquo outras epistolas da coleccedilatildeo de Secircneca e de Paulo servem como fontes para o tratamento de diferentes questotildees

198

PARTE III

1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CONSTITUICcedilAtildeO DO DISCURSO NAS

EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO

O objetivo mais central na terceira parte da pesquisa aqui desenvolvida tem como

foco as anaacutelises que tomam como base os textos das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

e de Paulo agrave igreja de Corinto concebidos como o logos ou seja a manifestaccedilatildeo da

organizaccedilatildeo do pensamento por meio do discurso O propoacutesito impulsionador eacute

observar alguma viabilidade de apreensatildeo da construccedilatildeo de sentidos que se

verificam a partir do posicionamento discursivo de cada um desses autores em foco

na determinaccedilatildeo do uso do toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo como direcionador da

construccedilatildeo do discurso Os recursos argumentativos retirados de um tipo de arquivo

que funciona como um lugar comum no contexto histoacuterico-social do primeiro seacuteculo

dC reforccedilam a organizaccedilatildeo entimemaacutetica do discurso Busca-se observar o modo

como as escolhas desses recursos retoacutericos satildeo determinadas pelo acesso aos

discursos constituintes filosoacutefico religioso e literaacuterio Por um lado a constataccedilatildeo de

entrecruzamento entre estes discursos nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

possibilita a verificaccedilatildeo da influecircncia da filosofia herdada dos gregos e sua releitura

na cultura heleniacutestica unindo o pensamento oriental ao ocidental Por outro lado a

identificaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo no desenvolvimento do discurso e a verificaccedilatildeo

do uso dos argumentos retoacutericos na composiccedilatildeo das epiacutestolas permitem visualizar

possiacuteveis identificaccedilotildees que podem suscitar um efeito de aproximaccedilatildeo ou

afastamento entre eles O posicionamento discursivo que cada um ocupa no

processo enunciativo se reveste da influecircncia exercida pelo discurso constituinte que

caracteriza e distingue a cena enunciativa em cada gecircnero epistolograacutefico de

suporte do discurso de cada um dos autores

A visita aos lugares comuns que indicam as escolhas de Secircneca e de Paulo em

seus discursos tem em vista dois roteiros O primeiro roteiro leva em conta a nova

roupagem que os romanos estabelecem para o sentido de lugar comum a partir do

periacuteodo Heleniacutestico como um reservatoacuterio de temas disponiacuteveis a serem

reelaborados de acordo com a finalidade de quem se propotildee a fazer uso destes A

partir dessa releitura sobre os toacutepoi autores como Curtius (1993) e Thom (2003)

199

oferecem algumas contribuiccedilotildees estendendo a classificaccedilatildeo dos toacutepicos retoacutericos

para o campo da filosofia e literatura O segundo roteiro elege como guia os estudos

aristoteacutelicos na concepccedilatildeo de argumentos retoacutericos no campo da linguagem que

caracterizam a funccedilatildeo argumentativa de determinados recursos retoacutericos

Na obra Retoacuterica Aristoacuteteles inicia seu manual instrutivo estabelecendo o significado

e conceito de retoacuterica expandindo a ideia de persuasatildeo nesse campo Ele ressalta

que seu interesse primordial estaacute focado nos meios de prova no discurso por serem

estes menos valorizados e negligenciados pelos autores da arte retoacuterica de seu

tempo (Ret I 2 1356a) Aristoacuteteles recolheu dados tambeacutem das experiecircncias dos

retoacutericos que o antecederam argumentando que os tratados sobre retoacuterica jaacute

produzidos natildeo contemplavam questotildees importantes como o tratamento de

entimemas254 e a partir de entatildeo organizou todo seu escopo teoacuterico apresentando

uma forma mais pragmaacutetica para identificaccedilatildeo do funcionamento da retoacuterica

Aristoacuteteles se preocupou em definir o papel da retoacuterica em contraponto ao da

dialeacutetica delimitando a funccedilatildeo e atuaccedilatildeo de cada uma no campo da persuasatildeo

Assim ele sustenta que a persuasatildeo natildeo eacute exatamente o foco de interesse da

retoacuterica mas seu objeto de atenccedilatildeo eacute a identificaccedilatildeo de meios possiacuteveis para o

acontecimento do fenocircmeno da persuasatildeo no discurso (Ret I 2 1355b)

Nas obras Retoacuterica e Toacutepicos Aristoacuteteles dispotildee retoacuterica e dialeacutetica em um mesmo

patamar de importacircncia mas com suas funccedilotildees bem demarcadas Sobre esta

questatildeo Segurado e Campos faz a seguinte observaccedilatildeo

Nestes termos e conforme Aristoacuteteles natildeo ignora a dialeacutectica torna-se uma disciplina afim da retoacuterica nos seus objectivos jaacute que ambas tecircm por finalidade mais a laquoopiniatildeoraquo (δοξα) do que o laquosaberraquo (επιστημη) mas ao mesmo tempo distinguem-se pelo seu modo de actuar na medida em que uma pratica o diaacutelogo e a outra o discurso e mesmo que ambas recorram ao uso dos laquolugares-comunsraquo (τοπόι) eacute diferente o que para cada uma significam esses lugares (SEGURADO E CAMPOS 2007 p 88)

Essa dualidade retoacuterica e dialeacutetica aparece tambeacutem na epiacutestola oitenta e nove de

Secircneca a Luciacutelio em sua exposiccedilatildeo sobre um contraponto entre filosofia e

254

Em sua nota explicativa da traduccedilatildeo do Livro da Retoacuterica Alexandre Jr (2005 p 90) informa que entimema eacute um silogismo retoacuterico isto eacute a forma dedutiva de argumentaccedilatildeo retoacuterica que tem no paradigma a sua forma indutiva Assim o entimema se torna mais viaacutevel no campo da retoacuterica por ser mais econocircmico em termos de linguagem visto que representa uma siacutentese do silogismo Na afirmativa de Descartes ldquoPenso logo existordquo estaacute contido um entimema que resume o silogismo eu penso aquele que pensa existe logo eu existo

200

sabedoria Nessa explanaccedilatildeo Secircneca faz uma retrospectiva sobre algumas

concepccedilotildees de filosofia destacando a triparticcedilatildeo eacutetica fiacutesica e loacutegica255

Na sequecircncia de suas ideias Secircneca resume sua abordagem sobre filosofia em

dois campos filosofia natural e filosofia racional Nesses termos a filosofia natural

divide-se em duas partes o estudo dos seres corpoacutereos e o estudo dos seres

incorpoacutereos256 Quanto agrave filosofia racional Secircneca assim argumenta

Resta-me indicar a divisatildeo da filosofia racional Todo discurso ou eacute contiacutenuo ou eacute dividido por dois interlocutores em sistema de pergunta e resposta Ao estudo deste segundo tipo costuma chamar-se διαλεκτική (dialektikecirc) ao do primeiro ρητορική (rhetorikecirc) A ρητορική ocupa-se das palavras das ideias e da estrutura do discurso a διαλεκτική divide-se em duas partes os termos e os significados isto eacute os conceitos que queremos exprimir e os vocaacutebulos pelos quais os exprimimos (Ep 8917)

Secircneca concorda com alguns filoacutesofos que o antecederam a respeito de

determinadas concepccedilotildees de retoacuterica e dialeacutetica apontando que cada uma destas

tem uma funccedilatildeo especiacutefica na construccedilatildeo do discurso e ao mesmo tempo as situa

no campo da filosofia Secircneca demonstra rejeitar dos proacuteprios estoicos que o

antecederam257 certos aspectos da eloquecircncia que na epiacutestola 752 ele denomina

de artifiacutecios dos oradores Nessa mesma perspectiva Paulo coloca sua posiccedilatildeo

diante dos destinataacuterios de suas epiacutestolas procurando afastar-se da ideia de

eloquecircncia e assim coloca sua defesa ldquoEu mesmo quando fui ter convosco irmatildeos

natildeo me apresentei com o prestiacutegio da palavra ou da sabedoria258 para vos anunciar

255

Como informa Reale (1994a p 107) a triparticcedilatildeo na filosofia foi feita por Xenoacutecrates tornando-se o eixo de todo o pensamento da era heleniacutestica Xenoacutecrates (406-314 aC) era disciacutepulo de Platatildeo e foi seu segundo sucessor na academia 256

Segundo Gazolla (1999 p 14) a noccedilatildeo de incorpoacutereo representa a reflexatildeo dogmaacutetica sobre a natureza e eacute ponto baacutesico para a stoa O poacutertico resolveu inovar na ontologia quando nomeou os quatro incorpoacutereos o tempo o lugar o vazio e o exprimiacutevel como ldquoquase-seresrdquo em contraste com os corpoacutereos seres reais agentes-pacientes 257

Alexandre Jr (2005 p30) comenta que a definiccedilatildeo aristoteacutelica de retoacuterica entra bem cedo em concorrecircncia com a de Crisipo Cleantes e os demais que contemplam a retoacuterica como ars bene dicendi Estes filosoacutefos mencionados tendem para a composiccedilatildeo esteacutetico-estiliacutestica do discurso em detrimento da eficaacutecia argumentativa 258

Segundo Bird (2008 p377-379) [hellip] however when Paul says that he did not use lsquoeloquence or superior wisdomrsquo in his proclamation (1 Cor 21) what he probably meant is that he did not use lsquofloweryrsquo or lsquoornamentedrsquo rhetoric in his preaching the type that was so prized and esteemed by the Corinthians That way all attention would focus on the message and not the messenger Bruce Winter contends that what Paul rejects here is sophistry or the use of oratory in preaching that draws attention to the rhetorical prowess of the messenger rather than drawing attention to the content of the message [hellip] Even so primacy should be given to the epistolographic nature of Paulrsquos writings with rhetorical categories being employed only secondarily to supplement their potential effect as a form of persuasive discourse (No entanto quando Paulo diz que natildeo usou eloquumlecircncia ou sabedoria superior em sua proclamaccedilatildeo (1Cor 21) o que ele provavelmente quis dizer eacute que ele natildeo usou retoacuterica florida ou ornamentada em sua pregaccedilatildeo o modo tatildeo estimado e apreciado pelos coriacutentios Dessa forma toda a atenccedilatildeo se concentraria na mensagem e natildeo no mensageiro Bruce

201

o ministeacuterio de Deusrdquo (1Cor 21) Segundo Alexandre Jr (2005 p 45) eacute relevante

observar que Aristoacuteteles considera o valor do estilo no discurso mas no sentido de

que seu funcionamento deve estar voltado para o auxiacutelio da argumentaccedilatildeo e natildeo

necessariamente para teacutecnicas de ornamentaccedilatildeo

Quintiliano na obra Institutio Oratoria (II XV15-21) remonta agraves diferentes definiccedilotildees

de retoacuterica inclusive esta de Aristoacuteteles Ele desenvolve uma seacuterie de argumentos

quanto agraves concepccedilotildees de retoacuterica como persuasatildeo e concluiu que nessa

perspectiva uma sobrecarga de responsabilidade recai sobre o orador Segundo

Quintiliano a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles que coloca a retoacuterica na funccedilatildeo da descoberta

dos meios adequados agrave persuasatildeo no discurso ainda oferece um problema maior

pois ldquoesta definiccedilatildeo tem o defeito de se restringir o papel do orador agrave invenccedilatildeo pois

sem elocuccedilatildeo natildeo haacute discursordquo (Inst Or II 1514) Quintiliano faz uma retrospectiva

agraves demais conceituaccedilotildees de retoacuterica mencionando inclusive as posiccedilotildees de Platatildeo

em Goacutergias e Fedro a de Isoacutecrates no campo da filosofia e a de Ciacutecero como

scientia civilis (ciecircncia de estado ou poliacutetica) Por fim Quintiliano (Inst Or V 10 54)

expressa sua opiniatildeo mantendo seu conceito rhetorice est bene dicendi scientia (a

retoacuterica eacute a ciecircncia de bem dizer) A este conceito ele acrescenta que a virtude do

discurso estaacute diretamente ligada agraves qualidades do orador ou seja o preparo

intelectual e conhecimento do assunto coerentes com o modo de vida do emissor do

discurso Quintiliano interliga a sua concepccedilatildeo de retoacuterica agrave dos estoicos259 ldquoa

ciecircncia de falar com propriedaderdquo260 Quanto esta posiccedilatildeo de Quintiliano Secircneca

anteriormente jaacute se mostrava defensor da virtude do orador como requisito para sua

proacutepria credibilidade no discurso O conselho dado a Luciacutelio expressa essa ideia da

teoria ser condizente com a praacutetica

O nosso objetivo uacuteltimo deve ser este dizer o que sentimos sentir o que dizemos isto eacute pormos a nossa vida de acordo com as nossas palavras Imagina um mestre qualquer se a impressatildeo que tu sentes contemplando as suas accedilotildees eacute idecircntica agrave que tens ouvindo o seu discurso esse mestre atingiu o seu propoacutesito Observemos a qualidade dos seus atos a fluidez do seu discurso entre ambos a mais perfeita unidade (Ep 754)

Winter afirma que o que Paulo rejeita aqui eacute o sofisma ou o uso da oratoacuteria na pregaccedilatildeo que chama a atenccedilatildeo para as proezas retoacutericas do mensageiro em vez de chamar a atenccedilatildeo para o conteuacutedo da mensagem [] Mesmo assim a primazia deve ser dada agrave natureza epistolograacutefica dos escritos de Paulo com categorias retoacutericas sendo empregadas apenas secundariamente para complementar seu efeito potencial como uma forma de discurso persuasivo) 259

Alexandre Jr (2005 30) informa que a concepccedilatildeo da retoacuterica como falar bem eacute identifacada nos estoicos Criacutesipo e Cleante 260

Traduccedilatildeo de Antonio Fidalgo

202

Quintiliano assume tambeacutem essa posiccedilatildeo estoica a respeito da retoacuterica e manteacutem

certo distanciamento da postura de Ciacutecero em relaccedilatildeo ao objetivo da retoacuterica como

persuasatildeo argumentando que o dinheiro tambeacutem persuade assim como a

autoridade ou dignidade do orador (II XV6) Ao relacionar os nomes de escritores

gregos e romanos ao longo da Antiguidade Quintiliano apresenta uma siacutentese sobre

cada um e se posiciona apontando a identificaccedilatildeo de Ciacutecero com Platatildeo

Dos filoacutesofos dos quais Ciacutecero confessa haver buscado muitiacutessimo de sua eloquecircncia quem duvida de que Platatildeo foi o mais importante seja pela sua agudez de raciociacutenio seja por sua capacidade de eloquecircncia que eacute divina e quase homeacuterica Ele se eleva muito acima da conversaccedilatildeo linear a que os gregos chamaram de ldquolinguagem pedestrerdquo de tal maneira que a mim pareccedila inspirado natildeo pelo talento de um ser humano mas por um oraacuteculo deacutelfico (Inst Or X 1 81)

Na verdade pode-se avaliar que Ciacutecero soube aproveitar dos benefiacutecios das

contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles quanto agrave retoacuterica as de Platatildeo no campo da dialeacutetica e

de outros gregos tambeacutem Ele explorou dessas fontes o que melhor poderia ser

aplicaacutevel ao seu proacuteprio gosto e estilo de acordo com o gecircnero de discurso

judiciaacuterio ao qual ele se dedicou como orador e no campo da prosa literaacuteria latina

em sua faceta de escritor de tratados e epiacutestolas

Essa retrospectiva sucinta que faz remissatildeo a alguns conceitos de retoacuterica tem

como propoacutesito o de justificar a escolha de contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles como base

para a anaacutelise dos argumentos retoacutericos no corpus delimitado nesta pesquisa Pelas

colocaccedilotildees de Quintiliano nota-se que a retoacuterica estoica natildeo compactua em alguns

pontos com a aristoteacutelica Tomando certa distacircncia dessas avaliaccedilotildees de Quintiliano

fica evidente que algumas contribuiccedilotildees herdadas de Aristoacuteteles quanto aos

recursos de linguagem que promovem a argumentaccedilatildeo no discurso podem servir a

qualquer gecircnero discursivo Por um lado Aristoacuteteles defende que o raciociacutenio

dedutivo na expressatildeo da linguagem em forma de entimemas se efetua por meio

de afirmativas e postulados sendo produtivo na linguagem pela economia na

exposiccedilatildeo de ideias O entimema eacute um silogismo reduzido pois evita a foacutermula

silogiacutestica de premissa maior premissa menor e conclusatildeo As maacuteximas e os

aforismos se enquadram na forma entimemaacutetica pois quando Descartes faz a

declaraccedilatildeo ldquopenso logo existordquo o entimema foi suficiente para a expressatildeo da sua

ideia No entimema uma ou mais partes do silogismo podem ser omitidas pois as

restantes satildeo deduzidas no proacuteprio discurso Por outro lado o exemplo em toda a

sua dimensatildeo clarifica o discurso por se efetivar por meio do raciociacutenio indutivo de

203

forma convincente pela forccedila do testemunho da ligaccedilatildeo de fatos seja no acircmbito da

historicidade ou mesmo da ficcionalidade O raciociacutenio dedutivo parte de uma ideia

geral de um todo para uma aplicaccedilatildeo particular como o caso do uso das

metaacuteforas O exemplo estaacute no campo da induccedilatildeo porque parte de um caso particular

para aplicaccedilotildees gerais nos ensinamentos Aleacutem dessas vantagens como instruccedilotildees

na organizaccedilatildeo do discurso leva-se em conta tambeacutem que Ariacutestoacuteteles assume uma

posiccedilatildeo mais neutra em relaccedilatildeo ao sistema retoacuterico delegando ao orador a

responsabilidade do uso dos recursos da persuasatildeo Assim abre-se uma opccedilatildeo

para os estudos atuais da linguagem como oportunidade de se olhar os textos da

Antiguidade pelo vieacutes da retoacuterica aristoteacutelica de acordo com as proposiccedilotildees da

anaacutelise do discurso de base enunciativa

Para determinar um corpus de anaacutelise foi necessaacuteria uma leitura preacutevia que

delimitasse um recorte que permitisse a apreensatildeo de algumas ideias contidas nas

epiacutestolas de Secircneca e Paulo O ponto inicial resulta da verificaccedilatildeo da construccedilatildeo da

cenografia que se constitui a partir da introduccedilatildeo da produccedilatildeo das epiacutestolas em

questatildeo em que gecircnero do discurso (logos) enunciador (ethos)261 e co-enunciador

(pathos) estatildeo imbricados na trama enunciativa

Nesta terceira parte torna-se fundamental o aproveitamento da reuniatildeo dos

conteuacutedos que jaacute foram expostos nas partes anteriores como embasamento teoacuterico

e contextual para auxiliar nos procedimentos de anaacutelise Na segunda parte jaacute foi

identificada a cenografia e tambeacutem os dois elementos do discurso ethos e pathos

Mediante os resultados obtidos desses dois meios de prova na elaboraccedilatildeo do

discurso congrega-se nesta terceira parte a anaacutelise do desempenho do logos como

o terceiro elemento dos meios de prova De acordo com a meta planejada tendo em

vista os objetivos propostos no introito deste trabalho intensifica-se nesta terceira

parte o interesse em observar como em suas epiacutestolas Secircneca toma como base o

discurso filosoacutefico valendo-se tanto do discurso literaacuterio como do religioso Indaga-

se tambeacutem como Paulo tendo como referecircncia o discurso religioso deixa

transparecer que em suas epiacutestolas eacute perceptiacutevel o atravessamento do discurso

261

Como jaacute foi mencionado anteriormente (p 93 nota 88) a palavra ethos na anaacutelise do discurso de base enunciativa natildeo eacute acentuada por esta ser um junccedilatildeo de dois termos usados distintamente no grego claacutessico Em nota Maingueneau (2008a p 55) observa que o ldquoethos potildee problemas de ortografia se quisermos respeitar as convenccedilotildees usuais em mateacuteria de palavras gregas teriacuteamos de escrevecirc-la com um ecirc mas muitos usam um simples e o que tambeacutem faccedilo aquirdquo Seguindo a mesma praacutetica de natildeo acentuar a palavra ethos o mesmo seraacute feito em relaccedilatildeo ao termos pathos e logos

204

filosoacutefico e literaacuterio Enfim a recorrecircncia aos trecircs discursos262 identificados eacute de uso

comum entre os dois autores estudados Resta observar de que forma esses

discursos constituintes no seu conjunto promovem a discursividade na cena

enunciativa das epiacutestolas de cada um desses enunciadores abordados

Eacute oportuno registrar que esta terceira parte da pesquisa se firma na concepccedilatildeo de

retoacuterica estruturada por Aristoacuteteles visto que esta serve tambeacutem de fonte para as

construccedilotildees teoacutericas da retoacuterica latina nova retoacuterica como tambeacutem da anaacutelise do

discurso francesa de base enunciativa Como jaacute mencionado na primeira parte

desta pesquisa ressalta-se a contribuiccedilatildeo de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p

6) na composiccedilatildeo teoacuterica que funda a nova retoacuterica partindo de formulaccedilotildees

herdadas de Aristoacuteteles amplificando a funccedilatildeo do auditoacuterio na oratoacuteria para a funccedilatildeo

do leitor na escrita Este eacute um aspecto primordial nos estudos de Maingueneau

(2005 p 69) ao instituir em suas pesquisas a importacircncia da identificaccedilatildeo do ethos

na figura do enunciador no discurso Esta elaboraccedilatildeo teoacuterica de Maingueneau se

fundamenta nos postulados em que Aristoacuteteles (Ret I 2 1356a) situa suas

instruccedilotildees no campo da retoacuterica apontando os trecircs elementos constitutivos da

enunciaccedilatildeo referentes ao caraacuteter do enunciador (ecircthos) as emoccedilotildees que o

enunciador desperta no co-enunciador (paacutethos) e o argumentos retoacutericos

desenvolvidos no discurso (loacutegos)

Depois de identificadas as cenografias que delineiam o direcionamento dos

discursos de Secircneca e de Paulo produzidos atraveacutes dos textos de suas epiacutestolas

observou-se que a partir destas os temas identificados constituem-se como

alavancas que direcionam a argumentaccedilatildeo na cena enunciativa Na organizaccedilatildeo dos

discursos a retoacuterica se manifesta atraveacutes de marcas linguiacutesticas que podem ser

observadas nos textos caracterizando as fontes de lugares comuns de onde Secircneca

e Paulo retiram os meios de argumentaccedilatildeo Os exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas satildeo

auxiliares na estrateacutegia argumentativa pois estes recursos fortalecem os entimemas

ou seja as premissas afirmativas e opiniotildees satildeo sustentadas pelo uso desses

262

Mircea Eliacuteade (1992 p5) expotildee que o sagrado na Antiguidade pertence ao campo da religiatildeo e Teofrasto (372-287) que sucedeu a Aristoacuteteles na direccedilatildeo do Liceu pode ser considerado o primeiro historiador grego das religiotildees segundo Dioacutegenes Laeacutercio (V 48) Teofrasto compocircs uma histoacuteria das religiotildees em seis livros O discurso religioso tambeacutem eacute presente na filosofia estoica e desse modo o discurso de Secircneca eacute atravessado pelos trecircs discursos constituintes filosoacutefico literaacuterio e religioso O mesmo sucede no discurso de Paulo em relaccedilatildeo ao atravessamento dos trecircs discursos religioso filosoacutefico e literaacuterio

205

recursos argumentativos De acordo com as contribuiccedilotildees de Thom (2003) os toacutepoi

podem ser classificados em tipos designados como toacutepos retoacuterico toacutepos literaacuterio e

toacutepos filosoacutefico-moral Os toacutepicos retoacutericos satildeo identificados como meios de

argumentaccedilatildeo na construccedilatildeo entimemaacutetica do discurso No desenvolvimento dos

temas tempo e amor nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo se feita uma anaacutelise

detalhada quanto aos toacutepoi de acordo com a classificaccedilatildeo de Thom podem ser

distinguidos toacutepos retoacuterico e toacutepos filosoacutefico Nesta tese natildeo haacute um propoacutesito de

anaacutelise de todas as ocorrecircncias dos toacutepoi nos temas ldquotempo e amorrdquo desenvolvidos

nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo mas satildeo delimitados trecircs toacutepicos de cada tema e

identificados alguns toacutepoi que norteiam as argumentaccedilotildees nas abordagens do tema

geral

O toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo contribui para a organizaccedilatildeo e direcionamento

do discurso pois eacute instaurado a partir da cenografia constituiacuteda nas epiacutestolas dos

autores em pauta Ainda os temas filosoacuteficos identificados nas epiacutestolas distribuem-

se em uma seacuterie de subtemas como mostrado nos quadros 2 e 3 nas p 26 e 27

apresentado na introduccedilatildeo As divisotildees de cada tema corroboram para construccedilatildeo

de sentidos do tema geral funcionando como toacutepicos Os recursos retoacutericos e o

toacutepos ldquofalar francordquo permeiam as epiacutestolas de Secircneca e Paulo conforme os discursos

constituintes que os direcionam adquirindo diferentes significados na funccedilatildeo

argumentativa no gecircnero epistolar

A identificaccedilatildeo e anaacutelise deste toacutepos no corpus selecionado integra o capiacutetulo 2

desta terceira parte da tese como distinccedilatildeo para o modo como Secircneca e Paulo

desenvolvem o gecircnero epistolar segundo as anaacutelises de Foucault relacionadas ao

tema parresiacutea Na primeira parte deste trabalho estatildeo apontadas algumas

concepccedilotildees sobre a parresiacutea como falar franco interligado ao toacutepos ldquoeacute preciso dizer

a verdaderdquo como ponto de partida para o uso de argumentos que segundo

Aristoacuteteles (Ret III 17 1418a) satildeo auxiliares aos entimemas que satildeo formados

pelos conceitos e premissas que datildeo estrutura organizacional ao discurso Destaca-

se a ocorrecircncia de exemplos como ldquomais apropriados ao discurso deliberativordquo263

Aproveitam-se tambeacutem de Aristoacuteteles as consideraccedilotildees de que as metaacuteforas mais

produtivas na prosa satildeo as construiacutedas por analogia (Ret III 10 1411a) 263

Aristoacuteteles (Ret I 1 1354b) aponta que ldquono gecircnero deliberativo o ouvinte julga sobre coisas que o afetam pessoalmente e portanto o conselheiro apenas precisa de demonstrar a exatidatildeo do que afirmardquo

206

funcionando como forma de estilo e meio argumentativo Nesses termos Aristoacuteteles

acrescenta que ldquoos siacutemiles ateacute certo ponto funcionam como metaacuteforas pois

expressam-se sempre partindo de dois termos tal como a metaacutefora por analogiardquo

(Ret III 1413a)

O segundo capiacutetulo desta terceira parte tambeacutem tem a funccedilatildeo de apontar certos

recursos retoacutericos presentes na elaboraccedilatildeo de determinadas epiacutestolas de Secircneca a

Luciacutelio e de Paulo agrave igreja de Corinto Nesses discursos em destaque podem ser

observados os usos de estrateacutegias retoacutericas sendo bastante recorrentes os

exemplos que ora remetem a um tempo histoacuterico de determinadas situaccedilotildees jaacute

valorizadas no imaginaacuterio do leitor ora a disposiccedilatildeo do proacuteprio testemunho do

enunciador A citaccedilatildeo traz para o discurso outras vozes que podem atuar como

autoridades concordantes com determinadas posiccedilotildees discursivas funcionando

como uma evidecircncia de que o discurso eacute constituiacutedo no bojo do interdiscurso Em

termos de citaccedilatildeo Aristoacuteteles (Ret II 20 1393a) identifca o uso de maacuteximas no

campo do pensamento dedutivo ldquoAs provas comuns satildeo de dois gecircneros exemplo

e entimema pois a maacutexima eacute uma parte do entimemardquo

A metaacutefora exerce uma funccedilatildeo de auxiacutelio agrave compreensatildeo de conceitos abstratos

pela imagem do concreto que ela fornece como similaridade em uma funccedilatildeo

analoacutegica No que se refere ao uso dessas estrateacutegias mencionadas Foucault

(2010a p122) em sua avaliaccedilatildeo sobre o papel da retoacuterica refere-se a esta como ldquoo

inventaacuterio e a anaacutelise dos meios pelos quais pode agir-se sobre o outro mediante o

discursordquo

No terceiro capiacutetulo toma-se como base a primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio em

que o uso do tema ldquoo tempordquo evidencia-se logo na constituiccedilatildeo da cenografia de

um tratado filosoacutefico estoico no campo da eacutetica que atraveacutes do tema identificado

direciona toda a enunciaccedilatildeo Algumas marcas linguiacutesticas que aparecem na primeira

epiacutestola no tratamento retoacuterico favorecem a construccedilatildeo discursiva do tema

podendo ser identificadas por meio de expressotildees metafoacutericas264 que revelam certos

264

Lakoff e Johnson (2002 p 50) sustentam que ldquoexpressotildees metafoacutericas em nossa liacutengua satildeo ligadas a conceitos metafoacutericos de uma maneira sistemaacuteticardquo No exemplo ldquoComecemos atingida a velhice a preparar nossa bagagemrdquo o contexto em que o termo bagagem eacute usado e identificado como expressatildeo metafoacuterica ele aponta para o Conceito metafoacuterico A VIDA Eacute UMA VIAGEM Portanto a expressotildees metafoacutericas usadas pelos falantes emergem no contexto de uma determinada cultura contribuindo para identificar os conceitos metafoacutericos que norteiam o comportamento e valores de uma sociedade Esses autores citados satildeo referecircncias nos estudos da metaacutefora

207

conceitos metafoacutericos a elas subjacentes Este conceito anunciado na epiacutestola de

abertura identifica o tempo como um valor de prestiacutegio para a filosofia estoica em

torno do qual satildeo intriacutensecas as noccedilotildees de vida velhice e morte Para os estoicos a

partir do nascimento tambeacutem se inicia a caminhada para a morte e a velhice eacute um

processo que se instaura a partir do nascimento culminando com a morte Secircneca

define que ldquoa filosofia eacute a lei que rege a totalidade da vidardquo (Ep 9439) Eacute nessa

trajetoacuteria que Secircneca desenvolve diferentes toacutepicos sobre o tempo utilizando-se do

toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo determinante no seu modo de conduccedilatildeo do

discurso O tema em destaque eacute desenvolvido por meio de recursos com base em

toacutepicos que identificam lugares comuns entre os autores expressotildees metafoacutericas

que sinalizam conceitos metafoacutericos norteadores de posicionamentos discursivos

exemplos histoacutericos ou pessoais e citaccedilotildees provindas tanto do discurso filosoacutefico

quanto do literaacuterio em suas variadas dimensotildees265

Com a finalidade de fornecer uma visibilidade do recorte assumido na pesquisa do

tema ldquoo tempordquo um quadro esquemaacutetico apresentado na introduccedilatildeo p 26 serve

como identificaccedilatildeo da seleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio destacadas na

formaccedilatildeo do corpus Estas foram delimitadas como fonte para as anaacutelises de

acordo com a constataccedilatildeo de diferentes abordagens no desenvolvimento do tema

em questatildeo

No quarto capiacutetulo desta terceira parte elege-se como corpus de anaacutelise

determinados versiacuteculos de capiacutetulos contidos nas duas epiacutestolas do apoacutestolo Paulo

agrave igreja de Corinto A cenografia que se instaura a partir da introduccedilatildeo da primeira

epiacutestola aponta para um manual de aconselhamento em que diferentes partes

integrantes do tema ldquoo amorrdquo se desdobram em variados aspectos funcionando

como toacutepicos Na organizaccedilatildeo do corpus um quadro esquemaacutetico jaacute mostrado na p

27 apresenta as abordagens que compotildeem o tema A heterogeneidade mostrada e

a constitutiva sendo concebidas como manifestaccedilatildeo dialoacutegica da linguagem podem

ser apreendidas atraveacutes de recursos retoacutericos acionados de lugares comuns tais

como o exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora O toacutepos ldquofalar francordquo eacute o direcionador do

conceitual e definem que os conceitos metafoacutericos apreendidos atraveacutes das expressotildees metafoacutericas devem ser grafados em letras maiuacutesculas o que tambeacutem eacute feito neste trabalho 265

Na introduccedilatildeo da Retoacuterica de Aristoacuteteles Alexandre Jr (2005 p 98) atenta para o valor dos exemplos das citaccedilotildees e das paraacutefrases nas obras antigas como fontes de informaccedilotildees sendo muitas vezes uma uacutenica indicaccedilatildeo de registros histoacutericos Autores como por exemplo Dioniacutesio de Halicarnasso registraram algumas informaccedilotildees sobre obras que acabaram se perdendo ou ainda delas restaram pouquiacutessimos fragmentos como mencionado em nota por Alexandre Jr

208

modo de dizer Essas estrateacutegias argumentativas contribuem para a compreensatildeo

da discursividade que se instaura no discurso por meio do inter-relacionamento com

outros discursos

Nas consideraccedilotildees finais da parte III satildeo identificados alguns paralelos comparativos

entre os corpora em destaque No primeiro plano eacute relevante a percepccedilatildeo da

apropriaccedilatildeo de recursos argumentativos originaacuterios de um lugar comum na

constituiccedilatildeo retoacuterica do discurso No segundo plano busca-se observar o

funcionamento daqueles recursos retoacutericos comuns aos dois autores na aplicaccedilatildeo

do desenvolvimento dos temas instituiacutedos a partir da identificaccedilatildeo da cenografia que

se instaura a partir do discurso constituinte Sabe-se tambeacutem que o entrecruzamento

entre os discursos constituintes filosoacutefico literaacuterio e religioso no processo

enunciativo resulta em certo movimento que ora pode causar um efeito de

aproximaccedilatildeo ora de afastamento de posicionamentos discursivos entre os dois

autores como apontado na exposiccedilatildeo dos pontos conclusivos no fechamento da

pesquisa

209

2 TOacutePOS FILOSOacuteFICOMORAL E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NAS

EPIacuteSTOLAS

Um dos mecanismos de abordagem dos toacutepoi como concebido na Antiguidade eacute a

identificaccedilatildeo de temas recorrentes sempre retomados e retirados das fontes dos

lugares comuns em diferentes eacutepocas Em suas pesquisas Curtius (1999 p121)

observa que ldquono antigo sistema da retoacuterica a toacutepica eacute o celeiro de provisotildeesrdquo Os

autores na Antiguidade utilizavam temas de um lugar comum como uma espeacutecie de

arquivo de acesso aos mais diversos assuntos266 descobrindo neles facetas ainda

natildeo exploradas ou mesmo dando uma interpretaccedilatildeo ainda natildeo ventilada Thom

(2003 p 82) aproveita-se das contribuiccedilotildees de Curtius e ordena as questotildees sobre

os toacutepoi dividindo-os em trecircs grupos de acordo com a adequaccedilatildeo ao gecircnero de

discurso o toacutepos retoacuterico especificamente caracterizado por sua funccedilatildeo nas

estrateacutegias argumentativas o toacutepos literaacuterio tipicamente recorrente na construccedilatildeo

poeacutetica o toacutepos filosoacutefico como organizador dos temas no desenvolvimento do

diferentes discursos sendo mais adequados ao campo da moral da eacutetica e da

religiatildeo

Em sua aula inaugural no Collegravege de France267 Hadot (2012 p 36) aponta que

muitos toacutepoi recorrentes na Antiguidade mantiveram sua permanecircncia na cultura

ocidental como modelos preacute-fabricados que podem ser identificados por meio de

metaacuteforas e maacuteximas e que para o escritor ou pensador se mostram indispensaacuteveis

para expressatildeo do pensamento Hadot cita como exemplo a maacutexima ldquoconhece-te a ti

mesmordquo e a metaacutefora ldquoa forccedila da verdaderdquo Na continuidade de sua exposiccedilatildeo sobre

os toacutepoi da Antiguidade e a presenccedila desses recursos no contexto da

contemporaneidade Hadot (2012 p 38) anuncia que no seu curso a ser ofertado a

anaacutelise dos toacutepicos da Antiguidade parte do aforismo de Heraacuteclito conhecido como

ldquoa natureza gosta de se esconderrdquo A proposta consiste em analisar a trajetoacuteria do

uso deste aforismo observando ldquoos significados que a foacutermula tomaraacute ao longo da

Antiguidade e ulteriormente em funccedilatildeo da evoluccedilatildeo da ideia de naturezardquo Nesse

266

Curtius (1999 p 133) apresenta o toacutepos exordial ldquoDeve-se evitar a preguiccedilaldquo Satildeo citados alguns autores da Antiguidade como Horaacutecio Oviacutedio Secircneca Marcial que tratam desse tema Curtius observa que ldquoo toacutepos da preguiccedila pode chegar a tal ponto que escrever poesia eacute aconselhado como remeacutedio contra a ociosidade e o viacuteciordquo No texto biacuteblico tambeacutem haacute presenccedila desse toacutepos ldquoVai ter com a formiga oacute preguiccediloso olha para os seus caminhos e secirc saacutebiordquo (Proveacuterbios 66) 267

Pierre Hadot pronunciou sua aula inaugural da cadeira de histoacuteria do pensamento heleniacutestico e romano intitulada Elogio da Filosofia Antiga em 18 de fevereiro de 1983

210

mesmo contexto do jaacute-dito que se atualiza Hansen (2012 p 168) observa que ldquoos

grandes autores satildeo lidos para colher aqui e ali certo nuacutemero de sentenccedilas uacuteteis agrave

causa que eacute expostardquo Nessa mesma linha de raciociacutenio Hansen faz as seguintes

alegaccedilotildees

Quando o orador fala eficazmente compotildee a memoacuteria do destinataacuterio como reconhecimento do que eacute dito para isso repete os lugares comuns que satildeo patrimocircnio da memoacuteria coletiva especificando as qualidades que os particularizam como se estivessem muito proacuteximos dos ouvintes (HANSEN 2012 p 170)

Mediante essa formulaccedilatildeo de Hansen eacute possiacutevel conceber que muitos toacutepoi podem

ser desenvolvidos com base em exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas e que cada um

destes tem sua validade arquivada na memoacuteria coletiva Quando se trata do gecircnero

epistolar alguns toacutepoi e argumentos retoacutericos satildeo constitutivos deste proacuteprio gecircnero

Entatildeo pode-se afirmar que o toacutepos ldquofalar francordquo eacute condutor da escrita das epiacutestolas

de Secircneca e Paulo

21 TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL ldquoFALAR FRANCOrdquo

[] aquilo que se trata na parresiacutea eacute uma espeacutecie de retoacuterica proacutepria (Foucault 2010a p 328)

Ao formular seus postulados sobre retoacuterica Aristoacuteteles condiciona a noccedilatildeo de toacutepos

em seu funcionamento como elemento do entimema na constituiccedilatildeo do discurso

Por meio da elaboraccedilatildeo e organizaccedilatildeo de toacutepicos retoacutericos inerentes aos trecircs

gecircneros do discurso (deliberativo judiciaacuterio e epidiacutetico) Aristoacuteteles contribui com um

repertoacuterio de opccedilotildees que funciona como um ponto de partida

Na cultura greco-romana a ideia de toacutepicos se aplica tambeacutem agrave produccedilatildeo de textos

literaacuterios e filosoacuteficos como pode ser destacado em Filodemo268 em sua obra

filosoacutefica intitulada Peri Parresiacutea Silva (2009 p 85) indica em sua pesquisa que a

parresiacutea moral e filosoacutefica comeccedila a adquirir importacircncia a partir do momento em

que seu sentido de liberdade de expressatildeo passa a perder forccedila na esfera

268

ldquoFilodemo de Gadara grego originaacuterio do Oriente-Proacuteximo dirige-se primeiramente a Atenas junto ao epicurista Zenatildeo de Siacutedon e depois a Roma nos anos setenta aC onde se torna amigo confidente e diretor de consciecircncia de L Calpurnius Piso Caesonius sogro de Ceacutesar e cocircnsul em 58 aC (sobre esta relaccedilatildeo cf Gigante La Bibliotheque de Philodeme et leacutepicuriacutesme romaIacuten opeit capo 1) antes de instalar-se definitivamente em Herculano na Vila hoje chamada dos Papyri propriedade de Lucius Piso cuja biblioteca encerrava numerosos e importantes textos epicuristasrdquo (FOUCAULT 2010a p 180 nota 27)

211

democraacutetica da poliacutetica Assim a ideia de parresiacutea falar franco no periacuteodo

Heleniacutestico passa a ser valorizada nos relacionamentos interpessoais como um

atrativo na manutenccedilatildeo da amizade Filodemo era epicurista contemporacircneo de

Ciacutecero e produziu suas obras em grego tanto no campo da literatura quanto no da

poesia Segundo informaccedilotildees de Silva (2009 p 97) em sua obra Peri Parresiacutea

Filodemo enxerta alguns toacutepicos ao tema parresiacutea de acordo com suas aplicaccedilotildees

aos meacutetodos educativos da escola epicurista Alguns toacutepoi no mesmo campo

semacircntico satildeo explorados em forma de toacutepicos Entre estes podem ser destacados

a criacutetica franca por parte do mestre e do disciacutepulo a disposiccedilatildeo para o jogo

parresiaacutestico ou seja a disposiccedilatildeo do interlocutor em ouvir a verdade e dela se

apropriar Outro toacutepos em destaque eacute o da importacircncia da parresiacutea na conservaccedilatildeo

dos laccedilos de amizade entre os participantes da comunidade epicurista

Em sua busca em compreender o funcionamento dos toacutepoi na Antiguidade Thom

(2003 p 570) observa que o universo da moral no mundo greco-romano eacute dividido

em regiotildees ou toacutepoi e cada um tem a sua proacutepria estrutura interna Os toacutepoi

tambeacutem satildeo conectados com outros pelas ligaccedilotildees semacircnticas Por exemplo o

toacutepos da amizade eacute ligado ao toacutepos falar franco e assim funda-se uma intricada

rede de inter-relaccedilotildees entre os toacutepoi A partir destas constataccedilotildees verifica-se que a

moral no mundo antigo pode ser mapeada em termos de toacutepoi e um autor pode usaacute-

los como referecircncias e agraves vezes uma simples alusatildeo eacute suficiente para identificaccedilatildeo

do lugar comum

Em sua pesquisa Thom (2003 567) vislumbra que o toacutepos filosoacuteficomoral pode ser

distinguido de outros pela abordagem de determinado tema ser recorrente em

diferentes autores e o tradicional tratamento moral no modo como eacute abordado

Desse modo este autor afirma ldquoa topos expresses a cultural consensusrdquo (um toacutepos

expressa um consenso cultural)

Eacute nesse contexto que Foucualt (2010a p 310) observa que o discurso filosoacutefico tem

o compromisso de dizer a verdade e ldquoele tambeacutem tem efeitos que satildeo devidos de

certo modo agrave sua materialidade proacutepria agrave sua plaacutestica proacutepria agrave sua retoacuterica

proacutepriardquo Em sua busca em compreender a parresia na Antiguidade Foucault avalia

que esta pode ser observada em diferentes modalidades A parresiacutea como accedilatildeo

filosoacutefica pode ser identificada a partir de Platatildeo Segundo Foucault (2010b p 189)

212

nas epiacutestolas de Platatildeo observa-se que a accedilatildeo da parresiacutea se apresenta natildeo

somente no corpo da cidade mas tambeacutem sobre a alma do indiviacuteduo

Para observar a manifestaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo Foucault recorre ao gecircnero

epistolar Em especial na epiacutestola VII de Platatildeo Foucault (2010b p 197) nota que

pela leitura da epiacutestola o pensamento poliacutetico eacute tratado como racionalizaccedilatildeo da

accedilatildeo poliacutetica tendo a filosofia como base para o conselho

Foucault identifica o falar franco no campo da filosofia a partir da avaliaccedilatildeo de Platatildeo

quanto agrave postura de Soacutecrates frente aos enfrentamentos no campo da poliacutetica

Eacute para participar de uma detenccedilatildeo arbitraacuteria que os tiranos pedem que Soacutecrates participe de uma accedilatildeo judicial ilegal e Soacutecrates se recusa Soacutecrates se recusa como filosoacutefo um exemplo de resistecircncia filosoacutefica a um poder poliacutetico exemplo de parresiacutea que vai ser por muito tempo um modelo

de atitude filosoacutefica diante do poder [] (FOUCAULT 2010b p 198)

A partir da observaccedilatildeo da atitude parresiaacutestica de Soacutecrates Foucault (2011 p15)

fortalece sua definiccedilatildeo de parresiacutea como ldquouma atitude uma maneira de ser que se

aparenta agrave virtude uma maneira de fazerrdquo Assim a parresiacutea pode ser caracterizada

como uma modalidade de dizer a verdade

Foucault (2010b p 253) identifica na escrita epistolar de Platatildeo algumas

caracteriacutesticas relacionadas agrave parresiacutea e o ponto central eacute o aconselhamento Em

primeiro lugar em suas epiacutestolas Platatildeo oferece sua contribuiccedilatildeo aos amigos e

parentes de Dion e ao povo de Siracusa269 que estaacute em conflito poliacutetico Conforme

essa visatildeo a parresiacutea se caracteriza pela atenccedilatildeo a uma situaccedilatildeo especiacutefica sendo

o conselho de caraacuteter particular em funccedilatildeo de uma situaccedilatildeo especiacutefica As

orientaccedilotildees se desenvolvem com referecircncias a princiacutepios gerais que se aplicam agraves

circuntacircncias particulares Os conselhos aos dois grupos rivais satildeo ministrados por

