Upload
others
View
0
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIacuteRITO SANTO
CENTRO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS
O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE
TOacutePOI E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS
EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO
VITOacuteRIA
2017
ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS
O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE TOacutePOI E
ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA
E PAULO
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espiacuterito Santo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Orientadora Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite
VITOacuteRIA
2017
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo-na-publicaccedilatildeo (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espiacuterito Santo ES Brasil)
Santos Zilda Andrade Lourenccedilo dos 1947- S237d O discurso constituinte como determinante no uso de toacutepoi e argumentos retoacutericos na construccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Zilda Andrade Lourenccedilo dos Santos ndash 2017 335 f Orientador Leni Ribeiro Leite Tese (Doutorado em Letras) ndash Universidade Federal do Espiacuterito Santo Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais 1 Secircneca 2 Paulo Apoacutestolo Santo 3 Epiacutestola latina 4 Anaacutelise do discurso literaacuterio 5 Literatura antiga 6 Histoacuteria antiga I Leite Leni Ribeiro 1979- II Universidade Federal do Espiacuterito Santo Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais III Tiacutetulo
CDU 82
ZILDA ANDRADE LOURENCcedilO DOS SANTOS
O DISCURSO CONSTITUINTE COMO DETERMINANTE NO USO DE TOacutePOI E
ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NA CONSTRUCcedilAtildeO DAS EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E
PAULO
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espiacuterito Santo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Letras Orientadora Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite
COMISSAtildeO EXAMINADORA
______________________________________ Profordf Drordf Leni Ribeiro Leite Universidade Federal do Espiacuterito Santo Orientadora
______________________________________ Prof Dr Gilvan Ventura da Silva Universidade Federal do Espiacuterito Santo
______________________________________ Profordf Drordf Juacutelia Maria Costa de Almeida Universidade Federal do Espiacuterito Santo
______________________________________ Prof Dr Deacutecio Orlando Soares da Rocha Universidade Estadual do Rio de Janeiro
______________________________________ Prof Dr Faacutebio da Silva Fortes Universidade Federal de Juiz de Fora
______________________________________ Prof Dr Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho Universidade Federal do Espiacuterito Santo ______________________________________ Profordf Drordf Isabella Tardin Cardoso Universidade Estadual de Campinas
In memoriam
Aos meus pais
Que partiram cedo e natildeo chegaram agrave uacuteltima estaccedilatildeo da vida mas deixaram como legado uma bagagem de valores
insubstituiacuteveis
Pr Oliveira de Arauacutejo
Viveu lutou e partiu haacute trecircs meses Ensinou uma grande liccedilatildeo
Vale a pena sonhar
AGRADECIMENTOS
Gratidatildeo a Deus pela renovaccedilatildeo diaacuteria da capacidade fiacutesica mental e emocional
como condiccedilotildees baacutesicas para a produccedilatildeo deste trabalho Em momentos de fraqueza
e desacircnimo um texto biacuteblico muito inspirador e reconfortante funcionou como uma
forccedila de recarga do acircnimo e coragem ldquoNatildeo temas porque eu sou contigo natildeo te
assombres porque eu sou teu Deus eu te fortaleccedilo e te ajudo e te sustento com a
destra da minha justiccedilardquo (Isaias 4110) Agrave Capes pela ajuda financeira que me
permitiu a realizaccedilatildeo das viagens natildeo somente atraveacutes dos textos mas a
oportunidade de visitar lugares historicamente marcados pela Antiguidade claacutessica
e tambeacutem a participaccedilatildeo no congresso internacional na Faculdade de Letras do
Porto Agrave coordenaccedilatildeo e funcionaacuterios do PPGL pelos serviccedilos prestados e a atenccedilatildeo
aos alunos do programa Agrave minha orientadora profordf Drordf Leni Ribeiro Leite por
depositar confianccedila nas possibilidades do meu desempenho na academia o
incentivo pontual as leituras cuidadosas e orientaccedilotildees na minha produccedilatildeo textual O
estiacutemulo acadecircmico na promoccedilatildeo e coordenaccedilatildeo dos encontros e debates do grupo
de pesquisa fato que contribuiu para a construccedilatildeo das minhas ideias em partes
cruciais da pesquisa Aos professores Dr Gilvan e Drordf Juacutelia pela excelecircncia na
ministraccedilatildeo das aulas nas quais participei na poacutes-graduaccedilatildeo As valiosas
contribuiccedilotildees em minha qualificaccedilatildeo e as observaccedilotildees pertinentes ajudaram nortear
o meu trabalho Aos professores Dr Deacutecio Rocha e Dr Faacutebio Fortes que
atenciosamente aceitaram o convite para composiccedilatildeo desta banca
Agraves colegas Kaacutetia e Marihaacute pela ministraccedilatildeo das aulas de latim como suporte para
lidar com os textos latinos Ao professor Fernando por compartilhar seus
conhecimentos do grego claacutessico Ao professor Kosmaacutes por abrir as portas do
Centro de Cultura Grega e oferecer a oportunidade de introduccedilatildeo aos estudos do
grego koineacute base indispensaacutevel para identificaccedilatildeo de palavras gregas nos textos
receptus das epiacutestolas do apoacutestolo Paulo Aos colegas do grupo de pesquisa Ana
Camilla Natan Marihaacute Kaacutetia Luiza Alessandro Bruno Iana Fabrizia Mariane
Baacuterbara e Irlan por formarem uma equipe tatildeo coesa e amiga responsaacutevel e alegre
Ao meu esposo Paulo companheiro fiel e dedicado com sua forccedila sustentadora agrave
minha irmatilde parceira atuante na realizaccedilatildeo das viagens em 2013 e 2016 ao mundo
claacutessico aos meus familiares e amigos pela expectativa incentivadora do meu
desempenho neste compromisso acadecircmico assumido
Natildeo chegaraacute aos nossos ouvidos o que os pocircsteres diratildeo de noacutes mas decerto nas suas palavras embora sem o sentirmos continuaremos a ser uma presenccedila Secircneca (Ep 7918) Porque agora vemos por espelho em enigma mas entatildeo veremos face a face agora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecido Paulo (1Cor 132)
RESUMO
Esta pesquisa foi elaborada a partir da construccedilatildeo de um paralelo entre a produccedilatildeo
das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo durante o primeiro seacuteculo de nossa era O
discurso constituinte eacute o elemento determinante na forma de conduccedilatildeo da trajetoacuteria
do gecircnero epistolar Secircneca se direciona pelos caminhos do discurso filosoacutefico
enquanto Paulo respalda seu texto com base no discurso religioso Como ponto de
partida conta-se com o apoio de Foucault em suas investigaccedilotildees sobre a escrita de
si como um ingrediente na receita do cuidado de si na Antiguidade Nota-se que a
epistolografia exerce um papel fundamental naquele momento histoacuterico funcionando
natildeo somente como meio de comunicaccedilatildeo entre remetente e destinataacuterio mas
tambeacutem como uma forma de exposiccedilatildeo da subjetividade que se revela pela
aquisiccedilatildeo dos discursos verdadeiros Estes discursos manifestam-se no modo de
agir do indiviacuteduo determinando a posiccedilatildeo discursiva ocupada pelo ethos na
enunciaccedilatildeo Os pressupostos da anaacutelise do discurso de base enunciativa na
abordagem de Maingueneau e outros pesquisadores nessa mesma linha fornecem
suporte teoacuterico para as anaacutelises Na cena geneacuterica da enunciaccedilatildeo ocorre a
construccedilatildeo do gecircnero do discurso e este requer uma cenografia discursiva que o
direciona no ato enunciativo revelando o ethos do enunciador responsaacutevel pelo
discurso A epiacutestola como gecircnero na escrita de Secircneca e Paulo fornece espaccedilo
para que cada um desenvolva suas argumentaccedilotildees segundo os fundamentos
baacutesicos da retoacuterica antiga A partir dos discursos constituintes filosoacutefico e religioso
estes autores recorrem a determinados toacutepoi lugares comuns e argumentos
retoacutericos que satildeo desenvolvidos na construccedilatildeo de suas epiacutestolas Nas fronteiras dos
discursos filosoacutefico literaacuterio e religioso encontram-se as influecircncias da cultura
heleniacutestica que contribuem para aproximaccedilatildeo destes discursos constituintes
exercendo um efeito de entrecruzamento causando o fenocircmeno do interdiscurso
Assim as posiccedilotildees discursivas de Secircneca e Paulo ora se aproximam ora se
afastam tendo em vista os discursos constituintes que as direcionam
Palavras-chave Secircneca e Paulo discurso constituinte gecircnero epistolar ethos
toacutepoi
ABSTRACT
This research was elaborated from the construction of a parallel between the
production of the epistles of Seneca and Paul during the first century of our era
The constituent discourse is the determining element in the way of conducting the
trajectory of the epistolary genre Seneca is guided by the paths of philosophical
discourse while Paul supports his text based on religious discourse As a starting
point one counts on the support of Foucault in his investigations on the writing of
itself like an ingredient in the prescription of the care of itself in the Antiquity It is
noted that epistolography plays a fundamental role in that historical moment
functioning not only as a means of communication between the sender and
recipient but a form of exposition of the subjectivity that is revealed by the
acquisition of the true discourses These discourses are manifested in the
individuals way of acting determining the discursive position occupied by the ethos
in the enunciation The assumptions of discourse analysis with an enunciative
basis in Maingueneaus approach and other researchers in this same line provide
theoretical support for the analyzes In the generic scene of the enunciation occurs
the construction of the discourse genre and this requires a discursive scenography
that directs it in the enunciative act revealing the ethos of the enunciator
responsible for the discourse The epistle as genre in the writings of Seneca and
Paul provides space for each one to develop their arguments according to the
basic foundations of ancient rhetoric Starting from the constituent discourses
philosophical and religious these authors resort to certain topoi commonplace and
rhetorical arguments that are developed in the construction of their epistles At the
frontiers of philosophical literary and religious discourses are the influences of
Hellenistic culture that contributes to the approximation of these constituent
discourses exerting an effect of intercrossing causing the interdiscourse
phenomenon Thus the discursive positions of Seneca and Paul sometimes come
closer together and sometimes departing in view of the constituent discourses that
direct them
Keywords Seneca and Paul constituent discourse epistolary genre ethos topoi
RESUMEN
Esta investigacioacuten fue elaborada a partir de la construccioacuten de un paralelo entre la
producioacuten de las epiacutestolas de Seacuteneca y Pablo durante el primer siglo de nuestra
era El discurso constituyente es el elemento determinante en el modo de la
conduccioacuten de la trayectoria del geacutenero epistolar Seacuteneca se vuelve a los caminos
del discurso filosoacutefico mientras Pablo sigue con su texto basado en el discurso
religioso Como punto de partida se cuenta con el apoyo de Foucault en sus
investigaciones sobre la escrita de si como ingrediente en el cuidado de siacute en la
Antiguumledad Se observa que la epistolografiacutea desempentildea un papel clave en ese
momento histoacuterico actuando no soacutelo como un medio de comunicacioacuten entre el
remitente y el receptor pero tambieacuten una forma de exposicioacuten de la subjetividad que
se revela por la aquisicioacuten de los discursos verdadeiros Estos se manifiestan en los
actos individuales determinando la posicioacuten discursiva ocupada por el ethos en la
enunciacioacuten Los supuestos del anaacutelisis del discurso de la base enunciaciativa en el
enfoque de Maingueneau y otros investigadores en esta misma linea de ideas
proporcionan soporte teoacuterico para el anaacutelisis En la escena de la enunciacioacuten ocurre
la construccioacuten del geacutenero del discurso y esto requiere una cenografia discursiva
que lo direciona en el acto enunciativo revelando el ethos del enunciador
responsable por el discurso La epiacutestola como geacutenero en la escritura de Seacuteneca y
Pablo proporciona espacio para cada uno exponer sus argumentos seguacuten los
fundamentos baacutesicos de la retoacuterica antigua A partir de los discursos constituyentes
filosoacutefico y religioso estos autores recurren a determinados toacutepoi lugares comunes
y argumentos retoacutericos que se desarrollan en la construccioacuten de sus epiacutestolas En
las fronteras de los discursos filosoacutefico literaacuterio y religioso estaacuten presentes las
influeacutencias de la cultura heleniacutestica que contribuyen para la aproximacoacuten de los
discursos constituyentes ejerciendo un efecto de entrecrusiamento entre los
discursos causando el fenoacutemeno del interdiscurso Asiacute las posiciones discursivas
de Seacuteneca y Pablo ora se aproximan ora se apartan en vista de los discursos
constituyentes que las dirigen
Palabras-clave Seacuteneca y Pablo discursos constituyentes geacutenero epistolar toacutepoi ethos
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 13
PARTE I
1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE O QUADRO TEOacuteRICO 30
2 CONTRIBUICcedilOtildeES DE FOUCAULT PARA OS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE 35
21 A ESCRITA DE SI 43
22 SUJEITO E AUTORIA 50
3 A RETOacuteRICA NA ANTIGUIDADE 54
31 CONTRIBUICcedilOtildeES DE GREGOS E ROMANOS PARA A RETOacuteRICA 55
32 O TOacutePOS NA RETOacuteRICA E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA 66
33 PARRESIacuteA E RETOacuteRICA 74
4 A ANAacuteLISE DO DISCURSO E SUA RELACcedilAtildeO COM A RETOacuteRICA 82
41 DISCURSOS CONSTITUINTES 83
42 GEcircNERO DO DISCURSO 86
43 CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO 91
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE I 97
PARTE II
1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CENA DA ENUNCIACcedilAtildeO NAS
EPIacuteSTOLAS DE PAULO E DE SEcircNECA 99
2 A EPISTOLOGRAFIA SEU LUGAR NA ANTIGUIDADE E SUA
CONTINUIDADE NA HISTOacuteRIA 102
21 PAULO E SUAS EPIacuteSTOLAS AgraveS IGREJAS 123
22 SEcircNECA E AS EPISTULAE MORALES 129
23 CONJECTURAS SOBRE A TROCA DE CORRESPONDEcircNCIA ENTRE
PAULO E SEcircNECA 134
3 FORMACcedilAtildeO JUDAICO-HELENIacuteSTICA DE PAULO E SEU POSICIONAMENTO
DISCURSIVO NAS EPIacuteSTOLAS 138
31 MANUAL DE INSTRUCcedilOtildeES DE PAULO Agrave IGREJA DE CORINTO 154
32 ETHOS DISCURSIVO DE PAULO DIANTE DE SEUS LEITORES 159
4 FILOSOFIA LITERATURA E POLIacuteTICA NA TRAJETOacuteRIA DE SEcircNECA E A
CONSTITUICcedilAtildeO DA CENOGRAFIA EM SUAS EPIacuteSTOLAS 166
41 CONSTRUCcedilAtildeO DA CENOGRAFIA COMO TRATADO FILOSOacuteFICO NAS
EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA 180
42 ETHOS DE SEcircNECA DE ACORDO COM SUA POSICcedilAtildeO DISCURSIVA 186
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE II 194
PARTE III
1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CONSTITUICcedilAtildeO DO DISCURSO NAS
EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO 198
2 TOacutePOS FILOSOacuteFICOMORAL E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NAS
EPIacuteSTOLAS 209
21 TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL ldquoFALAR FRANCOrdquo 210
211 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 213
212 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto 216
22 O EXEMPLO COMO RECURSO RETOacuteRICO 220
221 Exemplos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 221
222 Exemplos nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto 230
23 CITACcedilOtildeES E ENTRECRUZAMENTO DE DISCURSOS CONSTITUINTES 238
231 Citaccedilotildees de maacuteximas e versos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 240
232 Citaccedilotildees de Paulo nas epiacutestolas aos Coriacutentios 248
24 USO DE METAacuteFORAS RETIRADAS DE UM LUGAR COMUM 257
241 A imagem do atleta em diferentes epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio 262
242 A metaacutefora do atleta na primeira epiacutestola aos Coriacutentios 265
3 O TEMPO NAS CONCEPCcedilOtildeES FILOSOacuteFICAS DE SEcircNECA 269
31 O VALOR DO TEMPO 271
32 O TEMPO Eacute CIRCULAR 275
33 FLUIDEZ DO TEMPO 279
4 O TEMA O AMOR NAS EPIacuteSTOLAS DE PAULO 283
41 A ORIGEM DO AMOR 284
42 O AMOR PROMOVE A UNIAtildeO 288
43 A GRANDEZA DO AMOR 295
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE III 302
CONCLUSAtildeO 305
REFEREcircNCIAS 314
13
INTRODUCcedilAtildeO Pois assim que o nosso pensamento encontra as palavras ele jaacute natildeo eacute interno nem estaacute realmente no acircmago da sua essecircncia Quando comeccedila existir para os outros ele deixa de viver em noacutes como o filho que se desliga da matildee ao iniciar a proacutepria existecircncia
Arthur Schopenhauer (2005 p14)
Esta pesquisa visa atender os interesses dos estudos da Antiguidade claacutessica
colocando em cena dois personagens de relevacircncia na histoacuteria do impeacuterio romano
Por um lado Secircneca eacute representativo no campo da filosofia poliacutetica e literatura no
contexto do Principado na vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era Por outro lado
no mesmo periacuteodo destaca-se a figura de Paulo no campo da religiatildeo judaico-cristatilde
fortalecendo os primoacuterdios do cristianismo atraveacutes de sua missatildeo evangelizadora e
iniciativa de orientaccedilatildeo agraves igrejas por ele formadas por meio do recurso do gecircnero
epistolar Em especial o ponto comum entre esses dois autores eacute o uso do gecircnero
epistolograacutefico o que tambeacutem contribui para a hipoacutetese de contato entre eles
Ebbeler (2001 p1) informa que na obra de Jerocircnimo De Viris Illustribus (392 dC) eacute
mencionada a suposta correspondecircncia entre Seneca o filosoacutefo estoico e o
apoacutestolo Paulordquo A tentativa de aproximaccedilatildeo entre Secircneca e Paulo tambeacutem levanta
questotildees sobre a relaccedilatildeo entre estoicismo e cristianismo Para Candiotto (2012 p
106-108) uma das contribuiccedilotildees dos estudos de Foucault com foco na Antiguidade
eacute estabelecer de forma indireta oposiccedilotildees entre a praacutetica do cuidado de si entre
estoicos e cristatildeos Pode-se dizer indireta porque Foucault aponta diferenccedilas entre
os estoicos dos dois primeiros seacuteculos dC e o cristianismo institucionalizado que
naquele momento histoacuterico ainda natildeo havia se estabelecido se comparado agrave
antiguidade institucional do estoicismo
A primeira indagaccedilatildeo que se instaura inicialmente eacute que relevacircncia esta pesquisa
pode oferecer para os estudos acadecircmicos Necessariamente uma pesquisa
comparativa coloca em evidecircncia um paralelo entre pontos de vista diferenciados
Por essa razatildeo este trabalho estaacute investido na busca de observar como os
discursos filosoacutefico e literaacuterio funcionam como direcionamento na produccedilatildeo das
epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e a determinaccedilatildeo do discurso religioso na conduccedilatildeo
14
da produccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo dirigidas agrave igreja de Corinto Assim ao situar as
produccedilotildees de Secircneca no campo da literatura e filosofia as investigaccedilotildees contribuem
para as reflexotildees e descobertas tanto na aacuterea da literatura quanto na aacuterea da
filosofia nos estudos claacutessicos Quanto agraves produccedilotildees de Paulo no campo religioso
e literaacuterio as contribuiccedilotildees desta pesquisa visam atender os interesses das
investigaccedilotildees histoacutericas no campo da religiatildeo e os estudos teoloacutegicos e
hermenecircuticos voltados para o Novo Testamento visto ser esta uma literatura de
amplitude popular
Outro marco de relevacircncia neste trabalho eacute o interesse em compreender a escritura
da correspondecircncia na Antiguidade aproveitando as contribuiccedilotildees de Michel
Foucault na uacuteltima fase de suas pesquisas em especial o foco dado por ele ao
estoicismo dos dois primeiros seacuteculos de nossa era Ainda a escolha do quadro
teoacuterico da anaacutelise do discurso francesa de base enunciativa oferece categorias de
anaacutelise1 que podem ser produtivas nos estudos claacutessicos de acordo com postulados
desenvolvidos por Maingueneau
O interesse nesta tese em comparar a escrita das epiacutestolas de Secircneca e a de Paulo
surgiu a partir de um trabalho elaborado como requisito para a conclusatildeo do curso
Literatura e Histoacuteria em 2011 Ao analisar as possibilidades de possiacuteveis inter-
relaccedilotildees entre os discursos de Secircneca e Paulo no contexto histoacuterico do primeiro
seacuteculo de nossa era foram observadas certas manifestaccedilotildees de estrateacutegias
retoacutericas como forma de aproximaccedilatildeo entre posiccedilotildees discursivas entre esses dois
autores Este foi o ponto inicial que possibilitou o interesse na ampliaccedilatildeo dessa
investigaccedilatildeo como resultado das persistentes indagaccedilotildees por que pesquisar o
gecircnero epistolar na escritura de Secircneca e Paulo Que implicaccedilotildees resultam do uso
do gecircnero epistolograacutefico em tipos de discursos distintos como o filosoacutefico e o
1 Discurso constituinte gecircnero do discurso cenografia e ethos satildeo categorias de anaacutelise oferecidas
pela anaacutelise do discurso que atendem aos interesses de anaacutelise desta pesquisa Como registrado no Dicionaacuterio de anaacutelise do discurso Charaudeau e Maingueneau (2008 p 126) informam que a noccedilatildeo de discurso constituinte foi introduzida por Maingueneau e Cossutau (1995) para delimitar um conjunto de discursos que servem de alguma forma como fiadores de outros discursos e que natildeo tendo eles mesmos discursos que os validem devem gerir em sua enunciaccedilatildeo seu estatuto de alguma maneira ldquoauto-fundadordquo A escolha do gecircnero do discurso eacute definida pelo enunciador no direcionamento do modo de conduccedilatildeo do seu discurso Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008 p 96) a cenografia eacute imposta pelo gecircnero de discurso mas eacute instituiacuteda pelo proacuteprio discurso sendo validada pela proacutepria enunciaccedilatildeo Portanto o discurso se desenvolve a partir da cenografia que se estabelece sem modificar o gecircnero do discurso Na definiccedilatildeo de Amossy (2005 p 127) o ethos eacute compreendido como o conjunto das caracteriacutesticas que se relacionam agrave pessoa do orador e a situaccedilatildeo na qual esses traccedilos se manifestam e permitem construir sua imagem
15
religioso Aleacutem destes questionamentos iniciais no transcorrer da pesquisa outros
pontos de interrogaccedilatildeo foram se apresentando em relaccedilatildeo agrave identificaccedilatildeo do uso da
epistolografia Observou-se a importacircncia de identificar a retoacuterica e seus efeitos na
escritura epistolar situar os argumentos retoacutericos orientados a partir de Aristoacuteteles
entendido como recurso estrateacutegico na argumentaccedilatildeo congregar a noccedilatildeo de toacutepos
sugerida por Aristoacuteteles agrave praacutetica do uso do lugar comum na literatura latina no
sentido amplo da produccedilatildeo do texto escrito
Como hipoacutetese inicial pleiteou-se dar um tratamento indistinto entre o uso dos
termos carta e epiacutestola na Antiguidade Poreacutem ao deparar-se com as discussotildees
sobre a diferenccedila entre carta e epiacutestola em que Deissmann (1927 p 218) eacute ponto
de referecircncia nota-se uma preocupaccedilatildeo em classificar os tipos de correspondecircncia
pelas caracteriacutesticas que as diferenciam por meio de seus conteuacutedos Para
Deissmann a principal distinccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo literaacuteria e natildeo literaacuteria ou seja uma
relaccedilatildeo direta com os objetivos da correspondecircncia em termos de privado e puacuteblico
Entatildeo a noccedilatildeo de literaacuteria estaacute interligada agrave ideia de publicaccedilatildeo enquanto a natildeo
literaacuteria se reveste de um interesse particular entre os parceiros na correspondecircncia
A partir desta abordagem a correspondecircncia literaacuteria eacute designada como epiacutestola e a
natildeo literaacuteria como carta De acordo com esta posiccedilatildeo Paulo teria escrito carta por
ser caracterizada como natildeo literaacuteria e Secircneca teria escrito epiacutestola pelo caraacuteter
literaacuterio com vistas agrave publicaccedilatildeo Prosseguindo nas leituras e diversas comparaccedilotildees
de autores que lideram as abordagens desse tema foi necessaacuteria uma tomada de
posiccedilatildeo Oserva-se que na Antiguidade independente do objetivo da
correspondecircncia o termo de uso corrente era epiacutestola tanto no grego quanto no
latim e o uso dos termos carta ou letter referentes agrave correspondecircncia eacute posterior agrave
Antiguidade Portanto eacute necessaacuterio identificar as distinccedilotildees inerentes ao gecircnero
epistolar e classificar os subgecircneros que se enquadram na epistolografia Assim fica
estabelecido no tratamento desta tese o uso exclusivo do termo epiacutestola2 mediante
a conclusatildeo de que na Antiguidade o vocaacutebulo carta natildeo era considerado sinocircnimo
de epiacutestola no mesmo campo semacircntico
Outra questatildeo polecircmica eacute a concepccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca como tratado ou
ensaio e natildeo como gecircnero epistolar como explorado por grupos especializados em
2 Neste trabalho foi definido o uso do vocaacutebulo epiacutestola mas a maioria das traduccedilotildees e comentaacuterios
dos textos antigos usa o termo carta e letter e neste caso nas citaccedilotildees satildeo mantidos os vocaacutebulos estabelecidos pelos tradutores
16
estudos sobre ensaios Uma das contribuiccedilotildees favoraacuteveis agrave tomada de posiccedilatildeo
quanto ao gecircnero da correspondecircncia de Secircneca se deve agrave anaacutelise das epiacutestolas
pelo vieacutes da anaacutelise do discurso de base enunciativa Na enunciaccedilatildeo da primeira
epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio como abertura da coleccedilatildeo de epiacutestolas a constituiccedilatildeo
da cenografia se instaura como tratado filosoacutefico mas o gecircnero de discurso eacute
identificado em suas caracteriacutesticas como gecircnero epistolograacutefico Wilson (2001
2007) Inwood (2007) e Ebbeler (2001) satildeo pesquisadores voltados para a
Antiguidade concordantes de que Secircneca usa o gecircnero epistolograacutefico para seus
questionamentos filosoacuteficos Portanto estes autores servem de apoio para a decisatildeo
assumida em considerar as epiacutestolas de Secircneca como gecircnero epistolar filosoacutefico e
as de Paulo como gecircnero epistolar de aconselhamento
A concepccedilatildeo de retoacuterica na Antiguidade eacute outra questatildeo a ser tratada visto que
tanto Secircneca quanto Paulo se negam a assumir eloquecircncia e rebuscamento da
linguagem em suas epiacutestolas Como entatildeo situar a concepccedilatildeo de retoacuterica naquele
momento histoacuterico para compreender o posicionamento de Secircneca e de Paulo No
dizer de Alexandre Jr (2005 30) pode-se distinguir uma tendecircncia para a retoacuterica
filosoacutefica e outra para a retoacuterica poeacutetica No periacuteodo Heleniacutestico os estoicos
Cleantes e Crisipo defendiam a retoacuterica como a arte do bem dizer privilegiando o
componente esteacutetico-estiliacutestico Quintiliano (Institutio Oratoacuteria V 10 54) tambeacutem
assume uma posiccedilatildeo semelhante ao referir-se agrave retoacuterica como a arte de falar bem
Diante das divergecircncias de posicionamentos no modo de conceber a atuaccedilatildeo da
retoacuterica Secircneca e Paulo tendem a privilegiar a retoacuterica que se aproxima da filosofia
com sua origem em Platatildeo tendo continuidade e redefiniccedilatildeo em Aristoacuteteles e sendo
redimensionada em alguns de seus aspectos a partir do periacuteodo Heleniacutestico Com
base nessas consideraccedilotildees procura-se observar a retoacuterica como desenvolvida
pelos gregos e romanos como tambeacutem os sentidos que advecircm do uso de toacutepoi3 na
Antiguidade Tais preceitos satildeo evidenciados na cultura greco-romana e
reelaborados por Ciacutecero no contexto da filosofia e literatura latina sendo tambeacutem
identificados nas concepccedilotildees e produccedilotildees de Quintiliano na vigecircncia do primeiro
seacuteculo dC
3 Na obra Retoacuterica de Aristoacuteteles toacutepoi eacute um termo grego com a ideia de lugares que funcionam
como arquivos de onde satildeo retirados os toacutepicos como recursos retoacutericos na argumentaccedilatildeo
17
A partir do propoacutesito de comparaccedilatildeo entre os dois autores aqui em foco esta
pesquisa se empenha em observar analisar e comparar as epiacutestolas de Secircneca a
Luciacutelio com as de Paulo aos Coriacutentios procurando identificar os lugares comuns que
os aproximam e o posicionamento singular que cada um assume em seu discurso
de acordo com os discursos constituintes que os direcionam como tambeacutem os
efeitos da retoacuterica em suas produccedilotildees Essa comparaccedilatildeo se justifica por algumas
razotildees pertinentes aos interesses para os quais se voltam este trabalho Secircneca e
Paulo viveram e produziram seus discursos no transcorrer do primeiro seacuteculo dC
tendo como referecircncias as bases da retoacuterica em evidecircncia naquele periacuteodo mesmo
sem assumir a totalidade de suas implicaccedilotildees Observa-se que Secircneca e Paulo
apresentam maior disposiccedilatildeo em optar pela retoacuterica filosoacutefica em detrimento da
retoacuterica poeacutetica Kennedy (1994 p 173) analisa algumas epiacutestolas4 de Secircneca e
nota que ele natildeo pretende recorrer aos recursos da retoacuterica para transmissatildeo de
seus preceitos filosoacuteficos da mesma forma que estes eram aplicados agrave oratoacuteria
As argumentaccedilotildees de Secircneca sobre a transmissatildeo dos ensinamentos da filosofia
contribuem para certa distinccedilatildeo entre o tipo de retoacuterica adequado agrave aplicaccedilatildeo no
exerciacutecio da oratoacuteria e o tipo de retoacuterica ideal para compartilhar os preceitos
filosoacuteficos O papel da retoacuterica na oratoacuteria tem certas peculiaridades que evidenciam
diferenccedilas de sua funccedilatildeo e uso na escrita do gecircnero epistolar do qual Secircneca e
Paulo lanccedilam matildeo para elaborar suas ideias por meio da correspondecircncia A esse
respeito Segurado e Campos5 (1991 p XVII) comenta sobre o posicionamento de
Secircneca quanto ao uso dos recursos da retoacuterica mostrando que seu texto apresenta
certa ausecircncia do rigor da tradiccedilatildeo retoacuterica fato que provoca a criacutetica de Quintialiano
(Inst Or X 1130) ao seu estilo de escritor
Foucault (2010a 2010b) compreende a despreocupaccedilatildeo de Secircneca com o rigor
retoacuterico tradicional na produccedilatildeo de suas epiacutestolas por voltar-se para questotildees
sobre a parresia o falar franco e sincero Este ponto eacute comum entre Secircneca e
Paulo pelo proacuteprio caraacuteter do uso do gecircnero epistolar Tal fato eacute apontado por
Muhana (2000 p 341) pois a epiacutestola requer veracidade e sinceridade na
4 Na epiacutestola 404 Secircneca diz ldquoos filosoacutefos devem transmitir preceitos aos disciacutepulosrdquo Nesta mesma
epiacutestola Secircneca acrescenta ldquoo estilo filosoacutefico deve ter forccedila mas sem perder a moderaccedilatildeordquo (Ep 408) 5 Joseacute Antocircnio Segurado e Campos eacute o tradutor para o portuguecircs do texto latino Annae Senecae ad
Lucilium epistulae morales segundo o texto da Oxford University Press 1965 intitulado em portuguecircs de Portugal Cartas a Luciacutelio Luacutecio Aneu Seacuteneca
18
revelaccedilatildeo da primeira pessoa do remetente no discurso epistolar o que natildeo
aconteceria por exemplo em uma obra exclusivamente filosoacutefica
Secircneca produziu textos optando por diferentes gecircneros como trageacutedia saacutetira e
tratado e a epistolografia representa sua escolha de fechamento de suas
produccedilotildees Ele foi favorecido pelo gecircnero epistolar nos objetivos de sua escrita
filosoacutefica pela liberdade de expressatildeo e organizaccedilatildeo do discurso que este gecircnero
possibilita A produccedilatildeo da escrita de Secircneca6 na obra L Annaei Seneccae ad
Lucilium Epistulae Morales forma um conjunto de cento e vinte quatro epiacutestolas
distribuiacutedas em vinte livros caracterizando a organizaccedilatildeo das epiacutestolas como
coleccedilatildeo
Quanto agraves hipoacuteteses de um destinataacuterio fictiacutecio nessa correspondecircncia Paul Veyne
(1995 p 253) defende que a figura de Luciacutelio natildeo eacute simplesmente representativa ou
ficcional visto que a seacuterie de epiacutestolas aponta situaccedilotildees reais de encontros viagens
e a proacutepria adesatildeo de Luciacutelio em atendimento aos conselhos de Secircneca7 Paul
Veyne (1995 p 255) pondera que as epiacutestolas dirigidas a Luciacutelio natildeo satildeo de caraacuteter
privado visto que Secircneca declara sua intenccedilatildeo de publicaccedilatildeo8 Secircneca assumiu sua
correspondecircncia com Luciacutelio natildeo exclusivamente pelas necessidades deste mas
as de seus leitores incluiacutedos como destinataacuterios
Os textos da produccedilatildeo de Paulo satildeo referentes essencialmente agraves sete epiacutestolas9
do Novo Testamento reconhecidas como de sua autoria Young (2004 p 10) atribui
importacircncia agraves contribuiccedilotildees de Foucault em suas formulaccedilotildees de questotildees sobre
as funccedilotildees do autor fato este que interfere nas discussotildees relacionadas ao
processo de formaccedilatildeo do cacircnon neotestamentaacuterio Segundo Young (2004 p 10) as
teorias criacuteticas da poacutes-modernidade com sua ecircnfase na morte do autor procuram
enfocar a natureza dos textos originaacuterios de comunidades do cristianismo primitivo
6 As epiacutestolas de Secircneca que formam o corpus de anaacutelise foram selecionadas de acordo com a
identificaccedilatildeo da cenografia e o tema recorrente na enunciaccedilatildeo o uso do toacutepos falar franco e dos argumentos retoacutericos como exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas 7 Veyne (1995 p253-254) aponta que em epiacutestolas anteriores Secircneca aconselhou Luciacutelio a retirar-se
da vida puacuteblica Tempos depois Secircneca escreve ldquoEstou de acordo com a tua decisatildeo abriga-te no teu oacutecio mas coloca o teu oacutecio ao abrigo dos deusesrdquo (Ep 681) O oacutecio refere-se ao retiro das atividades puacuteblicas a aposentadoria e para Secircneca essa era uma oportunidade para dedicaccedilatildeo agrave filosofia 8 ldquoO mesmo que Epicuro prometeu ao seu amigo eu to prometo a ti Luciacutelio a posteridade haacute de
recordar-se de mim hei de fazer com que alguns nomes perdurem por estarem ligados ao meurdquo (Ep 215) 9 As epiacutestolas consideradas pseudo-paulinas satildeo Efeacutesios Colossenses 2 Tessalonicenses e as
pastorais Tito e 1 e 2 Timoacuteteo
19
sem identificaccedilatildeo de autoria e que buscam credibilidade no nome do apoacutestolo
Paulo Esse fenocircmeno resulta no surgimento das pseudos epiacutestolas paulinas e
outros textos apoacutecrifos do mesmo periacuteodo Diante dessa posiccedilatildeo Young pondera
que reflexotildees sobre essa concepccedilatildeo atual de sujeitoautor como tratada nas
formulaccedilotildees de Foucault influenciaram a tomada de posiccedilatildeo que se tornou
determinante para o estabelecimento das questotildees de autoria relativas agraves epiacutestolas
paulinas
Para estabelecer uma comparaccedilatildeo entre a produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e de
Paulo torna-se imprescindiacutevel a identificaccedilatildeo do funcionamento do gecircnero epistolar
da Antiguidade claacutessica ateacute a praacutetica do uso deste gecircnero nos primeiros seacuteculos de
nossa era Fato que ajuda compreender a razatildeo da existecircncia das pseudos epiacutestolas
paulinas A escolha das duas epiacutestolas10 de Paulo dirigidas agrave igreja de Corinto
definidas como corpus principal de anaacutelise se justifica por estas fazerem parte da
composiccedilatildeo do cacircnon paulino de acordo com o consenso da academia Outro fato
relevante para esta escolha eacute a formaccedilatildeo judaico-heleniacutestica de Paulo e sua
identificaccedilatildeo cultural com a comunidade de Corinto tendo a liacutengua grega como meio
de comunicaccedilatildeo Estas questotildees apontadas formam um conjunto que favorece a
aproximaccedilatildeo de Paulo com a cidade de Corinto Outro ponto favoraacutevel em escolher
as epiacutestolas aos Coriacutentios para comparaccedilatildeo com as epiacutestolas de Secircneca eacute a
identificaccedilatildeo do caraacuteter de aconselhamento o uso dos toacutepoi e a ocorrecircncia de
recursos retoacutericos O aconselhamento como toacutepos no protocolo do gecircnero epistolar
eacute uma questatildeo que possibilita certa proximidade com a forma de tratamento tanto
nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio quanto nas de Paulo aos Coriacutentios
A organizaccedilatildeo desta tese requer uma divisatildeo em partes pelo caraacuteter de
comparaccedilatildeo entre dois autores na realizaccedilatildeo da composiccedilatildeo dos textos Assim a
primeira parte estaacute destinada agraves contribuiccedilotildees e formulaccedilotildees teoacutericas que servem de
base para as investigaccedilotildees e anaacutelises Inicialmente conta-se com a colaboraccedilatildeo de
Foucault em suas investigaccedilotildees sobre sujeito e verdade na Antiguidade focalizando
o cuidado de si como constituiccedilatildeo do sujeito A escrita de si eacute um fator que contribui
para o enriquecimento da compreensatildeo sobre o funcionamento do gecircnero epistolar
nos dois primeiros seacuteculos de nossa era Ligadas agrave noccedilatildeo de sujeito algumas
10
As traduccedilotildees das epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios satildeo retiradas da Biacuteblia ediccedilatildeo Almeida Corrigida e revisada fiel
20
questotildees sobre autoria satildeo levantadas por Foucault em uma fase que se pregava a
morte do autor
Com um foco na Antiguidade observa-se a funccedilatildeo da retoacuterica a partir dos gregos
identificando-se a releitura sobre a retoacuterica claacutessica realizada pelos romanos
Aritoacuteteles efetivou a inclusatildeo dos toacutepicos como recursos retoacutericos na argumentaccedilatildeo
e este funcionamento se estabeleceu na retoacuterica romana em alguns de seus
aspectos expandido para aplicaccedilotildees no campo da oratoacuteria e da literatura Segundo
Rezende (2009 p 29) a retoacuterica na Antiguidade se constituiacutea como um programa
abrangente que visava atender agrave oratoacuteria capacitando o cidadatildeo para seu
desempenho na vida puacuteblica por esta razatildeo seu objetivo era contribuir para o bom
desempenho do orador Nessa mesma perspectiva Foucault (2010a p 462-463)
observa que a retoacuterica em Roma voltava-se para a preparaccedilatildeo do cidadatildeo romano e
era defendida como arte que se ensina Segundo Foucault (2010a p 463) ldquoo que
define a retoacuterica para Ciacutecero para Quintiliano eacute essencialmente como sabemos o
assunto tratadordquo Nesse aspecto a retoacuterica como teacutecnica orienta sobre a
pertinecircncia do que deve ser dito e o modo como se deve expressar
Foucault observa que no periacuteodo Heleniacutestico a parresiacutea como falar franco e
honesto entra em concorrecircncia com a retoacuterica tradicional contribuindo para a
aproximaccedilatildeo entre retoacuterica e filosofia Segundo Foucault Filodemo11 tem destaque
nesta contribuiccedilatildeo ao considerar que ldquoo homem saacutebio e filoacutesofo aplica o franco-falar
(a parresiacutea) na medida em que raciocina conjecturando por meio de argumentos
plausiacuteveis e sem rigidezrdquo (FOUCAULT 2010a p 347) A aproximaccedilatildeo entre retoacuterica
filosofia e parresiacutea eacute tambeacutem observada por Foucault (2010a p 137) por meio da
escrita de uma epiacutestola de Pliacutenio12 o Jovem (Ep I1-10) em seu elogio a Eufrates
11
Segundo Foucault (2010a p 347) Filodemo era um filoacutesofo epicurista que se instalara em Roma bem no final da Repuacuteblica e era o conselheiro filosoacutefico o conselheiro privado de Lucius Piso Filodemo foi muito importante quer pelo conteuacutedo significativo de seus escritos quer por ter sido um dos fundadores um dos inspiradores do movimento epicurista do final do seacuteculo I ac - ou logo no comeccedilo do seacuteculo I dC Foucault analisa a influecircncia de Filodemo por meio de fragmentos de sua obra Peri Parresiacutea 12
Pliacutenio elogia o filoacutesofo Estrabatildeo na epiacutestola dirigida Ao amigo Aacutecio Clemente ldquoSe alguma vez nossa cidade floresceu por causa das artes liberais ela agora floresce em seu maacuteximo 2 Haacute muitos e ilustres exemplos apenas um seria suficiente Eufrates o filoacutesofo 5 Ele argumenta tecircnue seacuteria e elegantemente aleacutem disso com frequecircncia aplica aquela sublimidade e grandeza de Platatildeo Seu discurso eacute copioso e variado agradaacutevel principalmente de modo que move e conduz ateacute mesmo os relutantesrdquo (PLIacuteNIO Ep I 125) Traduccedilatildeo de Kaacutetia Regina Giesen ldquoSobre o elogiado sabe-se que era um filoacutesofo estoacuteico natural de Tiro rival de Apolocircnio de Tiana e disciacutepulo de Musocircnio Rufordquo (GIESEN 2016 p 132)
21
filoacutesofo estoico pela forma como este ministrava seus ensinos filosoacuteficos valendo-
se de recursos retoacutericos Outra questatildeo que se extrai da praacutetica da parresiacutea na
Antiguidade eacute o uso do toacutepos ldquofalar francordquo que eacute identificado nas epiacutestolas de
Secircneca e Paulo perceptiacutevel mediante a constituiccedilatildeo da cenografia que se instaura a
partir de partes das epiacutestolas que introduzem o discurso de acordo com o gecircnero
epistolar Foucault (2010a p 344) afirma que ldquoem textos de Secircneca encontramos
particularmente na carta setenta e cinco uma verdadeira teoria do franco-falarrdquo
Alguns postulados da retoacuterica antiga se mantiveram e a anaacutelise do discurso
francesa de base enuncitiva resgatou de Aristoacuteteles (Ret I 2 1356a) as trecircs
provas teacutecnicas do discurso que se efetivam pela accedilatildeo do orador ecircthos reaccedilatildeo do
ouvinte paacutethos e pela realizaccedilatildeo do discurso loacutegos Para Maingueneau (2005
p69-74) a noccedilatildeo oradorauditoacuterio expande-se para a de textoleitor e no texto o
ethos emite uma voz silenciosa atraveacutes do enunciador que alcanccedila o pathos isto eacute
a recepccedilatildeo do co-enunciador Nesta abordagem enunciativa dos discursos
Maingueneau desenvolve alguns postulados teoacutericos que favorecem a identificaccedilatildeo
do discurso a partir de sua proacutepria constituiccedilatildeo Os discursos filosoacutefico religioso
literaacuterio e cientiacutefico apresentam caracteriacutesticas de independecircncia e autossuficiecircncia
pois cada um destes se sustenta sem depender do outro A esse fenocircmeno
Maingueneau (2008 p 38) designou de discursos constituintes Estes datildeo origem e
direccedilatildeo aos gecircneros do discurso que a eles estatildeo ligados Para expansatildeo e
desenvolvimento do gecircnero do discurso eacute acionada a cenografia que conduz a
enunciaccedilatildeo recorrendo agraves cenas validadas na memoacuteria do leitor ou ouvinte A
definiccedilatildeo da cenografia no discurso direciona as escolhas linguiacutesticas no ato
enunciativo e a proacutepria enunciaccedilatildeo valida o papel da cenografia e tambeacutem eacute
validada por ela
A determinaccedilatildeo do quadro de fundamentaccedilatildeo teoacuterica na primeira parte eacute seguida na
segunda parte pelas categorias de anaacutelise fornecidas pelos postulados da anaacutelise
do discurso cenografia e ethos13 tendo como pano de fundo o contexto histoacuterico em
que Secircneca e Paulo se situam no momento da produccedilatildeo de suas epiacutestolas A partir
do gecircnero do discurso epistolar como praticado na Antiguidade algumas questotildees
satildeo levantadas colocando em discussatildeo a concepccedilatildeo baacutesica do uso do termo
13
Os vocaacutebulos ethos pathos e logos referidos na anaacutelise do discurso natildeo satildeo acentuados seguindo a forma da transcriccedilatildeo recorrente na escrita em textos da liacutengua portuguesa
22
epiacutestola em oposiccedilatildeo ao termo carta Na sequecircncia os debates sobre as pseudo
epiacutestolas de Paulo satildeo contemplados de acordo com as vertentes de posiccedilotildees
favoraacuteveis e contraacuterias agrave autoria de Paulo em relaccedilatildeo agraves treze epiacutestolas integrantes
no Novo Testamento O ponto seguinte destaca as opiniotildees que se formulam em
torno das consideraccedilotildees sobre o enquadramento das epiacutestolas de Secircneca no
gecircnero epistolar Ainda focalizando o gecircnero epistolograacutefico na Antiguidade alguns
comentaacuterios satildeo mostrados sobre as conjecturas de suposta troca de
correspondecircncia entre Paulo e Secircneca
Para situar o momento em que Paulo e Secircneca produzem suas epiacutestolas um
panorama histoacuterico contribui para localizaacute-los no tempo e espaccedilo de suas atuaccedilotildees
e os efeitos discursivos na produccedilatildeo de seus discursos Algumas partes de textos
das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio e de Paulo aos Coriacutentios satildeo usadas como forma
de citaccedilatildeo ao longo da primeira e segunda parte desta tese no desenvolvimento e
aplicaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo teoacuterica
Para identificaccedilatildeo da constituiccedilatildeo da cenografia na segunda parte foram
selecionados a primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio e o primeiro capiacutetulo de cada
epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios como corpus de anaacutelise A cenografia constituiacuteda
nas epiacutestolas de Secircneca se apresenta como um tratado filosoacutefico em que o tema ldquoo
tempordquo eacute introduzido e se torna recorrente em toda a coleccedilatildeo das epiacutestolas no
acontecimento da enunciaccedilatildeo A construccedilatildeo da cenografia nas epiacutestolas de Paulo
explora o tema ldquoo amorrdquo que eacute revalidado em toda a cena enunciativa no conjunto
das duas epiacutestolas Ainda na segunda parte eacute colocado em pauta alguns aspectos
da manifestaccedilatildeo do ethos observado na constituiccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e
Paulo
Na continuidade da pesquisa na terceira parte o foco eacute para o terceiro elemento do
meio de prova ou seja o loacutegos entendido como o raciociacutenio desenvolvido e
expressado por meio da linguagem na formaccedilatildeo do discurso No segundo capiacutetulo
procura-se identificar o toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas selecionadas como lugar
comum entre os dois autores Na sequecircncia verifica-se a ocorrecircncia dos mesmos
argumentos retoacutericos tanto nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio quanto em capiacutetulos
das duas epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios servindo como paracircmetro de
comparaccedilatildeo delimitados como exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas Tal proposta
constitui-se como uma ferramenta para uma possiacutevel identificaccedilatildeo do uso dos
23
argumentos retoacutericos determinados pela conduccedilatildeo do discurso constituinte de base
na enunciaccedilatildeo A comparaccedilatildeo entre o uso dessas estrateacutegias contribui para a
observaccedilatildeo de aproximaccedilotildees e afastamentos de posiccedilotildees discursivas entre Secircneca
e Paulo No terceiro capiacutetulo o criteacuterio para delimitaccedilatildeo das epiacutestolas a serem
analisadas eacute o desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo que se estabelece a partir da
construccedilatildeo da cenografia Nas epiacutestolas de Secircneca o tema direcionador eacute o tempo e
nas de Paulo eacute o amor analisado no quarto capiacutetulo A partir da recorrecircncia ao toacutepos
ldquofalar francordquo ligado agrave parresia eacute possiacutevel identificar este toacutepos como filosoacutefico pela
origem dos seus sentidos ligados agrave verdade moral porque estaacute ligado agrave eacutetica em
relaccedilatildeo ao modo de agir que se manifesta atraveacutes do ethos
A seleccedilatildeo dos corpora de anaacutelise dos recursos retoacutericos e temas eacute apresentada por
meio de esquemas em forma de quadros tendo a finalidade de identificar as partes
de epiacutestolas que contecircm os toacutepoi e argumentos retoacutericos observados como
tambeacutem os temas desenvolvidos a partir da construccedilatildeo das cenografias nas
epiacutestolas de Secircneca e Paulo No procedimento das anaacutelises alguns destaques do
corpus selecionado satildeo colocados em evidecircncia Quando a citaccedilatildeo em destaque
natildeo atinge mais de trecircs linhas eacute usado o recurso de caixas como forma de destacar
a citaccedilatildeo e situaacute-la fora do corpo do texto A delimitaccedilatildeo do corpus relacionado agraves
epiacutestolas de Secircneca eacute resultado do recorte feito para anaacutelise Como ponto de
partida a primeira epiacutestola eacute analisada para identificaccedilatildeo da construccedilatildeo da
cenografia Nesta mesma epiacutestola a introduccedilatildeo do tema ldquoo tempordquo eacute ponto de
referecircncia para constataccedilatildeo da cenografia como tratado filosoacutefico As partes das
epiacutestolas em que a noccedilatildeo de libertas aparece como liberdade no modo de falar
contribuem para a localizaccedilatildeo do uso do toacutepos ldquofalar francordquo As epiacutestolas que
contecircm exemplos e citaccedilotildees foram selecionadas de acordo com a ocorrecircncia do
tema introdutoacuterio que se desdobra em toacutepoi que abordam questotildees sobre a velhice e
a morte As epiacutestolas que registram o uso da metaacutefora do atletismo fornecem
elementos para o desenvolvimento do toacutepos ldquoeacute preciso exercitar-serdquo como
preparaccedilatildeo para o enfrentamento da velhice e da morte como forma do cuidado de
si As partes de epiacutestolas que atendem a finalidade da verificaccedilatildeo do
desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo satildeo portadoras de diferentes abordagens como
o valor do tempo o tempo eacute circular e a fluidez do tempo Cada abordagem funciona
24
como um toacutepos que se localiza na memoacuteria do falante e serve como argumento para
as aplicaccedilotildees das liccedilotildees filosoacuteficas sobre o tempo
O corpus retirado das epiacutestolas de Paulo segue o mesmo criteacuterio da seleccedilatildeo feita
nas de Secircneca O que diferencia os corpora eacute a delimitaccedilatildeo dos textos para fonte de
anaacutelise pois as epiacutestolas de Secircneca definidas como corpus compotildeem o conjunto da
coleccedilatildeo Em relaccedilatildeo agraves epiacutestolas de Paulo do conjunto de sete foram selecionadas
as duas dirigidas agrave igreja de Corinto e destas foram retiradas partes de capiacutetulos
Para identificaccedilatildeo da cenografia foi delimitado o primeiro capiacutetulo de cada epiacutestola
escolhida Os versiacuteculos que contecircm o termo parresiacutea (παρρησια) satildeo localizados
para identificaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo Na composiccedilatildeo do corpus satildeo
selecionados outros versos que detecircm uma carga semacircntica similar ao uso de
parresiacutea Os exemplos satildeo encontrados em textos de epiacutestolas que fazem remissatildeo
ao Velho Testamento como apoio e sustentaccedilatildeo As citaccedilotildees ou alusotildees satildeo
encontradas nas epiacutestolas em que o discurso busca autoridade em uma fonte
externa seja religiosa literaacuteria ou filosoacutefica O recurso do uso da metaacutefora que toma
a imagem do atleta como modelo eacute encontrado no capiacutetulo nove de 1 Coriacutentios
focalizando o toacutepos ldquoeacute preciso exercita-se espiritualmenterdquo sendo o cuidado de si
um objetivo que auxlia no alcance final da vitoacuteria O tema amor eacute desenvolvido por
meio de diferentes abordagens como a origem do amor o amor promove a uniatildeo a
grandeza do amor Estes toacutepicos satildeo encontrados em diferentes capiacutetulos e versos
sendo desenvolvidos como toacutepoi que os leitores satildeo capazes de identificar como
lugares comuns
O texto das epiacutestolas de Secircneca eacute traduzido por Segurado e Campos (1991) e sua
introduccedilatildeo e tambeacutem as notas satildeo usadas como referecircncia bibliograacutefica O tiacutetulo
original eacute L ANNAEI SENECAE AD LUCILIUM EPISTULAE MORALES (Segundo o
texto da Oxford University Press 1965) Segurado e Campos traduziu o tiacutetulo para o
portuguecircs de Portugal Cartas a Luciacutelio Luacutecio Aneo Seacuteneca Os textos retirados das
epiacutestolas de Paulo satildeo referentes agrave traduccedilatildeo Almeida Corrigida e Revisada Fiel 4
ed 2011
Na organizaccedilatildeo da seleccedilatildeo do corpus o quadro 1 registra a indicaccedilatildeo do toacutepos
filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo e os trecircs recursos retoacutericos definidos como estrateacutegias
argumentativas no discurso exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora O exemplo eacute um recurso
valorizado por Aristoacuteteles pela sua eficaacutecia na estrateacutegia argumentativa A citaccedilatildeo
25
em seu sentido mais amplo natildeo faz parte direta das indicaccedilotildees feitas por
Aristoacuteteles mas eacute veriacutedico seu funcionamento como forccedila de sustentaccedilatildeo na
argumentaccedilatildeo visto que Aristoacuteteles recomenda a citaccedilatildeo de maacuteximas e ele mesmo
se utliza destas para ilustrar suas ideias no desenvolvimento da teoria proposta O
uso da metaacutefora tambeacutem eacute indicado por Aristoacuteteles pelo efeito de analogia que ela
produz na aacuterea do raciciacutenio dedutivo semelhante ao silogismo No lado esquerdo do
quadro 1 estatildeo indicados o toacutepos filosoacuteficomoral e os argumentos retoacutericos no
centro encontra-se a identificaccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca selecionadas e no lado
direito a seleccedilatildeo dos textos das epiacutestolas aos Coriacutentios
Corpus de anaacutelise de epiacutestolas de Secircneca e de Paulo
Argumentos retoacutericos ndash Toacutepoi como fonte de um lugar comum
Quadro 1
TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL
ARGUMENTOS RETOacuteRICOS
SEcircNECA
PAULO
Toacutepos falar franco
Exemplo
Ep 14 Ep 251 Ep 87
Ep85 28 Ep 88 29
Ep 805 Ep 89 17
Ep 754 Ep 62
Ep 829 Ep 1110 Ep 249
Ep 612 Ep 82 9-5 Ep 962
Ep 95 68-69 Ep 77 10-12
1Cor 21 1Cor 45
2Cor 117 2Cor 312
2Cor 102
1Cor 10 1-11 1Cor 311
2Cor 4 7-11 2Cor 217
1Cor 111
Citaccedilatildeo
Ep 2 5-6 Ep 268
Ep 291011 Ep 82 15-18
Ep 412 Ep 7712 Ep 219
Ep 422 Ep 9427-88
Ep 95 55-69
TOPOacuteS RETOacuteRICO
1Cor 99 1Cor 1023 - 26
1Cor 1533 1Cor 1542
2Cor 62
Ep 596
Metaacutefora Ep 132 Ep 7816 1Cor 924-27
Ep 80 3-4 Ep 943
26
No quadro 2 o corpus selecionado eacute referente ao tema que eacute desenvolvido a partir
da construccedilatildeo da cenografia nas epiacutestolas de Secircneca Nota-se que no transcorrer da
enunciaccedilatildeo a abordagem filosoacutefica do tema ldquoo tempordquo se desdobra em reflexotildees
distintas No desenvolvimento desses temas satildeo usados recursos retoacutericos como
exemplo citaccedilatildeo maacuteximas e metaacuteforas Do lado esquerdo do quadro 2 satildeo
identificadas algumas abordagens que Secircneca desenvolve a partir do tema ldquoo
tempordquo no centro satildeo mencionados os recursos retoacutericos utilizados e do lado direito
a identificaccedilatildeo das principais epiacutestolas analisadas
Corpus de anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca
Tema _______________________ Tempo
Quadro 2
ABORDAGENS
RECURSOS RETOacuteRICOS
EPIacuteSTOLAS
Valor do tempo
Metaacutefora
Expressotildees metafoacutericas
Exemplo
Citaccedilatildeo e Maacutexima
Ep11-5 Ep2212-17
Ep 451213
Ep 621-2
Ep 8842 Ep 11732
O tempo eacute circular
Metaacutefora
Expressotildees metafoacutericas
Citaccedilatildeo
Maacutexima
Ep 126-8 Ep191
Ep 2420-21
Ep 774 Ep 191
Ep 2420-21 Ep 964-5
A fluidez do tempo
Citaccedilatildeo
Maacutexima
Metaacutefora
Expressotildees Metafoacutericas
Ep 6511 Ep 493
Ep 21 Ep 254
Ep 5822-23 Ep 997
Ep 701- 4 Ep 10824
27
O quadro 3 apresenta o tema filosoacutefico-teoloacutegico ldquoo amorrdquo constituiacutedo nas epiacutestolas
de Paulo agrave igreja de Corinto a partir da construccedilatildeo da cenografia Este tema se
expande para outras abordagens que funcionam como toacutepoi unindo-se ao tema
central Os recursos retoacutericos exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora satildeo usados como
estrateacutegias argumentativas na sustentaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo do tema Os recursos
argumentativos usados favorecem o entrecruzamento dos discursos constituintes
contribuindo para a discursividade que se estabelece no ato enunciativo Do lado
esquerdo satildeo mostrados os trecircs desdobramentos contidos no tema amor
desenvolvidos por Paulo no centro do quadro satildeo identificados os recursos retoacutericos
como argumentaccedilatildeo e do lado direito a delimitaccedilatildeo das partes das epiacutestolas que
formam o corpus
Corpus de anaacutelise das duas epiacutestolas de Paulo aos Coriacutentios
Tema _____________________________ Amor (Aacutegape)
Quadro 3
ABORDAGENS
RECURSOS RETOacuteRICOS
EPIacuteSTOLAS
A origem do amor
Citaccedilatildeo
Exemplo
1Cor 1910 1Cor 29
2Cor 1 3 2Cor 2 4
O amor faz a uniatildeo
Citaccedilatildeo
Metaacutefora
Exemplo
1Cor112122 1Cor11 23-26
1Cor 12 13-25 1Cor 16 2-3
2Cor 8 10-15 2Cor 9 2-10
A grandeza do amor
Metaacutefora
Citaccedilatildeo
Exemplo
1Cor 13
2Cor 12 14-15
2Cor 13 11-13
Estes quadros apresentam a siacutentese da seleccedilatildeo dos argumentos retoacutericos e temas
definidos a paritr da cenografia com seus desdobramentos em que estatildeo contidos
28
diferentes toacutepoi no percurso da enunciaccedilatildeo e as partes dos textos das epiacutestolas de
Secircneca e de Paulo como corpora delimitados como fonte para as anaacutelises
A funccedilatildeo da terceira parte desta tese eacute confrontar o uso do ldquofalar francordquo e o uso
dos recursos retoacutericos nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo tendo um lugar comum
como fonte Os discursos constituintes fornecem base de sustentaccedilatildeo ao
desenvolvimento dos assuntos dando lugar ao uso de toacutepoi que apontam para
diferentes aspectos de abordagens do tema escolhido Secircneca estaacute investido em
sua posiccedilatildeo discursiva pelos efeitos do discurso filosoacutefico e Paulo pelo discurso
religioso Os discursos destes autores satildeo atravessados por outros discursos pela
influecircncia e efeitos da cultura heleniacutestica
Outro fenocircmeno da linguagem identificado no corpus de anaacutelise desta tese eacute a
ocorrecircncia de conceitos metafoacutericos identificados por meio de expressotildees
metafoacutericas Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 245) ldquomuitas das similaridades
que percebemos satildeo resultado de metaacuteforas convencionais que satildeo parte de nosso
sistema conceptualrdquo As metaacuteforas designadas convencionais satildeo constituiacutedas a
partir das correlaccedilotildees resultantes das experiecircncias que satildeo vivenciadas em
determinada cultura Natildeo eacute objetivo desta pesquisa analisar os conceitos
metafoacutericos presentes nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo mas identificar que esses
conceitos satildeo relacionados aos lugares comuns como forma de expressatildeo da
linguagem no desenvolvimento dos temas com o recursos dos toacutepoi
Nas abordagens de metaacutefora conceitual defendidas por Lakoff e Jonhson (2002 p
45-85) as metaacuteforas que ocorrem no cotidiano dos falantes satildeo identificadas em
trecircs modos distintos metaacuteforas estruturais metaacuteforas orientacionais e metaacuteforas
ontoloacutegicas Um dos conceitos que estes autores colocam como exemplo eacute TEMPO
Eacute DINHEIRO identificado pelo uso de expressotildees metafoacutericas como ganhar tempo
perder tempo investir tempo reservar tempo poupar tempo Esta eacute uma metaacutefora
estrutural porque um conceito mais abstrato (tempo) eacute pensado em termos de outro
mais concreto (dinheiro) As metaacuteforas orientacionais datildeo direccedilatildeo espacial ao
conceito como por exemplo ALEGRIA Eacute PARA CIMA TRISTEZA Eacute PARA BAIXO
Estes conceitos podem ter suas origens em experiecircncias fiacutesicas e culturais de uma
sociedade Estar alegre pode significar alto astral e estar triste baixo astral pois
positivo eacute para cima e negativo eacute para baixo As metaacuteforas ontoloacutegicas consistem
nas formas de conceber eventos atividades ideias emoccedilotildees como entidades e
29
substacircncias O uso de metaacuteforas ontoloacutegicas eacute bem variado e frequente entre os
falantes no contexto de diferentes culturais Na cultura brasileira por exemplo o
conceito INFLACcedilAtildeO Eacute UMA ENTIDADE permite identificaacute-la como um monstro ela
precisa ser combatida e assim por diante Segundo Lakoff e Johnson (2002 p 88)
ldquoa personificaccedilatildeo eacute uma categoria geral que cobre uma enorme gama de metaacuteforas
e o que elas tecircm em comum eacute o fato de serem extensotildees de metaacuteforas ontoloacutegicas
permitindo dar sentido aos fenocircmenos do mundo em termos humanosrdquo
Em especial no desenvolvimento do tema ldquoo tempordquo nas epiacutestolas de Secircneca
algumas metaacuteforas estruturais satildeo identificadas como por exemplo A VIDA Eacute UMA
VIAGEM Nas epiacutestolas de Paulo identificam-se ocorrecircncias do conceito metafoacuterico
ontoloacutegico O AMOR Eacute UMA PESSOA no transcorrer do desenvolvimento do tema ldquoo
amorrdquo pelo uso de expressotildees metafoacutericas o amor eacute sofredor o amor eacute benigno o
amor natildeo eacute invejoso o amor natildeo trata com leviandade o amor natildeo se ensoberbece
(1Cor 134) Essa eacute uma forma de corporificar um conceito abstrato de amor
fornecendo qualidades que possam identificaacute-lo Nos estudos da Linguiacutestica
cognitiva dirigidos por Lakoff e Johnson os conceitos metafoacutericos satildeo escritos em
letras maiuacutesculas o que tambeacutem seraacute mantido neste trabalho
Na finalizaccedilatildeo desta pesquisa satildeo apresentados alguns pontos demarcados para
comparaccedilatildeo entre a escrita de Paulo e de Secircneca com base nas anaacutelises
realizadas ao longo da elaboraccedilatildeo desta tese Para a identificaccedilatildeo de certas
aproximaccedilotildees ou afastamentos de posiccedilotildees discursivas entre estes dois autores satildeo
retomados os recursos argumentativos e temas por eles desenvolvidos por meio do
do gecircnero epistolar O papel do discurso constituinte no ato enunciativo eacute relevante
na determinaccedilatildeo dos posicionamentos que Secircneca e Paulo assumem em seus
discursos sendo fundamental tambeacutem para o direcionamento do desenvolvimento
dos toacutepoi e recursos retoacutericos responsaacuteveis pela dinacircmica do discurso
30
PARTE I
1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE O QUADRO TEOacuteRICO
Entretanto uma obra natildeo pode viver nos seacuteculos futuros se natildeo reuacutene em si de certo modo os seacuteculos passados Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto eacute em sua atualidade) natildeo desse continuiacutedade ao passado e natildeo mantivesse com ele um viacutenculo substancial natildeo poderia viver no futuro Tudo que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele Mikhail Bakhtin (2006 p 363)
Nesta primeira parte o foco de atenccedilatildeo eacute dado agraves bases teoacutericas que servem de
sustentaccedilatildeo e orientaccedilatildeo para a anaacutelise do corpus delimitado Esta parte representa
o ponto de partida para uma viagem agrave Antiguidade Para realizaccedilatildeo do
planejamento dessa viagem metafoacuterica conta-se com algumas contribuiccedilotildees de
Foucault (1996 2004 2010a 2010b 2011) concebidas pela experiecircncia de seu
empreendimento de visita agrave Antiguidade Aleacutem disso o local e o tempo histoacuterico que
ele elegeu como um dos pontos de estadia em sua viagem coincidem com os
interesses da pesquisa aqui proposta Foucault (2010a p 44) estava empenhado
em identificar a relaccedilatildeo entre sujeito e verdade e o fenocircmeno da subjetivaccedilatildeo como
efeito dessa relaccedilatildeo Sua opccedilatildeo prestigiou os estoicos da terceira fase situados
temporalmente nos seacuteculos I e II dC As anaacutelises que Foucault fez de textos de
Secircneca Plutarco e Marco Aureacutelio sobre a escrita de si e o cuidado de si tambeacutem
podem ser aplicaacuteveis agraves epiacutestolas de Paulo escritas no mesmo ambiente cultural e
temporal de Secircneca
Foucault (2010a p 36) deteve-se em analisar questotildees sobre subjetividade e
verdade observando que para apreensatildeo da verdade era necessaacuterio o exerciacutecio de
um conjunto de praacuteticas determinadas que contribuiam para a transformaccedilatildeo do
modo de ser do sujeito qualificando-o para um tipo de comportamento almejado A
subjetividade como concebida por Foucault no contexto da Antiguidade eacute
considerada como um processo de subjetivaccedilatildeo que se instaura no indiviacuteduo de
acordo com os resultados de escolhas de certo modo de vida Essa concepccedilatildeo natildeo
estaacute atrelada agrave identificaccedilatildeo de um sujeito como categoria previamente dada ou
ontologicamente invariaacutevel mas a modos de agir a processos de subjetivaccedilatildeo
modificaacuteveis e plurais Essa eacute a razatildeo pela qual Foucault (2010a p 36) opta por
31
observar o cuidado de si como forma de subjetivaccedilatildeo visto que para os estoicos e
epicuristas o cuidado de si tornava-se uma obrigaccedilatildeo permanente do indiviacuteduo ao
longo de sua existecircncia
Paul Veyne (1995 p 13) alega que a partir dos anos oitenta em especial na
Franccedila houve um efeito de ressurgimento da figura de Secircneca graccedilas a um ciacuterculo
editorial ligado a Michel Foucault Inwood (2007 p 133) tambeacutem faz comentaacuterio
semelhante observando que o grande interesse de Foucault em observar os textos
das epiacutestolas de Secircneca fez renascer o sentido da importacircncia da escrita de si
atraveacutes da correspondecircncia
O tema sobre a escrita de si abordado por Foucault (2004) com base em
correspondecircncias com destaque para as epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio serviu como
suporte para Foucault pensar sobre o cuidado de si naquele momento histoacuterico
Pelas proacuteprias caracteriacutesticas inerentes ao fenocircmeno da correspondecircncia a
relevacircncia do gecircnero epistolar se sobressai como escolha para exposiccedilatildeo do
pensamento estoico Para se pensar sobre a circulaccedilatildeo do gecircnero epistolar na
vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era faz-se necessaacuterio observar como circulam
os preceitos de retoacuterica e verdade na Antiguidade situando o modo como se daacute a
construccedilatildeo da verdade na filosofia estoica e na religiatildeo judaico-cristatilde e o papel que
a retoacuterica ocupa na transmissatildeo do discurso verdadeiro14 endereccedilado ao sujeito
A discussatildeo suscitada por Foucault (2010a 2010b e 2011) sobre o tema parresiacutea
que na Antiguidade grega indicava tambeacutem o falar franco e sincero estando
associada agrave noccedilatildeo de discurso verdadeiro levanta algumas questotildees sobre o
relacionamento entre filosofia e retoacuterica na fase das produccedilotildees das epiacutestolas de
Secircneca e de Paulo A noccedilatildeo de parresiacutea contribui para a instituiccedilatildeo do toacutepos ldquofalar
francordquo que pode ser identificado na construccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo
14
Para Foucault (2010a p 288) na filosofia estoica o discurso verdadeiro resulta de liccedilotildees apreendidas de equipamento material do logos sendo discursos existentes em sua materialidade como proposiccedilotildees fundadas na razatildeo Esse discurso se investe de uma racionalidade que ao mesmo tempo diz o verdadeiro e prescreve o que eacute preciso fazer Satildeo persuasivos no sentido em que acarretam natildeo somente a convicccedilatildeo mas tambeacutem os proacuteprios atos Eacute necessaacuterio que esses discursos sejam natildeo apenas adquiridos mas dotados de uma espeacutecie de presenccedila permanente Foucault (2010b p 66) defende que a concepccedilatildeo de discurso verdadeiro estaacute vinculada ao posicionamento de quem enuncia o seu discurso Pode-se notar que este posicionamento eacute determinado pelo discurso constituinte sendo distinta a concepccedilatildeo de verdade para os discursos religioso filosoacutefico e cientiacutefico
32
Quando se pensa a respeito de lugar comum no campo da retoacuterica toma-se como
referecircncia a palavra grega toacutepos15 Com base na retoacuterica antiga Charaudeau e
Maingueneau registram (2008 p 474) que a palavra toacutepos no singular e toacutepoi no
plural foi emprestada do grego (τόπος τόποι) e corresponde ao latim locus
communis do qual resultou lugar comum que consistia numa ideia favoraacutevel agrave
aceitaccedilatildeo por determinado grupo a partir de elementos sobre especificado problema
e a viabilidade de fundamentaccedilatildeo para a persuasatildeo Um toacutepos eacute um esquema
discursivo caracteriacutestico de um tipo de argumento Discussotildees de questotildees sobre o
sentido de toacutepos e sua aplicaccedilatildeo na retoacuterica antiga tecircm ampliado a compreensatildeo de
seu uso na Antiguidade como observado nas pesquisas de Curtius (1996) e Thom
(2003) em estudos que acrescentam novas consideraccedilotildees aos sentidos mais
originais do termo
Aristoacuteteles (Ret II18 1392a) usa esse princiacutepio de lugar comum quando desenvolve
os pontos sobre os toacutepicos como fonte de argumentaccedilatildeo Em seus estudos no
contexto da nova retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p 95) adotam o termo
lugares em substituiccedilatildeo ao termo toacutepoi Partindo das reflexotildees de Aristoacuteteles sobre
toacutepica Perelman e Olbrechts-Tyteca ponderam que os lugares formam um arsenal
indispensaacutevel do qual de um modo ou de outro quem quiser persuadir outrem
deveraacute lanccedilar matildeo Nesta presente pesquisa o toacutepos ldquofalar francordquo seraacute considerado
no seu valor como forma de apoio que possibilita a sustentaccedilatildeo de argumentos que
favoreccedilam as condiccedilotildees para um determinado propoacutesito advindo do enunciador no
desnvolvimento do discurso
Com base em textos herdados da Antiguidade vislumbram-se possibilidades de se
perceber o modo como Secircneca e Paulo satildeo identificados no uso de argumentos
retoacutericos em seus escritos Vinculada a esta observaccedilatildeo por um lado pleiteia-se
tambeacutem a verificaccedilatildeo da ocorrecircncia de influecircncia da retoacuterica como forma de
aproximaccedilatildeo entre os dois autores Por outro lado torna-se necessaacuteria uma busca
de compreensatildeo de posiccedilotildees discursivas16 desses autores que na produccedilatildeo de
seus discursos estabelecem sentidos vinculados agraves posiccedilotildees do lugar que cada um
ocupa na enunciaccedilatildeo atraveacutes da escrita de suas epiacutestolas
15
Com base na retoacuterica antiga Charaudeau e Maingueneau (2008 p 474) apontam que um toacutepos eacute um elemento de uma toacutepica sendo uma toacutepica heuriacutestica uma arte de coletar informaccedilotildees e fazer emergirem argumentos 16
Para Charaudeau e Maingueneau (2008 p 392) a posiccedilatildeo discursiva diz respeito agrave instauraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma identidade enunciativa
33
Alguns elementos do quadro teoacuterico da anaacutelise do discurso foram selecionados para
aplicaccedilatildeo na anaacutelise do corpus A escolha recaiu sobre a anaacutelise do discurso de
base enunciativa que tem como pressupostos a manifestaccedilatildeo do discurso como
enunciaccedilatildeo Assim na enunciaccedilatildeo o enunciador (remetente) dirige-se ao co-
enunciador (destinataacuterio) como parceiro na comunicaccedilatildeo de acordo com seu
posicionamento discursivo que orienta de que lugar e momento ele profere seu
discurso Esta abordagem eacute produtiva para se pensar a comparaccedilatildeo entre as
epiacutestolas de Secircneca e Paulo e o posicionamento que cada um deles ocupa em seus
discursos Nesses termos a retoacuterica pode ser considerada como um modo de
organizar o discurso em seu acontecimento na cena enunciativa Destaca-se
tambeacutem a escolha dos argumentos no campo da retoacuterica e o modo do
funcionamento desses recursos segundo o direcionamento dos discursos
constituintes
No exame de textos pertencentes agraves epiacutestolas produzidas por Secircneca e Paulo tem-
se instaurada a evidecircncia de um desafio nesta pesquisa ou seja uma tentativa de
se apreender a dinacircmica desses discursos no bojo da influecircncia do interdiscurso ou
seja o atravessamento constitutivo que movimenta a circulaccedilatildeo de diferentes
discursos na base da enunciaccedilatildeo De acordo com algumas reflexotildees de
Maingueneau (2007 p 23) pode-se pensar o discurso para aleacutem da simplificaccedilatildeo
da ideia de um conjunto de textos Todo discurso eacute uma construccedilatildeo social e deve
ser analisado na perspectiva de seu contexto histoacuterico-social e de suas condiccedilotildees
de produccedilatildeo como eacute tratado na parte II desta pesquisa O proacuteprio Maingueneau
resgata o uso da terminologia praacutetica discursiva17 herdada de Foucault e assim
justifica
O sistema de restriccedilotildees semacircnticas para aleacutem do enunciado e da enunciaccedilatildeo permite tornar esses textos comensuraacuteveis com a ldquorede institucionalrdquo de um ldquogrupordquo aquele que a enunciaccedilatildeo discursiva ao mesmo tempo supotildee e torna possiacutevel (MAINGUENEAU 2007 p 23)
Nessa abordagem toma-se a noccedilatildeo de discurso na articulaccedilatildeo do funcionamento
discursivo em consonacircncia com sua inscriccedilatildeo histoacuterica Assim o ato enunciativo
pode ser circunscrito historicamente em sua apreensatildeo atraveacutes do interdiscurso
Maingueneau (2007 p17-21) sustenta que ldquoo interdiscurso tem precedecircncia sobre o 17
Foucault na obra Arqueologia do Saber (2007 p 133) faz uso do termo praacutetica discursiva definindo-o como um conjunto de regras anocircnimas histoacutericas sempre determinadas no tempo e no espaccedilo que definiram em uma dada eacutepoca e para uma determinada aacuterea social econocircmica geograacutefica ou linguiacutestica as condiccedilotildees de exerciacutecio da funccedilatildeo enunciativa
34
discursordquo A unidade de anaacutelise natildeo estaacute focada no discurso especificamente mas
no espaccedilo de troca entre vaacuterios discursos levando-se em conta o direcionamento
efetuado por meio do discurso constituinte que permite circular outros discursos
mantendo sua proacutepria autonomia e prevalecircncia determinantes no posicionamento
discursivo do enunciador
O gecircnero epistolar tem sua funccedilatildeo no ato enunciativo em estreita relaccedilatildeo com a
cenografia e o ethos Todo esse conjunto participante da cena geneacuterica da
enunciaccedilatildeo se estabelece a partir do discurso constituinte que eacute tomado como base
no acontecimento enunciativo Estas consideraccedilotildees abordadas nesta parte
introdutoacuteria estatildeo desenvolvidas ao longo da primeira parte da tese
35
2 CONTRIBUICcedilOtildeES DE FOUCAULT PARA OS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE
Os uacuteltimos anos das pesquisas de Foucault foram enriquecidos com a produccedilatildeo de
alguns postulados que favorecem a compreensatildeo de como o sujeito se constitui ou eacute
constituiacutedo ao longo da histoacuteria Com tal objetivo Foucault nas aulas ministradas no
Collegravege de France retomou a histoacuteria da Antiguidade observando que ao longo da
passagem dos seacuteculos houve uma transformaccedilatildeo na visatildeo filosoacutefica As aulas de
Foucault no Collegravege de France foram permanentes de 1971 a 1984 mas em
especial os cursos de 1980 a 1984 tinham como foco as questotildees sobre
subjetividade e verdade a partir da Antiguidade O material coletado das aulas
gravaccedilotildees e dossiecircs forneceram material para compilaccedilatildeo de algumas obras e as
trecircs uacuteltimas traduzidas para o portuguecircs satildeo A hermenecircutica do sujeito (2010a
3ed) O governo de si e dos outros (2010b) e A coragem da verdade (2011)
Na manifestaccedilatildeo do pensamento dos preacute-socraacuteticos podem-se observar mudanccedilas
que paulatinamente atravessaram tambeacutem a cultura heleniacutestica Foucault18 destaca
que no caminhar da histoacuteria percebe-se um distanciamento das origens do
pensamento socraacutetico fazendo emergir gradativamente na Idade Meacutedia a
concepccedilatildeo de um sujeito cartesiano A posiccedilatildeo de Descartes implementou outro
modo de acesso agrave verdade em detrimento do cuidado de si Foucault (2010a p 15)
examinou possiacuteveis consequecircncias desse pensamento apontando que na
abordagem de Descartes natildeo eacute o sujeito que deve transformar-se Portanto para
que o sujeito tenha acesso ao conhecimento da verdade basta que ele seja ele
mesmo sendo sua proacutepria estrutura de sujeito a garantia que o habilita ao alcance
da verdade
Na primeira fase de seus estudos Foucault nas deacutecadas de sessenta e setenta
apontou exatamente para a sujeiccedilatildeo de um indiviacuteduo que na eacutepoca da Modernidade
estava vulneraacutevel agraves dominaccedilotildees da vontade de verdade Tais dominaccedilotildees satildeo
impostas pela vontade de saber submetendo-se ao que foi constituiacutedo
institucionalmente como discurso verdadeiro19 No segundo momento de suas
18
Nas aulas introdutoacuterias de 1982 no Collegravege de France Foucault (2010a) fez um levantamento histoacuterico das concepccedilotildees filoacutesoficas desde Soacutecrates ateacute Descartes para situar suas colocaccedilotildees sobre subjetividade e verdade e o cuidado de si 19
Em suas seis conferecircncias realizadas na PUC do Rio de Janeiro em 1973 Foucault apresentou suas concepccedilotildees de verdade naquelas conferecircncias que mais tarde foram compiladas no livro intitulado A verdade e as formas juriacutedicas (FOUCAULT 2005)
36
pesquisas a partir de 1980 Foucault se situou nos estudos de teacutecnicas de
existecircncia promovidas pela Antiguidade grega e romana20 incluindo o periacuteodo
Heleniacutestico deixando aparecer outra figura do sujeito natildeo constituiacutedo como
demonstrado na fase da Modernidade mas constituindo-se atraveacutes de praacuteticas
regradas na fase da Antiguidade Em A Hermenecircutica do Sujeito Foucault (2010a)
declarou seu interesse em buscar na Antiguidade grega e romana suportes que
contribuiacutessem para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre sujeito e verdade Como meta
em sua investigaccedilatildeo ele partiu de uma anaacutelise da noccedilatildeo de cuidado de si como
orientaccedilatildeo na trajetoacuteria de sua pesquisa Ao refletir sobre o ensinamento milenar de
Soacutecrates ldquoConhece-te a ti mesmordquo Foucault argumentou sobre possiacuteveis
significados que esta maacutexima sustenta Os valores que dirigem a vida do ser
humano estariam em um patamar mais elevado do que o saber aparente que se
julga ter no questionamento de si mesmo O fundamental natildeo eacute saber mas ser de
acordo com um determinado modo de vida Nessa busca Foucault (2010a p 9)
verificou que Soacutecrates natildeo se limitava a pensar o homem do conhecimento de si
mas o homem do cuidado de si Desse modo o cuidado de si implica o
conhecimento de si que para Soacutecrates era um reconhecer-se que efetivamente
buscava uma recuperaccedilatildeo da memoacuteria da verdade
Na Antiguidade havia um relacionamento entre o ato do conhecimento e
espiritualidade no campo da filosofia A partir dessa concepccedilatildeo Foucault (2010a p
26) pondera que a espiritualidade pode ser vista como condiccedilatildeo de acesso agrave
verdade Com base na sua fonte de pesquisa Foucault (2010a p171) argumenta
que a filosofia antiga de um modo geral era detentora de um pressuposto
fundamental de que a conversatildeo21 era a garantia de acesso agrave verdade ou seja o
20
No curso oferecido no Collegravege de France em 1982 Foucault apresentou sua pesquisa voltada para a cultura greco-romana situando pensadores como Soacutecrates estendendo sua anaacutelise para o periacuteodo Heleniacutestico relacionando seu trabalho de investigaccedilatildeo com a construccedilatildeo das subjetividades Essas aulas estatildeo compiladas no livro Hermenecircutica do Sujeito (2010a) No ano seguinte em 1983 deu continuidade agraves suas pesquisas trabalhando questotildees voltadas para o tema sobre o governo de si e o governo do outro (2010b) Nesse periacuteodo ele elaborou o texto A escrita de si (2004) enfocando escritores romanos dos seacuteculos I e II de nossa era voltados para o estoicismo da terceira fase No ano de 1984 ao ministrar suas aulas deu continuidade ao tema governo de si aprofundando questotildees sobre parresiacutea fechando o curso com uma anaacutelise raacutepida sobre a parresiacutea entre os preacute-cristatildeos Sua intenccedilatildeo era dar continuidade no ano seguinte analisando a parresiacutea no cristianismo mas infelizmente sua morte natildeo lhe permitiu As aulas de 1984 estatildeo compiladas no livro intitulado A coragem da verdade ndash o governo de si e dos outros II (2011) 21
Termos como salvaccedilatildeo e conversatildeo pertenciam agraves diferentes correntes da filosofia antiga Segundo Foucault (2010a p176) salvaccedilatildeo era relacionada ao cuidado de si e cuidado dos outros como aparece em textos de Epitecto que apontam para o fato de que quando o sujeito busca seu proacuteprio bem faz bem tambeacutem aos outros O termo converter-se aparece em Secircneca com a expressatildeo
37
indiviacuteduo deveria passar por um processo de transformaccedilotildees para se tornar
capacitado para apreensatildeo da verdade Esse fato pode ser identificado no
pensamento de Secircneca
Verifico Luciacutelio que natildeo apenas me estou corrigindo antes me estou transfigurando Natildeo garanto nem sequer espero que nada jaacute reste em mim sem necessitar de mudanccedila Como natildeo hei de ter ainda muito que deva ser refreado ou diminuiacutedo ou elevado Mas jaacute eacute uma prova de que o espiacuterito alcanccedilou um degrau superior o fato de reconhecer os defeitos que ateacute entatildeo permaneciam ignorados (SEcircNECA Ep 61)
A partir dessa base filosoacutefica dos estoicos sobre a conversatildeo Secircneca se coloca
como algueacutem que se encontra nesse processo de transformaccedilatildeo que eacute constante
Ao mesmo tempo por um lado percebe-se uma auto avaliaccedilatildeo positiva dos
resultados alcanccedilados e por outro lado a consciecircncia da necessidade de outras
mudanccedilas como um processo permanente Essa epiacutestola de Secircneca coloca em
evidecircncia que o conhecimento de si favorece o proacuteprio cuidado de si pois o efeito da
conversatildeo a si eacute a subjetivaccedilatildeo da verdade pela qual algueacutem procura transformar
seu modo de ser Nesse percurso Foucault desenvolve sua anaacutelise a respeito das
relaccedilotildees entre conhecimento de si e cuidado de si e assim comenta
Temos pois se quisermos no niacutevel das praacuteticas de si trecircs grandes modelos que historicamente se sucederam uns aos outros O modelo que eu chamaria ldquoplatocircnicordquo gravitando em torno da reminiscecircncia O modelo ldquoheleniacutesticordquo que gira em torno da auto finalizaccedilatildeo da relaccedilatildeo a si E o modelo ldquocristatildeordquo que gira em torno da exegese de si e da renuacutencia a si [] A moral austera do modelo heleniacutestico foi retomada e trabalhada pelas teacutecnicas de si definidas pela exegese e pela renuacutencia a si proacutepria do modelo ldquocristatildeordquo (FOUCAULT 2010a p 231)
A praacutetica de si de acordo com os trecircs grandes modelos apontados por Foucault
pode ser identificada nos conteuacutedos das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Os conselhos
emitidos atraveacutes daquelas missivas se constituem como alertas e instruccedilotildees aos
leitores sobre diferentes facetas do cuidado de si como modo de fortalecer e dar
credibilidade aos discursos constituiacutedos como verdadeiros e seus efeitos na praacutetica
por meio da accedilatildeo mostrada pelo comportamento Os ensinamentos contidos nas
epiacutestolas de Paulo serviram tambeacutem de sustentaccedilatildeo na implantaccedilatildeo do cristianismo
caracterizando o modelo cristatildeo ao qual Foucault se refere
Rogo-vos pois irmatildeos pela compaixatildeo de Deus que apresenteis os vossos corpos em sacrifiacutecio vivo santo e agradaacutevel a Deus que eacute o vosso culto racional E natildeo sede conformados com este mundo mas sede transformados pela renovaccedilatildeo do vosso entendimento para que
transfigurar-se (Ep 61) Posteriormente os termos salvaccedilatildeo e conversatildeo foram assimilados pela linguagem relacionada aos fundamentos do cristianismo
38
experimenteis qual seja a boa agradaacutevel e perfeita vontade de Deus (Rom 121-2)
Paulo tambeacutem se refere agrave renovaccedilatildeo do entendimento como sustentaccedilatildeo baacutesica
para o processo de transformaccedilatildeo do sujeito Para Foucault a noccedilatildeo de cuidado de
si na Antiguidade revela a fundamentaccedilatildeo da moral em um momento bem anterior
ao cristianismo22 sendo um fio condutor de ligaccedilatildeo De acordo com a posiccedilatildeo
adotada por Foucault o cuidado de si estaacute interligado agrave concepccedilatildeo de sujeito e
verdade No contexto da cultura heleniacutestica Foucault procurou articular
subjetividade e verdade a partir de sua proacutepria visatildeo de um passado histoacuterico que
lhe permitisse resgatar um entendimento do processo de subjetivaccedilatildeo Os textos
demarcados para anaacutelise na realizaccedilatildeo de sua pesquisa estatildeo contidos em
produccedilotildees de escritura socraacutetica e heleniacutestica avanccedilando para os dois primeiros
seacuteculos de nossa era Nas ministraccedilotildees de suas aulas no Collegravege de France de
oitenta a oitenta e quatro Foucault procurou identificar como o indiviacuteduo se relaciona
consigo mesmo e com o outro como praacuteticas de apropriaccedilatildeo do discurso
verdadeiro
Foucault (2010a p 373) delineou sua forma de anaacutelise no que concerne sua
abordagem sobre discurso verdadeiro ldquoEm suma atraveacutes das regras do silecircncio e
dos princiacutepios da parresiacutea23 do franco-falar tentarei estudar um pouco as regras de
formulaccedilatildeo transmissatildeo e aquisiccedilatildeo do discurso verdadeirordquo Assim Foucault
(2010a p 282) aponta que entre os gregos e os romanos da Antiguidade a
aacuteskesis24 era considerada o ponto chave para o dizer-verdadeiro constituindo-se
como o modo de ser do sujeito A constataccedilatildeo de que a virtude podia ser adquirida
por meio da aacuteskesis jaacute se anunciava nos textos pitagoacutericos antigos Em Platatildeo25 eacute
22
Para Foucault (2010a p 231) o modelo heleniacutestico centrado em torno da auto finalizaccedilatildeo da relaccedilatildeo a si da conversatildeo a si foi o lugar de uma formaccedilatildeo moral que o cristianismo herdou repatriou e elaborou 23
Parresiacutea- expressatildeo originaacuteria do grego ndash παρρησία Segundo Foucault (2010b p 64) A parresiacutea eacute a livre coragem pela qual algueacutem se vincula a si mesmo no ato de dizer a verdade Ou ainda a parresiacutea eacute a eacutetica do dizer-a-verdade em seu ato arriscado e livre (A grafia parresiacutea eacute usada neste trabalho como transcriccedilatildeo do original ndash παρρησία) 24
Aacuteskesis (ascese) eacute um termo grego ἄσκησις que na Antiguidade significava praacutetica treinamento ou exerciacutecio Segundo Foucault (2010a p 377) haacute uma diferenccedila entre as praacuteticas de exerciacutecios da ascese no contexto histoacuterico do platonismo neoplatonismo e estoico-ciacutenica Se comparada agrave asceacutetica dos ciacutenicos e dos estoicos ao que era formulado no Alcebiacuteades na eacutepoca heleniacutestica e romana haacute uma desvinculaccedilatildeo do valor do conhecimento teoacuterico em detrimento de um conhecimento posto em praacutetica Essa eacute a razatildeo pela qual Foucault delimitou os seacuteculos I e II dC para analisar a praacutetica de si naquele contexto histoacuterico 25
Na obra A Repuacuteblica (VII 518e) Platatildeo faz a seguinte reflexatildeo ldquoQuanto agraves chamadas virtudes da alma apresentam certa afinidade com as do corpo pois natildeo sendo inatas podem ser posteriormente
39
citado o termo na obra A Repuacuteblica apontando para o valor da aacuteskesis como
exerciacutecio e haacutebito na aquisiccedilatildeo da virtude Nos textos de Platatildeo era fundamental a
concepccedilatildeo de filosofia como aacuteskesis Tambeacutem os ciacutenicos insistiam no valor da
praacutetica do exerciacutecio para aleacutem do valor do conhecimento teoacuterico Com o propoacutesito de
alcanccedilar sentidos tatildeo abstratos sobre a aquisiccedilatildeo do discurso verdadeiro Foucault
faz as seguintes observaccedilotildees
[] a aacuteskesis em razatildeo de seu objetivo final que eacute a constituiccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de si para consigo plena e independente tem essencialmente por funccedilatildeo por objetivo primeiro e imediato a constituiccedilatildeo de uma paraskeueacute (uma preparaccedilatildeo um equipamento) E o que eacute essa paraskeueacute Eacute creio a forma que os discursos verdadeiros devem tomar para constituir a matriz dos comportamentos razoaacuteveis (FOUCAULT 2010a p 291)
A ideia da ascese26 como exerciacutecio pode ser identificada atraveacutes do uso da
metaacutefora do atleta27 tanto em textos de Secircneca como nos de Paulo A identificaccedilatildeo
do uso dessa metaacutefora seraacute analisada na parte III como lugar comum nos discursos
destes dois autores O bom atleta engaja-se na praacutetica de movimentos especiacuteficos
por meio dos quais se fortalece face aos acontecimentos cotidianos tendo por
adversaacuterio as fatalidades da existecircncia Esses sentidos se aplicavam tambeacutem agrave
maneira ideal de aquisiccedilatildeo das virtudes Como Foucault ressalta nos periacuteodos que
marcaram a Antiguidade a ascese era fundamental como suporte na aquisiccedilatildeo do
discurso verdadeiro pois permitia ao sujeito se fortalecer interiormente para
enfrentar os acontecimentos A ascese tambeacutem direcionava a escuta e recepccedilatildeo do
discurso verdadeiro Por isso Foucault (2010a p 283) comenta que ldquoa ascese natildeo eacute
uma maneira de submeter o sujeito agrave lei eacute uma maneira de ligar o sujeito agrave
verdaderdquo Pode-se pensar que essa ideia evidencia uma forma de sustentaccedilatildeo para
compreensatildeo do posicionamento do apoacutestolo Paulo em sua epiacutestola aos Romanos
em sua tentativa de intermediar os conflitos entre os primeiros cristatildeos Segundo
Heyer (2009 p 202) havia um embate entre judeus e gentios visto que a imposiccedilatildeo
do cumprimento da lei mosaica por parte dos judeus convertidos provocava certa
desestabilidade na harmonia e convivecircncia entre os dois grupos Na epiacutestola aos
Romanos no capiacutetulo trecircs Paulo endurece seu discurso a respeito do
adquiridas pelo haacutebito e pelo exerciacutecio (aacuteskesis) Nesse texto aacuteskesis tem o sentido de exerciacutecio e treinamentordquo 26
Doravante as referecircncias ao termo grego ἄσκησις seratildeo mencionadas pelo uso da palavra ascese como traduzida para o portuguecircs 27
Secircneca Ep 80 3-4 Paulo I Cor 924-27
40
comportamento dos judeus em relaccedilatildeo agraves intransigecircncias polecircmicas do
cumprimento da lei mosaica
Foucault (2010a p374) deu um tom mais pessoal aos seus estudos anunciando
que optou pelo uso do termo asceacutetica28 ao inveacutes de ascese a qual tem certas
caracteriacutesticas em sua origem que natildeo se enquadram no todo do corpus de sua
anaacutelise O conceito de asceacutetica eacute posto por ele da seguinte forma ldquoasceacutetica eacute o
conjunto mais ou menos coordenado de exerciacutecios disponiacuteveis recomendados ateacute
mesmo obrigatoacuterios ou utilizaacuteveis pelos indiviacuteduos em um sistema moral filosoacutefico e
religiosordquo Para Foucault (2010a p 374) os exerciacutecios promovidos pela asceacutetica
constituiacuteam a praacutetica da cultura de si na vigecircncia do Principado Nesse ambiente
observado havia certa prescriccedilatildeo que podia ser analisada como uma questatildeo
teacutecnica daiacute o uso da expressatildeo teacutecnicas de si Esta eacute uma caracteriacutestica do
estoicismo da terceira fase situado nos seacuteculos I e II d C Nesse contexto histoacuterico
Foucault encontrou uma rica fonte para suas anaacutelises na asceacutetica estoica29
observando como os exerciacutecios de abstinecircncia contribuiacuteam para a constituiccedilatildeo de
um estilo de vida Foucault (2010a p 387) identifica um paralelo entre prova e
abstinecircncia como um conjunto de praacuteticas asceacuteticas Poreacutem a prova comporta
certas caracteriacutesticas que a diferencia da abstinecircncia O singular eacute que na prova
uma auto avaliaccedilatildeo eacute oportuna para algueacutem definir-se como capacitado ou natildeo em
determinadas situaccedilotildees Haacute certo conhecimento de si quando a experiecircncia de uma
prova eacute assumida o que natildeo se evidencia na abstinecircncia que eacute simplesmente uma
privaccedilatildeo voluntaacuteria Para contextualizar a noccedilatildeo de prova Foucault (2010a p 385)
toma como exemplo trechos da epiacutestola dezoito de Secircneca a Luciacutelio com a
finalidade de identificar a distinccedilatildeo entre prova e abstinecircncia Secircneca escreve a
Luciacutelio expondo suas ideias sobre um evento anual denominado Saturnais30 que
acontecia em Roma durante um periacuteodo do mecircs de dezembro
28
Foucault (2010a p 374) justifica que optou usar o termo asceacutetica para evitar a palavra ascetismo porque estaacute relacionada agrave uma atitude de renuacutencia ou mesmo de mortificaccedilatildeo anteriormente entre os ciacutenicos e posteriormente entre os cristatildeos Tambeacutem a palavra ascese remete a um comportamento individual envolvendo exerciacutecios para purificaccedilatildeo pessoal ou recompensa espiritual 29
Como observa Segurado e Campos (1991 XXXIX) ldquoo estoicismo que Secircneca defendia talvez ateacute com mais rigor do que seus antecessores admitia que qualquer coisa um objeto uma accedilatildeo uma ocupaccedilatildeo intelectual uma ideia soacute possuiriam valor se visassem a obtenccedilatildeo do bem moral que propusesse tornar o homem melhor do que erardquo 30