Platatildeo no exerciacutecio de seu papel de aacuterbitro e a parresiacutea funciona como meio de

convocaccedilatildeo para a uniatildeo entre todos

269

Foucault (2010b p252) fornece um resumo para situar o contexto em que as epiacutestolas VII e VIII de Platatildeo satildeo escritas ldquoDion conhece Platatildeo segue seu ensino e aproveita as liccedilotildees que o mestre lhe daacute Nesse momento sua verdadeira e boa natureza reaparece e diz ele - eacute aiacute que se abordam as coisas - na candura juvenil da sua alma Dion esperava que Dioniacutesio (seu tio o tirano) sob a influecircncia das mesmas liccedilotildees que ele havia recebido experimentasse os mesmos sentimentos que ele e se deixasse ganhar facilmente para o bem Em seu entusiasmo portanto ele fez tudo para que Dioniacutesio entrasse em relaccedilatildeo com Platatildeo e escutasse suas liccedilotildees Agora estatildeo em cena Platatildeo Dion e Dioniacutesiordquo Na introduccedilatildeo da epiacutestola VIII Platatildeo escreve ldquoVou fazer o possiacutevel por vos explicar quais devem ser os vossos sentimentos para que possais viver verdadeiramente uma vida de bem e de felicidade E espero proporcionar-vos conselhos salutares natildeo apenas a voacutes embora estejais em primeiro lugar mas tambeacutem e em segundo lugar a todos os Siracusanos e em fim em terceiro lugar aos vossos adversaacuterios e inimigosrdquo []

213

Nas aulas ministradas no Collegravege de France em 1983 Foucault redimensiona a

relaccedilatildeo entre retoacuterica e parresiacutea a partir de uma percepccedilatildeo mais ampla da noccedilatildeo de

retoacuterica quanto agrave praacutetica do falar franco na constituiccedilatildeo do discurso verdadeiro

[] a retoacuterica pode se apresentar como sendo a proacutepria arte do dizer-a-verdade do dizer convenientemente e do dizer em condiccedilotildees teacutecnicas tais que esse dizer-a-verdade seja persuasivo Nessa medida como arte dominada por um homem de bem que sabendo da verdade eacute capaz de persuadir outros por meio dessa arte especiacutefica a retoacuterica pode aparecer como sendo efetivamente a teacutecnica proacutepria dessa parresiacutea desse dizer-a-verdade (FOUCAULT 2010b p 276)

A forma como Foucault relaciona parresiacutea e retoacuterica se funda em uma concepccedilatildeo de

retoacuterica filosoacutefica que toma como base a escrita das epiacutestolas de Platatildeo Em seus

estudos Foucault (2010b p 5) constata que na moral da Antiguidade entre gregos e

romanos era evidente a importacircncia do princiacutepio ldquoeacute preciso dizer a verdade sobre si

mesmordquo Foucault considera que a correspondecircncia se tornava um meio de

desenvolvimento dessa praacutetica Por isso a confidecircncia tanto em Secircneca quanto em

Paulo se constitui como ferramenta para o enunciador despojar de si mesmo diante

de seu destinataacuterio Ainda a forma de aconselhamento pressupotildee o falar franco que

eacute interligado ao discurso verdadeiro na essecircncia da escrita epistolar desses dois

autores

211 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Uma forma de parresiacutea (libertas) ldquofalar francordquo eacute a coragem de ser verdadeiro

consigo mesmo Na cena enunciativa da epiacutestola introdutoacuteria da obra Epiacutestolas a

Luciacutelio de Secircneca eacute identificado o ethos dito270 no papel de enunciador do

discurso pela forma pessoal como ele se coloca no discurso ldquoTalvez te apeteccedila

perguntar como procedo eu que dou todos esses preceitos Dir-te-ei com franqueza

como algueacutem que vive bem mas sem esbanjamentordquo (Ep 14) A expressatildeo ldquodir-te-

ei com franquezardquo aponta para toacutepos ldquofalar francordquo no sentido de liberdade abertura

para se dizer o que deve ser dito

Foucault (2010b p 8) observa que em Secircneca os seus textos comprovam que a

praacutetica da parresiacutea como dizer a verdade era bem delineada por uma seacuterie de

categorizaccedilotildees e descriccedilotildees Poreacutem o termo parresiacutea natildeo eacute empregado talvez pela

270

Charaudeau e Maingueneau (2008) no dicionaacuterio de Anaacutelise do Discurso afirmam que ethos eacute considerado dito quando o enunciador se manifesta pessoalmente no discurso e mostrado quando eacute captado atraveacutes da percepccedilatildeo do leitor ou ouvinte

214

ausecircncia de traduccedilatildeo O toacutepico parresiacutea como falar franco resultou no uso de

vaacuterios termos latinos como licentia libertas oratio liberta Foucault ressalta que nos

seacuteculos I e II de nossa era eacute recorrente entre os romanos a substituiccedilatildeo do termo

parresiacutea pelo termo libertas271 Por meio da leitura dos textos essa noccedilatildeo pode ser

identificada de forma bem especiacutefica para a realidade histoacuterica daquele momento

Na epiacutestola vinte e cinco Secircneca relata a Luciacutelio a respeito do tratamento

pedagoacutegico que deveria ser dado de forma distinta a dois amigos com base no

toacutepos ldquofalar francordquo

O tratamento adequado aos nossos dois amigos tem de usar meacutetodos completamente diferentes De fato enquanto os viacutecios de um deles carecem de correccedilatildeo os do outro exigem ser travados agrave forccedila Dirte-ei com toda franqueza soacute serei seu amigo se for violento com ele (Ep 251)

Quod ad duos amicos nostros pertinet diversa via eundum est alterius enim vitia emendanda alterius frangenda sunt Utar libertate tota non amo illum nisi ofendo (Ep 251)

Eacute possiacutevel confirmar as informaccedilotildees fornecidas por Foucalt sobre o uso de libertas

como traduccedilatildeo de parresiacutea Ao referir-se a respeito de sua franqueza em relaccedilatildeo

aos viacutecios do amigo Secircneca se dirige a Luciacutelio usando a expressatildeo utar libertate

tota Esta expressatildeo remete o seu sentido ao toacutepos ldquofalar francordquo

Na anaacutelise de Foucault o ldquofalar francordquo se mostra matizado em diferentes nuances e

uma delas eacute a coragem de ser verdadeiro correndo o risco da incompreensatildeo e de

abalo na relaccedilatildeo com o outro Eacute nessa perspectiva que Secircneca coloca a dureza da

franqueza como condiccedilatildeo na verdadeira amizade Quanto a esse aspecto das

relaccedilotildees humanas Foucault (2010b p 11) observa que ldquosoacute pode haver conduccedilatildeo

de consciecircncia se haacute amizade e em que o uso da verdade nessa conduccedilatildeo de

consciecircncia corre precisamente o risco de romper os laccedilos da relaccedilatildeordquo

Para Secircneca a aquisiccedilatildeo de libertas estaacute condicionada agrave contribuiccedilatildeo da filosofia

fato que ele argumenta por meio da citaccedilatildeo da maacutexima de Epicuro ldquoDeves ser servo

da filosofia se pretendes obter a verdadeira liberdaderdquo (Ep 87) Quanto agrave noccedilatildeo de

liberdade Secircneca faz algumas ligaccedilotildees entre a coragem com atitudes do indiviacuteduo

em determinadas situaccedilotildees ldquoE a liberdade desaparece quando natildeo desprezamos

tudo quanto pretende nos subjugarrdquo [] perit libertas nisi illa contemnimus quae

271

Foucault (2010a p 360) na ministraccedilatildeo da aula de 8 marccedilo de 1982 no Collegravege de France analisou algumas epiacutestolas de Secircneca (Ep 38 Ep 40) procurando apontar as indicaccedilotildees de que o discurso deve ser simples na sua composiccedilatildeo refletida demonstrando o sentido de libertas Ele fez uma paraacutefrase da escrita da epiacutestola setenta e cinco observando que nela havia uma verdadeira exposiccedilatildeo do que era libertas para os romanos e parresiacutea para os gregos

215

nobis iugum inponunt (Ep 8528) A liberdade ligada agrave coragem eacute conquistada pela

determinaccedilatildeo no cuidado de si que prepara para os enfrentamentos na vida Secircneca

afirma ldquoa coragem consiste em desprezar as causas de terror tudo o que inspira

medo e subjuga a nossa liberdade tudo ela despreza desafia e derrubardquo []

terribilia et sub iugum libertatem nostram mittentia despicit provocat frangit

numquid ergo hanc liberalia studia corroborant (Ep 88 29) A coragem como base

para o ldquofalar francordquo se expande tambeacutem para outras formas de comportamento

como o enfrentamento no modo de conceber a morte ldquoLiberta-te para comeccedilar do

medo da morte (jaacute que o medo da morte nos oprime como um jogo)rdquo Libera te

primum metu mortis (illa nobis iugum inponit) (Ep 80 5)

Em Secircneca o ldquofalar francordquo apresenta diferentes aplicaccedilotildees que tecircm seus

significados de acordo com o discurso constituinte filosoacutefico que funciona como

base de sua enunciaccedilatildeo A partir do valor da noccedilatildeo de liberdade eacute que Secircneca

procura se desvencilhar de imposiccedilotildees teacutecnicas da retoacuterica optando por uma

construccedilatildeo mais livre do seu discurso Quanto a este aspecto Foucault (2010a p

335) pondera que em relaccedilatildeo agrave retoacuterica o falar franco deve liberar-se dela natildeo para

exclui-la mas para se libertar em relaccedilatildeo agraves suas regras e condiccedilotildees e fazer uso do

que eacute produtivo ao discurso parresiaacutestico

Os questionamentos de Secircneca quanto agraves imposiccedilotildees da retoacuterica se voltam para o

campo das teacutecnicas da eloquecircncia no seu objetivo de engrandecer o desempenho

do orador Na epiacutestola oitenta e nove ele situa a retoacuterica no quadro da filosofia

racional por meio da sucinta definiccedilatildeo ldquoa retoacuterica ocupa-se das palavras das

ideias da estrutura do discursordquo (Rhetorike verba curat et sensus et ordinem) (Ep

89 17) Decerto a retoacuterica eacute indispensaacutevel no modo de organizaccedilatildeo do discurso

mas Secircneca procura se esquivar da eloquecircncia valorizando o texto mais coloquial

Assim o gecircnero epistolar favorece esta preferecircncia de Secircneca como ele afirma ldquoo

nosso objetivo uacuteltimo deve ser este dizer o que sentimos sentir o que dizemosrdquo (Ep

754) Esta afirmativa de Secircneca consolida a relaccedilatildeo entre ldquofalar francordquo e verdade

Na epiacutestola seis Secircneca abre-se diante de Luciacutelio declarando as mudanccedilas que ele

proacuteprio experimentou a partir de sua dedicaccedilatildeo agrave filosofia

Desejaria compartilhar contigo essa suacutebita mudanccedila operada em mim Comeccedilaria entatildeo a ter uma mais segura confianccedila em nossa amizade que nem a esperanccedila ou o medo ou a busca da utilidade pode quebrar numa amizade daquelas com a qual e pela qual os homens podem morrer (SEcircNECA Ep 62)

216

Secircneca coloca-se diante de seu amigo sem reservas compartilhando sua

convicccedilatildeo de verdade a respeito das mudanccedilas processadas em sua proacutepria vida A

amizade eacute um sinal de aprovaccedilatildeo para o ldquofalar francordquo sem reservas e subterfuacutegios

A partir de seu propoacutesito de investigar as relaccedilotildees sujeitoverdade Foucault (2011

p 4) observa natildeo o discurso de verdade que se poderia dizer sobre o sujeito mas o

discurso de verdade que o sujeito eacute capaz de dizer de si mesmo Assim ldquofalar

francordquo (parresiacutea) eacute uma modalidade do dizer a verdade como o sujeito representa a

si mesmo e eacute reconhecido pelo outro como dizendo a verdade

A partir de seu objetivo em identificar sujeito e verdade na Antiguidade Foucault

verifica que o dizer a verdade se apresenta no aparato de quatro modalidades

teacutecnica parresiasta filosoacutefica e profeacutetica Para situar a noccedilatildeo de parresiacutea como

modalidade de dizer a verdade Foucault (2011 p 17) faz uma oposiccedilatildeo entre

parresiasta e saacutebio pois este fala o discurso da sabedoria mas pode mantecirc-la em

silecircncio para si mesmo O saacutebio diz o que eacute e quando o seu discurso eacute prescritivo

natildeo se apresenta em forma de conselho mas ligado a um princiacutepio geral de

conduta Foucault (2011 28) percebe que o saacutebio guiado pelo discurso filosoacutefico

tem a funccedilatildeo de refletir sobre a finitude humana e a criacutetica a respeito da ordem

moral e nesse aspecto parresiacutea e sabedoria se aproximam O filoacutesofo diz a verdade

das coisas e o parresiasta sobretudo diz sua verdade aos homens A partir dessas

delimitaccedilotildees apontadas por Foucault eacute possiacutevel identificar na escrita das epiacutestolas

de Secircneca o intercacircmbio entre parresiacutea e filosofia confirmando o dito de Foucault

(2010a 328) que ldquoaquilo que se trata na parresiacutea eacute uma espeacutecie de retoacuterica proacutepriardquo

Com base nessa afirmativa pode-se pensar o toacutepos ldquofalar francordquo como forma de

conduccedilatildeo do discurso constituinte filosoacutefico como desenvolvido por Secircneca por

meio do gecircnero epistolograacutefico

212 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto

No contexto do discurso religioso no periacuteodo Heleniacutestico Foucault (2011 291)

identifica que a parresiacutea no texto da Septuaginta natildeo eacute a coragem do homem

isolado mas eacute a relaccedilatildeo do homem com Deus e nesse movimento a manifestaccedilatildeo

da bondade de Deus eacute revelada por meio do seu poder e vontade Na sequecircncia

histoacuterica na literatura neotestamentaacuteria a parresiacutea eacute concebida como um modo de

ser uma forma de atividade humana que ateacute certo ponto se revela pela coragem e

217

ousadia em falar Foucault observa que a parresiacutea como virtude apostoacutelica

aproxima-se do seu significado de uso grego

O termo parresiacutea no grego koineacute (παρρησια) eacute usado por Paulo em suas epiacutestolas

aos Coriacutentios O exemplo pessoal que aponta para o sofrimento e as lutas

enfrentadas por ele permite-lhe a revelaccedilatildeo de seu ethos parresiasta pela

determinaccedilatildeo e coragem de se abrir diante da igreja atraveacutes da correspondecircncia

Essa forma corajosa de falar enfrentando os desafios eacute expressa por ele nos

seguintes termos ldquoTendo pois tal esperanccedila usamos de muita ousadia no falarrdquo

(2Cor 312)272

Segundo Fredrickson (1992 p 348) nesta citaccedilatildeo paulina encontra-

se a claacutessica associaccedilatildeo entre ldquofalar francordquo e liberdade pois liberdade de accedilatildeo e

fala franca representam os dois lados de uma mesma moeda Paulo recorre agrave

esperanccedila como base de sua fala franca

Lopes (2008 p 86) observa que no contexto em que Paulo usa o termo parresia o

significado eacute de ousadia com liberdade sem maacutescara e nada a esconder A figura

que Paulo usa como ilustraccedilatildeo eacute a de Moiseacutes273 que apoacutes quarenta dias de direta

comunhatildeo com Deus no Sinai quando de laacute desceu com as taacutebuas da lei a pele do

seu rosto brilhava assim como todas as vezes que Moiseacutes se encontrava com Deus

A praacutetica do uso de um veacuteu indicava que Moiseacutes cobria o rosto para o povo natildeo ver

a falta do brilho da gloacuteria em seu rosto nos intervalos dos seus encontros com Deus

A liccedilatildeo que Paulo apresenta por meio dessa intertextualidade com a passagem de

Ecircxodo 34 34-35 eacute o alerta de que o siacutembolo mostrado aponta para um veacuteu que

disfarccedila esconde e separa A partir dessa interpretaccedilatildeo a imagem do veacuteu funciona

como uma metoniacutemia que representa a ideia de maacutescara que encobre a verdade

Com a nova alianccedila cai o veacuteu da separaccedilatildeo e Paulo pondera que se o brilho que se

desvanecia no rosto de Moiseacutes era glorioso muito mais eacute o brilho que permanece

com a presenccedila de Deus na Eternidade Esta eacute a razatildeo da esperanccedila a que Paulo

se refere e que lhe imputa a ousadia no falar Esses argumentos de Paulo

demonstram coragem em enfrentar a maneira de expressar sua nova compreensatildeo

das tradiccedilotildees e textos judaicos

272

εχοντες ουν τοιαυτην ελπιδα πολλη παρρησια χρωμεθα (2Cor 312) 273

O texto que Paulo usa como base de seu comentaacuterio encontra-se no livro de Exocircdo ldquoMas entrando Moiseacutes perante o Senhor para falar com ele tirava o veacuteu ateacute sair e saindo dizia aos filhos de Israel o que lhe era ordenado Assim pois viam os filhos de Israel o rosto de Moiseacutes e que a pele do seu rosto resplandecia e tornava Moiseacutes a pocircr o veacuteu sobre o seu rosto ateacute entrar para falar com Deus (Ecircxodo 34 34-35)

218

Segundo Foucault (2011 p12) ldquoaleacutem da parresiacutea dizer tudo e dizer a verdade eacute

preciso que esta verdade constitua efetivamente a opiniatildeo daquele que fala sendo

realmente o que ele pensardquo Partindo dessa afirmativa de Foucault observa-se que

em seus ensinamentos Paulo indica o uso de algumas dessas caracteriacutesticas do

discurso parresiaacutestico em seu manual de conselhos agrave igreja de Corinto ldquoE temos

portanto o mesmo espiacuterito de feacute como estaacute escrito Cri por isso falei noacutes cremos

tambeacutem por isso tambeacutem falamos (2Cor 413) Nesse aspecto a condiccedilatildeo da

parresiacutea parte do princiacutepio ldquocri por isso faleirdquo Em primeiro lugar Paulo afirma

pessoalmente e em segundo lugar inclui os outros dizendo ldquonoacutes cremosrdquo e esta eacute a

declaraccedilatildeo que o autoriza dizer ldquopor isso tambeacutem falamosrdquo

Na mesma epiacutestola Paulo recorre novamente ao uso do termo parresiacutea declarando

seu ethos parresiasta ao afirmar ldquoGrande eacute a minha franqueza para convosco e

muito me glorio a respeito de voacutes estou cheio de consolaccedilatildeo transbordo de gozo

em todas as nossas tribulaccedilotildeesrdquo (2Cor 7 4)

O termo parresiacutea (παρρησια) ldquofalar francordquo usado por Paulo nesse contexto estaacute

ligado agrave ideia de amizade condiccedilatildeo essencial para sua franqueza No final do

capiacutetulo Paulo declara Regozijo-me porque em tudo tenho confianccedila em voacutes (2Cor

7 16) Esta afirmativa de Paulo implica a ideia do jogo parresiaacutestico em relaccedilatildeo aos

interlocutores na correspondecircncia Conforme menciona Foucault (2011 p 36) no

jogo parresiaacutestico haacute uma expectativa do leitorouvinte ldquoaceitar uma verdade que lhe

desagrada como uma forma de desafio para que o discurso verdadeiro tome o seu

lugarrdquo Fundado nessa convicccedilatildeo eacute que Paulo se abre com franqueza diante de seus

destinataacuterios natildeo se escondendo por traacutes de uma maacutescara resultante da falsidade

mas usando a ldquofala francardquo como forma da verdade ldquoPorque em muita tribulaccedilatildeo e

anguacutestia do coraccedilatildeo vos escrevi com muitas laacutegrimas natildeo para que vos

entristececircsseis mas para que conhececircsseis o amor que abundantemente vos tenhordquo

(2Cor 2 4) No jogo parresiaacutestico haacute uma espeacutecie de pacto em que o remetente da

epiacutestola tem o papel de assumir o risco de dizer a verdade e os destinataacuterios tecircm a

funccedilatildeo de aceitar as correccedilotildees por mais desagradaacuteveis que se mostrem Nas

epiacutestolas aos Coriacutentios os conselhos satildeo dados de forma dura e franca e Paulo se

coloca diante de seus destinataacuterios na funccedilatildeo de pai que se doa movido pelo amor

como ele declara ldquonuma justa compensaccedilatildeo falo como a meus filhos abram

219

tambeacutem o coraccedilatildeo para noacutesrdquo (2Cor 6 13)274 Na Antiguidade o ldquorelacionamento

entre pais e filhosrdquo era um toacutepos tratado na filosofia275 observado em Aristoacuteteles e

tambeacutem em textos do estoicismo Foucault (2010a p 531) faz a seguinte

observaccedilatildeo ldquoo velho tema estoacuteico bastante claacutessico do Deus Deus que eacute pai (pai

em relaccedilatildeo ao mundo pai em relaccedilatildeo aos homens) pai que deve ser reconhecido e

honrado segundo o modelo da relaccedilatildeo familiarrdquo Paulo tambeacutem lanccedila matildeo desse

toacutepos no fechamento do mesmo capiacutetulo em que ele proacuteprio se coloca como pai e

finaliza dando uma dimensatildeo maior ao colocar a figura de Deus como pai ldquoe eu

serei para voacutes Pai e voacutes sereis para mim filhos e filhas diz o Senhor Todo-

Poderosordquo (2Cor 618)

Se comparados os discursos parresiaacutesticos de Secircneca e Paulo nota-se que o toacutepos

ldquofalar francordquo identificado em suas epiacutestolas tem como ponto de referecircncia o

discurso constituinte que os move Em Secircneca como visto a parresiacutea como

modalidade da verdade estaacute em acordo com o discurso do filoacutesofo A parresiacutea em

Paulo se constitui em consonacircncia com o discurso religioso por meio da modalidade

da fala profeacutetica Foucault (2011 p 16) distingue que o profeta ldquoarticula e profere um

discurso que natildeo eacute dele Endereccedila aos homens uma verdade que vem de outro

lugarrdquo Segundo Foucault (2011 p 28) eacute compatiacutevel o agrupamento da modalidade

parresiaacutestica com o a modalidade profeacutetica Algumas caracteriacutesticas do discurso

profeacutetico satildeo fundadas em dizer a verdade sobre o futuro o que estaacute encoberto ao

homem pela proacutepria razatildeo de sua finitude Entatildeo Paulo assim diz ldquoPorque todos

devemos comparecer ante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o

que tiver feito por meio do corpo ou bem ou malrdquo (2Cor 510) Com base na

caracterizaccedilatildeo da modalidade profeacutetica e sua relaccedilatildeo com a modalidade

parresiaacutestica Foucault (2011 p 28) observa ldquoQuem diz a iminecircncia ameaccediladora do

amanhatilde do Reino do uacuteltimo dia do juiacutezo final que se aproxima diz ao mesmo

tempo aos homens o que eles satildeo e suas faltas e lhes diz francamente com toda

parresiacuteardquo

274

Traduccedilatildeo da Biacuteblia NVI (Nova Versatildeo Internacional) 275

Aristoacuteteles trata do tema amizadeamor na obra Eacutetica a Nicocircmaco nos livros VIII e IX e quando ele introduz noccedilotildees de amizadeamor ele expotildee ldquoa amizade parece ser um sentimento natural do pai por seu filho e do filho por seu pai (EN VIII 1155a) Assim como Aristoacuteteles aborda a amizade nas vaacuterias formas de relacionamentos Secircneca tambeacutem comenta ldquoaquela parte da filosofia que proporciona os conselhos adequados a cada indiviacuteduo e se destina portanto natildeo agrave formaccedilatildeo do homem em geral mas sim por exemplo a indicar ao marido como comportar-se em relaccedilatildeo agrave mulher ao pai como educar os filhosrdquo [] (Ep 942)

220

No final da epiacutestola Paulo declara ldquoPorque nada podemos contra a verdade poreacutem

a favor da verdaderdquo (2Cor 138) (ου γαρ δυναμεθα τι κατα της αλλ υπερ της

αληθειας) O termo aletheia (αληθειας) no contexto em que Paulo usa verdade

assume o sentido da mensagem do evangelho e ele se dispotildee a favor da

proclamaccedilatildeo dessa mesma verdade

Mesmo natildeo seguindo o rigor retoacuterico da eacutepoca na escrita de suas epiacutestolas Secircneca

e Paulo usam a parresiacutea com algumas estrateacutegias que a retoacuterica oferece

Determinados recursos retoacutericos mencionados na Retoacuterica de Aristoacuteteles satildeo

tambeacutem identificados nas escritas das epiacutestolas destes dois autores sendo

portadores de uma discursividade caracterizada pelos efeitos da intertextualidade

inerente ao proacuteprio discurso em uma perspectiva dialoacutegica da linguagem Desse

modo nas partes que se seguem os recursos argumentativos que se desenvolvem

a partir de um lugar comum delimitados como recursos retoacutericos na organizaccedilatildeo do

discurso satildeo desenvolvidos de acordo com o posicionamento discursivo de cada

autor na produccedilatildeo das epiacutestolas em destaque A anaacutelise que se segue leva em

consideraccedilatildeo o uso de exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas nas epiacutestolas de Secircneca e

de Paulo reconhecendo estes elementos linguiacutesticos delimitados e o funcionamento

que se efetua tanto no campo do discurso filosoacutefico e literaacuterio quanto no religioso

22 O EXEMPLO COMO RECURSO RETOacuteRICO

Pensa na grande utilidade que para noacutes tecircm os bons exemplos e concluiraacutes que as lembranccedilas dos grandes homens natildeo eacute menos uacutetil do que a sua presenccedila

Secircneca (Ep 10230)

Aristoacuteteles propotildee uma inovaccedilatildeo em suas formulaccedilotildees no campo da retoacuterica

distinguindo-a da dialeacutetica em termos da conduccedilatildeo do discurso Ao relacionar o

entimema e o exemplo como participantes concomitantes na esfera do discurso ele

tambeacutem vislumbra que a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo formam uma parceria que contribui

para resultados argumentativos no discurso (Ret I 1 1356b)

O exemplo atua no campo do raciociacutenio indutivo podendo servir como evidecircncia

fortalecendo os propoacutesitos argumentativos no discurso Sendo o efeito do exemplo

mais convincente mais claro e mais apreensiacutevel pelos sentidos estaacute ao alcance da

maioria das pessoas ao passo que o raciociacutenio dedutivo tem mais forccedila

221

demonstrativa e eacute mais eficaz para responder aos contraditores Os exemplos

podem ser retirados de fatos histoacutericos mas podem estar contidos em faacutebulas ou

mesmo paraacutebolas como por exemplo ocorre em narrativas dos Evangelhos de

acordo com suas aplicaccedilotildees em um determinado contexto

Aristoacuteteles (Ret I 21356b) esclarece que chama entimema ao silogismo retoacuterico

pois o encadeamento de raciociacutenio do entimema se aproxima ao do silogismo em

alguns aspectos entretanto este eacute portador de um raciociacutenio tripartido para

fechamento da conclusatildeo enquanto aquele se restringe agrave premissa posta ou sua

conclusatildeo que subentende as premissas encobertas Por isso entimema estaacute ligado

agrave deduccedilatildeo e exemplo agrave induccedilatildeo formando um todo no corpo do discurso

Na opiniatildeo de Aristoacuteteles quando se recorre ao uso de exemplos os fatos histoacutericos

podem exercer uma forccedila mais persuasiva em comparaccedilatildeo agraves faacutebulas ou paraacutebolas

como ele proacuteprio exemplifica

Quando se afirma que Dioniacutesio intenta a tirania porque pede uma guarda pois tambeacutem antes Pisiacutestrato ao intentaacute-la pediu uma guarda e converteu-se em tirano mal a conseguiu e Teaacutegenes fez o mesmo em Meacutegara estes e outros que se conhecem todos eles servem de exemplo para Dioniacutesio de quem ainda natildeo se sabe se eacute essa a razatildeo por que a pede (Ret I

21357b)

Para os propoacutesitos da retoacuterica eacute fundamental que o exemplo tenha como base os

fatos que conduzem o raciociacutenio indutivo A partir desse princiacutepio Aristoacuteteles expotildee

suas consideraccedilotildees afirmando que ldquoo exemplo natildeo apresenta relaccedilotildees da parte para

o todo nem do todo para a parte nem do todo para o todo mas apenas da parte

para a parte do semelhante para o semelhanterdquo (Ret I 21357b)

Com base nesses pressupostos aristoteacutelicos sobre o exemplo como retoacuterica

indutiva efetua-se a seguir uma anaacutelise desse funcionamento persuasivo do

exemplo no discurso atraveacutes de partes de epiacutestolas de Secircneca e Paulo em que

esses autores buscam exemplos em uma fonte de lugares comuns como meios

retoacutericos de argumentaccedilatildeo

221 Exemplos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Secircneca assume em seu discurso a importacircncia que tem para ele o uso dos

exemplos narrando para Luciacutelio a histoacuteria de um personagem chamado Marcelino

contando em detalhes como ele encarou a morte e no final Secircneca comenta

ldquoTambeacutem espero que minha histoacuteria natildeo tenha sido inuacutetil pois muitas vezes as

222

circunstacircncias tornam necessaacuteria a presenccedila de tais exemplosrdquo (Ep 7710) A partir

do exemplo em destaque Secircneca desenvolve algumas ideias filosoacuteficas sobre o

determinismo com base na inevitaacutevel certeza da morte Secircneca argumenta com

Luciacutelio [] ldquonatildeo existiremos no futuro tal como natildeo existimos no passado [] Tu

fostes projetado para este ponto do tempordquo (Ep 77 11-12) Segundo observaccedilatildeo de

Puente para os estoicos ldquoo presente eacute aquilo que depende de noacutes enquanto noacutes o

vivemos passado e futuro natildeo dependem de noacutes pois jaacute estatildeo determinadosrdquo

(PUENTE 2012 p117) Conclui-se que cada dia deve ser vivido como se fosse o

uacuteltimo pois eacute apenas no presente que se vive efetivamente

Quando Secircneca faz suas reflexotildees sobre a morte na escrita das epiacutestolas eacute

perceptiacutevel certa relutacircncia em relaccedilatildeo ao uso de silogismos hipoteacuteticos assumindo

sua preferecircncia pelo uso retoacuterico dos exemplos Na escrita das epiacutestolas Secircneca

critica os gregos incluindo tambeacutem o ancestral Zenatildeo pela tentativa de

demonstrarem que apenas por meio de um raciociacutenio silogiacutestico algueacutem poderia

ser convencido de que a morte natildeo eacute um mal A partir de sua proacutepria discordacircncia

Secircneca menciona o seguinte silogismo usado por Zenatildeo ldquoNenhum mal eacute causa de

gloacuteria ora a morte natildeo eacute causa de gloacuteria logo a morte natildeo eacute um malrdquo (Ep 82 9)

Secircneca endurece seus comentaacuterios a respeito da montagem desse silogismo

Magniacutefico Jaacute estou liberto do medo Depois disto jaacute natildeo hesitarei em estender o pescoccedilo ao carrasco Vamos laacute falar com mais dignidade sem cobrir de ridiacuteculo um homem que vai morrer Pelos deuses Nem sei dizer-te qual dos dois parece mais imbecil se quem imaginou com este silogismo eliminou o medo da morte se quem se aplicou a solucionaacute-lo como se ele fosse pertinente para o caso (Ep 82 9)

Eacute pontual a ldquofala francardquo de Secircneca e sua rejeiccedilatildeo ao uso do silogismo no discurso

poreacutem atraveacutes da reflexatildeo de silogismos de seus antecessores eacute que ele parte para

uma tentativa de argumentaccedilatildeo mais convincente atraveacutes do exemplo a respeito do

tema sobre o medo da morte

O mesmo silogismo lembrado por Secircneca eacute contraposto a outro silogismo de sentido

inverso agrave concepccedilatildeo de indiferenccedila defendida pelos estoicos em relaccedilatildeo agrave morte

ldquoNenhuma coisa indiferente eacute causa de gloacuteria ora a morte eacute causa de gloacuteria logo a

morte natildeo eacute indiferenterdquo (Ep 8210) Secircneca argumenta com Luciacutelio sobre os efeitos

de possiacuteveis significados da palavra gloacuteria na composiccedilatildeo deste silogismo exposto

comentando que ldquoningueacutem louva a morte em si mas sim ao homem que a morte

223

arrebata sem previamente lhe perturbar o acircnimordquo (Ep 82 11) A partir desta

afirmativa Secircneca baseia seus argumentos com a introduccedilatildeo do seguinte exemplo

A mesma morte que em Catatildeo foi gloriosa tornou-se em Bruto vergonhosa e vil Refiro-me aquele Bruto que condenado agrave morte procurou uma forma de adiar a execuccedilatildeo retirou-se para aliviar o ventre chamaram-no para ser executado ordenaram-lhe que submetesse o pescoccedilo ao carrasco ldquoEu submetordquo ndash gritou ndash ldquomas deixem-me viverrdquo (Ep 8212)

Secircneca lanccedila matildeo de um exemplo que apresenta um cenaacuterio com valor positivo

para o comportamento de Catatildeo276 e negativo para o de Bruto277 No bojo desse

exemplo encontra-se um toacutepos retoacuterico referencial de contrariedade ou seja o juiacutezo

sobre um caso contraacuterio (Ret II 23 1397a) A partir de comportamentos opostos

desses personagens no enfrentamento da morte Secircneca discorre com Luciacutelio sobre

sua forma de pensar este tema de acordo os postulados estoicos Secircneca aponta

algumas razotildees do temor da morte comentando que ldquorepelimos a ideia da morte

porque se conhecemos bem este mundo ignoramos tudo do mundo para que

iremos e o homem tem horror ao desconhecidordquo (Ep 8215) Suas conclusotildees

mostram que eacute dever do indiviacuteduo natildeo temer a morte mas eacute necessaacuterio um preparo

para robustecer tal posiccedilatildeo Para Secircneca natildeo eacute um simples silogismo que teraacute o

poder de convencimento No entanto a forccedila do exemplo de algueacutem que encarou a

morte com naturalidade e coragem eacute mais convincente do que um raciociacutenio loacutegico a

respeito do assunto Secircneca coloca em pauta certos pressupostos do estoicismo

sobre o enfrentamento da morte como libertaccedilatildeo da alma que habita o corpo em

oposiccedilatildeo aos epicuristas que defendem que a morte eacute um sono eterno natildeo havendo

separaccedilatildeo entre corpo e alma o que implica tambeacutem a concepccedilatildeo de destino

Secircneca usa o recurso do exemplo para fortalecer o toacutepos de que ldquoeacute preciso avanccedilar

com audaacutecia e determinaccedilatildeo nas decisotildeesrdquo e destaca as figuras histoacutericas de Catatildeo

e Bruto para firmar seus argumentos A avaliaccedilatildeo do exemplo de Catatildeo eacute positiva

mediante as expectativas do pensamento estoico Assim pode-se observar que tal

exemplo eacute escolhido como reforccedilo de um princiacutepio estoico que serve de modelo para

276

Catatildeo o Jovem (95-46 d C) era seguidor do estoicismo e defensor da repuacuteblica Fazia oposiccedilatildeo a Juacutelio Ceacutesar Sua histoacuteria ficou marcada pela coragem em assumir a proacutepria morte Na epiacutestola 24 Secircneca fornece vaacuterios exemplos de homens que enfrentaram a morte sem medo inclusive Soacutecrates Em suas reflexotildees Secircneca diz ldquoMorremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de parte da vidardquo (Ep 24 20) 277

O Bruto que Secircneca menciona tambeacutem participou do grupo de poliacuteticos conspiradores do assassinato de Juacutelio Ceacutesar e foi um general e poliacutetico romano que conquistou a proximidade de Juacutelio Ceacutesar No ano de 45 aC Ceacutesar o destinou ao cargo de governador da Gaacutelia

224

os integrantes da escola ou para aquele que pretende aderir aos postulados do

estoicismo Aleacutem do posicionamento do enunciador estar direcionado agrave persuasatildeo

com objetivo de convencimento os argumentos fazem surgir algumas concepccedilotildees

estoicas sobre a morte Por um lado os propoacutesitos da exemplificaccedilatildeo exerce o papel

de introduzir um personagem que age em um determinado contexto histoacuterico

funcionando como um arquivo que fornece o estiacutemulo e incentivo positivo para

accedilotildees futuras Por outro lado a remissatildeo a um personagem de exemplo negativo

natildeo serve de modelo para ilustrar a coragem diante do enfrentamento da morte

Foucault lanccedila um olhar investigativo para o momento histoacuterico em que Secircneca

estava investido e faz a seguinte observaccedilatildeo quanto ao uso do exemplo em suas

epiacutestolas

[] o verdadeiro valor do exemplum histoacuterico exemplum histoacuterico que natildeo buscaraacute na vida dos reis estrangeiros o modelo a ser mostrado o exemplum histoacuterico eacute bom na medida em que nos mostra modelos autoacutectones (romanos) e em que faz aparecer os verdadeiros traccedilos da grandeza que justamente natildeo satildeo as formas visiacuteveis do brilho e do poder mas as formas individuais do domiacutenio de si Exemplo da modeacutestia de Catatildeo exemplo tambeacutem de Cipiatildeo ao deixar Roma a fim de garantir a liberdade para a sua cidade (FOUCAULT 2010a p 236)

Foucault identifica que nos exemplos apontados por Secircneca os personagens

histoacutericos merecedores de atenccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo aqueles que se mostraram natildeo

exatamente donos do mundo mas de si mesmos Estes alcanccedilaram tal domiacutenio

galgando a escalada da virtude

Nas epiacutestolas de Secircneca algumas concepccedilotildees filosoacuteficas do estoicismo satildeo

tratadas com o recurso do exemplo como forccedila persuasiva Os exemplos de Catatildeo

e Bruto servem a Secircneca como reflexatildeo sobre o medo da morte como ponto

decisivo na compreensatildeo da separaccedilatildeo corpo e alma o que justifica a incerteza do

depois da morte

Secircneca na epiacutestola vinte e quatro faz uma narrativa mais detalhada da corajosa

morte de Catatildeo e no desfecho ele dirige o seguinte comentaacuterio a Luciacutelio ldquoNatildeo

estou a coligir exemplos apenas para aguccedilar o engenho mas para que te sirvam de

exortaccedilatildeo contra aquele que imaginamos ser o mais terriacutevel dos malesrdquo (Ep 249)

Secircneca faz questatildeo de registrar o que representa para ele o uso do exemplo como

meio de persuasatildeo partindo do princiacutepio que ldquoo exemplo fala mais altordquo

225

O exemplo para Secircneca deve funcionar como modelo de sabedoria e virtude e ele

explora esse toacutepico recorrendo aos versos de Vergiacutelio de parte de um poema

introduzindo a voz do poeta em seu discurso de forma enigmaacutetica

Sem demora a cria de raccedila nobre pelos campos marcha altaneira as tenras patas flectindo antes dos demais potildee-se a caminho afronta as torrentes impetuosas sem receio afoita-se a percorrer um trilho ignoto e natildeo treme ao ouvir vatildeos ruiacutedos Tem ereto o pescoccedilo fina a cabeccedila breve o ventre liso o dorso e o peito animoso eacute musculado e forte [] E quando ao longe se ouve o sinal de combate Natildeo paacutera quieto erguem-se lhe as orelhas as pernas Tremem e a custo reprimem nas narinas a respiraccedilatildeo Ardente (Ep 95 68)

278

Antes de introduzir Vergiacutelio em seu discurso Secircneca estaacute argumentando sobre a

importacircncia de instruccedilotildees sobre a virtude acompanhada de modelos Ao mencionar

os versos de Vergiacutelio o enunciador provoca certa expectativa pelo uso metafoacuterico e

enigmaacutetico do poema em relaccedilatildeo ao que vinha sendo dito na enunciaccedilatildeo Poreacutem

logo apoacutes a indicaccedilatildeo dos versos eacute realizada uma aplicaccedilatildeo de parte do poema

como metaacutefora Partindo da ideia do valor do modelo na aquisiccedilatildeo da virtude

Secircneca esclarece

Tratando embora um assunto diferente o grande Vergiacutelio faz nestes versos a descriccedilatildeo do verdadeiro heroacutei Pelo menos natildeo eacute diferente a imagem que eu faccedilo do que seja um heroacutei Se eu quisesse descrever a atitude de M Catatildeo impaacutevido entre os fragores da guerra civil partindo ao ataque do exeacutercito inimigo que jaacute descia dos alpes opondo o proacuteprio peito agrave guerra civil ndash pois natildeo o pintaria com outro rosto natildeo lhe atribuiria outra atitude (Ep 9569)

Por meio de suas memoacuterias da histoacuteria da vida de Catatildeo279 Secircneca continua

refletindo sobre o valor de se ter um heroacutei como este para se espelhar e acrescenta

ldquoQue vigor que energia de alma havia neste homem que autoconfianccedila ele

demostrou quando num momento em que todos tremiam de pavorrdquo (Ep 9571) A

figura de Catatildeo o Jovem eacute valorizada tambeacutem pelo modo como lutou pela

repuacuteblica Secircneca exclama [] ldquoa ferida mortal que Catatildeo como decisivo ato de

278

Traduccedilatildeo de Segurado e Campos Partes do poema de Vergiacutelio (Georg III 75-81 e 83- 85) No poema Vergiacutelio trata de questotildees da vida no campo com foco nos animais Nesses versos apontados por Secircneca eacute destacada a imagem do cavalo e suas funccedilotildees e nessas descriccedilotildees percebe-se um cunho de aplicaccedilatildeo filosoacutefico-moral Eacute nesse sentido que Secircneca tambeacutem faz uma comparaccedilatildeo da imagem do cavalo como heroacutei ao seu personagem Catatildeo (o Jovem) 279

Marco Poacutercio Catatildeo referido por Secircneca no diaacutelogo com o poema de Vergiacutelio se trata do bisneto de Catatildeo o Velho Na mesma epiacutestola ainda nas referecircncias aos exemplos de outros personagens histoacutericos Secircneca acrescenta ldquoou os feitos sublimes puacuteblicos e privados do outro Catatildeo (o Velho) (Ep 9572)

226

coragem infligiu a si mesmo ferida por onde a liberdade republicana exalou o uacuteltimo

suspirordquo (Ep 9572)

Os versos introduzem a voz de Vergiacutelio na enunciaccedilatildeo como forccedila metafoacuterica para a

analogia que Secircneca se propotildee em relaccedilatildeo agrave figura de Catatildeo como um

personagem histoacuterico de valor na poliacutetica Na epiacutestola vinte e quatro Secircneca insiste

com a questatildeo da importacircncia do exemplo e faz a seguinte afirmativa ldquoO problema

natildeo eacute descobrir exemplos mas sim escolhecirc-losrdquo (Ep 243)

Secircneca concebe a virtude como um requisito a ser adquirido pelo aprendizado

mostrando a importacircncia de se pautar em um modelo como referecircncia Assim ele

atrai seu leitor com versos de Vergiacutelio e com base nestes introduz a figura de

Catatildeo jaacute valorizada culturalmente no imaginaacuterio do leitor280 Observa-se entatildeo que

o discurso literaacuterio agrega-se ao discurso filosoacutefico e serve de base para

fortalecimento dos argumentos contribuindo para um sentido de completude entre

discursos constituintes

Secircneca aconselha Luciacutelio a escolher um modelo de personalidade a ser seguido

colocando em cena Catatildeo281 o Velho Essas satildeo suas sugestotildees ldquoEscolhe por

exemplo Catatildeo se este te parecer demasiado riacutegido escolhe Leacutelio que eacute homem de

espiacuterito mais maleaacutevelrdquo (Ep 1110) Na concepccedilatildeo de Secircneca o indiviacuteduo tem

necessidade de algueacutem em que possa se espelhar e afinar ao seu proacuteprio caraacuteter O

fechamento desses conselhos persuasivos quanto agrave eficaacutecia do exemplo eacute feito

atraveacutes da seguinte maacutexima ldquoriscos tortos soacute se corrigem com a reacuteguardquo (Ep 1110)

Assim como o exemplo histoacuterico tem por si soacute uma forccedila persuasiva como

defendido por Aristoacuteteles o exemplo pessoal funciona no discurso em instacircncias

distintas Por um lado o enunciador traz para a enunciaccedilatildeo fato ocorrido de sua

proacutepria experiecircncia para servir de exemplo aos seus destinataacuterios Por outro lado o

exemplo pessoal serve como forma de identificaccedilatildeo do ethos mostrado no discurso

Consequentemente o efeito do logos atinge o pathos ou seja o discurso alcanccedila a

280

Na epiacutestola vinte e quatro Secircneca argumenta com Luciacutelio que a histoacuteria de Catatildeo era repetida em todas as escolas principalmente quando se tratava do problema do desprezo pela morte (Ep 246) 281

Catatildeo o Velho (234 - 149 dC) era referecircncia entre os romanos Foi poliacutetico e escritor que valorizou e fortificou a escrita em liacutengua latina e era bisavocirc de Catatildeo o Jovem Ciacutecero no tratado sobre a velhice M Tvlli Ciceronis Cato Maior de Senectvte faz uso da dialeacutetica trazendo para o discurso a voz do idoso e experiente Catatildeo (o Velho) que em forma de diaacutelogo discute com Leacutelio e Cipiatildeo as questotildees sobre a forma saacutebia de se assumir a velhice

227

audiecircncia agrave qual o ethos se dirige Nessa perspectiva as trecircs provas ethos logos e

pathos satildeo acionadas em conjunto pela estrateacutegia do recurso ao exemplo pessoal

No gecircnero epistolar o uso do exemplo do outro pode funcionar diante do

destinataacuterio como um incentivo agrave imitaccedilatildeo enquanto o exemplo pessoal pode

estabelecer uma relaccedilatildeo de autoridade testemunhal de quem fala trazendo para a

enunciaccedilatildeo uma discursividade distinta daquela do exemplo histoacuterico Neste caso o

proacuteprio enunciador coloca-se como voz autorizada no fortalecimento da persuasatildeo

Pode-se aventar que o exemplo pessoal no gecircnero epistolar pode operar como

ensinamento de algo comum entre o emissaacuterio e o destinataacuterio a quem se dirige O

exemplo pessoal coloca o enunciador na posiccedilatildeo de um indiviacuteduo experiente em

relaccedilatildeo aos conteuacutedos de seus ensinamentos e argumentaccedilatildeo Ele se coloca como

uma prova contundente da eficaacutecia de seu discurso

A esse respeito Secircneca mostra-se diante de Luciacutelio por meio da correspondecircncia

como a voz da experiecircncia legitimada que pelo desabafo introduz seus conselhos

ao destinataacuterio de sua missiva

Se tens alguma confianccedila em mim revelar-te-ei totalmente os meus mais iacutentimos sentimentos eu formei o meu caraacuteter no meio de toda a espeacutecie de circunstacircncias aparentemente desfavoraacuteveis e duras mas natildeo me limito a ceder agrave vontade dos deuses dou-lhes mesmo a minha concordacircncia submeto-me espontaneamente Nunca me acontece nada que eu receba com amargura ou de maacute cara natildeo haacute imposto algum que eu pague contra a vontade (Ep 962)

Na sua anaacutelise sobre a escrita de si Foucault (2004 p 156) aponta que a

correspondecircncia oferece a vantagem do emissaacuterio mostrar-se ao olhar do outro

atraveacutes do que lhe eacute dito sobre si mesmo Eacute nesse tom que Secircneca se dirige a

Luciacutelio ldquorevelar-te-ei totalmente os meus mais iacutentimos sentimentosrdquo Com essa

disposiccedilatildeo Secircneca coloca-se como algueacutem que sabe encarar com coragem os

enfrentamentos da vida revertendo situaccedilotildees desfavoraacuteveis Por meio desse

exemplo pessoal ele se oferece ao olhar do outro tanto em razatildeo de suas

experiecircncias individuais quanto de suas proacuteprias convicccedilotildees existenciais Tais

procedimentos estatildeo diretamente ligados ao seu posicionamento de estoico

praticante

Nessa abertura que Secircneca faz de si para o outro ele investe na forccedila persuasiva

do proacuteprio exemplo como meio de defender certos postulados da filosofia estoica

que ele incorporou na sua praacutetica de vida O eixo central dessa argumentaccedilatildeo eacute a

228

defesa do determinismo como um postulado filosoacutefico que permite a coerecircncia com

a noccedilatildeo de liberdade Reale (1994a p 316) interliga os conceitos estoicos de

providecircncia282 e de necessidade ao de determinismo que formando um conjunto

vinculam-se ao conceito de deuses Para os estoicos os deuses nascem e morrem

junto com a evoluccedilatildeo ciacuteclica do cosmo O deus supremo permanece havendo

identificaccedilatildeo entre deus natureza Hirschberger (1965 p 264) observa que os

estoicos admitem um princiacutepio imanente de explicaccedilatildeo do mundo O devir se

desenvolve em grandes ciclos e a restauraccedilatildeo universal se daacute por vezes infinitas e o

mesmo se repete Existe uma forccedila divina primitiva que engloba a ideia de deus

razatildeo destino e natureza

Foucault (2010a p249) procura associar conhecimento de si e conhecimento da

natureza e comenta que em Secircneca esse conhecimento da natureza permite que o

ser humano apreenda por ele mesmo o lugar que ocupa nesse mundo de uma

providecircncia divina Segundo a interpretaccedilatildeo e afirmativa de Foucault

[] eacute essa providecircncia divina que nos colocou laacute onde estamos que nos

situou pois no interior de um encadeamento de causas e efeitos particulares que precisamos aceitar se quisermos nos liberar desse

encadeamento (FOUCAULT 2010a p 250)

A partir dessas observaccedilotildees Foucault ressalta que o saber sobre a natureza eacute

liberador na medida em que permite que o ser humano natildeo desvie de si mesmo

enquanto ligado a um conjunto de determinaccedilotildees e necessidades cuja racionalidade

se torna compreensiacutevel

Eacute firmado nesses princiacutepios da filosofia estoica que Secircneca revela a Luciacutelio ldquomas

natildeo me limito a ceder agrave vontade dos deuses dou-lhes mesmo a minha

concordacircncia submeto-me espontaneamente e natildeo por tal ser inevitaacutevelrdquo (Ep

962) Com esta declaraccedilatildeo Secircneca mostra-se concordante com o determinismo

pela vontade dos deuses natildeo no sentido de obediecircncia a uma imposiccedilatildeo mas com

a liberdade que proveacutem de sua escolha de aceitaccedilatildeo do funcionamento da natureza

pois para os estoicos o destino eacute causa natural e irreversiacutevel de todas as coisas

282

Segundo Reale (1994a p 314) a providecircncia estoica natildeo tem nada a ver com a providecircncia de um Deus pessoal pois trata-se de uma providecircncia imanente e natildeo transcendente A imanecircncia eacute a presenccedila de uma forccedila divina que permeia todas as coisas que existem e eacute capaz de influenciaacute-las direta ou indiretamente A transcendecircncia atribui a Deus uma existecircncia separada das coisas das quais ele eacute o criador Com essas distinccedilotildees Reale aponta que a providecircncia na concepccedilatildeo imanente natildeo se ocupa dos homens individualmente e eacute nessa perspectiva que os estoicos concebem o destino como ordem natural e necessaacuteria de todas as coisas

229

Esta eacute a convicccedilatildeo que Secircneca procura transmitir ao seu amigo Luciacutelio com a forccedila

persuasiva de sua proacutepria experiecircncia e exemplo

Ainda Secircneca fala de si de sua experiecircncia e de seu proacuteprio exemplo afirmando

sua convicccedilatildeo de estar bem preparado para enfrentar duas realidades que ao ser

humano satildeo destinadas a velhice e a morte

Estou preparado para partir e assim gozo tanto mais a vida quanto menos me preocupa saber quanto tempo o futuro ainda me reserva Antes de atingir a velhice tive a preocupaccedilatildeo de viver bem agora que sou velho preocupo-me em morrer bem e morrer bem significa ser capaz de aceitar a morte (Ep 612)

Para Foucault (2010a p102) esta declaraccedilatildeo de Secircneca resume a noccedilatildeo do

cuidado de si sendo este o resultado da escolha de um modo de vida O indiviacuteduo

que adota os preceitos do cuidado de si como meta seraacute capaz de experimentar o

coroamento e recompensa de tal escolha no periacuteodo da velhice Sobre a ideia de

morrer bem Foucault (2010a p 412) observa que para os estoicos o pensamento

em relaccedilatildeo agrave morte apreende o valor do presente pois a morte eacute um processo

contiacutenuo desde o nascimento e viver eacute morrer um pouco a cada dia

A chance de falar de si mesmo e usar esse meio como forma de argumentaccedilatildeo e

convencimento de seu destinataacuterio torna-se um meio favorecido pelo gecircnero

epistolar Segundo Paul Veyne (1995 p 251) na Antiguidade um escritor soacute

poderia manifestar-se livremente para falar de si mesmo283 com fins de edificaccedilatildeo

filosoacutefica ou religiosa Entatildeo a melhor forma de convencimento era colocar como

exemplo a proacutepria existecircncia Secircneca encontra espaccedilo na filosofia para falar de si

atraveacutes do gecircnero epistolar e Paulo no campo religioso para se colocar diante de

seus destinataacuterios tomando sua proacutepria experiecircncia de conversatildeo como exemplo

pessoal em suas epiacutestolas

O exemplo como argumento retoacuterico tambeacutem eacute utilizado po Paulo em suas epiacutestolas

agrave igreja de Corinto A escolha dos exemplos em Secircneca eacute direcionada pelo discurso

constituinte filosoacutefico Nas epiacutestolas de Paulo os exemplos tecircm sustentaccedilatildeo no

discurso constituinte religioso

283

Paul Veyne (1995 p 251) constata que se o poeta falava de si de seus amores e assim por diante tudo era considerado ficccedilatildeo

230

222 Exemplos nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto

No discurso religioso da cultura judaico-cristatilde lugar de onde Paulo enuncia

registrando a escrita de suas epiacutestolas haacute um princiacutepio de valorizaccedilatildeo de eventos

histoacutericos como prova e testemunho da atuaccedilatildeo de Deus Eacute nesse sentido que os

exemplos apontados na escrita de Paulo tanto evidenciam a atuaccedilatildeo de Deus no

passado quanto no seu proacuteprio presente Atraveacutes da histoacuteria de personagens que se

destacaram quer de forma positiva pela vida e experiecircncia na relaccedilatildeo com Deus

quer de forma negativa pela desobediecircncia os exemplos contribuem para

atualizaccedilatildeo do passado no momento presente da enunciaccedilatildeo No texto biacuteblico

muitos exemplos em certas circunstacircncias atuam como uma representaccedilatildeo

alegoacuterica para se entender os significados de fenocircmenos da atualidade por uma

imagem simboacutelica do passado

Nas duas epiacutestolas dirigidas agrave igreja de Corinto Paulo investe no uso do exemplo

testemunhal como forccedila persuasiva no discurso com vistas aos ensinamentos

admoestaccedilotildees e reflexotildees A partir desse recurso os exemplos comparecem no

discurso com uma determinada finalidade para as quais cada um se destina Na

primeira epiacutestola o destaque eacute para o capiacutetulo dez pois fornece um exemplo

construiacutedo a partir de imagens alegoacutericas Esse exemplo eacute constituiacutedo atraveacutes do

resgate da memoacuteria por meio da experiecircncia vivida pelo povo de Israel durante sua

jornada de quarenta anos pelo deserto Em conjunto com essa memoacuteria histoacuterica

baacutesica para o raciociacutenio indutivo Paulo expotildee que as experiecircncias do povo da

caminhada no deserto foram registradas para servir de exemplo agrave posteridade Ao

mesmo tempo o raciociacutenio dedutivo resulta na aplicaccedilatildeo da alegoria adotada como

reforccedilo aos postulados expostos

Pois natildeo quero irmatildeos que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem e todos passaram pelo mar e na nuvem e no mar todos foram batizados em Moiseacutes e todos comeram do mesmo alimento espiritual e beberam todos da mesma bebida espiritual porque bebiam da pedra espiritual que os acompanhava e a pedra era Cristo Mas Deus natildeo se agradou da maior parte deles pelo que foram prostrados no deserto Ora estas coisas nos foram feitas para exemplo a fim de que natildeo cobicemos as coisas maacutes como eles cobiccedilaram E natildeo murmureis como alguns deles murmuraram e pereceram pelo destruidor Ora tudo isto lhes acontecia como exemplo e foi escrito para aviso nosso para quem jaacute satildeo chegados os fins dos seacuteculos (1Cor 10 1-6 10-11)

Em seus ensinamentos Paulo traz para seu discurso a imagem do povo de Israel na

caminhada no deserto em busca da terra prometida Com os recursos dessa

231

imagem ele estaacute apontando para os riscos da desobediecircncia Este mesmo exemplo

acionado por Paulo foi usado na literatura poeacutetica pois o texto em Salmos setenta e

oito284 eacute todo construiacutedo em torno dos relatos da histoacuteria da caminhada do povo de

Israel jaacute deixando nas entrelinhas um posicionamento de captaccedilatildeo de sentidos

alegoacutericos Mais tarde o meacutetodo alegoacuterico vai ser amplamente assumido e utilizado

por Fiacutelon de Alexandria que tambeacutem retoma essa narrativa das experiecircncias do

povo hebraico em sua trajetoacuteria histoacuterica rumo ao lugar tatildeo almejado Acerca desse

fato Becker (2007 p89) informa que ldquoa interpretaccedilatildeo sinagogal da Septuaginta

conhece jaacute o meacutetodo alegoacuterico influiacutedo de espiacuterito grego tal como Paulo o usardquo

De acordo com Stern a alegoria usada por Fiacutelon285 que relaciona as figuras do

manaacute e da aacutegua com a palavra e a sabedoria de Deus pode ter servido de base

para essa construccedilatildeo alegoacuterica feita por Paulo Este autor ainda acrescenta que de

acordo com o Aggadah286 ldquoos filhos de Israel eram acompanhados no deserto por

uma pedra rolante da qual manava aacuteguardquo (STERN 2008 p 508)

Essas informaccedilotildees contribuem para a identificaccedilatildeo dos efeitos da intertextualidade

entre o texto de Paulo com outros textos que o antecederam como um lugar comum

na literatura hebraica A alegoria paulina resgatada da passagem aqui analisada e

revestida da finalidade da aplicaccedilatildeo dos significados traz para a enunciaccedilatildeo a forccedila

argumentativa do exemplo Paulo extrai da narrativa da caminhada do povo de Israel

vaacuterios modelos associados agraves situaccedilotildees vividas pelos seus liderados naquele

284

No livro de Salmos (78 13-18 23) o poeta assim traz o exemplo da desobediecircncia do povo de Israel [] Dividiu o mar e os fez atravessar barrando as aacuteguas como num dique De dia guiou-os com a nuvem e com a luz de um fogo toda a noite fendeu rochedos pelo deserto e deu-lhes a beber como a fonte do grande Abismo da pedra fez brotar torrentes e as aacuteguas desceram como rios Mas continuaram pecando contra ele rebelando-se contra o Altiacutessimo na estepe tentaram a Deus em seu coraccedilatildeo pedindo comida conforme seu gosto [] Contudo ordenou agraves nuvens do alto e abriu as portas do ceacuteu para os alimentar fez chover o manaacute deu para eles o trigo do ceacuteu 285

Charles Duke Yonge traduziu do grego para o inglecircs (1854-55) o conjunto das obras de Fiacutelon de Alexandria intitulada The Works of Philo ldquo[hellip] and the thirst which is that of the passions seizes on it until God sends forth upon it the stream of his own accurate wisdom and causes the changed soul to drink of unchangeable health for the abrupt rock is the wisdom of God which being both sublime and the first of things he quarried out of his own powers and of it he gives drink to the souls that love God and they when they have drunk are also filled with the most universal manna for manna is called something which is the primary genus of everything But the most universal of all things is God and in the second place the word of Godrdquo [hellip] (Allegorical Interpretation II 86) ( [hellip] e a sede que eacute a das paixotildees se apodera dela (alma) ateacute que Deus envia sobre ela (alma) o fluxo de sua proacutepria sabedoria e faz com que a alma mudada beba de sauacutede imutaacutevel pois a rocha abrupta eacute a sabedoria de Deus que eacute sublime e a primeira das coisas que ele extraiu de seus proacuteprios poderes e dele daacute bebida agraves almas que amam a Deus E eles quando bebem satildeo tambeacutem enchidos com o manaacute mais universal pois o manaacute eacute chamado de algo que eacute o gecircnero primaacuterio de tudo Mas a mais universal de todas as coisas eacute Deus e em segundo lugar a palavra de Deusrdquo [] ) 286

Aggadah eacute a designaccedilatildeo para o material lendaacuterio e midraacuteshico da cultura hebraica tecido em torno do Tanakh (conjunto dos livros sagrados do judaiacutesmo)

232

momento As imagens do manaacute e da aacutegua satildeo aplicadas como metaacuteforas analoacutegicas

aos siacutembolos da ceia do Senhor Supostamente esta histoacuteria do povo de Israel jaacute

era conhecida pela igreja de Corinto visto que Paulo jaacute parte das analogias De

acordo com o entendimento e interpretaccedilatildeo de Brakemeier (2008 128) a alegoria

usada fornece aplicaccedilatildeo tambeacutem para as questotildees do batismo Paulo associa a

experiecircncia da travessia do mar com o batismo em Moiseacutes fazendo comparaccedilatildeo

com o ato do batismo cristatildeo de seu tempo

Quando Paulo expotildee que no deserto o povo foi saciado com comida (manaacute) e aacutegua

espiritual (de origem divina) haacute uma analogia com o ato da ceia do Senhor Nessa

mesma linha Schreiner (2015 p 350) tambeacutem interpreta esse exemplo de Paulo

apontando que as imagens de alimento e aacutegua representavam uma antecipaccedilatildeo do

memorial da ceia do Senhor

Na exposiccedilatildeo de Paulo a aacutegua espiritual jorrava daquela rocha que acompanhava a

trajetoacuteria do povo e essa rocha era Cristo Stern (2008 508) sugere que a ideia de

Paulo em comparar aquela rocha com Cristo tem base em outros textos biacuteblicos

que apontam para essa analogia287 Outra ligaccedilatildeo que pode ser acrescentada eacute a

intertextualidade com a cena do diaacutelogo de Jesus com a mulher samaritana quando

Ele declarou ser a fonte da aacutegua viva (Joatildeo 410) Assim a imagem da rocha como

Cristo fornece duas aplicaccedilotildees distintas mas que se interligam Em primeiro lugar

lanccedilando um olhar para a rocha que caminhava com o povo no deserto vecirc-se que

sua caracteriacutestica era a de uma fonte de aacutegua que tinha como funccedilatildeo saciar a sede

Em segundo lugar a rocha fornece outra analogia que funciona como fundamento

para a edificaccedilatildeo Assim Paulo afirma ldquoMas cada um veja como constroacutei Quanto ao

fundamento ningueacutem pode por outro diverso do que foi posto Jesus Cristordquo (1 Cor

311) Quanto ao uso da imagem da rocha comparada com Cristo Heyer formula o

seguinte comentaacuterio

Paulo queria prevenir a comunidade de Corinto e serviu-se da viagem do povo de Israel pelo deserto para consegui-lo A fim de dar mais ecircnfase agrave sua comparaccedilatildeo sugeriu que Cristo jaacute acompanhava o povo de Israel mas nem sequer a presenccedila da ldquorocha no desertordquo foi suficiente para salvar a todos ante a idolatria e a impiedade (HEYER 2009 p 113)

287

Jesus poreacutem fixando o olhar neles disse Que significa entatildeo o que estaacute escrito A pedra que os edificadores tinham rejeitado tornou-se a pedra angular ( Lucas 20 17)

233

Com esta compreensatildeo do uso da metaacutefora da rocha como Cristo Heyer tambeacutem

interpreta a posiccedilatildeo de Paulo em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo desse siacutembolo alegoacuterico

como forma de prevenir os participantes da igreja de Corinto contra os riscos das

consequecircncias da desobediecircncia e idolatria Paulo alerta que mesmo o povo de

Israel sendo acompanhado pela rocha que eacute Cristo deixou-se levar pelos atrativos

do pecado sendo que a maior parte daquela geraccedilatildeo que saiu do Egito natildeo teve a

oportunidade de entrar na Canaatilde prometida

Pode-se pensar que essas analogias impliacutecitas satildeo identificadas como

heterogeneidade enunciativa pois outros discursos estatildeo funcionando como

interdiscurso na sustentaccedilatildeo do discurso que se atualiza na enunciaccedilatildeo Vale

observar que no periacuteodo que Paulo escreveu suas epiacutestolas ainda natildeo havia

circulaccedilatildeo da escrita dos evangelhos e a oralidade era vital para transmissatildeo dos

ensinamentos de Jesus Hale (1983 p 57) defende que o primeiro evangelho a ser

escrito foi o de Marcos o que deve ter ocorrido logo apoacutes a morte de Paulo mais ou

menos em 65 dC Paulo traz para sua enunciaccedilatildeo a complementaridade de um

passado mais remoto com o de um passado mais recente interligando certos

sentidos atraveacutes dos intertextos tanto da escrita quanto da oralidade

Na enunciaccedilatildeo desse exemplo Paulo segue uma sequecircncia loacutegica Primeiro coloca

em cena um fato histoacuterico dos antepassados construindo conjuntamente uma

alegoria com as imagens do mar do manaacute e da aacutegua que implicitamente podem

tambeacutem ser remetidas agraves experiecircncias da igreja de Corinto com relaccedilatildeo ao batismo

e agrave celebraccedilatildeo da ceia Na sequecircncia ele faz uso de um entimema com a seguinte

construccedilatildeo retoacuterica ldquoMas Deus natildeo se agradou da maior parte deles pelo que foram

prostrados no desertordquo (1Cor105) Essa construccedilatildeo entimemaacutetica serve como

argumento para introduzir os ensinamentos e admoestaccedilotildees que ele deseja

ministrar pelo uso do raciociacutenio indutivo ldquoOra esses fatos aconteceram para nos

servir de exemplo a fim de que natildeo cobicemos coisas maacutes como eles cobiccedilaramrdquo

(1Cor 106)

Em um contexto de compreensatildeo equivocada do significado de algumas praacuteticas

rituais como o da celebraccedilatildeo da ceia e do batismo Paulo trata alegoricamente o

exemplo que traz para seu discurso com finalidades persuasivas percebiacuteveis na

forma como ele o aplica aos seus conselhos De acordo com este ponto de vista

Schreiner expressa a seguinte opiniatildeo

234

O texto de 1 Coriacutentios 10 daacute a entender que alguns estavam compreendendo o batismo e a ceia do Senhor num sentido maacutegico achando que por participar deles seriam preservados de qualquer mal de modo que poderiam pecar impunemente [] Para combater essa visatildeo Paulo constroacutei uma analogia entre a experiecircncia de Israel e a dos crentes (SCHREINER 2015 p 346)

Como informa Schreiner (2015 p 350) no tempo de Paulo a primeira parte da

celebraccedilatildeo da ceia funcionava como momento comum de uma refeiccedilatildeo e como

efeito comeccedilou haver desentendimento a respeito da distribuiccedilatildeo desigual Diante

dessa situaccedilatildeo Paulo exortou a comunidade quanto ao verdadeiro significado

daquela observacircncia Em relaccedilatildeo ao batismo havia certa facccedilatildeo entre os

componentes da igreja de Corinto em funccedilatildeo do valor das lideranccedilas de Paulo de

Apolo e de Pedro talvez pela preferecircncia daquele liacuteder288 que os havia batizado A

esse respeito Schreiner (2015 p 347) reflete que nesse contexto o batismo podia

estar sendo indevidamente exaltado perdendo seu significado simboacutelico Conforme

observa Thielman (2007 p 331) uma preocupaccedilatildeo relevante na epiacutestola de Paulo

dirigida aos participantes da igreja de Corinto era promover a concoacuterdia e a uniatildeo

Alguns usos e costumes estavam tornando-se conflitantes naquela comunidade

entre os quais estaacute incluiacutedo o modo de compreensatildeo do significado da celebraccedilatildeo

da ceia pois no capiacutetulo seguinte Paulo fornece as instruccedilotildees de como o ato deveria

ser realizado

As aplicaccedilotildees do exemplo levantado sugerem que Paulo estava aconselhando a

comunidade de Corinto com o propoacutesito de fazecirc-la refletir por meio de figuras

alegoacutericas que nem o valor simboacutelico da passagem pelo mar vermelho nem a

presenccedila da rocha (Cristo) que os acompanhava nem o patildeo e a aacutegua espiritual que

os alimentava serviram de livramento da condenaccedilatildeo Portanto fica entendido que a

desobediecircncia e a idolatria foram as causas da puniccedilatildeo pois com tais atitudes o

povo natildeo conseguiu alcanccedilar o verdadeiro significado da presenccedila constante da

rocha como fonte que jorrava aacutegua e do manaacute que caiacutea do ceacuteu No fechamento de

sua ideia quanto aos significados da alegoria Paulo enfatiza ldquoEstas coisas lhes

aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para nossa instruccedilatildeordquo (1Cor

1011) Desse modo Paulo elabora seu aconselhamento natildeo com imposiccedilatildeo ou

288

Segundo Stern (2008 p 480) ldquopor um lado Apolo era o sucessor de Paulo na igreja de Corinto e viveu na Alexandria helenizada e poderia ter uma formaccedilatildeo influenciada por Filo de Alexandria Por outro lado Pedro em seus ensinamentos teria enfatizado a tradiccedilatildeo judaica Portanto Paulo estaria em uma posiccedilatildeo de acordo entre as duas partes atendendo aos gregos e judeusrdquo Stern (2008 p 481) observa que naquele contexto Paulo se referia aos gentios como gregos ou seja os gentios eram os natildeo judeus

235

proibiccedilatildeo mas com a forccedila de um exemplo registrado na literatura hebraica Assim

apreende-se um efeito de intertextualidade que permite atualizar a discursividade de

um fato passado no presente daquela comunidade de Corinto

Aleacutem do uso argumentativo do exemplo histoacuterico como identificado em Secircneca

Paulo tambeacutem valendo-se do gecircnero epistolar expotildee sua subjetividade usando o

exemplo pessoal como forma de alcanccedilar seus destinataacuterios Sua segunda epiacutestola

dirigida agrave igreja de Corinto eacute marcada pela franqueza e sinceridade ficando claro

que ele deseja consolar mas tambeacutem manifesta sua necessidade de ser consolado

Logo no iniacutecio da epiacutestola esta questatildeo eacute ventilada e Paulo se expressa dizendo que

ldquosabendo que compartilhando os nossos sofrimentos compartilhareis tambeacutem a

nossa consolaccedilatildeordquo (2Cor 17) Eacute nesse contexto que na sequecircncia da epiacutestola

Paulo assim se expotildee no quarto capiacutetulo

7-Temos poreacutem este tesouro em vasos de barro para que a excelecircncia do poder seja de Deus e natildeo de noacutes 8- Em tudo somos atribulados mas natildeo angustiados perplexos mas natildeo desanimados 9 - perseguidos mas natildeo desamparados abatidos mas natildeo destruiacutedos 10 - Trazendo sempre por toda a parte a mortificaccedilatildeo do Senhor Jesus no nosso corpo para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem nos nossos corpos 11 - E assim noacutes que vivemos estamos sempre entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem na nossa carne mortal 14- Sabendo que o que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitaraacute tambeacutem por Jesus e nos apresentaraacute convosco 15- Porque tudo isto eacute por amor de voacutes para que a graccedila multiplicada por meio de muitos faccedila abundar a accedilatildeo de graccedilas para gloacuteria de Deus 16 - Por isso natildeo desfalecemos mas ainda que o nosso homem exterior se corrompa o interior contudo se renova de

dia em dia (2Cor 4 7-11 14 -16)

Nesses versos do capiacutetulo quatro Paulo se coloca pessoalmente diante de

acusaccedilotildees de seus adversaacuterios falando em seu proacuteprio nome e nos de seus

companheiros de missatildeo No verso sete ele usa a metaacutefora ldquovaso de barrordquo em

sintonia textual com o antigo testamento que tambeacutem em sentido metafoacuterico era

anunciado pela voz dos profetas289 apontando que ldquoDeus eacute o oleiro e o homem eacute o

barrordquo Este eacute um toacutepos que amplia as relaccedilotildees de intertextualidade com outros

textos como o da narrativa do livro de Gecircnesis pois o homem foi criado do poacute da

terra no princiacutepio de tudo O efeito dessa heterogeneidade discursiva eacute reforccedilar a

noccedilatildeo de finitude de que o ser humano eacute constituiacutedo De acordo com essa

perspectiva Paulo parte da afirmativa ldquotemos poreacutem este tesouro em vasos de

barrordquo para argumentar sobre o toacutepos ldquofragilidade do corpordquo como vulnerabilidade do

289

Livro de Jeremias 181-6 e Livro de Isaias 648

236

ser humano em oposiccedilatildeo ao poder de Deus Identifica-se a seguinte conclusatildeo

entimemaacutetica ldquopara que a excelecircncia do poder seja de Deus e natildeo de noacutesrdquo Com

esta conclusatildeo Paulo confirma uma concepccedilatildeo de Deus que natildeo poderia ser

ignorada ou seja a sua soberania sobre o mundo em contraposiccedilatildeo ao

pensamento estoico de um deus imanente

Kruse (2008 p106) observa que o contraste entre tesouro e vaso de barro tem o

propoacutesito de mostrar que o poder transcendente pertence a Deus e natildeo ao homem

Desse ponto de vista o exemplo pessoal colocado por Paulo fundamenta-se em um

propoacutesito de mostrar os dois lados de uma mesma moeda isto eacute a fragilidade do

homem e o poder de Deus como enunciado em forma paradoxal ldquoatribulados mas

natildeo angustiados perseguidos mas natildeo desamparados abatidos mas natildeo

destruiacutedosrdquo (vs 8 e 9) A partir dessa mesma convicccedilatildeo Paulo declara agrave igreja de

Filipos ldquoTudo posso naquele que me fortalecerdquo (Fil 413)

Na anaacutelise da segunda epiacutestola aos Coriacutentios Heyer chama atenccedilatildeo para o fato de

que Paulo usa o sintagma Cristo Jesus ou Jesus Cristo somente nos seis versos

iniciais do capiacutetulo quatro mencionado acima A partir do verso sete ele introduz a

metaacutefora tesouro em vaso de barro e nos versos seguintes a designaccedilatildeo Jesus e

natildeo Cristo Jesus ou Jesus Cristo290

Paulo contrariamente a seu costume natildeo fala de Cristo Jesus ou Jesus Cristo mas somente de Jesus e mais precisamente da ldquomorte de Jesusrdquo e da ldquovida de Jesusrdquo O apoacutestolo elegeu deliberadamente e com seguranccedila essas expressotildees Com isso opunha-se a certas mudanccedilas que estavam se produzindo na comunidade de Corinto e que o preocupavam Sob a influecircncia de certas concepccedilotildees gnoacutesticas alguns estavam criando uma imagem de Cristo fortemente espiritualizada e que carregava uma grande ecircnfase em sua glorificaccedilatildeo ateacute o ponto que a vida terrena de Jesus corria perigo de desaparecer ou de ser relegada ao uacuteltimo plano (HEYER 2008 p 153)

Com base nessa observaccedilatildeo de Heyer pode-se constatar que o exemplo pessoal

de Paulo na manifestaccedilatildeo de um ethos de fragilidade que aponta para a finitude que

cerca o ser humano atualiza a figura de Jesus em sua humanidade vulneraacutevel ao

290

No texto desta passagem em grego fica evidente no trecho citado a ausecircncia dos sintagmas Cristo Jesus ou Jesus Cristo frequentes na escrita de Paulo mas somente Jesus (ιησου) ldquoE assim noacutes que vivemos estamos sempre entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem na nossa carne mortalrdquo ( 2 Cor 411) αει γαρ ημεις οι ζωντες εις θανατον παραδιδομεθα δια ιησουν ινα και η ζωη του ιησου φανερωθη εν τη θνητη σαρκι ημων

237

sofrimento Esse fato eacute fundamental para estabelecimento do valor do sacrifiacutecio de

Jesus e que tambeacutem serve de exemplo para Paulo e seus colaboradores Eacute a partir

dessa perspectiva que a certeza da vitoacuteria de Jesus sobre a morte torna-se ponto de

referecircncia para fortalecimento da coragem parresiacutea e disposiccedilatildeo de seus

seguidores em enfrentar os perigos da morte O posicionamento discursivo na

escrita de Paulo remete a esse lugar que fundamenta seu proacuteprio exemplo e assim

ele toma Jesus como modelo exemplar e na sequecircncia de sua epiacutestola escreve aos

participantes da igreja de Corinto ldquoSede meus imitadores como eu mesmo sou de

Cristordquo (1Cor 111)

De acordo com a visatildeo de Thielman (2007 402) Paulo se firma na certeza de que

as marcas do sofrimento de Jesus estatildeo impressas na exterioridade de seu corpo

mas em seu interior estaacute firmada a garantia da recompensa de uma eternidade com

Ele Este eacute o significado da aplicaccedilatildeo retoacuterica da metaacutefora tesouro em analogia agrave

alma salva que seu fraacutegil corpo abriga Este tambeacutem eacute um dos contrapontos frente

aos estoicos em relaccedilatildeo agrave eternidade que mesmo concebendo a imortalidade da

alma natildeo fazem uma referecircncia consistente quanto ao seu destino

Em Paulo a parresiacutea como coragem no enfrentamento da morte eacute fortalecida pela

esperanccedila da ressurreiccedilatildeo Brakemeier (2008 101-218) aponta que Paulo insiste

em um ponto crucial da implantaccedilatildeo do cristianismo a ressurreiccedilatildeo de Jesus Tal

fato significou a garantia da continuidade do ministeacuterio do proacuteprio Jesus atraveacutes de

seus seguidores A certeza da realidade daquele Jesus vivo tornou-se como fonte

para o enfrentamento da vulnerabilidade do corpo que como vaso de barro volta a

terra mas pela ligaccedilatildeo com Jesus eacute certa a garantia da ressurreiccedilatildeo Este eacute o ponto

fundamental de identidade do cristianismo sem nenhum similar com nenhuma

corrente filosoacutefica ou religiosa que o antecedeu delimitando um distanciamento

entre cristianismo e estoicismo

Algumas observaccedilotildees de Penner e Stichele (2009 p 250-252) evidenciam que nos

primoacuterdios do cristianismo uma marca caracteriacutestica do uso da retoacuterica eacute a

evocaccedilatildeo de textos sagrados do Velho Testamento Desse modo textos

pertencentes agraves escrituras hebraicas podem servir de intertexto tanto nos livros dos

evangelhos quanto nas epiacutestolas Estes autores ainda destacam a forccedila dos

exemplos como fonte para exortaccedilatildeo Assim tanto os testemunhos quanto os

238

exemplos dos antigos funcionam como uma forma de reconfiguraccedilatildeo da parresia

para criar um efeito de estiacutemulo agrave coragem e determinaccedilatildeo

O exemplo em sua funccedilatildeo argumentativa serve de orientaccedilatildeo para uma forma

modelar a ser seguida Conclui-se que do mesmo modo como Secircneca apresenta em

seu discurso um exemplo histoacuterico a ser seguido e tambeacutem se coloca como exemplo

de suas proacuteprias convicccedilotildees diante de seu destinataacuterio Paulo tambeacutem lanccedila matildeo

deste mesmo recurso retoacuterico em suas argumentaccedilotildees Mesmo recorrendo ao

exemplo como argumento retoacuterico cada um desses autores eacute guiado pelo discurso

constituinte que funciona como direcionamento para a tomada de um

posicionamento discursivo na produccedilatildeo de suas epiacutestolas

No proacuteximo item as citaccedilotildees tambeacutem satildeo vistas como argumento retoacuterico mas seu

lugar na enunciaccedilatildeo tem um efeito discursivo distinto do exemplo Tambeacutem a

estrateacutegia argumentativa de integrar outra voz enunciante no proacuteprio discurso eacute

determinada pelo posicionamento que o enunciador assume em seu discurso

23 CITACcedilOtildeES E ENTRECRUZAMENTO DE DISCURSOS CONSTITUINTES

Eacute preciso temperar a leitura com a escrita e reciprocamente de modo que a composiccedilatildeo escrita decirc corpo agravequilo que a leitura recolheu Foucault (2010a p320)

291

As citaccedilotildees comparecem em determinados gecircneros do discurso de acordo com a

imagem que se constroacutei do leitor segundo Maingueneau o leitor modelo Macedo

(2012 p 40) em sua tese sobre este tema adverte que para se perceber a funccedilatildeo

de uma citaccedilatildeo eacute tambeacutem indispensaacutevel levar em conta o contexto em que ela estaacute

inserida Na verdade para quem cita eacute importante projetar no puacuteblico alvo a quem a

obra se dirige a proacutepria capacidade e habilidade de uso de fontes valorizadas como

no caso de Secircneca e de Paulo em suas epiacutestolas

Na colocaccedilatildeo de Maingueneau (1997 p 100) o responsaacutevel pela enunciaccedilatildeo na

qualidade de citante da voz que ressoa de um lugar de autoridade remete-se a um

locutor ausente que garante a validade da enunciaccedilatildeo Quem identifica a autoridade

291

Paraacutefrase de Foucault (2010a p320) com base na epiacutestola oitenta e quatro de Secircneca em seus conselhos sobre leitura e escrita [] ldquodevemos alternar ambas as atividades (leitura e escrita) equilibraacute-las para que a pena venha a dar forma agraves ideias coligidas das leituras (Ep 84 2)

239

da voz citada eacute a coletividade que compartilha certos enunciados fundadores de um

determinado posicionamento discursivo

Das muitas fontes que contribuem para essas concepccedilotildees de noccedilatildeo de citaccedilatildeo

destacam-se as que satildeo identificadas na composiccedilatildeo dos estudos de Bakhtin (2004)

O conceito de citaccedilatildeo apresentado por este autor pode ser considerado como

demonstraccedilatildeo de um iacutecone do entendimento do dialogismo na linguagem ldquoo

discurso citado eacute o discurso no discurso a enunciaccedilatildeo na enunciaccedilatildeo mas eacute ao

mesmo tempo um discurso sobre o discurso uma enunciaccedilatildeo sobre a enunciaccedilatildeordquo

(BAKHTIN 2004 p 144) De acordo com esta constataccedilatildeo este autor distingue as

duas tendecircncias mais evidentes em relaccedilatildeo ao discurso citado Por um lado pode

haver o destaque do discurso citado que congrega a forccedila de sua autonomia

definindo sua importacircncia e papel na cena enunciativa Por outro lado a voz do que

enuncia pode ser confundida com a voz do que eacute citado Em concordacircncia com esta

primeira tendecircncia Charaudeau (2008 p 240) acrescenta ainda que no modo

argumentativo do discurso a citaccedilatildeo ldquoconsiste em referir-se o mais fielmente

possiacutevel agraves emissotildees escritas ou orais de um outro locutor diferente daquele que

cita para produzir na argumentaccedilatildeo um efeito de autenticidaderdquo Por isso

Charaudeau (2008 p240) ainda ressalta que ldquoa citaccedilatildeo funciona como uma fonte de

verdade testemunho de um dizer de uma experiecircncia de um saberrdquo

O modo de citar apresenta certas nuances de acordo com o tipo de discurso ou

mesmo em detrimento de diferenciados posicionamentos que podem ser assumidos

na cena enunciativa Bakhtin (2004 p153) pondera que ldquoo discurso retoacuterico

diferentemente do discurso literaacuterio pela proacutepria natureza da sua orientaccedilatildeo natildeo eacute

tatildeo livre na sua maneira de tratar as palavras de outremrdquo No desenrolar de suas

consideraccedilotildees Bakhtin (2004 p153) aponta a importacircncia da comunicaccedilatildeo soacutecio-

verbal na transmissatildeo do discurso de outrem pois existe influecircncia das forccedilas

sociais na apreensatildeo do discurso292

Partindo desses princiacutepios que auxiliam na identificaccedilatildeo do fenocircmeno da citaccedilatildeo na

heterogeneidade da linguagem deve-se ressaltar tambeacutem que nesta perspectiva

haacute uma sustentaccedilatildeo da concepccedilatildeo do discurso como produto do interdiscurso

sendo este constituiacutedo pela relaccedilatildeo entre os discursos 292

Bakhtin (2004 p143) menciona a questatildeo da ausecircncia de atenccedilatildeo ao fenocircmeno do discurso citado tatildeo relevante na linguagem Assim ele procura dar uma orientaccedilatildeo socioloacutegica agrave sua proacutepria metodologia na observaccedilatildeo da transmissatildeo do discurso de outrem

240

A seguir atraveacutes da anaacutelise de textos de epiacutestolas de Secircneca e de Paulo que

contecircm citaccedilotildees de diferentes fontes procura-se observar como o discurso do outro

eacute assumido em seus proacuteprios discursos e que ressonacircncias essas vozes trazem

para a enunciaccedilatildeo Em suma que significados trazem para a enunciaccedilatildeo a

presenccedila do outro como uma voz que se manifesta com uma determinada

finalidade por parte do enunciador que articula sua proacutepria fala com a do outro Que

efeitos discursivos resultam do atravessamento de outros discursos constituintes em

que cada um tem a sua autonomia mas contribuem na promoccedilatildeo dos sentidos pelo

fenocircmeno de sua presenccedila em outro discurso como no caso dos discursos

religioso filosoacutefico e literaacuterio

231 Citaccedilotildees de maacuteximas e versos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Na abordagem de Aristoacuteteles em que ele concebe os entimemas e exemplos como

constituintes do corpo da retoacuterica a maacutexima pode ser vista como premissa ou

conclusatildeo de um entimema Isto implica dizer que quando eacute colocada uma

conclusatildeo em uma maacutexima esta se torna um entimema Aristoacuteteles fornece o

exemplo de duas maacuteximas ldquoNatildeo haacute homem que seja inteiramente felizrdquo ldquoNatildeo haacute

homem que seja livrerdquo Estas duas premissas satildeo maacuteximas mas se for

acrescentada a conclusatildeo ldquoporque o homem eacute escravo da riqueza ou da fortunardquo

entatildeo seraacute um entimemema (Ret II 1394b) Outro aspecto que Aristoacuteteles aborda

sobre o valor do uso da maacutexima eacute o seu caraacuteter eacutetico Desse modo as maacuteximas

revestem-se de uma funccedilatildeo de aplicaccedilatildeo moral no discurso (Ret II 1395b)

O termo maacutexima eacute uma traduccedilatildeo de gnome do grego (γνώμη) conforme a escrita de

Aristoacuteteles293 na obra Retoacuterica e tem sentido de declaraccedilatildeo opiniatildeo ou afirmaccedilatildeo

Na retoacuterica latina o termo gnome eacute traduzido como sententiae como informa

Quintiliano294 (Inst Or VIII 5 3) Martin Dinter (2015 p 52) observa que ldquoSententiae

satildeo tidas como pontos-alto de arte retoacuterica e vistas como o legado mais duradouro

do autor aleacutem disso satildeo extraiacuteveis e incorporaacuteveis em novos textos literaacuteriosrdquo Este

autor ainda acrescenta ldquoas sententiae ajudam a construir uma base eacutetica plausiacutevel

293

Segundo Martin Dinter (2015 p56) Aristoacuteteles em sua discussatildeo sobre o uso de gnome na Retoacuterica (2211395b) sugere que talvez haja relaccedilatildeo entre o caraacuteter moral do autor e a qualidade eacutetica de sua gnome 294

Antiquissimae sunt quae proprie quamvis omnibus idem nomen sit sententiae vocantur quas

Graeci gnomas appellant (Inst Or VIII 5 3) Ao referir-se ao uso de sententia Quintiliano observa

que as mais antigas satildeo aquelas que embora todas tenham o mesmo nome satildeo chamadas de sententiae as quais os gregos datildeo o nome de gnome

241

para a apresentaccedilatildeo da visatildeo do autorrdquo Martin Dinter (2014 p 323) em suas

pesquisas sobre o uso de sententiae nas trageacutedias de Secircneca identifica a

importacircncia de Secircneca o Velho na transmissatildeo da sua coletacircnea de sententiae

para os seus filhos A evidecircncia desse fato eacute notada no modo como Secircneca faz uso

recorrente de sententiae na sua obra poeacutetica e filosoacutefica

Na traduccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca Segurado e Campos opta por traduzir o termo

sententiae como maacuteximas estabelecendo um uso comum para as formas como

Secircneca aplica o termo em suas epiacutestolas O uso do termo maacuteximas tanto refere-se a

sententiae no latim como a gnome no grego Portanto na pesquisa aqui

desenvolvida fica mantido o termo maacuteximas como traduzido por Segurado e

Campos

Nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio destaca-se o uso frequente de citaccedilotildees de

maacuteximas Como estrateacutegia retoacuterica Secircneca defende tanto o uso de maacuteximas quanto

de versos Na epiacutestola noventa e quatro ele desenvolve alguns argumentos sobre a

importacircncia e papel da advertecircncia e dos preceitos e daacute as seguintes instruccedilotildees

[] preceitos ministrados podem ter por si soacute muita forccedila se vierem por exemplo sob forma meacutetrica ou mesmo em prosa sob forma de uma sentenccedila concisa Tal acontece por exemplo com as famosas maacuteximas de Catatildeo Natildeo compres o necessaacuterio mas apenas o imprescindiacutevel o que natildeo eacute necessaacuterio mesmo por um tostatildeo jaacute eacute caro ou entatildeo com as natildeo menos ceacutelebres sentenccedilas oraculares ou semelhantes aproveita o tempo conhece-te a ti mesmo [] Tais maacuteximas natildeo carecem de advogado atuam diretamente sobre as paixotildees a sua utilidade nasce do fato de elas exercerem a sua accedilatildeo por forccedila da sua natureza (Ep 94 27-28)

Essas orientaccedilotildees de Secircneca aparecem nesta epiacutestola noventa e quatro como

constataccedilatildeo de sua proacutepria praacutetica na organizaccedilatildeo retoacuterica de seu discurso Quando