As Saturnais serviam de pano de fundo para algumas produccedilotildees do poeta Marcial Por um lado Alexandre Agnolon (2013 p 14) menciona como as Saturnais desempenharam um papel preponderante na produccedilatildeo de epigramas de Marcial Pode-se dizer que aquele festival fornecia
41
Estamos em dezembro a cidade estaacute coberta de suor A ostentaccedilatildeo desregrada invadiu toda a vida coletiva Fazem-se estrepitosamente enormes preparativos como se existisse alguma diferenccedila entre periacuteodo das Saturnais e os dias uacuteteis O fato eacute que natildeo haacute qualquer diferenccedila e por isso mesmo acho que tem toda a razatildeo quem afirma que se dezembro em tempos foi um mecircs agora eacute um ano inteiro (SEcircNECA Ep 181)
Nessa epiacutestola Secircneca compartilha com Luciacutelio suas reflexotildees expondo suas
opiniotildees sobre a gigantesca preparaccedilatildeo para o evento das Saturnais Desse modo
ele questiona se haveria necessidade de se quebrar toda uma rotina cotidiana por
causa daqueles festejos tatildeo prolongados e se expressa ldquodezembro em tempos foi
um mecircs agora eacute um ano inteirordquo (Ep 181) Outro questionamento ligado agravequelas
comemoraccedilotildees se volta para o efeito da troca da toga pelas roupas de festa Secircneca
identifica que em outros tempos a troca da toga tinha outros significados
Se estivesses aqui de boa vontade trocaria impressotildees contigo sobre qual te parece a atitude a adotar ou natildeo alterar em nada os nossos haacutebitos cotidianos ou entatildeo para natildeo nos julgarem contraacuterios aos costumes da maioria darmos algo de animaccedilatildeo ao jantar e abstermo-nos de usar a toga Na realidade enquanto antigamente ldquomudaacutevamos de roupardquo em situaccedilotildees de grande agitaccedilatildeo e de calamidade puacuteblicas agora fazemo-lo em atenccedilatildeo aos prazeres e aos dias de festa (SEcircNECA Ep 182)
Secircneca pondera sobre a melhor atitude a ser tomada diante dos fatos expostos Sua
sugestatildeo segue o caminho da moderaccedilatildeo Por um lado Secircneca constata que seria
um prova segura de firmeza de acircnimo natildeo se deixar levar pelos iacutempetos do
desregramento da multidatildeo Por outro lado seria significativo manter-se luacutecido no
meio de uma multidatildeo eacutebria O importante seria natildeo se colocar agrave margem mas
participar da festa com comportamentos moderados
Se bem te conheccedilo no caso de teres que atuar como aacuterbitro natildeo consentirias que focircssemos nem totalmente semelhantes nem totalmente diferentes da multidatildeo A menos que consideremos dever ser sobretudo exigentes com a nossa alma em dias festivos e sermos os uacutenicos a renunciar aos prazeres numa ocasiatildeo em que toda a gente se lhes entrega Seraacute de fato uma prova segura de firmeza de acircnimo natildeo acompanhar natildeo se deixar guiar por um ambiente aliciador de concessotildees agrave voluacutepia seraacute mais moderada a nossa atitude se nos natildeo situarmos agrave margem natildeo nos tornando notados nem nos deixando absorver na turbaAfinal de contas eacute possiacutevel participar numa festa sem cair no deboche (SEcircNECA Ep18 3-4)
Ao usar essa epiacutestola de Secircneca em sua anaacutelise sobre prova e abstinecircncia
Foucault aponta para o exerciacutecio da prova como uma praacutetica do conhecimento de si
metaforicamente uma variedade de elementos aplicaacuteveis agrave criatividade daquele poeta na construccedilatildeo de gecircneros de epigramas os mais diversificados o simpoacutesio o amor eroacutetico o riso o caraacuteter luacutedico Por outro lado Leni Ribeiro Leite (2011 p 92) observa que ldquoo livro de epigramas eacute por seu gecircnero proacuteprio para a eacutepoca das Saturnais Adequado aos momentos de oacutecio e lazer eacute breve para ser lido durante um banqueterdquo
42
Torna-se viaacutevel considerar que tambeacutem Paulo em sua epiacutestola aos Coriacutentios
manifestou sua opiniatildeo a respeito do comportamento que se deveria adotar frente a
determinadas situaccedilotildees como exerciacutecio da prova ldquoTodas as coisas me satildeo liacutecitas
mas nem todas as coisas convecircm Todas as coisas me satildeo liacutecitas mas eu natildeo me
deixarei dominar por nenhumardquo (1Cor 612) Pode-se dizer que nesse verso se
encontra uma siacutentese do modo de aconselhamento de Paulo em relaccedilatildeo aos
princiacutepios que ele procurava transmitir aos destinataacuterios de sua epiacutestola Esse
ensinamento de Paulo converge para algum ponto de semelhanccedila entre os
conselhos de Secircneca acerca da diferenccedila de significados entre abstinecircncia e prova
Segundo Foucault (2010a p 387) para os estoicos a prova tornava-se uma atitude
em face do real que se apresentava ao sujeito implicando a noccedilatildeo do exerciacutecio do
conhecimento de si Diante dessas conjecturas os exerciacutecios de abstinecircncia tinham
seu valor como um propoacutesito na formaccedilatildeo de um estilo de vida e natildeo exerciacutecios para
regrar a vida diante de interdiccedilotildees e proibiccedilotildees Em consonacircncia com essas ideias
estoicas Foucault observou que o cuidado de si natildeo tem por finalidade eximir o eu
do mundo que o rodeia mas capacitaacute-lo para o enfrentamento dos acontecimentos
como um sujeito verdadeiro em seus atos sendo essa a fundamentaccedilatildeo da ascese
estoica31
Esse estaacutegio da ascese na cultura romana que Foucault cognominou de asceacutetica
transforma o discurso verdadeiro ou seja a verdade em ecircthos32 no sentido da
manifestaccedilatildeo da maneira de ser e modo de existecircncia do indiviacuteduo Eacute nessa linha de
pensamento que no ano de 1983 Foucault (2010b) se debruccedilou sobre as noccedilotildees de
governo de si e governo do outro considerando o discurso verdadeiro33 como
princiacutepio permanente e ativo no desempenho do sujeito
31
No contexto histoacuterico dos primeiros anos do seacuteculo XX Max Weber (2007 p 166) analisou a importacircncia que o racionalismo asceacutetico teve para a organizaccedilatildeo das comunidades sociais Nesse estudo sobre a religiosidade asceacutetica ele fez um contraponto entre ascetismo protestante e ascetismo catoacutelico o primeiro mais voltado para o racionalismo e o segundo para o humanismo 32
Segundo Spinelli (2009 p 9) a distinccedilatildeo entre eacutethos e ecircthos se deu bem cedo no contexto da cultura grega O termo ecircthos grafado com eta (ἦθος)) era usado por Homero e o eacutethos com epsiacutelon (έθος) era usado por Eacutesquilo o fundador da trageacutedia grega O ecircthos na grafia de Homero remonta ao seacuteculo VII aC e comparece com uma significaccedilatildeo um tanto abstrata na medida em que designa os usos e os costumes enquanto relativos a modos (geneacutericos) de viver ou seja a uma sabedoria Eacutethos em Eacutesquilo designa mais ou menos a mesma coisa mas fundamentalmente a tradiccedilatildeo no sentido de o que eacute habitual corriqueiro usual As discussotildees sobre ethos seratildeo retomadas no final desta primeira parte 33
Para Foucault (2010a p 288) na filosofia estoica o discurso verdadeiro resulta de liccedilotildees apreendidas de equipamento material do logos sendo discursos existentes em sua materialidade como proposiccedilotildees fundadas na razatildeo Esse discurso se investe de uma racionalidade que ao mesmo tempo diz o verdadeiro e prescreve o que eacute preciso fazer Satildeo persuasivos no sentido em que
43
Naquele momento especiacutefico Foucault analisou a escrita de si como processo da
subjetivaccedilatildeo recorrendo em especial a trecircs pensadores Secircneca Plutarco e Marco
Aureacutelio34 inseridos no contexto histoacuterico do impeacuterio romano nos seacuteculos I e II dC A
escrita de si como praacutetica de apropriaccedilatildeo do discurso verdadeiro natildeo tem como
propoacutesito a apreensatildeo da verdade nem do mundo em volta e nem de si mesmo
Assim o saber adquirido tem a funccedilatildeo de auxiliar o sujeito a agir corretamente
diante das circunstacircncias Na obra de Plutarco Foucault encontrou uma qualificaccedilatildeo
de verdade como etopoieacutetica35 que tornava possiacutevel identificar a verdade atraveacutes da
manifestaccedilatildeo de atos realizados e posturas assumidas pelo sujeito
O modo como Foucault lanccedilou seu olhar direcionado agrave Antiguidade nos seacuteculos I e
II d C eacute instigante para se tentar localizar e fundamentar a escrita epistolar de
Secircneca e Paulo de acordo com as condiccedilotildees de produccedilatildeo favorecidas naquele
periacuteodo
21 A ESCRITA DE SI
Quanto agraves discussotildees sobre verdade Detienne (1988 p17-23) aponta o
deslocamento que a noccedilatildeo de verdade ndash aleacutetheia36 ndash sofreu mais ou menos entre os
seacuteculos XII e VI a C A memoacuteria do poeta permitia-lhe decifrar o invisiacutevel sendo um
acarretam natildeo somente a convicccedilatildeo mas tambeacutem os proacuteprios atos Eacute necessaacuterio que esses discursos sejam natildeo apenas adquiridos mas dotados de uma espeacutecie de presenccedila permanente 34
Marco Aureacutelio (121 dC - 180 dC) foi imperador romano e dedicou-se agrave filosofia especialmente agrave corrente filosoacutefica do estoicismo da terceira fase e escreveu a obra Meditaccedilotildees Na introduccedilatildeo da traduccedilatildeo inglesa dessa obra Staniforth (2002 p13) comenta que o estoicismo migrou do Oriente para o Ocidente e foi introduzido no mundo romano assumindo um aspecto diferente Os ensinamentos morais de Zenatildeo despertaram atenccedilatildeo e o seu valor praacutetico foi adequado aos ideais da cultura romana Um coacutedigo que era humano racional e moderado um coacutedigo que insistia num procedimento justo e virtuoso na autodisciplina numa forccedila moral inabalaacutevel adequava-se ao caraacutecter romano A influecircncia do estoicismo ampliou-se ao longo dos seacuteculos que assistiram ao decliacutenio da repuacuteblica e ao nascimento do Principado e por altura da ascensatildeo de Marco Aureacutelio ao trono tinha jaacute atingido sua culminacircncia e supremacia 35
Segundo Bruno ( 2007 p 43) o termo etopoieacutetica eacute uma junccedilatildeo das palavras gregas εθος (eacutethos) e ποίησις (poiesis) O ethos era definido como o caraacuteter de uma pessoa e a poiesis significava em determinados contextos um modo de escrever com a finalidade de exercer influencia sobre o outro A expressatildeo etopoieacutetica eacute identificada no modo de produccedilatildeo de Plutarco pois determinadas praacuteticas de si tinham a escrita como ponto de partida O ato de escrever era tomado como urna espeacutecie de poiacuteesis no sentido de transformaccedilatildeo do modo de ser dos indiviacuteduos Essa ethopoiesis foI exercida principalmente atraveacutes de duas formas de escrita os hupomnecircmata como recurso de anotaccedilotildees para auxiacutelio da memoacuteria e consulta e a correspondecircncia como forma de expressatildeo do EU que se abre diante do outro atraveacutes da escrita 36
Detienne (1988 p 23) informa que aleacutetheia (ἀλήθεια) encobria o sentido de verdade como uma revelaccedilatildeo miacutetico-religiosa O poeta era o mestre da verdade pois se ele estava inspirado sua palavra se fundava em um dom de videcircncia assim ocorrendo a palavra passava a ser identifiacada com a verdade Aleacutetheia - verdade no sentido de desvelamento de a- negaccedilatildeo e lethe esquecimento Para os antigos gregos aleacutetheia designava verdade e realidade simultaneamente
44
privilegiado por ter acesso a outra dimensatildeo revelando os misteacuterios apreendidos
com o uso da palavra cantada Sendo essa palavra cantada inspirada pelas musas
os poetas se tornavam sacralizados como videntes possuidores da palavra que as
musas por meio da memoacuteria o permitiam cantar Sendo o poeta dotado
divinamente pela capacidade de videcircncia esse dom o autorizava a transmitir a
verdade que lhe era revelada Nesse momento histoacuterico da Greacutecia arcaica a
aleacutetheia natildeo representava uma concordacircncia com determinada proposiccedilatildeo de certo
objeto ou mesmo de um grupo com outro Natildeo havia naquele momento uma
oposiccedilatildeo entre falso e verdadeiro O que importava era o dom de videcircncia do poeta
que o autorizava a dizer pois ele era o mestre da verdade
A partir do final do seacuteculo VI aC evidecircncias da separaccedilatildeo entre discurso verdadeiro
e discurso falso comeccedilaram a ser manifestadas Naquele contexto o discurso
verdadeiro natildeo mais estava vinculado agrave praacutetica do poder da palavra de quem era
possuidor inquestionaacutevel da verdade como responsaacutevel pela enunciaccedilatildeo Na Greacutecia
arcaica havia a forccedila da palavra maacutegico-religiosa mas com a implantaccedilatildeo da poacutelis
surge a forccedila da palavra dialoacutegica Como consequecircncia das evidentes mudanccedilas
histoacutericas a aleacutetheia passa a ser valorizada pelas seitas filosoacuteficas enquanto
sofiacutestica e retoacuterica privilegiam a apaacutete37
Considerando algumas contribuiccedilotildees de Detienne (1988 p17) sobre a construccedilatildeo
da verdade na cultura grega nota-se que a passagem da cultura da oralidade para
a cultura da escrita foi um processo lento que contribuiu para uma nova maneira de
pensar e elaborar o proacuteprio conhecimento A memoacuteria valorizada na poesia jaacute natildeo eacute
considerada como fonte exclusiva de busca da verdade Desse modo a verdade
natildeo eacute dada no seu produto final de acordo com a inspiraccedilatildeo do poeta mas passa a
ser construiacuteda e conquistada
Outra fonte que conteacutem abordagens sobre oralidade e escrita eacute encontrada em
resultados das pesquisas de Havelock (1986 p 23-24) que apontam Soacutecrates
como um ponto central entre a escrita e a oralidade na Antiguidade grega sendo um
37
Segundo Detienne (1988 p 61) no campo da poesia a doxa (opiniatildeo) se opotildee agrave aleacutetheia com afinidades com a apaacutete (engano) e com a ambiguidade e como termo teacutecnico-poliacutetico mais do que religioso Detienne (1988 p 58) cita o poeta Simocircnides de Ceacuteos (556 aC 468 aC) poeta grego que passa a praticar a poesia como um ofiacutecio produzindo seus poemas por encomenda e cobrando honoraacuterios por seus serviccedilos Para Simocircnides a memoacuteria eacute o instrumento que contribui para o aprendizado de um ofiacutecio e no lugar da aleacutetheia ele reivindica a doxa Simocircnides era um poeta que tambeacutem se dedicava agrave criaccedilatildeo de epigramas e eacute citado por Quintiliano (Inst Or XI 211-12)
45
mantenedor da tradiccedilatildeo da oralidade natildeo como um exerciacutecio de memorizaccedilatildeo
poeacutetica mas como um instrumento prosaico que pudesse romper com os ditames
praticados desde a Greacutecia arcaica Soacutecrates aprimorou e reelaborou certos aspectos
da manifestaccedilatildeo da linguagem oral tanto no uso do vocabulaacuterio quanto na
organizaccedilatildeo da estrutura da liacutengua Seus continuadores atraveacutes da dinacircmica da
escrita em forma de diaacutelogo de certo modo demonstraram o valor da oralidade e
contribuiacuteram para um avanccedilo no campo da loacutegica Segundo Havelock (1986 p 24-
27) a literatura grega havia sido poeacutetica porque a poesia cumpria uma funccedilatildeo
social pois visava preservar a tradiccedilatildeo que era ensinada e memorizada pela
oralidade A oposiccedilatildeo de Platatildeo agrave poesia poderia estar direcionada agrave essa funccedilatildeo
didaacutetica da poesia O surgimento do platonismo identificado com a apariccedilatildeo da
prosa escrita em forma de diaacutelogo representou uma fase de transiccedilatildeo entre
oralidade e escrita A permanecircncia da influecircncia da oralidade se manteve de forma
indireta atraveacutes do funcionamento do teatro em que os diaacutelogos eram valorizados A
forma de diaacutelogo tambeacutem contribuiu para a comunicaccedilatildeo entre ausentes por meio
da correspondecircncia unindo oralidade e escrita Foucault situou suas pesquisas
nesse ambiente da cultura letrada procurando observar o modo como a escrita
contribuiacutea para a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo e o processo de subjetivaccedilatildeo que o
envolvia naturalmente
Na aula introdutoacuteria do curso de 1982 Foucault expocircs seu objetivo em analisar o
cuidado de si observaacutevel a partir do seacuteculo V a C partindo de Soacutecrates em sua
reflexatildeo do jaacute mencionado aforismo grego ldquoconhece-te a ti mesmordquo Foucault (2004
p 151) fez um levantamento dos modos e efeitos da escrita de si entre os estoicos
da terceira fase apontando para essa escrita etopoieacuteitica que aparece nos escritos
na forma dos hupomnecircmata38 e correspondecircncia Nessa abordagem os
hupomnecircmata contribuem para a constituiccedilatildeo de si mesmo atraveacutes de uma accedilatildeo
intencional e racional que permite a apropriaccedilatildeo de um jaacute dito selecionado pelo
exerciacutecio da leitura constituindo dessa forma o processo de subjetivaccedilatildeo na
elaboraccedilatildeo dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros O ato de
38
No dicionaacuterio grego-portuguecircs (2008) o termo υπόμνημα (hupomnema) eacute uma palavra grega no singular e o plural eacute υπομνήματα (hupomnecircmata) Este termo no plural se refere aos registros em uma caderneta de notas usada para destaques de leituras realizadas comentaacuterios e observaccedilotildees Foucault (2004 p 147) informa que na Antiguidade as notas serviam como um guia de conduta para um puacuteblico que as usava como fonte de consulta Nas anotaccedilotildees eram registrados fragmentos de obras anotaccedilotildees reflexotildees testemunhos de coisas vistas e ouvidas Esse material catalogado servia como memoacuteria das mais variadas leituras em todos os sentidos
46
escrever e a praacutetica das anotaccedilotildees favoreciam a aquisiccedilatildeo e internalizaccedilatildeo dos
discursos verdadeiros
Para situar a importacircncia do valor da leitura e anotaccedilotildees como uma praacutetica de
exerciacutecios pode-se tambeacutem encontrar no contexto do I seacuteculo dC algumas
contribuiccedilotildees de Quintiliano na obra Institutio Oratoria
Deve-se igualmente deixar reservado um espaccedilo no qual se registrem todas as ideias que aos que escrevem costumam ocorrer fora de ordem ou seja satildeo ideias diferentes relativamente aos assuntos que no momento estejam sendo tratados Irrompem agraves vezes excelentes ideias que nem eacute conveniente as inserir naquele exato momento nem eacute seguro deixaacute-las agrave solta pois nesse espaccedilo de tempo elas se esvaem elas impedem de outras descobertas aqueles que as querem guardar de memoacuteria Assim o melhor a fazer eacute que estejam em depoacutesito (QUINTILIANO Inst Or X 3 33)
As contribuiccedilotildees da escrita dos hupomnecircmata e da correspondecircncia satildeo distintas
entre si mas complementares Quanto agrave correspondecircncia Foucault (2004 p156)
afirma que ldquoa reciprocidade que a correspondecircncia estabelece natildeo eacute simplesmente
a do conselho e da ajuda ela eacute a do olhar e do examerdquo Assim nessa mesma
passagem esse autor considera que ldquoa carta que como exerciacutecio trabalha para a
subjetivaccedilatildeo do discurso verdadeiro para sua assimilaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo como um
bem proacutepriordquo Quanto aos hupomnecircmata cuja funccedilatildeo eacute a constituiccedilatildeo de si a partir
dos discursos dos outros depois de internalizados contribuem para a aquisiccedilatildeo e
instauraccedilatildeo do discurso verdadeiro atingindo o caraacuteter da accedilatildeo
O discurso verdadeiro como tratado por Foucault (1996 p 14-20) estaacute diretamente
ligado agrave concepccedilatildeo de sujeito e verdade como percebidos por ele tanto em
diferentes contextos histoacutericos da Modernidade quanto da Antiguidade Na
Modernidade o sujeito eacute constituiacutedo pela forccedila da influecircncia do saber e do poder
geradores da vontade de verdade que determina a orientaccedilatildeo do discurso
verdadeiro Na Antiguidade em especial os seacuteculos I e II dC o sujeito se constituiacutea
pela busca do discurso verdadeiro atraveacutes de exerciacutecios e teacutecnicas como a leitura e
a escrita que contribuiacuteam para uma constituiccedilatildeo de ecircthos39 de verdade Entatildeo o
39
Aristoacuteteles na Retoacuterica (I 2 1356a) considera o ecircthos em uma perspectiva da argumentaccedilatildeo em que o papel primordial do orador eacute argumentar e convencer o ouvinte a aceitar suas posiccedilotildees e ideias Quintiliano na obra Institutio Oratoria (VI 211-13) observa que o ecircthos (ἦθος) pode ser apreendido como formas de manifestaccedilatildeo do comportamento humano O que estaacute relacionado ao caraacuteter do indiviacuteduo eacute revelado atraveacutes de seu proacuteprio discurso Fica subentendido nas consideraccedilotildees de Quintiliano que determinadas virtudes devem estar latentes no orador para que ele tenha controle sobre seu discurso e saiba lidar com sabedoria mediante reaccedilotildees imprevisiacuteveis por parte do ouvinte A concepccedilatildeo de ethos na anaacutelise de do discurso engloba os dois sentidos recorrentes na retoacuterica grega e romana sem uso de acento na palavra
47
fato preponderante que favorece as condiccedilotildees para o discurso ser designado como
verdadeiro eacute o fato de estar submetido ao princiacutepio da accedilatildeo que possibilita ao
indiviacuteduo a capacidade de enfrentamento de desafios ao longo da proacutepria
existecircncia
Ao refletir sobre a escrita de si Foucault (2004) resgatou da Antiguidade algumas
consideraccedilotildees que demonstram determinadas razotildees desse tipo de escrita
Inicialmente no texto de Foucault satildeo feitas algumas abordagens sobre a escrita
como forma de exerciacutecio que auxilia na apreensatildeo do sentido de viver sendo a
escrita o resultado de recolha das diferentes leituras tanto de textos escritos como
tambeacutem da proacutepria vida
O papel da escrita eacute constituir com tudo que a leitura constituiu um corpo E este corpo haacute que entendecirc-lo natildeo como um corpo de doutrinas mas sim - de acordo com a metaacutefora tantas vezes evocada da digestatildeo - como o proacuteprio daquele que ao transcrever as suas leituras se apossou delas e fez sua a respectiva verdade a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forccedila e em sangue Ela transforma-se no proacuteprio escritor num princiacutepio de accedilatildeo racional (FOUCAULT 2004 p 152)
Na continuidade de sua busca na Antiguidade Foucault encontrou em Secircneca uma
rica fonte de reflexotildees tanto para essas consideraccedilotildees sobre o papel da escrita
como tambeacutem para a concepccedilatildeo de identidade do escritor a partir das influecircncias
que a proacutepria leitura imprime na subjetividade sendo o sentido de leitura
considerado em sua ampla abrangecircncia
Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora deve tornar-se possiacutevel formar para si proacuteprio uma identidade atraveacutes da qual se lecirc uma genealogia espiritual inteira Num mesmo coro haacute vozes altas baixas e medianas timbres de homem e de mulher Nenhuma voz individual se pode aiacute distinguir soacute o conjunto se impotildee ao ouvido Assim quero eu que seja com a nossa alma que ela faccedila boa provisatildeo de conhecimentos de preceitos de exemplos tirados de mais do que uma eacutepoca mas
convergentes numa unidade (FOUCAULT 2004 p153)
Foucault tomou o proacuteprio texto de Secircneca como base do desenvolvimento de
argumentos sobre a manifestaccedilatildeo de si na escrita da missiva Assim ele avalia as
condiccedilotildees histoacutericas que formam o pano de fundo na ocorrecircncia da troca de
correspondecircncia entre Secircneca e Luciacutelio O momento em que Secircneca escreve
Epiacutestolas Morais eacute localizado no final de sua carreira profissional40 encontrando-se
40
Secircneca se abre para Luciacutelio dizendo ldquoretirei-me natildeo soacute dos homens como dos negoacutecios comeccedilando com os meus proacuteprios estou trabalhando para a posteridade Vou compondo alguma
48
retirado de suas funccedilotildees puacuteblicas Pelo contraacuterio Luciacutelio como estinataacuterio fictiacutecio ou
real das epiacutestolas estava em plena atividade exercendo funccedilotildees puacuteblicas
importantes Destaca-se que a figura de Secircneca nesse cenaacuterio natildeo se limita em
suas epiacutestolas agraves informaccedilotildees ou aconselhamentos como princiacutepio de conduta A
esse respeito o proacuteprio Secircneca comenta ldquoComo natildeo havemos de gostar de receber
uma correspondecircncia que nos traz a marca autecircntica a escrita pessoal de um amigo
ausenterdquo (Ep 401)
Em uma anaacutelise de texto autobiograacutefico Rago (2011 p 7) interliga essa produccedilatildeo
textual a uma escrita que problematiza a sujeiccedilatildeo e identidade daquele que escreve
A escrita de si eacute uma demonstraccedilatildeo da subjetividade que se torna aberta ao outro
em suas diferentes formas de apariccedilatildeo O gecircnero autobiograacutefico com prestiacutegios de
identificador da escrita de si em determinados aspectos apresenta certa
proximidade com o gecircnero epistolar como espaccedilo enunciativo que constitui a
presenccedila de um locutor em primeira pessoa Mesmo trazendo outras vozes para a
enunciaccedilatildeo a responsabilidade eacute a de um EU como remetente que se dirige a um
TU como destinataacuterio das epiacutestolas Em vaacuterias partes de sua correspondecircncia
Secircneca se coloca em primeira pessoa dirigindo-se ao seu destinataacuterio
Fico sempre muito alegre quando recebo cartas tuas Elas enchem-me de esperanccedila e mais do que promessas jaacute me trazem certezas a teu respeito Continua assim eacute o que te peccedilo com toda a insistecircncia (Ep 191) Natildeo penses que te escrevo para dizer como o inverno que aliaacutes foi curto e pouco rigoroso se portou bem conosco ou como a primavera estaacute desagradaacutevel ou como o frio chegou fora do tempo Isso satildeo frioleiras de quem fala por falar Eu soacute escrevo aquilo que sinto ter utilidade quer para ti quer para mim (SEcircNECA Ep 231)
Nessa escrita epistolar de si mesmo trata-se de fazer coincidir o olhar do outro e
aquele que se lanccedila sobre si mesmo ao comparar suas accedilotildees cotidianas com as
regras de uma teacutecnica de vida Fenocircmeno semelhante ao que ocorre na instauraccedilatildeo
da cena enunciativa da escrita das epiacutestolas de Secircneca presentifica-se tambeacutem na
constituiccedilatildeo da enunciaccedilatildeo do discurso na epiacutestola de Paulo agrave igreja de Corinto
atraveacutes de uma evocaccedilatildeo do uso da escrita em primeira pessoa ldquoAleacutem disto eu
Paulo vos rogo pela mansidatildeo e benignidade de Cristo eu que na verdade
quando presente entre voacutes sou humilde mas ausente ousado para convosco (2
Cor 101)
coisa que lhe possa vir a ser uacutetil passo ao papel alguns conselhos salutares como as receitas dos remeacutedios uacuteteis (Ep 82)
49
Pode-se tambeacutem ressaltar que a escrita epistolar apresenta dois distintos aspectos
a necessidade do adestramento pessoal na colocaccedilatildeo de si mesmo como remetente
e a necessidade do contato com outro como interlocutor e colaborador na
elaboraccedilatildeo da leitura da imagem daquele que escreve revelando o ecircthos de
verdade Em Secircneca e Paulo a correspondecircncia exerce uma funccedilatildeo instrutora do
ensino Nesses termos os hupomnecircmata contribuem para a constituiccedilatildeo de si
mesmo como objeto de accedilatildeo racional pela apropriaccedilatildeo de um jaacute dito fragmentaacuterio e
escolhido que pelo processo da subjetivaccedilatildeo eacute incorporado ao sujeito comunicante
Por isso o repertoacuterio demonstrado atraveacutes da escrita das epiacutestolas reflete a
presenccedila de elementos resultantes de leituras estudos e ainda uma cuidadosa
observaccedilatildeo do cotidiano da vida formando desse modo uma construccedilatildeo doutrinaacuteria
de acordo com a posiccedilatildeo discursiva de cada autor Para Secircneca leitura e escrita
deveriam andar de matildeos dadas por essa razatildeo ele dizia eacute preciso ler mas tambeacutem
escrever
[] devemos imitar as abelhas discriminar os elementos colhidos nas diversas leituras e depois aplicando-lhes toda a atenccedilatildeo todas as faculdades da nossa inteligecircncia transformar num produto de sabor individual todos os vaacuterios sucos coligidos de modo a que mesmo quando eacute visiacutevel a fonte donde cada elemento proveacutem ainda assim resulte um produto diferente daquele onde se inspirou (SEcircNECA Ep 845)
Secircneca usa a imagem da abelha na colheita dos elementos que ela suga para
resultar na produccedilatildeo do mel Essa metaacutefora eacute utilizada para reflexatildeo sobre a
importacircncia da leitura como colheita de elementos que contribuem para proveito e
enriquecimento intelectual do leitor Por um lado essa epiacutestola conteacutem partes
profundas para reflexatildeo do destinataacuterio que a recebe Por outro lado ela reflete por
parte do remetente o prazer e realizaccedilatildeo no campo da leitura Na escrita do gecircnero
epistolar Secircneca e Paulo natildeo se limitavam a dar notiacutecias ou conselhos aos seus
destinataacuterios mas continuavam a se exercitar por dois princiacutepios invocados eacute
necessaacuterio adestrar-se durante toda a vida e contar com a ajuda do outro na
elaboraccedilatildeo da alma sobre si mesma Tais consideraccedilotildees intensificam o princiacutepio de
que quem ensina se instrui pois a epiacutestola que eacute enviada para ajudar ao
destinataacuterio constitui-se tambeacutem em um treino para aquele que escreve Assim a
escrita que ajuda o destinataacuterio arma aquele que escreve e eventualmente terceiros
que a leiam
50
Amossy (2005 p 9) afirma que ldquotodo ato de tomar a palavra implica a construccedilatildeo
de uma imagem de si Para tanto natildeo eacute necessaacuterio que o locutor faccedila seu
autorretrato detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de sirdquo Eacute
nessa perspectiva que se torna possiacutevel situar a escrita de si e sua manifestaccedilatildeo no
discurso em especial no gecircnero epistolar que tem sua base no diaacutelogo A partir do
momento em que o remetente ocupa seu lugar na interaccedilatildeo da correspondecircncia
naturalmente a imagem de si eacute recebida pelo destinataacuterio
Essas colocaccedilotildees contribuem como auxiacutelio na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e
Paulo como remetentes que se colocam em primeira pessoa apresentando-se como
conselheiros que passam suas experiecircncias para os destinataacuterios reafirmando
tambeacutem suas proacuteprias convicccedilotildees e valores direcionados por fundamentos de
discursos constituintes
22 SUJEITO E AUTORIA
Na aula inaugural como professor no Collegravege de France (1971) Foucault tambeacutem
abordou o tema da autoria retomando alguns pontos da conferecircncia de 1969
intitulada O que eacute o autor Atualmente reivindica-se o retorno do autor fortalecido
principalmente com as obras autobiograacuteficas Poreacutem o conceito de autor pensado
na atualidade natildeo retoma a mesma identificaccedilatildeo do sujeito cartesiano Nos
paracircmetros desse novo olhar do sujeito se apresenta uma duplicidade que o proacuteprio
binocircmio sujeitoautor sugere Partindo das discussotildees sobre autoria Foucault
levantou questotildees fundamentais para revisatildeo das abordagens que enfocavam o
desaparecimento do autor Ele procurou mostrar que havia um equiacutevoco quanto agrave
ideia das funccedilotildees do autor Ao se considerar o poder e autoridade do autor sobre o
seu proacuteprio texto natildeo se levou em conta que as reais funccedilotildees do autor natildeo estavam
ligadas ao domiacutenio do texto Para delinear o caminho que seria percorrido como
resposta agrave sua proacutepria indagaccedilatildeo Foucault procurou distinguir e identificar na obra
determinadas funccedilotildees inerentes ao autor
Um nome de autor natildeo eacute simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento que pode ser substituiacutedo por um pronome etc) ele exerce certo papel em relaccedilatildeo ao discurso assegura uma funccedilatildeo classificatoacuteria tal nome permite reagrupar certo nuacutemero de textos delimitaacute-los deles excluir alguns opocirc-los a outros [] o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso [] A funccedilatildeo autor eacute portanto caracteriacutestica do modo de existecircncia de circulaccedilatildeo e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade (FOUCAULT 2001 p 273-274)
51
Essas contribuiccedilotildees de Foucault para as discussotildees de autoria satildeo de suma
importacircncia porque elas natildeo se fecham em uma classificaccedilatildeo restrita de funccedilotildees do
autor Tais posturas adotadas favorecem o estabelecimento de novas concepccedilotildees
que podem ser apreendidas com relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees tomadas pelo sujeito no
discurso em diferentes momentos histoacutericos Chartier em suas indagaccedilotildees sobre
questotildees da autoria faz os seguintes comentaacuterios em relaccedilatildeo agraves colocaccedilotildees de
Foucault
A funccedilatildeo autor implica portanto uma distacircncia radical entre o indiviacuteduo que escreveu o texto e o sujeito ao qual o discurso estaacute atribuiacutedo Eacute uma ficccedilatildeo semelhante agraves ficccedilotildees construiacutedas pelo direito que define e manipula sujeitos juriacutedicos que natildeo correspondem a indiviacuteduos concretos e singulares mas que funcionam como categorias do discurso legal Do mesmo modo o autor como funccedilatildeo do discurso estaacute fundamentalmente separado da realidade e experiecircncia fenomenoloacutegica do escritor como indiviacuteduo singular Por outro lado a funccedilatildeo autor que garante a unidade e a coerecircncia do discurso pode ser ocupada por diversos indiviacuteduos colaboradores ou competidores Ao contraacuterio a pluralidade das posiccedilotildees do autor no mesmo texto pode ser referida a um soacute nome proacuteprio (CHARTIER 1999 p 99)
Nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio eacute verificaacutevel um fenocircmeno de linguagem que
corrobora a afirmativa de Chartier de que a coerecircncia do discurso pode ser ocupada
por diversos indiviacuteduos Como determinado por Secircneca no final de algumas
epiacutestolas a Luciacutelio as maacuteximas aparecem ora como um brinde ora como tributo ora
como um precircmio e no final do Livro I ele assim se expressa
Diraacutes tu ldquoEsta frase eacute de Epicuro para quecirc recorrer agrave propriedade alheiardquo Tudo quanto eacute verdade pertence-me E vou continuar a citar-te Epicuro para que todos quantos juram pelas palavras e se interessam natildeo pela ideia mas pelo seu autor fiquem sabendo que as ideias corretas satildeo pertenccedilas de todos (SEcircNECA Ep 1211)
Este trecho da epiacutestola de Secircneca aponta tambeacutem para determinadas questotildees que
identificam discussotildees atuais sobre autor Secircneca tambeacutem questiona a dominaccedilatildeo
autoral defendendo que as ideias lanccediladas pelo autor satildeo de domiacutenio puacuteblico
Foucault procurou analisar esse aspecto da liberdade de acesso aos discursos
identificando que as funccedilotildees de autor na Antiguidade natildeo eram equivalentes agraves da
Modernidade Indiretamente ele demonstrou essa questatildeo atraveacutes dos proacuteprios
textos que ele selecionou para anaacutelise O que Foucault (2001) designou de funccedilotildees
do autor eacute significante no estabelecimento da formaccedilatildeo do cacircnon de textos
sagrados no iniacutecio da era cristatilde Young (2004 p 486) observa que a resposta de
Foucault agraves discussotildees sobre a morte do autor satildeo relevantes para os estudos da
52
literatura cristatilde A questatildeo da atribuiccedilatildeo de autoridade agraves figuras histoacutericas no iniacutecio
do cristianismo evidencia que o tipo coerente do ecircthos do autor era essencial Na
obra Institutio Oratoria (I pr 7) no prefaacutecio Quintiliano informa que apoacutes vinte anos
de dedicaccedilatildeo ao ensino resolveu atender as solicitaccedilotildees de seus amigos para
escrever um manual sobre a arte de falar a partir dos seus ensinamentos de
retoacuterica Nesse contexto Quintiliano menciona que jaacute circulavam dois livros como se
fosse de sua autoria mas na verdade era produccedilatildeo de seus alunos que tomaram as
aulas de retoacuterica como fonte recorrendo ao nome de Quintiliano com a
responsabilidade da autoria como forma de homenageaacute-lo Portanto nota-se que
naquele periacuteodo histoacuterico as questotildees de autoria eram mediadas por haacutebitos da
proacutepria cultura Esse fato contribui para o entendimento da proliferaccedilatildeo de obras
consideradas apoacutecrifas Secircneca sobre a citaccedilatildeo de outros pensadores assim se
expressa ldquofiquem sabendo que as ideias corretas satildeo pertenccedilas de todosrdquo (Ep
1211) Por um lado fica evidente que a funccedilatildeo de autor naquele momento da
histoacuteria natildeo era de exclusividade e posse de seu proacuteprio texto Por outro lado havia
um valor moral para o sentido de ldquoideias corretasrdquo
De acordo com as concepccedilotildees de funccedilotildees que o sujeito pode exercer como autor
Ruden (2013 p13) em suas pesquisas sobre a trajetoacuteria literaacuteria da Antiguidade
claacutessica ressalta que Paulo foi indubitavelmente considerado como um autor e
identificado como escritor greco-romano Sua posiccedilatildeo institucional seus escritos em
primeira pessoa colocados como resultado de seus pensamentos e experiecircncias o
tornam um personagem histoacuterico definido pela responsabilidade de seu proacuteprio
nome Se o sujeito eacute responsaacutevel pela execuccedilatildeo de funccedilotildees do autor logo seraacute
considerado autor quando estiver no exerciacutecio dessa funccedilatildeo
Na segunda epiacutestola aos Coriacutentios percebe-se uma colocaccedilatildeo de Paulo que o situa
exatamente nessa regiatildeo fronteiriccedila entre sujeito e autor como pensado atualmente
ldquoNatildeo quero dar impressatildeo de incutir-vos medo por meio de minhas cartas pois as
cartas dizem satildeo severas e energeacuteticas mas ele uma vez presente eacute homem
fraco e sua linguagem eacute despreziacutevelrdquo (2 Cor10 8-10) Na visatildeo desses comentaacuterios
de Paulo percebe-se uma dualidade que favorece uma contraposiccedilatildeo entre as
figuras de autor e de sujeito mas que na realidade satildeo elementos inseparaacuteveis pois
um natildeo existe sem o outro Nesse sentido Maingueneau (2012 p 136) argumenta
que as formas de subjetivaccedilatildeo natildeo satildeo justapostas pelo desempenho de um sujeito
53
biograacutefico e um sujeito enunciador mas o discurso eacute circunscrito em uma base que
se apoia em trecircs instacircncias a pessoa o escritor e o inscritor41 Vale ressaltar que
cada instacircncia eacute atravessada pelas outras natildeo havendo uma ordem e nem
valoraccedilatildeo de sua presenccedila no discurso pois as trecircs se sustentam reciprocamente
Natildeo haacute a predominacircncia da pessoa com sua identidade pessoal em seguida o
escritor que define as escolhas da trajetoacuteria de sua escritura e o enunciador
responsaacutevel pela direccedilatildeo da cena enunciativa Essas instacircncias formam um anel e
satildeo inseparaacuteveis
De acordo com a abordagem de Foucault as funccedilotildees do autor recaem sobre um
sujeito que responde por elas O autor deve ser concebido natildeo simplesmente como
o indiviacuteduo que pronunciou ou escreveu seu discurso mas como ldquoprinciacutepio de
agrupamento do discurso como unidade e origem de suas significaccedilotildees como foco
de sua coerecircnciardquo (FOUCAULT 1996 p 25) Segundo Maingueneau (2012 p 135)
ao mesmo tempo o sujeito do fazer literaacuterio incorpora as trecircs instacircncias
sujeitopessoa sujeitoescritor e sujeitoinscritor Desse modo essas trecircs instacircncias
inseparaacuteveis e responsaacuteveis pela execuccedilatildeo do discurso tambeacutem respondem pelas
funccedilotildees de autor que delas dependem
Young (2004 p 486) relaciona as funccedilotildees do autor com os trecircs elementos que
compotildeem a prova do discurso na retoacuterica antiga ecircthos paacutethos e loacutegos Assim eacute
essencial o ecircthos de autor o reconhecimento dos leitores e a importacircncia da forccedila
persusiva do discurso Nota-se que a retoacuterica no contexto imperial romano tinha
como papel destacar a importacircncia do inventio na determinaccedilatildeo do objeto a ser
tratado no discurso alcanccedilando um estilo que permitisse abordar os toacutepicos a serem
desenvolvidos A formalidade da retoacuterica como teacutecnica de organizaccedilatildeo do discurso
surge na Greacutecia e encontra ambiente favoraacutevel para sua estabilizaccedilatildeo entre os
latinos tornando-se um meio dinamizador no sistema educacional romano
41
Segundo Maingueneau (2012 p 136) o termo pessoa refere-se ao indiviacuteduo dotado de um estado civil de uma vida privada O escritor designa o ator que define uma trajetoacuteria na instituiccedilatildeo que ele representa O inscritor eacute o responsaacutevel pelas formas de subjetivaccedilatildeo enunciativa da cena de fala contida no texto como tambeacutem a cena que o proacuteprio gecircnero adotado impotildee
54
3 A RETOacuteRICA NA ANTIGUIDADE
A retoacuterica natildeo eacute simplesmente recurso de ornamento mas condiccedilatildeo da estrutura do discurso e o direcionamento para o meacutetodo da meditaccedilatildeo Albrech (2008 p 124)
De acordo com Detienne (1988 p 60) a lenta passagem da fase da oralidade para
implementaccedilatildeo da escrita promoveu significantes mudanccedilas nas caracteriacutesticas
originais do pensamento na Greacutecia arcaica A poesia amplia sua atuaccedilatildeo ajustando
sua finalidade reveladora no ambiente do sagrado ao setor profano pois a atividade
poeacutetica42 passa a atender uma demanda de caraacuteter mais social e poliacutetica Nessa
fase histoacuterica identifica-se o surgimento progressivo da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a
verdade
Conforme apontamentos de Pernot (2005 p 7) Homero natildeo tratou das leis da
retoacuterica mas estabeleceu uma relaccedilatildeo entre as ideias de seu tempo com a
importacircncia da palavra pronunciada Este fato tem suas contribuiccedilotildees na retoacuterica do
mundo antigo Alexandre Jr (2005 p 16) pondera que ldquose a literatura eacute nosso
melhor veiacuteculo de acesso agrave cultura e civilizaccedilatildeo gregas o fato eacute que essa literatura
foi em larga medida moldada pela retoacutericardquo
Segundo Alexandre Jr (2005 p18) Peacutericles foi um personagem na poliacutetica grega
que atuou em Atenas em um momento que representa a passagem da Greacutecia de
dominacircncia da poeacutetica (Homero Hesiacuteodo Safo Esquilo e outros) para a Greacutecia de
reflexatildeo da prosa e eloquecircncia poliacutetica da filosofia e da ciecircncia Com o advento da
prosa no campo da filosofia e histoacuteria surge uma nova literatura fornecendo
condiccedilotildees para reconhecimento do discurso retoacuterico O desenvolvimento da
democracia em Atenas contribuiu para a oportunidade de o cidadatildeo expressar-se
por meio do discurso Pernot (2005 p 9) observa que na metade do seacuteculo V aC
Heroacutedoto incluiu em sua obra debates no campo da poliacutetica em relaccedilatildeo agraves accedilotildees
dos persas Nesse momento histoacuterico os sofistas43 tambeacutem desenvolvem uma
42
Detienne (1988 p 58) cita o poeta Simocircnides de Ceacuteos (556 aC 468 aC) poeta grego que passa a praticar a poesia como um ofiacutecio produzindo seus poemas por encomenda e cobrando honoraacuterios por seus serviccedilos Para Simocircnides a memoacuteria eacute o instrumento que contribui para o aprendizado de um ofiacutecio e no lugar da aleacutetheia ele reivindica a doxa Simocircnides era um poeta que tambeacutem se dedicava agrave criccedilatildeo de epigramas e eacute citado por Quintiliano (Inst Or XI 211-12) 43
Segundo Pernot (2005 p 12) certo nuacutemero de pensadores da segunda metade do seacuteculo V aC era tradicionalmente chamado de sofistas Eram originaacuterios de diferentes partes do mundo grego
55
justaposiccedilatildeo de discursos retoacutericos contraditoacuterios no tratamento de temas poliacuteticos
Segundo Pernot (2005 p 10) os sofistas natildeo formavam nenhuma escola ou
movimento e suas produccedilotildees se perderam restando poucos fragmentos Os sofistas
manifestavam um modo de pensar baseado no kairoacutes44 ou seja o tempo oportuno
para a verdade e a justiccedila como construccedilatildeo do discurso Nesse mesmo contexto
Protaacutegoras expotildee uma seacuterie de argumentos aplicados ao mesmo toacutepico construindo
vaacuterios contraacuterios por meio da palavra A partir da noccedilatildeo do valor e o poder da
palavra natildeo era considerada a possibilidade da preacute-existecircncia da justiccedila e da
verdade mas pronunciadas e efetivadas apoacutes o debate A partir de posicionamentos
dos sofistas determinados aspectos da linguagem e do discurso adquiriram novos
sentidos no campo da gramaacutetica como por exemplo distinccedilatildeo de tipos de nomes
sinocircnimos entre outros Os sofistas natildeo limitaram suas atuaccedilotildees nas consideraccedilotildees
teoacutericas mas ampliaram o foco da educaccedilatildeo para o campo da retoacuterica com o
objetivo de tornar o cidadatildeo capacitado em termos de uma fala inteligente
31 CONTRIBUICcedilOtildeES DE GREGOS E ROMANOS PARA A RETOacuteRICA
Vislumbram-se a partir do seacuteculo V aC posicionamentos que permitiram florescer
as primeiras colocaccedilotildees documentadas sobre retoacuterica Alexandre Jr (2005 p 18)
menciona que a partir desse periacuteodo decisivo a democracia se impocircs agrave tirania e
entatildeo Coacuterax e Tiacutesias45 publicaram o primeiro manual de desenvolvimento de uma
retoacuterica com a ideia baacutesica da triparticcedilatildeo proecircmio argumentaccedilatildeo e epiacutelogo
De acordo com as colocaccedilotildees de Shiappa e Hamm (2007 p 5) a maioria dos
pesquisadores sobre retoacuterica concorda que das obras que sobreviveram Goacutergias de
Platatildeo eacute a mais antiga que conteacutem menccedilatildeo ao uso do termo retoacuterica46 Nessa obra
identifica-se na enunciaccedilatildeo dialeacutetica de Platatildeo uma postura criacutetica em combate ao
pensamento sofista com relaccedilatildeo agrave retoacuterica e ao orador Kennedy (1994 p 37)
atuando como educadores com realizaccedilatildeo de palestras e publicaccedilotildees Da lista dos sofistas podem ser citados Protaacutegoras Goacutergias Hiacutepias Proacutedico Criacutetias e outros 44
Conforme informaccedilatildeo de Kennedy (1994 p 35) o conceito de kairoacutes eacute atribuiacutedo a Goacutergias significando o momento oportuno e tempo ideal para dizer ou fazer a coisa certa 45
Alexandre Jr (2005 P 15) menciona que Coacuterax e Tiacutesias eram originaacuterios de Siracusa sendo Coacuterax o mestre de Tiacutesias Eles produziram uma retoacuterica puramente sintagmaacutetica uma retoacuterica que se ocupa das partes do discurso e tem sobretudo a ver com os dispositios organizaccedilatildeo dos argumentos 46
Shiappa e Hamm (2007 p 5) informam que a palavra retoacuterica eacute formada pela junccedilatildeo de dois termos gregos rheacutetor- executor do discurso e ikecirc - arte ou habilidade
56
expotildee que na construccedilatildeo do diaacutelogo de Platatildeo em Goacutergias47 Soacutecrates como
personagem argumenta que a retoacuterica eacute uma teacutecnica ou arte com base no
conhecimento De cordo com este postulado duas categorias de arte podem ser
apontadas a que atinge a alma e a que afeta o corpo Legislaccedilatildeo e justiccedila
estabelecem a boa condiccedilatildeo da alma a ginaacutestica e a medicina garantem o bem