Secircneca afirma que as maacuteximas atuam diretamente sobre as paixotildees ele coloca em

pauta as trecircs provas do discurso ethos pathos e logos Ao enfatizar a accedilatildeo do logos

direcionado ao pathos Secircneca tambeacutem admite a importacircncia e valor da atenccedilatildeo aos

interesses e gostos dos seus leitores

Logo no iniacutecio da compilaccedilatildeo de suas epiacutestolas Secircneca usa uma estrateacutegia

argumentativa em suas citaccedilotildees de maacuteximas Ele declara a Luciacutelio que vai oferecer

uma maacutexima como brinde no fechamento de suas epiacutestolas Pode ser verificado

que da epiacutestola dois ateacute a vinte e nove Secircneca cumpre rigorosamente sua

promessa

242

O que se pode observar nessa estrateacutegia de Secircneca eacute o interesse em alcanccedilar seu

destinataacuterio com ensinamentos de princiacutepios da filosofia estoica de acordo com

seus proacuteprios posicionamentos De fato em algumas de suas epiacutestolas ele discorda

em alguns pontos com representantes do estoicismo inclusive de Zenatildeo mas

reafirma repetidas vezes que eacute integrante da escola estoica295

Nota-se que a primeira maacutexima oferecida a Luciacutelio eacute de Epicuro acompanhada da

sugestatildeo do uso diaacuterio de uma maacutexima para meditaccedilatildeo

Eacute isso o que eu mesmo faccedilo de muita coisa que li retenho uma certa maacutexima A minha maacutexima de hoje encontrei-a em Epicuro (eacute um haacutebito percorrer os acampamentos alheios natildeo como desertor mas sim como batedor) Diz ele Eacute um bem desejaacutevel conservar a alegria em plena pobrezardquo E com razatildeo pois se haacute alegria natildeo pode haver pobreza natildeo eacute pobre quem tem pouco mas sim que deseja mais (Ep 25-6)

Ao evocar uma maacutexima oriunda de um autor de oposiccedilatildeo filosoacutefica aos estoicos

Secircneca prova que natildeo adota uma posiccedilatildeo radical em relaccedilatildeo aos epicuristas mas

tenta extrair de pensadores daquela escola o que eacute proveitoso para suas proacuteprias

concepccedilotildees filosoacuteficas Isto eacute o que ele mesmo afirma que ao penetrar em

acampamento alheio ele natildeo se porta como desertor mas como batedor Com essa

afirmativa metafoacuterica ele anuncia que natildeo eacute um desistente do estoicismo mas um

usufruidor do epicurismo

Esta maacutexima que Secircneca aproveita de Epicuro tem como finalidade a confirmaccedilatildeo

de sua proacutepria posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao toacutepos que aborda pobreza riqueza Este

fato eacute identificado atraveacutes da construccedilatildeo de outra maacutexima que Secircneca superpotildee agrave

de Epicuro ldquonatildeo eacute pobre quem tem pouco mas sim quem deseja maisrdquo (Ep 26)

Outro assunto que Secircneca desenvolve apoiado em citaccedilotildees de maacuteximas eacute o tema

da morte As maacuteximas de Epicuro fornecem material para Secircneca discutir com

Luciacutelio sobre a preparaccedilatildeo para o enfrentamento da morte Esta eacute uma estrateacutegia

significativa porque ele parte do epicurismo para desenvolver suas concepccedilotildees de

princiacutepios estoicos Secircneca justifica-se diante de Luciacutelio quanto agraves suas escolhas

apontando que as maacuteximas de Epicuro pertencem a todos Para explicar sua opccedilatildeo

Secircneca faz a seguinte analogia ldquoEm mateacuteria de filosofia entendo que se pode

295

A respeito de certas divergecircncias pontuais entre integrantes da escola estoica Gazolla (1999 17) faz o seguinte comentaacuterio ldquoApesar de algumas diferenccedilas profundas de pensamento entre certos filoacutesofos estoicos satildeo todos eles partiacutecipes da escola estoica como se ela fosse um todo harmonioso que persistiu por quase quinhentos anos Como no caso de Secircneca teorizando e vivenciando os princiacutepios da stoa por vezes modifica-os em funccedilatildeo exatamente de sua proacutepria experiecircncia de vidardquo

243

proceder como no senado se algueacutem faz uma proposta que apenas me agrada em

parte mando-o dividi-la em aliacuteneas e dou o meu voto agrave aliacutenea que aprovordquo (Ep 21

9) Secircneca cita algumas maacuteximas de Epicuro para delas retirar o que eacute proveitoso

para a filosofia estoica

Ao chegar quase no final da seacuterie de epiacutestolas em que Secircneca oferece um brinde a

Luciacutelio com a oferta de maacuteximas fazendo um comentaacuterio bem metafoacuterico e

humorado com base em uma cena de transaccedilatildeo de negoacutecios decerto familiar no

setor econocircmico em que ambos participavam

Jaacute estava a terminar jaacute a minha matildeo se aprontava para a foacutermula final devo no entanto contar as moedas e dar a esta carta o seu viaacutetico Mesmo que eu natildeo diga a quem vou pedir o dinheiro emprestado tu jaacute calculaste a que cofre vou bater Mas espera por mim mais um pouco e eu passarei a pagar-te do meu proacuteprio bolso Entretanto o banqueiro seraacute Epicuro o qual nos aconselha a ldquomeditar na morterdquo ou a ldquoatribuir a maior importacircncia agrave aprendizagem da morterdquo (Ep 268)

Secircneca expotildee que Epicuro nos aconselha a ldquomeditar na morterdquo Este toacutepos eacute comum

agraves duas escolas mesmo tendo aplicaccedilotildees divergentes As reflexotildees sobre a morte

satildeo constantes na maior parte das epiacutestolas de Secircneca firmemente apoiando-se na

seleccedilatildeo de citaccedilotildees de maacuteximas na evoluccedilatildeo de suas argumentaccedilotildees

Aleacutem do recurso retoacuterico da citaccedilatildeo Secircneca coloca na cena enunciativa a presenccedila

do representante da escola filosoacutefica rival Com uma taacutetica persuasiva excepcional

ele procura convencer Luciacutelio a aceitar os princiacutepios da filosofia estoica valendo-se

do proacuteprio epicurismo como ponto de partida Quando Secircneca chega ao final do

cumprimento de sua proposta das ofertas de maacuteximas ele faz algumas

observaccedilotildees

Se natildeo fosses muito rigoroso bem poderias isentar-me do uacuteltimo pagamento mas natildeo vou ser mesquinho agora que a diacutevida estaacute no fim Aiacute tens o que devo ldquoNunca pretendi agradar ao vulgo daquilo que eu sei o vulgo natildeo gosta daquilo que o vulgo gosta natildeo quero eu saberrdquo Quem eacute o autor Pareces pensar que eu ignoro que pessoa eacute o meu disciacutepulo Eacute Epicuro mas o mesmo te diratildeo os mestres de todas as outras escolas peripateacuteticos acadecircmicos estoicos ciacutenicos (Ep 2910-11)

Segurado e Campos (1991 p XV) identifica que uma das caracteriacutesticas da diatribe

eacute ldquoo chamado locutor fictiacuteciordquo em que o autor imagina que sua afirmaccedilatildeo eacute

contestada pelo interlocutor passando a discutir com ele como se estivesse lendo

seus pensamentos Secircneca usa esse recurso como se estivesse em frente a Luciacutelio

ouvindo sua reaccedilatildeo em resposta agrave citaccedilatildeo da maacutexima Secircneca coloca suas palavras

na boca de Luciacutelio quem eacute o autor E o proacuteprio Secircneca exclama ldquoPareces pensar

244

que eu ignoro que pessoa eacute o meu disciacutepulordquo Nota-se a influecircncia dos ciacutenicos em

relaccedilatildeo ao uso da diatribe tanto no estilo da composiccedilatildeo de partes do discurso

quanto na indicaccedilatildeo dos exemplos a ser imitados e na citaccedilatildeo de maacuteximas que tecircm

a moral como pano de fundo

Em epiacutestolas anteriores Secircneca usou diferentes justificativas para suas citaccedilotildees de

maacuteximas de Epicuro alegando que ldquoqualquer boa maacutexima seja qual for o autor eacute

minha propriedaderdquo (quidquid bene dictum est ab ullo meum est) (Ep 167) No

fechamento do bloco de vinte oito epiacutestolas em que ele usou deliberadamente

maacuteximas de Epicuro eacute colocada a questatildeo da autoria Para ele depois que o

discurso eacute divulgado passa a ser de domiacutenio puacuteblico Isto eacute confirmado em sua

posiccedilatildeo quando se refere agraves demais escolas A esse respeito em nota da traduccedilatildeo

da epiacutestola trinta e um Segurado e Campos faz as seguintes alegaccedilotildees

Ao contraacuterio do que sucedia nas cartas precedentes Secircneca deixa a partir de agora de encerrar as suas epiacutestolas com a citaccedilatildeo de uma maacutexima de Epicuro Fecirc-lo a princiacutepio na convicccedilatildeo de que lhe seria mais faacutecil converter Luciacutelio ao estoicismo se comeccedilasse por alimentar a meditaccedilatildeo com pensamentos epicuristas embora interpretados em sentido estoico De aqui em diante contudo Secircneca toma a conversatildeo do amigo como um dado adquirido pelo que se considera desobrigado de recorrer agrave seara alheia (SEGURADO E CAMPOS 1991 p 116)

Secircneca trata seu destinataacuterio como disciacutepulo e eacute a partir dessa perspectiva que ele

se posiciona na enunciaccedilatildeo ou seja o enunciador mestre que se dirige ao co-

enunciador disciacutepulo No objetivo de alcanccedilar seu destinataacuterio Secircneca invoca a

citaccedilatildeo de maacuteximas como um depoacutesito em um lugar comum para dar sequecircncia agraves

formulaccedilotildees de seus postulados estoicos que satildeo desenvolvidos ao longo da

coletacircnea de suas epiacutestolas

Outra estrateacutegia retoacuterica assumida por Secircneca eacute a taacutetica do uso de versos Como

reforccedilo para a exposiccedilatildeo de princiacutepios da filosofia estoica ele lanccedila matildeo da citaccedilatildeo

de versos de diferentes poetas mas com evidente destaque para Vergiacutelio Como

pode ser observado os discursos constituintes filosoacutefico e literaacuterio formam um

conjunto na construccedilatildeo da cena enunciativa promovendo um intercacircmbio entre

filosofia e literatura isto eacute trazendo para o discurso filosoacutefico determinados textos da

escrita poeacutetica sendo um fortalecido pelo outro Por um lado as citaccedilotildees de

Vergiacutelio na finalizaccedilatildeo de argumentos de Secircneca satildeo recorrentes e comparecem

como uma forccedila que complementa tanto os efeitos persuasivos dos exemplos

245

histoacutericos quanto os pessoais Por outro lado as citaccedilotildees dos versos se

assemelham agraves maacuteximas que habitam um lugar comum

Na continuidade do uso de citaccedilotildees de versos o prestiacutegio da voz de Vergiacutelio

contribui para reforccedilar a noccedilatildeo da existecircncia do divino para os estoicos Secircneca

coloca diante de Luciacutelio algumas concepccedilotildees de deus procurando convencecirc-lo

mediante variadas descriccedilotildees da natureza que vatildeo formando imagens na mente do

leitor e diferentes cenaacuterios Secircneca argumenta ldquoEacute verdade Luciacutelio dentro de noacutes

reside um espiacuterito divino que observa e rege os nossos atosrdquo (Ep 422) Secircneca

coloca Vergiacutelio em cena para apoiar e dar sequecircncia agrave sua ideia ldquoqual seja o deus

ignora-se mas existe um deus296 (Ep 412) A introduccedilatildeo da opiniatildeo de Vergiacutelio

nesse ponto da enunciaccedilatildeo produz um efeito de heterogeneidade na linguagem

atualizando e agregando o seu dito ao de Secircneca Nessa situaccedilatildeo enunciativa eacute

introduzido o discurso religioso em seu sentido abrangente dando ao discurso a

caracteriacutestica de uma visatildeo contemplativa do mundo Com base nesse

posicionamento na epiacutestola noventa Secircneca desenvolve alguns postulados para

definir filosofia e faz o seguinte comentaacuterio ldquoa uacutenica tarefa da filosofia eacute descobrir a

verdade acerca das coisas divinas e humanas nunca estatildeo agrave margem dela a

religiatildeo a piedade a justiccedila e todo o conjunto de virtudesrdquo (Ep 903) Por intermeacutedio

desse comentaacuterio Secircneca indica que pelo proacuteprio caraacuteter de sua finalidade o

discurso filosoacutefico eacute atravessado pelo discurso religioso

Eacute possiacutevel perceber que o discurso literaacuterio em Vergiacutelio eacute tambeacutem atravessado pelo

discurso religioso e introduzido no contexto do discurso filosoacutefico desenvolvido por

Secircneca Por meio das citaccedilotildees o enunciador intensifica seu posicionamento no

discurso no processo de adesatildeo a uma voz que contribui para os efeitos de

sentidos almejados permitindo a inter-relaccedilatildeo entre os trecircs discursos constituintes

filosoacutefico literaacuterio e religioso

Servindo como fonte na busca de uma cena validada e valorizada na memoacuteria do

leitor a voz que Secircneca invoca para fortalecer seu argumento eacute novamente a de

Vergiacutelio ldquoNatildeo esperes alterar com preces o destino fixado pelos deusesrdquo (Ep

7712)297 Vergiacutelio comparece ao ato enunciativo como autoridade para corroborar a

ideia de que o destino eacute ldquofixado pelos deusesrdquo Secircneca complementa a ideia do

296

[quis deus incertum est] habitat deus ( Ep 412) Citaccedilatildeo de Vergiacutelio (AenVIII 352) 297

Desine fata deum flecti sperare precando (Aen VI 376)

246

verso de Vergiacutelio ponderando ldquoque os destinos estatildeo determinados uma vez por

todas e prosseguem a sua marcha em obediecircncia agrave lei eterna do universordquo (Ep

7712)

Os postulados estoicos sobre o destino satildeo interligados ao tema que trata das

instruccedilotildees filosoacuteficas para o enfrentamento da morte Secircneca argumenta sobre a

dificuldade que o ser humano tem ao deparar-se com a realidade da certeza da

finitude da vida Ele acrescenta mais uma reflexatildeo com base na realidade do medo

da morte trazendo para sua enunciaccedilatildeo uma citaccedilatildeo extraiacuteda da ficccedilatildeo remontando

tambeacutem a Vergiacutelio

O gigantesco porteiro do Orco estendido no antro sangrento sobre ossadas meio roiacutedas assusta com seu ladrar incessante as almas exangues (Ep 8216)

298

Secircneca pondera que para os conhecedores desses versos por mais que saibam

que se trata de uma ficccedilatildeo essa leitura desperta tanto o receio comum da existecircncia

do inferno quanto da inexistecircncia de qualquer lugar Com esta citaccedilatildeo ele tambeacutem

reflete sobre as pressotildees fantasiosas que recaem sobre os indiviacuteduos aguccedilando o

medo do enfrentamento da morte Nesse ponto do raciociacutenio Secircneca procura

defender que mediante situaccedilotildees negativas que se interpotildeem diante do indiviacuteduo a

respeito da morte a coragem perante esta situaccedilatildeo eacute uma fonte de gloacuteria Para que

o indiviacuteduo seja elevado ao patamar da virtude eacute necessaacuterio que se conscientize do

valor de encarar a morte natildeo como um mal mas de forma indiferente Como reforccedilo

argumentativo eacute trazida a voz de Vergiacutelio atraveacutes de seus versos como uma visatildeo

positiva e de incentivo

Natildeo cedas agrave desgraccedila antes avanccedila mais audaz ainda do que a proacutepria fortuna te permite (Ep 8218)

299

298

ingens ianitor Orci ossa super recubans antro semesa cruento aeternum latrans exsangues terreat umbras Conforme nota de Segurado (1991 p 365 nota 11) Secircneca fez junccedilatildeo de versos da Aeneida de Vergiacutelio dos livros VI 4001 e VIII 2967) 299

Tu ne cede malis sed contra audentior ito quam tua te fortuna sinet (Aen VI 956) Os textos colocados em caixas satildeo os que tecircm no maacuteximo trecircs linhas e funcionam como destaque na anaacutelise

247

Na sequecircncia de sua escrita Secircneca continua abordando certos aspectos desse

encontro entre discurso filosoacutefico e religioso formulando alguns princiacutepios a respeito

do ato de culto ponderando que o fundamental eacute acreditar nos deuses e reconhecer

neles a majestade Para ele eacute necessaacuterio admitir que os deuses presidem o

universo e governam tudo sendo cuidadores da seguranccedila da humanidade no

sentido global e natildeo necessariamente individual300 Em outras epiacutestolas Secircneca

tambeacutem aborda esse postulado estoico sobre a providecircncia ldquoTodo o universo

permanece natildeo porque seja eterno mas porque estaacute sob a guarda de um ser que o

regerdquo [] e Secircneca ainda acrecenta ldquoeacute o obreiro do universo que o conserva

dominando pelo seu poder a fragilidade da mateacuteriardquo (Ep 5828)

Em alguns momentos Secircneca parece situar-se entre os conceitos monoteiacutesta e

politeiacutesta de deus sendo esta uma heranccedila jaacute estabelecida no periacuteodo Heleniacutestico

com uma influecircncia determinante nas concepccedilotildees filosoacuteficas sobre a accedilatildeo e funccedilatildeo

dos deuses Segundo a exposiccedilatildeo de Algra (2003 p 165) o pensamento estoico

sobre questotildees referentes agrave natureza de deus ou deuses eacute complexa

caracterizando-se por uma mistura entre teiacutesmo panteiacutesmo e politeiacutesmo Algra

(2013 p 195)301 desenvolve o tema sobre cosmologia e teologia no estoicismo e

finaliza ldquoparece que os estoicos da era imperial e os estoicos em geral haviam

adotado uma espeacutecie de abordagem de duplo niacutevel em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo religiosardquo

Com o auxiacutelio de maacuteximas e versos Secircneca faz cruzar em sua enunciaccedilatildeo os

discursos constituintes filosoacutefico religioso e literaacuterio Mesmo estes discursos sendo

independentes com caracteriacutesticas de autosustentaccedilatildeo percebe-se que um

discurso fornece credibilidade ao outro formando assim uma rede de relaccedilotildees entre

diferentes discursos que se associam na produccedilatildeo da discursividade

Paulo tambeacutem usa a argumentaccedilatildeo retoacuterica da citaccedilatildeo Em Secircneca as citaccedilotildees se

fortalecem com base no discurso literaacuterio que fazem parte de sua formaccedilatildeo e estatildeo

registradas na memoacuteria Em Paulo predominam as citaccedilotildees oriundas dos textos da

religiatildeo hebraica que ele tambeacutem cita em algumas partes e em outras faz alusatildeo

300

Esta eacute uma abordagem da teoria de deus imanente para os estoicos e que se conjuga com o conceito de providecircncia 301

Algra (2013 195) observa que na epiacutestola 95 47-50 Secircneca avalia o comportamento ritual de vaacuterias religiotildees inclusive a guarda sabaacutetica dos judeus afirmando que o modo correto de adorar um deus eacute conhececirc-lo e imitaacute-lo

248

232 Citaccedilotildees de Paulo nas epiacutestolas aos Coriacutentios

Segundo Berger (2004 261) ldquoquando um texto biacuteblico eacute citado isso natildeo ocorre para

honrar o texto passado mas para articular e formular com ele aquilo que estaacute

acontecendo na nova situaccedilatildeordquo Nesse caso o texto citado eacute usado como aplicaccedilatildeo

Ainda um fato que se pode acrescentar a esse fenocircmeno da citaccedilatildeo eacute que ao trazer

para a enunciaccedilatildeo um dito jaacute familiar contribui-se para que o discurso atualize a

citaccedilatildeo tornando puacuteblica a anterioridade de um jaacute-dito identificaacutevel Outro fator que

contribui para o valor do recurso da citaccedilatildeo eacute a identificaccedilatildeo de analogias entre o

discurso presentificado com o texto citado e atualizado em novo contexto textual por

meio dos efeitos da intertextualidade

Maingueneau (1997) atesta que um discurso eacute constituiacutedo no interior do

interdiscurso isto eacute outros discursos formam uma camada de sustentaccedilatildeo para a

formaccedilatildeo de um novo discurso Desse mesmo modo Maingueneau (2007 p 120)

afirma que ao se fazer referecircncia agrave constitutividade do interdiscurso significa dizer

que ldquoum discurso nasce de um trabalho sobre outros discursosrdquo Vale lembrar que eacute

nessa perspectiva que Maingueneau (1997 p 75) desenvolve uma abordagem

sobre a heterogeneidade dos discursos com base na verificaccedilatildeo de que na

enunciaccedilatildeo a heterogeneidade pode ser mostrada quando sua manifestaccedilatildeo eacute

expliacutecita sob variadas formas No caso de ausecircncia de visibilidade da

heterogeneidade esta eacute considerada constitutiva por operar no plano do

interdiscurso

Este enfoque concernente agrave heterogeneidade do discurso eacute proposital no sentido de

estabelecer uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica da Anaacutelise do Discurso de base

enunciativa para concordar com Heil (2005) em sua anaacutelise da constituiccedilatildeo retoacuterica

na primeira epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Este autor observa que esta epiacutestolaa

de Paulo eacute toda construiacuteda com referecircncias ao Velho Testamento Heil faz um

levantamento minucioso para situar tais referecircncias que natildeo satildeo visiacuteveis no texto

mas satildeo identificaacuteveis para os que tecircm conhecimento do Velho Testamento Essa

verificaccedilatildeo de Heil eacute uacutetil para justificar que nas duas epiacutestolas aos Coriacutentios haacute

incidecircncia de poucas citaccedilotildees em forma de intertexto como entendidas pelo sentido

de heterogeneidade mostrada Mesmo citando algumas passagens Paulo natildeo

aponta referecircncias apenas oferece algumas indicaccedilotildees como por exemplo ldquona lei

249

de Moiseacutes estaacute escritordquo A localizaccedilatildeo do texto citado fica a cargo do leitor

presumidamente capaz para tal

Pois na lei de Moiseacutes estaacute escrito Natildeo ataraacutes a boca do boi quando debulha Porventura estaacute Deus cuidando dos bois (1Cor 99)

Paulo recorre a uma citaccedilatildeo de um versiacuteculo contido na lei de Moiseacutes302 que pode

ser localizado em Deuteronocircmio 245 fazendo uma aplicaccedilatildeo metafoacuterica ao que ele

estaacute requerendo em sua epiacutestola No contexto desta citaccedilatildeo por um lado Paulo

argumenta sobre o direito de ser sustentado como obreiro por outro lado ele

assume sua proacutepria liberdade de abrir matildeo desse direito

Ciampa e Rosner (2014 896) relatam que essa citaccedilatildeo usada por Paulo era

recorrente em textos judaicos Fiacutelon de Alexandria usa essa mesma citaccedilatildeo no

contexto de seu tratado sobre virtude303 aplicando o princiacutepio de humanidade tanto

aos homens como aos animais Imagina um boi debulhando em trabalho aacuterduo

com a boca atada para natildeo comer nenhum gratildeo (On the virtue XXV 125-126)

Josefo em Histoacuteria dos Hebreus (IV 8 171) interliga a ideia de natildeo restriccedilatildeo do

acesso ao gratildeo com a aplicaccedilatildeo da lei da respiga ou seja a permissatildeo para algueacutem

alimentar-se do fruto que restou da colheita304

A primeira epiacutestola a Timoacuteteo tambeacutem registra esta citaccedilatildeo com um acreacutescimo que

pode ser entendido como forma de interpretaccedilatildeo de 1Coriacutentios 9 9 ldquoPorque diz a

Escritura Natildeo ataraacutes a boca ao boi quando debulha Digno eacute o trabalhador do seu

salaacuteriordquo305 (1Tim 518)306 Ao recorrer agrave citaccedilatildeo dessa parte das leis de Moiseacutes

Paulo usa a forccedila desse lugar comum como cena validada na memoacuteria dos leitores

para apresentar aos seus destinataacuterios uma base legal dos direitos de quem presta

algum serviccedilo Ele proacuteprio se coloca nessa posiccedilatildeo de trabalhador a serviccedilo da

igreja de Corinto mas isenta aquela comunidade do dever de sustentaacute-lo

Efetivamente este eacute um posicionamento paradoxal em termos do exerciacutecio da

liberdade pois eacute por causa desta que o proacuteprio Paulo se coloca como servo

302

Natildeo ataraacutes a boca ao boi quando estiver debulhando (Deut 254) 303

O tratado sobre vitrtude de Philon of Alexandria estaacute inserido na obra The works of Philo (1993) 304

Esse costume entre os hebreus eacute registrado tambeacutem no livro de Rute no Velho Testamento na histoacuteria de como Rute usou do direito da lei da respiga colhendo trigo nos campos de Boaacutes como fonte de seu sustento e o de sua sogra 305

Tanto em Mateus 1010 como em Lucas 107 aparece o dito de Jesus ldquoDigno eacute o trabalhador de seu salaacuteriordquo 306

Natildeo se sabe ao certo de quem eacute a autoria da carta de 1 Timoacuteteo mas eacute significativo o fato de a mesma citaccedilatildeo de Deuteronocircmio 254 ter sido usada em um contexto semelhante ao de 1 Coriacutentios 99

250

No final da citaccedilatildeo Paulo formula uma indagaccedilatildeo como recurso retoacuterico

ldquoPorventura estaacute Deus cuidando dos boisrdquo De acordo com a interpretaccedilatildeo de Stern

(2008 p500) esta interrogaccedilatildeo de Paulo se firma na base do cuidado de Deus

Como pano de fundo dessa premissa ergue-se outra voz na interdiscursividade da

enunciaccedilatildeo O dito de Jesus ecoa no fundo da interrogaccedilatildeo de Paulo ldquoPois se Deus

assim veste a erva do campo natildeo vestiraacute muito mais a voacutes (Mat 630) Este eacute um

efeito do cruzamento de imagens que metaforicamente contribuem para fazer

entrelaccedilar os discursos sendo um fenocircmeno que integra a herogeneidade

constitutiva do discurso A imagem do boi na citaccedilatildeo de origem eacute transferida para a

da erva do campo como ser vivo na natureza que depende do cuidado de Deus

Com esses sentidos extraiacutedos das camadas mais profundas do discurso Paulo

declara aos seus destinataacuterios que confia em um Deus que cuida e sustenta Nessa

interdiscursividade do ato enunciativo estaacute subentendida a noccedilatildeo de providecircncia

divina de um Deus transcendente que cuida pessoalmente de cada indiviacuteduo A

confianccedila de Paulo com base nessa certeza contribui para o seu estado de

liberdade e independecircncia em relaccedilatildeo ao compromisso de sustento por parte da

igreja de Corinto

Ainda na primeira epiacutestola aos Coriacutentios Paulo trata de questotildees concernentes agrave

idolatria em especial sobre os alimentos oferecidos aos deuses como forma de

sacrifiacutecio De maneira mais direta no capiacutetulo dez Paulo fornece algumas

instruccedilotildees a respeito desses problemas suscitados Paulo orienta os participantes da

igreja de Corinto apontando para uma questatildeo central o foco daquela situaccedilatildeo

estaria voltado em especial para o alimento oferecido aos deuses ou para a atitude

de quem ingeria o alimento como participante da oferta do sacrifiacutecio Ele situa seu

aconselhamento com a seguinte premissa ldquoTodas as coisas me satildeo liacutecitas mas

nem todas as coisas convecircmrdquo (1Cor1023) Por meio da heterogeneidade

constitutiva do discurso percebe-se uma harmonia com o que Platatildeo transmite na

obra a A Repuacuteblica (X 604c)307 quando expotildee ldquopor natildeo haver modo de sabermos o

que haacute de bom ou de mau em tais ocorrecircnciasrdquo Esta afirmativa pode servir de base

para a argumentaccedilatildeo de Paulo

307

No contexto de sua fala sobre a lei e a razatildeo na obra A Repuacuteblica X 604c Platatildeo assim expotildee ldquoA lei diz que natildeo haacute nada mais belo do que conservar-se sereno o homem na adversidade e natildeo revoltar-se por natildeo haver modo de sabermos o que haacute de bom ou de mau em tais ocorrecircncias natildeo advindo da impaciecircncia nenhuma vantagem e tambeacutem por carecerem de maior importacircncia os assuntos humanosrdquo

251

Novamente Paulo coloca em pauta a questatildeo da liberdade com responsabilidade

Diante daquele contexto ele aconselha agravequela comunidade agir com prudecircncia sem

supersticcedilatildeo em relaccedilatildeo ao consumo das carnes vendidas nos accedilougues Para

fortalecer sua argumentaccedilatildeo na proacutepria sequecircncia linear de seu discurso Paulo

resgata do Velho Testamento no livro de Salmos 241 (231 na Septuaginta) a

citaccedilatildeo que complementa o significado de seus ensinamentos

Pois a terra eacute do Senhor e toda a sua plenitude (1Cor 1026)308

Esta citaccedilatildeo eacute integrada ao dito anterior como pode ser verificado ldquoComei de tudo

quanto se vende no mercado nada perguntando por causa da consciecircncia Pois do

Senhor eacute a terra e a sua plenituderdquo (1Cor102526) A citaccedilatildeo de Salmos 241

funciona exatamente como uma explicaccedilatildeo argumentativa para conscientizar os

destinataacuterios da missiva quanto ao valor do poder da soberania de Deus sobre todas

as coisas

De acordo com informaccedilotildees de Ciampa e Rosner (2014 p 908) o texto ldquoDo Senhor

eacute a terra e a sua plenitude o mundo e aqueles que nele habitamrdquo (Salmos 241)

costuma ser citado na literatura rabiacutenica para ensinar o dever da gratidatildeo a Deus

pelo alimento Com base nessa crenccedila ensina-se a observacircncia do ritual dessa

praacutetica antes da ingestatildeo de qualquer porccedilatildeo diaacuteria o ato de agradecer e abenccediloar

o alimento Possivelmente eacute com base nesse costume da cultura hebraica que

Paulo introduz essa citaccedilatildeo Entatildeo a aplicaccedilatildeo da citaccedilatildeo inserida no contexto dos

ensinos de Paulo tem a funccedilatildeo retoacuterica de persuasatildeo quanto agrave soberania de Deus

inclusive sobre alimentos dedicados a outros deuses como sacrifiacutecio309 Na

perspectiva da importacircncia da forccedila da autoridade na citaccedilatildeo Perelman e Olbrechts-

Tyteca (2005 p 351) afirmam [] ldquoquanto mais importante eacute a autoridade mais

indiscutiacuteveis parecem suas palavras No limite a autoridade divina sobrepuja todos

os obstaacuteculos que a razatildeo poderia opor-lherdquo

308

του γαρ κυριου η γη και το πληρωμα αυτης (προς κορινθίους α 1026) A citaccedilatildeo de Paulo eacute idecircntica ao texto Salmos 231 na Septuaginta Τοῦ κυρίου ἡ γῆ καὶ τὸ πλήρωmicroα αὐτῆς (Ψαλmicroὸς 231) sendo a uacutenica diferenccedila o uso da conjunccedilatildeo explicativa pois (γαρ) que liga a citaccedilatildeo com a ideia anterior 309

Sobre o ritual do sacrifiacutecio na Antiguidade Veyne (2009 p178) faz o seguinte relato ldquoEm um texto grego ou latino o termo sacrifiacutecio sempre implica festim pois todo sacrifiacutecio era seguido de uma refeiccedilatildeo em que se comia a viacutetima imolada depois de cozecirc-la no altar Assim aos assistentes era reservado o consumo da carne da viacutetima e aos deuses a fumaccedila do holocausto Quando o sacrifiacutecio era realizado no templo o serviccedilo dos sacerdotes era pago com uma parte da carne do animal sacrificado Os administradores das financcedilas obtinham os proventos vendendo essas carnes aos accedilougueirosrdquo

252

Veyne (2007 p 25) comenta que ldquoa originalidade do cristianismo natildeo eacute o seu

pretenso monoteiacutesmo mas o gigantismo do seu Deus criador do ceacuteu e da terra

gigantismo estranho aos deuses pagatildeos e herdado do Deus biacuteblicordquo Esta afirmaccedilatildeo

de Veyne pode ser aplicada aos significados mais profundos dos conselhos de

Paulo a respeito dos questionamentos suscitados pela igreja de Corinto em relaccedilatildeo

aos alimentos ofertados aos iacutedolos310

Paulo parte do princiacutepio de liberdade para aplicaacute-lo aos seus conselhos na

sequecircncia de seu discurso A citaccedilatildeo mencionada por ele serve de base para

mostrar que o alimento dedicado aos deuses natildeo sofre nenhuma alteraccedilatildeo em sua

constituiccedilatildeo e funccedilatildeo pois a essecircncia dos sentidos estaacute na atitude de quem pratica

o ato da oferta Poreacutem Paulo alerta a igreja de Corinto quanto ao cuidado de se

pensar no outro como demonstraccedilatildeo de amor ao proacuteximo Se o comportamento de

algueacutem na aquisiccedilatildeo do alimento supostamente dedicado aos iacutedolos escandaliza

seu semelhante eacute melhor que natildeo coma Este eacute o ponto fundamental da

argumentaccedilatildeo de Paulo a sabedoria e discernimento no uso da liberdade

Ao selecionar esta citaccedilatildeo ldquoA terra eacute do Senhor e toda a sua plenituderdquo Paulo

integra ao seu discurso o conceito de Deus criador e sustentador pois tudo a Ele

pertence como entendido na cultura judaica Ele eacute soberano e governa sobre todas

as coisas concedendo tambeacutem o alimento como becircnccedilatildeo diaacuteria Eacute nessa direccedilatildeo que

se desenvolve a ideia da providecircncia divina na cultura judaico-cristatilde Por meio do

uso retoacuterico da citaccedilatildeo a cena da gratidatildeo do alimento validada na memoacuteria de

seus leitores eacute suscitada para enfatizar a singularidade da soberania de Deus

frente a qualquer outro deus O fato de natildeo se consumir o alimento em questatildeo se

deve simplesmente ao respeito e consideraccedilatildeo ao proacuteximo para natildeo o afetar em

suas convicccedilotildees

310 Segundo Frangiotti (2006 p 21) a questatildeo da recusa do consumo de carnes oferecidas aos iacutedolos por parte dos primeiros cristatildeos tornou-se um ponto alvo na perseguiccedilatildeo no seacuteculo II d C A queda da venda de carnes tornou-se um motivo de denuacutencias Nesse periacuteodo mencionado Pliacutenio era cocircnsul da Bitiacutenia e naquela regiatildeo havia uma grande concentraccedilatildeo de cristatildeos Pliacutenio escreve uma epiacutestola ao imperador Trajano (Pliacutenio Ep ad Trajanem X 96-97) para comunicaccedilatildeo dos acontecimentos e tambeacutem solicitaccedilatildeo de orientaccedilatildeo de como agir em relaccedilatildeo agraves denuacutencias relacionadas aos participantes daquela seita No trecho final da epiacutestola ele menciona a questatildeo do

retorno do comeacutercio das viacutetimas para o sacrifiacutecio ldquoEssa supersticcedilatildeo contagiou natildeo apenas as cidades mas as aldeias e ateacute as estacircncias rurais Contudo o mal ainda pode ser contido e vencido Sem duacutevida os templos que estavam quase desertos satildeo novamente frequentados os ritos sagrados haacute muito negligenciados celebram-se de novo onde recentemente quase natildeo havia comprador se fornecem viacutetimas para sacrifiacutecios Esses indiacutecios permitem esperar que dando-lhes oportunidade de se retratar legiotildees de homens sejam suscetiacuteveis de emendardquo (FRANGIOTTI 2006 p 21)

253

Um fenocircmeno linguiacutestico que pode ser observado nos textos biacuteblicos eacute a

constituiccedilatildeo da heterogeneidade no discurso A esse respeito Jerocircnimo faz as

seguintes alegaccedilotildees

De fato quem poderia desconhecer que tambeacutem nos volumes de Moiseacutes e dos profetas haacute elementos tomados aos livros dos gentios e que Salomatildeo propocircs aos filoacutesofos de Tiro algumas questotildees e lhes deu respostas a outras Por isso no exoacuterdio dos Proveacuterbios aconselha-nos a compreender as expressotildees da prudecircncia e os artifiacutecios das palavras as paraacutebolas e a linguagem misteriosa as maacuteximas dos saacutebios e os enigmas que satildeo proacuteprios dos dialeacuteticos e dos filoacutesofos (JEROcircNIMO Ep LXX 2)

311

A heterogeneidade mostrada eacute tambeacutem integrante do discurso de Paulo atraveacutes da

estrateacutegia do recurso de citaccedilatildeo de maacutexima semelhante ao modo da menccedilatildeo das

escrituras sagradas sem indicar a fonte Heil (2008 p 226) constata que assim

como Paulo natildeo faz referecircncias agraves suas citaccedilotildees do Velho Testamento tambeacutem o

uso da maacutexima proverbial segue essa mesma praacutetica Este autor destaca que a

forccedila retoacuterica dessas citaccedilotildees natildeo estaacute no reconhecimento da origem do dito por

meio da capacidade dos destinataacuterios mas na importacircncia dos sentidos que traz

para o discurso Eacute nessa perspectiva que Paulo faz a citaccedilatildeo de uma maacutexima

pressupostamente conhecida por seus leitores que eacute introduzida naturalmente na

linha do pensamento no desenvolvimento do discurso

Natildeo vos enganeis as maacutes conversaccedilotildees corrompem os bons costumes (1Cor 1533)

312

Heil (2005 p 226) eacute tambeacutem um dos pesquisadores que identifica essa citaccedilatildeo de

Paulo como uma maacutexima que se encontra em fragmentos da comeacutedia Thais da

autoria de Menandro313 identificando que Euriacutepides tambeacutem usa a mesma ideia

311

Traduccedilatildeo de Maria Evangelina Soeiro 312

μη πλανασθε φθειρουσιν ηθη χρησθ ομιλιαι κακαι (1Cor 1533) Antes de citar literalmente a maacutexima de Menandro Paulo faz uma pequena introduccedilatildeo ldquoNatildeo vos enganeisrdquo (μη πλανασθε) A palavra ομιλιαι pode ser traduzida por conversas ou companhia Para o contexto em que Paulo estaacute usando o termo fica mais adequada a traduccedilatildeo ldquoas maacutes conversaccedilotildees corrompem os bons costumesrdquo (traduccedilatildeo de Almeida corrigida e revisada fiel) 313

Em seu artigo intitulado A fortuna de um autor chamado Menandro Maria de Faacutetima da Silva (2009) faz um estudo sobre as produccedilotildees de Menandro (342-2921aC) e atesta que ldquono seu papel de filoacutesofo dramaturgo e poeta cocircmico grego natural de Atenas considerado o principal autor da comeacutedia nova Ele era um profundo admirador e imitador de Euriacutepides No Egipto a popularidade de Menandro perdurou por toda a Antiguidade ateacute meados do seacutec VII o que justifica a importacircncia dos papiros mais tarde aiacute recolhidos Do mesmo modo que a eacutepoca heleniacutestica grega expandia a influecircncia de Menandro para aleacutem do mundo do teatro e o fazia penetrar em todos os domiacutenios da atividade intelectual outro tanto se passou em Roma importado para a cena latina pelos criadores dramaacuteticos Menandro veio a interessar a classe erudita cativando as atenccedilotildees no seacutec I a C de nomes de referecircncia como Ciacutecero Ceacutesar ou Varratildeordquo

254

Vale destacar que no grego314 a maacutexima citada (Paulo) e a de origem (Menandro)

satildeo exatamente iguais em relaccedilatildeo agrave escrita Menandro exerceu uma grande

influecircncia sobre os escritores romanos e a seu respeito Quintiliano faz o seguinte

comentaacuterio ldquoMenandro segundo minha opiniatildeo ainda que fosse o uacutenico a se ler

diligentemente bastaria para que fossem retratadas todas aquelas qualidades que

vimos ensinandordquo (Inst Or X I 69)

A estrateacutegia retoacuterica que Paulo usa ao integrar uma maacutexima de Menandro a seu

discurso sinaliza sua capacidade em atender agraves diversidades culturais de seus

leitores Em seus estudos Heil (2005 p7) observa que Paulo ao escrever sua

primeira epiacutestola aos Coriacutentios jaacute poderia ter conhecimento de sua audiecircncia E

assim pode-se pensar o apoacutestolo como um enunciador que se dirige aos seus

destinataacuterios com uma ideia preacutevia de como melhor alcanccedilaacute-los com o recurso de

uma maacutexima valorizada na memoacuteria de seus leitores

Resta agora pensar que significados e contribuiccedilotildees essa citaccedilatildeo da maacutexima de

Menandro traz para o discurso de Paulo em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo desta no

arcabouccedilo de seus ensinamentos Nesse contexto Paulo estaacute desenvolvendo seus

fundamentos e instruccedilotildees acerca das implicaccedilotildees da crenccedila ou descrenccedila na

veracidade da ressurreiccedilatildeo de Jesus Em suas observaccedilotildees sobre o tratamento do

tema ressurreiccedilatildeo Ciampa e Rosner (2014 p 925) apontam que ateacute entatildeo

nenhuma corrente filosoacutefica havia contemplado este assunto ldquoo destino do corpordquo

evidenciando completo ceticismo com respeito a uma discussatildeo sobre a

ressurreiccedilatildeo deste Tambeacutem entre os judeus havia o segmento dos saduceus que

rejeitava qualquer hipoacutetese sobre ressurreiccedilatildeo Em oposiccedilatildeo aos grupos que

ignoravam ou negavam a ressurreiccedilatildeo Paulo com base em sua posiccedilatildeo de fariseu

se reveste de argumentos fundados no Velho Testamento315 adotando a concepccedilatildeo

judaica de ressurreiccedilatildeo coadunando sua ligaccedilatildeo aos ensinamentos doutrinaacuterios

sobre os significados da ressurreiccedilatildeo de Cristo

314 φθειρουσιν ηθη χρησθ ομιλιαι κακαι (Menandro Thais fr 218) 315

E muitos dos que dormem no poacute da terra ressuscitaratildeo uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno (Daniel 122) και πολλοί των καθευδόντων εν γης χώματι εξεγερθήσονται ούτοι εις ζωήν αιώνιον και ούτοι εις ονειδισμόν και εις αισχύνην αιώνιον

255

Por certo este assunto sobre a ressurreiccedilatildeo despertava muitos debates e polecircmicas

e o banquete316 como haacutebito e costume similar entre gregos e romanos era o

ambiente mais propiacutecio para os encontros e as discussotildees Eacute nesse contexto social

dos componentes da igreja de Corinto que no verso que antecede a citaccedilatildeo da

maacutexima Paulo toma como base o Velho Testamento para firmar seus conselhos

ldquoSe os mortos natildeo satildeo ressuscitados comamos e bebamos porque amanhatilde

morreremosrdquo (1Cor 15 32b) O dito ldquocomamos e bebamos porque amanhatilde

morreremosrdquo eacute uma citaccedilatildeo do profeta Isaias317 exortando o povo de Israel quanto agrave

atitude de abandono a Deus Na sequecircncia de seus argumentos Paulo agrega em

seu discurso os sentidos da citaccedilatildeo de Isaias agrave maacutexima de Menandro introduzindo-a

com a seguinte alerta ldquonatildeo vos enganeisrdquo Provavelmente Paulo estaria se

referindo aos debates que se desenrolavam durante os banquetes Desse modo ele

faz ecoar a voz de Menandro como se este mesmo estivesse aconselhando os

destinataacuterios de Paulo ldquoAs maacutes conversaccedilotildees corrompem os bons costumesrdquo

Para facilitar a compreensatildeo de seus leitores Paulo finaliza suas reflexotildees e

ensinamentos sobre a ressurreiccedilatildeo usando a metaacutefora da semente que ao ser

plantada necessita morrer para depois viver ldquoAssim tambeacutem a ressurreiccedilatildeo dentre

os mortos Semeia-se o corpo em corrupccedilatildeo ressuscitaraacute em incorrupccedilatildeo (1Cor

1542)

Na segunda epiacutestola aos cristatildeos da igreja de Corinto Paulo instrui aquela

comunidade nos ensinamentos da praacutetica do amor Este eacute o tema que perpassa o

conteuacutedo das duas epiacutestolas sendo que na primeira Paulo se dedica a refletir e

passar para seus destinataacuterios o valor de viver em uniatildeo como prova da revelaccedilatildeo

do amor de Deus que se manifesta atraveacutes de seus filhos O tema ldquoo amor promove

a concoacuterdia e a uniatildeordquo era um toacutepos que ocupava um lugar de importacircncia entre

gregos e romanos Na obra Eacutetica a Nicocircmaco (VIII 1159b) Aristoacuteteles toca em vaacuterios

toacutepoi retirados do tema amizade (amor) e faz a seguinte observaccedilatildeo [] ldquoa amizade

316

Segundo Veyne (2009 p 172) em alguns aspectos o banquete era denominado de noite de festim Representava uma reuniatildeo de convivas com propoacutesitos de comer beber e tambeacutem discutir temas elevados Na comeacutedia de Menandro a peccedila intitulada Thais tem este nome inspirado em uma personagem grega que ficou famosa na histoacuteria de Atenas por ser uma cortesatilde participante de banquetes exercendo vaacuterios papeis inclusive o de participante da discussatildeo de temas polecircmicos A maacutexima usada por Menandro ldquoas maacutes conversaccedilotildees ou comapanhias corrompem os bons costumesrdquo tem origem nos textos de Euriacutepides 317

O Senhor Deus dos exeacutercitos vos convidou naquele dia para chorar e prantear para rapar a cabeccedila e cingir o ciliacutecio mas eis aqui gozo e alegria matam-se bois degolam-se ovelhas come-se carne bebe-se vinho e se diz Comamos e bebamos porque amanhatilde morreremos (Isaiacuteas 221213)

256

e justiccedila tecircm relaccedilatildeo com os mesmos objetosrdquo Na continuidade desse mesmo item

Aristoacuteteles acrescenta ldquoDe fato em toda forma de comunidade acha-se parece

alguma forma de justiccedila e tambeacutem de amizaderdquo

Na segunda epiacutestola dirigida agrave comunidade de Coriacutento o incentivo eacute colocar em

praacutetica os princiacutepios ditados pelo amor Eacute neste contexto que Paulo faz remissatildeo ao

verso de um salmo para sustentar seus argumentos

Conforme estaacute escrito Espalhou deu aos pobres a sua justiccedila permanece para sempre (2 Cor 99) Espalhou deu aos necessitados a sua justiccedila subsiste para sempre (Salmos 1129)

Esta citaccedilatildeo de Salmos funciona como um forte argumento diante dos leitores da

epiacutestola de Paulo como para lembraacute-los de que a justiccedila de Deus se manifesta

atraveacutes dos atos de justiccedila daquele que se dispotildee ajudar os necessitados Kruse

(2008 p 162) interpreta este salmo citado como uma celebraccedilatildeo por parte daqueles

que reconhecem que Deus eacute doador de todos os benefiacutecios que alcanccedilam os

indiviacuteduos Os que satildeo conscientes de serem galardoados com as becircnccedilatildeos de Deus

devem tambeacutem compartilhar com os necessitados sendo fonte de amor para ajudar

os mais carentes Esta era uma concepccedilatildeo que fazia parte dos princiacutepios da cultura

hebraica pois na lei de Moiseacutes estatildeo contidas as instruccedilotildees de como viver em

coletividade e uma das maacuteximas extraiacutedas desses ensinamentos eacute ldquoamaraacutes o teu

proacuteximo como a ti mesmordquo (Lev 1918) Desse modo Paulo atualiza em seu

discurso uma praacutetica de boas accedilotildees que natildeo deveria ser esquecida pelos judeus e

revitaliza esse discurso diante de toda a igreja de Corinto como um modelo a ser

seguido no cumprimento da lei do amor

A partir das citaccedilotildees de Paulo aqui analisadas percebem-se os efeitos dos

atravessamentos dos discursos religioso filosoacutefico e literaacuterio dando suporte agrave

elaboraccedilatildeo de seu discurso Assim o gecircnero epistolar eacute organizado com vistas a

atender determinados propoacutesitos inerentes agraves caracteriacutesticas que identificam os

destinataacuterios de Paulo Heyer (2008 p 94) ressalta a importacircncia de se observar a

variedade de etnias que compunha a comunidade da igreja de Corinto gregos

judeus e pessoas procedentes de diferentes regiotildees Esse fato eacute identificado pelos

deuses que eram adorados naquela localidade Brakemeier (2008 p 20) observa

257

que aleacutem das divergecircncias religiosas havia tambeacutem as desigualdades sociais e

culturais A conjugaccedilatildeo de todos esses elementos contribuiacutea para a tendecircncia de

desuniatildeo e conflitos entre os grupos que formavam a igreja de Corinto pois o termo

igreja tem a origem no vocaacutebulo grego ekklesia com o significado no campo poliacutetico

no sentido de assembleia ou ajuntamento popular Ao migrar para o campo religioso

o termo adquire o sentido de ldquoassembleia dos santosrdquo ou ldquoseparadosrdquo e eacute

empenhado neste novo sentido que Paulo procura admoestar e ensinar um grupo

heterogecircneo em suas origens mas homogecircneo em seus ideais e propoacutesitos de

alcanccedilar a santidade Becker (2007 p 354) esclarece que ldquonaturalmente eacute

necessario realizar a santidade da comunidade mediante a santificaccedilatildeo mas com

isso nem de longe se esta falando de abdicar deste mundo ldquomas fostes lavados

mas fostes santificados mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e

no Espiacuterito do nosso Deusrdquo (1Cor 611b)

Em sentido bem amplo a designaccedilatildeo ldquogregosrdquo318 torna-se um termo universalizante

como contraponto ao termo ldquojudeusrdquo evidentemente mais individualizado O ponto

de uniatildeo entre estes dois grupos eacute a cultura heleniacutestica fato esse muito favoraacutevel

para a comunicaccedilatildeo de Paulo com aquela comunidade tatildeo mista em vaacuterios sentidos

e aspectos As citaccedilotildees de Paulo concebidas nesse contexto funcionam como

recurso retoacuterico como forccedila persuasiva para obtenccedilatildeo de resultados convincentes e

transformadores no modo de pensar e agir de seus leitores

24 USO DE METAacuteFORAS RETIRADAS DE UM LUGAR COMUM

Aristoacuteteles defende que a metaacutefora pode exercer uma accedilatildeo retoacuterica ou desempenhar

um papel na criaccedilatildeo poeacutetica Nessa mesma perspectiva Ricoeur (2000 p19)

reforccedila que a poesia e a eloquecircncia ldquodelineiam dois universos diferentes no

discursordquo e dessa forma podem-se identificar duas funccedilotildees da metaacutefora no

discurso funccedilatildeo retoacuterica e funccedilatildeo poeacutetica Uma funccedilatildeo natildeo exclui a outra sendo

318

Becker (2007 p 85) observa que para Paulo existe uma regra linguiacutestica familiar todos os natildeo judeus satildeo gregos (pex em Rm 116 29s etc) Essa distinccedilatildeo tem em primeiro lugar significado histoacuterico-salviacutefico e teoloacutegico ser grego significa ser gentio Essa distinccedilatildeo poreacutem tambeacutem significa o seguinte para os natildeo judeus via de regra a liacutengua franca eacute o grego Assim sendo Paulo natildeo soacute escreve em grego para Filipos e Corinto mas tambeacutem da mesma forma para a longiacutenqua Galaacutecia bem como para a mais romana de todas as cidades Roma Eis porque a natural diversidade linguumliacutestica no campo missionaacuterio gentio-cristatildeo (cf At 28-11) natildeo constitui para Paulo um problema seacuterio porque ele mesmo desde a infacircncia deve ter aprendido grego em Tarso e em toda parte em ambiente urbano anaacutelogo encontra o grego como linguagem corrente

258

que a funccedilatildeo retoacuterica pode estar presente em um gecircnero poeacutetico como tambeacutem a

funccedilatildeo poeacutetica pode se estabelecer na prosa

Em suas reflexotildees sobre o funcionamento da metaacutefora como retoacuterica Boot (1992

p58) observa que ldquometaacuteforas instrumentosrdquo se bem sucedidas revertem-se em

resultados agraves vezes surpreendentes no ato da comunicaccedilatildeo entre falantes Entatildeo

metaacuteforas intencionais pressupotildeem um propoacutesito retoacuterico Essas colocaccedilotildees de Boot

estatildeo em acordo com as consideraccedilotildees aristoteacutelicas que apontam para o valor da

metaacutefora no discurso contribuindo para o entendimento de abstraccedilotildees permitindo

ao destinataacuterio perceber as coisas natildeo ditas mas mostradas pela metaacutefora Na obra

Toacutepicos (VI 2140a) Aristoacuteteles tambeacutem destaca a contribuiccedilatildeo do uso da metaacutefora

no discurso observando que de fato a metaacutefora torna de alguma forma conhecido

o que pretende significar devido ao emprego de uma similitude pois esta tem em

vista a busca de uma certa semelhanccedila entre a ideia defendida com a imagem que a

metaacutefora fornece Observa-se tambeacutem que o uso da metaacutefora promove no

interlocutor o gosto da surpresa ao receber uma ideia nova construiacuteda por

intermeacutedio deste recurso

Alexandre Jr (2005 p 58) expotildee que Aristoacuteteles deixa transparecer a ideia de que

ldquoo movimento metafoacuterico do conhecido para o desconhecido por meio de uma

semelhanccedila entre os dois eacute a estrutura que subjaz a todo raciociacutenio humanordquo

Portanto a metaacutefora torna de alguma forma conhecido o que pretende significar

devido ao emprego de uma similitude que favorece a comunicaccedilatildeo entre falantes

Em uma de suas epiacutestolas a Luciacutelio Secircneca tambeacutem defende o uso da metaacutefora

atentando para o efeito favoraacutevel de seu uso no discurso

Encontro em ti contudo algumas metaacuteforas que sem serem audaciosas satildeo de certo modo atrevidas encontro siacutemiles ndash mas proibirem-nos o uso destas figuras a pretexto de que soacute nos poetas elas satildeo legiacutetimas significa que natildeo se leram os autores antigos de uma eacutepoca ainda natildeo deformada pela obsessatildeo da eloquecircncia Tais autores embora falando com simplicidade e com a uacutenica preocupaccedilatildeo de se fazerem entender tecircm um estilo repleto de comparaccedilotildees que aliaacutes reputo necessaacuterias aos filoacutesofos natildeo pela mesma razatildeo que aos poetas mas como meio de superar as limitaccedilotildees da linguagem e de permitir quer ao orador quer ao auditoacuterio a apreensatildeo da direta da mateacuteria em causa (Ep 596)

Sobre o valor do uso da metaacutefora Secircneca avalia essa importacircncia como um recurso

da linguagem que favorece uma melhor compreensatildeo de certas ideias expostas no

discurso Essa defesa de Secircneca estaacute em comum acordo com as instruccedilotildees de

259

Aristoacuteteles sobre o funcionamento da retoacuterica em relaccedilatildeo ao uso da metaacutefora

orientando que a similaridade pretendida deve ser bem compreendida e natildeo um

enigma a ser decifrado

Ao defender o uso da metaacutefora no discurso Secircneca considera que ela natildeo eacute

somente necessaacuteria aos poetas mas pelo seu caraacuteter de fornecer comparaccedilotildees tem

uma grande utilidade para uso dos filoacutesofos Nota-se que na Antiguidade o uso de

certas metaacuteforas torna-se parte integrante de um lugar comum como toacutepicos

acessiacuteveis tanto a poetas quanto a filoacutesofos Pode ser destacada aqui a metaacutefora da

figura do atleta requisitada por vaacuterios escritores

Platatildeo na obra A Repuacuteblica (X 613b) faz uma comparaccedilatildeo entre o justo e o atleta

focalizando a imagem de competiccedilatildeo de corredores com comportamentos

divergentes em relaccedilatildeo agrave capacidade de completar a corrida com o mesmo vigor

da partida inicial

Os violentos e celerados natildeo seratildeo como certos corredores que na saiacuteda se portam muito bem poreacutem na volta quase natildeo correm De um salto datildeo iniacutecio agrave corrida mas no fim tornam-se ridiacuteculos orelhas caiacutedas nos ombros ao se retirarem sem a coroa ao passo que os verdadeiros corredores chegam ateacute agrave meta final levantando o precircmio e obtecircm a coroa Natildeo eacute isso o que de regra acontece com os justos Chegados agrave meta de seus empreendimentos das relaccedilotildees com os homens e da proacutepria vida gozam de boa reputaccedilatildeo e recebem de seus concidadatildeos os precircmios merecidos (A Rep X 613b)

319

Platatildeo opotildee o mau corredor ao bom corredor em comparaccedilatildeo ao injusto e justo A

partir da analogia da premiaccedilatildeo do bom corredor com a do justo o tema toma uma

direccedilatildeo que aborda questotildees sobre julgamento depois da morte tendo como foco os

justos e injustos na cena do juiacutezo final

Ainda no campo da filosofia na obra Eacutetica a Nicocircmaco (I 1099a) Aristoacuteteles

tambeacutem faz menccedilatildeo metafoacuterica alusiva agrave imagem do atleta ldquoTal como nos Jogos

Oliacutempicos natildeo satildeo os mais belos e os mais fortes que satildeo coroados mas os

competidores pois dentre eles alguns satildeo vencedoresrdquo320 Com a contribuiccedilatildeo do

recurso da figura do atleta Aristoacuteteles constroacutei a premissa de que ldquotambeacutem as

coisas belas e boas da vida tornam-se um ganho aos que agem corretamenterdquo

Em outro momento Aristoacuteteles (EN III 1116b) alega que a experiecircncia frente a

determinados tipos de perigo funciona como coragem Ele usa a figura do soldado

319

Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes 320

Traduccedilatildeo de Luciano Ferreira de Souza

260

bem preparado para a guerra e a do atleta bem treinado para a luta [] ldquoatletas

bem treinados que lutam contra simples amadores pois nesses tipos de

competiccedilotildees natildeo eacute o mais corajoso que eacute o melhor combatente mas aquele que eacute

mais forte e cujo corpo eacute mais bem treinadordquo

A imagem do atleta na Antiguidade era produtiva como argumentaccedilatildeo na aplicaccedilatildeo

de seus significados porque o esporte fazia parte da formaccedilatildeo no processo

educativo Veyne (2009 p 27) observa que a educaccedilatildeo romana do primeiro seacuteculo

dC deixa transparecer certa heranccedila dos gregos O objetivo da educaccedilatildeo naquele

momento visando moldar o caraacuteter do cidadatildeo romano tinha como propoacutesito dar

uma formaccedilatildeo que permitisse ao indiviacuteduo na fase adulta se esquivar dos viacutecios

causadores da decadecircncia Um dos princiacutepios baacutesicos da educaccedilatildeo se voltava para

exerciacutecios de condicionamento fiacutesico independente de uma formaccedilatildeo especiacutefica

voltada para o atletismo A preocupaccedilatildeo do ensino se voltava para o fortalecimento

dos muacutesculos do corpo fiacutesico e da moralidade do caraacuteter Com base nesses

princiacutepios fundadores da educaccedilatildeo desenvolve-se o toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo

A imagem mais simboacutelica para ilustraccedilatildeo deste toacutepos eacute a do atleta Entre os

escritores latinos destaca-se Quintiliano pois em seus escritos ele lanccedila matildeo de

muitas metaacuteforas instigantes Algumas dessas tambeacutem focalizam a imagem do

atleta321 que eacute arquivada em um lugar comum sendo colocada como comparaccedilatildeo

ao ato da expressatildeo do pensamento na escrita

Para que possamos conseguir isso com eficiecircncia eacute preciso voltar sempre ao que se acabou de escrever Com certeza aleacutem do fato de que assim o que se segue se liga melhor ao que antecede aquele calor proacuteprio da reflexatildeo que se arrefece por causa da demora do ato de escrever refaz integralmente suas forccedilas e tal como um territoacuterio reconquistado retoma seu iacutempeto Eacute isto o que exatamente vemos acontecer nas competiccedilotildees de salto ou seja os atletas buscam tomar impulso numa distacircncia bem grande e se lanccedilam em velocidade para o ponto aonde se precise chegar tal como em competiccedilotildees de arco e flecha retrocedemos o braccedilo e no momento de atirar as flechas tensionamos para traacutes as cordas (InstOr X 3 6)

Quintiliano traz agrave memoacuteria algumas modalidades do esporte enfatizando a

preparaccedilatildeo que antecede o momento da execuccedilatildeo final aplicando o significado

dessas imagens ao ato da escrita na produccedilatildeo de um texto

321 Vale registrar que Quintiliano no livro X da obra Institutio Oratoria usa o recurso da metaacutefora da imagem do atleta por trecircs vezes com aplicaccedilotildees diferentes (Inst Or X 14 Inst Or X 1 33 Inst Or X 5 15)

261

Destaca-se uso da metaacutefora do atleta entre os escritores da Antiguidade ora

citados sinalizando que esse recurso retoacuterico ocupava um lugar comum oferecendo

condiccedilotildees para diferentes aplicaccedilotildees Em suas pesquisas Foucault (2010a p 287)

menciona que Demeacutetrio o Ciacutenico fez uso dessa mesma imagem para comparar o

atleta ao saacutebio e enfatiza que o proacuteprio Secircneca cita esse fato no livro VII de

beneficiis Nessa construccedilatildeo de comparaccedilatildeo entre saacutebio e atleta algumas

caracteriacutesticas satildeo colocadas em destaque Foucault ressalta que na concepccedilatildeo de

Demeacutetrio o treinamento do bom atleta deve ser voltado para alguns movimentos

elementares como garantia para a condiccedilatildeo fiacutesica Assim a formaccedilatildeo atleacutetica do

saacutebio por similaridade fundamenta-se nas praacuteticas baacutesicas e necessaacuterias para

fortalecer o indiviacuteduo em seus enfrentamentos no transcorrer de sua existecircncia

Nesses termos o atleta estoico tem que lutar para enfrentar adversidades nos

acontecimentos do mundo que o cerca

O esporte tambeacutem era reconhecido em seu aspecto religioso Miller (2004 p 06-16)

observa que na Greacutecia antiga o atletismo era tambeacutem vinculado ao campo religioso

O cuidado com o corpo adquiria um caraacuteter voltado para o sagrado e cada atleta

tinha um deus a quem prestava honras atraveacutes do proacuteprio esporte Em Oliacutempia

aconteciam os Jogos Oliacutempicos de quatro em quatro anos em homenagem a Zeus

Em Corinto os Jogos Istmicos aconteciam de dois em dois anos em homenagem a

Poseidon A competiccedilatildeo era individual e o atleta se apresentava nu com o corpo

coberto com oacuteleo de oliva Os registros escritos dessa praacutetica satildeo muito limitados em

sua conservaccedilatildeo e a fonte que mais fornece informaccedilotildees satildeo as pinturas em vasos

que representavam cenas de diferentes modalidades praticadas no esporte tambeacutem

representadas em moedas Esses fatos contribuem para o fortalecimento da imagem

do atleta e contribuem para as diversas aplicaccedilotildees que essa metaacutefora fornece para

a argumentaccedilatildeo

Uma marca de identificaccedilatildeo que pode ser estabelecida na correspondecircncia de

Secircneca e de Paulo eacute o fato deles recorrerem ao uso da imagem do atleta em uma

fonte cristalizada como lugar comum O argumento retoacuterico fornecido pelo uso desta

metaacutefora estabelece um ponto de ligaccedilatildeo entre enunciador e a vivecircncia e

experiecircncia cultural de seus destinataacuterios Este fenocircmeno se estabelece como fonte

de apoio agrave argumentaccedilatildeo e persuasatildeo na enunciaccedilatildeo do gecircnero epistolar com o

262

recurso do toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo que aparece como pano de fundo no uso

metafoacuterico da imagem do atleta

241 A imagem do atleta em diferentes epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio

Secircneca se distancia daquele formalismo retoacuterico que se atrelava ao estilo para usar

suas proacuteprias formas de persuasatildeo entre as demais o uso de metaacuteforas Ele lanccedila

matildeo da estrateacutegia da metaacutefora natildeo com a finalidade de ornamento mas para dar

relevo e amplitude agraves suas ideias na forma de aconselhar seu amigo Luciacutelio

Berger (2004 p 205) pondera que a metaacutefora soacute adquire sentido em um

determinado contexto na medida em que a partir dela mesma resulta ao menos

uma consequecircncia a mais Por essa razatildeo este autor destaca o caraacuteter loacutegico da

metaacutefora por permitir que a relaccedilatildeo baacutesica que lhe deu origem permita acreacutescimos

agraves suas caracteriacutesticas fato esse que torna convincente o uso deste recurso Desse

modo ao ser retirada de um lugar comum a metaacutefora torna-se compatiacutevel para

diferentes aplicabilidades Assim a metaacutefora funciona como recurso da linguagem

sendo produtivo tanto para a prosa quanto para a poesia

As observaccedilotildees sobre o caraacuteter loacutegico da metaacutefora contribuem para a compreensatildeo

dos diferentes usos desta quando se tomam como base as experiecircncias do

atletismo Uma retrospectiva agrave cultura do esporte na Greacutecia antiga contribui para

entendimento do alcance de possiacuteveis sentidos da metaacutefora do atleta usada por

Secircneca e Paulo A partir do imperador Augusto os eventos e costumes ligados ao

esporte foram sendo adaptados agrave cultura romana Decerto as formas como Secircneca

e Paulo constroem a metaacutefora do atleta resgatam imagens ligadas agraves origens na

cultura da Antiguidade grega como cenas validadas na memoacuteria histoacuterica Segundo

Funari (2000 p60) os jogos na Greacutecia tiveram iniacutecio com a disputa de corrida e

depois foi introduzido o pentatlo com cinco modalidades salto corrida arremesso

de disco luta e lanccedilamento de dardo Com o passar do tempo outras modalidades

foram sendo acrescentadas Cada modalidade esportiva se tornava uma fonte rica

para construccedilatildeo de metaacuteforas com diversas aplicaccedilotildees Secircneca focaliza a metaacutefora

com a imagem da luta o que tambeacutem evidencia a importacircncia da praacutetica dessa

modalidade entre os romanos Paulo resgata a imagem da corrida mas tambeacutem

263

menciona o pugilismo322 O siacutembolo comum para a imagem do atleta eacute a coroa da

premiaccedilatildeo

Secircneca oferece conselhos a Luciacutelio usando a forccedila persuasiva da metaacutefora da

figura de um lutador apontando para a imagem agressiva das lutas

Um atleta que nunca foi ferido eacute incapaz de afrontar o combate de acircnimo alto Soacute aquele que viu correr o proacuteprio sangue que sentiu os dentes rangerem sob os golpes que lanccedilado por terra suportou sobre o corpo o peso do adversaacuterio sem embora abatido nunca deixar abater o acircnimo soacute aquele que se ergue com mais energia de cada vez que eacute derrubado pode descer agrave arena com esperanccedila de vencer (Ep 132)

Secircneca instrui Luciacutelio sobre o enfrentamento das dificuldades e a necessidade do

vigor renovado na luta corpo a corpo contra as forccedilas opostas em relaccedilatildeo aos

valores morais defendidos pela filosofia estoica usando a imagem de um lutador

que precisa manter o acircnimo para ter oportunidade de vencer Em analogia com a

imagem da luta Secircneca argumenta que algueacutem pode cair mas precisa reerguer e

enfrentar o opositor No conselho de Secircneca ele incentiva Luciacutelio a encarar a luta

contra a fortuna e natildeo se deixar escravizar ou ser vencido por ela

Ainda nesse espiacuterito de encarar os obstaacuteculos no transcorrer da vida novamente

Secircneca aponta para os desafios que os jogos impotildeem sobre os competidores

Quantas pancadas natildeo apanham os pugilistas no rosto e em todo o resto do corpo No entanto submetem a essa tortura apenas pela ambiccedilatildeo da gloacuteria E natildeo apanham pancadas apenas porque lutam mas tambeacutem para que possam lutar o proacuteprio treino jaacute eacute uma tortura Pois tambeacutem noacutes devemos superar todos os confrontos embora a nossa recompensa natildeo seja uma coroa uma palma ou um toque de trombeta a fazer silecircncio no estaacutedio para que se pronuncie o nosso nome (Ep 7816)

Secircneca invoca a imagem do pugilismo uma modalidade do atletismo considerada

agressiva para enfatizar a ideia do enfrentamento do indiviacuteduo aos embates que lhe

avultam no cotidiano da vida mesmo natildeo tendo recompensas semelhantes agraves

conseguidas pelos atletas vencedores Na sequecircncia da escrita de suas epiacutestolas

Secircneca novamente faz uso da imagem do atleta como recurso para sua

argumentaccedilatildeo extraindo outras aplicaccedilotildees que essa metaacutefora fornece

E penso sobretudo nisto se o corpo pode agrave forccedila de treino atingir um grau de resistecircncia tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapeacutes de vaacuterios adversaacuterios que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob um sol abrasador numa arena escaldante todo coberto de sangue ndash natildeo seraacute mais faacutecil ainda dar agrave alma uma tal robustez que a torne capaz de

322

Segundo o Dicionaacuterio Aureacutelio (2 ed 1986) o termo pugilismo eacute referente ao pugilato que origina do latim pugillatu e designa uma modalidade do esporte de luta com punhos com socos

264

resistir sem ceder aos golpes da fortuna capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e espezinhada De fato enquanto o corpo para tornar-se vigoroso depende de muitos fatores mateacuterias a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer alimentar exercitar Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida de muitos unguentos sobretudo de um treino intensivo tu para atingires a virtude natildeo precisaraacutes de dispender um tostatildeo em equipamento Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem estaacute dentro de ti Para seres um homem de bem soacute precisas de uma coisa a vontade (Ep 8034)

Com base nesta metaacutefora que toma a imagem do atleta como ponto de referecircncia

Secircneca desenvolve sua argumentaccedilatildeo a partir do valor atribuiacutedo ao esporte e agrave

competiccedilatildeo apontando os desafios enfrentados pelo atleta e as condiccedilotildees impostas

como exigecircncia de sua postura diante da determinaccedilatildeo das regras323 A metaacutefora

usada por Secircneca nessa epiacutestola a Luciacutelio faz reviver na memoacuteria do leitor a

imagem de um atleta bem preparado para uma competiccedilatildeo individual A metaacutefora

possibilia a construccedilatildeo de um paralelo entre o corpo do atleta e a alma daquele que

se dispotildee a adquirir a sabedoria324 A cena que evoca os pontos importantes para o

fortalecimento do corpo do atleta eacute construiacuteda vivamente no imaginaacuterio do leitor

Surpreendente eacute notar como a comparaccedilatildeo da importacircncia dos exerciacutecios e da

alimentaccedilatildeo fundamentais para a aquisiccedilatildeo da resistecircncia corporal resume-se

exclusivamente agrave vontade325 como condiccedilatildeo da alma para fortalecimento do homem

de bem Com o uso dessa metaacutefora Secircneca explora o topos ldquodisciplina do corpo e

da almardquo usando a imagem do atleta como modelo

Outro toacutepico dos princiacutepios estoicos que Secircneca recorre em seus ensinamentos satildeo

as questotildees que abordam a definiccedilatildeo do sumo bem326 Aquele que assimila tal

conceito eacute capaz de aplicaacute-lo em qualquer situaccedilatildeo da vida Secircneca busca na

imagem do atletismo em especial a modalidade de lanccedilamento de dardo como

323

Secircneca condena os sistemas de jogos que se tornaram entretenimento na vigecircncia do primeiro seacuteculo na cultura romana ldquoo homem eacute exposto agrave morte apenas para servir de divertimento jaacute era sacrileacutegio treinar homens para ferir e serem feridos ndash agora atiramo-los para o circo nus e inermes basta-nos a simples morte como espetaacuteculordquo (Ep 9533) 324

A busca da sabedoria requer no discurso o toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo Nessa perspectiva Hadot (2012 p23) observa que na Antiguidade ldquocada escola representaraacute entatildeo uma forma de vida especificada por um ideal de sabedoria A cada escola corresponderaacute assim uma atitude interior fundamental por exemplo a tensatildeo entre os estoicos a descontraccedilatildeo entre os epicuristas certa maneira de falar por exemplo uma dialeacutetica impactante entre os estoicos uma retoacuterica abundante entre os acadecircmicos Todavia em todas as escolas seratildeo praticados exerciacutecios destinados a assegurar o progresso espiritual na direccedilatildeo do estado ideal da sabedoria exerciacutecios da razatildeo que seratildeo para a alma anaacutelogos ao treinamento de um atletardquo [] 325

Para Secircneca uma accedilatildeo natildeo pode ser correta se natildeo for correta a vontade pois eacute desta que proveacutem a accedilatildeo Tambeacutem a vontade nunca seraacute correta se natildeo for correto o caraacuteter porquanto eacute deste que proveacutem a vontade (Ep 9556) 326

Segundo Secircneca a sabedoria eacute o bem supremo do espiacuterito humano enquanto a filosofia eacute o amor o impulso pela sabedoria [] A filosofia e a virtude satildeo inseparaacuteveisrdquo (Ep 89 4-8)

265

recurso argumentativo ldquoQuem aprende a lanccedilar o dardo compenetra-se bem do alvo

a atingir exercita o braccedilo para lanccedilar com pontaria e quando na teoria e na praacutetica

tiver atingido essa habilidade poderaacute usaacute-la para acertar onde quiserrdquo (Ep 943)

Secircneca faz a aplicaccedilatildeo desta metaacutefora argumentando que o indiviacuteduo que aprende

a se comportar adequadamente no seu cotidiano natildeo necessita de preparo para

situaccedilotildees especiacuteficas pois estaacute apto para se conduzir bem em todos os aspectos da

vida

A metaacutefora que resgata imagens do atletismo eacute retoacuterica porque estaacute investida da

argumentaccedilatildeo e traz para o leitor a imagem convincente de um atleta tatildeo valorizada

naquele contexto social e cultural Pode ser persuasiva porque atraveacutes do valor

dessa imagem conclama-se uma accedilatildeo semelhante para o homem de bem com a

vantagem de possuir em seu proacuteprio interior a vontade que pode resultar na

disposiccedilatildeo A persuasatildeo nessa epiacutestola de Secircneca se efetua natildeo somente no

acircmbito da convicccedilatildeo mas tambeacutem no da accedilatildeo

Nota-se que o uso da metaacutefora com base em imagens do atletismo ocupava um

lugar comum em textos da Antiguidade e tambeacutem estaacute presente nos textos da

primeira epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios

242 A metaacutefora do atleta na primeira epiacutestola aos Coriacutentios

Pode-se conjecturar que Secircneca e Paulo retiram a metaacutefora do atletismo de um

mesmo depoacutesito como um alimento para sustentar o proacuteprio discurso poreacutem os

nutrientes satildeo aproveitados de formas bem distintas Paulo afirma que seu discurso

natildeo tinha os mesmos propoacutesitos da sabedoria que os homens buscavam Da

mesma forma como Secircneca se defendia de sua proacutepria rejeiccedilatildeo ao uso de

silogismos em sua escrita Paulo tambeacutem quando faz referecircncia agrave forma persuasiva

da linguagem mostra ser conhecedor da existecircncia desses recursos da oratoacuteria

mas natildeo assume como uma teacutecnica relevante em sua escrita priorizando o ldquofalar

francordquo no seu modo de se comunicar com seus leitores

A disposiccedilatildeo de Paulo em natildeo se preocupar em seguir as regras e eloquecircncia da

retoacuterica que integrava a formaccedilatildeo educacional de seu tempo pode ser observada

quando ele afirma ldquoa minha linguagem e a minha pregaccedilatildeo natildeo consistiram em

palavras persuasivas de sabedoria [] para que a vossa feacute natildeo se apoiasse na

266

sabedoria dos homens mas no poder de Deusrdquo (1Cor 2 4-5) Quando Paulo

escreve a primeira epiacutestola agrave igreja de Corinto ele procura separar a ideia de

sabedoria humana e sabedoria de Deus situando seus ensinamentos a partir do

discurso constituinte religioso Na segunda epiacutestola Paulo declara natildeo ser um

orador eloquente ldquoEu posso natildeo ser um orador eloquumlente contudo tenho

conhecimento De fato jaacute manifestamos isso a vocecircs em todo tipo de situaccedilatildeordquo

(2Cor11 6) Paulo reconhece que a eloquecircncia natildeo eacute fundamental em seu discurso

mas o conhecimento eacute necessaacuterio na composiccedilatildeo de seu discurso Esse fato eacute

reconhecido na construccedilatildeo de suas epiacutestolas Assim o recurso da metaacutefora do

atleta usado por Paulo na primeira epiacutestola agrave igreja de Corinto denota sua atitude

de identidade entre seus destinataacuterios usando uma imagem por eles reconhecida e

validada fazendo valer seu conhecimento cultural e o modo como aplicaacute-lo em suas

epiacutestolas

De acordo com as consideraccedilotildees de Becker (2007 p 85) Paulo se mostra como um

grego em contextos cristatildeos quando faz referecircncia ao seu apostolado comparado

ao combate no estaacutedio de um ginaacutesio grego Com base nessas observaccedilotildees Becker

visualiza a influecircncia de uma socializaccedilatildeo heleniacutestico-urbana que tornou Paulo

familiarizado tanto com as tradiccedilotildees filosoacuteficas gregas quanto com as mais

populares Como resultado dessa influecircncia Pena (2012 p 36) aponta a

identificaccedilatildeo na escrita paulina da imagem do atleta em competiccedilatildeo o esforccedilo a

corrida a coroa do vencedor e assim por diante327

Paulo em sua primeira epiacutestola aos Coriacutentios lanccedila matildeo da imagem do atleta para

aplicar alguns pontos de comparaccedilatildeo de seus significados A cena construiacuteda

apresenta o atleta numa aacuterdua competiccedilatildeo para conquista da coroa da vitoacuteria como

mostra a descriccedilatildeo

Natildeo sabeis que aqueles que correm no estaacutedio correm todos mas um soacute ganha o precircmio Correi portanto de tal maneira a consegui-lo Os atletas se abstecircm de tudo eles para ganhar uma coroa pereciacutevel noacutes poreacutem para ganharmos uma coroa impereciacutevel Quanto a mim eacute assim que corro natildeo ao incerto eacute assim que pratico o pugilato mas natildeo com algueacutem que fere o ar Trato duramente o meu corpo e reduzo-o agrave servidatildeo a fim de que natildeo aconteccedila que tendo proclamado a mensagem aos outros venha eu mesmo a ser reprovado (1Cor 9 24-27)

327

Pena (2012 p 36) informa que as corridas no estaacutedio de Tarso eram frequentes e tambeacutem nas moedas da eacutepoca encontra-se cunhada a figura de Perseu o heroacutei fundador da cidade com o siacutembolo do corredor e asas nas sandaacutelias

267

Ao analisar e avaliar o cuidado de si no contexto da Antiguidade com um foco

orientado para os dois primeiros seacuteculos de nossa era Foucault (2010a p 200) faz

alguns comentaacuterios que podem ser aplicados aos argumentos que Paulo sugere

silenciosamente com a estrateacutegia do uso da metaacutefora da imagem do atleta Foucault

observa a importacircncia do haacutebito da concentraccedilatildeo a partir da seguinte expressatildeo

ldquopraticar caminhada sem olhar para os ladosrdquo Eacute preciso caminhar olhando em

frente o que significa concentrar-se para natildeo perder o alvo Para desenvolver essa

ideia Foucault tambeacutem parte da metaacutefora criada com a figura do atleta na

preparaccedilatildeo para a corrida ou para a luta no treino do gesto pelo qual o arqueiro

lanccedilaraacute a flecha em direccedilatildeo ao alvo Assim tambeacutem a aplicaccedilatildeo dessa metaacutefora

aludida consiste em ldquoconstruir o vazio em torno de si natildeo se deixando levar e nem

distrair pelos ruiacutedos ou pelos que estatildeo em voltardquo Torna-se fundamental a

concentraccedilatildeo da atenccedilatildeo na meta que se quer alcanccedilar Concentraccedilatildeo eacute uma

expressatildeo muito significativa no esporte De certo modo esta eacute tambeacutem uma

possibilidade de aplicaccedilatildeo da metaacutefora do atleta usada por Paulo como forccedila

persuasiva para convencimento dos pertencentes agrave igreja de Corinto O alvo a ser

alcanccedilado se voltava para o ideal do processo da santificaccedilatildeo O proacuteprio Paulo se

inclui como esse atleta que corre e tambeacutem disputa para atingir a meta

demonstrando que a accedilatildeo de controle do corpo eacute princiacutepio baacutesico para

enfrentamento da luta Para obtenccedilatildeo da vitoacuteria na competiccedilatildeo eacute necessaacuterio que

haja concentraccedilatildeo esforccedilo e espiacuterito de conquista A partir dessa discursividade a

coroa apresenta-se como uma metoniacutemia que se mostra na representaccedilatildeo da

vitoacuteria Com tal simbolismo Paulo contrapotildee pereciacutevel e perene pois a coroa de

louro tem curta durabilidade enquanto a coroa do reino eterno dura para sempre

Joatildeo Crisoacutestomo (Homilia XXIV) destaca um importante ponto da aplicaccedilatildeo desta

metaacutefora do atleta usada por Paulo De iniacutecio a atenccedilatildeo ao texto se prende na

afirmativa de que entre todos os participantes que correm no estaacutedio somente um

ganha o precircmio Esta ideia funciona natildeo como limitaccedilatildeo mas como incentivo e

estiacutemulo para a natildeo desistecircncia ou seja ao que vencer seraacute dada a coroa Essa

mesma ideia aparece posteriormente no livro de Apocalipse (210) ldquoSecirc fiel ateacute a

morte e dar-te-ei a coroa da vidardquo Brakemeier (2008 p 125) interpreta que Paulo

incentiva o cristatildeo de Corinto a correr para receber o precircmio pois este eacute como um

atleta A meta para conseguir o trofeacuteu da vitoacuteria ainda natildeo foi alcanccedilada mas a

268

coroa no sentido cristatildeo eacute prometida natildeo ao que chegar primeiro mas ao que

vencer todos os obstaacuteculos e completar a corrida Vencedor eacute o que alcanccedila o final

da corrida visto que esta disputa natildeo se processa em relaccedilatildeo ao outro mas aos

obstaacuteculos que se interpotildeem agrave frente de quem corre

Platatildeo328 associa o atleta que cumpre sua meta na corrida e eacute premiado na

competiccedilatildeo com o justo que no encerramento de sua jornada recebe o galardatildeo no

juizo final Nota-se que haacute certa aproximaccedilatildeo com o sentido da mesma metaacutefora

usada por Paulo ao comparar os louros da vitoacuteria do atleta com a coroa incorruptiacutevel

que o fiel ateacute a morte herdaraacute

Para ser vitorioso eacute necessaacuterio o exerciacutecio individual e assim o uso retoacuterico da

metaacutefora da imagem do atleta serve para a construccedilatildeo de significados da disciplina

do corpo em seus vaacuterios aspectos Cada autor que lanccedila matildeo de tal recurso explora

um determinado aspecto de acordo com os propoacutesitos dos ensinamentos a serem

transmitidos aos leitores Essa estrateacutegia argumentativa cumpre a funccedilatildeo de auxiliar

o desenvolvimento do topos ldquoo cuidado do corpordquo com as analogias que a metaacutefora

fornece contribuindo tambeacutem para a dinacircmica da noccedilatildeo do cuidado de si

Como visto os argumentos retoacutericos fornecidos pelo uso dos exemplos das

citaccedilotildees e da metaacutefora fornecem a Secircneca e Paulo elementos que satildeo tratados em

seus aconselhamentos a partir do toacutepos ldquofalar francordquo como direcionador do

discurso na conduccedilatildeo do gecircnero epiacutestolar Estes mesmos elementos retoacutericos satildeo

identificados no modo como os temas o tempo e o amor satildeo desenvolvidos no

transcorrer do desenvolvimento das epiacutestolas de Secircneca e Paulo a partir da

constituiccedilatildeo de cada cenografia

328

No final do livro X da A Repuacuteblica Platatildeo conta para Glauco a histoacuteria do combatente que morreu na guerra e depois de dez dias seu corpo foi encontrado em perfeito estado Quando foram colocaacute-lo na pira para ser queimado ele reviveu e contou sua experiecircncia de conhecer o outro mundo A narrativa eacute bem detalhada mostrando a situaccedilatildeo de julgamento entre maus e bons No fechamento da obra Platatildeo diz a Glauco ldquoSe aceitardes meus conselhos e admitirdes que a alma eacute imortal e capaz de suportar todos os males como todos os bons manter-nos-emos no caminho ascendente e praticaremos de todo modo a justiccedila e a verdade Soacute assim nos tornaremos amigos de noacutes mesmos e dos deuses natildeo apenas durante o tempo que permanecermos nesta vida como tambeacutem depois de recebermos a recompensa da justiccedila agrave feiccedilatildeo dos vencedores dos jogos que recolhem de todos os lados seus trofeacuteus e seremos felizes aqui na terra e na viagem de mil anos que jaacute vos descrevemosrdquo (A Rep X 621d)

269

3 O TEMPO NAS CONCEPCcedilOtildeES FILOSOacuteFICAS DE SEcircNECA

O tempo que demora esta existecircncia mortal natildeo eacute para a alma senatildeo o preluacutedio de uma vida melhor Seneca (Ep 102 23) Porque para mim tenho por certo que as afliccedilotildees deste tempo presente natildeo satildeo para comparar com a gloacuteria que em noacutes haacute de ser revelada Paulo (Rom 818)

Na Antiguidade nota-se que o tema ldquoo tempordquo eacute abordado em diferentes toacutepicos e a

filosofia no periacuteodo Heleniacutestico toma como base os postulados filosoacuteficos

antecedentes reformulando os conceitos jaacute existentes Partindo de uma aceitaccedilatildeo

de partes de pensamentos de filoacutesofos que abordaram as questotildees do tema ldquoo

tempordquo os estoicos herdaram princiacutepios fundadores principalmente de Pitaacutegoras

Platatildeo e de Aristoacuteteles A noccedilatildeo de tempo estaacute inteiramente ligada agraves concepccedilotildees

teoacutericas da cosmologia329 desde os preacute-socraacuteticos Um ponto comum entre os

filoacutesofos da Antiguidade eacute o fato de interligarem a noccedilatildeo de tempo com a de

movimento Migliore (2008 p 25) relaciona essa posiccedilatildeo com a ideia da sucessatildeo

de ciclos que permite a continuidade da existecircncia do cosmo Quanto ao movimento

Secircneca pondera ldquoHaveraacute que pocircr o movimento uma vez que sem este nada nasce

e nada morre natildeo haacute arte alguma natildeo haacute transformaccedilatildeo alguma sem movimentordquo

(Ep 65 11)

O toacutepos ldquoo tempo fogerdquo eacute recorrente nos postulados estoicos e em suas epiacutestolas

Secircneca recorre a este lugar comum para desenvolver alguns aspectos das

consequecircncias da realidade dessa noccedilatildeo da rapidez da passagem do tempo e sua

relaccedilatildeo com a duraccedilatildeo da vida A epiacutestola noventa e nove eacute dirigida a Luciacutelio como

coacutepia de uma epiacutestola que Secircneca escreveu a Marulo na eacutepoca em que este perdeu

um filho de tenra idade Secircneca comenta ldquonatildeo segui o nosso processo habitual

nem achei por bem falar-lhe brandamente pois o nosso homem mais merecia ser

repreendido do que consoladordquo (Ep 991) Secircneca revela seu ethos parresiasta de

fala franca para mostrar ao seu destinataacuterio que eacute necessaacuterio encarar a morte como

um fim da vida que natildeo eacute igual para todos Com suas reflexotildees Secircneca firma a

329

Segundo Gazolla (2008 p 10) ldquocosmologia eacute o discurso ou a palavra ou o relato ou o recolhimento sobre a Ordem de todas as coisas que satildeordquo Na atualidade o termo cosmologia eacute referido como filosofia da natureza Gazolla (2008 p11) ainda acrescenta que os estoicos aderiram uma filosofia que mais marcadamente aderiu agrave natureza

270

concepccedilatildeo estoica de que o tempo eacute o intervalo do movimento que tem um ponto

inicial e um ponto final Este intervalo eacute variaacutevel podendo ser mais curto ou mais

longo A partir desses postulados Secircneca procura exortar seu amigo a aceitar a

morte de um ente querido como um acontecimento inevitaacutevel independente do

tamanho do intervalo que ela tenha alcanccedilado no espaccedilo do tempo

Repara na rapidez com que passa o tempo atenta na exiguidade dessa iacutenfima fraccedilatildeo que noacutes percorremos a toda velocidade considera todos esses seres humanos que se dirigem em massa para um mesmo ponto separados uns dos outros por intervalos breviacutessimos mesmo quando nos afiguram muito longos o filho que julgas ter morrido apenas partiu agrave tua frente Haveraacute algo de mais estuacutepido do que choraacute-lo por ter precedido numa viagem que tu tambeacutem haacutes de fazer (Ep 997)

O conceito metafoacuterico A VIDA Eacute UMA VIAGEM eacute recorrente nas epiacutestolas de Secircneca

e funciona como um toacutepos que apreende o sentido da vida como uma passagem

pelo mundo No texto citado da epiacutestola noventa e nove a ideia de morte tambeacutem

aparece como viagem ldquoHaveraacute algo de mais estuacutepido do que choraacute-lo por ter

precedido numa viagem que tu tambeacutem haacutes de fazerrdquo Diante dessa colocaccedilatildeo nota-

se a identificaccedilatildeo do conceito metafoacuterico A MORTE Eacute UMA VIAGEM DE VOLTA

Pode-se dizer que este conceito conteacutem a ideia do tempo como uma viagem que

tem duraccedilotildees distintas para os indiviacuteduos Esta eacute uma reflexatildeo filosoacutefica de cunho

metafoacuterico indicando que quando algueacutem nasce chega para o iniacutecio de uma viagem

terrestre e quando morre sinaliza a viagem de retorno Este toacutepos funciona como

fundamentaccedilatildeo para a noccedilatildeo filosoacutefica da imortalidade da alma Em outra epiacutestola

ilustrando esta mesma ideia Secircneca (Ep 7714) menciona a seguinte maacutexima ldquoNatildeo

haacute estrada que natildeo chega ao fimrdquo (Nullum sine exitu iter est)

Secircneca na posiccedilatildeo de enunciador constroacutei a cenografia do conjunto de suas

epiacutestolas com base no tema ldquoo tempordquo situado na epiacutestola de abertura Na

sequecircncia das epiacutestolas diferentes abordagens relacionadas ao tema vatildeo surgindo

e as metaacuteforas citaccedilotildees e exemplos contribuem para colocaacute-las em pauta Por isso

o criteacuterio para seleccedilatildeo das epiacutestolas a analisadas toma como base algumas marcas

linguiacutesticas da organizaccedilatildeo retoacuterica do discurso observadas a partir da epiacutestola

introdutoacuteria sendo relevantes para a constituiccedilatildeo discursiva de vaacuterias formas de

tratamento do tema ldquoo tempordquo

271

31 O VALOR DO TEMPO

A primeira epiacutestola no livro I constitui o estabelecimento da cenografia discursiva

que norteia toda a produccedilatildeo da obra Em torno do toacutepos o valor do tempo eacute instituiacuteda

a cenografia de um tratado filosoacutefico sendo direcionada pela retoacuterica na organizaccedilatildeo

argumentativa da enunciaccedilatildeo Esta cenografia eacute acessada de acordo com o papel e

lugar que o enunciador ocupa na enunciaccedilatildeo de acordo com o momento histoacuterico-

social no ato enunciativo O tema ldquoo tempordquo eacute desenvolvido com recursos fornecidos

pela metaacutefora e tambeacutem buscando a colaboraccedilatildeo do discurso literaacuterio Marcas

linguiacutesticas satildeo verificadas no corpus de anaacutelise pela identificaccedilatildeo de expressotildees

metafoacutericas que contribuem para definiccedilatildeo dos subtemas

Procede deste modo caro Luciacutelio reclama o direito de dispores de ti concentra e aproveita todo o tempo que ateacute agora te era roubado te era subtraiacutedo que te fugia das matildeos (Ep 11)