estar do corpo Segundo Kennedy (1994 p 38) a importacircncia da construccedilatildeo deste
diaacutelogo de Platatildeo estaacute em colocar questotildees da moralidade da retoacuterica na sociedade
e a necessidade do conhecimento como base na comunicaccedilatildeo
Posteriormente Platatildeo escreveu o diaacutelogo Fedro48 estabelecendo alguns criteacuterios
acerca de formulaccedilotildees sobre a retoacuterica Kennedy (1994 p 42) apresenta um
resumo desta obra salientando que alguns pontos devem ser considerados O
emissor do discurso deve ter bom conhecimento do objeto em discussatildeo uma boa
compreensatildeo da prova loacutegica e conhecimento da psicologia humana que torna a
argumentaccedilatildeo adequada agrave audiecircncia A partir desses postulados o objetivo da
persuasatildeo deve ser voltado para a accedilatildeo virtuosa justiccedila e a crenccedila na verdade
Ainda remontando aos gregos no acircmbito da retoacuterica Habinek (2005 p 80-83) faz
um paralelo entre Isoacutecrates e outros pensadores gregos em especial Platatildeo e
Aristoacuteteles49 Habinek acentua o papel que Isoacutecrates exerceu no campo da retoacuterica
procurando destacaacute-lo no contexto histoacuterico dos gregos da Antiguidade Segundo
Habinek (2005 p 81) para Isoacutecrates a qualidade do discurso estaacute interligada ao
47
Alexandre Jr (2005 p 21) comenta que Goacutergias imprimiu na retoacuterica uma nova perspectiva de natureza paradigmaacutetica valorizando o estilo e a composiccedilatildeo que tecircm a ver com o elocutio Sua contribuiccedilatildeo foi ter submetido a prosa ao coacutedigo retoacuterico propagando-a como discurso erudito e objeto esteacutetico Fez introduzir a prosa agrave retoacuterica e esta agrave estiliacutestica Kennedy (1994 p 35) relata que em Goacutergias de Platatildeo Soacutecrates visita a casa em que Goacutergias estava em Atenas O diaacutelogo eacute dividido em trecircs partes na primeira Soacutecrates interroga Goacutergias sobre retoacuterica na segunda Goacutergias eacute recolocado pelo seu seguidor Polo na terceira Soacutecrates debate com Caacutelicles sobre justiccedila As questotildees filosoacuteficas do debate se apresentam resumidas sendo mais desenvolvidas em outros diaacutelogos posteriores como A Repuacuteblica e Fedro 48
Na concepccedilatildeo de Alexandre Jr (2005 p 28) a retoacuterica no diaacutelogo de Goacutergias eacute mais sofiacutestica e no diaacutelogo Fedro eacute mais filosoacutefica Aristoacuteteles desenvolve os postulados da retoacuterica com algumas influecircncias de Platatildeo mas eacute mais pragmaacutetico em relaccedilatildeo agrave heranccedila da retoacuterica em Fedro Para Aristoacuteteles a funccedilatildeo da retoacuterica natildeo eacute persuadir como no Goacutergias e no Fedro mas sim teorizar sobre o modo de persuadir (Ret 11355b) 49
Segundo Habinek (2005 p 81) ldquounlike Aristotle who accepts that rhetoric is the art of finding the most effective means of persuasion and thus seeks to systematize its study and presentation Isocrates makes of rhetoric a collaborative process of deliberation one that claims to produce both sound political judgment and trustworthy political agentsrdquo (Diferente de Aristoacuteteles que aceita a retoacuterica como arte de encontrar os meios mais eficazes de persuasatildeo e assim procura sistematizar o seu estudo e apresentaccedilatildeo Isoacutecrates faz da retoacuterica um processo colaborativo de deliberaccedilatildeo que pretende produzir tanto juiacutezo poliacutetico soacutelido como agentes poliacuteticos confiaacuteveis)
57
estatuto moral do orador pois aqueles oradores que satildeo dignos de confianccedila satildeo os
que melhor cuidam de seu discurso em todos os aspectos A heranccedila desse
pensamento de Isoacutecrates serve como influecircncia para os romanos fenocircmeno esse
identificaacutevel nas formulaccedilotildees de Quintiliano no que diz respeito agrave retoacuterica na obra
Institutio Oratoria (VI 2 17-18) pois o ecircthos denota o caraacuteter moral do orador
No que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre retoacuterica e verdade Aristoacuteteles tomou outra
direccedilatildeo em suas reflexotildees Em sua pesquisa sobre a retoacuterica antiga Mosca (2004)
comenta que Aristoacuteteles procurou demonstrar uma ligaccedilatildeo da retoacuterica com a
persuasatildeo desvinculando-a da noccedilatildeo de verdade Aristoacuteteles contribuiu para a
ampliaccedilatildeo das discussotildees referentes agrave dialeacutetica entre verdade e aparecircncia da
verdade indicando que a representaccedilatildeo da verdade ldquoemerge do senso comum e se
corporifica nos discursos do homemrdquo (MOSCA 2004 p 21)
Aristoacuteteles formulou alguns pontos de sua teoria atraveacutes da obra Retoacuterica definindo
o tratamento dessa retoacuterica como o estudo dos meios de persuasatildeo Provavelmente
com base nas discussotildees e anotaccedilotildees das aulas na academia de Platatildeo construiu
pressupostos da retoacuterica que posteriormente serviram de fontes para posiccedilotildees
concordantes e discordantes tambeacutem No Livro I Aristoacuteteles estabelece uma
diferenciaccedilatildeo entre as funccedilotildees da dialeacutetica e da retoacuterica e o conceito desta assume
uma posiccedilatildeo abrangente ldquoEntendemos por retoacuterica a capacidade de descobrir o que
eacute adequado a cada caso com o fim de persuadirrdquo (Ret I 2 1356a )50 No decorrer do
Livro II Aristoacuteteles desenvolve todo um percurso com demonstraccedilotildees de estrateacutegias
para um possiacutevel ecircxito da argumentaccedilatildeo no discurso Como destaque para o
alcance de uma determinada finalidade no discurso ele aponta o uso das maacuteximas
como uma investidura para alcance do propoacutesito moral de um discurso ldquoTecircm caraacuteter
eacutetico os discursos que manifestam claramente a intenccedilatildeo do oradorrdquo A esta
premissa Aristoacuteteles acrescenta que ldquotodas as maacuteximas cumprem essa funccedilatildeo
porque exprimem de forma geral as intenccedilotildees daquele que as enunciardquo (Ret II
1395b) Nota-se que Secircneca era concordante com essa postura de Aristoacuteteles visto
que no final de suas epiacutestolas ele fazia questatildeo de registrar uma maacutexima que
pudesse concorrer para o fortalecimento de seus conselhos como nas epiacutestolas
iniciais de sua coleccedilatildeo ele escolhe a citaccedilatildeo de maacuteximas de Epicuro ldquoEacute um bem
50
As traduccedilotildees da obra Retoacuterica de Aristoacuteteles usadas nesta pesquisa satildeo de Manuel Alexandre
Junior (2005)
58
desejaacutevel conservar a alegria na pobrezardquo (Ep 26) Da mesma forma Paulo
tambeacutem usou desse recurso como por exemplo na segunda epiacutestola aos Coriacutentios
ldquoa letra mata mas o espiacuterito vivicardquo (2Cor 3 6)51 O uso de maacuteximas nas epiacutestolas
de Secircneca e de Paulo eacute abordado e analisado na terceira parte deste trabalho
No livro III Aristoacuteteles volta-se para o estilo da linguagem e a forma de organizaccedilatildeo
do discurso Algumas questotildees satildeo levantadas sobre o valor do uso das metaacuteforas
na composiccedilatildeo estiliacutestica do discurso Alexandre Jr (2005 p 48) observa que
ldquoAristoacuteteles faz correlaccedilatildeo entre o raciociacutenio metafoacuterico e o silogiacutestico pois as regras
fundamentais para o uso retoacuterico das metaacuteforas satildeo as mesmas para o uso
silogiacutesticordquo Em alguns aspectos as metaacuteforas implicam enigmas e um bom enigma
pode fornecer uma boa metaacutefora (Ret III 21405b) Pode-se pensar que em muitas
situaccedilotildees as analogias das metaacuteforas devem ser inferidas pois mesmo natildeo estando
claramente referidas uma observaccedilatildeo mais atenta pode contribuir para captar os
sentidos Quanto ao efeito do uso da metaacutefora Aristoacuteteles faz o seguinte
comentaacuterio
A maioria das expressotildees ldquoelegantesrdquo deriva da metaacutefora e radica no engano preacutevio do ouvinte Pois torna-se mais evidente que se aprende algo se os elementos resultam ao contraacuterio do que se esperava e o espiacuterito parece dizer ldquocomo eacute verdade e eu estava enganadordquo (Ret III 1412a)
A partir das contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles para os estudos da retoacuterica a forccedila da
metaacutefora no discurso eacute um ponto de destaque para esta pesquisa No percurso da
anaacutelise que se estabelece neste trabalho a funccedilatildeo retoacuterica da metaacutefora eacute pontuada
como uma forccedila argumentativa e persuasiva nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo Para
realizaccedilatildeo dos propoacutesitos definidos parte-se do princiacutepio de que o lugar comum
representa uma fonte de conhecimentos compartilhados em que se pode extrair
argumentos aplicaacuteveis agrave execuccedilatildeo de um determinado discurso Hansen (2012 p
161) observa que na retoacuterica antiga os termos toacutepos em grego e locus em latim
significam o encontro de algo jaacute estabelecido entre falantes possibilitando a
descoberta de novos aspectos e sentidos a serem introduzidos no discurso O uso
de determinadas metaacuteforas nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo funciona como marca
que pode ser estabelecida como um lugar comum que contribui para sustentar
51
No conto O Livro Borges (2011 p 13) faz referecircncia a essa passagem biacuteblica como uma intertextualidade com as ideias do pensamento pitagoacuterico ldquoConsideremos o primeiro caso Pitaacutegoras Sabemos que Pitaacutegoras optou por natildeo escrever Natildeo escreveu porque natildeo quis se prender a uma palavra escrita Sentiu sem duacutevida aquela histoacuteria de que a letra mata mas o espiacuterito vivifica que depois estaria na Biacutebliardquo
59
certos argumentos no desenvolvimento de toacutepicos que constituem o discurso Os
postulados teoacutericos desenvolvidos por Aristoacuteteles tiveram continuidade na histoacuteria da
retoacuterica antiga sendo redimensionados e adaptados nos estudos que se seguiram
Alexandre Jr (2005 p 54-54) considera que no periacuteodo Heleniacutestico a expansatildeo do
desenvolvimento das escolas filosoacuteficas manteve certas ligaccedilotildees com o aristotelismo
e alexandrismo na continuidade da histoacuteria da retoacuterica possibilitando o fundamento
das raiacutezes da retoacuterica filosoacutefica em Roma52 Alexandre Jr (2005 p 59) ressalta as
produccedilotildees de Teofrasto (sucessor de Aristoacuteteles) sobre as virtudes do estilo e os
estudos de Demeacutetrio de Faleros53 sobre o periacuteodo oratoacuterio o estilo e a composiccedilatildeo
Na sequecircncia dos destaques Heacutermagoras de Temnos54 eacute citado por sua
contribuiccedilatildeo para a vinculaccedilatildeo da tese agrave retoacuterica e o desenvolvimento da teoria dos
estados de causa aproveitando e diversificando o sistema retoacuterico aristoteacutelico
Deve-se tambeacutem a Hermaacutegoras a teoria da inventio e sua influecircncia na Rhetorica
ad Herennium e nos escritos de Ciacutecero e Quintiliano55
Segundo as observaccedilotildees de Kennedy (1994 p 121) natildeo haacute nenhum conhecimento
de alguma fonte hIstoacuterica que certifique a autoria do tratado Retoacuterica a Herecircnio que
foi estudado durante a Idade Meacutedia como um trabalho de Cicero conhecido como
Rhetorica Secunda Os latinistas renascentistas perceberam a natildeo veracidade da
autoria de Ciacutecero e defenderam o nome de Cornificio como possiblidade de
responsabilidade pela obra com base em referecircncias apresentadas por Quintiliano
52
Segundo Kennedy (1994 p 90) no periacuteodo Heleniacutestico os estudos retoacutericos eram frequentes entre os orientais da Aacutesia Menor O estoicismo tornou-se a mais popular escola filosoacutefica e especialmente entre os romanos a austeridade moral estoica assemelhou-se aos ideais dos valores da tradiccedilatildeo romana A teoria retoacuterica estoacuteica eacute provavelmente derivada de escritos de Dioacutegenes da Babilocircnia liacuteder da escola na primeira metade do seacuteculo II a C As contribuiccedilotildees estoacuteicas para a retoacuterica vieram em parte de seu estudo de gramaacutetica Kennedy (1994 p160) informa que Apolodoro de Peacutergamo foi escolhido por Juacutelio Ceacutesar para mestre de retoacuterica de Otaacutevio (45 aC) Teodoro de Gadara foi seguidor de Apolodoro e mestre do futuro imperador Tibeacuterio 53
Alexandre Jr (2005 p 59) expotildee que haacute uma discussatildeo sobre a autenticidade da autoria de Demeacutetrio de Faleros da obra De elocutione Em razatildeo desse questionamento agraves vezes a designaccedilatildeo aparece como Pseudo-Demeacutetrio 54
Segundo Kennedy (1994 p 167) Hermaacutegoras de Temnos o reacutetor que atuou em Roma no seacuteculo II aC estabeleceu a distinccedilatildeo entre tese e hipoacutetese nos estudos retoacutericos A tese trata de assuntos gerais e a hipoacutetese de casos particulares do tema geral Hermaacutegoras era um mestre grego e escreveu sobre os fundamentos retoacutericos em sua proacutepria liacutengua 55
O proacuteprio Quintiliano (Inst Or III 1 15-16) indica as contribuiccedilotildees de Isoacutecrates mas ressalta que a obra de Aristoacuteteles eacute mais completa Ele cita tambeacutem Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles mencionando sua cuidadosa produccedilatildeo em retoacuterica A estes satildeo acrescentados tambeacutem os peripateacuteticos e estoicos e o zelo devotado aos estudos da retoacuterica Nas referecircncias agraves contribuiccedilotildees de retoacutericos estaacute incluiacutedo tambeacutem Hermaacutegoras em sua proacutepria trajetoacuteria seguida pelos seus disciacutepulos Apoacutes a apresentaccedilatildeo de uma lista de citaccedilotildees de retoacutericos do periacuteodo Heleniacutestico Quintiliano (Inst Or III 1 19-20) acrescenta o romano Catatildeo o Censor como abertura da seacuterie dos nomes que contribuiacuteram para o estabelecimento da retoacuterica romana
60
Na obra Institutio Oratoria (III 1 17-18) Quintiliano menciona que Ciacutecero esclareceu
sobre a praacutetica da teoria da oratoacuteria e combinou o dom da eloquecircncia com o ensino
da arte Logo em seguida Quintiliano afirma que Cornifiacutecio escreveu sobre o mesmo
assunto Portanto o autor de Retoacuterica a Herecircnio56 pode ou natildeo ter sido nomeado
Cornificio mas mesmo que fosse natildeo se sabe mais nada sobre ele exceto que era
um romano de classe alta
Na obra Retoacuterica a Herecircnio identificam-se pontos em comum com a Retoacuterica de
Aristoacuteteles e que podem ser apontados como forma de observar certas
continuidades do aristotelismo que foram adaptadas aos valores da formaccedilatildeo do
cidadatildeo romano
Retoacuterica de Aristoacuteteles (I 3 1358b) Retoacuterica a Herecircnio (I 2)
Trecircs gecircneros de discurso retoacuterico Trecircs Gecircneros na accedilatildeo da retoacuterica
Deliberativo Deliberativo
Juriacutedico JudiciaacuterioForense
Epidiacutetico Demonstrativo
As definiccedilotildees de cada tiacutetulo apresentam certas semelhanccedilas em seus significados
pois o deliberativo consiste em aconselhar e persuadir e tambeacutem efetiva-se na
discussatildeo que inclui aconselhar e desaconselhar o juriacutedico atua na defesa ou
acusaccedilatildeo e o judiciaacuterio contempla a controveacutersia legal e acusaccedilatildeo puacuteblica ou
reclamaccedilatildeo em juiacutezo com defesa o epidiacutedico consiste em elogiar ou censurar
algueacutem e o demonstrativo destina-se ao elogio ou vitupeacuterio Tanto na Retoacuterica de
Aristoacuteteles como na Retoacuterica a Herecircnio o capiacutetulo sobre estilo eacute tratado por uacuteltimo
separadamente O gecircnero judiciaacuterio eacute o mais discutido na Retoacuterica a Herecircnio e
segundo Kennedy (1994 p 122) eacute tomado como base a stasis que na traduccedilatildeo
original latina significa constitutio questotildees baacutesicas para o discurso As concepccedilotildees
teoacutericas da retoacuterica de Hermaacutegoras tambeacutem servem de apoio agraves questotildees que
dizem respeito agraves controveacutersias na constituiccedilatildeo da retoacuterica latina
56
Kennedy (1994 p 122) afirma que natildeo se sabe quem era Herecircnio o destinataacuterio do tratado Haacute algumas suposiccedilotildees que poderia ser um tribuno identificado como Herecircnio mas natildeo haacute fontes que confirmam De acordo com esta hipoacutetese e pelas caracteriacutesticas do tratado sua produccedilatildeo poderia ter ocorrido entre 85 aC e 80 aC
61
Partindo do objetivo de identificaccedilatildeo de pontos em comum e diferenccedilas entre a obra
Retoacuterica de Aristoacuteteles e a retoacuterica latina vale registrar duas citaccedilotildees que auxiliam
na observaccedilatildeo da releitura que os romanos fizeram da retoacuterica grega Na Retoacuterica
de Aristoacuteteles encontra-se a seguinte afirmaccedilatildeo ldquoA funccedilatildeo da retoacuterica natildeo eacute
persuadir mas discernir os meios de persuasatildeo mais pertinentes a cada casordquo (Ret
I 1355b) Na Retoacuterica a Herecircnio (I 2) ldquoo ofiacutecio do orador eacute poder discorrer sobre as
coisas que os costumes e as leis instituiacuteram para o uso civil mantendo o
assentimento dos ouvintes ateacute onde for possiacutevelrdquo Para os romanos os meios de
alcance do ecircxito nos efeitos da argumentaccedilatildeo estatildeo diretamente ligados aos
interesses e necessidades do povo romano
A retoacuterica na histoacuteria dos romanos torna-se mais relevante a partir da atuaccedilatildeo de
Ciacutecero que nesse campo constroacutei uma ligaccedilatildeo entre gregos e romanos57 Na
exposiccedilatildeo de Dominik ( 2012 p 97 ) ldquouma imagem do sistema de educaccedilatildeo retoacuterica
no iniacutecio do primeiro seacuteculo aC pode ser construiacutedo a partir dos primitivos manuais
de retoacutericardquo Os manuais De Inventione de Ciacutecero58 e Rhetorica ad Herennium satildeo
considerados fundadores em liacutengua latina
Na obra De Oratore Ciacutecero desenvolve suas questotildees sobre retoacuterica em forma de
diaacutelogo comentando posiccedilotildees de Platatildeo e Aristoacuteteles entre outros e acrescentado
suas proacuteprias ideias Para Ciacutecero a retoacuterica divide suas funccedilotildees em delectare
docere e movere (agradar instruir e comover) Para agradar o orador precisaria usar
uma variedade de estilos para instruir uma inteligecircncia desenvolvida para comover
seria necessaacuterio conhecer as expectativas do ouvinte (De oratore 2 310-12) Os
postulados de Ciacutecero deixaram como heranccedila uma concepccedilatildeo de retoacuterica que serviu
de fortalecimento agrave oratoacuteria
57
Segundo Dominik (2012 p 97) ldquoa partir dos tratados de retoacuterica parece que houve duas principais vias de entrada para a retoacuterica grega em Roma atraveacutes de estudiosos familiarizados com a retoacuterica que como professores vieram da Greacutecia e da Magna Greacutecia para Roma e por meio de romanos que com o objetivo de estudar viajavam para a Greacutecia especialmente Atenas e Rhodes e em seguida retornavam a Romardquo 58
Dominik (2012 p 121) expotildee que ldquoo mais antigo tratado romano de retoacuterica existente eacute o De Inventione de Ciacutecero que pode ter aparecido em torno de 876 aC ou um pouco depois a data eacute baseada na proacutepria observaccedilatildeo de Ciacutecero de que o De Inventione foi composto em sua juventude (De Or 115) provavelmente em 88 aC na idade de 18 anos depois de ter estudado filosofia sob as ordens de Filatildeo de Larissa em Roma (Cic Fam 13 Tusc 23) O De Inventione sucedeu quase ao mesmo tempo possivelmente entre 86-82 ou mesmo mais tarde de acordo com a Rhetorica ad Herennium de autoria incerta que eacute o primeiro tratado completo de retoacuterica escrito em latim a sobreviver pois da obra De Inventio somente sobreviveram os dois primeiros livros Ambas as obras satildeo derivadas de atividade acadecircmica e de uma fonte grega comum que provavelmente se desenvolveu na ilha de Rhodes um importante centro de retoacuterica de modo que fornecem um vislumbre do estado de retoacuterica em Roma nas primeiras duas deacutecadas do primeiro seacuteculo aCrdquo
62
Habinek (2005 p27) em seu levantamento biograacutefico de oradores da Antiguidade
claacutessica situa e analisa a oratoacuteria de Ciacutecero atraveacutes do seu desempenho tanto no
campo da jurisprudecircncia quanto na poliacutetica Eacute possiacutevel perceber que se tornam
indissociaacuteveis as accedilotildees de Ciacutecero em sua militacircncia juriacutedica e poliacutetica na Roma
republicana de suas convicccedilotildees e posturas diante de suas concepccedilotildees de retoacuterica
Habinek (2005 25) identifica que no contexto das atividades produtivas de Ciacutecero o
discurso contra Catilina realccedila importantes marcas da figura do orador Por um lado
aponta para o orador que facilmente adapta seu estilo e argumento a tipos
diversificados de audiecircncia Por outro lado o desempenho de Ciacutecero permite-lhe
estabelecer uma possiacutevel uniatildeo entre povo e aristocracia Em sua oratoacuteria era
fundamental convencer o ouvinte orientando-o para a concretizaccedilatildeo da idealizaccedilatildeo
do cidadatildeo romano Nessa direccedilatildeo a retoacuterica de Ciacutecero se aproxima mais de
Aristoacuteteles no que se refere ao binocircmio retoacuterica e verdade59
Segundo consideraccedilotildees de Kennedy (1994 p 166) no seacuteculo I aC a declamaccedilatildeo
era uma praacutetica nas escolas de retoacuterica em Roma Os alunos coletavam passagens
que eram valorizadas na tradiccedilatildeo literaacuteria e exerciam com habilidade o uso da
memoacuteria para recitaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo nos seus discursos A maior fonte de
informaccedilotildees sobre declamaccedilatildeo eacute encontrada nas obras Crontoveacutersias e Suasoacuterias
de Secircneca o Velho que defende a novidade do termo na execuccedilatildeo dos exerciacutecios
nas escolas de retoacuterica Kennedy (1994 p 171) aponta que desde o impeacuterio
augustano as escolas retoacutericas dominaram o campo da educaccedilatildeo formal e a praacutetica
da declamaccedilatildeo representou uma continuidade na atividade popular para adultos A
influecircncia dos ensinos retoacutericos se fez presente na produccedilatildeo de gecircneros literaacuterios
tradicionais como eacutepica saacutetira trageacutedia epigrama historiografia e filosofia Rezende
(2009 p 138) pontua que a funccedilatildeo da declamaccedilatildeo na educaccedilatildeo romana
representava a passagem para o niacutevel mais elevado da formaccedilatildeo do aluno que
nessa fase seria capaz de criar um discurso que se sustentasse de acordo com a
causa em questatildeo A praacutetica da declamaccedilatildeo era uma metodologia conveniente para
o desenvolvimento da escrita Esta se efetivava por meio de exerciacutecios com base em
59
Habinek (2005 p73) The very form of the Ciceronian dialogue with its lengthy speeches and genial conversation rather than the intense dialectical inquiry that characterizes Platorsquos dialogues enacts its commitment to the construction of truth as a social enterprise (A proacutepria forma do diaacutelogo Ciceroniano com seus estensos discursos e conversaccedilatildeo ao inveacutes do inqueacuterito da dialeacutetica intensa que caracteriza os diaacutelogos de Platatildeo representa seu compromisso com a construccedilatildeo da verdade como um empreendimento social)
63
uma questatildeo escolhida e sua exposiccedilatildeo diante de ouvintes e estes se colocavam
como criacuteticos no julgamento da produccedilatildeo do discurso apresentado O meacutetodo
praticado era desenvolvido por meio de controveacutersias discussatildeo contra e a favor de
determinada questatildeo como preparaccedilatildeo para as causa judiciais as suasoacuterias se
fundamentavam em argumentaccedilotildees com base em situaccedilotildees fictiacutecias Observa-se
que controveacutersias e suasoacuterias natildeo representavam tipos de gecircnero mas uma
metodologia de elaboraccedilatildeo do discurso Nesse contexto como observa Dominik a
metodologia com recursos da declamaccedilatildeo era ajustaacutevel agraves expectativas dos ideais
da educaccedilatildeo romana
A declamaccedilatildeo era valorizada nas escolas porque forneceu o treinamento retoacuterico necessaacuterio ao avanccedilo poliacutetico e social em Roma Os exerciacutecios declamatoacuterios que promoviam a agilidade mental e exigiam a capacidade de envolver-se em argumento engenhoso natildeo soacute tiveram a vantagem de proporcionar a praacutetica em temas mais amplos (embora ainda limitados) e em situaccedilotildees mais extremas do que as que eram encontradas em casos reais mas tambeacutem permitiram aos praticantes o emprego de expressotildees mais elaboradas do que as normalmente utilizadas numa sala de tribunal ou numa reuniatildeo puacuteblica (DOMINIK 2012 p106)
A partir das obras Controveacutersias e Suasoacuterias Fairweather (2007 p 321) considera
que na visatildeo de Secircneca o Velho a educaccedilatildeo retoacuterica poderia ser beneacutefica ao futuro
filosoacutefo No tratamento dos temas questotildees sobre eacutetica e moral eram levantadas
nas controveacutersias na declamaccedilatildeo de suasoacuterias eram discutidos determinados
questionamentos sobre intervenccedilatildeo dos deuses na vida humana como tambeacutem se
haveria possibilidade de previsatildeo do futuro Fairweather (2007 p 322) defende que
em sua obra Secircneca o Velho limita a ampliaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas por natildeo
haver condiccedilotildees de conclusotildees pontuais para todas as questotildees
Secircneca o Jovem se volta para um interesse mais especiacutefico de engajamento na
filosofia estoica60 e na literatura latina procurando extrair da retoacuterica grega
heleniacutestica e romana o que eacute identificaacutevel e satisfatoacuterio aos seus valores na
produccedilatildeo de suas obras O desempenho de Secircneca no campo da filosofia tinha
como base o pensamento estoico inaugurando como representante a terceira fase
da filosofia estoica Novak (1999 p168) expotildee que o pensamento moralista da
filosofia estoica era compatiacutevel com as expectativas da moralidade romana As
especulaccedilotildees fiacutesicas e loacutegicas dos estoicos da primeira fase cedem lugar ao caraacuteter
praacutetico dos romanos valorizando o aconselhamento moral muito recorrente entre os
60
Segundo Novak (1999 p 268) a terceira fase do estoicismo iniciada por Secircneca restringe a loacutegica e a fiacutesica em benefiacutecio da moral O seu cenaacuterio eacute principalmente Roma
64
estoicos romanos integrantes da uacuteltima fase Segundo Sharples61 (1996 p 4)
Secircneca eacute reconhecido como fundador da terceira fase do estoicismo mas sabia
aproveitar e aplicar em sua filosofia estoica o que era conveniente do pensamento
epicurista Na segunda parte desta tese estatildeo contidas algumas informaccedilotildees sobre
a origem do estoicismo e a sua penetraccedilatildeo no impeacuterio romano
Na obra Epiacutestolas Morais Secircneca expressa seu pensamento abordando partes da
filosofia estoica que ele procura ministrar ao seu destinataacuterio Luciacutelio Na epiacutestola
quarenta haacute uma seacuterie de toacutepicos especiacuteficos que tratam da oratoacuteria no discurso do
filosoacutefo pois ldquoum estilo oratoacuterio que visa a transformaccedilatildeo da mentalidade deve
descer ateacute ao mais fundo de noacutes mesmosrdquo (Ep 40 4) Continuando em suas
intruccedilotildees a Luciacutelio sobre a oratoacuteria Secircneca comenta
De resto entendo que certos estilos podem ser mais ou menos convenientes conforme os povos Entre os gregos por exemplo jaacute este estilo (em passo de corrida) seria possiacutevel enquanto noacutes temos o haacutebito de fazer pausas mesmo ao escrever Ateacute mesmo o nosso Ciacutecero o homem que elevou ao cume a eloquecircncia romana andava a passo O estilo romano eacute mais circunspecto sabe avaliar o seu valor e submete-se agrave avaliaccedilatildeo dos outros (SEcircNECA Ep 4011)
Essa questatildeo da oratoacuteria no discurso filosoacutefico que Secircneca aborda eacute retratada com
uso da seguinte metaacutefora ldquoO estilo filosoacutefico deve ter forccedila mas sem perder a
moderaccedilatildeo deve ser um rio a fluir e natildeo uma torrenterdquo (Ep 40 8) No final da
epiacutestola Secircneca apresenta um comentaacuterio encerrando com a criaccedilatildeo de uma
maacutexima ldquopara terminar a suacutemula dos meus conselhos eacute esta secirc lento a falarrdquo (Ep
4014) Segundo Kennedy (1994 p175) a marca do meacutetodo da declamaccedilatildeo nas
epiacutestolas de Secircneca eacute a criaccedilatildeo de suas proacuteprias sentenccedilas e a citaccedilatildeo das de
outros autores
Quintiliano (Inst Or II 11-10) aponta o valor e utilidade da declamaccedilatildeo como
exerciacutecio na produccedilatildeo do discurso tanto na escrita quanto na oralidade mas
ressalta a adequaccedilatildeo agrave maturidade e niacutevel escolar do aluno Na posiccedilatildeo de
continuador de Ciacutecero no campo da retoacuterica Quintiliano sistematizou seus estudos
sobre a retoacuterica latina formalizando-os em sua obra Institutio Oratoria Quintiliano
(Inst Or II 14) procura definir retoacuterica aludindo ao fato de que os tradutores do seu
tempo procuraram traduzir retoacuterica como oratoacuteria Depois de levantar algumas
61
Sharples (1996 p 4) afirma que ldquoSeneca though writing as a Stoic is ready to make use of Epicurean doctrines too where they suit his purposerdquo (Secircneca atraveacutes dos escritos como estoico faz tambeacutem uso das doutrinas epicuristas no que diz respeito aos seus propoacutesitos filosoacuteficos)
65
questotildees sobre o termo em pauta Quintiliano registra sua proacutepria defesa em optar
pelo termo retoacuterica como originaacuterio do grego sem tentativa de traduccedilatildeo para o
latim E ainda ressalta que o proacuteprio Ciacutecero fez uso do termo ldquoE por fim jaacute que M
Tuacutelio nos primeiros livros que escreveu sobre o tema usou o termo grego natildeo haacute
que de todo nos envergonharmos por parecer agir temerariamente ao creditarmos
ao maior dos oradores o nome da sua arterdquo (QUINTILIANO Inst Or II 14 4) Na
sequecircncia da exposiccedilatildeo de suas ideias Quintiliano (Inst Orat II XIV 5) reafirma
ldquorethorice pois que utilizaremos esta designaccedilatildeo sem medo da polecircmicardquo No livro II
da obra Institutio Oratoria Quintiliano realiza uma retrospectiva remontando aos
gregos para definir retoacuterica na perspectiva de uma discussatildeo sobre os significados
e efeitos da persuasatildeo no discurso Em suas referecircncias no livro II Quintiliano
pondera que Platatildeo natildeo concebia a retoacuterica como um mal poreacutem defendia que
somente um homem bom eacute capaz de alcanccedilar a retoacuterica verdadeira Ainda na
defesa de Platatildeo Quintiliano (Inst Or II 14 28-29) assim se posiciona ldquoIsto ainda
eacute mais manifesto no diaacutelogo Fedro pois que natildeo se pode exercer cabalmente a
retoacuterica sem o conhecimento da justiccedila opiniatildeo esta que tambeacutem eu partilhordquo62
Ao fazer um passeio histoacuterico sobre produccedilotildees de escritores gregos e latinos
Quintiliano elabora o seguinte comentaacuterio ldquoOs oradores nossos podem
especialmente fazer a eloquecircncia latina em paracircmetro de igualdade com a gregardquo
Ainda ele exalta a literatura e a retoacuterica latinas enfatizando que sem nenhuma
hesitaccedilatildeo ele oporia Ciacutecero a qualquer um dos oradores gregos e complementa sua
defesa objetando que ldquoem Demoacutestenes nada se pode suprimir e em Ciacutecero nada se
pode acrescentarrdquo (QUINTILIANO Inst Or X 1105)63
Quintiliano no livro X de Institutio Oratoria fornece algumas contribuiccedilotildees de suas
ideias sobre discurso oral e escrito apontando determinadas vantagens do escrito
alegando que a leitura eacute livre nem mesmo transcorre como o iacutempeto de um discurso
proferido sendo permitido ir e voltar vaacuterias vezes ao texto seja porque ainda restam
duacutevidas ou se queira fixar na memoacuteria Na sequecircncia de suas ideias Quintiliano usa
metaacuteforas para clarear a expressatildeo de seu pensamento
O texto escrito permite montar e remontar tal como os alimentos que mastigados e liquefeitos para que sejam mais facilmente digeridos engolimos assim tambeacutem a leitura natildeo crua mas moiacuteda repetidas vezes e
62
Traduccedilatildeo de Antonio Fidalgo 63
As traduccedilotildees do livro X de Intitutio Oratoria satildeo de Antonio Martinez Rezende
66
como que dissolvida pode ser entregue agrave memoacuteria e agrave imitaccedilatildeo (QUINTILIANO InstOr X 119)
64
A metaacutefora usada por Quintiliano toma a imagem do alimento para representar a
leitura O processo da mastigaccedilatildeo e absorccedilatildeo do alimento pelo corpo eacute comparado
aos efeitos da leitura na mente do leitor que a absorve extraindo dela a essecircncia
que pode ser incorporada ao modo de agir
Observa-se que Quintiliano eacute ponto de referecircncia para se pensar a retoacuterica naquele
momento da segunda metade do primeiro seacuteculo dC Habinek (2005 p 61)65
ressalta que no final da obra Institutio Oratoria Quintiliano argumenta que a
finalidade da retoacuterica eacute a formaccedilatildeo de um homem que combine a sabedoria do
grego com a praticidade do romano Complementando esta posiccedilatildeo Shiappa e
Hamm (2007 p 6) apontam que Quintiliano direciona a retoacuterica romana em dois
caminhos retoacuterica destinada agrave oratoacuteria e retoacuterica educacional Tal fato fortalece a
afirmativa de que na Antiguidade podem ser citadas algumas formas diferentes de
aplicaccedilatildeo do termo retoacuterica retoacuterica como forma de organizaccedilatildeo do discurso como
teacutecnica persuasiva como funccedilatildeo taacutetica da linguagem como um programa
educacional e como uma teoria da comunicaccedilatildeo humana Portanto observar as
diferentes concepccedilotildees de retoacuterica entre gregos e romanos contribui para situar os
discursos de Secircneca e de Paulo no campo da retoacuterica no contexto social e poliacutetico
do impeacuterio romano no Seacuteculo I dC
No amplo campo da retoacuterica identifica-se que nos postulados aristoteacutelicos a noccedilatildeo
de toacutepos para os gregos e lugar comum para os latinos torna-se parte integrante
dos estudos retoacutericos e desempenho na oratoacuteria Em relaccedilatildeo aos toacutepoi como
recursos retoacutericos na organizaccedilatildeo do discurso Aristoacuteteles implementou um ponto de
partida que os romanos seguiram dando novas conotaccedilotildees e aplicaccedilotildees
32 O TOacutePOS NA RETOacuteRICA E A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA
Aristoacuteteles utiliza a palavra toacutepos (τoacuteπoς) com referecircncia ao lugar fazendo menccedilatildeo
aos recursos da linguagem que servem como ponto de partida ou fonte para uma
argumentaccedilatildeo originando a ideia de toacutepicos como eacute defendida por ele Nessa
64
Traduccedilatildeo de Antonio Martinez Rezende 65
Habinek (2005 p 61) tambeacutem comenta que ldquothe final book of Quintilianrsquos Institutio Oratoria argues that the end of rhetoric is the formation of a Romanus sapiens someone who combines the wisdom of a Greek sage with the practicality of a Roman man of actionrdquo (No final da obra Institutio Oratoria Quintiliano argumenta que o objetivo da retoacuterica eacute a formaccedilatildeo de um romano saacutebio algueacutem que combina a sabedoria de um grego com a accedilatildeo praacutetica de um homem romano)
67
abordagem Aristoacuteteles faz o seguinte comentaacuterio ldquoQuem se predispotildee a assumir o
papel de questionador deve encontrar o lugar a partir do qual vai conduzir a
argumentaccedilatildeordquo (Toacutep VII 1 155b) A partir desses pressupostos Aristoacuteteles recorre
ao termo toacutepos como um dispositivo que permite acionar de um determinado lugar
os recursos da linguagem acessiacuteveis a quem produz o discurso
Por meio do uso da expressatildeo konoacutei topoacutei (Кοινοigrave τοπoacuteι) lugares comuns
Aristoacuteteles estaacute referindo-se aos toacutepicos que de uma mesma forma podem ser
usados em qualquer um dos trecircs gecircneros de discurso oratoacuterio deliberativo judicial e
epidiacutedico Assim ele delimita e distingue os toacutepicos que satildeo aplicaacuteveis agrave retoacuterica
orientados pelo raciociacutenio dedutivo (entimemas) e indutivo (exemplos) e os
aplicaacuteveis agrave dialeacutetica voltados para a loacutegica
Quanto agrave expressatildeo lugar comum como usada por Aristoacuteteles nota-se uma
diversificaccedilatildeo de usos conforme constataccedilatildeo de Segurado e Campos
Emprega-se actualmente a expressatildeo laquolugar-comumraquo para designar uma frase um dito uma ideia que de tatildeo usada se banalizou em extremo a ponto de o seu emprego carecer de qualquer impacto como recurso retoacuterico ou literaacuterio Ora laquolugar-comumraquo natildeo eacute mais do que a traduccedilatildeo para portuguecircs ou qualquer outra liacutengua moderna do latim locus communis que por sua vez reproduz a expressatildeo grega κοινograveς τόπος Deve notar-se no entanto que as expressotildees das liacutenguas modernas possuem uma conotaccedilatildeo negativa de laquobanalidaderaquo ausente da expressatildeo original grega Na realidade enquanto em laquolugar-comumraquo o adjectivo laquocomumraquo equivale a laquogastoraquo laquobanalraquo laquomil vezes repetidoraquo em grego κοινograveς apenas denotava que um dado laquoesquema argumentativoraquo era comum isto eacute podia ser empregado em muitas situaccedilotildees discursivas diferentes (SEGURADO E CAMPOS 2007 p 109)
Nos estudos da retoacuterica Aristoacuteteles daacute ecircnfase agrave importacircncia dos toacutepicos (Ret II 22-
23-24) Algumas concepccedilotildees identificadas por ele podem ser observadas tambeacutem
em alguns aspectos da produccedilatildeo da retoacuterica entre os romanos Na obra Retoacuterica a
Herecircnio o termo toacutepico eacute traduzido para o latim locus communis (lugar comum)
significando o que era de praxe para ser dito e discutido pelo orador mediante
determinada situaccedilatildeo como pode ser visto no Livro II 2466 Os lugares comuns
nessas causas satildeo o do acusador contra aquele que embora jaacute tenha confessado o
delito ainda reteacutem os juiacutezes com seu discurso o da defesa sobre a humanidade e a
misericoacuterdia em tudo se deve considerar a intenccedilatildeo67
66
Loci communis in his causis accusatoris contra eum qui cum pecasse confiteatur tamem oratione iudices demoretur defensoris de humanitate misericordia uoluntatem in omnibus rebus spectari conuenire quae consulto facta non sint ea fraudei esse non oportere (Ret Her II 24) 67
Traduccedilatildeo de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra
68
A reestruturaccedilatildeo que Ciacutecero deu agrave noccedilatildeo de toacutepica desenvolvida por Aristoacuteteles
ajuda a ampliar a sua aplicabilidade no discurso Na obra sobre os toacutepicos68 Ciacutecero
consegue estabelecer uma junccedilatildeo entre a ideia de toacutepos como forma de
argumentaccedilatildeo e a toacutepica como a teoria dessa forma A esse respeito Aristoacuteteles
trabalhou em separado o papel dos entimemas69 na loacutegica da argumentaccedilatildeo
tratando no final as figuras de linguagem como estilo na forccedila persuasiva Ciacutecero
coloca no mesmo bloco a importacircncia das figuras de linguagem no discurso e o
efeito na argumentaccedilatildeo que elas podem oferecer Ele observa que o uso da
metaacutefora eacute muito produtivo na apreensatildeo das semelhanccedilas a siacutemile contribui para
efeito de comparaccedilatildeo e a hipeacuterbole torna-se argumento tanto nas questotildees grandes
quanto nas pequenas Concepccedilotildees idecircnticas a essas se confirmam tambeacutem na obra
Retoacuterica a Herecircnio (IV 58-69)
Na liacutengua portuguesa a recorrecircncia ao termo lugar comum tornou-se corriqueira
em relaccedilatildeo ao significado de origem e eacute ateacute mesmo considerada como um clichecirc no
linguajar do cotidiano Segurado e Campos (2007 p111) tanto na introduccedilatildeo como
em nota aponta as dificuldades relacionadas a uma definiccedilatildeo de lugar comum visto
que nem o proacuteprio Aristoacuteteles fornece uma conceituaccedilatildeo clara Entre algumas
colocaccedilotildees Segurado e Campos apresenta a de Ciacutecero que semelhante agraves de
outros tantos tenta uma definiccedilatildeo com recursos metafoacutericos70
Ciacutecero faz referecircncia mais ligada aos toacutepicos definidos por Aristoacuteteles como
funcionais e uacuteteis na argumentaccedilatildeo Secircneca aponta para outra forma de uso do
lugar comum fazendo alusatildeo ao tratamento de um determinado tema acessiacutevel aos
poetas Na epiacutestola setenta e nove ele tece alguns comentaacuterios com Luciacutelio sobre o
monte Etna desafiando-o a registrar na criaccedilatildeo de seu poema uma descriccedilatildeo do
Etna visto ser este um toacutepos que atraiacutea muitos poetas
68
Toacutepicos ndash Traduccedilatildeo para espanhol e notas de Bulmaro Reyes Coria 69
O entimema eacute um silogismo formulado em funccedilatildeo de seu efeito retoacuterico contendo uma premissa impliacutecita em seu uso na argumentaccedilatildeo Na Retoacuterica Aristoacuteteles (I 2 1357a) coloca o entimema como silogismo formado de poucas premissas e em geral menos do que as do silogismo primaacuterio Porque se alguma destas premissas for bem conhecida nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la pois o proacuteprio ouvinte a supre 70
Segurado e Campos cita em latim o dito de Ciacutecero sobre lugar comum ut igitur earum rerum quae absconditae sunt demonstrato et notato loco facilis inuentio est sic cum peruestigare argumentum aliquod uolumus locos nosse debemus sic enim appellatae ab Aristotele sunt eae quasi sedes e quibus argumenta promuntur (Ciacutecero Top 7) Na nota 188 da p111 da introduccedilatildeo de Toacutepicos de Aristoacuteteles a citaccedilatildeo de Ciacutecero estaacute traduzida para o portuguecircs ldquoassim como se torna faacutecil encontrar coisas escondidas quando se indica e assinala o lugar delas assim tambeacutem quando queremos analisar um argumento qualquer devemos conhecer os lsquolugaresrsquo deles pois eacute este o nome que Aristoacuteteles daacute agravequela espeacutecie de lsquoesconderijosrsquordquo
69
Tema que nem o fato de Vergiacutelio o ter desenvolvido impediu Oviacutedio de tambeacutem o tratar tal como ambos estes poemas natildeo dissuadiram Corneacutelio Severo de igualmente o versar De resto foi este um tema que se prestou a todos eles em abundacircncia parece-me a mim que os poetas mais antigos longe de esgotarem o assunto apenas indicaram os toacutepicos a desenvolver (SEcircNECA Ep 795)
Nesta abordagem Secircneca apresenta a exploraccedilatildeo de um tema que se posiciona em
um lugar comum em que a mateacuteria ganha amplitude pela agregaccedilatildeo de novas
exposiccedilotildees Hansen (2013 p 28) eacute concordante com essa colocaccedilatildeo de Secircneca ao
afirmar que ldquoo mesmo lugar nunca eacute repeticcedilatildeo simples do idecircntico pois a cada vez eacute
a diferenccedila efetuada pela sua variaccedilatildeo elocutivardquo
Referecircncias ao uso do lugar comum satildeo encontradas tambeacutem em Quintiliano (Inst
Or II 1 9) Eacute possiacutevel verificar que ele tambeacutem remonta suas ideias aos contextos
mais antigos mencionando o uso de lugar comum como fonte para retirada de
temas a serem discutidos nos exerciacutecios de retoacuterica mas natildeo entra no meacuterito da
questatildeo e nem sinaliza nenhum aprofundamento que contribua para a formulaccedilatildeo
dessa ideia de prazer inovador ao lugar comum
Eacute indiacutecio certo de vigor criativo expandir o que pela natureza veio condensado ampliar o resumido dar variedade agrave mesmice e prazer inovador ao lugar comum enfim dizer com clareza e elegacircncia muitas coisas a respeito de assuntos de pouca relevacircncia (QUINTILIANO Inst Or
X 5 11)
O que se nota nas explicaccedilotildees de Quintiliano eacute a ecircnfase em valorizar o ato criativo
no tratamento de um mesmo tema originaacuterio de um lugar comum dando a ele certos
destaques ainda natildeo abordados fazendo valer as potencialidades que o tema
oferece
Mediante essas concepccedilotildees sobre toacutepoi e a dificuldade de se estabelecer uma uacutenica
funccedilatildeo para o uso deles Thom (2003 p 556) fornece algumas sugestotildees
resultantes de suas proacuteprias experiecircncias na identificaccedilatildeo de toacutepoi no Novo
Testamento Este autor aponta que a anaacutelise de toacutepoi usados na Antiguidade
enriquecem o entendimento da moral e religiatildeo no contexto do Novo Testamento
Thom (2003 557) faz referecircncias agraves limitaccedilotildees do uso do termo toacutepos e destaca a
contribuiccedilatildeo de Curtius em situar os toacutepoi como funccedilatildeo intelectual de abordagens de
temas desenvolvidos e modificados de acordo com a preferecircncia do autor Curtius
(1999 p 131) faz alguns levantamentos sobre o encontro de temas identificados
como topoacutei na Antiguidade e cita a seguinte referecircncia ldquoa posse do saber obriga a
70
comunicaacute-lo a outremrdquo Curtius identifica este toacutepos em Horaacutecio (Odes II 21) e
tambeacutem em Secircneca quando diz ldquoeu natildeo desejo outra coisa senatildeo transmitir-te toda
a minha experiecircnciardquo (Ep 64) Curtius aponta que este toacutepos aparece de igual modo
no texto biacuteblico ldquoSabedoria oculta e tesouro escondido para que servem ambosrdquo
(Ecl 2032)
Voltado para um interesse em ampliar as discussotildees sobre o uso de toacutepos Thom
(2003 p 566) observa que este pode ser empregado no uso do argumento retoacuterico
ou na aplicaccedilatildeo de valores eacuteticos e morais Portanto um toacutepos expressa um
consenso cultural Mesmo sendo organizado como estrateacutegia retoacuterica o espaccedilo
cognitivo ordena seu uso e eacute culturalmente determinado Assim Thom (2003 p
567) distingue trecircs tipos de toacutepoi O primeiro tipo pode ser chamado toacutepos retoacuterico
que funciona como estrateacutegia para delinear a linha de argumentaccedilatildeo no esquema do
pensamento e este tipo eacute apresentado na obra Retoacuterica de Aristoacuteteles O segundo
tipo pode ser denominado de toacutepos literaacuterio consistindo em temas literaacuterios ou
assuntos que satildeo usados e retomados a partir de novas perspectivas Este toacutepos
era recorrente entre os poetas latinos conforme mencionado por Secircneca na epiacutestola
795 em seu pedido a Luciacutelio para incluir em seu poema uma descriccedilatildeo do Etna
tema comum que Secircneca identifica na obra de poetas como Vergiacutelio71 e Oviacutedio O
terceiro tipo se enquadra como toacutepos filosoacutefico sendo identificado nos escritos da
cultura heleniacutestica em abordagens sobre a moral ou temas filosoacuteficos que tambeacutem
satildeo tratados e retomados em diferentes textos
Assim os toacutepoi que apresentam temas desmembram-se em coleccedilotildees de teses pois
cada tema pode subdividir-se em partes que colaboram para a formaccedilatildeo de sentidos
do tema geral Este fato eacute observado na construccedilatildeo do tema ldquoo tempordquo nas
epiacutestolas de Secircneca e ldquoo amorrdquo nas epiacutestolas de Paulo confome mostrado na
constituiccedilatildeo das cenografias na segunda parte deste trabalho Pode-se afirmar que
a identificaccedilatildeo dos toacutepoi tem seu valor na interpretaccedilatildeo dos textos e a conexatildeo com
outros textos A contribuiccedilatildeo de Thom sobre os tipos de toacutepoi eacute aproveitada na
terceira parte desta tese na anaacutelise dos corpora que compotildeem a seleccedilatildeo das
epiacutestolas de Secircneca e Paulo O uso do toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo eacute
identificado nas epiacutestolas dos dois autores e analisado segundo o posicionamento
71