330

As expressotildees metafoacutericas331 tempo roubado tempo desperdiccedilado tempo

subtraiacutedo perder tempo funcionam como marcas que revelam o conceito metafoacuterico

TEMPO Eacute UM BEM VALIOSO332 como pano de fundo na concepccedilatildeo filosoacutefica

estoica Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 51) em algumas culturas o tempo

como um bem valioso pode ser apreendido como um recurso limitado para alcance

de objetivos e nesse sentido a concepccedilatildeo da noccedilatildeo de trabalho estaacute ligada ao fator

tempo e mesmo na Antiguidade de certa forma partes dessas associaccedilotildees jaacute eram

consideradas tambeacutem Assim a abstraccedilatildeo da ideia de tempo passa a ser

compreendida atraveacutes de experiecircncias do cotidiano de uma determinada formaccedilatildeo

cultural Esse modo de pensar o tempo como um bem valioso fica evidente logo na

primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio atraveacutes da identificaccedilatildeo de expressotildees

metafoacutericas que servem de ecircnfase ao valor do tempo

330

Ita fac mi Lucili vindica te tibi et tempus quod adhuc aut auferebatur aut subripiebatur aut excidebat collige et serva (Ep 11) 331

De acordo com os estudos de Lakoff e Johnson (2002 p 50) as expressotildees metafoacutericas em nossa liacutengua satildeo ligadas a conceitos metafoacutericos de uma maneira sistemaacutetica Para explicar como expressotildees metafoacutericas na linguagem cotidiana podem iluminar a natureza metafoacuterica dos conceitos que estruturam nossas atividades cotidianas esses dois autores examinam o conceito TEMPO Eacute DINHEIRO atraveacutes de expressotildees metafoacutericas como desperdiccedilar tempo perder tempo ganhar tempo gastar tempo economizar tempo 332

Vale relembrar que nos estudos da Linguiacutestica cognitiva dirigidos por Lakoff e Johnson os conceitos metafoacutericos satildeo escritos em letras maiuacutesculas

272

Como identificaccedilatildeo de uso de expressotildees metafoacutericas voltadas para o valor do

tempo no contexto do primeiro seacuteculo dC encontra-se em Quintiliano333 o seguinte

exemplo

Eacute preciso estudar verdadeiramente sempre e em qualquer lugar E quase nenhum dia existe tatildeo ocupado que natildeo se possa roubar a uma atividade de lucro um miacutenimo qualquer de tempo para escrever ler ou falar como o fazia Bruto segundo Ciacutecero conta (Inst Or X 7 27)

A expressatildeo lsquoroubar o temporsquo ou outras semelhantes a esta contribuem para

identificaccedilatildeo de aspectos culturais compartilhados refletindo uma visatildeo de mundo

sobre o valor do tempo como um lugar comum O tempo se torna valioso porque ele

eacute limitado e irrecuperaacutevel

Na sequecircncia da primeira epiacutestola o enunciador busca no depositaacuterio de lugares

comuns o toacutepico da quantidade para argumentar sobre o tempo como algo de valor

Podes indicar-me algueacutem que decirc o justo valor ao tempo aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre um pouco Eacute um erro imaginar que a morte estaacute agrave nossa frente grande parte dela jaacute pertence ao passado toda a nossa vida preteacuterita eacute jaacute domiacutenio da morte (Ep I 2)

A expressatildeo ldquoPodes indicar-me algueacutem que decirc o justo valor ao tempordquo conduz a

uma reflexatildeo que recai exatamente sobre a realidade de que um dia que eacute

acrescentado agrave vida representa menos um dia para a sua duraccedilatildeo Na verdade

existe um paradoxo porque viver e morrer satildeo dois fenocircmenos inseparaacuteveis O

conselho de Secircneca direciona uma alerta ldquoaproveite bem o seu dia pois

diariamente se morre um poucordquo De acordo com essa realidade nascimento vida

velhice e morte estatildeo vinculados agrave temaacutetica do tempo sendo que o processo do

envelhecimento estaacute ligado ao da morte tendo seu iniacutecio a partir do nascimento

Nessa argumentaccedilatildeo que envolve princiacutepios da filosofia estoica sobre o

aproveitamento do tempo Secircneca usa o recurso da indagaccedilatildeo para provocar o

raciociacutenio de seu destinataacuterio a respeito da ideia da ligaccedilatildeo da morte tanto com o

passado quanto com o presente e futuro visto que a cada dia morre-se um pouco

Tenho as minhas contas em dia Natildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de que modo o perco (Ep14)

333

A citaccedilatildeo de Quintiliano em evidecircncia tem o objetivo de mostrar que eacute possiacutevel pensar que o uso de expressotildees metafoacutericas como roubar o tempo e outras no mesmo campo semacircntico podem sinalizar para o conceito metafoacuterico O TEMPO Eacute UM BEM VALIOSO como um lugar comum na abordagem do tema

273

Esse modo de dizer revela a subjetividade do enunciador quando fala de si ldquoNatildeo te

posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de que modo o

percordquo (Ep 14) Ao colocar seu posicionamento Secircneca traz para o seu discurso a

estrateacutegia do exemplo pessoal como uma retoacuterica argumentativa que funciona como

forccedila testemunhal

A expressatildeo metafoacuterica ldquoperder tempordquo reforccedila a ideia da concepccedilatildeo que o

enunciador tem sobre o tempo como um bem precioso O tempo desperdiccedilado estaacute

diretamente ligado ao modo de vida O objetivo do conselho eacute mostrar que o saacutebio

deve zelar pelo aproveitamento do tempo pois este estaacute interligado agrave vida Nesse

aspecto os termos vida e tempo comportam o mesmo valor semacircntico sendo

enfatizada natildeo a quantidade do tempo de vida mas a qualidade

[] lamentamos entatildeo o desperdiacutecio da vida Nenhuma parte dela permanece em nossas matildeos a vida passou por noacutes escoou-se Ningueacutem preocupa-se em viver bem mas sim em durar muito quando afinal viver estaacute ao alcance de todos ao passo que durar muito natildeo estaacute ao alcance de ningueacutem (Ep 2217)

Viver bem eacute um princiacutepio da doutrina estoica O valor do tempo estaacute diretamente

ligado agrave sabedoria de como investi-lo melhor O aconselhamento se volta para a

necessidade vital de se eleger as prioridades para o gasto do tempo Secircneca usa

um proveacuterbio para enfatizar o valor do desprendimento ldquoningueacutem escapa de um

naufraacutegio com a bagagem agraves costasrdquo (nemo cum sarcinis enatat Ep 22 12) Essa

bagagem representa o excesso de acuacutemulo de compromissos que se assume ao se

extrapolar a totalidade do tempo que realmente se dispotildee

Jaacute te dispusestes a pensar quanto tempo te eacute roubado pelos problemas de

sauacutede pelos teus deveres oficiais pelos teus deveres particulares pelos teus deveres cotidianos pelo sono Mede a duraccedilatildeo da tua vida natildeo cabe laacute muita coisa (Ep 8842)

No contexto dessa epiacutestola Secircneca exorta a Luciacutelio quanto agrave sabedoria em

valorizar o tempo que muitas vezes lhe eacute roubado por problemas e situaccedilotildees do

proacuteprio cotidiano Na epiacutestola cento e dezessete ele confirma este posicionamento

em alertar sobre o cuidado em remir o tempo Ele enumera alguns desses fatores

usando o verbo roubar ou tirar para reforccedilar a ideia de que algueacutem possui o tempo

que eacute valioso mas que em diferentes circunstacircncias esse tempo lhe eacute roubado

como aparece na expressatildeo quantum temporis tibi auferat mala valetudo (quanto

tempo a maacute sauacutede te rouba) Secircneca ressalta que com todos os gastos do tempo

seja por problemas de sauacutede dedicaccedilatildeo ao trabalho questotildees particulares e ateacute

274

mesmo pelo sono a duraccedilatildeo da vida esvazia-se pelo tempo que lhe eacute tirado

Secircneca aconselha Luciacutelio a natildeo gastar o que resta de seu tempo com

superficialidades mas aproveitaacute-lo com sabedoria que eacute a verdadeira fonte para a

virtude A expressatildeo metafoacuterica ldquotempo roubadordquo valida na enunciaccedilatildeo a ideia do

valor do tempo acoplando os sentidos de vida e tempo com o uso da expressatildeo

mede a duraccedilatildeo da tua vida

Ao longo de suas epiacutestolas Secircneca aconselha Luciacutelio a natildeo desperdiccedilar o tempo

pois ele eacute precioso e irrecuperaacutevel No iniacutecio da primeira epiacutestola Secircneca fala de si

com seu proacuteprio exemplo como um recurso retoacuterico para argumentar sobre a

administraccedilatildeo do seu proacuteprio tempo Na epiacutestola sessenta e dois ele retoma seu

posicionamento pessoal e oferece mais algumas informaccedilotildees para o seu

destinataacuterio

Eu sou um homem livre Luciacutelio inteiramente livre e onde quer que eu esteja tenho todo o tempo agrave minha disposiccedilatildeo Natildeo me entrego aos afazeres presto-me a eles quando muito e natildeo me ponho agrave procura de ocasiotildees para perder tempo Onde quer que eu me encontre passo em revista os meus pensamentos e medito em qualquer coisa que me seja profiacutecua Quando me consagro aos amigos nem por isso deixo de ocupar-me de mim mesmo e natildeo me detenho na companhia daqueles a que me juntou alguma circustacircncia momentacircnea ou alguma razatildeo derivada de devers sociais (Ep 622)

Ao afirmar ldquosou um homem livrerdquo Secircneca expressa-se com o uso do termo latino

vaco no sentido de vazio para as obrigaccedilotildees impostas Ele se apropria do toacutepos

falar franco que direciona seu discurso e o modo de agir valorizando a liberdade

como condiccedilatildeo de suas proacuteprias escolhas no cuidado de si

Foucault (2010a p 235) relata que Secircneca na obra Questotildees Naturais acentua que

estaacute velho e que perdeu tempo Quanto a esse aspecto Foucault analisa que eacute a

partir dessa constataccedilatildeo que Secircneca se coloca na posiccedilatildeo de ocupar-se consigo

mesmo e natildeo com tarefas em outros domiacutenios Na continuaccedilatildeo de sua reflexatildeo

Foucault ainda observa ldquoNesse mesmo movimento do tempo que nos leva para o

ponto final de nossa vida devemos volver nosso olhar e nos tomarmos a noacutes

mesmos como objeto de contemplaccedilatildeordquo Com esta afirmaccedilatildeo Foucault coloca em

pauta o postulado estoico de que o tempo eacute o intervalo do movimento marcado pelo

ponto inicial que eacute a vida e o ponto fianal a morte Esta eacute exatamente a postura

assumida por Secircneca em sua epiacutestola quando ele declara a Luciacutelio ldquonem por isso

deixo de ocupar-me de mim mesmordquo (Ep 662)

275

No desfecho de sua primeira epiacutestola Secircneca faz a seguinte exposiccedilatildeo ldquoConforme

diziam os nossos maiores jaacute vem tarde a poupanccedila quando o vinho estaacute no fundordquo

Secircneca ainda complementa ldquoEacute que o que fica no fundo aleacutem de ser muito pouco

satildeo apenas as borrasrdquo334 Esta paraacutefrase do texto de Hesiacuteodo na obra Os trabalhos

e os dias (versos 368-369)335 produz um efeito de intertextualidade entre os textos

dos dois autores no uso do toacutepos que os aproxima em alguns pontos Nessa

perspectiva a ideia de trabalho no texto de origem eacute interligada agrave de tempo no texto

parafraseado e desse modo o trabalho como condicionante na aquisiccedilatildeo de um

bem valioso tem o tempo como determinante em sua execuccedilatildeo No dizer de Jaeger

(1995 p 84) em Hesiacuteodo revela-se o valor do trabalho como qualidades para

formaccedilatildeo do homem Conclui-se que com o recurso da citaccedilatildeo Secircneca introduz na

enunciaccedilatildeo uma maacutexima que tem poder de autoridade de uma voz vinda dos

ancestrais trazendo agrave memoacuteria valores do passado que deveriam ser atualizados no

presente A ideia de trabalho labor ou ocupaccedilatildeo estaacute inteiramente relacionada ao

valor do tempo e serve de apoio agrave premissa de Secircneca natildeo se deve perder tempo

Isto significa dizer que cuidar do proacuteprio tempo eacute cuidar de si mesmo

32 O TEMPO Eacute CIRCULAR

Secircneca em diferentes momentos da elaboraccedilatildeo de suas epiacutestolas procura

persuadir Luciacutelio atraveacutes de estrateacutegias argumentativas que refletem sobre o sentido

da vida Na epiacutestola doze se estabelece um efeito dialoacutegico da linguagem pela

remissatildeo ao pensamento filosoacutefico dos mais antigos Essa forma de identificaccedilatildeo do

pensamento estoico com pensadores antecedentes contribui para a formulaccedilatildeo do

postulado da ideia do tempo ciacuteclico que causa um movimento circular e pressupotildee

uma regularidade Segundo Hirschberger (1969 p 266) os estoicos herdaram de

Heraacuteclito a doutrina da razatildeo universal e da lei coacutesmica e tanto deste como dos

334

Na epiacutestola 5833 Secircneca faz remissatildeo agrave essa metaacutefora das borras do vinho fazendo o seguinte comentaacuterio em excesso do vinho quem quer que depois de esvaziar a acircnfora vai ainda sorver as borras Resta agora eacute saber se satildeo as borras os uacuteltimos anos de vida ou se pelo contraacuterio satildeo a fase mais transparente e mais pura 335

Os versos 368-369 da obra de Hesiacuteodo mencionam o valor de poupar ldquo Bom eacute pegar do que se tem para o acircnimo eacute provaccedilatildeo precisar do que natildeo haacute convido-te nisto a pensar Farta-te do jarro quando o inicias e quando o acabas poupa o meio parcimocircnia inuacutetil poupar o fundordquo

276

pitagoacutericos eacute tirada a ideia do processo coacutesmico ciacuteclico Assim para os estoicos o

tempo eacute o intervalo do movimento do cosmo336

Toda a nossa existecircncia consta de partes de ciacuterculos concecircntricos em que os maiores abarcam os menores haacute um ciacuterculo que os rodeia e abarca a todos (este eacute o que conteacutem todo o tempo do nascimento agrave morte) haacute outro que delimita os anos da adolescecircncia outro que dentro da sua oacuterbita rodeia os anos da infacircncia aleacutem disso cada ano de per si conteacutem as subdivisotildees do tempo de cuja combinaccedilatildeo resulta a nossa vida um mecircs estaacute contido num ciacuterculo menor um dia tem um periacutemetro ainda mais curto mas mesmo ele tem um princiacutepio e um fim a luz e as trevas no constante alternar do universo tudo isso aparece multiplicado (Ep 12 67)

Secircneca destaca a maacutexima ldquoUm dia eacute um degrau na vidardquo (Ep 126) Mesmo o dia

sendo a menor parte da representaccedilatildeo do ciclo da vida tem comeccedilo e fim A dupla

face do dia representa luz e trevas (dia e noite) o que fornece significados

fundamentais para a ideia de luz como vida e trevas como morte

Foucault analisa a epiacutestola 12 de Secircneca com a seguinte reflexatildeo

Secircneca se refere a uma espeacutecie de especulaccedilatildeo de tema muito geral no pensamento antigo desde longa data segundo o qual toda a vida natildeo passa de um longo periacuteodo de um dia incluindo a manhatilde que eacute a infacircncia o meio-dia que eacute maturidade e a noite que eacute a velhice do mesmo modo um ano eacute como o periacuteodo de um dia incluindo a manhatilde da primavera e a noite do inverno tambeacutem cada mecircs eacute uma espeacutecie de periacuteodo de um dia em suma um dia o mero transcorrer do periacuteodo de um uacutenico dia constitui o modelo de organizaccedilatildeo do tempo de uma vida ou dos diferentes tempos das diferentes duraccedilotildees que se organizam em uma vida humana (FOUCAULT 2010a p 430

Na Antiguidade tambeacutem se concebia a duraccedilatildeo de um ano como uma metaacutefora de

representaccedilatildeo da vida A primavera eacute vista como a infacircncia o veratildeo a juventude o

outono a fase adulta e o inverno a velhice Essa comparaccedilatildeo entre as estaccedilotildees do

ano e as fases da vida tambeacutem eacute apontada por Oviacutedio na obra Metamorfoses

Natildeo vedes voacutes que o ano se divide imitando da vida as quatro Idades tambeacutem em quatro formas diferentes Na nova primavera eacute brando e tenro quase infante em mantilhas toma forccedilas entatildeo a deacutebil erva que esperanccedilas promete ao seu cultor que florescente observa tudo nos risonhos campos Mas inda esta verdura natildeo eacute uacutetil vendo-se flores soacute Agrave primavera sucede o rico estio semelhante a robusto mancebo porque o ano em estaccedilatildeo nenhuma como nesta tem tanta robustez tanta opulecircncia Passa o veratildeo a outono e jaacute depostos da juventude os vaacutelidos fervores aparece de catildes pintando a fronte Como maduro jaacute tempera a idade entre a de varatildeo forte e fraco velho Logo a trecircmulos passos chega o Inverno com semblante

336

Segundo informaccedilatildeo de Reale (1994a p 304) ldquoCrisipo (disciacutepulo de Cleanto que foi continuador de Zenatildeo) afirmava que o tempo eacute o intervalo do movimento do cosmo e como tal natildeo pode ter nenhuma capacidade de agir Ele eacute o efeito do ser-aiacute do viver e do mover-se dos corpos em geral do cosmo e como tal eacute incorpoacutereo pelo fato de ser infinito (nas dimensotildees de passado e futuro) e nenhum corpo para os estoicos pode ser infinitordquo

277

caduco ou jaacute de todo da coma varonil nua a cabeccedila ou de cacircndida grenha soacute povoada Tal eacute da nossa vida a viva imagem Sujeita estaacute a tais vicissitudes sem jamais descansar o que hoje somos amanhatilde natildeo seremos (OVIacuteDIO Metamorfoses XV 320-345)

337

A metaacutefora usada por Oviacutedio concebe a duraccedilatildeo da vida como o ciclo de um ano

com suas quatro estaccedilotildees Cada estaccedilatildeo tem seu tempo e suas caracteriacutesticas

assim como na vida humana Tal qual a natureza imprime as marcas designadas

para cada estaccedilatildeo o ser humano tambeacutem segue uma trajetoacuteria definida pelas fases

da vida como uma viagem que passa pelas quatro estaccedilotildees sendo que na

atualidade o duplo sentido de estaccedilatildeo pode ser aplicado agrave essa metaacutefora Se A

VIDA Eacute UMA VIAGEM como apreendida por este conceito metafoacuterico cada

indiacuteviduo tem uma trajetoacuteria definida pelas quatro estaccedilotildees Poreacutem a realidade eacute

que muitos natildeo completam o trajeto ficando em uma das estaccedilotildees antecipando a

finalizaccedilatildeo da viagem Mas Secircneca reflete sobre esta realidade e complementa

Uma viagem fica incompleta se pararmos a meio do caminho ou natildeo atingirmos o local pretendido ao passo que a vida eacute apenas incompleta se for imoral Onde quer que te detenhas se o fizeres conforme a moral a tua vida estaraacute completa (Ep 774)

Secircneca usa outra metaacutefora e argumentos que complementam suas reflexotildees sobre

o tempo a vida a velhice e a morte ldquocomecemos atingida a velhice a preparar

nossa bagagemrdquo (incipiamus vasa in senectute colligere Ep 191) O termo

bagagem (vasa) se constitui como expressatildeo metafoacuterica que aponta para o conceito

ldquoA VIDA Eacute UMA VIAGEMrdquo Quando algueacutem nasce ndash chega ndash e quando algueacutem morre

ndash parte Desse modo preparar nossa bagagem tem o sentido de preparar-se para a

viagem de volta ndash a morte

A comparaccedilatildeo da ideia de viagem com a de tempo implica tambeacutem o conceito que a

filosofia estoica adotou tempo eacute o intervalo do movimento Nessa perspectiva

viagem eacute um domiacutenio fonte que implica outros desdobramentos Viagem pressupotildee

movimento na direccedilatildeo de uma determinada rota Nessa rota podem ser encontrados

obstaacuteculos que soacute podem ser ultrapassados atraveacutes do combate

Organizemos portanto cada dia como se fosse o final da batalha (Ep 12 8)

338

337

Traduccedilatildeo de Francisco Joseacute Freire transcriccedilatildeo e atualizaccedilatildeo da grafia por Aristoacuteteles Angheben Predebon 338

Paul Veyne (1996 p 148) observa que Secircneca em algumas situaccedilotildees usa a metaacutefora do cosmo como um exeacutercito e os indiacuteviduos como soldados A partir de tais referecircncias identitifica-se o conceito metafoacuterico A VIDA Eacute UMA BATALHA

278

Neste dito de Secircneca ldquoorganizemos portanto cada dia como se fosse o final da

batalhardquo estaacute contido na metaacutefora estrutural A VIDA Eacute UMA VIAGEM COM

BATALHAS Na abordagem conceitual Lakoff e Johnson (2002 p 46) consideram

que metaacuteforas estruturam a maneira de um indiviacuteduo perceber pensar e agir e a

linguagem evidencia esse sistema Alguns termos recorrentes na linguagem satildeo

comuns a esse conceito lutar na vida vencer na vida ganhar a batalha perder a

batalha Na obra Meditaccedilotildees Marco Aureacutelio se expressa a esse respeito da

seguinte forma ldquoA arte de viver eacute mais semelhante agrave luta que agrave danccedila em nos

mantermos eretos e preparados para os acontecimentos imprevistosrdquo (Meditaccedilotildees

VII 61) Como defensor e continuador do estoicismo Marco Aureacutelio corrobora com

essa concepccedilatildeo ldquoorganizemos portanto cada dia como se fosse o final da batalhardquo

ao dar o seguinte conselho ldquoEacute da perfeiccedilatildeo moral passar cada dia como se fosse o

uacuteltimordquo (Meditaccedilotildees VII 69) Assim pode-se dizer que a batalha pode ser

constante mas o seu final pode acontecer a qualquer momento Para o estoicismo

o importante eacute estar preparado para encarar o momento final natildeo na perspectiva de

um futuro mas do momento presente

Secircneca persiste na argumentaccedilatildeo sobre a finitude da vida recorrendo tambeacutem ao

uso da maacutexima ldquoa morte vem gradualmente a que nos leva eacute a morte uacuteltimardquo (Ep

2421) Ele reflete sobre o tempo como intervalo do movimento na concepccedilatildeo

estoica de finitude assim como o dia tem o seu ponto inicial e seu ponto final o

tempo eacute identificado nesse intervalo que progressivamente se transforma nessa

trajetoacuteria marcada como iniacutecio e fim

[] natildeo caiacutemos na morte de repente antes avanccedilamos gradualmente para ela Morremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de uma parte da vida por isso mesmo agrave medida que noacutes crescemos a nossa vida vai decrescendo Comeccedilamos por perder a infacircncia depois a adolescecircncia depois a juventude Todo o tempo que decorreu ateacute ontem eacute tempo irrecuperaacutevel o proacuteprio dia em que estamos hoje eacute compartilhado com a morte Natildeo eacute a uacuteltima gota que esvazia a clepsidra mas toda a aacutegua que anteriormente foi escorrendo (Ep 2420-21)

A metaacutefora retoacuterica usada nesse trecho lanccedila matildeo da imagem da clepsidra339 A

persuasatildeo nessa epiacutestola de Secircneca se efetua natildeo somente no acircmbito da

convicccedilatildeo mas tambeacutem no da accedilatildeo Secircneca procura persuadir seu destinataacuterio de

que a certeza da morte deve ser um incentivo para o valor da vida A imagem

339

A clepsidra ou reloacutegio de aacutegua foi um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo Dispositivo movido a aacutegua que funciona por gravidade no mesmo princiacutepio da ampulheta (de areia)

279

fornecida pelo uso da metaacutefora da clepsidra toma uma forma persuasiva para

demonstrar que a constacircncia do ritmo do cair da gota de aacutegua da clepsidra vai

permitindo que ela se esvazie aos poucos ateacute deixar cair a uacuteltima gota A velhice eacute

um processo semelhante ao mecanismo da clepsidra pois tambeacutem eacute progressiva na

vida do indiviacuteduo desde o seu nascimento ateacute o momento de sua morte A reflexatildeo

sobre a natural condiccedilatildeo da morte pode contribuir para a relevacircncia da vida e o

cuidado em conservaacute-la diante de sua finitude O cuidado de si eacute voltado para essa

visatildeo de mundo ou seja estar sempre preparado para a partida como se o hoje

fosse o dia derradeiro

33 FLUIDEZ DO TEMPO

Secircneca constata que o tempo eacute veloz e que a passagem do seu curso eacute vertiginosa

Assim ele observa ldquoA natureza deu a tatildeo diminuta existecircncia a aparecircncia de uma

grande duraccedilatildeo dividindo-a em infacircncia em adolescecircncia em periacuteodo de transiccedilatildeo

da juventude e finalmente em velhicerdquo (Ep 493) Mais a seguir na sequecircncia das

epiacutestolas ele insiste [] assim tambeacutem noacutes nesta veloz carreira do tempo que eacute a

vida vemos sumir-se primeiro a infacircncia depois a adolescecircncia [] a juventude e a

idade madura (Ep702) Percebe-se que para Secircneca tempo e vida natildeo se

desvinculam sendo que as metaacuteforas relacionadas ao tempo aplicam-se tambeacutem agrave

vida Em suas reflexotildees na epiacutestola cinquenta e oito ele faz algumas consideraccedilotildees

sobre concepccedilotildees filosoacuteficas de Platatildeo concluindo com a ideia de que o ser dotado

de existecircncia proacutepria estaacute em um contiacutenuo devir sofrendo modificaccedilotildees contiacutenuas

Secircneca resgata de seus antepassados os sentidos fornecidos pela imagem da

correnteza de um rio sempre correndo em direccedilatildeo ao mar que eacute seu ponto final

sem possibilidade de retorno de sua trajetoacuteria

Nenhum de noacutes eacute na velhice idecircntico ao que foi na juventude nenhum de noacutes eacute pela manhatilde idecircntico ao que foi no dia anterior Os nossos corpos fluem rapidamente como a corrente dos rios Eacute este o sentido da frase de Heraacuteclito podemos e natildeo podemos mergulhar no mesmo rio O nome do rio permanece o mesmo a aacutegua essa jaacute passou adiante Num rio o fenocircmeno eacute mais sensiacutevel aos olhos do que num homem mas natildeo eacute menos raacutepido o curso do tempo em noacutes por isso me espanta a loucura que nos leva a tanto amarmos essa coisa fugidia que eacute o corpo e a temer morrermos um dia quando cada momento eacute a morte do estado imediatamente anterior (Ep 5822-23)

Ao tratar certas questotildees do tempo como um lugar comum Secircneca cita Heraacuteclito ao

usar a metaacutefora do tempo e a vida em analogia ao curso de um rio O uso do toacutepos

280

ldquoo tempo eacute velozrdquo produz uma intertextualidade que se estabelece a partir dessa

interaccedilatildeo que o lugar comum permite Essa metaacutefora que remonta a Heraacuteclito foi

redimensionada por Platatildeo340 ao tratar da fluidez do tempo Nessas aplicaccedilotildees da

metaacutefora o destaque eacute a ligeireza do movimento da aacutegua e a sua passagem

constante sem possibilidade de volta

Na Metamorfose Oviacutedio tambeacutem usa o recurso do lugar comum da metaacutefora que

funciona como comparaccedilatildeo do rio com o tempo

Nada no mundo haacute estaacutevel tudo muda seja a forma qualquer que os corpos tomem todas satildeo meras formas passageiras e vagantes imagens Corre o tempo como raacutepido rio cujo curso forccedila natildeo haacute que embargue Se detecirc-lo ningueacutem pode tambeacutem as leves horas ningueacutem pode deter se onda segunda Impele e daacute mais iacutempeto agrave primeira do mesmo modo sem cessar se seguem uns Instantes aos outros sucedendo e sempre renovando-se O presente sempre afasta ao passado e do futuro veloz foge o presente O que antes era jaacute passou jaacute natildeo eacute o que eacute deixando estaacute de ser no ponto em que subsiste e uns momentos assim outros expelem Observai como a noite se despenha no curso para dar lugar ao dia e como o dia o largo giro apressa para que a noite luacutegubre suceda no tempo em que repouso tudo

logra (OVIacuteDIO Metam XV 281-304)341

Oviacutedio tambeacutem lanccedila matildeo do toacutepos ldquoo tempo eacute velozrdquo com o recurso da metaacutefora da

passagem do rio fazendo aplicaccedilotildees mais especiacuteficas relacionadas agrave passagem do

tempo em termos de hora dia e noite Ele emprega tambeacutem uma concepccedilatildeo

filosoacutefica de passado presente e futuro Para os estoicos soacute o presente tem

ralidade o passado jaacute natildeo eacute e o futuro ainda natildeo eacute Nesta mesma esfera do

pensamento estoico Marco Aureacutelio tambeacutem faz referecircncia a esse lugar comum do

uso da metaacutefora do rio nos seguintes termos [] ldquotempo eacute um rio formado pelos

eventos uma torrente impetuosa Mal se avista uma coisa jaacute foi arrebatada e outra

se lhe segue que seraacute carregada por sua vezrdquo (Meditaccedilotildees IV43)

Na aplicaccedilatildeo feita por Marco Aureacutelio percebe-se a analogia da metaacutefora em torno

da concepccedilatildeo filosoacutefica estoica sobre o tempo A expressatildeo ldquotempo eacute um rio

formado pelos eventosrdquo sugere o conceito estoico de tempo como intervalo do

movimento A ideia de fluidez eacute unacircnime em todos os usos da metaacutefora do rio que

aparecem com diferentes aplicaccedilotildees na obra Meditaccedilotildees Assim Puente (2012

340

Platatildeo cita Heraacuteclito em Craacutetilo ldquoHeraacuteclito diz em algum lugar que ldquotudo passa e nada permanecerdquo e descrevendo os seres como a corrente de um rio declara que ldquoduas vezes no mesmo rio natildeo se poderia entrarrdquo (Craacutetilo 402a) Traduccedilatildeo de Luciano Ferreira de Souza 341

Traduccedilatildeo de Francisco Joseacute Freire - transcriccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de Aristoacuteteles Angheben Predebon

281

p117) observa essas metaacuteforas342 na obra de Marco Aureacutelio sinalizando que o

ponto central do uso da imagem do rio como metaacutefora eacute explicitar a transitoriedade

de todas as coisas Esse jaacute dito tambeacutem se atualiza atraveacutes da literatura como pode

ser verificado na obra de Lya Luft (2014) intitulada O tempo eacute um rio que corre Na

apresentaccedilatildeo a autora declara que trecircs obsessotildees marcaram a produccedilatildeo desta sua

obra as relaccedilotildees humanas o tempo e a morte que confere importacircncia agrave vida

Em suas reflexotildees dessa filosofia moral sobre o tempo Secircneca rememora um trecho

do poema de Vergiacutelio usando o recurso da citaccedilatildeo e tece o seguinte comentaacuterio

ldquoVergiacutelio sempre que alude agrave velocidade do tempo emprega o verbo fugirrdquo Secircneca

ainda observa que fugir pode representar a forma mais veloz de corrida

O tempo melhor da vida dos miacuteseros mortais eacute o primeiro a fugir surge logo a doenccedila a amarga velhice o cansaccedilo e enfim arrebata-os da dura morte a crueldade (Ep 10824)

343

Desses versos de Vergiacutelio Secircneca extrai uma reflexatildeo estoica que ele repassa para

seu destinataacuterio A leitura de Vergiacutelio o ajuda a pensar filosoficamente o verso ldquofoge

irreparaacutevel o tempordquo que eacute das Geoacutergicas Sed fugit interea fugit inreparabile

tempus (Georg III 284) Secircneca faz algumas conjecturas sobre as diferentes

possibilidades344 de conceber os sentidos do toacutepos ldquoo tempo fogerdquo que estaacute contido

no verso de Vergiacutelio Se um aprendiz de gramaacutetica analisar o verso diraacute que Vergiacutelio

faz referecircncia agrave velocidade do tempo usando o verbo fugir sem meditar

filosoficamente que fugir natildeo significa simplesmente andar mas a corrida veloz

Pode-se avaliar que o uso desse lugar comum resultou o ditado popular ldquoo tempo

voardquo

Admitindo que a infacircncia e juventude como o vigor da vida fenecem com rapidez o

indiviacuteduo deve apropriar-se dessas melhores fases como um bem pessoal Deve

tambeacutem persistir em agarrar-se aos efeitos das boas fases como um construto

342

Puente (2012 p 117) destaca a seguinte metaacutefora do rio usada por Marco Aureacutelio ldquoReflete amiuacutede com que rapidez os seres e os fatos passam e se esvanecem A substacircncia eacute como um rio num fluxo perene as forccedilas estatildeo em transformaccedilotildees contiacutenuas as causas em mudanccedilas incontaacuteveis quase nada eacute estaacutevel aiacute perto estaacute o infinito abismo do passado e o do futuro onde tudo desaparece (Meditaccedilotildees V 23) 343

Optima quaeque dies miseris mortalibus aevi prima fugit subeunt morbi tristisque senectus et labor et durae rapit inclementia mortis (Vergiacutelio Geoacutergicas III 668) 344

Secircneca (Ep 10829) pondera que de uma mesma mateacuteria cada um procura extrair o que eacute conveniente aos seus interesses e especialidade Se um filoacutelogo um gramaacutetico e um filoacutesofo fizerem um estudo da Repuacuteblica de Ciacutecero cada um faraacute sua leitura de acordo com suas intenccedilotildees individuais

282

positivo para a vida pois permanecendo seus efeitos daratildeo forccedila e acircnimo para o

enfrentamento da velhice como final da batalha

O conhecimento compartilhado favorece as referecircncias aos lugares comuns como

observado nas epiacutestolas de Secircneca no uso de metaacuteforas e citaccedilotildees ao recorrer a

determinados aspectos do toacutepos ldquoo tempo fogerdquo em seus conselhos a Luciacutelio Os

efeitos da intertextualidade estatildeo relacionados ao posicionamento discursivo que

Secircneca ocupa em seu discurso valendo-se deles como forccedila persuasiva Por tratar-

se de um tema tatildeo abstrato ele lanccedila matildeo do recurso da metaacutefora argumentando

sobre o tempo com o uso da estrateacutegia da retoacuterica metafoacuterica para alcanccedilar seus

propoacutesitos diante de seus leitores

Na organizaccedilatildeo de seu discurso as manifestaccedilotildees linguiacutesticas atraveacutes de

expressotildees metafoacutericas revelam conceitos metafoacutericos que contribuem para

identificaccedilatildeo de um posicionamento estoico Nota-se que Secircneca tratou de temas

tatildeo abstratos relacionando tempo vida velhice e morte como pode ser observado

em um de seus ditos que contribuem para ressaltar seus conselhos representando

uma faceta conclusiva de suas ideias ldquoordenemos agrave nossa alma que se mantenha

tranquila e paguemos sem queixume o tributo de nossa condiccedilatildeo mortalrdquo (Ep

1076) Portanto o cuidado de si torna-se a mola mestre para capacitar o indiviacuteduo

para o enfrentamento da velhice e da morte Foucault dimensiona esse valor para os

estoicos ao decifrar na atitude de Secircneca uma tentativa de libertar-se de tudo que

pudesse sujeitaacute-lo O lema se resumia em ldquonatildeo tirar os olhos de si mesmo e ordenar

toda a vida a esse eu que foi fixado como objetivo para si mesmordquo (FOUCAULT

2010a p 243)

Secircneca torna evidente o tema ldquoo tempordquo a partir da construccedilatildeo da cenografia que eacute

validada pela enunciaccedilatildeo no conjunto das epiacutestolas focalizando diferentes toacutepoi

constituintes do tema central Desse mesmo modo Paulo focaliza em suas duas

epiacutestolas agrave igreja de Corinto o tema ldquoo amorrdquo a partir da cenografia desenvolvendo

em seu discurso diferentes aspectos do tema que tambeacutem ocupam um lugar

comum na memoacuteria de seus destinataacuterios

283

4 O TEMA O AMOR NAS EPIacuteSTOLAS DE PAULO

Mas quando se diz que o amor eacute conhecido pelos frutos diz-se que ao mesmo tempo que o proacuteprio amor num certo sentido mora no oculto e justamente por isso soacute se daacute a conhecer nos frutos que o revelam Kierkegaard (2005 p22)

Talvez por uma possiacutevel interpretaccedilatildeo equivocada ficou convencionado de que na

liacutengua grega amor fraterno eacute philia amor entre casais eacute eros e amor divino eacute aacutegape

com sentidos demarcados para estas trecircs palavras com significados diferenciados

para falar sobre o amor Nota-se poreacutem que no grego claacutessico e koineacute natildeo haacute

possibilidade de delimitar precisamente seus significados pois em alguns pontos haacute

certa convergecircncia dos sentidos entre os trecircs vocaacutebulos apontados como pode ser

observado em diferentes autores claacutessicos

Cabe aqui pensar que estas trecircs delimitaccedilotildees dos termos mencionados jaacute

cristalizados como originaacuterios do grego natildeo se sustentam nem nos textos do grego

claacutessico nem no grego koineacute e nem mesmo no grego moderno Em Homero o

termo philo (φιλεω)345 aparece com sentidos variados de acordo com o contexto

acontecendo o mesmo fenocircmeno em obras de Hesiacuteodo e Heroacutedoto entre outros O

termo aacutegape aparece em ocorrecircncias mais restritas nos textos do grego claacutessico

Aristoacuteteles opta pela palavra philia principalmente na obra Eacutetica a Nicocircmaco nos

livros VIII e IX oferecendo importantes contribuiccedilotildees com referecircncia ao termo

amizade que no sentido amplo se refere ao amor Na concepccedilatildeo aristoteacutelica

philia significa um tipo de amor abrangente identificado como amor entre famiacuteliares

entre amigos o amor e dedicaccedilatildeo a uma atividade e tambeacutem inclui o amor

especificamente entre casais Desse modo a noccedilatildeo de amor circunda a ideia de

sua aplicaccedilatildeo aos relacionamentos de um modo geral

345

O site httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseusabotlg00120011694 fornece informaccedilotildees precisas para localizaccedilatildeo de obras escritas no grego claacutessico que fazem uso dos termos philia aacutegape e eros Alguns exemplos podem ser citados sobre o uso de φιλεω com diversos significados Homero na Odisseia I421 e Iliacuteada II1694 Hesiacuteodo na Teogonia 97 Xenofontes no Simpoacutesio 821 Em Homero Odisseia 21289 aparece o termo ἀγάπη significando grande afeiccedilatildeo Na comeacutedia de Aristoacutefanes aparece na mesma fala tanto o termo referente ao verbo Philo na voz ativa quanto o verbo aacutegapo na voz passiva ὁτιὴ φιλῶ σ᾽ ὦ Δῆμ᾽ ἐραστής τ᾽ εἰμὶ σός (Because I adore you Mr Demos and because Irsquom your lover) 55

httpwwwloebclassicscomviewaristophanes-knights1998pb_LCL178227xml O termo eros significando amor eacute encontrado no Banquete de Platatildeo e em vaacuterios poetas como Euriacutepides e outros Na obra A Repuacuteblica Platatildeo usa a palavra philia em referecircncia ao amor agraves riquezas ( A Repuacuteblica IV 467b) Aristoacuteteles tambeacutem opta pela palavra philia tanto para referecircncia ao substantivo amizade quanto ao uso do verbo amar na obra Retoacuterica II4

284

Os tradutores da Septuaginta podem ter enfrentado certas dificuldades para

traduccedilatildeo da palavra amor do hebraico para o grego Conforme informaccedilatildeo de Stern

(2008 p 523) na liacutengua original dos judeus dois significados baacutesicos satildeo comuns

para se referir agrave ideia de amor Em um sentido ahavah eacute um significante que

contempla a noccedilatildeo de sublimidade de um sentimento chamado amor de forma

muito abrangente Em outro sentido a palavra chesed eacute definida como bondade

graccedila sem medida resultando como accedilatildeo positiva na manifestaccedilatildeo do amor Com

base nesses conceitos integrantes do original do Velho Testamento para traduccedilatildeo

da palavra amor no grego koineacute da Septuaginta346 estatildeo registrados os usos dos

dois termos philia e aacutegape A partir da traduccedilatildeo da Septuaginta o termo aacutegape

passa a ter uma ocorrecircncia mais acentuada no grego koineacute em relaccedilatildeo agraves

ocorrecircncias nos textos do grego claacutessico

No Novo Testamento tambeacutem aparecem os dois termos philia ou aacutegape mesmo

com referecircncia especiacutefica ao amor de Deus Exemplo bem singular pode ser

encontrado no evangelho de Joatildeo em que esses dois termos satildeo usados

indistintamente347

Essas justificativas expostas quanto ao uso dos trecircs vocaacutebulos philia aacutegape e eros

usados no grego claacutessico e koineacute tecircm como propoacutesito o de situar o posicionamento

de Paulo em relaccedilatildeo a escolha desses termos na sua escrita do grego koineacute Nos

textos das suas epiacutestolas aqui delimitados fica registrado o uso do termo aacutegape

significando amor em sentido muito amplo tanto em referecircncia ao amor fraternal

como tambeacutem ao amor de Deus Assim o termo aacutegape se manteacutem como

significante poreacutem com diferentes significados referentes ao amor

41 A ORIGEM DO AMOR

A cenografia constituiacuteda nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto como analisada

na segunda parte desta pesquisa eacute identificada como um manual de

aconselhamento que gira em torno do tema ldquoo amorrdquo Determinados problemas

346

Becker (2007 p 361) sugere que eacute possiacutevel supor que na escrita das epiacutestolas Paulo pressupotildee o conhecimento da Septuaginta por parte de seus destinataacuterios (cf 1 Cor 99 1421) 347

αυτος γαρ ο πατηρ φιλει υμας οτι υμεις εμε πεφιληκατε και πεπιστευκατε οτι εγω παρα του θεου εξηλθον (Pois o mesmo Pai vos ama visto como voacutes me amastes e crestes que saiacute de Deus Joatildeo 1627) Neste verso natildeo eacute usado aacutegape como em Joatildeo 316a Porque Deus amou o mundo [] ουτως γαρ ηγαπησεν ο θεος τον κοσμον []

285

naquela igreja estavam causando desuniatildeo Eacute nesses termos que logo apoacutes o

introito da epiacutestola de acordo com o gecircnero epistolograacutefico Paulo jaacute adiciona o

termo koinonia (кοινωνία) ou comunhatildeo colocando Jesus Cristo na interligaccedilatildeo

entre Deus e a igreja

Fiel eacute Deus pelo qual fostes chamados para a comunhatildeo de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor (1Cor 19)

Jesus Cristo eacute a representaccedilatildeo visiacutevel da fonte do amor que estaacute em Deus e eacute

distribuiacutedo agrave humanidade A mais altissonante declaraccedilatildeo ldquoDeus eacute amorrdquo (ο θεὁς

αγαπή ὲστιν) estaacute registrada na primeira epiacutestola de Joatildeo 4 8 Joatildeo proclama que

ldquonisto se manifestou o amor de Deus para conosco em que Deus enviou seu Filho

unigecircnito ao mundo (1 Joatildeo 49) O conselho do apoacutestolo Joatildeo ldquoAmados se Deus

assim nos amou noacutes tambeacutem devemos amar-nos uns aos outrosrdquo (1 Joatildeo 411)

ressoa e se conjuga tambeacutem aos conselhos de Paulo agrave igreja de Corinto

Rogo-vos irmatildeos em nome de nosso Senhor Jesus Cristo que sejais concordes no falar e que natildeo haja dissensotildees entre voacutes antes sejais unidos no mesmo pensamento e no mesmo parecer (1 Cor 110)

De acordo com a observaccedilatildeo de Brakemeir (2008 p27) quando Paulo requer a

uniatildeo da igreja de Corinto ldquoem nome de nosso Senhor Jesus Cristordquo ele respalda

sua proacutepria exortaccedilatildeo na autoridade de Jesus que representa o siacutembolo da maior

prova de amor

Ao avaliar o contexto social da comunidade que compunha a igreja de Corinto

Heyer (2008 p 102) interpreta os conselhos de Paulo como pertencentes ao campo

da eacutetica Esse autor alerta sobre a necessidade de se levar em conta a transmissatildeo

do discurso de Paulo atraveacutes da escrita de suas epiacutestolas a partir do lugar e

momento em que a enunciaccedilatildeo eacute efetivada Assim um dos pontos chave na eacutetica de