A grafia Vergiacutelio ao inveacutes de Virgiacutelio seraacute mantida neste trabalho conforme usada pelo tradutor das epiacutestolas de Secircneca Segurado e Campos
71
discursivo de cada um de acordo com o discurso constituinte que funciona como
base da enunciaccedilatildeo Os toacutepoi retoacutericos satildeo identificados indiretamente por meio dos
exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas que funcionam como contribuiccedilatildeo argumentativa na
produccedilatildeo das epiacutestolas A recorrecircncia a estes argumentos retirados de lugares
comuns pressupotildeem partes integrantes de um discurso enunciado em momento e
lugar anteriores e funcionam nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo como um
fenocircmeno dialoacutegico que permite cruzar diferentes discursos no ato da enunciaccedilatildeo
Ao analisar o corpus desta pesquisa de forma comparativa eacute essencial uma
abordagem dialoacutegica da linguagem que permita auxiliar na identificaccedilatildeo do modo
como Secircneca e Paulo recorrem ao uso dos recursos retoacutericos em conexatildeo com
outros discursos na fronteira com os discursos constituintes por eles assumidos As
reflexotildees de Bakhtin e seu ciacuterculo muito tecircm contribuiacutedo para os estudos da
linguagem principalmente as que se referem ao princiacutepio dialoacutegico Bakhtin
considera que o dialogismo eacute princiacutepio constitutivo e caracteriacutestica essencial da
linguagem sendo condiccedilatildeo do sentido do discurso Na visatildeo de Bakhtin (2006 p
366) num encontro dialoacutegico entre culturas elas natildeo se fundem nem se confundem
cada uma manteacutem a sua unidade e a sua integridade aberta mas elas se
enriquecem mutuamente Nesse sentido a cultura do periacuteodo Heleniacutestico tanto
exerce influecircncia na escrita de Secircneca em sua origem ocidental como tambeacutem em
Paulo em sua origem oriental promovendo o entrecruzamento dos discursos
Nos seus estudos sobre dialogismo Bakhtin afirma que existe diaacutelogo natildeo somente
entre interlocutores mas entre enunciados tambeacutem Portanto a produccedilatildeo da
linguagem num enfoque dialoacutegico se articula duplamente na situaccedilatildeo de interaccedilatildeo
(comunicaccedilatildeo oral ou escrita entre falantes) e entre discursos que circulam nos
meios sociais A esse respeito Bakhtin argumenta
Os enunciados natildeo satildeo indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns aos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva (BAKHTIN 2006 p 297)
Um enunciado pode ser introduzido no outro sob formas variadas numa interaccedilatildeo
dialeacutetica com o proacuteprio texto o que estabelece novos dados para a compreensatildeo de
outros textos num processo dinacircmico para garantir a comunicaccedilatildeo Maingueneau e
Charaudeau (2008 p 286-287) postulam que a produccedilatildeo do discurso se realiza no
72
bojo do interdiscurso e em linhas gerais pode-se dizer que o interdiscurso eacute
constituiacutedo pela relaccedilatildeo existente entre os discursos Entende-se que essa relaccedilatildeo
particulariza um determinado discurso como tambeacutem sustenta historicamente os
sentidos nele inscritos
No dizer de Bakhtin (2006 p298) ldquoa expressatildeo do enunciado em maior ou menor
grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e
natildeo soacute a relaccedilatildeo com os objetos do seu enunciadordquo Essa contribuiccedilatildeo bakhtiniana
sobre o dialogismo que se instaura na comunicaccedilatildeo por meio das palavras e
enunciados eacute fundamental para compreensatildeo da visatildeo dialoacutegica da linguagem
que se estabelece tambeacutem na forma do discurso epistolar que eacute a base do corpus
de anaacutelise aqui pretendida De acordo com essa perspectiva dialoacutegica da linguagem
a palavra se apresenta com ecos de outros enunciados de algo dito em outro lugar
em outro momento A expressatildeo da palavra como recurso da linguagem concebe o
diaacutelogo de uma liacutengua com outra liacutengua ou ainda de cultura para cultura Palavras
obras enunciados ecoam as tradiccedilotildees de cada eacutepoca e de cada cultura Nessa
direccedilatildeo tais contribuiccedilotildees favorecem certos aspectos do diaacutelogo entre culturas no
contexto das produccedilotildees grega e latina na Antiguidade em especial no periacuteodo
Heleniacutestico como abordado na segunda parte deste trabalho
Nesse percurso de abordagem do dialogismo destaca-se a importacircncia da
fundamentaccedilatildeo teoacuterica herdada de Bahktin para concepccedilotildees de intertextualidade e
interdiscursividade que contribuem na operaccedilatildeo de anaacutelise de discursos de Secircneca
e Paulo O dialogismo na enunciaccedilatildeo deve ser apreendido como meio de
identificaccedilatildeo de outros discursos presentes no ato da enunciaccedilatildeo o que em anaacutelise
do discurso eacute concebido como heterogeneidade enunciativa
A partir dos estudos bakhtinianos Authier-Revuz (1990 p 25) apresenta duas
concepccedilotildees de heterogeneidade no discurso a heterogeneidade mostrada e a
constitutiva A heterogeneidade mostrada caracteriza-se como forma de inscrever o
outro na sequecircncia do discurso como o discurso citado por exemplo Segundo
Authier-Revuz (1990 p 33) ldquoas formas marcadas da heterogeneidade mostrada
reforccedilam confirmam e asseguram o eu [] dando forma ao sujeito enunciadorrdquo Esta
autora expotildee que a heterogeneidade mostrada revela-se ao introduzir o outro no
discurso de variadas formas Este fenocircmeno eacute observado na introduccedilatildeo de citaccedilotildees
73
e maacuteximas como tambeacutem imagens atraveacutes de exemplos que Secircneca e Paulo usam
como recursos retoacutericos em suas epiacutestolas
A heterogeneidade constitutiva da linguagem como forma da tessitura do discurso
eacute vista por Authier-Revuz (1990 p34) na concepccedilatildeo do discurso como produto do
interdiscurso Esta autora defende que a metaacutefora e jogos de palavra conduzem os
discursos mais proacuteximos da heterogeneidade constitutiva
Maingueneau (1997 p 75) oferece uma siacutentese sobre heterogeneidade enunciativa
concordando que a mostrada incide sobre manifestaccedilotildees expliacutecitas introduzidas no
discurso enquanto a constitutiva natildeo eacute marcada na superfiacutecie do discurso mas
pode ser formulada com o recurso de hipoacuteteses atraveacutes do interdiscurso
recuperaacutevel pelo posicionamento discursivo do enunciador Nesse aspecto o
diaacutelogo entre enunciados anteriormente produzidos resulta nas relaccedilotildees
interdiscursivas ou seja na interaccedilatildeo discursiva entre enunciados
Ainda sobre questotildees do dialogismo outro aspecto a ser pensado eacute o jaacute-dito72 nas
entrelinhas dos discursos e o efeito de intertextualidade que esse fenocircmeno fornece
a um determinado direcionamento do discurso como tambeacutem os significados que
podem ser estabelecidos Em seus postulados sobre a nova retoacuterica Perelman e
Olbrechts-Tytec defendem que o posicionamento assumido por aquele que escreve
conduz o texto agrave determinadas intertextualidades como resultado de um efeito que
gera uma estreita relaccedilatildeo entre ldquoposicionamento memoacuteria intertextual e
investimento em um gecircnerordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 2005 p104)
No dicionaacuterio de anaacutelise do discurso elaborado por Maingueneau e Charaudeau
(2008 p 289) a noccedilatildeo de intertextualidade73 eacute definida como um termo que
apresenta determinadas propriedades Por um lado a intertextualidade se mostra
integrante da constitutividade de qualquer texto Por outro lado a intertextualidade
forma um conjunto de relaccedilotildees expliacutecitas ou impliacutecitas entre os textos em forma de
intertexto Portanto o intertexto pode ser recuperaacutevel pelo fenocircmeno da citaccedilatildeo
72
Charaudeau e Maingueneau (2008 p 401) definem que a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo pode ser entendida como a marca no enunciado de um discurso anterior jaacute-dito e esta noccedilatildeo estaacute intimamente ligada agrave de interdiscurso 73
Charaudeau e Maingueneau (2008 p288) elaboraram o conceito de intertextualidade citando as contribuiccedilotildees de Kristeva sobre a noccedilatildeo de intertextualidade para estudo da literatura Esses autores ainda acrescentaram tambeacutem algumas consideraccedilotildees de Genette ao pensar a intertextualidade como um dos aspectos da transtextualidade relacionando o papel da intertextualidade agrave ideia da presenccedila de um texto em outro por meio da citaccedilatildeo alusatildeo e outras formas
74
mas em certas situaccedilotildees ele eacute anocircnimo agraves vezes tornando-se impossiacutevel a
recuperaccedilatildeo de sua fonte se natildeo for indicada por aquele que enuncia Para
sintetizar essas noccedilotildees Maingueneau e Charaudeau (2008 p 289) conceituam o
intertexto como ldquoo conjunto de fragmentos convocados (citaccedilotildees alusotildees
paraacutefrases) em um corpus dadordquo A intertextualidade funciona como em ldquosistema de
regras impliacutecitas que subjaz a esse intertextordquo Os efeitos da intertextualidade podem
ser vistos como resultado do dialogismo no discurso Pode-se dizer que essas
regras satildeo ditadas de acordo com o posicionamento do enunciador no discurso A
ocorrecircncia de citaccedilotildees exemplos e metaacuteforas tem um efeito de intertextualidade na
construccedilatildeo discursiva das epiacutestolas de Secircneca e Paulo determinando os sentidos
captados pela presenccedila de outros discursos auxiliando tambeacutem na identificaccedilatildeo de
posicionamentos dos enunciadores em seus discursos
Os recursos retoacutericos de argumentaccedilatildeo os temas desenvolvidos com seus
desdobramentos pelo uso dos toacutepoi como manifestaccedilotildees da linguagem satildeo
identificados nas estrateacutegias retoacutericas no uso do gecircnero epistolar O jaacute-dito promove
o dialogismo da linguagem pois atraveacutes de citaccedilotildees de maacuteximas versos exemplos
e metaacuteforas ecos de enunciados pertencentes a outro tempo e outro lugar se
atualizam na enunciaccedilatildeo com diferentes funccedilotildees segundo o posicionamento
discursivo do enunciador
Pode-se considerar tambeacutem que a heterogeneidade enunciativa contribui para o
exerciacutecio da construccedilatildeo do discurso verdadeiro A partir dos postulados de Foucault
compreende-se que a captaccedilatildeo do jaacute dito por meio das leituras e anotaccedilotildees
fundamenta as convicccedilotildees que depreendem de outros discursos A apreensatildeo do
discurso verdadeiro e seu efeito na constituiccedilatildeo da subjetividade funcionam tambeacutem
como direcionamento do falar sincero e franco designado como parresiacutea
33 PARRESIacuteA E RETOacuteRICA
Ao retornar ao assunto do uso da parresiacutea Foucault (2010b p 10) apresentou uma
siacutentese do contexto histoacuterico em que circulava o uso do termo grego parresiacutea
(παρρησία) que em sua origem significava ldquodizer tudordquo Esse termo aparece em
Demoacutestenes na Primeira Fiacutelipica (I1) em que ele diz que vai expor seu pensamento
sem nada dissimular Contudo Foucault menciona que na Greacutecia antiga a palavra
parresiacutea tambeacutem era usada com intuito pejorativo no sentido de se dizer qualquer
75
coisa que passasse pela cabeccedila Nos textos de Platatildeo Foucault (2010b p 189)
identificou a parresiacutea como ldquoaccedilatildeo a exercer natildeo apenas no corpo da cidade mas
sobre a alma dos indiviacuteduos seja a alma do priacutencipe seja a alma dos cidadatildeosrdquo
Nesse contexto a parresiacutea eacute identificada como uma questatildeo da accedilatildeo filosoacutefica o
que Foucault designou de parresiacutea filosoacutefica74
Na ministraccedilatildeo das aulas do curso de 1983 Foucault (2010b p 64) argumenta que
parresiacutea como procedimento ou maneira de dizer as coisas efetivamente usa os
recursos da retoacuterica antiga que por sua vez integra os modos de organizaccedilatildeo do
discurso Nota-se entatildeo que a parresiacutea pode ser identificada pelo modo como o
efeito de seu proacuteprio dizer a verdade pode produzir no locutor em sua relaccedilatildeo
comunicativa com o interlocutor Foucault ainda expotildee que ldquoo parresiasta eacute o
indiviacuteduo veriacutedico ou seja aquele que tem a coragem de arriscar dizer a verdade
num pacto consigo mesmo precisamente na medida em que eacute o enunciador da
verdaderdquo (FOUCAULT 2010b p 64)75
O conceito de parresiacutea como falar franco e verdadeiro contribuiu para a anaacutelise de
Foucault (2011) quando este buscou identificar as estruturas que sustentam
discursos que se datildeo ou que satildeo recebidos como verdadeiros Por isso eacute preciso
analisar as condiccedilotildees de como o sujeito se representa para si e para os outros como
um possuidor um enunciador da verdade De acordo com a parresiacutea o discurso
verdadeiro emerge na relaccedilatildeo do sujeito com seu exterior Por um lado essa
condiccedilatildeo do falar franco e honesto torna o enunciador corajoso como algueacutem que
natildeo recua diante de enfrentamentos Por outro lado a parresiacutea indica os princiacutepios
necessaacuterios para o discurso verdadeiro coincidir com o sujeito que fala
74
Para Foucault (2010b p 296) ldquofilosofar se ocupar de si mesmo exortar os outros a se ocupar deles mesmos e isso escrutando testando provando o que sabem e o que natildeo sabem os outros eacute nisso que consiste a parresiacutea filosoacutefica que se identifica natildeo simplesmente com um modo de discurso com uma teacutecnica de discurso mas com a proacutepria vidardquo 75
Sobre os procedimentos da parresiacutea na enunciaccedilatildeo do discurso verdadeiro Foucault assim argumenta ldquoA anaacutelise da parresiacutea eacute a anaacutelise dessa dramaacutetica do discurso verdadeiro que revela o contrato do sujeito falante consigo mesmo no ato do dizer-a-verdade E creio que poderiacuteamos dessa maneira fazer toda uma anaacutelise da dramaacutetica e das diferentes formas dramaacuteticas do discurso verdadeiro o profeta o adivinho o filoacutesofo o cientista Todos eles quaisquer que sejam efetivamente as determinaccedilotildees sociais que podem definir seu estatuto todos eles de fato empregam uma certa dramaacutetica do discurso verdadeiro isto eacute tecircm uma certa maneira de se vincular como sujeitos agrave verdade do que dizem E eacute claro que eles natildeo se ligam da mesma maneira agrave verdade do que dizem conforme falem como adivinhos conforme falem como profetas conforme falem como filoacutesofos ou conforme falem como cientistas dentro de uma instituiccedilatildeo cientiacutefica Esse modo muito diferente de vinculaccedilatildeo do sujeito agrave proacutepria enunciaccedilatildeo da verdade eacute o que a meu ver abriria o campo para estudos possiacuteveis sobre a dramaacutetica do discurso verdadeirordquo (FOUCAULT 2010b p 66)
76
Esse tema parresiacutea do dizer a verdade instigou a curiosidade de Foucault
incentivando-o a retomaacute-lo em suas aulas no Collegravege de France em 1983 e
posteriormente no uacuteltimo curso oferecido em 1984 Foucault relembrou ao seu
puacuteblico ouvinte o seu objetivo em refletir sobre as questotildees sobre sujeito e verdade
Ele insistiu no ponto crucial de seu interesse de pesquisa em natildeo olhar para ldquoo
discurso que poderia dizer a verdade sobre o sujeito mas a do discurso de verdade
que o sujeito eacute capaz de dizer sobre si mesmordquo (FOUCAULT 2010b p5)
Na aula de abertura em fevereiro de 1984 Foucault (2011 p 5) declarou seu
entusiasmo ao descobrir na moral da Antiguidade greco-romana a importacircncia do
princiacutepio ldquoeacute preciso dizer a verdade sobre si mesmordquo Talvez essa seja uma razatildeo
que justifica a recorrecircncia da escrita epistolar naquele periacuteodo que ele analisou
Foucault cita como exemplo a riqueza que se pode obter na busca de fontes nas
epiacutestolas de Secircneca Pliacutenio o Jovem e Marco Aureacutelio Ele tambeacutem menciona a
importacircncia do uso frequente dos cadernos de anotaccedilotildees e lamentou o fato da
ausecircncia de publicaccedilatildeo e registro daquele tipo de material tatildeo valioso que poderia
servir de fonte para anaacutelises atuais
A viagem por textos da Antiguidade possibilitou a Foucault a identificaccedilatildeo de formas
diferentes do uso do termo parresiacutea Na uacuteltima aula do curso de 1984 ele
apresentou o resultado de um levantamento feito em textos da cultura heleniacutestico-
judaica principalmente os da Septuaginta76 e os de Fiacutelon de Alexandria Como
indica Foucault (2011 p 187) nesses textos parresiacutea toma outra conotaccedilatildeo
significando o relacionamento do homem com Deus Nessa relaccedilatildeo vertical o
homem se abre de forma sincera se oferecendo diante do olhar de Deus
A parresiacutea se situa por assim dizer natildeo mais no eixo (horizontal) das relaccedilotildees do indiviacuteduo com os outros daquele que tecircm a coragem diante dos que se enganam A parresiacutea se situa agora no eixo vertical de uma relaccedilatildeo com Deus onde de um lado a alma eacute transparente e se abre para Deus e em que por outro lado ela se eleva ateacute Ele (FOUCAULT 2011 p 187)
Ligado ao sentido de relaccedilatildeo do homem com Deus nos textos de Fiacutelon de
Alexandria o termo parresiacutea faz referecircncia ao significado de prece Apontando as
semelhanccedilas Foucault (2011 p 287) comenta que ldquoa parresiacutea continua a ser em
76
Foucault (2011 p 287) identifica que na versatildeo da Septuaginta ao traduzir do hebraico para o grego uma expressatildeo no livro de Joacute 2226 faraacutes entatildeo do Todo-Poderoso tuas deliacuteciasrdquo eacute utilizado o verbo parresiaacutezesthai como signifacado dessa expressatildeo no sentido de relaccedilatildeo no contato com Deus de alegria e gozo quando a alma se encontra nessa comunhhatildeo Joacute 22 26 (εἶτα παρρησιασθήσῃ ἔναντι κυρίου ἀναβλέψας εἰς τὸν οὐρανὸν ἱλαρῶς)
77
certo sentido um dizer a verdade mas jaacute natildeo eacute nem mesmo um dizer eacute a abertura
da alma que se manifesta em sua verdade a Deus e leva essa verdade ateacute Elerdquo
Na literatura neotestamentaacuteria situada em torno do primeiro seacuteculo de nossa era a
noccedilatildeo de parresiacutea adquire outros contornos no contexto do preacute-cristianismo
Foucault assim analisa
[] agora o termo parresiacutea interveacutem certo nuacutemero de vezes e com um sentido diferente do que acabamos de ver na tradiccedilatildeo judaico-heleniacutestica diferente tambeacutem eacute claro do que encontramos no uso grego Duas mudanccedilas importantes A primeira eacute que doravante nessa literatura neotestamentaacuteria a parresiacutea natildeo aparece mais como uma modalidade da manifestaccedilatildeo divina Deus natildeo eacute mais o parresiasta que era na versatildeo dos setenta e ateacute certo ponto de Fiacutelon de Alexandria A parresiacutea eacute simplesmente um modo de ser um modo de atividade humana Segunda mudanccedila esse modo humano de atividade comporta ateacute certo ponto em certo contexto e em certas circunstacircncias a conotaccedilatildeo de coragem da ousadia de falar mas eacute tambeacutem uma atitude de coraccedilatildeo uma maneira de ser que natildeo tem necessidade de se manifestar no discurso e na palavra (FOUCAULT 2011 p 289)
Outra marca da parresiacutea neotestamentaacuteria eacute a intensificaccedilatildeo da atitude corajosa dos
apoacutestolos na pregaccedilatildeo do evangelho Pode-se pensar na ideia de coragem na forma
de assumir o discurso de cristatildeo como caracteriacutestica inerente ao apostolado pelo
enfrentamento agraves perseguiccedilotildees naquele momento histoacuterico como mostrado na
narrativa de Lucas ldquoE disse o Senhor em visatildeo a Paulo Natildeo temas mas fala e natildeo
te calesrdquo (Atos 189) Nesse contexto existe uma recuperaccedilatildeo de pontos de
semelhanccedila com a parresiacutea grega principalmente quanto ao uso corajoso da
palavra Foucault aponta o apoacutestolo Paulo como exemplo naquela cena em que ele
se apresentou no areoacutepago em Atenas e discutiu com os gregos apresentando-lhes
o Deus desconhecido conforme narrativa no livro de Atos (1715-34) Aceitando o
desafio de falar publicamente em local que registra a presenccedila de epicuristas e
estoicos Paulo teve a oportunidade de expor o evangelho aos atenienses mas eles
tentaram tirar-lhe a vida Nessa linha de raciociacutenio Foucault (2011 p 290) faz a
seguinte anaacutelise ldquoo fato de Paulo tomar a palavra discutir com os gregos pondo em
risco a proacutepria vida eacute caracterizado como sendo parresiacuteardquo Essas concepccedilotildees de
parresiacutea nas pesquisas de Foucault auxiliam no modo de identificaccedilatildeo de diferenccedilas
no uso do termo mas na essecircncia do significado haacute estreita ligaccedilatildeo com a noccedilatildeo de
verdade no que se refere ao modo de expressatildeo do discurso sem dissimulaccedilatildeo
78
Foucault (2010b p310) avaliou que o sentido original de parresiacutea na antiga Greacutecia
estava mais ligado ao campo da poliacutetica e aos poucos foi se tornando fundamental
no contexto da filosofia em determinados aspectos
Em suma a parresiacutea essa funccedilatildeo que consiste em dizer livre e corajosamente a verdade se desloca pouco a pouco desloca seus acentos e entra cada vez mais no campo do exerciacutecio da filosofia Fique claro mais uma vez que o que eacute a filha da parresiacutea natildeo eacute certamente toda a filosofia natildeo eacute a filosofia desde a sua origem natildeo eacute a filosofia sob todos os seus aspectos mas eacute a filosofia entendida como livre coragem de dizer a verdade e dizendo assim corajosamente a verdade de adquirir ascendecircncia sobre os outros para conduzi-los convenientemente e isso num jogo que deve aceitar de parte do proacuteprio parresiasta o risco que pode chegar ateacute agrave morte (FOUCAULT 2010b p310)
Sua insistecircncia em analisar a parresiacutea na Antiguidade claacutessica permitiu-lhe
identificaacute-la na cultura do Principado romano na esfera da eacutetica interligada agrave moral
Nesse contexto histoacuterico a parresiacutea consistia em se dizer a verdade sem
subterfuacutegios e nem mesmo ornamento retoacuterico que pudesse mascaraacute-la Foucault
confirma essa praacutetica do franco falar usando o exemplo de Secircneca que procura
colocar diante de seu destinataacuterio Luciacutelio certa oposiccedilatildeo entre retoacuterica e oratoacuteria
como vivenciada pelos oradores de seu tempo na praacutetica mais valorizada da
eloquecircncia
Mesmo que eu estivesse discutindo contigo natildeo me iria pocircr na ponta dos peacutes nem fazer grandes gestos nem elevar a voz tudo isso seriam artifiacutecios de oradores enquanto a mim me bastaria comunicar-te o meu pensamento num estilo nem grandiloquente nem vulgar De uma coisa apenas eu te quereria convencer de que sentia tudo que dissesse [] (SEcircNECA Ep
752-3)
Nesta epiacutestola Secircneca natildeo se coloca avesso agrave retoacuterica mas critica a formalidade da
postura dos oradores e a falta de liberdade imposta pelas regras da oratoacuteria Assim
para Secircneca o falar sincero e franco deveria se sobrepor agraves exigecircncias formais da
oratoacuteria Esse posicionamento encontra eco no pensamento de Aristoacuteteles (Ret III
21404b) no sentido de suas consideraccedilotildees sobre a composiccedilatildeo da prosa ao
colocar que os autores natildeo devem mostrar que ldquofalam com artificialidade mas sim
com naturalidade pois este uacuteltimo modo resulta persuasivo o anterior o opostordquo
O proacuteprio Foucault (2010b p 297 2010a p 346)77 reitera os penosos embates
entre filosofia e retoacuterica na Antiguidade e suscita questionamentos que advecircm da
77
Segundo Foucault (2010b p 197) ldquoEm certo sentido o problema filosofiaretoacuterica perpassa toda a obra de Platatildeordquo O que Soacutecrates discute no diaacutelogo Fedro eacute a relaccedilatildeo entre verdade (filosofia) e retoacuterica Foucault (2010b p 301) aponta ldquoEacute aiacute que Soacutecrates desenvolve sua concepccedilatildeo da relaccedilatildeo entre o discurso e a verdade mostrando como a verdade deve ser natildeo a condiccedilatildeo preacutevia de certo
79
relaccedilatildeo entre parresiacutea e retoacuterica Poreacutem admite que para se obter certos resultados
no discurso direcionado pela parresiacutea torna-se necessaacuterio recorrer-se a elementos
indispensaacuteveis do campo da retoacuterica Mediante essa constataccedilatildeo ele pondera que
natildeo se deve prender agraves regras ou manejos da retoacuterica mas usaacute-la pela diagonal ou
seja aproveitando do seu meacutetodo o que conveacutem ser aplicado no bojo do discurso
movido pela parresiacutea A esse respeito Alexandre Jr faz o seguinte comentaacuterio sobre
o posicionamento de Secircneca em relaccedilatildeo ao uso da retoacuterica
A sua anaacutelise mostra-nos com particular clareza a convicccedilatildeo de que soacute uma retoacuterica conforme a natureza eacute capaz de verbalizar com eficaacutecia e vigor os princiacutepios que a filosofia conceptualiza e os valores que implementa Sem perder de vista o fim real da filosofia Seacuteneca vecirc na retoacuterica o meio necessaacuterio agrave comunicaccedilatildeo da verdade que aquela encarna O que ele defende eacute um estilo amplo fluente e natildeo desprovido de energia um estilo de tal maneira bem conseguido que na aparecircncia se ldquonatildeo mostre trabalhado nem rebuscado em excessordquo Pois como diz na Carta 100 ldquoao filoacutesofo natildeo conveacutem a excessiva preocupaccedilatildeo com o estilordquo Este poreacutem natildeo revela negligecircncia mas naturalidade e seguranccedila Ao inveacutes de nele se encontrar qualquer vulgaridade o estilo filosoacutefico inspira-se numa retoacuterica que mais se adequa ao ritmo da natureza (ALEXANDRE JR 2002 p 4)
Vale destacar na anaacutelise de Alexandre Jr a forma como ele identifica o sentido e
uso da retoacuterica nas epiacutestolas de Secircneca a Lucilio Assim na posiccedilatildeo de filoacutesofo
estoico Secircneca lanccedila matildeo da retoacuterica como recurso na comunicaccedilatildeo do discurso
verdadeiro como efeito de um ethos de verdade
Na busca de identificar pontos comuns de aproximaccedilatildeo entre oratoacuteria e filosofia
Alexandre Jr vislumbra a descoberta de uma possibilidade de encontrar em Ciacutecero
a sustentaccedilatildeo para suas hipoacuteteses
Foi Cicero quem tomou o que viu de melhor nas duas posiccedilotildees para sustentar de forma ecleacutetica e natildeo muito dogmaacutetica a sua proacutepria visatildeo da oratoacuteria e a seguir pintar o seu idiossincraacutetico e surpreendente quadro do orador ideal o quadro do estadista romano que combina eloquecircncia com conhecimento ou saber universal acute[] Cicero promoveu na pratica a uniatildeo da retoacuterica com a filosofia fazendo a filtragem de toda a tradiccedilatildeo retoacuterica e imprimindo-lhe uma forma um conteuacutedo e um estilo marcadamente originais Poderiacuteamos quase dizer que ele representa a siacutentese mais destilada e final das tendecircncias platocircnica e aristoteacutelica isocraacutetica e estoica
modo psicoloacutegica da praacutetica da arte oratoacuteria mas a cada instante aquilo a que esse discurso se relaciona Ele mostra isso primeiro procedendo a uma generalizaccedilatildeo brutal que vai ficar em suspenso durante toda uma parte da discussatildeo e como a retoma e como a realoca Diz ele no fundo o que eacute essa arte da retoacuterica que quer persuadir Pois bem diz ele essa arte da retoacuterica nada mais eacute que uma forma geral de algo que ele chama de psykhagogiacutea diagrave tocircn logocircn (psicagogia pelos discursos) o que quer dizer que a retoacuterica nada mais eacute que uma maneira de conduzir as almas por intermeacutedio dos discursos Por conseguinte o problema que ele vai colocar ele natildeo vai colocar no acircmbito da simples retoacuterica vai colocaacute-lo no acircmbito muito mais geral dessa categoria no interior da qual a retoacuterica se situa ou deveria se situar que eacute a psicagogia (a conduta das almas) diagrave focircn logocircn (pelos discursos)rdquo
80
na sua congeminaccedilatildeo de uma retorica perfeita (ALEXANDRE JR 2005a p 10-11)
Nota-se que Secircneca no seu tempo estava mais voltado para a retoacuterica aplicada ao
texto escrito e natildeo aos discursos requeridos pela oratoacuteria dirigidos a um puacuteblico
ouvinte Pela sua formaccedilatildeo educacional a retoacuterica servia de meacutetodo para
construccedilatildeo do discurso O que Secircneca defendia era uma postura que se aliava agrave de
Ciacutecero em relaccedilatildeo agrave necessidade da retoacuterica na produccedilatildeo do discurso filosoacutefico
Nota-se que no posicionamento de Secircneca e de Paulo a retoacuterica como ornamento
natildeo significa eficaacutecia em seus discursos mas a base da retoacuterica que lhes eacute
conveniente eacute a que contribui para a construccedilatildeo do discurso verdadeiro orientado
pelo ldquofalar francordquo lugar comum que os aproxima
Ao situar alguns aspectos da retoacuterica na Antiguidade claacutessica percebe-se que
alguns pontos contribuem para os estudos atuais O retorno a essas antigas
discussotildees eacute assumido pela nova retoacuterica com a publicaccedilatildeo do tratado da retoacuterica
de Perelman e Olbrechts-Tyteca Na introduccedilatildeo de seu tratado de argumentaccedilatildeo
Perelman e Olbrechts-Tyteca 78 (2005 p 7) destacam a constitutividade da retoacuterica
no discurso reaproveitando algumas ideias dos pensadores claacutessicos As
ponderaccedilotildees desses autores ao pensar o texto escrito como um discurso dirigido a
algueacutem fornecem contribuiccedilotildees relevantes para as pesquisas que se apoiam em
pressupostos teoacutericos da anaacutelise do discurso de base enunciativa Nessa mesma
perspectiva Kennedy (1984 p 9) menciona algumas caracteriacutesticas da retoacuterica na
Antiguidade que se mantiveram como constitutivas do discurso Para este
pesquisador as marcas mais recorrentes que se destacam satildeo as formas de
tratamento dos assuntos o uso de evidecircncias e argumentaccedilatildeo
A releitura da retoacuterica antiga que se efetua atualmente faz emergir em maior ou
menor grau a interligaccedilatildeo entre discurso e sujeito Ao refletir sobre a heranccedila
retoacuterica Amossy expotildee
Sabemos que a histoacuteria da disciplina natildeo se furtou a comentar abundantemente a trilogia aristoteacutelica do logos do ethos e do pathos Dedicamos-nos essencialmente agraves glosas dos conceitos de Aristoacuteteles e
78
A respeito da nova retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p7) assim colocam ldquoO que conservamos da retoacuterica tradicional eacute a ideia mesmo de auditoacuterio que eacute evocada assim que se pensa num discurso Todo discurso se dirige a um auditoacuterio sendo muito frequente esquecer que se daacute o mesmo com todo o escrito Enquanto o discurso eacute concebido em funccedilatildeo direta do auditoacuterio a audiecircncia material de leitores pode levar o escritor a crer que estaacute sozinho no mundo conquanto na verdade seu texto seja sempre condicionado consciente ou inconscientemente por aqueles a quem pretende dirigir-serdquo
81
tambeacutem aos estudos das modificaccedilotildees a que eles foram submetidos pelos textos de Ciacutecero e Quintiliano Um dos pontos que sobressaem dessa confrontaccedilatildeo toca de perto nosso objeto Trata-se de fato de saber se o ethos eacute como pretendia Aristoacuteteles a imagem de si construiacuteda no discurso ou como entendiam os romanos um dado preexistente que se apoia na autoridade individual e institucional do orador (a reputaccedilatildeo de sua famiacutelia seu estatuto social o que se sabe do seu modo de vida etc) Na arte oratoacuteria romana inspirada mais em Isoacutecrates do que em Aristoacuteteles o ethos pertence agrave esfera do caraacuteter (AMOSSY 2005 p 17)
Esses apontamentos de Amossy convergem para uma siacutentese da contribuiccedilatildeo de
pensadores claacutessicos no campo da retoacuterica Em concordacircncia com as ideias desta
autora procura-se destacar as influecircncias da Antiguidade que contribuiacuteram para as
concepccedilotildees atuais de ethos e seu papel fundamental no discurso Nesse aspecto a
anaacutelise do discurso desenvolvida por Maingueneau Amossy entre outros tem a
retoacuterica antiga como ponto de partida
82
4 A ANAacuteLISE DO DISCURSO E SUA RELACcedilAtildeO COM A RETOacuteRICA
A anaacutelise do discurso de base enunciativa toma como apoio alguns pontos da
retoacuterica claacutessica de acordo com as formulaccedilotildees aristoteacutelicas De acordo com a
afirmaccedilatildeo de Maingueneau (2005 p 69) ldquoa noccedilatildeo de ethos pertence agrave tradiccedilatildeo
retoacutericardquo Os estudos da linguagem que apreendem o discurso em sua base
enunciativa contribuem tambeacutem para uma expansatildeo das ideias desenvolvidas por
Perelman e Olbrechts-Tyteca na nova retoacuterica A esse respeito torna-se produtivo
colocar em pauta alguns postulados de Maingueneau que podem contribuir para
uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica desta pesquisa Quanto agraves referecircncias relacionadas ao
fenocircmeno da enunciaccedilatildeo Maingueneau (1997 p41) recorre agraves formulaccedilotildees
teoacutericas de Benveniste afirmando que a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo eacute considerada
como um conjunto formado por um enunciador um destinataacuterio um momento e um
lugar especiacutefico Pensar o discurso como ato enunciativo eacute conceber a noccedilatildeo de
enunciaccedilatildeo como um fenocircmeno da linguagem que coloca os falantes de uma liacutengua
como atores da cena no acontecimento da comunicaccedilatildeo
Maingueneau ao longo de suas produccedilotildees79 ressalta a importacircncia da metaacutefora
teatral por ele mostrada para situar as condiccedilotildees em que eacute possiacutevel a apreensatildeo de
um discurso A cena de enunciaccedilatildeo eacute concebida sob trecircs diferentes formas cena
englobante cena geneacuterica e cenografia As duas primeiras cenas num conjunto
podem ser denominadas de quadro cecircnico o qual estaacute intimamente ligado agrave noccedilatildeo
de gecircnero do discurso A cena englobante estaacute relacionada ao tipo de discurso que
pelas suas caracteriacutesticas e formas pode ser engendrado no ato enunciativo Pode-
se definir a que tipo de discurso pertence determinado texto identificando a
finalidade pela qual ele foi produzido As caracteriacutesticas que um texto fornece
servem para localizaacute-lo Mesmo o texto de um simples folheto pode ser apreendido
como discurso publicitaacuterio religioso poliacutetico entre outros Essas consideraccedilotildees
cooperam para o direcionamento desta pesquisa em observar o tipo de discurso que
abriga o gecircnero de discurso epistolar na produccedilatildeo da escrita de Secircneca e Paulo
79
Nas obras de Maingueneau sempre haacute uma retomada dos temas baacutesicos de sua teoria Por esse motivo nas referecircncias expostas neste item do capiacutetulo I natildeo se menciona uma determinada obra desse autor visto que haacute repeticcedilatildeo dos assuntos nas obras subsequentes Nesta pesquisa foram selecionadas as obras que estatildeo mencionadas na bibliografia (1995 1997 2000 2005 2007 2008a 2008b 2012)
83
A respeito da caracteriacutestica englobante na cena enunciativa Maingueneau (2012 p
251) observa que a identificaccedilatildeo do tipo de discurso por si soacute natildeo eacute suficiente na
captaccedilatildeo de um discurso Nesse funcionamento e desenrolar da enunciaccedilatildeo a cena
geneacuterica estaacute na gestatildeo do gecircnero de discurso que com sua especificidade define
a orientaccedilatildeo do discurso Por essa razatildeo Maingueneau (2008a 155) considera
que um gecircnero de discurso delineia o direcionamento da enunciaccedilatildeo constituindo-
se no interior de um tipo de discurso englobante Isso serve para indicar que o
gecircnero epistolar pode manter sua forma protocolar tanto no discurso filosoacutefico
quanto no religioso entre outros No ato enunciativo a cenografia estaacute interligada ao
gecircnero do discurso pois ela se constitui como caracterizaccedilatildeo da cena enunciativa Eacute
na cenografia que se consolida a presenccedila do enunciador e co-enunciador80 como
tambeacutem o momento e lugar que se situam na enunciaccedilatildeo
Os tipos de discursos estatildeo ligados agrave fonte que lhes daacute origem ou seja os tipos de
discursos surgem a partir dos discursos constituintes como sendo os discursos
fundadores identificados como os discursos que constitutivamente se estabelecem
A partir da necessidade de comunicaccedilatildeo da linguagem e o exerciacutecio da praacutetica entre
os falantes estes discursos oferecem estabilidade por meio de sua permanecircncia
como arquivos de manutenccedilatildeo da memoacuteria e da linguagem
41 DISCURSOS CONSTITUINTES
Na conferecircncia de abertura de sua aula inaugural no Collegravege de France em 1971
Foucault desenvolveu o tema A ordem do discurso Em um dos pontos abordados
ele focaliza o fenocircmeno dos discursos que em sua origem ocupam lugares de
fundadores sendo apreendidos como discursos primeiros e que datildeo origem aos
outros Foucault menciona que os discursos primeiros estatildeo na origem de certos
nuacutemeros de atos de fala que os retomam os transformam ou seja ldquoos discursos
que indefinitivamente para aleacutem de sua formulaccedilatildeo satildeo ditos permanecem ditos e
estatildeo ainda por dizerrdquo (FOUCAULT 1996 p 22-24)
80
O termo co-enunciador usado por Maingueneau fortalece a ideia da cooperaccedilatildeo entre os pares na comunicaccedilatildeo O prefixo co serve para demonstrar que o enunciador eacute dependente de uma parceria para que a comunicaccedilatildeo se realize a contento Maingueneau justifica que prefere usar o termo co-enunciador em lugar de destinataacuterio porque identifica o caraacuteter interativo da comunicaccedilatildeo verbal (MAINGUENEAU 2005 p 91 nota 6)
84
O discurso primeiro daacute origem ao comentaacuterio pelo seu estatuto de discurso sempre
retualizaacutevel com possibilidades de significados muacuteltiplos ou mesmo escondidos a
ser revelados Assim o comentaacuterio tem a finalidade de dizer o que estaacute
silenciosamente articulado no texto primeiro Em relaccedilatildeo ao texto o comentaacuterio
permite dizer outra coisa mas com a condiccedilatildeo de que seja esse mesmo texto a ser
dito O novo natildeo estaacute naquilo que eacute dito mas no acontecimento do seu retorno
Maingueneau assimila essa abordagem desenvolvida por Foucault sobre discurso
primeiro e comentaacuterio acrescentando outras concepccedilotildees introduzindo a noccedilatildeo de
discursos constituintes Maingueneau (2012 p 21) propotildee que ldquoos discursos
constituintes satildeo discursos que conferem sentido aos atos da coletividaderdquo Assim
pode considerar-se que o discurso constituinte eacute garantia para a multiplicidade de
gecircneros do discurso O que se depreende deste postulado eacute que a partir do discurso
constituinte outros tipos de discursos se fazem estabelecer
Segundo Maingueneau (2008a p 38) os discursos constituintes possuem um
estatuto singular que daacute suporte a outros discursos natildeo constituintes Por exemplo
os discursos jornaliacutestico e poliacutetico apoiam-se em discursos constituintes81 como o
religioso filosoacutefico literaacuterio ou cientiacutefico Maingueneau (2012 p 63) observa que os
discursos constituintes relacionam-se entre si e nesta inter-relaccedilatildeo um eacute
atrevessado pelo outro Haacute entre estes discursos uma forccedila que os atraem e ao
mesmo tempo os afastam Esta relaccedilatildeo que simultaneamente provoca aproximaccedilatildeo
e afastamento pode ser notada por exemplo entre discurso cientiacutefico e discurso
religioso
Conforme postula Maingueneau (2008b p 201) os discursos constituintes tecircm um
duplo caraacuteter pois satildeo autoconstituintes e heteroconstituintes Sendo
autoconstituinte o discurso se constitui tematizando sua proacutepria constituiccedilatildeo
podendo desempenhar um papel constituinte para outros discursos Como
heteroconstituinte o discurso se constitui mobilizando outros discursos constituintes
81
Maingueneau (2012 p 63) lembra que ldquooutrora o discurso filosoacutefico e o discurso religioso lutaram para saber qual deles estava estabelecido de modo a atribuir um lugar a cada discurso Essa pretensatildeo foi contestada pelos defensores da superioridade do discurso cientiacutefico que se desenvolve afastando a todo instante a ameaccedila do religioso ou do filosoacutefico Maingueneau (2000 p 6) ainda postula que pode-se partir de uma observaccedilatildeo banal quando haacute um debate sobre um problema social solicita-se a opiniatildeo de sujeitos que falam em nome da religiatildeo da ciecircncia da filosofia Tem-se com efeito a impressatildeo de que os discursos dos quais eles satildeo porta-vozes satildeo de alguma forma discursos uacuteltimos para aleacutem dos quais natildeo haacute senatildeo o indiziacutevel de que eles se confrontam com o Absoluto
85
na realizaccedilatildeo de seu proacuteprio ato enuncitivo O fenocircmeno heteroconstitutivo do
discurso pode ser observado na filosofia estoica pois sua divisatildeo tripartida em
fiacutesica loacutegica e eacutetica promove sua relaccedilatildeo com o discurso religioso Algra (2009
p189) afirma que a teologia era parte integrante da fiacutesica estoica pois os
postulados sobre destino e providecircncia estatildeo interligados agrave concepccedilatildeo de deus no
estoicismo Conforme observaccedilatildeo de Algra (2009 p 193) na relaccedilatildeo do estoicismo
com o campo religioso tanto a criacutetica quanto a apropriaccedilatildeo das tradiccedilotildees religiosas
reaparecem nos textos estoicos da era imperial romana
Secircneca procura instruir Luciacutelio a respeito do objetivo e papel da filosofia frente agraves
concepccedilotildees religiosas que por ela estatildeo atravessadas
A toda hora nos vemos em inuacutemeras situaccedilotildees em que carecemos de um conselho pois eacute a filosofia que no-lo pode dar Haveraacute quem diga De que me vale a filosofia se existe o destino De que me serve ela se haacute um deus que tudo dirige De que me vale ela se tudo obedece ao acaso De fato tatildeo impossiacutevel eacute alterar o que estaacute predeterminado como tomar providecircncias em relaccedilatildeo ao que eacute incerto pois ou as minhas decisotildees jaacute foram antecipadas por um deus que me indicou como agir ou entatildeo eacute a fortuna que nada deixa entregue ao meu arbiacutetrio Qualquer que seja caro Luciacutelio o valor destes argumentos e mesmo que sejam todos vaacutelidos devemos praticar a filosofia Quer nos determine a lei inexoraacutevel do destino quer algum deus moderador do universo ordene todos os acontecimentos quer seja o acaso que desordenadamente empurre aos baldotildees o curso da vida humana a filosofia deveraacute proteger-nos Ela nos incitaraacute a obedecer espontaneamente agrave divindade a resistir a peacute firme agrave fortuna ela nos ensinaraacute a seguir agrave divindade ou a suportar o acaso (SEcircNECA Ep 16 5-
6)
Esta convicccedilatildeo de Secircneca a respeito do valor da filosofia e sua contribuiccedilatildeo na
instruccedilatildeo do modo de agir permite essa parceria entre filosofia e religiatildeo Neste
contexto ldquoa filosofia natildeo consiste em palavras mas em accedilotildeesrdquo (Ep 163) Eacute nessa
perspectiva que marcadamente na Patriacutestica a religiatildeo eacute atravessada pela filosofia
Agostinho na obra Cidade de Deus (VIII I-XI) procura desenvolver sua teologia
partindo de concepccedilotildees filosoacuteficas de vaacuterias correntes declarando sua preferecircncia
pelo platonismo em vista de uma aproximaccedilatildeo mais estreita das ideias82
82
Na obra Cidade de Deus (VIII XI) Agostinho faz algumas indagaccedilotildees ldquoAlguns que nos estatildeo unidos pela graccedila de Cristo admiram-se quando lecircem ou ouvem dizer que Platatildeo teve de Deus concepccedilotildees que reconhecem estatildeo em estreita concordacircncia com a verdade da nossa religiatildeo Por isso alguns tecircm pensado que tendo ido Platatildeo ao Egipto poderia ter ouvido Jeremias ou lido os seus escritos profeacuteticos durante a viagem Eu mesmo consignei esta opiniatildeo em alguns dos meus livros Mas um caacutelculo mais apurado das datas tais como se conteacutem na histoacuteria cronoloacutegica mostra que Platatildeo nasceu cerca de cem anos depois da eacutepoca em que Jeremias profetizou Com efeito ele viveu oitenta anos ora do ano da sua morte ateacute agravequele em que Ptolomeu rei do Egipto pediu agrave Judeia os livros dos profetas hebreus para os mandar traduzir para seu uso por setenta hebreus que tambeacutem conheciam o grego passaram--se cerca de sessenta Portanto Platatildeo natildeo pocircde no decurso
86
A partir dessa ideia de interaccedilatildeo entre discursos constituintes Maingueneau
sustenta que o ato enunciativo eacute o gestor em potencial que favorece a circulaccedilatildeo do
discurso constituinte
O discurso constituinte natildeo eacute um simples vetor de ideacuteias ele articula atraveacutes do dispositivo enunciativo textualidade e espaccedilo institucional Ele investe na instituiccedilatildeo que o torna possiacutevel legitimando (ou deslegitimando) o universo social onde ele se inscreve Haacute constituiccedilatildeo precisamente na medida em que o dispositivo enunciativo funda de maneira por assim dizer performativa sua proacutepria possibilidade fazendo o possiacutevel para parecer que ele extrai essa legitimidade de uma Fonte da qual ele seria a encarnaccedilatildeo (o Verbo revelado a Natureza a Razatildeo a Lei) Esse processo se desenrola em trecircs registros - O discurso mostra sua cenografia a representaccedilatildeo que ele constroacutei de sua proacutepria situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo - A mobilizaccedilatildeo de um coacutedigo de linguagem lhe permite validar sua autoridade jogando com a diversidade irredutiacutevel das liacutenguas e das zonas e registros de liacutenguas -Atraveacutes de sua voz ele confere a sua instacircncia enunciadora um corpo fixando assim o ethos associado a sua cenografia e a seu coacutedigo de
linguagem (MAINGUENEAU 2000 p10)
Os trecircs elementos cenografia coacutedigo de linguagem e ethos estatildeo imbricados na
articulaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo apoiando-se no gecircnero de discurso que se dirige agraves
comunidades discursivas de base e sustentaccedilatildeo aos discursos constituintes nos
quais estatildeo inseridas
42 GEcircNERO DO DISCURSO
As questotildees sobre a relaccedilatildeo entre gecircnero do discurso e linguagem refletem
preocupaccedilotildees nas discussotildees desse tema Entre os pesquisadores se destaca
Braund (2001 p 258) enfatizando que o termo gecircnero usado na identificaccedilatildeo de
forma de determinadas construccedilotildees literaacuterias tem histoacuteria recente em relaccedilatildeo agrave
Antiguidade Essa autora destaca a preocupaccedilatildeo de classificaccedilatildeo dos tipos de
literatura praticados na Antiguidade claacutessica lembrando o exemplo de Quintiliano
em suas discussotildees sobre as formas literaacuterias que deveriam compor o arsenal de
leitura do orador Braund (2001 p 261) entatildeo interroga ldquocomo foi formada essa
ideia de gecircnero que circula em nossa atualidaderdquo Para essa autora as discussotildees
sobre gecircneros literaacuterios evidenciam uma seacuterie de problemas que demonstram
dificuldades de encaixamento de uma obra na especificidade de um gecircnero
determinado Pode-se pensar que as questotildees levantadas por Braund sobre
da sua viagem nem ver Jeremias morto desde haacute muito tempo nem ler as suas Escrituras ainda natildeo traduzidas para grego liacutengua em que era exiacutemio A menos talvez que apaixonado estudioso como era tenha delas tido conhecimento por inteacuterpretes como aconteceu com as egiacutepcias mdash sem se tratar duma traduccedilatildeo escrita (insigne favor que diz-se mereceu Ptolomeu ele que pelo poder da sua realeza tambeacutem podia inspirar algum temor) mas sem duacutevida que conseguiu com as suas conversaccedilotildees tomar conhecimento na medida do possiacutevel do seu conteuacutedordquo
87
gecircneros literaacuterios podem ser aplicadas tambeacutem aos demais tipos de gecircneros pois
desde a Antiguidade natildeo havia criteacuterios baacutesicos no campo da retoacuterica para a
concepccedilatildeo do que na atualidade eacute chamado de gecircnero do discurso
Com base em sua anaacutelise da obra Institutio Oratoria Rezende (2009) argumenta
que a noccedilatildeo de literatura na Antiguidade se vincula a uma instituiccedilatildeo retoacuterica
definindo o modo de divulgaccedilatildeo dos discursos A partir de Quintiliano Rezende
(2009 p 67) expotildee que o termo literatura ldquorepresenta o conjunto de saberes que
permitiam as vaacuterias formas de acesso agrave obra escrita muito aleacutem portanto do que
representaria um acervo da produccedilatildeo poeacutetica latinardquo Rezende aponta que
Quintiliano (Inst Or X 1 4) defende que literatura eacute o correspondente latino para o
vocaacutebulo gramaacutetica83 de origem grega Nota-se que os termos literatura e
gramaacutetica como tratados na retoacuterica antiga natildeo satildeo equivalentes aos seus
significados na atualidade
Como salienta Alexandre Jr (2005 p 38) Aristoacuteteles na obra Retoacuterica acrescenta
os modos deliberativo e o epidiacutetico como produccedilatildeo retoacuterica de discursos pois ateacute
entatildeo os retoacutericos se atentavam especialmente ao discurso judicial ou forense As
caracteriacutesticas do discurso deliberativo como exortaccedilotildees e dissuasotildees que visam
mostrar as vantagens e desvantagens de uma determinada accedilatildeo podem ser
identificadas na construccedilatildeo do discurso nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo
Poreacutem natildeo havia uma classificaccedilatildeo de gecircneros que se encaixasse nesse modo de
construccedilatildeo do discurso e nem mesmo o uso da terminologia gecircnero para essa
situaccedilatildeo na manifestaccedilatildeo da linguagem Rezende (2009 p 86) observa que
Quintiliano fazia uso do termo gecircnero (geneus)84 com uma variedade extensa de
aplicaccedilotildees natildeo definindo exatamente um uso especiacutefico
Na obra Retoacuterica a Herecircnio (I 45) aparece o uso do termo ldquogecircnerordquo como uma
forma voltada para uma orientaccedilatildeo da organizaccedilatildeo dos discursos Assim eacute notoacuterio
83
Rezende (2009 p71) cita e traduz as colocaccedilotildees de Quintiliano sobre literatura e gramaacutetica Nos ipsam nunc uolumus significare substantiam ut grammatice litteratura est non litteratrix quem ad modum oratrix nec litteratoria quem ad modum oratoria uerum id in rhetorice non fit (Queremos agora fazer valer o significado da proacutepria substacircncia de tal forma que gramaacutetica eacute literatura mas natildeo literatrix como se poderia formar oratrix nem mesmo literatoria como se fosse formada tal qual oratoacuteria Em verdade nenhuma das duas derivaccedilotildees eacute possiacutevel para retoacuterica (Inst Or II 14 4) 84
A palavra genus que traduzimos entre outras coisas por gecircnero eacute de uma abrangecircncia semacircntica muito grande e por isso de largo emprego Na Institutio por exemplo genus aparece aproximadamente 500 vezes com os mais diferentes sentidos o que torna difiacutecil localizar com maior precisatildeo no emprego dessa palavra a significaccedilatildeo de um conceito mais estrito (REZENDE 2009 p 86)
88
observar como era fundamental a identificaccedilatildeo do gecircnero na construccedilatildeo do texto
ldquoDa causa eacute preciso considerar seu gecircnero para que possamos fazer o exoacuterdio com
mais facilidaderdquo O autor ainda acrescenta que ldquoo gecircnero entatildeo pode ser
caracterizado como escolha da postura do orador honesto torpe duacutebio e humilderdquo
Nessa abordagem nota-se a necessidade da definiccedilatildeo de um gecircnero como
direcionador do discurso mas natildeo havia um modo de determinar a identificaccedilatildeo
designaccedilatildeo ou classificaccedilatildeo de um discurso de acordo com as caracteriacutesticas de
sua proacutepria constitutividade Por exemplo no campo epistolografia sabe-se da
ocorrecircncia de formas variadas de correspondecircncia mas natildeo haacute registro de estudos
na retoacuterica latina que dessem atenccedilatildeo a esse tipo de escrita As formulaccedilotildees sobre
o estilo na retoacuterica na obra de Demeacutetrio de Faleros (Sobre o estilo IV 234)
fornecem alguns questionamentos sobre a epistolografia Determinadas formas de
correspondecircncia circulavam desde a implantaccedilatildeo da escrita como meio de
comunicaccedilatildeo entre pessoas separadas pela distacircncia Demeacutetrio aponta certas
caracteriacutesticas e funccedilotildees da escrita de epiacutestolas por ele citadas mas natildeo especifica
uma classificaccedilatildeo formal para cada tipo
Outra abordagem que se destaca no enfoque da noccedilatildeo de gecircnero na Antiguidade eacute
apresentada por Cairns (2010 p 5-6) que resume tal noccedilatildeo como classificaccedilatildeo em
termos de forma literaacuteria como poeacutetica Compreende-se que a identificaccedilatildeo de
certos elementos primaacuterios presentes numa determinada obra contribuem para
explicitar o tipo de gecircnero em evidecircncia Na Antiguidade o reconhecimento de tais
elementos na obra tornava possiacutevel a identificaccedilatildeo do suposto gecircnero poeacutetico Aleacutem
dos elementos primaacuterios determinantes tambeacutem eram valorizados os elementos
secundaacuterios Cairns (2010 p 6) faz referecircncia a esses elementos secundaacuterios como
sendo os toacutepoi Este autor salienta que os recursos que permitiam lanccedilar matildeo de
toacutepoi favoreciam a identificaccedilatildeo de lugares comuns e a esses se recorria de
diferentes formas na ocorrecircncia de um mesmo gecircnero Mas vale ressaltar que os
elementos primaacuterios eram portadores das caracteriacutesticas fundamentais de um
gecircnero Portanto os mesmos toacutepoi poderiam ser encontrados em diferentes
formatos de gecircneros ou entatildeo aparecer em um mesmo tipo de gecircnero de forma
variada da elaboraccedilatildeo mas mantendo a caracteriacutestica central do tema pretendido
Observa-se entatildeo que na Antiguidade os discursos se organizavam de acordo com
as instruccedilotildees da retoacuterica e da poeacutetica de forma interligada ou seja a retoacuterica era o
89
ponto central de fornecimento de ensinamentos tanto no campo da prosa quanto no
da poesia de modo integrado Na prosa os discursos eram deliberativos epidiacutedico
ou judiciaacuterio de acordo com as delimitaccedilotildees da retoacuterica Na poeacutetica a noccedilatildeo de
gecircnero era vinculada ao modo e forma de produzir a arte da poesia que seguia
modelos como fonte de um lugar comum Na obra Institutio Oratoria (II 4 1-4)
Quintiliano expotildee sobre os objetivos das instruccedilotildees da retoacuterica abordando o valor
das diferentes formas de narrativas no processo da composiccedilatildeo do discurso Satildeo
apontados trecircs tipos narrativa ficcional para uso da construccedilatildeo de trageacutedias e
comeacutedias narrativa realiacutestica que guarda semelhanccedila com a vida cotidiana como
explorado pela comeacutedia narrativa histoacuterica que representa a exposiccedilatildeo de
acontecimentos e fatos Assim os estudos retoacutericos favoreciam o campo da
literatura pelo uso da construccedilatildeo das narrativas poeacuteticas
Kennedy (1994 p 201) menciona que no iniacutecio da era augustana na literatura latina
identifica-se a influecircncia de exerciacutecios em composiccedilatildeo os quais se tornavam como
ferramentas para construccedilatildeo de gecircneros literaacuterios Kennedy (1994 p 2002) ressalta
que a repercussatildeo dos ensinos de composiccedilatildeo e a praacutetica dos exerciacutecios85 nas
escolas de retoacuterica eacute notada nas obras de Oviacutedio em especial na Metamorfoses
Nesta obra identifica-se o desenvlvimento de narrativas pelo uso de mitos
personificaccedilatildeo comparaccedilatildeo e outras caracteriacutesticas A obra de Oviacutedio eacute uma mostra
de como o uso de exerciacutecios e composiccedilatildeo era produtivo na criaccedilatildeo poeacutetica sem o
compromisso restrito de seguir modelos anteriores que se enquadrassem em um
determinado padratildeo
A partir da Antiguidade avanccedilos nos estudos no campo da linguagem se sucederam
e as questotildees sobre gecircnero tornaram-se relevantes nas pesquisas Bakhtin (2006 p
283) sustenta ldquoOs gecircneros do discurso organizam o nosso discurso quase da
mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos
a moldar o nosso discurso em formas de gecircnerordquo Seguindo ainda a abordagem de
Bahktin (2006 p286) sobre gecircnero do discurso nota-se que ldquoa concepccedilatildeo sobre a
forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado gecircnero do discurso
guia-nos no processo de nosso discursordquo o que significa dizer que a escolha de um
determinado gecircnero implica certas normas a ele vinculadas
85
Kennedy (1994 p 202) menciona que nas escolas de gramaacutetica e retoacuterica os exerciacutecios para preparaccedilatildeo de composiccedilatildeo eram chamados de progymnasmata e representavam a base para a declamaccedilatildeo como estaacutegio avanccedilado nas escolas de retoacuterica
90
Quanto ao uso das palavras em um determinado gecircnero Bakhtin (2006 p 293)
indica que dada palavra costuma funcionar de acordo com o gecircnero que a sustenta
pois ldquoeacute o eco da totalidade do gecircnero que ecoa na palavrardquo As palavras adquirem
expressividade no interior do discurso em funccedilatildeo das caracteriacutesticas de um gecircnero e
recebem os sentidos que o proacuteprio gecircnero estabelece Esta eacute uma razatildeo para o
funcionamento da polissemia na linguagem pois um mesmo termo pode variar de
sentido de acordo com o gecircnero de discurso que o abriga
Com base nas contribuiccedilotildees de Bakhtin os postulados desenvolvidos por
Maingueneau (2008 p 116) apontam que na enunciaccedilatildeo a cena geneacuterica eacute definida
pelo proacuteprio gecircnero sendo parte de um contexto em que os papeacuteis dos parceiros e
as finalidades da comunicaccedilatildeo satildeo definidos Pode-se considerar que a cena
enunciativa se estabelece em inteira relaccedilatildeo com o gecircnero do discurso pois a cada
gecircnero associam-se momentos e lugares especiacuteficos de enunciaccedilatildeo e um ritual
apropriado Desse modo os falantes aprendem a moldar a fala de acordo com as
formas do gecircnero e na comunicaccedilatildeo com o outro a identificar o gecircnero que se
estabelece na interaccedilatildeo
A identificaccedilatildeo do gecircnero na cena enunciativa eacute fundamental no estabelecimento da
compreensatildeo do texto Partindo desse princiacutepio toma-se como base no
desenvolvimento desta tese a concepccedilatildeo de gecircnero adotada pela anaacutelise do
discurso de base enunciativa Assim o gecircnero epistolograacutefico identificado na
produccedilatildeo de Secircneca e de Paulo torna-se o elemento de base para a investigaccedilatildeo
que interliga esses dois autores Vale destacar a importacircncia desse gecircnero no
primeiro seacuteculo de nossa era observando a ocorrecircncia de seu uso de acordo com
as conveniecircncias de cada autor Tambeacutem eacute relevante a identificaccedilatildeo do contexto
sociocultural que serve de base e fundamentaccedilatildeo para a produccedilatildeo da escrita
epistolar naquele momento
Na cultura heleniacutestica percebe-se certa flexibilidade no modo da escrita epistolar o
que torna possiacutevel a identificaccedilatildeo de diferentes escolhas na produccedilatildeo da
epistolografia resultando na diversidade de opccedilotildees do formato protocolar nas
variaccedilotildees da produccedilatildeo textual fatos esses que contribuem para ampliaccedilatildeo de
classificaccedilatildeo do proacuteprio gecircnero epistolar Pode ser observado que o uso do gecircnero
epistolar em Secircneca e Paulo apresenta caracteriacutesticas especiacuteficas de acordo com
os propoacutesitos que cada remetente focaliza para alcanccedilar seu destinataacuterio Por outro
91
vieacutes nota-se que permanece uma estrutura baacutesica que define e identifica o gecircnero
epistolar As epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio contecircm a saudaccedilatildeo breve Seneca Lucilio
suo salutem86 e a despedida Vale As de Paulo apresentam remetente e
destinataacuterio com saudaccedilotildees mais extensas e a despedida com recomendaccedilotildees Os
objetivos de Secircneca e de Paulo ao recorrer ao gecircnero epistolograacutefico direcionam
seus interesses ligados aos discursos constituintes que norteiam suas proacuteprias
escolhas
Essas questotildees apontadas satildeo destacadas logo a seguir nas discussotildees sobre a
inter-relaccedilatildeo entre gecircnero do discurso cenografia e ethos como base para a
constituiccedilatildeo enunciativa do discurso nas produccedilotildees das epiacutestolas de Paulo e de
Secircneca
43 CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO
A noccedilatildeo de cenografia eacute desenvolvida por Maingueneau (2008 p115) a partir de um
quadro teoacuterico que se insere em uma base enunciativa Para ele o termo cenografia
possui um conteuacutedo preciso diante do fenocircmeno denominado cena de enunciaccedilatildeo
de um texto O termo cenografia comporta radical grafia que no dizer de
Maingueneau (2012 p 253) ldquoremete a um processo fundador a inscriccedilatildeo
legitimadora de um texto em sua dupla relaccedilatildeo com a memoacuteria de uma enunciaccedilatildeo
que se situa na filiaccedilatildeo de outras enunciaccedilotildees e que reivindica certo tipo de
reempregordquo
No desenvolvimento de seus postulados como jaacute mencionado na p 82
Maingueneau fundamenta o conceito de enunciaccedilatildeo com base em Benveniste que
concebe a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeo a partir dos trecircs elementos que compotildeem a
decircixis linguiacutestica EUTU ndash AQUI ndash AGORA Em analogia a este triacircngulo decircitico
linguiacutestico Maingueneau (1995 p 126) introduz o termo decircixis discursiva para
identificaccedilatildeo de locutor e destinataacuterio discursivos assim como a cronografia
(momento) e topografia (lugar) discursivos Com essa opccedilatildeo Maingueneau (1997
p42) aponta que a decircixis discursiva exerce um papel de acesso inicial agrave cenografia
a partir de um determinado posicionamento discursivo Na construccedilatildeo da cenografia 86
A saudaccedilatildeo e a despedida satildeo colocadas respectivamente no iniacutecio e fim de todas as epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio mas o tradutor Segurado e Campos apenas registra a despedida no final da primeira epiacutestola colocando em nota que no original vale eacute despedida padratildeo em todas as epiacutestolas A saudaccedilatildeo eacute uma forma bem simplificada de Secircneca ao desejar sauacutede a Luciacutelio cumprindo o modo protocolar da escrita romana de epiacutestola
92
as cenas validadas87 podem funcionar como enunciaccedilotildees anteriores das quais a
decircixis atual retira parte de sua legitimidade Quanto agraves cenas validadas na
composiccedilatildeo da cenografia Miangueneau (1997 p45) enfatiza que ldquolonge de ser
simplesmente um aparato retoacuterico esses processos de identificaccedilatildeo desempenham
um papel crucial no exerciacutecio da discursividaderdquo
A partir da noccedilatildeo de cenografia discursiva nota-se que as marcas empiacutericas da
decircixis linguiacutestica estabelecem seu lugar pontual na identificaccedilatildeo dos atores da
enunciaccedilatildeo em contexto espaccedilo-temporal As marcas linguiacutesticas de pessoa tempo
e lugar no discurso definem o ponto de partida do qual o leitor se apropria como
base para construccedilatildeo de sentidos Progressivamente o co-enunciador vai captando
a forma textual dos enunciados identificando certo distanciamento entre empiacuterico e
discursivo na linearidade do discurso se apropriando do fenocircmeno da discursividade
que a enunciaccedilatildeo possibilita
Maingueneau (2008a p 115-118) reafirma que a cena de enunciaccedilatildeo de um texto
associa trecircs cenas de fala A primeira trata da cena englobante sendo a que
caracteriza o tipo de discurso (literaacuterio poliacutetico religioso filosoacutefico) Nas epiacutestolas de
Secircneca o tipo de discurso que caracteriza a cena englobante eacute identificado como
discurso filosoacutefico Nas epiacutestolas de Paulo a cena englobante eacute associada ao
discurso religioso A segunda cena geneacuterica confronta o gecircnero de discurso que na
produccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca e Paulo eacute definido como gecircnero epistolar como eacute
tratado neste trabalho A terceira cena eacute a cenografia que se constitui na
enunciaccedilatildeo de acordo com o gecircnero do discurso e esta natildeo eacute imposta nem pelo tipo
de discurso e nem pelo gecircnero mas eacute instituiacuteda pelo proacuteprio discurso A cenografia
valida a enunciaccedilatildeo na forma linguiacutestica de conduccedilatildeo do discurso e tambeacutem eacute
confirmada por ela no transcorrer do ato enunciativo O leitor eacute capaz de identificar
a cenografia instaurada jaacute no iniacutecio do texto e no desenrolar da enunciaccedilatildeo torna-se
mais evidente sua compreensatildeo de que aquela eacute a cenografia que foi mobilizada
para fornecer o encaminhamento discursivo ao gecircnero do discurso
87
Na obra Novas Tendecircncias em Anaacutelise do Discurso Maingueneau (1997 p 42) faz uso do termo ldquodecircixis fundadorardquo no sentido de captaccedilatildeo de uma enunciaccedilatildeo anterior que se institui a favor da decircixis atual Nas obras que se seguiram Maingueneau usou o termo cenas validadas em lugar de decircixis fundadora Maingueneau (2012 p 255-256) expotildee que a cena de enunciaccedilatildeo validada pode se mostrar atraveacutes de citaccedilotildees menccedilotildees a outro texto marcas no proacuteprio texto que revindicam cenas de fala em outras enunciaccedilotildees antecedentes
93
A captaccedilatildeo da discursividade favorece a apreensatildeo do ethos pelo processo em que
a enunciaccedilatildeo se autolegitima ao instituir um enunciador e um co-enunciador de
acordo com um conteuacutedo desenvolvido no proacuteprio texto Ao enunciar o locutor
constroacutei sua proacutepria imagem em funccedilatildeo da que ele constroacutei do leitor e nesse
aspecto o enunciador se apropria de representaccedilotildees sociais valorizadas pelos seus
interlocutores Charaudeau (2006 p 115) observa que ldquoo ethos relaciona-se ao
cruzamento de olhares olhar do outro sobre aquele que fala olhar daquele que fala
sobre a maneira que ele pensa que o outro o vecircrdquo
Eacute pertinente observar que o uso do gecircnero epistolar nos discursos de Secircneca e
Paulo eacute influenciado pelo modo como se constitui a cenografia na cena enunciativa
contribuindo para caracterizaccedilatildeo de modos distintos de produccedilatildeo do gecircnero
epistolar Nas epiacutestolas de Secircneca a identificaccedilatildeo eacute de uso do gecircnero epistolar
filosoacutefico enquanto nas epiacutestolas de Paulo o discurso eacute designado como gecircnero
epistolar de aconselhamento Partindo da constituiccedilatildeo da cenografia pouco a pouco
o enunciador (remetente) desenvolve sua reflexatildeo a partir do ponto lanccedilado no
introito da epiacutestola com vistas a alcanccedilar seus propoacutesitos na interlocuccedilatildeo com o co-
enunciador (destinataacuterio)
A concepccedilatildeo de ethos nos postulados da anaacutelise do discurso de base enunciativa
toma como ponto de partida a concepccedilatildeo de ecircthos retoacuterico88 na Antiguidade
Habinek (2005 p 82 83) lembra que Isoacutecrates relacionava a eloquecircncia ao caraacuteter
individual do orador sendo fundamental o fato de que persuadir o outro significa
falar com autoridade como evidecircncia do proacuteprio exemplo O homem eloquente eacute
considerado capaz quando examina os problemas com suas proacuteprias habilidades
Mediante esta expectativa da retoacuterica Isoacutecrates enfocava aspectos externos e
internos do caraacuteter do orador Para ele o discurso era o guia das accedilotildees e do
pensamento A partir dessas concepccedilotildees interior e exterior seriam dois lados de
uma mesma moeda sendo indissociaacutevel um bom homem um bom caraacuteter e um
bom orador
88
Na Antiguidade o conceito de ethos retoacuterico eacute ligado agrave oratoacuteria e na nova retoacuterica e anaacutelise do discurso esse conceito eacute aplicado tambeacutem ao discurso em forma textual Eacute nessa perspectiva atual que a categoria de ethos torna-se viaacutevel na anaacutelise das epiacutestolas de Secircneca e Paulo Em anaacutelise do discurso o termo natildeo eacute acentuado por ser abrangente no seu significado incluindo os diferentes sentidos de uso na Antiguidade
94
Na concepccedilatildeo de Ciacutecero (De Oratore I V 17-19) a postura do orador (ecircthos) estaacute
inteiramente atrelada ao tipo de audiecircncia (paacutethos) visto que o orador precisa estar
ligado aos interesses de tal audiecircncia para conseguir alcanccedilaacute-la Assim a
eloquecircncia se constitui em duas dimensotildees a eacutetica que direciona a conduta do
orador a outra dimensatildeo se estabelece no campo da emoccedilatildeo tanto do ecircthos
daquele que se dirige ao ouvinte quanto a reaccedilatildeo que faz despertar nele De acordo
com esse ritual as manifestaccedilotildees corporais do orador causam efeito na recepccedilatildeo do
ouvinte
Quintiliano menciona sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves terminologias ἦθος (ecircthos) e πάθος
(paacutethos) como usadas de forma mais recorrente no grego Ele identificou mores
como equivalente de ecircthos e sugere que alguns aspectos deveriam ser
acrescentados aos significados desses termos usados pelos oradores antigos e os
de seu tempo jaacute que a relaccedilatildeo oradorouvinte deveria ser pensada de forma mais
ampla (Ins Or VI 2 8) Quintiliano expotildee suas ideias acerca de suas concepccedilotildees
de ecircthos e paacutethos e quando ele analisa tal relaccedilatildeo ele pondera que a caracteriacutestica
que os diferencia tem como base o lugar que cada um ocupa no efeito do discurso
na oratoacuteria Entatildeo agrave medida que o orador expotildee o seu discurso tambeacutem marcas de
seu caraacuteter satildeo mostradas diante dos ouvintes Quintiliano defende que o orador
deveria ser afaacutevel e humano dirigindo-se ao puacuteblico de maneira suave e sem
arrogacircncia e que o seu discurso natildeo fosse uma vatilde repeticcedilatildeo mas expressado com
sinceridade Por um lado atraveacutes do ecircthos do orador os ouvintes deveriam ser
tocados em seus sentimentos (paacutethos) de tal forma que o discurso pudesse ser
convincente Por outro lado o orador (ecircthos) deveria demonstrar eacutetica e moderaccedilatildeo
para permitir-lhe agir com sabedoria mediante qualquer tipo de ouvinte Por isso as
instruccedilotildees de Quintiliano natildeo se limitam somente ao discurso juriacutedico mas se
aplicam a qualquer discurso (Inst Or VI 2 9-18)
Foucault (2010a p342) identifica em sua anaacutelise que Quintiliano considerava que a
teacutekhne que integrava a retoacuterica deveria ser indexada agrave verdade Poreacutem a verdade
referida por ele natildeo eacute aquela que estaacute contida no discurso de quem fala mas a
verdade tal como eacute conhecida por aquele que fala Portanto as qualidades de um
ecircthos satildeo determinantes para o efeito de verdade sustentado pelo orador
Foucault (2004) identifica que as consideraccedilotildees sobre subjetivaccedilatildeo do ecircthos
naquele contexto do primeiro seacuteculo dC estavam diretamente ligadas agraves
95
concepccedilotildees do binocircmio filosofia e retoacuterica Foucault (2004 p147) observa que os
conhecimentos selecionados em uma perspectiva da formaccedilatildeo moral seriam
adquiridos e internalizados pelo indiviacuteduo Assim tais conhecimentos poderiam ser
adquiridos atraveacutes dos hupomnecircmata resultante da observaccedilatildeo das leituras das
anotaccedilotildees e a incorporaccedilatildeo do jaacute-dito Todo esse processo contribuiacutea para a
internalizaccedilatildeo daquilo que o sujeito elaborava e apreendia como discurso
verdadeiro Por isso a praacutetica da leitura e da escrita eacute capaz de produzir o ethos e
modificar a maneira de ser de algueacutem Portanto a funccedilatildeo etopoieacutetica pode ser vista
como accedilatildeo e efeito do ethos ou seja a maneira de ser de um indiviacuteduo e o modo de
se mostrar diante do outro demonstrando que subjetividade e ethos satildeo
manifestados retoricamente no discurso
A partir de uma visatildeo da heranccedila retoacuterica como base para as formulaccedilotildees sobre
argumentaccedilatildeo nos estudos atuais Amossy (2005 p 122) coloca em pauta a trilogia
lanccedilada por Aristoacuteteles ecircthos paacutethos e loacutegos Esse retorno ao passado natildeo se
prende exclusivamente agraves contribuiccedilotildees herdadas de Aristoacuteteles mas se volta
tambeacutem para as modificaccedilotildees desses pressupostos nos trabalhos de Ciacutecero e
Quintiliano De acordo com essas concepccedilotildees de Amossy o ethos nos postulados
da anaacutelise do discurso eacute visto de forma que abrange tanto os postulados da retoacuterica
na Antiguidade quanto os desenvolvidos a partir da nova retoacuterica
Os estudos da nova retoacuterica desenvolvidos a partir de Perelman e Olbrechts-Tyteca
fornecem para os estudos de Maingueneau o embasamento para ampliaccedilatildeo da
noccedilatildeo de ethos para o texto escrito concebendo o discurso como uma enunciaccedilatildeo
Desse modo Maingueneau (2005 p 69) defende que o ethos pode ser apreendido
tanto no discurso oral quanto no escrito O texto embora soacute escrito eacute sustentado
por uma lsquovozrsquo e um lsquocorpo enunciantersquo89 e ldquoa noccedilatildeo de ethos aleacutem da persuasatildeo
por argumentos permite de fato refletir sobre o processo mais geral da adesatildeo de
sujeitos a uma certa posiccedilatildeo discursivardquo
89
Ao se referir agrave expressatildeo ldquocorpo enuncianterdquo Maingueneau (2005 p 72-73) lanccedila matildeo do conceito de incorporaccedilatildeo para designar a maneira pela qual o co-enunciador se relaciona com o ethos de um discurso que pode atuar em trecircs registros indissociaacuteveis Por um lado a enunciaccedilatildeo do texto confere uma corporalidade ao fiador cuja figura o leitor deve construir com base em indiacutecios tectuais Por outro lado o co-enunciador incorpora assimila um conjunto de esquemas que correspondem agrave maneira especiacutefica de relacionar-se com o mundo habitando em seu proacuteprio corpo O texto natildeo eacute para ser contemplado ele eacute enunciaccedilatildeo voltada para um co-enunciador que eacute necessaacuterio mobilizar para fazecirc-lo aderir fisicamente a um certo universo de sentido
96
Sintetizando e inter-relacionando as abordagens claacutessicas sobre ecircthos torna-se
pertinente pensar que o ecircthos mostrado pode ser concebido tanto como o ecircthos
apontado por Aristoacuteteles quanto o ecircthos na perspectiva de Ciacutecero No que diz
respeito ao ecircthos defendido por Quintiliano este se identifica com o ethos preacute-
discursivo Maingueneau observa que essas formas de apreensatildeo do ethos podem
se apresentar em uma interligaccedilatildeo entre essas instacircncias
O ethos de um discurso resulta da interaccedilatildeo de diversos fatores ethos preacute-discursivo ethos discursivo (ethos mostrado) mas tambeacutem os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua proacutepria enunciaccedilatildeo (ethos dito) ndash diretamente (ldquoeacute um amigo que lhes falardquo) ou indiretamente por meio de metaacuteforas ou de alusotildees a outras cenas de fala por exemplo A distinccedilatildeo entre ethos dito e mostrado se inscreve nos extremos de uma linha contiacutenua uma vez que eacute impossiacutevel definir uma fronteira niacutetida entre o ldquoditordquo sugerido e o puramente ldquomostradordquo pela enunciaccedilatildeo (MAINGUENEAU 2008a p 71)
O ethos no texto escrito eacute identificado de acordo com sua forma de expressatildeo e
construccedilatildeo do discurso As escolhas do leacutexico das adjetivaccedilotildees dos verbos e das
construccedilotildees sintaacuteticas revelam o enunciador natildeo havendo separaccedilatildeo entre ethos e
coacutedigo de linguagem proacuteprios de uma posiccedilatildeo discursiva que se identifica no
discurso No texto os recursos linguiacutesticos satildeo marcas que propiciam o
reconhecimento do ethos e sua relaccedilatildeo com o leitor-modelo de acordo com uma
imagem preacute-construiacuteda
Nessa abordagem o ethos eacute integrante da cena de enunciaccedilatildeo para aleacutem de seu
papel na instacircncia argumentativa do discurso como o proacuteprio Maingueneau (2005
p69) afirma ldquoAleacutem da persuasatildeo por argumentos a noccedilatildeo de ethos permite de
fato refletir sobre o processo mais geral da adesatildeo de sujeitos a certa posiccedilatildeo
discursivardquo Essas concepccedilotildees de ethos adotadas por Maingueneau servem de
paracircmetro para anaacutelise neste trabalho pois elas conjugam os diferentes sentidos de
ethos como tratados na Antiguidade greco-romana
Essa visatildeo bem sumaacuteria da integraccedilatildeo entre gecircnero do discurso cenografia e ethos
contribui para a apreensatildeo do gecircnero epistolograacutefico nas produccedilotildees dos discursos
de Secircneca e Paulo e o modo da inter-relaccedilatildeo na constituiccedilatildeo da cenografia e ethos
97
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE I
Esta primeira parte cumpre a funccedilatildeo de um embasamento teoacuterico que fornece
sustentaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo desta pesquisa A reuniatildeo de colocaccedilotildees e posiccedilotildees de
diferentes pesquisadores oriunda de colaboraccedilotildees variadas conjunga postulados
de eficaacutecia na Antiguidade e redefiniccedilatildeo na atualidade como sucede nos estudos da
retoacuterica
Foucault representa um ponto de interligaccedilatildeo com a Antiguidade ao estabelecer seu
propoacutesito em analisar a constituiccedilatildeo de sujeito e verdade focalizando a filosofia
socraacutetica como fundadora da noccedilatildeo do cuidado de si e os desdobramentos do
aforisma ldquoconheccedila-te a ti mesmordquo nos primeiros seacuteculos de nossa era
Foucault (2004 2010a) mostra que a escrita de si o cuidado de si e do outro satildeo
caracteriacutesticas inerentes agrave escrita epistolar Assim o gecircnero epistolar eacute um espaccedilo
que se abre para a comunicaccedilatildeo entre ausentes e a oportunidade para exposiccedilatildeo
da proacutepria subjetividade na forma como se mostra o ethos
A instituiccedilatildeo da cenografia na enunciaccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico contribui para a
verificaccedilatildeo do encadeamento que interliga ethos paacutethos e loacutegos ou seja
enunciador co-enunciador e discurso O papel da cenografia no gecircnero epistolar eacute
determinante na identificaccedilatildeo do subgecircnero Na enunciaccedilatildeo das epiacutestolas de
Secircneca identifica-se a cenografia de um tratado que fornece caracteriacutesticas para a
classificaccedilatildeo de uma epiacutestola filosoacutefica Na produccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo a
cenografia eacute de um manual de instruccedilotildees eacuteticas caracterizando uma epiacutestola de
aconselhamento
A retoacuterica integra o discurso atraveacutes dos recursos e modo como o enunciador
estabelece sua comunicaccedilatildeo com o co-enunciador Os argumentos retoacutericos servem
de sustentaccedilatildeo para o efeito de verdade que a argumentaccedilatildeo promove no discurso
Na funccedilatildeo de ativar o discurso verdadeiro a parresiacutea na sua forma original como
falar franco e sincero se torna fundamental para identificaccedilatildeo dos posicionamentos
no discurso assumidos por Secircneca e Paulo partindo do uso de um lugar comum
que eacute o ldquofalar francordquo
As discussotildees sobre retoacuterica na Antiguidade contribuem com algumas concepccedilotildees
desse tema como praticado entre gregos e romanos e ainda permite extrair
98
elementos das formulaccedilotildees teoacutericas da retoacuterica antiga que satildeo aplicaacuteveis aos
discursos como as noccedilotildees de ethos paacutethos e loacutegos Essa accedilatildeo de releitura da
retoacuterica antiga eacute exercida pela nova retoacuterica a qual exerce influecircncia tambeacutem nas
formulaccedilotildees dos postulados teoacutericos no surgimento da anaacutelise do discurso de base
enunciativa
Conclui-se que a abordagem que Maingueneau desenvolve sobre discursos
constituintes eacute aplicaacutevel agrave anaacutelise das epiacutestolas de Seacuteneca e de Paulo tendo em
vista a definiccedilatildeo do gecircnero de discurso subjugada ao discurso constituinte que o
institui Seguindo os postulados da anaacutelise do discurso de base enunciativa em
Secircneca o uso do gecircnero epistolar eacute produzido na esfera do discurso filosoacutefico e em
Paulo no discurso religioso A identificaccedilatildeo da cenografia eacute a chave que permite
observar as epiacutestolas de Secircneca como gecircnero epistolar filosoacutefico e as de Paulo
gecircnero epistolar de aconselhamento
A segunda parte a seguir situa a cena enunciativa geneacuterica que institui o gecircnero de
discurso o ethos e a cenografia Uma revisatildeo histoacuterica sobre gecircnero epistolograacutefico
se faz necessaacuteria para compreensatildeo da contextualizaccedilatildeo da escrita de Secircneca e
Paulo neste gecircnero e tambeacutem a identificaccedilatildeo do uso do termo epiacutestola como
praticado na Antiguidade
O conhecimento de parte do contexto histoacuterico em que Paulo e seus destinataacuterios
estatildeo inseridos eacute produtivo na construccedilatildeo de sentidos dos textos das epiacutestolas
dirigidas agrave igreja de Corinto Os dados histoacutericos contribuem para observaccedilatildeo da
construccedilatildeo discursiva da imagem do apoacutestolo Paulo no contexto de sua formaccedilatildeo
cultural e religiosa como heranccedila da influecircncia do periacuteodo Heleniacutestico As influecircncias
do periacuteodo Heleniacutestico tambeacutem satildeo marcadas na trajetoacuteria de Secircneca e seu
engajamento na filosofia estoica fornece significados para observaacute-lo na apropriaccedilatildeo
do discurso verdadeiro na escrita de si e do outro e na manifestaccedilatildeo do discurso A
identificaccedilatildeo do ambiente histoacuterico-cultural que serve de base para a formaccedilatildeo
educacional e moral na vida de Secircneca e de Paulo contribui para o entendimento da
constituiccedilatildeo do ethos de cada um deles dando suporte para o entendimento da
identificaccedilatildeo do posicionamento discursivo que cada um deles ocupa em seus
discursos
99
PARTE II
1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CENA DA ENUNCIACcedilAtildeO NAS
EPIacuteSTOLAS DE PAULO E DE SEcircNECA
A ideia que temos da forma do nosso enunciado isto eacute de um gecircnero preciso do discurso dirige-nos em nosso processo discursivo
Bakhtin (2006 p 305)
A partir das contribuiccedilotildees da anaacutelise do discurso desenvolvidas por Maingueneau e
outros pesquisadores os discursos de Paulo e Secircneca produzidos via epiacutestolas
seratildeo analisados na esfera do acontecimento enunciativo ou seja o sujeito enuncia
situado em um determinado posicionamento discursivo dirigindo-se a um TU que o
EU identifica como ponto alvo do seu proacuteprio discurso O espaccedilo de onde se fala eacute
determinado por um contexto histoacuterico-social e o tempo da enunciaccedilatildeo se localiza
nos acontecimentos que antecedem e atualizam a enunciaccedilatildeo
Assim nesta parte da tese o foco eacute o estabelecimento da reuniatildeo de elementos que
contribuam para identificar historicamente o contexto em que Paulo e Secircneca
podem ser situados na vigecircncia do seacuteculo I dC Tais elementos estatildeo relacionados
aos campos que englobam poliacutetica educaccedilatildeo literatura filosofia e religiatildeo
Todo esse conjunto de dados que procura situar as aspiraccedilotildees e os valores eacuteticos
da moral idealizados pelo cidadatildeo greco-romano serve como base empiacuterica ou
seja o ponto de partida para compreensatildeo das praacuteticas discursivas que funcionam
como identificaccedilatildeo de posicionamentos que cada enunciador ocupa na produccedilatildeo de
seu texto A intensidade da heranccedila do pensamento filosoacutefico platocircnico e aristoteacutelico
influencia o surgimento e continuidade das correntes filosoacuteficas que se voltam para a
eacutetica como conduta o que resulta na tendecircncia de uma adesatildeo ora ao pensamento
estoico ora ao epicurista acrescentando-se o aproveitamento de outras tendecircncias
pitagoacutericas e ciacutenicas Todos os campos do saber com suas ligaccedilotildees e ramificaccedilotildees
tecircm como suporte e sustentaccedilatildeo a base na influecircncia heleniacutestica que contribui para
conjugar os valores esteacuteticos morais sociais poliacuteticos como um ideal a ser buscado
e alcanccedilado
100
O discurso filosoacutefico assumido por Secircneca e o religioso por Paulo satildeo tipos de
discurso que se estabelecem na esfera dos discursos constituintes Assim como jaacute
observado o gecircnero epistolograacutefico como recurso de organizaccedilatildeo dos discursos de
Secircneca e de Paulo satildeo identificados em campos discursivos diferentes de acordo
com o tipo de discurso que os abriga Entatildeo o gecircnero epistolar eacute um recurso do
registro de manifestaccedilatildeo da linguagem que pode ser identificado como um gecircnero
adaptaacutevel aos diferentes tipos de discurso filosoacutefico religioso literaacuterio e outros O
discurso constituinte eacute responsaacutevel pelo posicionamento central do enunciador
apontando para a origem daquele tipo de discurso em uso
Como jaacute apontado neste trabalho na produccedilatildeo do gecircnero do discurso configuram-se
dois elementos essenciais para o desenvolvimento do processo enunciativo a
cenografia e o ethos pois estes satildeo constituiacutedos em harmonia com o discurso
constituinte que os sustenta Sendo a cenografia uma categoria que se legitima com
base nas trecircs instacircncias enunciativas ela se estabelece no triacircngulo da enunciaccedilatildeo
EU-TU AQUI AGORA Estas questotildees relembradas neste ponto da pesquisa
interligam os postulados de base enunciativa com as condiccedilotildees de produccedilatildeo no
espaccedilo e momento em que Paulo e Secircneca pronunciam seus discursos
As condiccedilotildees de produccedilatildeo contribuem para a realizaccedilatildeo linguiacutestica do discurso pois
segundo Charaudeau e Maingueneau (2008 p 115) por um lado ldquoo sujeito falante eacute
sempre parcialmente sobredeterminado pelos saberes crenccedilas e valores que
circulam no grupo social ao qual pertencerdquo por outro lado ldquoele eacute igualmente
sobredeterminado pelos dispositivos de comunicaccedilatildeo nos quais se insere para falar
e que lhe impotildeem certos lugares papeis e comportamentosrdquo
Conveacutem situar o gecircnero epistolograacutefico como recurso de comunicaccedilatildeo no primeiro
seacuteculo de nossa era com suas funccedilotildees variadas que tambeacutem possibilitavam a
circulaccedilatildeo do pensamento de um enunciador remetente que mesmo tendo um
destinataacuterio exclusivo como Luciacutelio a quem Secircneca se dirige ou a igreja de Corinto
a quem Paulo escreve tornava-se relevante o seu valor puacuteblico em relaccedilatildeo aos
possiacuteveis e diferentes leitores como destinataacuterios Este eacute um assunto que na
atualidade ainda se discute na tentativa de se estabelecer uma diferenccedila entre carta
e epiacutestola enquadrando a carta no setor privado e a epiacutestola no puacuteblico Como
contribuiccedilatildeo para esses questionamentos este tema eacute abordado situando
101
diferentes posicionamentos procurando um acordo que melhor se enquadre agrave
concepccedilatildeo de gecircnero epistolar na Antiguidade
Segundo Guarniere (2016 p 51) mesmo natildeo havendo uma fixaccedilatildeo determinada de
gecircnero epistolar na Antiguidade a formaccedilatildeo retoacuterica oferecia ao escritor de
epiacutestolas certas ferramentes para o manejo das convenccedilotildees da epistolografia Por
isso alguns tipos de epiacutestolas se ajustavam ao modo do discurso deliberativo
quando o objetivo maior eram os conselhos as admoestaccedilotildees e as reflexotildees dos
valores morais Ainda os conteuacutedos poderiam estar voltados para as questotildees de
amizade reconhecimento agradecimento e outros sendo mais adequados ao
discurso epidiacutetico Decerto os trecircs modos retoacutericos de organizaccedilatildeo dos discursos
judiciaacuterio epidiacutetico e deliberativo satildeo interligados na composiccedilatildeo epistolar Estes
discursos satildeo fundamentais como definiccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da correspondecircncia e
a relaccedilatildeo com a retoacuterica antiga
A ideia de epiacutestola eacute abrangente na Antiguidade em especial o sentido originaacuterio
do grego cuja finalidade eacute o envio de uma mensagem O significado se manteacutem de
acordo com os propoacutesitos originais mas diversifica-se nas vaacuterias modalidades das
formas de circulaccedilatildeo como comunicaccedilatildeo Alguns desses aspectos satildeo abordados a
seguir na busca de uma compreensatildeo da importacircncia do desempenho do gecircnero
epistolar em sua trajetoacuteria na Antiguidade
102
2 A EPISTOLOGRAFIA SEU LUGAR NA ANTIGUIDADE E SUA
CONTINUIDADE NA HISTOacuteRIA
Eacute bem visiacutevel na histoacuteria dos antigos gregos a praacutetica do uso do gecircnero
epistolograacutefico tendo uma diversidade de caracteriacutesticas e objetivos Na sua
essecircncia as finalidades eram de manutenccedilatildeo do contato entre pessoas distantes
aconselhamento advertecircncia exortaccedilatildeo sendo as epiacutestolas portadoras de temas
relevantes no campo da filosofia doutrinaacuteria da poliacutetica da moral da religiatildeo e como
fonte documental nas transaccedilotildees de negoacutecios Um exemplo notoacuterio se encontra na
coleccedilatildeo de epiacutestolas de Platatildeo90 a diferentes destinataacuterios com destaque para suas
discussotildees filosoacuteficas e poliacuteticas tendo Dioniacutesio I rei de Siracusa o lugar de
personagem em destaque Em sua correspondecircncia Platatildeo faz referecircncias ao
costume do envio de epiacutestolas defendendo o valor destas em detrimento da
distacircncia como causa da ausecircncia entre amigos Na epiacutestola III ele faz a seguinte
colocaccedilatildeo [] ldquona verdade natildeo ousaria relembrar quantas cartas enviastes tu e
outros solicitados por ti da Itaacutelia e da Siciacutelia tanto a familiares como a amigos
meusrdquo91 Nesta mesma missiva Platatildeo levanta a questatildeo sobre o protocolo da
introduccedilatildeo de uma epiacutestola ldquoterei eu encontrado para minha carta a melhor forma de
saudaccedilatildeo Ou escreverei antes como eacute meu costume quando me dirijo aos meus
amigos lsquoBoa sortersquordquo
Quanto agraves origens do uso de epiacutestolas Alexandre Juacutenior fornece as seguintes
informaccedilotildees
O termo epistolē (epiacutestola ou carta) referia-se originalmente a uma mensagem oral enviada por um arauto ou mensageiro Mas acabou por se aplicar sobretudo aos documentos escritos enviados por alguma entidade ou instituiccedilatildeo a um destinataacuterio especiacutefico O verbo epistellein significava simplesmente lsquotransmitir ou enviar uma mensagemrsquo dar ou receber ordens por escrito [] Com o tempo as cartas vieram a revelar-se instrumentos privilegiados de comunicaccedilatildeo mais ou menos literaacuteria [] Na eacutepoca heleniacutestica era ainda mais corrente a literatura epistolar tanto oficial como privada Augusto desenvolveu um sistema de correios cujo serviccedilo se prestava por jovens na idade militar Para o tornar mais funcional e eficaz o imperador construiu uma rede de estalagens por terra e de barcos por mar
90
As tradutoras portuguesas Conceiccedilatildeo Gomes da Silva e Maria Adozinha Melo optaram por traduzir o termo grego epiacutestolas como cartas na obra de Platatildeo Na coleccedilatildeo as trecircs primeiras cartas e a uacuteltima satildeo escritas de Platatildeo para o rei Dioniacutesio I denominado tirano de Siracusa O teor das cartas eacute de conselhos repreensatildeo e discussatildeo quanto aos temas filosoacuteficos e poliacuteticos Os outros destinataacuterios satildeo Dion de Siracusa e seus amigos e parentes Hermias Aristodoro Lodamas e Arquitas de Tarento
103
devidamente protegidos para fazer que o correio chegasse ao seu destino com a maior celeridade e seguranccedila possiacutevel Era tatildeo corrente a circulaccedilatildeo epistolar no seacuteculo I aC que soacute de Ciacutecero haacute notiacutecia de mais de oitocentas cartas (ALEXANDRE JR 2015 p 167)
A praacutetica do envio de correspondecircncias como mostram os dados fornecidos por
Alexandre Jr eacute identificada tambeacutem nos textos biacuteblicos mais tardios na eacutepoca do
Velho Testamento No tempo do cativeiro babilocircnico havia o costume do envio de
um arauto para conduzir uma mensagem como narrado no livro de Daniel92 Aleacutem
desse fato no livro de Baruc o capiacutetulo quatro eacute composto pela citaccedilatildeo da coacutepia de
uma epiacutestola do profeta Jeremias aos judeus A introduccedilatildeo do capiacutetulo tem o
seguinte teor ldquocoacutepia da carta que Jeremias enviou aos que iam ser levados para
Babilocircnia como prisioneiros pelo rei dos babilocircnios a fim de lhes dar a conhecer o
que lhe fora ordenado por Deusrdquo (Baruc 61)93
Situados no periacuteodo Heleniacutestico os livros biacuteblicos de I e II Macabeus contecircm
informaccedilotildees sobre o envio de mensagens atraveacutes de epiacutestolas sendo protocolar o
tipo de saudaccedilatildeo na introduccedilatildeo ldquoSauacutede aos nossos irmatildeos judeus que estatildeo no
Egito Seus irmatildeos os judeus residentes em Jerusaleacutem e no paiacutes de Judaacute auguram-
lhes uma paz venturosardquo (II Macabeus 11)94 O teor das correspondecircncias ou visava
uma comunicaccedilatildeo entre os judeus de Jerusaleacutem com os do Egito e outros ou
mesmo primava pelas relaccedilotildees com setor poliacutetico interno e externo e comunicaccedilatildeo
com outras naccedilotildees No tratamento das questotildees de aproximaccedilotildees poliacuteticas a
epiacutestola do rei Antiacuteoco IV tem o seguinte introito ldquoaos honrados cidadatildeos judeus da
parte de Antiacuteoco rei e chefe do exeacutercito muitas saudaccedilotildees e votos de sauacutede e bem
estarrdquo (2 Macabeus 919)95 Estas indicaccedilotildees textuais servem como forma de
92
ldquoE o arauto apregoava em alta voz ordena-se a voacutes oacute povos naccedilotildees e liacutenguas Quando ouvirdes o som da buzina da flauta da harpa da sambuca do salteacuterio da gaita de foles e de toda a espeacutecie de muacutesica prostrar-vos-eis e adorareis a estaacutetua de ouro que o rei Nabucodonosor tem levantado E qualquer que natildeo se prostrar e natildeo a adorar seraacute na mesma hora lanccedilado dentro da fornalha de fogo ardenterdquo (Daniel 34-6) 93
Os textos citados estatildeo contidos na traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem Na Nova Vulgata o termo traduzido como carta no portuguecircs aparece como epistula em latim Exemplum epistulae quam mi sit Ieremias ad abducendos cap tivos in Babyloniam a rege Babyloniorum ut nuntiaret illis secundum quod praeceptum est ei a Deo (Baruc 61) 94