Paulo eacute a conduccedilatildeo dos atos com sabedoria pois a origem desta natildeo se apoia no

intelecto ou conhecimento humano como concebida pelos gregos Em suas

orientaccedilotildees sobre a eacutetica que tem como base o amor a sabedoria que tambeacutem eacute

divinamente inspirada deve servir como buacutessola para guiar a rota da caminhada

terrena e o modo de agir na vida diaacuteria Ao longo da primeira epiacutestola aos Coriacutentios

Paulo trata dos problemas suscitados evocando sempre o valor da praacutetica do amor

fraternal principalmente em relaccedilatildeo agraves divergecircncias em diferentes assuntos que

estavam causando desentendimentos

286

Paulo ressalta em sua epiacutestola que seus ensinamentos e exortaccedilotildees natildeo estatildeo

fundamentados na sabedoria humana mas naquela concedida por Deus como

manifestaccedilatildeo do seu amor

Mas como estaacute escrito As coisas que olhos natildeo viram nem ouvidos ouviram nem penetraram o coraccedilatildeo do homem satildeo as que Deus preparou para os que o amam (1Cor 29)

348

Porque desde a antiguidade natildeo se ouviu nem com ouvidos se percebeu nem com os olhos se viu um Deus aleacutem de ti que opera a favor daquele que por ele espera (Isaias 644)

Paulo recorre ao Velho Testamento sem deixar nenhuma pista para identificaccedilatildeo da

localizaccedilatildeo exata349 De acordo com as pesquisas sobre o uso do Velho Testamento

no Novo Testamento Ciampa e Rosner (2014 p 874) identificam que haacute um

paralelo bem proacuteximo entre a citaccedilatildeo feita por Paulo e a passagem biacuteblica de Isaias

644 Segundo esses autores este texto citado circulava no judaiacutesmo mais primitivo

enfatizando a real incapacidade humana de compreensatildeo dos misteacuterios de Deus

Atraveacutes dessa referecircncia ao velho testamento Paulo intensifica o valor e amplitude

da sabedoria de Deus que culmina na execuccedilatildeo do seu plano de salvaccedilatildeo O que

estes dois textos tecircm em comum por um lado eacute a indicaccedilatildeo da limitaccedilatildeo da raccedila

humana em alcanccedilar a manifestaccedilatildeo da sabedoria de Deus Por outro lado este

privileacutegio eacute reservado para os que amam a Deus como estaacute fundamentado na lei de

Moiseacutes ldquoAmaraacutes pois ao Senhor teu Deus de todo o teu coraccedilatildeo de toda a tua

alma e de todas as tuas forccedilasrdquo (Deut 65) No primeiro plano o que se nota no

discurso de Paulo eacute uma heterogeneidade mostrada pela estrateacutegia argumentativa

da indicaccedilatildeo de um texto conhecido que faz remissatildeo direta a outro discurso No

segundo plano a heterogeneidade constitutiva estaacute presente nas camadas

sobrepostas a outros discursos gerando um efeito de discursividade em relaccedilatildeo ao

tema abordado a partir de sentidos resultantes de efeitos do interdiscurso

Pela escolha da referecircncia ao texto antigo Paulo remete seus leitores agrave voz

profeacutetica de Isaias que pelo seu discurso traz agrave lembranccedila o fato de que o

relacionamento do ser humano com Deus proveacutem do amor e natildeo da sabedoria ou

348

αλλα καθως γεγραπται α οφθαλμος ουκ ειδεν και ους ουκ ηκουσεν και επι καρδιαν ανθρωπου ουκ ανεβη α ητοιμασεν ο θεος τοις αγαπωσιν αυτον (προς κορινθίους α 29) No texto da Septuaginta a citaccedilatildeo eacute identificada em Isaias 643 ἀπὸ τοῦ αἰῶνος οὐκ ἠκούσαμεν οὐδὲ οἱ ὀφθαλμοὶ ἡμῶν εἶδον θεὸν πλὴν σοῦ καὶ τὰ ἔργα σου ἃ ποιήσεις τοῖς ὑπομένουσιν ἔλεον 349

Brakemeier (2008 41) defende que a citaccedilatildeo de Paulo em 1Cor 29 se refere a um texto apoacutecrifo ainda natildeo identificado pela pesquisa exegeacutetica mas que haacute algumas passagens no Velho Testamento que tecircm alguns pontos em comum com essa citaccedilatildeo

287

conhecimento Com base nesta premissa Paulo direciona seus ensinamentos e

aconselhamentos com base no amor de Deus que eacute a fonte da sabedoria

Na primeira epiacutestola aos Coriacutentios as exortaccedilotildees e conselhos de Paulo estatildeo

voltados para a urgente necessidade da igreja de Corinto colocar em praacutetica a

essecircncia e o verdadeiro significado do amor Nesta epiacutestola o ethos de Paulo se

manifesta na figura de um liacuteder rigoroso em relaccedilatildeo ao cumprimento dos princiacutepios

cristatildeos norteadores da missatildeo e propoacutesitos daquela igreja Segundo Schreiner

(2015 p 286) ldquoo amor eacute o coraccedilatildeo e a alma da eacutetica paulinardquo Este autor ainda

observa que o tema sobre o amor permeia os discursos de Paulo nas demais

epiacutestolas a outros destinataacuterios como na epiacutestola agrave igreja de Roma ldquoA ningueacutem

devais coisa alguma a natildeo ser o amor com que vos ameis uns aos outros porque

quem ama aos outros cumpriu a leirdquo (Romanos 138) Assim o amor eacute a virtude

suprema e todas as demais estatildeo vinculadas a ele como origem e fundamento

Na segunda epiacutestola em sua correspondecircncia de aconselhamento e instruccedilotildees

Paulo parte do princiacutepio de que as admoestaccedilotildees e os ensinamentos jaacute haviam sido

ministrados anteriormente enfatizando agora o valor da prova de que o amor se

revela pelas accedilotildees Por isso ele se coloca tanto no lugar de quem eacute beneficiaacuterio da

manifestaccedilatildeo do amor de Deus como tambeacutem de quem se predispotildee a compartilhar

desse amor aos outros

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo o Pai das misericoacuterdias e Deus de toda a consolaccedilatildeo que nos consola em toda a nossa tribulaccedilatildeo para que tambeacutem possamos consolar os que estiverem em alguma tribulaccedilatildeo pela consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos consolados por Deus (2 Cor13-4) Porque em muita tribulaccedilatildeo e anguacutestia de coraccedilatildeo vos escrevi com muitas laacutegrimas natildeo para que vos entristececircsseis mas para que conhececircsseis o amor que abundantemente vos tenho (2 Cor 24)

No introito desta segunda epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo deixa revelado seu

ethos que se enuncia a partir de costumes da tradiccedilatildeo judaica Kruse (2008 p 60)

afirma que a expressatildeo Blessed be God350 faz parte da liturgia judaica nas

sinagogas desde o Velho Testamento Em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo judaica Paulo

acrescenta um novo elemento agrave expressatildeo ldquoBendito seja o Deus e Pai de nosso

Senhor Jesus Cristordquo Nessa atitude de agradecimento como rito judaico Paulo

350

Blessed be God eacute uma traduccedilatildeo da Biacuteblia King James Na nova versatildeo a traduccedilatildeo eacute Praise be to the God Para a maioria das traduccedilotildees em liacutengua portuguesa se manteve ldquoBendito seja o Deusrdquo []

288

inclui em sua gratidatildeo de forma indireta a figura de Jesus Cristo como filho de

Deus

Outro destaque no texto desta introduccedilatildeo da epiacutestola de Paulo eacute verificado no uso

da palavra consolaccedilatildeo Kruse (2008 p 61) explica que o termo grego παρακαλεω

tem dois sentidos distintos exortar e consolar No sentido de exortar o uso era

comum entre os gregos e judeus helecircnicos No sentido de consolo ou conforto a

aplicaccedilatildeo do termo eacute mais frequente na Septuaginta Observa-se que o sentido de

consolaccedilatildeo identificado no texto de Paulo remonta tambeacutem aos textos profeacuteticos

em uma relaccedilatildeo de intertextualidade Esse fato contribui para os sentidos que Paulo

procura extrair de seu discurso ao mencionar a consolaccedilatildeo que vem de Deus como

fonte para consolaccedilatildeo aos outros

O reconhecimento da consolaccedilatildeo de Deus nutre em Paulo a capacidade de se abrir

atraveacutes da correspondecircncia diante da igreja de Corinto a fim de colocar-se como

sujeito que emite um dizer verdadeiro sobre si mesmo A esse respeito encontra-se

nas pesquisas de Foucault sobre a espiritualidade cristatilde na Antiguidade um

comentaacuterio pertinente a esse comportamento de Paulo diante de seus destinataacuterios

Foucault (2010a p 325) aponta que ldquoo dizer verdadeiro sobre si mesmo tornou-se

um princiacutepio fundamental na relaccedilatildeo do sujeito consigo mesmo e um elemento

necessaacuterio ao pertencimento do indiviacuteduo a uma comunidaderdquo Nesse contexto

quando Paulo declara ldquoPorque em muita tribulaccedilatildeo e anguacutestia de coraccedilatildeo vos

escrevi com muitas laacutegrimasrdquo [] ele revela um ethos parresiaacutestico demonstrando

coragem e ousadia em expor-se diante de seus destinataacuterios Na conclusatildeo de sua

confissatildeo ele declara ldquopara que conhececircsseis o amor que abundantemente vos

tenhordquo Paulo efetiva seus argumentos com seu proacuteprio exemplo como modelo para

aquela comunidade sob sua lideranccedila

42 O AMOR PROMOVE A UNIAtildeO

A primeira epiacutestola de Paulo agrave igreja de Corinto toca em vaacuterios assuntos que

estavam causando perturbaccedilotildees e dissensotildees entre os participantes daquela

comunidade Na concepccedilatildeo de Heyer (2008 p 115) pode-se considerar que uma

grande dificuldade encontrada por Paulo era lidar com um grupo heterogecircneo em

vaacuterios aspectos gregos judeus ricos pobres intelectuais iletrados escravos

livres entre outras desigualdades Um dos momentos cruciais das desavenccedilas

289

ocorriam pontualmente no evento que marcava a celebraccedilatildeo da ceia Heyer (2008

115) relata que o ritual da ceia propriamente dito era antecedido por uma ceia

ordinaacuteria em que cada um era responsaacutevel pela sua proacutepria refeiccedilatildeo As diferenccedilas

eram visivelmente realccediladas entre os que possuiacuteam maiores condiccedilotildees financeiras

para aquisiccedilatildeo dos alimentos para aquele momento estipulado em relaccedilatildeo aos

menos favorecidos Assim o clima para a realizaccedilatildeo da segunda parte era

totalmente desfavoraacutevel A esse respeito Becker (2007 p359) tambeacutem contribui

com suas informaccedilotildees apontando que na primeira parte daquele cerimonial a

comunhatildeo dos fieacuteis deveria expressar-se no momento da refeiccedilatildeo comum Na

segunda parte o lugar central deveria ser ocupado pelo exerciacutecio das palavras de

instituiccedilatildeo do memorial que transmitiam agrave comunidade a lembranccedila da morte

sacrificial e salvadora de Jesus Cristo

Supostamente Paulo deve ter recebido queixas a respeito daquelas ocorrecircncias

que estavam promovendo alteraccedilotildees no verdadeiro sentido daquelas reuniotildees Ele

reage de modo enfaacutetico para tratar o problema e exortar sobre a falta de uniatildeo que

estava ocorrendo e a ausecircncia da disposiccedilatildeo em compartilhar Seu ethos na escrita

da epiacutestola se mostra eneacutergico mas ao mesmo tempo paciente para repetir todas

as instruccedilotildees jaacute conhecidas O amor deveria ser o ingrediente principal no ambiente

daquele ajuntamento que acontecia em espaccedilos de tempo determinados por cada

comunidade

Porque antes de tudo ouccedilo que quando vos ajuntais na igreja haacute entre voacutes dissensotildees e em parte o creio (1 Cor1118) porque quando comeis cada um toma antes de outrem a sua proacutepria ceia e assim um fica com fome e outro se embriaga Natildeo tendes porventura casas onde comer e beber Ou desprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada tecircm Que vos direi Louvar-vos-ei Nisto natildeo vos louvo (1 Cor 112122)

Paulo evoca os problemas que circundavam o acontecimento do memorial da ceia

do Senhor para corrigir as discrepacircncias que estavam causando as distorccedilotildees do

verdadeiro significado daquela ordenanccedila de Jesus ldquoFazei isto em memoacuteria de

mimrdquo Por meio desta citaccedilatildeo Paulo atualiza o modelo que deveria ser seguido na

celebraccedilatildeo da ceia

[] Porque eu recebi do Senhor o que tambeacutem vos entreguei que o Senhor Jesus na noite em que foi traiacutedo tomou patildeo e havendo dado graccedilas o partiu e disse Isto eacute o meu corpo que eacute por voacutes fazei isto em memoacuteria de mim Semelhantemente tambeacutem depois de cear tomou o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o novo pacto no meu sangue fazei isto todas as vezes que o beberdes em memoacuteria de mim Porque todas as vezes que comerdes deste

290

patildeo e beberdes do caacutelice estareis anunciando a morte do Senhor ateacute que ele venha (1Cor 1123-26)

Pode-se pensar que atraveacutes da igreja primitiva em Jerusaleacutem originou-se o

costume de reuniatildeo para compartilhar da ceia Por certo deveria haver um espiacuterito

de comunhatildeo que com o passar do tempo foi se descaracterizando O significado

mais profundo do cerimonial da ceia pressupotildee como pano de fundo o verdadeiro

sentido do amor O memorial tem como finalidade lembrar o sacrifiacutecio de Jesus na

cruz dando seu corpo e seu sangue pela humanidade Paulo traz agrave memoacuteria de

seus destinataacuterios a cena da uacuteltima ceia realizada por Jesus no acontecimento da

paacutescoa judaica

Entre alguns estudiosos que levantam certos questionamentos sobre a fonte usada

por Paulo na descriccedilatildeo da cena da uacuteltima ceia Heyer (2008 p 116) atenta para

alguns pontos a respeito do intertexto desta descriccedilatildeo de Paulo com a do Evangelho

de Lucas

E tomando patildeo e havendo dado graccedilas partiu-o e deu-lho dizendo Isto eacute o meu corpo que eacute dado por voacutes fazei isto em memoacuteria de mim Semelhantemente depois da ceia tomou o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o novo pacto em meu sangue que eacute derramado por voacutes (Lucas 2219-20)

De acordo com informaccedilotildees de Heyer (2008 p 117) a fonte que foi utilizada por

Lucas no relato da ceia pascoal deve ter sido a mesma usada por Paulo jaacute que a

escrita desta epiacutestola eacute anterior agrave dos evangelhos Com essa citaccedilatildeo Paulo procura

resgatar o verdadeiro significado da celebraccedilatildeo destacando a importacircncia dos

elementos simbolizados por meio do patildeo e do vinho Os efeitos de intertextualidade

entre os dois textos contribuem como recurso argumentativo para os ensinamentos

de Paulo Em sua homilia sobre esta passagem biacuteblica Joatildeo Crisoacutestomo faz a

seguinte indagaccedilatildeo retoacuterica ldquoCristo deu o seu corpo e tu natildeo daacutes igualmente nem o

patildeo comumrdquo (Homilia XXVII 24) Para Crisoacutestomo o foco de atenccedilatildeo dos

conselhos de Paulo estava centrado no problema das divisotildees entre os participantes

da igreja de Corinto que se agravavam no momento das reuniotildees de participaccedilatildeo da

ceia Assim Crisoacutestomos argumenta ldquoA igreja de fato natildeo foi construiacuteda para nos

dividirmos quando nos reunimos mas a fim de nos unirmos quando divididosrdquo

(Homilia XXVII 22)

Atraveacutes do recurso da citaccedilatildeo Paulo transmite seus ensinamentos exortando seus

leitores a respeito do verdadeiro significado do patildeo e do vinho no ato daquela

291

celebraccedilatildeo A representaccedilatildeo daqueles siacutembolos estava sendo desvirtuada pois nos

ajuntamentos o partir do patildeo servia para realccedilar as desigualdades entre os grupos e

o vinho para embriaguez daqueles que se afastaram dos propoacutesitos daquele

memorial

Paulo daacute sequecircncia agraves suas exortaccedilotildees e ensinamentos quanto agrave uniatildeo da igreja

pelos laccedilos do amor lanccedilando matildeo do uso da metaacutefora das funccedilotildees de partes do

corpo Haacute de se notar que o uso dessa metaacutefora como recurso argumentativo eacute

identificado em alguns textos da Antiguidade Um exemplo desse uso eacute encontrado

em Aristoacuteteles quando ele reflete ldquoassim como o olho a matildeo o peacute e em geral cada

parte do corpo tem evidentemente uma funccedilatildeo proacutepria poderemos assentar que o

homem do mesmo modo tem uma funccedilatildeo agrave parte de todas essas [] (Eacutetica a

Nicocircmaco I1098a) Aristoacuteteles usa esta metaacutefora como analogia agraves diferentes

funccedilotildees que cada pessoa exerce e o significado que isto resulta em cada um Na

epiacutestola de Paulo o uso desta mesma metaacutefora relacionada ao toacutepos ldquouniatildeo do

corpordquo eacute mais amplo e detalhado indo aleacutem da aplicaccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

adquirindo novos sentidos naquele contexto

Pois em um soacute Espiacuterito fomos todos noacutes batizados em um soacute corpo quer judeus quer gregos quer escravos quer livres e a todos noacutes foi dado beber de um soacute Espiacuterito Porque tambeacutem o corpo natildeo eacute um membro mas muitos Se o peacute disser Porque natildeo sou matildeo natildeo sou do corpo nem por isso deixaraacute de ser do corpo E se a orelha disser Porque natildeo sou olho natildeo sou do corpo nem por isso deixaraacute de ser do corpo Se o corpo todo fosse olho onde estaria o ouvido Se todo fosse ouvido onde estaria o olfato Mas agora Deus colocou os membros no corpo cada um deles como quis E se todos fossem um soacute membro onde estaria o corpo Agora poreacutem haacute muitos membros mas um soacute corpo E o olho natildeo pode dizer agrave matildeo Natildeo tenho necessidade de ti nem ainda a cabeccedila aos peacutes Natildeo tenho necessidade de voacutes Antes os membros do corpo que parecem ser mais fracos satildeo necessaacuterios e os membros do corpo que reputamos serem menos honrados a esses revestimos com muito mais honra e os que em noacutes natildeo satildeo decorosos tecircm muito mais decoro ao passo que os decorosos natildeo tecircm necessidade disso Mas Deus assim formou o corpo dando muito mais honra ao que tinha falta dela para que natildeo haja divisatildeo no corpo mas

que os membros tenham igual cuidado uns dos outros (1Cor 1213-25)

Em seu comentaacuterio da primeira epiacutestola aos Coriacutentios Brakemeier (2008 p 164)

analisa algumas questotildees enfrentadas por Paulo em relaccedilatildeo aos problemas

existentes naquela comunidade Este autor procura identificar o modo como Paulo

relaciona diversidade e unidade atraveacutes da imagem do corpo humano e seus

membros Brakemeier (2008 p165) relata que na tradiccedilatildeo estoica essa metaacutefora

292

era recorrente e tambeacutem fazia parte da faacutebula de Menenio Agripa351como aquele

personagem que conseguiu debelar um conflito de classe em Roma usando esta

metaacutefora como estrateacutegia retoacuterica de persuasatildeo no desenvolvimento do toacutepos

ldquouniatildeo do corpordquo

Ao usar uma metaacutefora que circulava como origem em um lugar comum Paulo extrai

dela aplicaccedilotildees bem especiacuteficas agrave realidade vivenciada por aquela comunidade

para unir a ideia de diversidade com a de unidade As indagaccedilotildees retoacutericas vatildeo

sendo colocadas para reflexatildeo da importacircncia do papel que cada membro exerce

para funcionamento do corpo Portanto natildeo haacute distinccedilatildeo para nenhum membro do

corpo pois cada um tem a sua especificidade sem condiccedilotildees de um tomar o lugar

do outro ou esperar que outro exerccedila o papel que eacute proacuteprio de cada um Eacute nessa

direccedilatildeo do raciociacutenio que Paulo coloca a importacircncia da unidade na adversidade ldquoE

se todos fossem um soacute membro onde estaria o corpo Agora poreacutem haacute muitos

membros mas um soacute corpordquo Nos ensinamentos de Paulo o elo que une os

membros em um soacute corpo eacute o amor natildeo pela capacidade e sabedoria humana mas

o amor que proveacutem de Deus A esse respeito Schreiner (2015 p 308) compreende

que esta unidade defendida por Paulo se manifesta no cuidado de um pelo outro de

modo que todos tenham oportunidade de participar das alegrias ou tristezas uns dos

outros Nessas condiccedilotildees os membros tornam-se um soacute corpo sem distinccedilotildees ou

privileacutegios

No uacuteltimo capiacutetulo da primeira epiacutestola aos participantes da comunidade de Corinto

Paulo incentiva-os a colocar em praacutetica os seus ensinamentos anteriores ajudando

alguns grupos da igreja de Jerusaleacutem que por razotildees natildeo mencionadas estavam

enfrentando algumas necessidades

No primeiro dia da semana cada um de voacutes ponha de parte o que puder conforme tiver prosperado guardando-o para que se natildeo faccedilam coletas quando eu chegar E quando tiver chegado mandarei os que por carta aprovardes para levar a vossa daacutediva a Jerusaleacutem (1Cor 16 23)

351

Tito Liacutevio (ab vrbe condita II 32-33) conta que Menenio narrou aos soldados uma faacutebula sobre as partes do corpo humano e como cada uma tinha seu propoacutesito no objetivo maior que eacute o funcionamento do corpo O resto do corpo acreditou que o estocircmago estava se aproveitando e assim resolveu parar de nutri-lo Logo outras partes comeccedilaram a ficar fatigadas e incapazes de funcionar pois perceberam que o estocircmago tinha uma funccedilatildeo e o resto do corpo era nada sem ele Na histoacuteria o estocircmago representa os patriacutecios e o resto do corpo a plebe No fim foi firmado um acordo entre os dois grupos

293

Segundo Heyer (2008 123) a ideia de unidade da igreja eacute abrangente para aleacutem

dos limites de Corinto No fechamento da primeira epiacutestola Paulo orienta a igreja

sobre a oferta que deveria ser enviada agrave igreja de Jerusaleacutem Natildeo se sabe ao certo

que tipo de necessidade havia naquela igreja mas a igreja de Corinto jaacute estaria

ciente do problema Becker (2007 p 371) avalia que Paulo natildeo se deteve nas

causas do empobrecimento de grupos da comunidade primitiva de Jerusaleacutem

Aquela pobreza era motivo suficiente para despertar nas comunidades cristatildes a

responsabilidade de levar as cargas uns dos outros como o proacuteprio Paulo escreve

tambeacutem aos gaacutelatas ldquoLevai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de

Cristordquo352 (Gaacutel 62)

Heyer (2008 123) enfatiza a postura de Paulo em unir dois mundos gregos e

judeus Esta natildeo era somente uma prova de amor e solidariedade mas tambeacutem de

uniatildeo mais ampla das igrejas como corpo de Cristo

De modo geral haacute uma concordacircncia de que na segunda epiacutestola agrave igreja de

Corinto Paulo daacute mais ecircnfase agraves suas instruccedilotildees e fornece mais detalhes sobre a

importacircncia de ofertar natildeo como obrigaccedilatildeo ou imposiccedilatildeo mas como demonstraccedilatildeo

de amor Ele inicia suas admoestaccedilotildees com o exemplo das igrejas da Macedocircnia

como argumento de convencimento

Tambeacutem irmatildeos vos fazemos conhecer a graccedila de Deus que foi dada agraves igrejas da Macedocircnia como em muita prova de tribulaccedilatildeo a abundacircncia do seu gozo e sua profunda pobreza abundaram em riquezas da sua generosidade (2 Cor 812) Ora assim como abundais em tudo em feacute em palavra em ciecircncia em todo o zelo no vosso amor para conosco vede que tambeacutem nesta graccedila abundeis Natildeo digo isto como quem manda mas para provar mediante o zelo de outros a sinceridade de vosso amor pois conheceis a graccedila de nosso Senhor Jesus Cristo que sendo rico por amor de voacutes se fez pobre para que pela sua pobreza focircsseis enriquecidos E nisto dou o meu parecer pois isto vos conveacutem a voacutes que primeiro comeccedilastes desde o ano passado natildeo soacute a participar mas tambeacutem a querer agora pois levai a termo a obra para que assim como houve a prontidatildeo no querer haja tambeacutem o cumprir segundo o que tendes Porque se haacute prontidatildeo de vontade eacute aceitaacutevel segundo o que algueacutem tem e natildeo segundo o que natildeo tem Pois digo isto natildeo para que haja aliacutevio para outros e aperto para voacutes mas para que haja igualdade suprindo neste tempo presente na vossa abundacircncia a falta dos outros para que tambeacutem a abundacircncia deles venha a suprir a vossa falta e assim haja igualdade como estaacute escrito Ao que muito colheu natildeo sobrou e ao que pouco colheu natildeo faltou (2 Cor 8 7 -15)

352

A lei de Cristo eacute ldquoUm novo mandamento vos dou que vos ameis uns aos outros como eu vos amei a voacutes (Joatildeo 1334)

294

Aleacutem de Paulo fazer menccedilatildeo agrave atitude dos cristatildeos da Macedocircnia como exemplo

ele tambeacutem lanccedila matildeo da citaccedilatildeo para reforccedilar seus argumentos Ele remete seu

dito agraves experiecircncias do povo de Israel na caminhada do deserto quando eram

alimentados pelo manaacute que caiacutea do ceacuteu Como de costume ela afirma estaacute escrito

mas natildeo indica a citaccedilatildeo ldquoAo que muito colheu natildeo sobrou e ao que pouco colheu

natildeo faltourdquo texto este que pode ser identificado no livro de Exocircdo353 Com referecircncia

ao manaacute todos se saciavam e natildeo faltava e nem sobrava o alimento pois o

abastecimento era especificamente para o consumo diaacuterio Kruse (2008 p 154)

interpreta esta citaccedilatildeo como uma ilustraccedilatildeo para mostrar o senso de igualdade na

experiecircncia da comunidade israelita Quando Deus provinha o manaacute do ceacuteu cada

famiacutelia recolhia a quantidade suficiente para os habitantes de sua tenda Havia

igualdade entre todos cada famiacutelia recolhia o manaacute de acordo com suas

necessidades Com esta citaccedilatildeo Paulo centraliza seu foco na igualdade como

relevacircncia para as comunidades cristatildes

No ano anterior eacutepoca em que foi escrita a primeira epiacutestola os cristatildeos de Corinto

haviam contribuiacutedo para ajudar a igreja de Jerusaleacutem Na segunda epiacutestola Paulo

relembra [] ldquoprimeiro comeccedilastes desde o ano passado natildeo soacute a participar mas

tambeacutem a quererrdquo[] A manifestaccedilatildeo de amor da igreja de Corinto para com a de

Jerusaleacutem serviu de exemplo agraves igrejas da Macedocircnia como o proacuteprio Paulo relata

[] porque bem sei a vossa prontidatildeo pela qual me glorio de voacutes perante

os macedocircnios dizendo que a Acaia estaacute pronta desde o ano passado e o vosso zelo tem estimulado muitos (2Cor 92)

Na sequecircncia da segunda epiacutestola Paulo continua animando e incentivando a igreja

a agir com amor e fidelidade pois Deus ama ao que oferta com inteireza de coraccedilatildeo

Cada um contribua segundo propocircs no seu coraccedilatildeo natildeo com tristeza nem

por constrangimento porque Deus ama ao que daacute com alegria (2Cor 97)

O termo referente a amor354 usado no grego como aacutegape (αγαπη) eacute identificado na

escrita de Paulo indistintamente tanto com referecircncias ao amor fraternal quanto ao

353

Quando poreacutem o mediam com o gocircmer nada sobejava ao que colhera muito nem faltava ao que colhera pouco colhia cada um tanto quanto podia comer (Ecircxodo 1618) Gocircmer eacute uma medida de secos equivalente a mais ou menos um litro e meio 354

Na traduccedilatildeo Vulgata o termo amor tem uso distinto para amor fraternal e amor de Deus et caritate ex nobis in vobis ( 2Cor 87 no vosso amor para conosco) e hilarem enim datorem diligit Deus (2 Cor 97 Deus ama ao que daacute com alegria)

295

amor de Deus Na culminacircncia de seus aconselhamentos Paulo destaca que o

amor que impulsiona o ato de ofertar se reverte em favor dos que contribuem

Ora aquele que daacute a semente ao que semeia e patildeo para comer tambeacutem daraacute e multiplicaraacute a vossa sementeira e aumentaraacute os frutos da vossa justiccedila ( 2Cor 910)

Atraveacutes da interdiscursividade desses ensinamentos de Paulo percebe-se atraveacutes

de seus conselhos um princiacutepio judaico norteador do ato de ofertar como

identificado em Malaquias 310355 O posicionamento de Paulo indica que a

recompensa dada por Deus a quem contribui com alegria natildeo se firma no campo da

troca mas na recompensa natural pela disponibilidade de quem age impulsionado

pelo amor ao proacuteximo sabendo que Deus supre mais do que o suficiente Pensar no

outro eacute uma forma de estabelecer a permanecircncia do amor nos relacionamentos e

sobretudo a uniatildeo que faz refletir o amor de Deus

O incentivo e estiacutemulo que Paulo exerce sobre a igreja de Corinto quanto agrave

manifestaccedilatildeo de amor ao ajudar os outros tambeacutem estaacute presente em suas epiacutestolas

agraves outras igrejas como a de Roma a da Galaacutecia e de Filipos Portanto seu ethos se

mostra como ajudador e colaborador passando para seus leitores o valor da

unidade em meio agrave diversidade de etnias niacutevel social e intelectual entre outras e o

valor do ato de doar como prova de amor

43 A GRANDEZA DO AMOR

O capiacutetulo treze356 da primeira epiacutestola aos Coriacutentios pode ser interpretado como

um hino357 ao amor nos termos que Brakemeier (2008 p 171) sustenta ldquoPode-se

355

Trazei todo o diacutezimo ao Tesouro da Casa para que haja alimento em minha casa testai-me agora nisto ndash diz o Eterno dos Exeacutercitos ndash (e vereis) se natildeo vos abrirei as janelas do ceacuteu e vos derramarei uma becircnccedilatildeo para que haja mais do que o suficiente (Mal 310 Biacuteblia Hebraica) 356

Ainda que eu falasse as liacutenguas dos homens e dos anjos e natildeo tivesse amor seria como o metal que soa ou como o ciacutembalo que retine E ainda que tivesse o dom de profecia e conhecesse todos os misteacuterios e toda a ciecircncia e ainda que tivesse toda feacute de maneira tal que transportasse os montes e natildeo tivesse amor nada seria E ainda que distribuiacutesse todos os meus bens para sustento dos pobres e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado e natildeo tivesse amor nada disso me aproveitaria O amor eacute sofredor eacute benigno o amor natildeo eacute invejoso o amor natildeo se vangloria natildeo se ensoberbece natildeo se porta inconvenientemente natildeo busca os seus proacuteprios interesses natildeo se irrita natildeo suspeita mal natildeo se regozija com a injusticcedila mas se regozija com a verdade tudo sofre tudo crecirc tudo espera tudo suporta O amor jamais acaba mas havendo profecias seratildeo aniquiladas havendo liacutenguas cessaratildeo havendo ciecircncia desapareceraacute porque em parte conhecemos e em parte profetizamos mas quando vier o que eacute perfeito entatildeo o que eacute em parte seraacute aniquilado Quando eu era menino pensava como menino mas logo que cheguei a ser homem acabei com as coisas de menino Porque agora vemos como por espelho em enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei plenamente como tambeacutem sou plenamente

296

perfeitamente falar num ldquohinordquo ao amor ou num ldquocacircnticordquo embora natildeo se trate de

poesia em sentido riacutegido e sim de prosa lavrada em estilo solene e lapidadordquo Fato

este que se justifica pois sua mensagem evoca exatamente o louvor agrave grandeza de

um amor que segundo Stern (2008 p 520) se expressa em ldquoatos de benevolecircncia

bondade e misericoacuterdia nos quais mente e vontade estatildeo unidos porque receberam

de Deus a motivaccedilatildeo e o poderrdquo

Ruden (2013 p193) destaca o uso da metaacutefora usada por Paulo logo no iniacutecio do

capiacutetulo ldquose natildeo tivesse amor seria como o metal que soa ou como o ciacutembalo que

retinerdquo358 No contexto em que satildeo introduzidas essas reflexotildees sobre o amor havia

uma preocupaccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo na convivecircncia daquela comunidade Um dos

fatos que agravava as desavenccedilas era certo tumulto que ocorria na hora do

ajuntamento por causa das liacutenguas estranhas que eram pronunciadas ao mesmo

tempo Paulo usa o recurso retoacuterico da metaacutefora para exatamente alertar que tudo

aquilo poderia acontecer mas se o amor estivesse ausente tudo aquilo seria como

o metal que soa ou como ciacutembalo que retine Esta menccedilatildeo agravequeles sons359

altissonantes eacute relacionada agraves orgias nas festas profanas frequentes desde a

Greacutecia antiga portanto era efetivamente uma imagem negativa para o contexto dos

cristatildeos Com esse argumento metafoacuterico Paulo intensifica seus aconselhamentos

mostrando que o amor eacute base para uniatildeo de todos como um soacute corpo

Paulo aponta mais diretamente para o tema amor como norteador dos seus

aconselhamentos Ela usa uma estrateacutegia loacutegica para definir os vaacuterios sentidos que

podem ser extrair do amor em forma de accedilatildeo A partir de entatildeo ele comeccedila

apresentar o amor como personificaccedilatildeo mostrando o que ele eacute como fator positivo e

o que natildeo eacute como negativo ou seja o amor eacute sofredor eacute benigno amor natildeo eacute

invejoso natildeo busca os seus proacuteprios interesses natildeo se irrita natildeo suspeita mal natildeo

se regozija com a injusticcedila Na composiccedilatildeo desses conceitos ele usa a estrateacutegia

conhecido Agora pois permanecem a feacute a esperanccedila o amor estes trecircs mas o maior destes eacute o amor (1Cor131-13) 357

Em seus estudos sobre o apoacutestolo Paulo Ruden (2013 p 193) comenta que soacute alcanccedilou o significado deste hino ao amor descrito por Paulo quando ela leu o texto no grego koineacute chegando a seguinte conclusatildeo ldquoO amor eacute algo que jaacute existe algo que atrai de volta a si a mente e o coraccedilatildeordquo 358

Ruden (2013 p 193) comenta que no contexto em que eacute introduzido o texto de 1 Coriacutentios 13 havia uma preocupaccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo na convivecircncia daquela comunidade Um dos fatos que agravava as desavenccedilas era um certo tumulto que ocorria na hora do ajuntamento por causa das liacutenguas estranhas que eram pronunciadas ao mesmo tempo 359

Segundo Brakemeier (2008 p172) o chalcos - χαλκος (bronze) deve ser imaginado como uma espeacutecie de gongo e o kymbalon (ciacutembalo) como uma vasilha de metal que se batia produzindo um som muito estridente

297

das oposiccedilotildees ideia positiva e ideia negativa como um jogo argumentativo para

provocar retoricamente a rejeiccedilatildeo do lado negativo da questatildeo Em seguida satildeo

apresentadas algumas qualidades positivas de um amor personificado o amor se

regozija com a verdade tudo sofre tudo crecirc tudo espera tudo suporta A sequecircncia

do raciociacutenio eacute loacutegica360 pois a personificaccedilatildeo induz agrave ideia do efeito da accedilatildeo na

praacutetica da vida do indiviacuteduo De acordo com as observaccedilotildees de Lakoff e Johnson

(2002 p 89) conceber algo abstrato em termos humanos tem um poder explicativo

que facilita a compreensatildeo no campo da linguagem Pode-se dizer entatildeo que as

qualidades humanas aplicadas agrave ideia de amor como o amor tudo sofre o amor

tudo suporta entre outras funcionam como expressotildees metafoacutericas que identificam

a metaacutefora ontoloacutegica O AMOR Eacute UMA PESSOA Com a aplicaccedilatildeo deste conceito

metafoacuterico ficam realccediladas as boas qualidades humanas que podem ser aplicadas

ao entendimento do amor como uma entidade abstrata

Por meio dessa construccedilatildeo personificada Paulo aponta que ldquoo amor se regozija com

a verdaderdquo (αγαπη συγχαιρει δε τη αληθεια) De acordo com essa concepccedilatildeo

Foucault identifica que o verdadeiro amor conteacutem as caracteriacutesticas da aletheia

(αληθεια) de acordo com seus sentidos361 na cultura grega Na visatildeo de Foucault

(2011 p194) o verdadeiro amor e a verdadeira vida satildeo duas instacircncias que desde

o platonismo se pertencem sendo que o chamado platonismo cristatildeo retoma

amplamente este tema Na exposiccedilatildeo de Foucault (2011 p 309) com base histoacuterica

nos dois primeiros seacuteculos dC o verdadeiro amor impulsiona o cuidado de si e o

cuidado do outro sendo a verdadeira vida o propoacutesito de culminacircncia da passagem

da vida terrena para a vida eterna

Na concepccedilatildeo de Ciampa e Rosner (2014 p 918) o amor eacute o tema central do eacutetico

em Paulo As reflexotildees do tema amor na epiacutestola enfatizam diferentes dimensotildees jaacute

estabelecidas na cultura hebraica nos ensinamentos do Velho Testamento O texto

da epiacutestola dialoga fundamentalmente com comentaacuterios da lei de Moiseacutes ldquoAmaraacutes

ao teu proacuteximo como a ti mesmordquo (Lev 1918) Este eacute um princiacutepio baacutesico do

judaiacutesmo que tambeacutem eacute atualizado no Novo Testamento

360

Kierkgard (2005 p308) faz a seguinte reflexatildeo filosoacutefica ldquoMas o amor verdadeiro o amor que se sacrifica ama toda e qualquer pessoa de acordo com seu caraacuteter proacuteprio pois ele natildeo procura seu interesserdquo 361

Sentidos da aletheia dizer sincero natildeo dissimulado que natildeo engana natildeo altera e nem acrescenta eacute reto conforme a retidatildeo existe e se manteacutem em detrimento de qualquer mudanccedila

298

No texto de 1Coriacutentios 13 verifica-se um efeito de interdiscursividade que permite a

leitura de diferentes discursos que estatildeo interpostos agrave linearidade textual no ato

enunciativo Becker (2007 p 88) comenta que Paulo mostra na escrita de suas

epiacutestolas que parte de sua formaccedilatildeo eacute heleniacutestica Becker (2008 p 90) ainda

enfatiza que ldquonatildeo se pode ignorar as referecircncias formais e de conteuacutedo da tradiccedilatildeo

heleniacutestica no assim chamado hino ao amorrdquo Este autor pondera que sem o cuidado

destas constataccedilotildees dificilmente se conseguiraacute uma descriccedilatildeo adequada do pano

de fundo histoacuterico cultural deste texto A partir deste entendimento observa-se que

alguns pontos de contato entre Paulo e Platatildeo podem ser identificados atraveacutes de

partes de seus discursos

A primeira identificaccedilatildeo constatada pode ser autenticada na fala de Agatatildeo nos

diaacutelogos da obra de Platatildeo O Banquete (O Simpoacutesio) que tem como discussatildeo

exatamente o tema ldquoamorrdquo Agatatildeo faz uma descriccedilatildeo do amor que em algumas

partes coincide com a de Paulo

Agatatildeo ndash O amor natildeo comete nem sofre injusticcedila Aleacutem da justiccedila da maacutexima temperanccedila ele compartilha (O Banquete 196b)

Paulo ndash O amor natildeo se regozija com a injusticcedila mas se regozija com a verdade tudo sofre tudo crecirc tudo espera tudo suporta (1 Cor 13 67)

Levando em conta que Paulo teve sua formaccedilatildeo inicial em um ambiente

culturalmente ecleacutetico decerto vivendo a experiecircncia de uma educaccedilatildeo heleniacutestico-

judaica natildeo eacute possiacutevel negar sua competecircncia como um patrimocircnio proacuteprio que ele

soube utilizar e adequar aos ensinamentos dos princiacutepios cristatildeos Paulo parte de

um lugar comum para refletir sobre o tema referente ao amor desenvolvendo e

acrescentando outros elementos ao que jaacute era discutido desde os antigos gregos A

grande contribuiccedilatildeo de Paulo eacute situar essa concepccedilatildeo filosoacutefica de amor agrave realidade

das comunidades cristatildes as quais ele orientava indicando em Deus a sublime fonte

desse amor Vale relembrar que Paulo usa o termo grego αγαπη referente a amor

como usado na Septuaginta e natildeo eros (ερως) como no Banquete em Platatildeo ou

philia (φιλια) como usado em Aristoacuteteles Na expectativa da impossibilidade de se

alcanccedilar os significados mais profundos do que representa o amor verdadeiro e o

total conhecimento de Deus que eacute a origem e a fonte desse amor Paulo reflete

ldquoPorque agora vemos como por espelho em enigma mas entatildeo veremos face a

face agora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei plenamente como tambeacutem

sou plenamente conhecidordquo (1Cor 1312)

299

Em sua anaacutelise desse verso Stern (2008 p 521) sugere que se faccedila uma

comparaccedilatildeo dessa passagem com a alegoria da caverna362na obra A Republica

Por meio desta alegoria Platatildeo reflete sobre as consequecircncias do aprisionamento

na escuridatildeo da ignoracircncia em que o olhar eacute impossibilitado de alcanccedilar a luz como

forma de captar a realidade No transcorrer do diaacutelogo eacute aventada a possibilidade

da libertaccedilatildeo e as mudanccedilas e transformaccedilotildees que ela pode causar

[] se o arrancarem agrave forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de tais violecircncias E quando tiver chegado agrave luz poderaacute com os olhos ofuscados pelo seu brilho distinguir uma soacute das coisas que ora denominamos verdadeiras [] Precisaria creio habituar-se para contemplar o mundo superior De iniacutecio perceberia mais facilmente as sombras ao depois as imagens dos homens e dos outros objetos refletidos na aacutegua por uacuteltimo os objetos e no rosto deles o que se encontra no ceacuteu e o proacuteprio ceacuteu [] (A Republica (VII 516a)

O questionamento de Platatildeo sobre a condiccedilatildeo de escuridatildeo que aprisiona encontra

soluccedilatildeo no poder da luz que ilumina as trevas e metaforicamente a luz eacute a verdade

Pode-se dizer que o evangelho de Joatildeo363 aponta a soluccedilatildeo para esta questatildeo []

ldquoe conhecereis a verdade e a verdade vos libertaraacuterdquo 364 em grego se destaca a

palavra aletheia (και γνωσεσθε την αληθειαν και η ελευθερωσει υμας Joatildeo 832)

com todos aqueles sentidos subjacentes a este termo verdade Eacute possiacutevel

conjecturar que o apoacutestolo Paulo reuacutene as aplicaccedilotildees da alegoria de Platatildeo com os

362

No interior da caverna permanecem seres humanos que nasceram e cresceram ali Ficam de costas para a entrada acorrentados sem poder mover-se forccedilados a olhar somente a parede do fundo da caverna sem se poder ver uns aos outros ou a si proacuteprios Atraacutes dos prisioneiros haacute uma fogueira separada deles por uma parede baixa por detraacutes da qual passam pessoas carregando objetos que representam homens e outras coisas viventes As pessoas caminham por detraacutes da parede de modo que os seus corpos natildeo projetam sombras mas sim os objetos que carregam Os prisioneiros natildeo podem ver o que se passa atraacutes deles e veecircm apenas as sombras que satildeo projetadas na parede em frente a eles Pelas paredes da caverna tambeacutem ecoam os sons que vecircm de fora de modo que os prisioneiros associando-os com certa razatildeo agraves sombras pensam ser eles as falas das mesmas Desse modo os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade (PLATAtildeO A Repuacuteblica VII 514a 514c) 363

No contexto em que Jesus estaacute revelando quem ele eacute surge a afirmaccedilatildeo ldquoEu sou a luz do mundo quem me segue de modo algum andaraacute em trevas mas teraacute a luz da vida (Joatildeo 812) Na sequecircncia Joatildeo relata Dizia pois Jesus aos judeus que nele creram Se voacutes permanecerdes na minha palavra verdadeiramente sois meus disciacutepulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertaraacute (Joatildeo 83132) 364

Sobre esta expressatildeo ldquoa verdade vos libertaraacuterdquo na obra A Trindade (IV XVIII24) Agostinho faz a seguinte reflexatildeo [] ldquopor isso cremos que o mesmo aconteceraacute conosco quando a feacute atingir a verdade Eis como ele fala aos que crecircem para que permaneccedilam na palavra da feacute e passem agrave verdade e conduzidos agrave eternidade sejam libertados da morte Se permanecerdes em minha palavra sereis em verdade meus disciacutepulos E como lhe fosse perguntado ldquoQual eacute a vantagemrdquo diz em seguida conhecereis a verdade E de novo como lhe dissessem ldquoQue aproveita aos mortais a verdaderdquo diz e a verdade vos libertaraacute (Jo 83132) De que Da morte da corrupccedilatildeo da mutabilidade Pois a verdade eacute sempre imortal incorruptiacutevel e imutaacutevel Mas a verdadeira imortalidade a verdadeira incorruptabilidade a verdadeira imutabilidade eacute a eternidaderdquo

300

ensinamentos de Jesus como fundamentaccedilatildeo de seus ensinamentos aos cristatildeos

de Corinto pois na base de seu discurso torna-se viaacutevel outras leituras na

constitutividade do interdiscurso Assim os discursos constituintes se entrecruzam

no ponto em que o discurso religioso se apoia no discurso filosoacutefico para auxiacutelio na

compreensatildeo da exposiccedilatildeo do tema ldquoo amorrdquo

Alguns pontos da aplicaccedilatildeo desta alegoria de Platatildeo podem ir ao encontro do que

Paulo parece aproveitar em seu discurso Platatildeo fala da dificuldade para se enxergar

a realidade e por causa do aprisionamento na caverna eacute impossiacutevel a captaccedilatildeo da

verdadeira imagem Em Paulo a impossibilidade para o ser humano eacute de ver a

imagem de Deus e conhececirc-lo plenamente pelo motivo do ser humano estar

acorrentado pelo pecado em um corpo corruptiacutevel na escuridatildeo das trevas Para os

leitores familiarizados com os textos de Platatildeo o efeito da intertextualidade se

realiza pela aplicaccedilatildeo da analogia da metaacutefora da caverna com partes dos

ensinamentos que Paulo quer transmitir aos seus destinataacuterios E assim as imagens

validadas na memoacuteria dos leitores quando trazidas para a enunciaccedilatildeo funcionam

como recurso argumentativo

A questatildeo de que no presente ldquovemos por espelho365 em enigmardquo eacute interpretada por

Agostinho (A Trindade XV 4 15-16) na perspectiva de que espelho e enigma satildeo

dois termos usados por Paulo representando uma mesma ideia ou seja a forma

imperfeita de se ver Deus Mas Paulo transpotildee o presente apontando para a

esperanccedila do futuro ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei plenamente

como tambeacutem sou plenamente conhecidordquo Eacute nessa perspectiva do futuro que Paulo

conclui Agora pois permaneccedila a feacute a esperanccedila e o amor mas o maior destes eacute o

amor Kierkegaard366 (2005 p280) compreende que o amor se encarrega da feacute e da

365

Possivelmente a superfiacutecie da aacutegua inspirou a criaccedilatildeo do espelho No livro de Ecircxodo haacute uma descriccedilatildeo da construccedilatildeo do tabernaacuteculo e as peccedilas que foram colocadas nos compartimentos O espelho eacute citado como um utensiacutelio para uso das mulheres ldquoFez tambeacutem a pia de cobre com a sua base de cobre dos espelhos das mulheres que se reuniam para servir agrave porta da tenda da congregaccedilatildeordquo (Exocircdo 388) 366

Na segunda parte do livro ldquoAs obras do amorrdquo Kierkegaard (2005) explora o texto de 1 Coriacutentios 13 que pertence ao discurso constituinte religioso A partir do discurso primeiro o comentaacuterio eacute distribuiacutedo em capiacutetulos com tiacutetulos distintos transformando-se em discurso segundo em relaccedilatildeo ao discurso religioso Poreacutem sua funccedilatildeo no discurso constituinte filosoacutefico passa a ser exercida como discurso primeiro como resultado da dinacircmica que ocorre no intercacircmbio entre discursos constituintes Na anaacutelise de Almeida e Pires Jr (2013 p 78) haacute uma aproximaccedilatildeo entre Foucault e Kierkegaard quando este com base em 1 Coriacutentios 81 afirma ldquoO amor edificardquo Foucault remete a questatildeo da edificaccedilatildeo e da interioridade onde descer o mais profundo de si mesmo eacute instalar-se sobre si mesmo [] e depois de edificado esse si mesmo promove a reduplicaccedilatildeo entre o si mesmo e o proacuteximo

301

esperanccedila pois quem ama confia e espera A ideia de permanecer remete ao amor

que sustenta toda a existecircncia concluindo-se que a fonte deste amor vem de Deus

pela sua proacutepria natureza de eternidade Entatildeo o fechamento da exaltaccedilatildeo ao amor

coloca este amor originaacuterio em Deus e quando praticado pelo indiviacuteduo apresenta

todas essas caracteriacutesticas e qualidades identificadas e detalhadas pelo apoacutestolo

Paulo Na finalizaccedilatildeo da segunda epiacutestola no antepenuacuteltimo versiacuteculo Paulo

apresenta uma siacutentese de todos os seus conselhos nas duas epiacutestolas dirigidas agrave

igreja de Corinto sinalizando em sua conclusatildeo367 que a eficaacutecia do amor eacute a base

para o viver cristatildeo

Quanto ao mais irmatildeos regozijai-vos sede perfeitos sede consolados sede de um mesmo parecer vivei em paz e o Deus de amor e de paz seraacute convosco (2Cor 1311)

Na totalidade da escritura das duas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto verifica-

se uma superposiccedilatildeo de vaacuterios discursos que satildeo apreendidos de um jaacute-dito

apropriados para fortalecimento da escrita que revela a formaccedilatildeo de discursos

verdadeiros Nessa perspectiva Foucault esclarece que

[] natildeo se trata de constituir para si um mosaico de proposiccedilotildees de diferentes origens mas de constituir uma trama soacutelida de proposiccedilotildees que valham por prescriccedilotildees discursos verdadeiros que sejam ao mesmo tempo princiacutepios de comportamento (FOUCAULT 2010a p 320)

O tema filosoacutefico o amor eacute norteador das epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios e a

enunciaccedilatildeo eacute atravessada por outros dicursos tanto o religioso na vertente judaico-

cristatilde quanto o filosoacutefico e literaacuterio que em conjunto cooperam para o

robustecimento argumentativo da concepccedilatildeo de amor que ele quer passar para os

destinataacuterios de suas epiacutestolas

367

Kruse (2008 p 215) em sua finalizaccedilatildeo da anaacutelise da segunda epiacutestola aos Coriacutentios conclui que essa exortaccedilatildeo de Paulo no fechamento da epiacutestola pressupotildee uma grande dose de encorajamento para os cristatildeos que estatildeo dispostos a ouvir e obedecer como tambeacutem uma indicaccedilatildeo de que a fonte do poder para conduzir as accedilotildees estaacute em Deus que representa toda a siacutentese do significado do amor

302

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE III

Esta terceira parte da pesquisa funciona como fechamento no tratamento das trecircs

provas do discurso ethos pathos e logos O discurso eacute considerado como logos

pela forma de expressar o raciociacutenio pelo uso da palavra e a retoacuterica exerce a

funccedilatildeo de organizar esse discurso de tal forma que possa atingir o pathos De

acordo com os postulados da anaacutelise do discurso em foco nesta pesquisa o

enunciador manifesta seu ethos no discurso posicionando-se discursivamente no

ato enunciativo O co-enunciador eacute o receptor do discurso e seus sentimentos satildeo

alcanccedilados pelo efeito do discurso Assim o recurso do uso do toacutepos ldquofalar francordquo eacute

determinante para a enunciaccedilatildeo do discurso verdadeiro nas epiacutestolas de Secircneca e

Paulo pois a franqueza eacute marca de sinceridade e afeto estando diretamente

relacionada ao toacutepos da amizade Portanto o ldquofalar francordquo estaacute interligado a outros

toacutepoi de acordo com o contexto em que eacute usado

Nas epiacutestolas de Secircneca a parresiacutea como modalidade da verdade eacute perceptiacutevel na

manifestaccedilatildeo do ethos e eacute interligada agrave modalidade filosoacutefica de como tratar a

verdade no gecircnero epistolar Na anaacutelise das epiacutestolas de Paulo o ethos

parresiaacutestico se revela por meio de sua franqueza em transmitir a verdade profeacutetica

que ele assume como missatildeo evangelizadora e a manutenccedilatildeo da koinonia

comunhatildeo entre os participantes da eklesia assembleia dos santos reunidos

Entre as possibilidades de identificaccedilatildeo de recursos perceptiacuteveis como fonte para

argumentaccedilatildeo nas epiacutestolas selecionadas satildeo identificados os exemplos como

especificados por Aristoacuteteles Ao constatar o uso de exemplos no gecircnero epistolar

nota-se que seu uso natildeo se limita ao campo do exemplo histoacuterico que funciona

como uma fonte eficaz na estrateacutegia argumentativa O exemplo pessoal no gecircnero

epistolograacutefico aleacutem da forccedila persuasiva da importacircncia da experiecircncia pessoal do

remetente como meio de convencimento gera uma oportunidade do Eu abrir-se

diante do Tu na escrita de si O exemplo pessoal por parte do remetente eacute sinal de

experiecircncia em um determinado plano que pode servir de fundamento para os

aconselhamentos Este fato eacute observaacutevel nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo

Assim no corpus de anaacutelise o uso de exemplos histoacutericos ou seja os retirados de

uma fonte jaacute reconhecida fornecem uma discursividade distinta daqueles exemplos

resultantes da vivecircncia do proacuteprio remetente

303

Nesse mesmo campo semacircntico as citaccedilotildees tambeacutem exercem uma funccedilatildeo

persuasiva no discurso podendo ser tratadas como lugares comuns regidos pela

deduccedilatildeo semelhante ao funcionamento da maacutexima em seu papel de proximidade

com o entimema As citaccedilotildees diferem dos exemplos pela forma de sua penetraccedilatildeo

no discurso pois a voz que se introduz na enunciaccedilatildeo exerce uma funccedilatildeo de

autoridade para fortalecer o posicionamento discursivo do enunciador O apoio de

uma voz externa causa o efeito de intertextualidade que permite o atravessamento

de outros discursos no niacutevel dialoacutegico da linguagem

Quanto ao uso de metaacuteforas Alexandre Juacutenior em seus comentaacuterios na traduccedilatildeo da

Retoacuterica (2005 p 48) conclui que existe uma correlaccedilatildeo entre raciociacutenio metafoacuterico

e silogiacutestico Isso eacute indicado pela proacutepria semelhanccedila entre o uso retoacuterico de

metaacutefora e o de entimema ou seja parte-se do conhecido para o desconhecido ou

do concreto para o abstrato Aleacutem desses fundamentos herdados de Aristoacuteteles

quanto ao valor da metaacutefora no campo da argumentaccedilatildeo pode-se pensar tambeacutem a

metaacutefora conceitual como um indiacutecio da elaboraccedilatildeo cognitiva do raciociacutenio na

construccedilatildeo de conceitos metafoacutericos que se manifestam pela linguagem pois a sede

da metaacutefora eacute o pensamento368

O uso da metaacutefora como argumento retoacuterico como indicado por Aristoacuteteles (Ret III

11 1412a) tem a funccedilatildeo de indicar ldquoas coisas apropriadas ao objeto em causa mas

natildeo oacutebvias tal como na filosofia eacute proacuteprio do espiacuterito sagaz estabelecer a

semelhanccedila mesmo com entidades tatildeo diferentesrdquo Pode-se pensar que na

Antiguidade a imagem do atleta tornou-se um siacutembolo metafoacuterico que ocupou

relevacircncia em um lugar comum de onde poderiam ser retiradas analogias variadas

com aplicaccedilotildees das mais diversas no campo da retoacuterica Secircneca e Paulo recorrem a

este toacutepos do ldquocuidado do corpordquo representado pela figura do atleta dando

significados de acordo com o discurso constituinte que norteia a cada um Este

toacutepos eacute recorrente nas epiacutestolas de Secircneca com diferentes aplicaccedilotildees Na epiacutestola

catorze Secircneca afirma ldquoAdmito que eacute inata em noacutes a estima pelo proacuteprio corpo

admito que temos o dever de cuidar delerdquo (Ep 141) Com o uso da metaacutefora do

atletismo especialmente usada na epistola aos Coriacutentios Paulo aproveita-se do

368

Segundo Lakoff e Johnson (2002) a sede da metaacutefora eacute o pensamento e natildeo a linguagem Uma abordagem da metaacutefora conceitual torna-se importante por mostrar como o homem pensa o mundo e o conceitualiza manifestando na linguagem sua elaboraccedilatildeo mental do mundo que o cerca Sendo assim o comportamento cotidiano do indiviacuteduo identifica a forma de compreensatildeo de suas experiecircncias Nesses termos a heranccedila cultural eacute fundamental na formaccedilatildeo de conceitos

304

favorecimento do ambiente pois Corinto se situa como sede dos jogos iacutestmicos

Assim Paulo demonstra sua inter-relaccedilatildeo com a cultura local e tambeacutem sua

liberdade em salientar suas proacuteprias tribulaccedilotildees sem ser derrotado com a imagem

do atleta em seus cuidados e preparaccedilatildeo na meta para o alcance da vitoacuteria

O que se pode observar na produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e de Paulo

aos Coriacutentios eacute a presenccedila de um tema que se desenvolve na enunciaccedilatildeo de acordo

com o lugar e momento que cada um deles ocupa no ato enunciativo Se Secircneca

admite sua proacutepria velhice o tema sobre o tempo eacute essencial para o

desenvolvimento de uma filosofia moral que ele desenvolve a partir da concepccedilatildeo

estoica sobre a vida Alguns toacutepoi satildeo identificados no tratamento dos toacutepicos

retirados do tema e o recurso da metaacutefora favorece a localizaccedilatildeo dos lugares

comuns

Na situaccedilatildeo de Paulo ele constata a desuniatildeo que havia se estabelecido na igreja

de Corinto assim o assunto de sua epiacutestola se desenvolve em torno do tema o

amor Nas duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Paulo orienta os seus

aconselhamentos em torno de vaacuterias facetas ligadas ao tema amor lanccedilando matildeo

de recursos originaacuterios de um lugar comum que abriga opccedilotildees variadas na

composiccedilatildeo do tema fornecidos pelo discurso religioso filosoacutefico e literaacuterio

O toacutepos ldquofalar francordquo os argumentos retoacutericos e os temas desenvolvidos nas

epiacutestolas de Secircneca e de Paulo se revestem de uma discursividade originaacuteria no

discurso constituinte que determina o posicionamento discursivo de cada enunciador

ocupa na composiccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico

305

CONCLUSAtildeO

A trajetoacuteria da proposta da pesquisa aqui desenvolvida chega ao seu final e alguns

pontos devem ser destacados para apresentar algumas questotildees de relevacircncia a

respeito do que foi observado e analisado O confronto realizado entre os dois

epistolograacuteficos Secircneca e Paulo natildeo eacute um tema novo pelo contraacuterio desde a

Patriacutestica autores como Tertuliano Agostinho e Jerocircnimo dentre outros satildeo

apontados como os que fizeram menccedilatildeo a uma possiacutevel aproximaccedilatildeo entre Secircneca

e Paulo Em sua pesquisa intitulada The apocryphal correspondence between

Seneca and Paul Mitchell (2010 28) avalia que as conjecturas de que Secircneca teria

se convertido ao cristianismo natildeo procedem Mitchell (2010 p 248) chama a

atenccedilatildeo para o fato de que Secircneca e Paulo viviam em posiccedilotildees sociais opostas

Secircneca era um aristocrata a serviccedilo da corte e Paulo rejeitado por seus proacuteprios

compatriotas Os textos dos dois se aproximam quando o tema em questatildeo eacute

direcionado agraves virtudes e aos viacutecios pois a eacutetica tatildeo valorizada pelos estoicos

tambeacutem eacute conveniente para a escrita de Paulo

Comparando o posicionamento discursivo na escrita das epiacutestolas de Secircneca e de

Paulo notam-se caracteriacutesticas bem distintas entre os dois pelos proacuteprios propoacutesitos

que os diferenciam A escolha do gecircnero epistolar eacute comum a eles mas os objetivos

satildeo bem diferenciados Secircneca tem experiecircncias em lidar com outros gecircneros no

acircmbito da literatura sendo talvez o gecircnero epistolar o espaccedilo mais favoraacutevel para

discussatildeo de seu pensamento estoico pois os outros gecircneros usados satildeo

caracterizados por uma circulaccedilatildeo peculiar como no caso da trageacutedia e da saacutetira

Segundo Long (2013 p 213) ldquoSecircneca usa a forma epistolar como meio de pensar

os princiacutepios morais estoicos e de avaliar os progressos de seu autor e de seu

destinataacuteriordquo Secircneca tambeacutem expressa-se a respeito da oportunidade de ao

mesmo tempo ensinar e aprender ldquoEu natildeo desejo outra coisa senatildeo transmitr-te

toda a minha experiecircncia aprender daacute-me sobretudo prazer porque me torna apto a

ensinarrdquo (Ego vero omnia in te cupio transfundere et in hoc aliquid gaudeo discere

ut doceam Ep 64)

Na situaccedilatildeo de Paulo o objetivo eacute atender a necessidade de sua comunicaccedilatildeo com

as comunidades cristatildes destinataacuterias pelo motivo principal da distacircncia Na

enunciaccedilatildeo que permite identificar a elaboraccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo a decircixis

306

discursiva revela um enunciador que se situa em uma topografia discursiva que se

biparte em dois espaccedilos distintos judeu e cristatildeo Ao mesmo tempo existe um

ponto de uniatildeo entre estes espaccedilos o periacuteodo Heleniacutestico A cronografia discursiva

permite a identificaccedilatildeo de um novo tempo no qual Paulo estaacute inserido em

consequecircncia de sua conversatildeo ao tornar-se judeu-cristatildeo

O ponto crucial de afastamento entre os textos de Secircneca e Paulo eacute a concepccedilatildeo

que cada um deles tem a respeito do conceito de deus Em vaacuterias partes das

epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio eacute reafirmada a convicccedilatildeo da existecircncia dos deuses e a

necessidade da prestaccedilatildeo de culto a eles sendo a referecircncia focada com

recorrecircncia no plural E mesmo a ideia de deus uno assume diferentes designaccedilotildees

como natureza providecircncia entre outras O que se observa eacute que por parte de

Secircneca haacute um reconhecimento do poder e majestade dos deuses pois eles cuidam

do universo Como visto haacute certos conceitos que impotildeem uma diferenccedila

fundamental entre estoicos e cristatildeos como mostra a declaraccedilatildeo de Secircneca ldquoos

deuses velam pela seguranccedila da espeacutecie humana mesmo quando natildeo se

preocupam com cada homem individualmenterdquo (Ep 9550) Dos postulados retirados

do exemplo mencionado dois pontos baacutesicos podem ser identificados entre os

posicionamentos discursivos de Seneca e Paulo pluralidade de deuses e

distanciamento deles com a individualidade humana fato que implica o conceito

monoteiacutesta e politeiacutesta de deus e a noccedilatildeo de imanecircncia transcendecircncia

A colocaccedilatildeo de Secircneca ao afirmar que os deuses natildeo se preocupam com cada

homem individualmente indica uma concepccedilatildeo antiga dos gregos a esse respeito

Foucault (2008) analisa que na Antiguidade ocidental a recorrecircncia agrave metaacutefora do

piloto do navio como aquele que estaacute no controle da cidade deixa impliacutecita a

ideia de que o alvo de atenccedilatildeo para o que governa natildeo satildeo os indiviacuteduos O capitatildeo

do navio natildeo governa os marujos governa o navio Em oposiccedilatildeo a essa ideia entre

os hebreus o tema do pastorado se intensificou e a metaacutefora do pastor como guia

do rebanho adquiriu uma importacircncia fundamental para a religiosidade na

cultura hebraica A Biacuteblia estaacute atravessada pelas metaacuteforas do pastor de ovelhas

desde o Velho ateacute o Novo Testamento como expresso no verso ldquoO Senhor eacute meu

pastor e nada me faltaraacuterdquo (Salmos 231) Foucault faz um levantamento de vaacuterias

ocorrecircncias da importacircncia da figura do pastor no texto biacuteblico apontando para

as dimensotildees que o poder pastoral atingiu com o advento do cristianismo

307

Portanto pode-se notar que as noccedilotildees de deus e de governo do mundo estatildeo

inteiramente relacionadas tanto para a cultura greco-romana quanto para a

hebraica que se expande para o cristianismo

O posicionamento discursivo de Paulo na escrita de suas epiacutestolas identifica seu

lugar na enunciaccedilatildeo como judeu-cristatildeo Dessa posiccedilatildeo ele traz para a comunidade

dos pertencentes agrave igreja de Corinto exemplos que evidenciam a concepccedilatildeo

monoteiacutesta de Deus indicando sua soberania na sustentaccedilatildeo do universo mas

tambeacutem a sua atenccedilatildeo individualizada para com o povo hebreu na caminhada para

a terra prometida Por meio do exemplo Paulo apresenta a prova contundente da

relaccedilatildeo do cuidado de Deus para com o povo pela manutenccedilatildeo da porccedilatildeo diaacuteria do

manaacute para alimentaacute-los e a aacutegua fornecida pela rocha que os acompanhava A partir

da base doutrinal deste exemplo Paulo faz uma aplicaccedilatildeo alegoacuterica como forma de

transmitir agrave igreja algumas liccedilotildees retiradas da imagem da travessia do mar vermelho

o manaacute e a rocha como siacutembolos a serem aplicados agraves situaccedilotildees que aquela

comunidade estava vivenciando em relaccedilatildeo ao memorial da ceia e do batismo O

ponto central pode ser visto como a revelaccedilatildeo do amor de Deus atraveacutes de seu

cuidado Com o exemplo exposto Paulo desenvolve o toacutepos ldquocuidado de Deusrdquo

apontando vaacuterias facetas aplicaacuteveis agrave igreja de Corinto Com esses ensinamentos

Paulo combate a idolatria ou seja a veneraccedilatildeo a diferentes deuses e tambeacutem as

consideraccedilotildees filosoacuteficas do estoicismo sobre as concepccedilotildees de deus e deuses

A leitura da coleccedilatildeo Epistolae Morales permite observar que em determinados

momentos Secircneca parece distanciar-se das concepccedilotildees estoicas de deus e

aproximar-se do pensamento judaico-cristatildeo mas na realidade essa posiccedilatildeo natildeo se

sustenta A respeito desse fato Reale (1994b p71) faz as seguintes observaccedilotildees

ldquoSecircneca eacute certamente um dos expoentes do Poacutertico no qual satildeo mais evidentes a

oscilaccedilatildeo a respeito do pensamento sobre deus a tendecircncia a sair do panteiacutesmordquo

[] Reale avalia que o posicionamento de Secircneca em manter-se fiel ao estoicismo

prevalece sobre todas as questotildees duacutebias pois ele tem alguns vislumbres filosoacuteficos

intuitivos mas natildeo haacute disposiccedilatildeo para elaborar categorias que possam substituir os

postulados estoicos

Secircneca se posiciona favoraacutevel agrave separaccedilatildeo entre corpo e alma e critica certos

estoicos que pensam o contraacuterio sem citar nenhum nome ldquonatildeo faccedilo minhas as

palavras daqueles estoicos para quem a alma de um homem esmagado sob uma

308

massa de grande peso natildeo poderia permanecer unardquo (Ep 578) Apesar de sua

concordacircncia a respeito da imortalidade da alma quanto ao seu destino ele diverge

em seu proacuteprio posicionamento ldquoapoacutes a morte a alma ou passa a uma forma

superior de vida ascendendo agrave esfera divina ou pode confundir-se no todo da

naturezardquo (Ep 7116) Percebe-se que Secircneca natildeo se mostra seguro em suas

convicccedilotildees sobre o destino da alma basta para ele saber que ela eacute imortal

Em algumas epiacutestolas de Secircneca pode ser identificado o conceito metafoacuterico A VIDA

Eacute UMA VIAGEM Este conceito implica a ideia da separaccedilatildeo corpo e alma Uma

forma desta expressatildeo estaacute assim registrada ldquoEstou preparado para partir e assim

gozo tanto mais a vida quanto menos me preocupa saber quanto tempo o futuro

ainda me reservardquo (Ep 612) Este conceito metafoacuterico que permeia o discurso de

Secircneca sinaliza seu posicionamento discursivo em relaccedilatildeo agrave sua expectativa sobre

a morte Se a vida eacute anaacuteloga a uma viagem ela eacute uma passagem por este mundo e

nesse sentido ele reforccedila que a vida eacute uma caminhada para a morte ou o caminho

de volta A velhice eacute um processo que se instaura desde o nascimento como

preparaccedilatildeo para a morte Nesse contexto de perspectiva de vida que se manifesta

no discurso de Secircneca o cuidado de si tem o significado de fortalecimento para o

enfrentamento da morte Foucault (2010a p 70) nota que em Secircneca o cuidado de

si eacute a preparaccedilatildeo para a velhice como completude da vida Secircneca postula que a

fundamentaccedilatildeo para este posicionamento se encontra na filosofia como ele declara

ldquoSomente a filosofia poderaacute acordar-nos de um sono pesado dedica-te inteiramente

a elardquo E ele ainda complementa esta convicccedilatildeo ldquoPara repelir todas as violecircncias do

acaso a filosofia possui um incriacutevel poderrdquo (Ep 53 812)

A noccedilatildeo de separaccedilatildeo entre corpo e alma eacute identificada nas epiacutestolas de Paulo de

acordo com a base do discurso constituinte religioso ldquoMas temos confianccedila e

desejamos antes deixar este corpo para habitar com o Senhorrdquo (2Cor 58) Na

percepccedilatildeo de Paulo natildeo haacute duacutevida quanto ao destino da alma redimida pois a

expressatildeo habitar com o Senhor indica o ceacuteu como essa morada A ideia de

habitaccedilatildeo da alma depois da separaccedilatildeo do corpo eacute colocada na obra de Platatildeo A

Repuacuteblica369 como desenvolvimento da noccedilatildeo de julgamento entre justos e injustos

369

Platatildeo relata a histoacuteria de um homem que morreu em um combate e depois de dez dias seu corpo foi encontrado sem se decompor Quando foram colocaacute-lo na pira ele se levantou e narrou que havia morrido e presenciado a seguinte cena [] ldquoalguns juiacutezes que depois de enunciarem a sentenccedila mandavam os justos subirem pelo caminho da direita rumo ao ceacuteu depois de fixar-lhes na frente um

309

Na paraacutebola do rico e Laacutezaro narrada no evangelho de Lucas (16 1-31) o ceacuteu eacute

citado como o paraiso e o hades como lugar do sofrimento

Nos ensinamentos de Paulo o cuidado de si tem um caraacuteter apocaliacuteptico ou seja

preparaccedilatildeo para a volta de Cristo que pressupotildee a ressurreiccedilatildeo Eacute nesse contexto

que na construccedilatildeo das epiacutestolas satildeo identificados dois pilares de sustentaccedilatildeo amor

e ressurreiccedilatildeo Esses dois temas tecircm pontos de interligaccedilatildeo pois ao falar de

ressurreiccedilatildeo toca-se nos significados do amor de Deus que fornece o canal de

acesso agrave salvaccedilatildeo e seus efeitos no acontecimento da ressurreiccedilatildeo Decerto a

compreensatildeo do conceito de tempo interfere no entendimento do significado da

ressurreiccedilatildeo resultando na abordagem do tempo linear e visatildeo escatoloacutegica370 no

campo religioso Entre os proacuteprios participantes da igreja de Corinto existiam

duacutevidas sobre a ressurreiccedilatildeo entatildeo Paulo introduz o assunto fazendo um relato de

todos os acontecimentos da ressurreiccedilatildeo de Cristo mencionando as testemunhas

que o encontraram e por fim daacute seu proacuteprio exemplo ldquoe por derradeiro de todos

apareceu tambeacutem a mim como a um abortivordquo (1Cor 158) Paulo continua sua

defesa e argumentos sobre a ressurreiccedilatildeo com o recurso da pergunta retoacuterica e

formulaccedilatildeo entimemaacutetica da questatildeo

Ora se prega que Cristo foi ressuscitado dentre os mortos como dizem alguns entre voacutes que natildeo haacute ressurreiccedilatildeo de mortos Mas se natildeo haacute ressurreiccedilatildeo de mortos tambeacutem Cristo natildeo foi ressuscitado E se Cristo natildeo foi ressuscitado logo eacute vatilde a nossa pregaccedilatildeo e tambeacutem eacute vatilde a vossa feacute (1Cor 1512-14)

O exemplo da ressurreiccedilatildeo de Cristo eacute a representaccedilatildeo figurativa para o

entendimento da ressurreiccedilatildeo dos mortos Paulo continua argumentando sobre o

assunto relevante para o entendimento daquela comunidade ou seja a separaccedilatildeo

corpo e alma Ele usa a metaacutefora da semente para ilustrar a ideia de que a semente

precisa morrer para depois nascer e brotar Com o recurso dessa imagem Paulo

escrito com o teor da sentenccedila e os injustos pelo caminho da esquerda ladeira abaixo os quais tambeacutem levavam nas costas o relato de quanto haviam praticadordquo (A Rep X 614c) 370 Conforme exposiccedilatildeo de Le Goff (1990 p 344) ldquosatildeo de notar duas caracteriacutesticas ndash uma teoacuterica outra histoacuterica ndash da escatologia do antigo Judaiacutesmo A primeira eacute ruptura com o tempo ciacuteclico e exprime-se como crenccedila num tempo final De um modo diferente das religiotildees que a rodeiam apoiadas apenas em mitos e em ritos o judaiacutesmo daacute um certo sentido ao tempo e agrave histoacuteria que Deus conduz para um fim O judaiacutesmo eacute a religiatildeo da espera e da esperanccedila isto eacute da proacutepria essecircncia da escatologia No cristianismo a ressurreiccedilatildeo de Cristo eacute o sinal do domiacutenio de Jesus sobre o tempo do fim a antecipaccedilatildeo da ressurreiccedilatildeo futura dos homens e a instauraccedilatildeo definitiva do reino de Deus Este reino estaacute aberto a todos Deixa de existir privileacutegio para Israel A partir daqui escatologia judaica e cristatilde separam-se O judaiacutesmo espera sempre o Messias e a realizaccedilatildeo da promessa O cristianismo defende que com Jesus a escatologia entrou na histoacuteria e comeccedilou a realizar-serdquo

310

explica que eacute necessaacuterio morrer para perder o corpo material e adquirir o corpo

espiritual pela ressurreiccedilatildeo ldquoE assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestialrdquo (1Cor 1549) Essa ideia pressupotildee a

manutenccedilatildeo da identidade de cada um em oposiccedilatildeo agraves ideias dos pitagoacutericos371

que defendiam a teoria da vida ciacuteclica pelo meio da reencarnaccedilatildeo372

Na segunda epiacutestola aos Coriacutentios Paulo aborda novamente o tema sobre a morte

ldquoPorque sabemos que se a nossa casa terrestre deste tabernaacuteculo se desfizer

temos de Deus um edifiacutecio uma casa natildeo feita por matildeos eterna nos ceacuteus (2Cor

51) Paulo comeccedila usando o recurso retoacuterico da metaacutefora para voltar ao assunto

sobre corpo e alma ligando corpo com a perenidade e alma com a eternidade

Pois o amor de Cristo nos constrange porque julgamos assim se um morreu por todos logo todos morreram e ele morreu por todos para que os que vivem natildeo vivam mais para si mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou (2 Cor 51415)

Paulo interliga o amor de Cristo agrave sua morte e ressurreiccedilatildeo e se expressa atraveacutes de

um raciociacutenio entimemaacutetico para argumentar que a humanidade estaacute fadada agrave

morte mas se Cristo ressuscitou logo a morte foi vencida

Secircneca tambeacutem concebe a morte como um inimigo ameaccedilador e reconhece que ldquoa

vida nos foi dada com a morte como termo para o qual caminhamos (Ep 30 10 17)

Assim pode notar-se que em Paulo o tratamento do tema sobre a morte se

diferencia do de Secircneca com base exatamente no tema sobre o amor Paulo

postula que atraveacutes da demonstraccedilatildeo do amor de Cristo a humanidade pode ser

liberta da morte eterna

371

Secircneca faz algumas referecircncias a Pitaacutegoras relatando para Luciacutelio certos detalhes ldquo Uma vez que comecei a descrever-te o entusiasmo enorme depois mitigado pela idade com que eu jovem me dediquei agrave filosofia natildeo sentirei vergonha em revelar-te tambeacutem a paixatildeo que Pitaacutegoras despertou em mim [] Pitaacutegoras por seu lado afirmava o parentesco absoluto em todos os seres vivos a ligaccedilatildeo entre todas as almas e a respectiva transmigraccedilatildeo de corpo para corpo A crer o que ele diz nenhuma alma perece nem cessa de agir senatildeo o breve espaccedilo de tempo em que passa de um corpo para outro Ao fim de quanto tempo e atraveacutes de quantas moradas transitoacuterias a alma volta a encarnar num ser humano eacute assunto que deixo em suspenso Para jaacute Pitaacutegoras incutiu nos homens o medo de cometerem um crime um parriciacutedio pois eacute possiacutevel inadvertidamente darmos com a alma de um parente e violar matando-o ou comendo-o o corpo em que de momento se alberga o espiacuterito de nosso familiarrdquo (Ep 108 1719) 372

A respeito dos postulados pitagoacutericos sobre o tempo circular o poeta Borges (2011 p12) observa que a ideia do tempo ciacuteclico foi ldquorefutada por Santo Agostinho em A cidade de Deus Santo Agostinho diz com uma bela metaacutefora que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estoicosrdquo

311

Em Secircneca o tema amor tem algumas aproximaccedilotildees com os ensinamentos

paulinos mas as referecircncias ao tema se limitam agrave ideia de amizade e gratidatildeo entre

os humanos com base na aquisiccedilatildeo da sabedoria

A amizade estabelece entre noacutes uma comunhatildeo total de interesses nem a felicidade nem a adversidade satildeo fenocircmenos individuais vivemos para a comunidade (Ep 482) [] apenas o saacutebio sabe amar e sabe ter amizade Ora manifestar gratidatildeo eacute um componente do amor e da amizade (SEcircNECA Ep 8112)

Embora o tema amor natildeo esteja no primeiro plano do discurso de Secircneca ele faz

algumas referecircncias ao seu valor defendendo que a amizade eacute um instinto natural

(Ep 918) Assim ele cita uma maacutexima para servir de conselho a Luciacutelio ldquoSe que

queres ser amado amardquo Para Secircneca a sabedoria capacita a condiccedilatildeo de amor

Nesse sentido ele afirma ldquoa filosofia ensina-nos a respeitar o divino e amar o

humanordquo (Ep 903) Como pode ser percebido o conceito de deus em Secircneca natildeo

concebe uma relaccedilatildeo pessoal pois ele estaacute presente na natureza mas natildeo dispotildee

de uma forma de relacionamento individual com o homem Secircneca admite que no

acircmbito da filosofia estoica o valor do respeito estaacute vinculado agrave divindade mas o

amor somente se presentifica nas relaccedilotildees humanas Isto se explica pela concepccedilatildeo

da imanecircncia de Deus

Secircneca afirma textualmente ldquoapenas o saacutebio sabe amar apenas o saacutebio sabe ter

amizaderdquo (Ep 8112) Essa premissa eacute resultante de suas confabulaccedilotildees sobre

gratidatildeo e ingratidatildeo ao longo da epiacutestola oitenta e um que ele finaliza construindo

a seguinte maacutexima ldquoNatildeo haacute oacutedio mais violento do que o proveniente de um

benefiacutecio natildeo honradordquo (Ep 8132) Secircneca admite o amor no plano material e o liga

agrave virtude que se alcanccedila pela sabedoria que na epiacutestola de Paulo eacute referida como

sabedoria deste mundo Assim virtude e viacutecio para Secircneca satildeo concebidos no

campo material enquanto Paulo se refere agrave virtude como frutos do espiacuterito e viacutecios

como frutos da carne Nesses termos Segurado e Campos (1991 p XXXIV) em seus

comentaacuterios da traduccedilatildeo alega que eacute inegaacutevel o materialismo dos estoicos por

entenderem que tudo eacute de natureza material inclusive o espiacuterito de acordo com a

teoria dos corpoacutereos e incorpoacutereos

Eacute possiacutevel perceber na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo que os

instrumentos usados como recursos retoacutericos satildeo retirados de um lugar comum

como fornecedor de toacutepicos adequados ao gecircnero epistolar Os exemplos citaccedilotildees

e metaacuteforas satildeo acionados como recursos argumentativos que datildeo sustentaccedilatildeo aos

312

toacutepoi como elementos dos entimemas que formam os conteuacutedos dos discursos por

meio da formaccedilatildeo das ideias que satildeo desenvolvidas O que diferencia a utilizaccedilatildeo

destes eacute o posicionamento que cada enunciador ocupa na construccedilatildeo do discurso

de acordo com seus objetivos e interesses a partir dos discursos constituintes

Conclui-se que estes meios estabelecidos em forma de exemplos citaccedilotildees e

metaacuteforas funcionam como facilitadores da circulaccedilatildeo dos discursos constituintes

na cena enunciativa

Mesmo retirando toacutepicos dos temas sobre o tempo e amor de reservatoacuterios que

contecircm toacutepoi que caracterizam um lugar comum Secircneca e Paulo tratam estes

assuntos explorando facetas distintas em alguns aspectos mas com pontos de

semelhanccedilas entre outros pela heranccedila da influecircncia heleniacutestica

Esse fato pode ser notado no uso do toacutepos ldquoem uma comunhatildeo consiste a amizaderdquo

mencionado por Aristoacuteteles na obra Eacutetica a Nicocircmaco (VIII 1159b) e ele cita o

proveacuterbio ldquoos amigos possuem tudo em comumrdquo A partir desta identificaccedilatildeo pode-

se inferir que ldquoo amor promove a uniatildeordquo como um toacutepos que subjaz ao tema amor

se destaca como lugar comum na cultura heleniacutestica pelas proacuteprias circunstacircncias

da integraccedilatildeo cultural entre diferentes povos ou situaccedilatildeo social Nesse contexto

Paulo declara ldquoPois em um soacute Espiacuterito fomos todos noacutes batizados em um soacute corpo

quer judeus quer gregos quer escravos quer livres e a todos noacutes foi dado beber de

um soacute Espiacuteritordquo (1Cor 1213) Paulo usa a metaacutefora da imagem do corpo e seus

membros em suas diversas funccedilotildees sendo cada parte importante para a unidade do

corpo ldquoPorque tambeacutem o corpo natildeo eacute um membro mas muitosrdquo (1Cor 1214) O

amor exerce a funccedilatildeo de ligar metaforicamente as partes do corpo para que haja

uniatildeo Este eacute um princiacutepio que norteia o toacutepos ldquoo amor promove a uniatildeordquo pois o ser

humano eacute por natureza social e tem necessidade de viver em grupo Por esta razatildeo

Secircneca afirma ldquoNatildeo eacute mesmo possiacutevel algueacutem viver feliz se apenas preocupar

consigo se reduzir tudo agraves suas proacuteprias conveniecircncias tem de viver para os outros

quem quiser viver para si mesmordquo (Ep 482) Como visto o toacutepos identificado em

Aristoacuteteles ldquoem uma comunhatildeo consiste a amizaderdquo eacute recorrente nas geraccedilotildees

posteriores mesmo tendo aplicaccedilotildees distintas a cada situaccedilatildeo em que se envolve o

tema amor

Um ponto comum que pode ser observado na escrita de Secircneca e Paulo eacute a visiacutevel

ameaccedila e exposiccedilatildeo agrave morte Nesse aspecto parresiacutea em Secircneca e Paulo significa

313

tambeacutem a coragem de enfrentar o final da vida pois a origem da ameaccedila de morte

aos dois poderia estar fundada em um lugar comum ou seja no poder imperial

Veyne (1995 p 181) pondera que a morte de Secircneca natildeo foi uma imitaccedilatildeo da de

Soacutecrates que morreu agradecendo a Esculaacutepio por livrar sua alma do corpo Secircneca

se inspirou no estoicismo agradecendo ao deus estoico por ter lhe dado meios

intelectuais de morrer voluntariamente Como relata Veyne Nero ordenou ao oficial

a retornar ao local onde estava Secircneca para indicar-lhe que deveria matar-se

Secircneca jaacute havia manifestado na epiacutestola setenta a opccedilatildeo do suiciacutedio como

significado de liberdade ldquoNenhuma meditaccedilatildeo eacute tatildeo imprescindiacutevel como a

meditaccedilatildeo da morterdquo (Ep 70 18) Secircneca se fortalece com o exemplo de Catatildeo

lembrando como voluntariamente ele optou pela morte ldquoCatatildeo arranjou-se de modo

a que a ningueacutem coubesse o direito de mataacute-lo ou a possibilidade de salvaacute-lordquo (Ep

246) Em um mesmo contexto histoacuterico de ameaccedilas poliacuteticas e religiosas Paulo se

mostra corajoso diante da morte ldquoE assim noacutes que vivemos estamos sempre

entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste

tambeacutem na nossa carne mortalrdquo (2 Cor 411)

De acordo com o discurso constituinte que rege a enunciaccedilatildeo das epiacutestolas de

Secircneca e Paulo o discurso filosoacutefico daacute sustentaccedilatildeo ao ethos de Secircneca como guia

para o corajoso enfrentamento das circuntacircncias tanto no embate da vida quanto no

da morte Em Paulo o discurso constituinte religioso quebra a oposiccedilatildeo vida e morte

que se unificam por uma razatildeo especiacutefica ldquopor amor de Jesusrdquo

Conclui-se entatildeo que entre a escrita das epiacutestolas de Secircneca e as de Paulo satildeo

observados elementos que funcionam ora como aproximaccedilatildeo entre suas posiccedilotildees

discursivas e ora como afastamento destas Tais posicionamentos satildeo evindeciados

pela conduccedilatildeo do discurso constituinte filosoacutefico nas epiacutestolas de Secircneca e o

discurso constituinte religioso nas epiacutestolas de Paulo

314

REFEREcircNCIAS

Documentaccedilatildeo primaacuteria AGOSTINHO A Trindade Trad Frei Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 1994 AGOSTINHO A cidade de Deus Vol I Trad J Dias Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1996 AGOSTINHO Confissotildees Livros VII X e XI Trad Arnaldo do Espiacuterito Santo Joatildeo Beato e Maria Cristina de Sousa Pimentel Covilhatilde Lusosofia 2001 AGOSTINHO Comentaacuterio ao Gecircnesis Trad Frei Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 2005 ANCHIETA Joseacute Cartas correspondecircncia ativa e passiva Traduccedilatildeo e notas de Pe Heacutelio Abranches Viotti Satildeo Paulo Loyola 1984 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Marcelo Silvano Madeira Satildeo Paulo Rideel 2007 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2005 ARISTOacuteTELES Toacutepicos Trad J A Segurado e Campos Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2007 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Trad Eudouro de Souza Satildeo Paulo Nova Cultural 2011 ARISTOacuteTELES Fragmentos dos diaacutelogos e obras exortativas Trad e textos Introdutoacuterios de Antonio de Castro Caeiro Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 2014 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Trad Luciano Ferreira de Souza Satildeo Paulo Martin Claret 2015 BIacuteBLIA Portuguecircs Biacuteblia de estudos palavras chave Almeida revista e corrigida 4 ed Rio de Janeiro Sociedade Biacuteblica do Brasil 2009 BIacuteBLIA Portuguecircs Biacuteblia de Jerusaleacutem Nova ediccedilatildeo revista e ampliada Satildeo Paulo Paulus 2012 BIacuteBLIA Portuguecircs Biacuteblia hebraica Trad David Gorodovits e Jairo Fridlin Satildeo Paulo Secircfer 2008 BIacuteBLIA Portuguecircs Biacuteblia sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Ediccedilatildeo revista e corrigida Imprensa Biacuteblica Brasileira 2006

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BIacuteBLIA Portuguecircs Biacuteblia sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Ediccedilatildeo Almeida Corrigida e Revisada Fiel Sociedade Biacuteblica Trinitariana do Brasil ndash SBTB 4ed 2011 BIacuteBLIA Sete versotildees para o portuguecircs nove versotildees para o inglecircs textus receptus grego koineacute do Novo Testamento e nova Vulgata Biacuteblia online Disponiacutevel em Ihttpswwwbibliaonlinecombr CAIO JUacuteLIO VIacuteTOR Ars rethorica Trad Thaiacutes Moegato Martins In MARTINS Thaiacutes Morgato 2010 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Claacutessicas) Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas do Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP Satildeo Paulo 2010 CIacuteCERO De Oratore Book I II Translation by E W SUTTON Massachusetts Harvard University 1967 CICEROacuteN Marco Tulio Toacutepicos Introd Y notas de Bulmaro Reyes Coria Mexico UNAM 2006 CIacuteCERO A velhice saudaacutevel Trad Luiz Feracine Satildeo Paulo Escala 2006 CIacuteCERO Toacutepicos a Cayo Trebacio Disponiacutevel em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextobk000428pdf Consulta em 10 de janeiro de 2015 [CICERO] Retoacuterica a Herecircnio Traduccedilatildeo e introduccedilatildeo Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra Satildeo Paulo Hedra 2005 DEMOacuteSTENES Filiacutepicas I e II Trad Elisabete Caccedilatildeo dos Santos Coimbra FLUC 2002 DEMEacuteTRIO DE FALEROS Demetrius on style Introdution and translation by William Rhys Roberts London Cambridge University Press 1902 DEMEacuteTRIO DE FALEROS Sobre o Estilo de Demeacutetrio Introduccedilatildeo e traduccedilatildeo de Gustavo Arauacutejo de Freitas In FREITAS Gustavo A Dissertaccedilatildeo (Mestre em Estudos Literaacuterios) Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte 2011 DIOacuteGENES LAEacuteRCIO Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres Trad Maacuterio Gama Cury Brasiacutelia UNB 2008 EUSEacuteBIO DE CESAREIA Histoacuteria eclesiaacutestica Trad Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002 FLAacuteVIO JOSEFO Histoacuteria dos Hebreus Trad Vicente Pedroso Rio de Janeiro CPAD 2004

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