De acordo com nota deste texto na Biacuteblia de Jerusaleacutem as epiacutestolas dos judeus de Jerusaleacutem aos do Egito tinham como objetivo conclamar os judeus para a celebraccedilatildeo de dedicaccedilatildeo do templo Segundo Leacutevecircque (1987 p 47) Antiacuteoco IV partidaacuterio da helenizaccedilatildeo dominou Jerusaleacutem construiu um ginaacutesio ao peacute do Monte Siatildeo profanou o templo com sacrifiacutecios sangrentos e laacute instalou uma estaacutetua de zeus Deu-se entatildeo a revolta liderada por Judas Macabeu e Jerusaleacutem foi retomada em 165 aC Depois do templo restaurado foi realizada a festa de dedicaccedilatildeo 95
Na narrativa do livro de 2 Macabeus 9 o rei Antiacuteoco IV depois de derrotado em suas uacuteltimas batalhas ficou gravemente doente e antes de sua morte escreveu aos judeus uma epiacutestola de conciliaccedilatildeo
104
exemplo do protocolo de introduccedilatildeo de uma epiacutestola no periacuteodo Heleniacutestico aleacutem de
mostrar tambeacutem que no texto da Septuaginta o termo epiacutestola (ἐπιστολὴ) eacute
recorrente Ocorre nas traduccedilotildees dessas citaccedilotildees biacuteblicas para a liacutengua portuguesa
a opccedilatildeo pelo termo carta e natildeo epiacutestola Tanto no comentaacuterio de Alexandre Juacutenior
como nas citaccedilotildees indicadas de 2 Macabeus estatildeo contidas informaccedilotildees sobre a
praacutetica do recurso da epistolografia como meio de comunicaccedilatildeo na Antiguidade mas
as referecircncias aos termos epiacutestola e carta satildeo indistintas sendo os vocaacutebulos em
pauta tratados como sinocircnimos
Houmlrster (2012 p 47) afirma que uso dos termos carta e epiacutestola na Antiguidade
ofereciam sentidos distintos em suas particularidades Poreacutem este autor natildeo avanccedila
em relaccedilatildeo agrave apresentaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo desses usos nos textos em suas origens
Desse modo o sentido de epiacutestola transita paralelo ao de carta nas opccedilotildees da
escolha linguiacutestica sendo este um ponto comum nos debates entre muitos
pesquisadores como seraacute visto mais adiante
Os registros sobre o uso da epistolografia na Antiguidade satildeo muito restritos A
produccedilatildeo de epiacutestolas era significativa mas existem poucas fontes para estudos
relacionados agraves especificidades dessas produccedilotildees Uma das poucas fontes
acessiacuteveis tem como base o texto de Demeacutetrio de Faleros96 De elocutione (Sobre o
estilo) em que ele toca brevemente em algumas questotildees sobre epistolografia De
saiacuteda no livro IV satildeo citadas as epiacutestolas de Aristoacuteteles como fortalecimento para a
ideia de que a epiacutestola tem base no princiacutepio do diaacutelogo Demeacutetrio usa a
terminologia em grego επιστολή (epiacutestola) mas nas traduccedilotildees para o inglecircs e
portuguecircs o termo eacute registrado como letter e carta Demeacutetrio pondera que natildeo se
pode negar a constituiccedilatildeo da epiacutestola como diaacutelogo mas acrescenta outras
caracteriacutesticas inerentes a esta
Mas que a carta tenha ao maacuteximo uma mostra do caraacuteter tal como o diaacutelogo Pois cada qual escreve uma carta quase como uma imagem de sua alma Eacute de fato possiacutevel notar o caraacuteter do escritor em qualquer discurso poreacutem em nenhum outro como na carta (Sobre o estilo IV 227)
97
Em sua anaacutelise da correspondecircncia como escrita de si Foucault (2004 p 156)
ressalta a concepccedilatildeo de Demeacutetrio sobre a produccedilatildeo da epiacutestola e a importacircncia da
96
Demeacutetrio de Faleros (350 aC - 282 aC) Na obra Sobre o estilo introduz algumas consideraccedilotildees sobre epistolografia usando o termo grego επιστολάςacute ldquoE uma vez que o tipo epistolar requer simplicidade tambeacutem a seu respeito falaremosrdquo (Sobre o estilo IV 223) 97
Todas as traduccedilotildees de Demeacutetrio de Faleros satildeo de Gustavo Arauacutejo de Freitas (2011) que na traduccedilatildeo opta pelo tiacutetulo Sobre o estilo
105
manutenccedilatildeo de um estilo simples que permita e favoreccedila a revelaccedilatildeo da alma
Demeacutetrio comenta a respeito de diferentes tipos de epiacutestolas que circulavam em sua
eacutepoca e faz menccedilatildeo agraves de Platatildeo e Aristoacuteteles
Mas como tambeacutem agraves vezes escrevemos a cidades e a reis que se admita que tais cartas sejam pouco mais elevadas pois se deve ter em vista tambeacutem o destinataacuterio Elevada sim mas natildeo a ponto de se tornar em lugar de uma carta um tratado como ocorre com aquelas de Aristoacuteteles a Alexandre ou com a de Platatildeo aos amigos de Diacuteon (Sobre o estilo IV
234)98
Um questionamento eacute levantado quanto agraves finalidades da escrita das epiacutestolas e
Demeacutetrio defende que as produccedilotildees destas deveriam seguir alguns paracircmetros que
pudessem identificaacute-las em seus objetivos principais Ao extrapolar em sua extensatildeo
e e desenvolvimentoo dos assuntos o que a princiacutepio seria uma epiacutestola passaria a
ser um tratado Possivelmente essa colocaccedilatildeo de Demeacutetrio tem influenciado
autores que nomeiam determinadas epiacutestolas como tratado
O que se nota nas colocaccedilotildees de Demeacutetrio eacute a preocupaccedilatildeo de uma especificaccedilatildeo
da aplicaccedilatildeo do termo epiacutestola que na praacutetica era usado de forma abrangente e
sem nenhuma designaccedilatildeo de acordo com os diferentes tipos de correspondecircncia
Vale enfatizar que essa observaccedilatildeo de Demeacutetrio evidencia a praacutetica do uso do termo
epiacutestola para qualquer tipo de correspondecircncia havendo estabilidade no uso do
termo sem ser trocado por outro equivalente Esse fato contribui para a relevacircncia
no cuidado ao transportar termos de uso exclusivo na Antiguidade para a atualidade
como ocorre na traduccedilatildeo da designaccedilatildeo epiacutestola como letter em inglecircs e carta no
portuguecircs provocando um distanciamento do caraacuteter original do vocaacutebulo Esta
pode ser uma das questotildees que interferem nas discussotildees atuais sobre a
delimitaccedilatildeo de sentidos dos termos epiacutestolalettercarta como abordado nas
discussotildees que se seguem
Existe um interesse no acircmbito da academia em decifrar o funcionamento da
correspondecircncia na Antiguidade Os papiros de Oxirrinco99 descobertos no final do
seacuteculo XVIII satildeo considerados uma produtiva fonte de pesquisa dos textos antigos
98
Como apontado por Demeacutetrio a carta VII De Platatildeo aos amigos e parentes de Dion eacute muito extensa pois Platatildeo narra com detalhes as viagens o seu relacionamento poliacutetico em Siracusa daacute conselhos e oferece ensinamentos de seus princiacutepios filosoacuteficos 99
Os papiros de Oxirrinco (Oxyrhychus papyri) satildeo uma seacuterie de manuscritos a maioria em papiro descobertos nas escavaccedilotildees arqueoloacutegicas no Egito a partir de 18961897 Trapp (2003 p 7-11) menciona a importacircncia desta descoberta para a identificaccedilatildeo de tipos de epistolas escritas em grego e em latim na Antiguidade que tratam de diferentes assuntos tanto no sentido puacuteblico quanto no privado
106
trazendo tambeacutem a discussatildeo sobre a correspondecircncia classificada como epiacutestola
Deissmann eacute um dos pesquisadores nesse campo que faz uma separaccedilatildeo entre
carta e epiacutestola Para este autor o que distingue ambas eacute o fato de somente a
epiacutestola ser literaacuteria Para Deissmann (1927 p 218) o natildeo literaacuterio focaliza em
especial os parceiros da comunicaccedilatildeo emissaacuterio e destinataacuterio A carta por sua
finalidade natildeo literaacuteria se reveste de caraacuteter particular com um objetivo direcionado
e estipulado A epiacutestola eacute generalizada quanto ao seu puacuteblico alvo tendo um
objetivo mais abrangente quanto ao alcance de possiacuteveis destinataacuterios razatildeo que
justifica sua caracterizaccedilatildeo como literaacuteria100
Deissmann (1927 p 225) alega que com o recurso da anaacutelise dos documentos dos
textos biacuteblicos encontrados foi feita uma comparaccedilatildeo entre as cartas de Paulo e as
dos demais apoacutestolos Esse material serviu de fonte para sua proacutepria conclusatildeo de
que somente as cartas de Paulo eram dirigidas agraves comunidades especiacuteficas ou a
uma pessoa como a carta de Filemom101 natildeo sendo consideradas literaacuterias As
outras correspondecircncias satildeo de caraacuteter mais geral em relaccedilatildeo aos destinataacuterios
podendo ser classificadas como epiacutestolas por serem literaacuterias Hale discorda dessa
posiccedilatildeo de Deissmann com as seguintes alegaccedilotildees
Deissmann com esta teoria procurou mostrar que as Epistolas do Novo Testamento em especial as de Paulo eram na verdade cartas particulares e natildeo epiacutestolas Eacute de maneira geral aceito hoje que Paulo natildeo escreveu conscientemente neste sentido teacutecnico Ele escreveu para pessoas ou igrejas especiacuteficas com problemas especiacuteficos Contudo vecirc-se facilmente que as cartas de Paulo demonstram a autoridade apostoacutelica consciente que torna os conteuacutedos normativos para igrejas e pessoas de outras aacutereas e eacutepocas As cartas satildeo bem construiacutedas para demonstrarem um plano cuidadosamente elaborado Elas satildeo cartas particulares quanto ao tom ao espirito e ao propoacutesito contudo ao mesmo tempo elas satildeo obras-primas de composiccedilatildeo A extensatildeo media das cartas particulares naquela eacutepoca era de cerca de noventa palavras e a epiacutestola tinha a meacutedia de 200 palavras A carta mais curta de Paulo Filemom tem 335 palavras e a mais extensa Romanos 7101 Neste sentido as cartas de Paulo natildeo podem incidir dentro da categoria normal de uma carta regular Os teores de suas cartas pressupotildeem algo aleacutem de uma carta particular normal Deve ser acrescentado que os escritos de Paulo tecircm toda caracteriacutestica de uma carta particular mas a universalidade dos conteuacutedos fez com que eles fossem classificados sob o termo teacutecnico de composiccedilotildees literaacuterias conhecidas como epiacutestolas (HALE 1983 p 145)
100
A expressatildeo literaacuterio no contexto das discussotildees sobre carta e epiacutestola tem uma distinccedilatildeo de natildeo literaacuterio pela forma elaborada do tratamento dos assuntos podendo ser considerada uma produccedilatildeo artiacutestica enquanto seu oposto tem forma popular de tratamento dos conteuacutedos Pode-se pensar que o significado de literaacuterio fornecido por Deissmann (1927 p148) pode ser visto pelo acircmbito do institucional ou seja o que passa do acircmbito privado para o do puacuteblico via instituiccedilotildees de divulgaccedilatildeo 101
Na traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem o nome da uacuteltima epiacutestola da coleccedilatildeo de Paulo eacute traduzido como Filecircmon enquanto nas outras traduccedilotildees usadas nesta pesquisa o registro eacute Filemom
107
Outro pesquisador que se destaca assumindo tambeacutem a posiccedilatildeo da dualidade carta
e epiacutestola eacute Meechan (2004) Este toma como base em sua investigaccedilatildeo o
resultado de que as cartas descobertas nas escavaccedilotildees de Oxirrinco
representavam uma comunicaccedilatildeo privada entre pessoas que se encontravam
separadas pela distacircncia Os conteuacutedos das cartas eram emitidos de acordo com o
niacutevel de relacionamento entre os correspondentes Em determinadas cartas havia
uma reflexatildeo da vida pessoal do emissor revelando o grau do relacionamento em
relaccedilatildeo ao destinataacuterio A partir dessas evidecircncias Meechan (2004 p 40) coloca
uma diferenccedila entre carta e epiacutestola pois esta era considerada um documento
literaacuterio por ser de formato impessoal Este autor ainda reforccedila a distinccedilatildeo entre
carta e epiacutestola alegando que mesmo uma carta publicada natildeo perde seu caraacuteter
particular mas pode transformar-se em literatura enquanto a epiacutestola em sua
origem jaacute eacute caracterizada como literaacuteria
Trapp (2003 p 10) analisa o material linguiacutestico encontrado nos papiros das
escavaccedilotildees de Oxirrinco abordando um aspecto distinto de pesquisadores
anteriores Ele conclui que a variedade das cartas descobertas permite uma
comparaccedilatildeo entre elas em termos de forma e conteuacutedo Para este pesquisador o
valor do material encontrado se impotildee pela possibilidade de observaccedilatildeo dos
conjuntos de epiacutestolas e seu valor na literatura latina As coleccedilotildees de epiacutestolas satildeo
identificadas a partir de Ciacutecero e formam a maior coleccedilatildeo em escrita latina A
coleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio circulavam como livro102 Posterior a
Secircneca a outra coleccedilatildeo conhecida eacute formada pelas epiacutestolas de Pliacutenio o Jovem
pois estas tambeacutem circulavam nesse mesmo formato103 Nos dois primeiros seacuteculos
dC a epistolografia se destaca na sua organizaccedilatildeo como coleccedilatildeo podendo ser
mencionadas tambeacutem as epiacutestolas de Corneacutelio Fronto tutor de retoacuterica do futuro
imperador Marco Aureacutelio
102
Na obra Marcial e o livro Leni Ribeiro Leite (2011 p 32) comenta que no seacuteculo I d C as formas que caracterizavam os livros eram o rolo ou o coacutedex Os materiais eram retirados da pele de animais em especial a pele de cabra por ser mais leve para confecccedilatildeo do pergaminho A planta do papiro com tiras entrelaccediladas era confeccionado em formato de folhas (charta) A montagem final poderia ser em formato de rolo ou coacutedex Naquela eacutepoca o mais usado era o rolo de pergaminho com uma certa quantidade de folhas costuradas de acordo com a extensatildeo do texto na composiccedilatildeo da obra A partir do seacuteculo II d C tornou-se mais frequente a preferecircncia pelo coacutedex pela facilidade do manuseio na hora da leitura 103
Neil (2015 p 6) informa que tanto a coleccedilatildeo de epiacutestolas de Pliacutenio com exceccedilatildeo do livro X como as de Secircneca a Luciacutelio circulavam enquanto seus autores ainda viviam
108
Para as pesquisas atuais as descobertas arqueoloacutegicas contribuem para dar uma
luz ao entendimento de como alguns aspectos do processo de comunicaccedilatildeo
funcionavam atraveacutes da correspondecircncia no contexto dos dois primeiros seacuteculos de
nossa era Trapp (2003 p 22) observa que naquele periacuteodo existia uma tendecircncia
em transformar cartas privadas em um tipo de literatura atestado pelas coleccedilotildees
que sobreviveram Desde a era augustana jaacute era notoacuteria a combinaccedilatildeo entre tema
filosoacutefico e forma de epiacutestola em verso principalmente nas produccedilotildees de Horaacutecio se
acentuando na prosa nas produccedilotildees de temas variados nas epiacutestolas de Ciacutecero que
serviram de modelo para a posteridade
De certa forma havia uma influecircncia da tradiccedilatildeo de epistolografia filosoacutefica herdada
de Epicuro104 De acordo com a observaccedilatildeo de Trapp (2003 p 25) Secircneca em sua
coleccedilatildeo de epiacutestolas aleacutem de se espelhar no exemplo de Epicuro ainda compartilha
com Horaacutecio alguns aspectos da filosofia moral e as instruccedilotildees eacuteticas Em seus
conselhos a Luciacutelio Secircneca combina exortaccedilatildeo reflexatildeo instruccedilatildeo doutrinal e
recorre tambeacutem aos diversos exemplos
A contribuiccedilatildeo de Marcus Wilson se torna relevante na pesquisa aqui desenvolvida
pelo seu interesse em considerar a correspondecircncia de Secircneca a Luciacutelio como
epiacutestolas e natildeo como tratado Na obra Senecarsquos epistles reclassifed (2001) Wilson
discute essa questatildeo da coleccedilatildeo de epiacutestolas na Antiguidade e analisa em especial
a obra de Secircneca no conjunto das epiacutestolas dirigidas a Luciacutelio Assim este autor se
posiciona favoraacutevel agrave ideia da coletacircnea ser composta de epiacutestolas e natildeo um
tratado105 Ele observa que cada uma delas abre a mensagem com um cumprimento
e fecha com a despedida sendo que dessa forma a estrutura eacute apresentada de
acordo com o protocolo epistolar
Um embate nos estudos atuais desse tema se deve agrave concepccedilatildeo de epiacutestola como
ensaio que se configura no campo da reclassificaccedilatildeo106 de obras antigas
104
Epicuro desenvolveu sua filosofia usando o formato de epiacutestolas a diferentes destinataacuterios A Epiacutestola a Heroacutedoto (seu disciacutepulo) eacute uma das que concentra os princiacutepios da filosofia epicurista 105
Braren (1999 p 39) aponta algumas questotildees que justificam as razotildees de Secircneca ter escrito epiacutestola e natildeo tratado ldquoEpiacutestolas permitem oferecer doutrinaccedilatildeo filosoacutefica sem o necessaacuterio rigor de um plano de redaccedilatildeo de um tratado filosoacutefico As epiacutestolas se sucedem ao sabor das reflexotildees do momento O conteuacutedo natildeo necessita seguir uma ordenaccedilatildeo global uacutenica Diferentes assuntos podem ser tratados topicamente desde que obedeccedilam agrave proposta pedagoacutegica de ensinar o caminho para a sabedoria segundo um propoacutesito determinado agrave doutrinaccedilatildeo segundo os moldes do estoicismordquo 106
Segundo Gibson (2013 p 392) a reclassificaccedilatildeo resulta de uma nova organizaccedilatildeo das coleccedilotildees de epiacutestolas da Antiguidade obedecendo uma ordem cronoloacutegica que altera a proacutepria caracterizaccedilatildeo inicial da coleccedilatildeo pois visam trataacute-las como forma de biografia e histoacuteria
109
envolvendo alguns pesquisadores em defesa dessa ideia Wilson (2001 p 167)
pondera que pela razatildeo da falta de desenvolvimento de uma teoria sobre
epistolografia as pesquisas de formulaccedilotildees teoacutericas sobre ensaio tecircm aplicado a
base de seus princiacutepios agraves epiacutestolas de Secircneca Poreacutem surge o impasse no
momento de relacionar a parte pessoal das epiacutestolas com a filosoacutefica
Em relaccedilatildeo agrave teacutecnica de reclassificaccedilatildeo de produccedilotildees em forma de coleccedilatildeo na
Antiguidade Wilson (2001 p164) alega que tal teacutecnica natildeo se aplica agrave coleccedilatildeo de
Secircneca designada Epistolae Morales ad Lucilium Este pesquisador afirma que natildeo
haacute base para tratar o trabalho de Secircneca como sendo ensaiacutesta exortativo ou
pedagoacutegico Ele menciona a epiacutestola vinte e sete de Secircneca107 como argumento de
sua afirmaccedilatildeo
Quem eacutes tu para me dar conselhos Acaso jaacute te aconselhaste a ti proacuteprio jaacute corrigiste o teu caraacuteter para te poderes armar em director de consciecircncia alheia Objeccedilatildeo justa a tua eu contudo natildeo sou tatildeo descarado que doente eu proacuteprio me aplique a dar remeacutedio aos outros Eacute como companheiro de sanatoacuterio que falo contigo de nossa comum enfermidade e te dou parte dos medicamentos que uso (SEcircNECA Ep 271)
Segundo Wilson (2001 164) essa parte da epiacutestola vinte e sete apresenta
caracteriacutesticas bem tiacutepicas da epistolografia Um dos temas recorrentes neste
gecircnero eacute identificado em diferentes formas de abordar assuntos sobre sauacutede e
medicamento Outro tema que Wilson natildeo cita mas que pode ser lembrado como
lugar comum na produccedilatildeo de epiacutestolas daquele periacuteodo eacute o da descriccedilatildeo detalhada
das atividades de um dia que pode ser verificado tanto na produccedilatildeo epistolar de
Secircneca Pliacutenio e Marco Aureacutelio108 Em Pliacutenio (Ep V 14 8)109 encontra-se tambeacutem o
uso do toacutepos que consiste em descriccedilotildees de partes das atividades de um dia em que
107
A traduccedilatildeo da epiacutestola 271 mencionada por Wilson eacute citada neste trabalho de acordo com a traduccedilatildeo de Segurado pois Wilson natildeo cita a parte da epiacutestola indicada mas soacute comenta seu conteuacutedo 108
Foucault (2010a p 144) observa na carta de Marco Aureacutelio a Frontatildeo o relato de si atraveacutes do relato do dia Alguns dos toacutepicos encontrados nesse relato identificam o uso de um lugar comum na epistolografia De iniacutecio satildeo fornecidos dados em relaccedilatildeo agrave sauacutede e alimentaccedilatildeo e em seguida o cumprimento dos deveres familiares e religiosos Em Secircneca Foucault (2010a p 147) identifica a necessidade de descarregar de diante de si a carga da proacutepria vida e do tempo que passou como uma revisatildeo e balanccedilo do que foi feito Para Foucault o gecircnero epistolar favorece essa exposiccedilatildeo do eu como um verdadeiro exame de consciecircncia 109
Em Pliacutenio a descriccedilatildeo de um momento de retiro das atividades puacuteblicas eacute introduzida na epiacutestola dirigida a amigo Pocircncio Alifono ldquoEstava com meu caro sogro estava com a tia da minha esposa estava com amigos que haacute muito tempo desejava ver percorria meus pequenos campos escutava muitas das reclamaccedilotildees dos camponeses lia minhas contas rapidamente e sem vontade ndash satildeo de fato outros os papeis e outras as letras nas quais fui instruiacutedo ndash e jaacute havia me preparado para a viagem pois estou limitado pela brevidade da minha licenccedila e ao escutar sobre a magistratura de Cornuto estou sendo lembrado da minha proacutepriardquo (Ep V 14 8) Trad Kaacutetia Regina Giesen (2016)
110
o destaque eacute a presenccedila de familiares dos mais diversos niacuteveis de parentesco A
esse respeito da recorrecircncia a determinados lugares comuns vale relembrar a
posiccedilatildeo de Cairns (2010 p 6) ao mostrar que todo gecircnero eacute portador de elementos
com caracteriacutesticas primaacuterias como pode ser identificado no gecircnero epistolograacutefico
para a proacutepria identificaccedilatildeo do gecircnero como tal e ainda de elementos de
caracterizaccedilatildeo secundaacuteria que se apresentam como toacutepoi (lugares comuns) como
apontado tambeacutem por Wilson nas epiacutestolas de Secircneca
A partir da identificaccedilatildeo do posicionamento de Secircneca na epiacutestola citada Wilson
(2001 p 174) nota que ele natildeo parece indicar que procura colocar sua produccedilatildeo
como gecircnero epistolar em uma categoria fixa como exortativa ou pedagoacutegica pois
ambas satildeo interligadas com muitas outras familiar de consolo autobiograacutefica
satiacuterica analiacutetica literaacuteria e filosoacutefica
Na abordagem de Wilson (2001 p 191) uma coleccedilatildeo de epiacutestolas mesmo ficcional
contrasta com a coleccedilatildeo de ensaios em relaccedilatildeo ao tempo As epiacutestolas de Secircneca
natildeo contecircm datas110 e o que caracteriza a sequecircncia eacute a ordem da composiccedilatildeo ou
seja a ordem em que o conteuacutedo deve ser recebido e lido Desse modo o arranjo eacute
cronoloacutegico pois o leitor lecirc as epiacutestolas natildeo exatamente como uma coleccedilatildeo mas
como uma seacuterie
Wilson (2001 p 182) tambeacutem concorda com outros pesquisadores admitindo que
Secircneca se identifica com a epistolografia filosoacutefica seguindo o exemplo de Epicuro
Tanto na esfera filosoacutefica quanto na literaacuteria Secircneca inova em relaccedilatildeo agrave
epistolografia grega Ele se inspira em fontes de escritores romanos em especial
nas epiacutestolas em versos de Horaacutecio111 nas saacutetiras e humor com comentaacuterios eacuteticos
Secircneca cria um novo ramo de epistolografia a partir de sua filiaccedilatildeo literaacuteria Entatildeo
Wilson (2001 p 191) designa esse novo gecircnero de epistolografia em seacuterie pois
cada epiacutestola eacute completa em si mesma relacionando-se com as demais no todo da
coleccedilatildeo
110
Na coleccedilatildeo Ad Familiares as epiacutestolas de Ciacutecero satildeo datadas mas este natildeo eacute o criteacuterio para organizaccedilatildeo da coleccedilatildeo pois as epiacutestolas satildeo agrupadas pelo nome dos destinataacuterios 111
Na Ep 8613 Secircneca faz a seguinte referecircncia a Horaacutecio ldquoDepois que se inventaram esses impecaacuteveis balneaacuterios os homens tornaram-se mais porcos O que diz Horaacutecio quando quer retratar um indiviacuteduo de maus costumes notaacutevel pelos seus excessivos requintes Diz que ldquoBucilo cheira a rebuccediladosrdquo Se Bucilo vivesse hoje em dia por pouco parecia cheirar a bode faria o papel daquele Gargocircnio que na mesma saacutetira Horaacutecio potildee em confronto com Bucilordquo (Horaacutecio Saacutetiras I 227)
111
Concordando com essas posiccedilotildees defendidas por Wilson Inwood alega que as
epiacutestolas de Secircneca satildeo constituiacutedas nos paracircmetros de epiacutestola filosoacutefica e emite
a seguinte opiniatildeo
Like the dialogues of Plato Senecarsquos letters create an atmosphere of interpersonal philosophical exchange with the difference that the medium of this exchange is not face-to-face conversation but intimate correspondence between friends (INWOOD 2010 p xii)
112
Na concepccedilatildeo de Inwood (2010 p xiv) a escolha de Secircneca do gecircnero epistolar
filosoacutefico se justifica por razotildees da proacutepria dimensatildeo de sua concepccedilatildeo de obra
literaacuteria visto ser ele um autor de inegaacutevel capacidade de produccedilatildeo em outros
gecircneros literaacuterios como trageacutedia poesia e saacutetira Outros fatores podem ter interferido
na escolha de Secircneca em relaccedilatildeo aos seus antecessores como as publicaccedilotildees da
correspondecircncia filosoacutefica de Epicuro e da coleccedilatildeo das epiacutestolas de Ciacutecero ao seu
amigo Aacutetico Pode-se considerar tambeacutem que Secircneca ao escolher o gecircnero
epistolograacutefico colabora para uma continuidade da tradiccedilatildeo grega de uso deste
gecircnero como identificado nas produccedilotildees das epiacutestolas de Platatildeo Pitaacutegoras
Aristoacuteteles Epicuro entre outros
O posicionamento de Wilson contribui para a fundamentaccedilatildeo da tese aqui
desenvolvida de que o gecircnero escolhido por Secircneca em sua correspondecircncia eacute
epistolograacutefico e natildeo tratado Nesse quadro de contribuiccedilotildees inclui-se tambeacutem
Inwood que concebe o gecircnero usado por Secircneca como epiacutestola filosoacutefica Mais
adiante essas questotildees seratildeo vistas com mais detalhes inclusive o papel da
cenografia como determinante na classificaccedilatildeo do gecircnero em questatildeo
Talvez um dos pontos nevraacutelgicos das discussotildees ateacute aqui levantadas sobre os
diferentes posicionamentos dos pesquisadores seja a falta de determinaccedilatildeo destes a
respeito das questotildees sobre o uso dos termos carta e epiacutestola na Antiguidade Natildeo
eacute objetivo deste trabalho uma investigaccedilatildeo exaustiva do modo como os vocaacutebulos
carta e epiacutestola aparecem nos textos da Antiguidade mesmo porque esta pesquisa
natildeo comporta a dimensatildeo dessa tarefa O que eacute viaacutevel em termos praacuteticos eacute
observar algumas amostras de textos relacionados agrave epistolografia e verificar a
ocorrecircncia do termo epiacutestola O que pode ser constatado eacute que tal termo era usado
na abrangecircncia do sentido de enviar uma mensagem Natildeo parece haver distinccedilatildeo do
112
Segundo Inwood (2010 p xii) ldquocomo os diaacutelogos de Platatildeo as cartas de Secircneca criam uma atmosfera de intercacircmbio filosoacutefico interpessoal com a diferenccedila de que o meio dessa troca natildeo eacute a conversa face a face mas a correspondecircncia iacutentima entre amigosrdquo
112
vocaacutebulo pela extensatildeo do texto ou de seus objetivos A consulta a dicionaacuterios de
termos gregos e latinos permite a identificaccedilatildeo dos dois vocaacutebulos carta e epiacutestola
(χάρτης επιστολή) como originaacuterios do grego com sentidos distintos Mantendo a
significaccedilatildeo original dos termos no uso do latim a palavra charta eacute a designaccedilatildeo do
material preparado em forma de folha113 destinado agrave escrita e epistula estaacute
relacionada agrave produccedilatildeo de uma mensagem a ser enviada a um destinataacuterio ausente
Os termos carta e epiacutestola satildeo tratados na atualidade como sendo equivalentes
provocando certa dificuldade em separaacute-los e visualizaacute-los na origem de seus usos
na Antiguidade Pela escassez de pesquisas nesse campo e mesmo de fontes que
permitam estabelecer o modo como o termo carta evoluiu do seu sentido de base
para o atual constata-se certa limitaccedilatildeo na distinccedilatildeo clara do uso desses dois
termos em questatildeo como concebidos no seu valor semacircntico na cultura greco-
romana Pode-se supor que a forccedila metoniacutemica tenha sido determinante no
emprego de um termo no lugar de outro ou seja a forma pelo conteuacutedo havendo
entre ambos uma estreita afinidade ou relaccedilatildeo de sentido Entatildeo a folha de papiro
designada como charta em latim progressivamente passou a designar um dos
conteuacutedos que nela era contido Esta eacute uma hipoacutetese que pode reivindicar uma
possiacutevel localizaccedilatildeo temporal da adesatildeo na inserccedilatildeo semacircntica do uso do termo
carta como forma compartilhado com significado de epiacutestola como conteuacutedo Uma
pesquisa linguiacutestica diacrocircnica com o favorecimento de recursos eletrocircnicos usados
pela linguiacutestica de corpus114 poderia ser requisitada como possibilidade de
rastreamento para localizaccedilatildeo do uso dos termos carta e epiacutestola em textos de
origem grega e posteriormente em textos latinos possibilitando a verificaccedilatildeo das
mudanccedilas ocorridas no transcorrer do tempo a partir da Antiguidade claacutessica
O que se percebe eacute que grande parte dos pesquisadores estaacute mais voltada para a
questatildeo da diferenccedila entre carta e epiacutestola em contextos atuais em termos de
conteuacutedo e natildeo exatamente com os seus sentidos fundadores
113
O termo charta em latim eacute apropriado para o uso em portuguecircs da palavra papel carta que eacute um tamanho um pouco menor do que o A4 adequado para escrita de cartas No word 2010 esse recurso natildeo estaacute mais disponiacutevel na paacutegina de configuraccedilatildeo mas pode ser adotado outro recurso na barra de ferramenta porque no setor comercial ainda eacute usado o sistema de envio de cartas Esta eacute uma evidecircncia de como as transformaccedilotildees tecnoloacutegicas afetam a permanecircncia de determinados gecircneros do discurso causando mudanccedilas na forma de comunicaccedilatildeo 114
De acordo com Sardinha (2000 p 325) a linguiacutestica de corpus ocupa-se da coleta e exploraccedilatildeo de corpora ou conjuntos de dados linguiacutesticos textuais que foram coletados criteriosamente com o propoacutesito de servirem para a pesquisa de uma liacutengua ou variedade linguiacutestica
113
Thompson (1893) realizou uma pesquisa bem detalhada e um dos seus interesses
foi mostrar como da proacutepria natureza se extraiacutea materiais como argila metais
papiro madeira pele de animais que eram preparados em forma de tabletes ou
folhas para receber a escrita O que se tem notiacutecia eacute que em especial o papiro
manufaturado com preparo para receber a escrita era designado khaacutertēs em grego e
charta em latim Thompson (1893 p 28) fornece essa informaccedilatildeo sobre a origem
grega do termo ldquoAmong the Greeks the papyrus material manufactured for writing
purposes was called χάρτης (Latin charta ) as well as by the names of the plant
itselfrdquo115 Horaacutecio116 eacute um dos escritores latinos que fez uso do termo charta no
sentido de material usado em sua escrita
Uma descriccedilatildeo proveitosa de Thompson (1893 p 20) em relaccedilatildeo aos materiais
confeccionados para a escrita eacute o uso de taacutebuas de madeira cobertas de cera com
recurso de uma ponta de metal para escrever Quando era somente uma taacutebua no
latim era chamado tabula e um conjunto de tabulae presas em um anel era
designado coacutedex117 Na Greacutecia antiga era comum o envio de mensagens escritas em
taacutebuas de madeira com acabamento em cera As pequenas mensagens eram
escritas nesse material e as mais extensas eram escritas em papiro de acordo com
as informaccedilotildees de Thompson (1893 p21) ldquoas to correspondence small tabletes
codicilli or pugillares118 were employed for short letters longer letters epistolae
were written on papyrusrdquo119 Este autor cita o exemplo de Secircneca (Ep 5511)120 que
em sua epiacutestola a Luciacutelio menciona a diferenccedila entre epistula e codicillus pois este
115
ldquoEntre os gregos o material de papiro manufaturado para fins de escrita era chamado khaacutertēs (charta em latim) bem como pelos nomes da proacutepria plantardquo (THOMPSON 1893 p28) 116
Uso do termo chartae em Horaacutecio (Ep XIII 6-7) Si te forte meae grauis uret sarcina chartae abicito potius quam quo perferre iuberis ldquoNo empenho de servir-me e teacutedio ao livro Com mal cabido zelo me granjeiesrdquo Alexandre Prudente Piccolo (2013) traduziu chartae como livro no sentido de muitos papeis escritos o termo granjeies estaacute explicado em nota como referente ao verbo granjear obter como resultado do trabalho O termo latino charta com significado de papiro como material da escrita eacute tambeacutem encontrado na troca de epiacutestolas entre Jerocircnimo e Agostinho 117
No tratado Brevidade da Vida (XIII 4) Secircneca faz referecircncia agrave origem grega e latina do termo coacutedice como uma armaccedilatildeo de taacutebuas de madeira em uma embarcaccedilatildeo [] plurium tabularum contextus caudex apud antiquos uocatur unde publicae tabulae codices dicuntur 118
Segundo o dicionaacuterio latino-portuguecircs (1967) o termo pugillares significa tabuinhas pequenas para escrever e cabem na matildeo fechada Secircneca usa o termo com a ideia de bloco de anotaccedilotildees ldquoNatildeo te digo que estejas sempre debruccedilado sobre um livro ou um bloco de apontamentosrdquo Neque ego te iubeo semper imminere libro aut pugillaribus (Ep 5 6) 119
Quanto agrave correspondecircncia taacutebuas pequenas codicilli ou pugillares eram empregadas para epiacutestolas curtas epiacutestolas mais longas eram escritas em papiros 120
Video te mi Lucili cum maxime audio adeo tecum sum ut dubitem an incipiam non epistulas sed codicellos tibi scribere Vale (Ep 5511)
114
era feito no formato de uma taacutebua pequena proacuteprio para conter mensagens curtas
como um simples bilhete Era comum a escrita de mensagens de amor em
codicillus121 pois o destinataacuterio poderia responder aproveitando o mesmo material
depois de apagado o texto recebido
Outro termo comumente usado em latim a respeito da escrita eacute a expressatildeo littera
com o mesmo significado da palavra letra em portuguecircs Nas epiacutestolas de Ciacutecero
os termos epistula e littera aparecem de modo indistinto em algumas epiacutestolas mas
haacute certas aplicaccedilotildees desses termos que parecem ser mais adequadas a
determinados contextos do que estaacute sendo dito Como exemplo na coleccedilatildeo de
epiacutestolas dirigidas ao seu amigo Aacutetico (Ad Aticcum I XIII) quando Ciacutecero faz
referecircncia ao recebimento ou envio de uma missiva ele opta pela designaccedilatildeo
epiacutestola Accepi tuas tres iam epistulas (Recebi agora tuas trecircs epiacutestolas) Em Ad
Familiares (I IX1) Ciacutecero usa o termo litterae que pode ser entendido tambeacutem como
referecircncia agraves palavras do texto da epiacutestola que ele recebeu de seu amigo
Periucundae mihi fuerunt litterae tuae (Tuas palavrasepiacutestolas foram gratificantes
para mim) Nessa perspectiva litterae no plural pode referir-se ao valor do texto122
Na coleccedilatildeo de suas epiacutestolas Pliacutenio tambeacutem recorre aos termos epistula e littera
como sinocircnimo em alguns contextos de um mesmo campo semacircntico Em outra
situaccedilatildeo Pliacutenio123 faz uso do termo litterae referindo-se ao amigo Tiacutecio Aristo
competente no direito puacuteblico e privado como homem das letras (litterae) e das
artes Secircneca tambeacutem costuma referir-se agrave littera como termo aplicado ao modo
da escrita ou aos estudos literaacuterios de forma abrangente
121
Pliacutenio usa o termo epistulas para se referir aos diversos tipos de correspondecircncia na primeira epiacutestola da coleccedilatildeo Frequenter hortatus es ut epistulas si quas paulo curatius scripsissem colligerem publicaremque (Ep I1) ldquoFrequentemente aconselhaste-me a reunir e publicar as epiacutestolas se as tivesse escrito um pouco mais esmeradamenterdquo (Trad Marco Antonio da Costa (2013) 122
No livro de Atos 2624 de acordo com o texto latino da nova vulgata haacute o relato do discurso de Paulo diante de Festo e este se dirige ao interrogado dizendo Sic autem eo rationem reddente Festus magna voce dixit ldquo Insanis Paule multae te litterae ad insaniam convertunt ldquoE dizendo ele isto em sua defesa disse Festo em alta voz Estaacutes louco Paulo as muitas letras te fazem delirarrdquo (Atos 2624) Nesse contexto o termo litterae denota um grau distinto de conhecimento na transmissatildeo do discurso e ldquomuitas letrasrdquo (litterae) tem emprego metoniacutemico 123
[] ut mihi non unus homo sed litterae ipsae omnesque bonae artes [] ldquopara mim natildeo eacute apenas um homem mas as proacuteprias letras e todas as boas artesrdquo (Ep I 22 1) Traduccedilatildeo de Kaacutetia Regina Giesen
115
Em relaccedilatildeo ao gecircnero epistolograacutefico a influecircncia de Ciacutecero eacute relevante e marcada
no periacuteodo da Patriacutestica e o seu modo de produzir epiacutestolas ecoa tambeacutem na escrita
de Satildeo Jerocircnimo e Santo Agostinho124 Com base na praacutetica da tradiccedilatildeo antiga
Jerocircnimo e Agostinho fazem uso dos termos epistula e littera como sinocircnimo125
Outros vocaacutebulos de valor semacircntico no campo da epistolografia romana aparecem
nas epiacutestolas dos dois correspondentes como usados na origem dos termos charta
codicillus tabelarius (mensageiro) Guarniere (2016 p 28) observa que por algumas
indicaccedilotildees encontradas na troca de correspondecircncia entre Jerocircnimo e Agostinho a
citaccedilatildeo ao material por eles usado na escrita das epiacutestolas era charta folha de
papiro Tal fato pode ter sido determinante para a migraccedilatildeo dos termos epistula e
littera do latim para carta em portuguecircs
Tanto as epiacutestolas de Ciacutecero quanto as de Jerocircnimo e Agostinho devem tambeacutem ter
contribuiacutedo para a permanecircncia do uso de littera como sinocircnimo de epistula Em um
documento que narra as viagens portuguesas agrave India entre 1500 e 1505 o tiacutetulo
tem o seguinte teor Copia de uma littera del Re de Portagallo madata al Re de
Castella Joaquim Arauacutejo foi o organizador e comentador desses documentos como
livro de memoacuterias (1892) e deu a seguinte traduccedilatildeo ao tiacutetulo Coacutepia de uma carta do
Rei de Portugal mandada ao Rei de Castella O que se constata eacute que em 1892 o
termo carta no portuguecircs jaacute havia se estabelecido em lugar de littera
Como visto de modo geral as designaccedilotildees no latim como charta tabula codicillus
eram referentes ao formato dado ao papiro pergaminho ou madeira como uma
espeacutecie de folha para utilizaccedilatildeo da escrita e littera como sinais da escrita na
composiccedilatildeo do texto Epistola na sua abrangecircncia nomeava a correspondecircncia de
mensagens enviadas com finalidades variadas Essas informaccedilotildees sobre recursos
124
Segundo informaccedilotildees de Furlan (2006 p 284) Jerocircnimo (347 - 420 dC) era profundo conhecedor dos textos biacuteblicos das liacutenguas grega aramaica e hebraica da literatura grega e latina retoacuterica e filosofia Aleacutem dos tratados haacute uma coleccedilatildeo de 120 cartas de sua autoria Entre 383 e 406 traduziu os textos da Septuaginta e a biacuteblia hebraica para o latim Jerocircnimo era mais ou menos vinte anos mais velho do que Agostinho A troca de correspondecircncia entre os dois funcionava tambeacutem como diaacutelogo no intercatildembio de ideias e opiniotildees 125
No iniacutecio de uma das epiacutestolas dirigidas a Agostinho Jerocircnimo usa os termos littera e epistula Tandem ex Africa vestrae litteras uninimitatis accepi et non me poenitet impudentiae qua tacentibus vobis epistulas meas frequenter ingressi ut rescriptum mererer et vos esse sospites [] ldquoEnfim recebi da Aacutefrica a carta de vossa unanimidade natildeo me incomoda minha ousadia ter malgrado vosso silecircncio insistido com frequecircncia em minhas cartas para que eu merecesse uma resposta rdquo [] ( Ep 1261) Em uma das respostas de Agostinho a Jerocircnimo eacute usado o termo littera e tambeacutem epistula [] ut vix possem meas dare vix recipere litteras tuas (por causa da distacircncia) [] ldquomal posso te enviar cartas minhas e receber as tuasrdquo (Ep 1661)[] in qua epistula etiam mei commemoratione benevolentissime facere dignatus es [] ldquocarta que tu tiveste a dignidade de fazer com muito boa vontade menccedilatildeo a mimrdquo (Ep 1668) Traduccedilotildees de Felipe de Medeiros Guarniere (2016)
116
materiais uacuteteis para a produccedilatildeo de epiacutestolas na vigecircncia do seacuteculo I aC e I e II d
C satildeo encontradas por exemplo nos textos das epiacutestolas de Ciacutecero Horaacutecio
Secircneca e Pliacutenio Nesse periacuteodo natildeo havia uma inclusatildeo sistemaacutetica da epistolografia
nos estudos da retoacuterica Quanto a essas questotildees Murphy (1981 p 195) comenta
sobre a ausecircncia de tratamento retoacuterico na produccedilatildeo de epiacutestolas entre os romanos
Tal registro soacute eacute identificado a partir do seacuteculo IV dC atraveacutes da obra Ars
Rhetorica de Caio Juacutelio Viacutetor escritor romano do seacuteculo IV dC que decidiu aplicar
os ensinamentos retoacutericos de Ciacutecero e Quintiliano agraves produccedilotildees de epiacutestolas
Segundo informaccedilotildees de Murphy (1981 p 196) Juacutelio Viacutetor procurou situar o gecircnero
epistolar dividindo-o em dois tipos oficiais e familiares As epistolas classificadas
como oficiais poderiam conter uma mateacuteria argumentativa mais erudita e o emprego
de linguagem figurada Nas familiares seria conveniente o desenvolvimento do
assunto de forma clara e breve Outro ponto de destaque seria o cuidado na redaccedilatildeo
do texto de acordo com o tipo de destinataacuterio Nessa abordagem de Juacutelio Viacutetor
verifica-se uma semelhanccedila com o comentaacuterio de Ciacutecero feito na Epiacutestola Ad
Familiares (II 41) sobre a existecircncia de vaacuterias formas de epiacutestolas em sua eacutepoca
Em suas colocaccedilotildees Ciacutecero relembra a importacircncia fundamental da epiacutestola como
comunicaccedilatildeo entre ausentes e ainda complementa que as formas de epiacutestolas que
mais lhe agradavam eram as familiares e jocosas como tambeacutem as de tom severo
e grave
Juacutelio Viacutetor desenvolve suas consideraccedilotildees e classificaccedilotildees do gecircnero epistolar com
base em referecircncias de Ciacutecero e ainda manteacutem o uso dos termos littera e epistola
como pertencentes ao mesmo campo semacircntico conforme o conteuacutedo apresentado
em sua obra Depois da investida de Juacutelio Viacutetor em tratar o retoacuterico no campo da
epistolografia somente seiscentos anos depois esse tema readquire o seu valor
com o ressurgimento da epistolografia Murphy (1981 p 203) destaca que o seacuteculo
XI ficou registrado por uma nova arte epistolar a ars dictaminis126 que fez renascer a
126
Murphy (1981 216) discute algumas questotildees sobre as inovaccedilotildees do ars dictaminis como tratado que se constitui como teoria para a elaboraccedilatildeo de uma epiacutestola Nas instruccedilotildees desse manual a estrutura da epiacutestola deveria compor trecircs partes exordium narratio e conclusio seguindo o modelo de Ciacutecero A novidade eacute que o exordium deveria ser antecedido pelo salutatio sendo essa organizaccedilatildeo exclusiva do gecircnero epistolar A escolha da forma do salutatio dependeria do tratamento a ser dado ao destinataacuterio
117
retoacuterica ciceroniana adaptando-a aos modos do gecircnero epistolar e se estendendo
aos seacuteculos seguintes127
Quando se faz uma relaccedilatildeo entre os termos epistula e littera nota-se que em
determinados campos da linguagem o vocaacutebulo littera exerceu certa predominacircncia
em sua permanecircncia Algumas questotildees histoacutericas contribuem para elucidar alguns
pontos que identificam possiacuteveis explicaccedilotildees Gary Scheiner (2005) elaborou uma
pesquisa no intento de verificar como a Inglaterra tambeacutem herdou da Antiguidade o
haacutebito da correspondecircncia sendo que Ciacutecero se constituiu como modelo pelo fato
de ter se dedicado agraves epiacutestolas familiares Scheiner (2005 p42) aponta para a
influecircncia da epistolografia da Antiguidade em escritores do seacuteculo IV d C e por
conseguinte em escritores dos seacuteculos XIV e XVI dC com destaque para Petrarca
que em 1345 descobriu no mosteiro de Verona um manuscrito contendo epiacutestolas de
Ciacutecero que se tornaram fonte de redescoberta da Antiguidade Outro destaque eacute
para Erasmo de Roterdatilde que escreveu a obra De Conscribendis Epistolis (A
composiccedilatildeo de epiacutestolas) e nos meados do seacuteculo XVI essa publicaccedilatildeo se tornou
popular na Europa contribuindo para o crescente interesse na produccedilatildeo das
diferentes formas de correspondecircncia
Segundo informaccedilotildees de Schneider (2005 p 43) no final do seacuteculo XVI na
Inglaterra jaacute se optava pela escrita das correspondecircncias com o uso da liacutengua
inglesa e natildeo mais o latim como era o costume E no seacuteculo seguinte passou-se a
escrever as epiacutestolas com mais preocupaccedilatildeo quanto agraves boas maneiras e eacutetica do
127 No dizer de Peacutecora (2001 p 28) a histoacuteria do seacuteculo XVI registrou um novo momento quanto agrave
importacircncia do gecircnero epistolar e pela lideranccedila de seu reformador Inaacutecio de Loyola fundador da ordem dos jesuiacutetas foi implantada a nova epistolografia servindo como elo de ligaccedilatildeo das ideias de Loyola com os membros da companhia que se espalharam por vaacuterios lugares inclusive o Mundo Novo Os primeiros missionaacuterios da Companhia de Jesus a chegar ao Brasil foram requisitados por D Joatildeo III em 1549 chefiados pelo Pe Manuel da Noacutebrega e o Pe Joseacute de Anchieta se agregou ao grupo em 1553 O Pe Heacutelio Abranches Viotti (1984 p 14) em suas notas da traduccedilatildeo das cartas de Anchieta relata que este por dominar a escrita da liacutengua latina foi designado por Noacutebrega para escrever as cartas destinadas aos grupos da companhia residentes em Roma e Portugal De quatro em quatro meses as informaccedilotildees do trabalho dos jesuiacutetas no Brasil eram enviadas e posteriormente anualmente Viotti (1984 p66) menciona que as cartas eram escritas em latim pelo fato de necessidade de publicaccedilatildeo do documento em paiacuteses da Europa sendo o latim a liacutengua mais favoraacutevel agrave escrita como forma de comunicaccedilatildeo Nos arquivos dessas cartas originais o tiacutetulo eacute identificado como Annuae litterae Provinciae Brasiliae anni 1581 Nesse contexto propiacutecio padre Vieira foi um continuador da praacutetica do recurso do gecircnero epistolar Segundo informaccedilotildees de Bettiol (2008 p 38) as 200 cartas de Vieira conservadas ou recuperadas foram organizadas em trecircs volumes por Joatildeo Luacutecio de Azevedo (1928) Vieira costumava escrever suas cartas em portuguecircs e tambeacutem em latim Esse fato eacute relevante para se pensar sobre a permanecircncia do latim na escrita influenciando o desenvolvimento da liacutengua portuguesa que progressivamente se estabeleceu definitivamente
118
que o modelo retoacuterico praticado anteriormente Outra ocorrecircncia determinante nos
seacuteculos XVI e XVII de acordo com o relato de Schneider (2005 p 49) foi o registro
das traduccedilotildees do latim para o inglecircs das coleccedilotildees de epiacutestolas de Ciacutecero Secircneca
Pliacutenio Jerocircnimo Erasmo e outros Na nova fase que se instaurou as epiacutestolas
produzidas poderiam ter um caraacuteter oficial familiar intelectual ampliando-se
tambeacutem para o campo da literatura Pode-se inferir que na transmissatildeo da escrita da
correspondecircncia do latim para o inglecircs o termo littera jaacute estabelecido como
sinocircnimo de epiacutestola na correspondecircncia de Ciacutecero passa a ser designado como
letter Assim como eacute possiacutevel o uso metoniacutemico de charta para significar a parte pelo
todo tambeacutem o vocaacutebulo littera em algumas situaccedilotildees tambeacutem seria usado como
metoniacutemia em que o todo assume a designaccedilatildeo das partes ou seja littera (letra) em
lugar de epistola Essas interferecircncias no uso da linguagem podem ter causado a
heranccedila progressiva do termo charta em latim para carta em portuguecircs e littera para
lettre em francecircs e letter em inglecircs transformando-se em sinocircnimo de epiacutestola
nessas liacutenguas
O que se pode extrair dessas consideraccedilotildees feitas eacute que apesar de epiacutestola e carta
ou epiacutestola e letter serem consideradas como sinocircnimo no portuguecircs e no inglecircs haacute
uma distacircncia temporal que separa o uso e signifcados dos termos Assim como a
palavras carta e letter por si soacute natildeo abarcam todas as formas de correspondecircncia
tambeacutem o mesmo acontecia com a designaccedilatildeo epiacutestola como questionada desde
os estudos de Demeacutetrio
Uma possibilidade de diferenciar o modo de produzir epiacutestola na Antiguidade seria
pensar essa questatildeo em termos de gecircnero de forma bem abrangente como
defendida por Gregory Hutchinson (2013 p 19) quando ele afirma The conception
of super-genres helps us to think further about genre128 A atenccedilatildeo deste autor se
volta em especial para a poesia pois na Antiguidade as formas especiacuteficas da
criaccedilatildeo poeacutetica eacute que designam o que ele defende como supergecircnero na falta de
um termo mais apropriado As formas poeacuteticas na Antiguidade satildeo classificadas
como hexacircmetro elegia liacuterica e drama sendo cada uma destas um supergecircnero
que abarca seus subgrupos especiacuteficos e estes tambeacutem podem ser desdobrados
Desse modo eacute adequado dizer que trageacutedia e comeacutedia estariam ligadas ao
128
ldquoA concepccedilatildeo de supergecircnero nos ajuda a pensar mais amplamente sobre o gecircnerordquo
119
supergecircnero drama Na comeacutedia seriam derivados os subconjuntos comeacutedia antiga
e comeacutedia nova
Essa maneira de pensar os gecircneros na poeacutetica da Antiguidade pode servir de
analogia para aplicaccedilatildeo aos gecircneros na prosa129 Visto que as discussotildees e
definiccedilotildees do conceito de epistolografia remontam aos tempos mais antigos vale
tentar compreender essas questotildees em termos de supergecircnero Hutchinson fornece
para a pesquisa aqui desenvolvida uma opccedilatildeo mais abrangente sobre o gecircnero
epistolograacutefico e sua conexatildeo com outros situados em suas fronteiras O gecircnero
epistolar poderia estar ligado a um gecircnero maior como centralizador de vaacuterios meios
de linguagem no campo da prosa que fossem detentores de uma identificaccedilatildeo
baacutesica em comum O esquema que se segue delineia de forma bem generalizada o
lugar que poderia ser ocupado pela epistolografia ao se interligar ao gecircnero diaacutelogo
como um ponto centralizador de inclusatildeo de subconjuntos como epiacutestolas e tratados
e cada um destes definiriam seus derivados
Filosoacutefica ndash Familiar ndash Instrutiva Filosoacutefico ndash Poliacutetico ndash Moral
A forma do diaacutelogo na escrita como estrateacutegia de argumentaccedilatildeo foi desenvolvida
na Antiguidade para atender a demanda da necessidade de transferecircncia da
expressatildeo oral para a escrita na composiccedilatildeo dos textos De acordo com o
comentaacuterio de Dioacutegenes Laeacutercio (Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres III 25)130
129
Hutchinson (2013) fornece para a pesquisa aqui desenvolvida uma contribuiccedilatildeo que possibilita uma opccedilatildeo mais abrangente e definida para se pensar o gecircnero epistolar 130
Dioacutegenes Laeacutercio (200-250) eacute considerado historiador e bioacutegrafo dos filoacutesofos gregos A sua maior obra eacute Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres organizada em dez livros que contecircm fontes de informaccedilotildees e comentaacuterios sobre o desenvolvimento da filosofia grega
Gecircnero centralizador - supergecircnero
Diaacutelogo
Epiacutestolas
Tratados
120
Zenatildeo de Eleia131 para alguns teria sido o fundador do gecircnero diaacutelogo e Aristoacuteteles
no livro Os Poetas afirma ter sido Alexacircmeno de Teos132 Partindo das
discordacircncias sobre tal questatildeo Dioacutegenes prefere creditar a Platatildeo o lugar de
fundador do gecircnero diaacutelogo Como justificativa de sua escolha Dioacutegenes (III 26) cita
as vaacuterias obras de Platatildeo em forma de diaacutelogo sobre a loacutegica fiacutesica moral
poliacutetica incluindo tambeacutem epiacutestolas
O ponto crucial da noccedilatildeo de diaacutelogo133 em textos da Antiguidade eacute a forma de
interaccedilatildeo entre falantes que se presentificam atraveacutes de sua voz no texto
participando como interlocutores no discurso Assim a finalidade do gecircnero diaacutelogo
eacute proporcionar a transformaccedilatildeo do sentido de ausecircncia fiacutesica de quem fala pela
presenccedila da manifestaccedilatildeo de sua voz no texto escrito Partindo desta premissa esta
eacute a marca centralizadora de identificaccedilatildeo do diaacutelogo que o condiciona a funcionar
como supergecircnero
Platatildeo inaugura a escrita em prosa na forma de diaacutelogo no prolongado periacuteodo de
transiccedilatildeo entre oralidade e escrita na produccedilatildeo dos textos na cultura grega
Havelock (1986 p 150) concebe a transferecircncia dessa oralidade como fator
determinante para a escolha do gecircnero diaacutelogo na produccedilatildeo de Platatildeo
Aleacutem do diaacutelogo servir como ponte para a passagem da oralidade para a escrita ele
tambeacutem eacute intermediaacuterio entre a poesia e a prosa Havelock (1986 p 35) expotildee
algumas consideraccedilotildees sobre a continuidade da influecircncia da trageacutedia grega sobre a
prosa em relaccedilatildeo agrave conservaccedilatildeo dos valores da tradiccedilatildeo oral O caraacuteter didaacutetico das
peccedilas foi transmitido tambeacutem aos diaacutelogos e retoacuterica por meio dos personagens que
defendiam os argumentos no discurso Desse modo a implantaccedilatildeo da escrita via
diaacutelogo serviu de suporte para a escritura do pensamento filosoacutefico platocircnico
influenciando a produccedilatildeo de outros gecircneros com raiacutezes no diaacutelogo
131
Zenatildeo de Eleia (aprox 490 a 430 aC) filoacutesofo preacute-socraacutetico da escola eleaacutetica Disciacutepulo de Parmecircnides de Eleia e defensor de suas ideias 132
De acordo com Fragmentos dos diaacutelogos de Aristoacuteteles vol X o primeiro autor do diaacutelogo teria sido Alexameno de Teos poreacutem nada se conhece a respeito desse autor 133
O diaacutelogo eacute tambeacutem usado na literatura hebraica o livro de Joacute eacute constituiacutedo de prosa na introduccedilatildeo e epiacutelogo e poesia em forma de diaacutelogo nas demais partes Os diaacutelogos em forma de poesia satildeo realizados atraveacutes dos discursos de Joacute com seus trecircs amigos Elifaz Bildade e Zofar surgindo Eliuacute como quarto personagem na discussatildeo O diaacutelogo se encerra com a conversa entre Joacute e Deus
121
A tentativa de compreensatildeo da forma como eram construiacutedos os diaacutelogos na
Antiguidade estaacute limitada a uma comparaccedilatildeo da produccedilatildeo dos diaacutelogos de Platatildeo134
e Ciacutecero135 Conclui-se que essa eacute a possibilidade mais razoaacutevel pela ausecircncia da
obra de Aristoacuteteles sobre diaacutelogo pois o que sobrevive desta satildeo fragmentos
extraiacutedos de citaccedilotildees e testemunhos de autores antigos O proacuteprio Ciacutecero (Ep Ad
At XIII XIX 4)136 fornece o seguinte depoimento ldquoO que escrevi naqueles tempos eacute
ao modo aristoteacutelico no qual a conversa dos outros eacute introduzida de tal forma que o
papel principal eacute reservado ao proacuteprio autorrdquo137 Com essa contribuiccedilatildeo pode-se
deduzir que Aristoacuteteles produz seus diaacutelogos de forma diferente e modificada em
relaccedilatildeo agraves produccedilotildees de seu mestre Platatildeo
A finalidade do paralelo feito entre os diaacutelogos platocircnicos e ciceronianos visa
contribuir para identificaccedilatildeo do uso do gecircnero diaacutelogo na Antiguidade Powell (2005
p 233) sustenta que haacute possibilidade de identificaccedilatildeo de alusotildees entre os diaacutelogos
de Platatildeo e Ciacutecero Mesmo sendo notoacuteria a influecircncia de Platatildeo em Ciacutecero haacute
peculiaridades na produccedilatildeo literaacuteria deste que marcam tambeacutem certa heranccedila
aristoteacutelica Por um lado Platatildeo natildeo se identifica como personagem em seus
diaacutelogos sendo Soacutecrates a figura principal no comando das discussotildees na maior
parte das produccedilotildees Por outro lado Ciacutecero tendo Aristoacuteteles como modelo conduz
o discurso em seus diaacutelogos como personagem principal
Mais de um seacuteculo depois Taacutecito escritor e historiador latino segue Ciacutecero como
paracircmetro optando pela escolha do uso do diaacutelogo na obra intitulada O diaacutelogo dos
oradores138 Em uma anaacutelise dessa produccedilatildeo Joly (2009 p 21) comenta que aleacutem
134
Platatildeo se manteacutem no anonimato na produccedilatildeo dos seus diaacutelogos Como a responsabilidade da direccedilatildeo dos debates recai sobre o personagem Soacutecrates o posicionamento de Platatildeo natildeo eacute declarado 135
Lima (2008 p126) comenta que nos diaacutelogos De finibus ldquoCiacutecero natildeo apenas se representa como personagem que tem papel importante em todos os trecircs diaacutelogos eacute tambeacutem ele que falando em primeira pessoa introduz cada um dos diaacutelogos particulares em proecircmios que antecedem as accedilotildees representadas Aleacutem disso basta lermos o iniacutecio da obra para reconhecermos outro elemento que natildeo encontraacutevamos nos modelos platocircnicos a obra toda como se fosse uma espeacutecie de epiacutestola eacute endereccedilada a um destinataacuterio a Marco Brutordquo 136
quae autem his temporibus scripsi Aristoteleion morem habent in quo ita sermo inducitur ceterorum ut penes ipsum sit principatus (Ep Ad At XIII XIX 4) 137
Traduccedilatildeo de Antonio de Castro Caeiro 138
Joly (2009 p 20) informa que Taacutecito a pedido de Faacutebio Justo propotildee-se a relatar um diaacutelogo que ouvira quando jovem acerca do decliacutenio da eloquecircncia Os interlocutores do diaacutelogo satildeo Maternus Aper Secundus e Messalla O acontecimento que desencadeou o debate foi a recepccedilatildeo negativa da trageacutedia Catatildeo produzida por Maternus e este eacute induzido a trocar a poesia pela oratoacuteria mas a sua atitude eacute a insistecircncia em favor da poesia Com a chegada de Messala o quarto participante o assunto circula em torno da defesa dos oradores antigos O tema do debate sobre o decliacutenio da
122
da identificaccedilatildeo de Taacutecito com o gecircnero diaacutelogo neste pode ser feito um paralelo
com De oratore de Ciacutecero tendo como ponto comum a discussatildeo sobre a oratoacuteria
Com o recurso da narrativa Taacutecito compotildee o diaacutelogo atraveacutes dos personagens que
o antecederam para trazer uma discussatildeo antiga mas ainda em voga em seu
tempo Powell (2005 p 236) comenta que a forma do gecircnero diaacutelogo possibilitou a
Taacutecito uma escolha loacutegica da apresentaccedilatildeo de contrastes entre pontos de vista
sobre a eloquecircncia Assim o gecircnero diaacutelogo funciona como um recurso de
aproximaccedilatildeo entre os ausentes que se aproximam pelo interesse da discussatildeo
interligados aos leitores separados pela distacircncia espaccedilo-temporal
O gecircnero epistolar e o tratado satildeo portadores de caracteriacutesticas que indicam suas
raiacutezes no diaacutelogo O proacuteprio Platatildeo fez uso desses gecircneros como estrateacutegia
educacional de seu cabedal filosoacutefico Goldschmidt (2002 p27) faz um paralelo
entre a epiacutestola VII de Platatildeo com o seu diaacutelogo sobre A Repuacuteblica identificando
traccedilos comuns entre partes dessas duas produccedilotildees filosoacuteficas Assim Aristoacuteteles no
papel de disciacutepulo de Platatildeo optou tambeacutem pelo uso do recurso do diaacutelogo como
desencadeador do gecircnero epiacutestolar como testemunha Demoacutestenes com a seguinte
informaccedilatildeo ldquoAacutertmon o editor de cartas de Aristoacuteteles disse que se deve do mesmo
modo escrever diaacutelogo e cartas pois a carta deve ser como uma das duas partes
do diaacutelogordquo (Sobre o estilo IV 223)
Na Antiguidade diaacutelogo tratado e epiacutestola conviviam em estreita relaccedilatildeo
ocasionando em determinadas situaccedilotildees a ausecircncia de limites entre as fronteiras
de cada gecircnero139 Entatildeo a diferenccedila estaacute mais focalizada no objeto do que na
forma de desenvolvimento do tema proposto como pode ser notado na composiccedilatildeo
da Repuacuteblica de Ciacutecero e a Histoacuteria Natural de Pliacutenio o Velho O toacutepico comum na
composiccedilatildeo do gecircnero era um preacircmbulo e dedicatoacuteria a algum personagem e o
caraacuteter didaacutetico do tratado fornecia o tom de conversa entre escritor e leitor
Segundo informaccedilotildees de Powell (2005 230) os tratados na Antiguidade tinham uma
estreita ligaccedilatildeo com a retoacuterica e a filosofia sendo que estas duas aacutereas se
mostraram favoraacuteveis agraves produccedilotildees de tratados na literatura latina
eloquecircncia eacute um toacutepos recorrente em outros autores como Secircneca o Velho Petrocircnio Pliacutenio Quintiliano e Secircneca na epiacutestola 114 1-2 indaga ldquo qual a causa que provoca em certas eacutepocas a decadecircncia geral do estilordquo O proacuteprio Secircneca enfatiza que a questatildeo eacute tatildeo antiga que os gregos ateacute fizeram dela um proveacuterbio ldquoo estilo eacute um reflexo da vidardquo 139
Powell (2005 p224) distingue as diferentes formas de tratados na Antiguidade como uma especialidade em um campo determinado ou simplesmente a sistematizaccedilatildeo de uma informaccedilatildeo
123
A fronteira que delimita diaacutelogo tratado e epiacutestola na Antiguidade eacute tecircnue e este
fenocircmeno causa discussotildees entre pesquisadores e diferentes posicionamentos
como jaacute visto ateacute aqui Como forma de ampliar a visatildeo sobre essas questotildees sobre
epistolografia Gibson (2013 p 388) alega que ldquothe letter does not lose its identity
when it plays host to other generic elementsrdquo140 Com esta afirmaccedilatildeo de Gibson de
que a carta natildeo perde sua identidade quando acolhe elementos de outros gecircneros
fica pressuposto que o essencial eacute a manutenccedilatildeo das caracteriacutesticas proacuteprias e
fundamentais de cada gecircnero
A epistolografia no lugar de subgrupo do diaacutelogo como gecircnero centralizador
manteacutem sua identidade proacutepria mas tambeacutem gera subgrupos que dela se originam
Por isso as epiacutestolas de Secircneca e de Paulo satildeo tratadas neste trabalho como
partes de um subgrupo do diaacutelogo que se subdivide mas que conserva as
caracteriacutesticas baacutesicas de epiacutestolas
Como jaacute discutido anteriormente a cena geneacuterica na enunciaccedilatildeo eacute identificada pelo
gecircnero do discurso o qual estabelece o modo de dizer na cena enunciativa
Maingueneau (2008a p 116) ressalta que ldquona medida em que os gecircneros satildeo
instituiccedilotildees de fala soacutecio-historicamente definidas sua instabilidade eacute grande e eles
natildeo se deixam apreender em taxonomias compactasrdquo Esta eacute uma observaccedilatildeo
pertinente para auxiacutelio na atenccedilatildeo necessaacuteria ao identificar o modo como o gecircnero
epistolar se estabelece e diversifica na escritura de Secircneca e de Paulo a partir do
discurso constituinte como base na elaboraccedilatildeo deste gecircnero em foco
21 PAULO E SUAS EPIacuteSTOLAS AgraveS IGREJAS
Eacute fundamental situar que Secircneca e Paulo viveram em um mesmo momento
histoacuterico e o diferencial na produccedilatildeo de suas epiacutestolas contribui para a observaccedilatildeo
da razoabilidade na flexatildeo da produccedilatildeo gecircnero epistolar naquele periacuteodo Outro
fator preponderante que se observa eacute o propoacutesito final daquelas epiacutestolas Becker
(2007 p 24) destaca o fato de Paulo ser pioneiro entre os primeiros cristatildeos no
uso do gecircnero epistolar para transmissatildeo de seus ensinamentos e juntamente com
os romanos que fizeram uso desse gecircnero serviu de modelo para o ressurgimento
da epistolografia no seacuteculo IV dC no periacuteodo da Patriacutestica
140
ldquoA carta natildeo perde a sua identidade quando acolhe outros elementos geneacutericos
124
Se comparadas as finalidades das produccedilotildees das epiacutestolas de Secircneca e de Paulo
mede-se uma distacircncia entre elas De acordo com Becker (2007 p 21) haacute uma
diferenccedila marcante entre os propoacutesitos da escrita das epiacutestolas de Paulo e as dos
escritores romanos Ebbeler (2001 p 68) menciona que no seacuteculo I dC as
epiacutestolas de Ciacutecero jaacute se integravam nos ciacuterculos de leitura fato que colaborou para
o reconhecimento do enquadramento da epiacutestola no campo da literatura latina
Ebeller (2001 p 67) ainda destaca que a composiccedilatildeo das coleccedilotildees de epiacutestolas de
Secircneca e Pliacutenio tinha como finalidade o encaminhamento agrave divulgaccedilatildeo e publicaccedilatildeo
Quanto a esse aspecto a influecircncia de Ciacutecero tornou-se fundamental na realizaccedilatildeo
desses propoacutesitos
Para os escritores romanos de um modo geral a obra literaacuteria servia como recurso
para sustentaccedilatildeo e permanecircncia da imagem de seu autor permitindo sua
imortalidade O proacuteprio Secircneca faz referecircncia a esse fato comentando sobre o valor
da correspondecircncia como forma de divulgar certos personagens possibilitando a
oportunidade de seus nomes serem perpetuados
Satildeo as cartas de Ciacutecero que natildeo deixam esquecer o nome de Aacutetico De nada lhe adiantaria ter tido como genro Agripa como genro-neto (progener) Tibeacuterio como bisneto Druso Ceacutesar no meio de tatildeo ilustres nomes o nome de Aacutetico permaneceria esquecido se Ciacutecero o natildeo tivesse ligado para sempre ao seu (SEcircNECA Ep214)
Segundo Becker as epiacutestolas de Paulo natildeo se encaixavam nesse objetivo da
produccedilatildeo literaacuteria visto que seus propoacutesitos se mostravam mais imediatos visando
atender as comunidades cristatildes como destinataacuterias diretas em seus
questionamentos e problemas Poreacutem independente de qualquer intencionalidade
as epiacutestolas de Paulo serviram de instruccedilotildees natildeo somente aos destinataacuterios
indicados mas tornaram-se fontes de ensinamentos fundamentais na implantaccedilatildeo e
expansatildeo do cristianismo
Ponderando os objetivos especiacuteficos e limitados que perseguem as cartas de Paulo eacute evidente que o Apoacutestolo conseguiu afrontar a situaccedilatildeo historicamente limitada em que se encontrou de forma que as outras comunidades desde aquele tempo ateacute hoje viram-se refletidas nelas e puderam ler e perceber seu conteuacutedo como orientaccedilatildeo Enfim elas se encontraram com uma compreensatildeo no cristianismo que se julgava de validade geral e que pelo visto conseguiu impor- se com forccedila persuasiva Essa luz interior de suas cartas demonstrou-se sem sombra de duacutevidas decisiva na coleccedilatildeo e conservaccedilatildeo de sua correspondecircncia (BECKER 2007 p 22)
125
O proacuteprio Becker expotildee que as epiacutestolas de Paulo natildeo eram detentoras de
propoacutesitos literaacuterios mas pela essecircncia e significados de seus conteuacutedos foram
ampliadas para um puacuteblico natildeo restrito possibilitando o seu encaixamento no
gecircnero literaacuterio visto que foram copiadas em manuscritos de diferentes origens o
que favoreceu a permanecircncia dos textos
O apoacutestolo Pedro fornece um depoimento em sua segunda epiacutestola que autentica a
credibilidade de Paulo e ressalta o seu valor
[] e tende por salvaccedilatildeo a longanimidade de nosso Senhor como tambeacutem o nosso amado irmatildeo Paulo vos escreveu segundo a sabedoria que lhe foi dada como faz tambeacutem em todas as suas epiacutestolas nelas falando acerca destas coisas nas quais haacute pontos difiacuteceis de entender que os indoutos e inconstantes torcem como o fazem tambeacutem com as outras Escrituras para sua proacutepria perdiccedilatildeo (2 Pedro 31516)
Os comentaacuterios de Pedro contribuem como informaccedilatildeo sobre a circulaccedilatildeo das
epiacutestolas de Paulo e a praacutetica da leitura fora da esfera especiacutefica dos destinataacuterios
Parece relevante a qualidade e profundidade dos textos e a forma responsaacutevel como
o gecircnero epistolar foi requisitado como recurso da comunicaccedilatildeo e ensinamentos de
concepccedilotildees espirituais tatildeo profundas ateacute mesmo inatingiacuteveis para alguns
Paulo tambeacutem usa o termo epiacutestola141 ao referir-se agraves suas correspondecircncias
destinadas agraves igrejas ldquoPelo Senhor vos conjuro que esta epiacutestola seja lida a todos
os irmatildeosrdquo (1 Tess 527) Lucas no livro de Atos faz uso do termo epiacutestola em
contexto diferente ldquoE pediu-lhe cartas para Damasco para as sinagogas a fim de
que se encontrasse alguns deste Caminho os conduzisse presos a Jerusaleacutemrdquo
(Atos 92)142 Lucas estaacute se referindo agrave perseguiccedilatildeo aos seguidores de Jesus
comandada por Paulo (Saulo) antes de sua conversatildeo Observa-se que em todas
as traduccedilotildees consultadas das biacuteblias em portuguecircs o termo grego epiacutestola eacute
traduzido como carta talvez como consequecircncia da tendecircncia de se estabelecer a
diferenccedila entre carta e epiacutestola como jaacute discutido anteriormente
141
O termo epiacutestola usado por Paulo aparece tanto no grego como no latim da nova vulgata ορκιζω υμας τον κυριον αναγνωσθηναι την επιστολην πασιν τοις αγιοις αδελφοις Adiuro vos per Dominum ut legatur epistula omnibus fratribus (1 Tess 527) 142
Nessa passagem de Atos 92 nota-se que tambeacutem o tipo de carta como um documento de autorizaccedilatildeo para Paulo perseguir os seguidores de Jesus eacute designado como epiacutestola tanto no texto grego quanto no latino Poreacutem as traduccedilotildees consultadas optam pelo uso do termo carta ητησατο παρ αυτου επιστολας εις δαμασκον προς τας συναγωγας οπως εαν τινας ευρη της οδου δεδεμενους αγαγη εις ιερουσαλημ et petiit ab eo epistulas in Damascum ad synagogas ut si quos invenisset huius vinctos perduceret in Ierusalem (Atos 92)
126
Como se mostra evidente a escolha da escrita da maioria dos livros canocircnicos de
composiccedilatildeo do Novo Testamente segue a forma de epiacutestolas Dos vinte e sete
livros somente seis natildeo se enquadram no gecircnero epistolar mas ainda pode-se
destacar que a epistolografia comparece no livro de Apocalipse por meio das
epiacutestolas dirigidas agraves sete igrejas da Aacutesia Menor Young (2005 p10) reforccedila essa
informaccedilatildeo fazendo comparaccedilatildeo com o interesse nesse tipo de escrita na cultura
greco-romana referindo-se agraves epiacutestolas de Secircneca dirigidas a Luciacutelio
Segundo Hale (1983 p 31) o texto grego mais antigo contendo epiacutestolas de Paulo
eacute o Papyrus P46 datado aproximadamente no final do seacuteculo II dC e foi
produzido no Egito143 Trobisch (2001 p14) tambeacutem identifica que o conjunto das
epiacutestolas de Paulo eacute tratado como coleccedilatildeo como mostram os manuscritos
existentes com destaque para o Papyrus 46P que eacute o manuscrito mais antigo em
forma de livro (coacutedex) pois ateacute o seacuteculo IV dC era mais frequente o uso de rolos
Os cristatildeos foram os primeiros a utilizar com mais frequecircncia o coacutedex pela facilidade
da leitura
As epiacutestolas que compotildeem o Novo Testamento norteiam a organizaccedilatildeo dos textos
nos manuscritos encontrados Os quatro mais antigos satildeo referentes ao seacuteculo IV d
C sendo catalogados e guardados em diferentes bibliotecas que lhes datildeo a
identificaccedilatildeo144 Segundo informaccedilotildees de Trobisch (2001 p 9) nesses quatro
manuscritos mais antigos completos do Novo Testamento estatildeo registradas
quatorze epiacutestolas de Paulo incluindo a de Hebreus A sequecircncia dos livros eacute a
mesma nos quatro manuscritos Romanos 1 e 2 Coriacutentios Efeacutesios Filipenses
Colossenses 1 e 2 Tessalonicenses Hebreus 1 e 2 Timoacuteteo Tito e Filemom Uma
regularidade que se manteacutem nesses manuscritos eacute a unidade do livro de Atos com
as epiacutestolas gerais Tiago 1 e 2 Pedro 1 2 3 Joatildeo e Judas
Euseacutebio de Cesareia faz um comentaacuterio em sua obra indicando que em seu tempo
havia duacutevidas quanto agrave autenticidade da autoria de Paulo da epiacutestola aos Hebreus
143
Segundo Trobisch (2001 p 14) Papyros 46P eacute um livro (coacutedex) que tem 52 folhas dobradas ao meio totalizando 104 folhas e 208 paacuteginas O texto eacute escrito em grego e existem epiacutestolas incompletas ou ateacute ausentes na coleccedilatildeo O manuscrito eacute dividido em dois volumes estando um em Dublin Islacircndia e o outro na Livraria da Universidade de Michigan 144
Hale (1983 p 33) informa que o Codex Vaticanus (B) estaacute na Biblioteca do Vaticano Este manuscrito conteacutem a maior parte do Velho Testamento e todos os livros do Novo Testamento (exceto Hebreus 915-1325 I e II Timoacuteteo Tito Filemom e Apocalipse) Estes livros e porccedilatildeo de Hebreus teriam formado cadernos separados que se perderam
127
De minha parte se hei de dar minha opiniatildeo eu diria que os pensamentos sim satildeo do Apoacutestolo mas o estilo e a composiccedilatildeo satildeo de algueacutem que evocava a memoacuteria dos ensinamentos do Apoacutestolo como um aluno que anota por escrito as coisas que seu mestre disse Por conseguinte se alguma igreja tiver esta carta como sendo de Paulo que tambeacutem por isto seja estimada pois natildeo sem motivo os antigos varotildees a transmitiram como de Paulo (EUSEacuteBIO HistEcles VI XXV 13)
Trobisch (2001 p10) relata que Martinho Lutero ao traduzir o Novo Testamento do
latim para o alematildeo com base na traduccedilatildeo de Erasmo de Roterdatilde145 mudou a
ordem dos livros retirando a epiacutestola aos Hebreus da coleccedilatildeo de Paulo colando-a
juntamente com as epiacutestolas gerais no final antes de Apocalipse
A autenticidade paulina de algumas epiacutestolas foi posta em duacutevida a partir do seacuteculo
XIX conforme os dados apresentados por Heyer (2008 p 6) De iniacutecio as
chamadas pastorais 1 e 2 Timoacuteteo e Tito e depois tambeacutem 2 Tessalonicenses
Efeacutesios e Colossenses As escolas acadecircmicas que investem na criacutetica da forma e
conteuacutedo da exegese biacuteblica satildeo responsaacuteveis pela apresentaccedilatildeo de argumentos
que rejeitam a autoria de Paulo dessas epiacutestolas citadas Heyer (2008 p 8) faz
algumas alegaccedilotildees concordando com a reclassificaccedilatildeo da coleccedilatildeo das epiacutestolas de
Paulo de treze para sete Aleacutem de sua adesatildeo agrave negaccedilatildeo da autoria de Paulo das
outras seis epiacutestolas Heyer justifica que soacute utiliza na escrita de sua obra essas sete
epiacutestolas146 autenticadas tomando-as como base para investigar a vida e o
pensamento de Paulo
A discussatildeo em relaccedilatildeo agrave autoria de Paulo forma nitidamente grupos favoraacuteveis e
contraacuterios Hale (1983) se agrega aos que defendem a autoridade de Paulo em
responder pela produccedilatildeo da coleccedilatildeo de treze epiacutestolas Hale (1983 p 141)147 toma
como base as fontes dos manuscritos que datildeo sustentaccedilatildeo para sua defesa Ele
apresenta justificativas dos que negam a autoria de Paulo das seis epiacutestolas e tece
145
Em 1516 Erasmo de Roterdatilde publicou uma nova ediccedilatildeo e traduccedilatildeo para o latim do Novo Testamento feita a partir dos manuscritos bizantinos dos seacuteculos XIII e XIV 146
As epiacutestolas autenticadas de Paulo satildeo Romanos 1 e 2 Coriacutentios Gaacutelatas Filipenses 1 Tessalonicenses e Filemom 147
Em seus relatos Hale (1983 p149) afirma que ldquoembora Clemente de Roma e Inaacutecio de Antioquia conhecessem algumas das cartas de Paulo a coleccedilatildeo concreta e existente mais antiga eacute o Cacircnon de Marciatildeo de cerca de 140-150 dC Esta lista inclui uma coleccedilatildeo editada de dez cartas de Paulo (em ordem Gaacutelatas I e II Coriacutentios Romanos I e II Tessalonicenses Laodicenses (Efeacutesios) Colossenses Filipenses e Filemom) As Pastorais foram provavelmente rejeitadas pelo fato de Marciatildeo ter sido um gnoacutestico O Fragmento Muratoriano (cerca de 180 dC) inclui as Pastorais nas treze epiacutestolas de Paulo mas Hebreus natildeo estaacute na coleccedilatildeo O mais antigo manuscrito grego (P 46 ) das epistolas de Paulo que foi preservado data de cerca do fim do segundo seacuteculo Este manuscrito pelo fato de colocar Hebreus entre Romanos e I Coriacutentios indica Paulo como sendo o autor de Hebreus II Tessalonicenses Filemom e as Pastorais estatildeo ausentes do manuscrito preservado mas a ausecircncia poderia ser devida a possiacutevel perda das ultimas folhas que conteriam estas cinco cartas
128
seus argumentos a favor da autoria de Paulo A ressalva de Hale (1983 p 247) eacute
quanto ao seu posicionamento favoraacutevel agrave ideia de anonimato da autoria do livro de
Hebreus por natildeo ser igual a nenhum outro livro do Novo Testamento pois comeccedila
como um tratado continua como um sermatildeo e conclui como uma epiacutestola
Na concepccedilatildeo de Becker (2007 p 24) o valor dado agraves coleccedilotildees de epiacutestolas no
contexto em que Paulo produziu suas correspondecircncias pode ter sido favoraacutevel ao
interesse na conservaccedilatildeo das epiacutestolas e talvez uma tentativa de rearranjo para
preservar e compilar as instruccedilotildees de Paulo como ponto de partida para a
instituiccedilatildeo do cristianismo Becker (2007 p25) indaga sobre a manipulaccedilatildeo em
algumas partes dos textos das epiacutestolas os supostos acreacutescimos148 agraves epiacutestolas aos
Romanos e aos Coriacutentios a criaccedilatildeo de epiacutestolas paralelas se natildeo poderiam ser
considerados como conclusatildeo redacional de uma coleccedilatildeo de epiacutestolas com vistas agrave
posteridade
Outro fator que interfere na expectativa da coleccedilatildeo dos escritos de Paulo eacute a
ausecircncia de outras epiacutestolas que ele poderia ter escrito como ele proacuteprio cita ldquoJaacute
lhes disse por carta que vocecircs natildeo devem associar-se com pessoas imoraisrdquo (1Cor
59) E ainda o comentaacuterio da epiacutestola recebida da igreja de Corinto ldquoOra quanto agraves
coisas que me escrevestesrdquo (1Cor 71)
Becker (2007 p 27) chama atenccedilatildeo para o valor de outras fontes externas agrave
coleccedilatildeo das epiacutestolas de Paulo Estas fontes149 podem ser encontradas no cacircnon
148
Hale (1983 p142) analisa a discussatildeo sobre a integridade de Romanos 16 e alega que a maioria dos manuscritos de melhor evidencia inclui o capitulo 16 com a doxologia depois de 1623 Natildeo haacute nenhum manuscrito grego existente que natildeo inclui o capitulo 16 No que diz respeito agrave primeira epiacutestola aos Coriacutentios segundo Hale (1983 163) haacute falta de qualquer evidencia do manuscrito que apoiasse uma compilaccedilatildeo das duas primeiras cartas para formar uma Eacute por estas razotildees que a grande maioria dos estudiosos biblicos aceita a integridade da Primeira Epistola aos Coriacutentios canocircnica como assegurada Segundo Becker (2007 p 24) ldquohaacute boas razotildees para se supor que as comunidades colecionadoras natildeo soacute alinhavam os endereccedilos das cartas a que tinham acesso colocando talvez a carta a elas dirigida no inicio ou no final mas que tambeacutem interferiam no proacuteprio texto das cartas Sempre se chamou a atenccedilatildeo que a doxologia no final da Carta aos Romanos (Rm 1625-27) natildeo pertence agrave carta original ela apresenta uma linguagem que imita a de Paulo mas que eacute significativamente modificada e conteacutem uma teologia que se aproxima da teologia deutero-paulina presente em Efeacutesios ou Colossenses O mesmo sucede com partes das epiacutestolas aos Coriacutentios pelo menos mais duas passagens importantes do ponto de vista de conteuacutedo estatildeo sob suspeita de serem acreacutescimos natildeo-paulinos 1Cor 1433-36 e 2Cor 614-71 Esses acreacutescimos datildeo a entender que a coleccedilatildeo interessava a toda a cristandaderdquo 149
Com relaccedilatildeo agraves outras fontes que contribuem diretamente ou indiretamente com informaccedilotildees sobre a vida de Paulo Backer (2007 p 27) observa que ldquoeacute preciso antes de qualquer coisa fazer alusatildeo ao livro dos Atos dos Apoacutestolos que dedica mais do que a metade de seu texto a narrativas a respeito de Paulo Alem disso a primeira carta de Clemente e a carta de Inaacutecio de Antioquia citam os martiacuterios de Pedro e Paulo (cf XV3) Mesmo assim as duas citaccedilotildees satildeo comparativamente
129
que integra o Novo Testamento e oferecem mais credibilidade do que a literatura
apoacutecrifa No grupo de literatura apoacutecrifa destaca-se a coleccedilatildeo de epiacutestolas da
suposta correspondecircncia entre Paulo e Secircneca que teria deixado seus primeiros
vestiacutegios apoacutes o seacuteculo II dC Independente da veracidade do contato entre Paulo e
Secircneca ao analisar a escrita nas produccedilotildees destes dois autores identificam-se
certas proximidades quanto ao conteuacutedo eacutetico-moral de suas epiacutestolas
22 SEcircNECA E AS EPISTULAE MORALES
O tiacutetulo Epistulae Morales contribui para uma indicaccedilatildeo baacutesica do gecircnero no qual
Secircneca investe a produccedilatildeo de sua obra Natildeo basta identificar que o tiacutetulo da coleccedilatildeo
de Secircneca se engaja no gecircnero epistolar mas eacute necessaacuterio especificar o
subconjunto como gecircnero epistolar filosoacutefico Habinek (2005 p 85) analisa os
tratados e as epiacutestolas de Secircneca como um corpo de textos que podem ser
comparados para identificaccedilatildeo do interesse central que eacute a exortaccedilatildeo pois Secircneca
desenvolve um projeto filosoacutefico oferecendo aconselhamentos morais De acordo
com a opiniatildeo de Wilson (2001 p175) a hipoacutetese de Habinek eacute contraditoacuteria com a
teoria da epiacutestola antiga que natildeo eacute concebida como oportunidade para exortaccedilatildeo
mas como substituta da conversaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo de Wilson reforccedila a ideia da
ligaccedilatildeo da epiacutestola ao diaacutelogo
Wilson (2007 p437) comenta que no periacuteodo da uacuteltima fase das produccedilotildees de
Secircneca nota-se que ele adotou a epiacutestola como gecircnero literaacuterio por ser mais
favoraacutevel a um maior grau de liberdade em sua comunicaccedilatildeo Ainda o gecircnero
epistolar permitiu-lhe construir o discurso filosoacutefico como conversa privada como o
proacuteprio Secircneca assume em suas epiacutestolas optando pelo estilo coloquial
escassas O mesmo vale para as epiacutestolas deutero-paulinas (Efeacutesios Colossenses 2 Tessalonicenses 1 e 2 Timoteo Tito) que satildeo testemunhos de como o paulinismo se desenvolveu apoacutes a morte do Apoacutestolo Elas poreacutem somente podem ajudar de maneira limitada a projetar luz histoacuterica sobre Paulo (cf por exemplo 2Tm 311) Essa avaliaccedilatildeo eacute mais pertinente ainda acerca de escritos pertencentes aos apoacutecrifos no Novo Testamento antes de tudo acerca dos Atos de Paulo e da troca de correspondecircncia entre Seneca e Paulo Os Atos de Paulo jaacute satildeo atestados por Tertuliano Hipoacutelito e Oriacutegenes portanto a partir de 150 dC estatildeo amplamente divulgados As citaccedilotildees do filoacutesofo Secircneca deixam seus primeiros vestigios no seacuteculo II dC Jerocircnimo cita a correspondecircncia entre Secircneca e Paulo em 392 dC Ambos os escritos relacionados com o nome do Apoacutestolo Paulo estatildeo tatildeo distantes da teologia paulina e tatildeo claramente longiacutenquos de um conhecimento do tempo de Paulo que satildeo insignificantes para a interpretaccedilatildeo de Paulo O mesmo juiacutezo deve ser feito sobre a restante literatura paulina apoacutecrifa como por exemplo a carta agrave Laodiceia e os Atos Lendaacuterios de Paulo Tambeacutem as judeu-cristatildes e antipaulinas cartas pseudo-clementinas podem ser totalmente ignoradasrdquo
130
Se noacutes nos sentaacutessemos a conversar e discutiacutessemos passeando de um lado para o outro o meu estilo seria coloquial e pouco elaborado pois eacute assim mesmo que eu pretendo sejam as minhas cartas que nada tenham de artificial e fingido (SEcircNECA Ep 751)
A partir dessa intervenccedilatildeo de Secircneca fica declarado seu propoacutesito de recorrer ao
gecircnero epistolograacutefico para exposiccedilatildeo de suas ideias de modo espontacircneo como
revelaccedilatildeo da alma Portanto o que importa natildeo eacute a literatura enquanto manifestaccedilatildeo
artiacutestica mas sua relaccedilatildeo entre escritor leitor e sua representatividade como obra
Edwards (2007 p 271) relaciona a epiacutestola em prosa com a produzida em verso
apontando para o caraacuteter literaacuterio na constitutividade da epiacutestola na Antiguidade
mencionando a qualidade literaacuteria da correspondecircncia de Ciacutecero Outro destaque
fornecido por Edwards (2007 p 274) eacute quanto agrave circulaccedilatildeo das coleccedilotildees das
epiacutestolas de Platatildeo e Epicuro consideradas textos literaacuterios de caraacuteter filosoacutefico Na
produccedilatildeo romana Horaacutecio interliga literaacuterio e filosoacutefico na criaccedilatildeo de suas epiacutestolas
em versos Na sequecircncia histoacuterica Oviacutedio adota o gecircnero epistolar em forma de
verso mas usa o mito e a ficccedilatildeo na conduccedilatildeo literaacuteria de suas epiacutestolas
Inwood (2007 p 137) se posiciona a favor da classificaccedilatildeo da correspondecircncia de
Secircneca no campo da epistolografia filosoacutefica e observa que o poder literaacuterio e a
influecircncia das epiacutestolas como um legado deixado por Secircneca despertou em
Foucault o interesse em compreender o estoicismo imperial do seacuteculo I dC atraveacutes
dessas produccedilotildees A respeito da escrita de si e do cuidado de si na Antiguidade
Foucault (2004 p157) toma como apoio a epistolografia recorrendo aos
personagens estoicos Secircneca e Marco Aureacutelio e algumas citaccedilotildees de Pliacutenio
observando que nesses autores ldquoa narrativa de si eacute a relaccedilatildeo consigo mesmordquo Os
postulados de Foucault contribuem como apoio aos que defendem a
correspondecircncia entre Secircneca e Luciacutelio como gecircnero epistolar pois pontos baacutesicos
na elaboraccedilatildeo das epiacutestolas caracterizam o gecircnero epistolar na Antiguidade150 Em
sua anaacutelise da epiacutestola setenta e oito Foucault (2004 p168) identifica um lugar
comum na produtividade da correspondecircncia na Antiguidade em que as notiacutecias
sobre a sauacutede eram assuntos recorrentes entre os interlocutores da missiva
ldquoLamento saber que sofres frequentemente de gripe e daquelas febres ligeiras e
150
Morello e Morrisson (2007 p ix) apontam que determinados toacutepicos satildeo regulares na epistolografia latina O toacutepico mais frequente eacute relacionado agraves questotildees de sauacutede por meio de recomendaccedilotildees conselhos ou ateacute mesmo metaacuteforas Outro toacutepico recorrente eacute a ministraccedilatildeo didaacutetica de teacutecnica de algum conhecimento
131
irritantes que as gripes prolongadas e jaacute quase ininterruptas arrastam consigordquo (Ep
781) A partir desse toacutepos Secircneca insere seus conselhos e recomendaccedilotildees ao
transcorrer de sua comunicaccedilatildeo ldquoum homem tem que lutar contra a dor de alma e
coraccedilatildeo se ceder agrave dor seraacute vencido mas se juntar com ela todas as forccedilas sairaacute
vencedorrdquo (Secircn Ep 7815) Outro toacutepos que Foucault (2004 p155) destaca em sua
anaacutelise eacute a aproximaccedilatildeo entre ausentes atraveacutes da correspondecircncia pois a epiacutestola
torna o remetente presente para aquele a quem ele envia ldquonunca recebo uma carta
tua sem que imediatamente fiquemos um na companhia do outrordquo (Secircn Ep 401)
Como jaacute discutido vale enfatizar que tanto gregos como romanos concebiam a
epiacutestola com caracteriacutesticas de forma literaacuteria e eacute nessa perspectiva que Alexandre
Jr (2015 p 170) identifica a ldquoinevitaacutevel influecircncia da retoacuterica no gecircnero epistolar
como um veiacuteculo de importacircncia no tracircnsito da comunicaccedilatildeo na Antiguidade claacutessica
e Heleniacutesticardquo Por isso este autor visualiza que a proacutepria funccedilatildeo do gecircnero epistolar
foi sempre maleaacutevel agrave aplicaccedilatildeo dos recursos da retoacuterica permitindo assim a
penetraccedilatildeo da argumentaccedilatildeo na construccedilatildeo nos discursos desse gecircnero
Aprofundando mais em suas consideraccedilotildees Alexandre Jr (2015 171) afirma que os
discursos de consolaccedilatildeo encontraram no gecircnero epistolar ldquoa forma retoacuterica e literaacuteria
que mais se prestou a veicular seus conteuacutedosrdquo Assim nas epiacutestolas em que a
retoacuterica eacute mais evidente satildeo perceptiacuteveis as trecircs partes do discurso abertura
desenvolvimento e conclusatildeo A flexibilidade no estilo era o fator fundamental A
epiacutestola sessenta e trecircs de Secircneca a Luciacutelio serve como indicaccedilatildeo dessa praacutetica
Logo na introduccedilatildeo ele daacute o tom de consolaccedilatildeo na sua mensagem ldquoLamento
profundamente o falecimento de seu amigo Flaco no entanto entendo que a tua dor
natildeo deve ultrapassar o limite do razoaacutevelrdquo (Secircn Ep 631) Apoacutes a introduccedilatildeo
(exordium) algumas reflexotildees vatildeo se desenvolvendo (narratio) ao longo da epiacutestola
entre exemplos e conselhos ldquoGozemos intensamente a companhia dos nossos
amigos ateacute porque natildeo podemos saber por quanto tempo o faremosrdquo (Secircn Ep
639) Na conclusatildeo (conclusio) o desfecho se liga agrave abertura [] ldquoateacute pode suceder
que tenham razatildeo os saacutebios e haja um lugar onde todos iremos residir apoacutes a morte
se assim for esse amigo que julgamos ter morrido limitou-se a partir para laacute agrave nossa
frenterdquo (Secircn Ep 6316)
Outro toacutepico a ser considerado na epistolografia eacute o fenocircmeno da relaccedilatildeo EUTU
que se fundamenta no princiacutepio do diaacutelogo Em sua contribuiccedilatildeo para os estudos
132
neste campo Braren identifica alguns toacutepicos inerentes ao gecircnero epistolar
destacando o aspecto elocutivo da enunciaccedilatildeo
Na verdade o extraordinaacuterio de um texto epistolograacutefico satildeo as marcas que estabelecem a ligaccedilatildeo entre o proacuteprio autor da carta e o missivista o enunciador natural em primeira pessoa seja em qualquer niacutevel que ocorrer Procuramos conhecer os sinais de identificaccedilatildeo reveladores da personalidade da ideologia ou da filosofia do eu que fala No caso da Antiguidade Claacutessica o texto eacute tudo ou quase tudo que temos Fornece-nos o material de investigaccedilatildeo que seraacute tanto mais vivo quando melhor estabelecer a comunicaccedilatildeo principal requisito do discurso epistolograacutefico (quer a comunicaccedilatildeo seja efetuada com o endereccedilado quer seja com o leitor) (BRAREN 1999 p 40)
No gecircnero epistolar predomina o modo elocutivo na organizaccedilatildeo do discurso no qual
Charaudeau (2008 p74) identifica como funccedilatildeo essencial o fato de ldquodar conta da
posiccedilatildeo do locutor com relaccedilatildeo ao interlocutor a si mesmo e aos outrosrdquo sendo
esse mecanismo um indicador do acontecimento enunciativo Eacute nessa perspectiva
que o gecircnero epistolar favorece a identificaccedilatildeo do cuidado de si como analisado por
Foucault em suas uacuteltimas pesquisas Por isso Secircneca declara ldquoa natureza
incumbe-me de cuidar de mimrdquo (Ep 12116)
Natildeo haacute registros de epiacutestolas de Luciacutelio em reposta a Secircneca mas Ebbeler (2001
p174) observa que Secircneca manteacutem a ficccedilatildeo da correspondecircncia e o diaacutelogo eacute
constituiacutedo pelas evidecircncias ldquoA tua carta encheu-me de satisfaccedilatildeo e restituiu-me um
pouco as forccedilas que me vatildeo faltando reavivou-me mesmo a memoacuteria que jaacute se me
vai tornando cansada e lentardquo (SEcircNECA Ep 741)
Segurado e Campos (1991 p XIV) analisa a interlocuccedilatildeo entre Secircneca e Luciacutelio
como apresentado nos textos das epiacutestolas e observa que haacute traccedilos que contribuem
para autenticar a veracidade da correspondecircncia Para este autor o que pode
confundir o leitor eacute a presenccedila de caracteriacutesticas da diatribe ciacutenica151 em alguns
aspectos da construccedilatildeo das epiacutestolas O traccedilo mais evidente da caracterizaccedilatildeo da
diatribe eacute o chamado interlocutor fictiacutecio como esclarece Segurado e Campos
151
Reale (1994a p 45) informa que o ciacutenico Bion de Boriacutestenes (335-245 aC) no periacuteodo Heleniacutestico exerceu um papel importante no iniacutecio do cinismo principalmente na aacuterea da literatura Foi ele quem provavelmente deu origem agrave forma literaacuteria da diatribe ndash um monoacutelogo argumentativo com interlocutores imaginaacuterios A paroacutedia eacute usada natildeo exatamente para obter efeitos cocircmicos mas para contestar as convenccedilotildees e regras da sociedade que os ciacutenicos rejeitavam Essas caracteriacutesticas influenciaram escritores romanos como Luciacutelio e Horaacutecio na produccedilatildeo das saacutetiras Nota-se que Paulo tambeacutem faz uso da diatribe como identificado nestes versos ldquoMas algueacutem diraacute Como ressuscitaratildeo os mortos E com que corpo viratildeo Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se primeiro natildeo morrerrdquo (1Cor 1535-36)
133
[] o processo eacute bem conhecido tanto da suasoriae propriamente ditas como ainda dos textos filosoacuteficos [] consiste o processo em o autor imaginar que uma sua afirmaccedilatildeo eacute objectada por algueacutem (interlocutor fictiacutecio) objeccedilatildeo essa que lhe daacute oportunidade para retornar sua ideia original e comprovaacute-la com novos argumentos ou ilustraacute-la com nova e mais impressionante exemplificaccedilatildeordquo (SEGURADO E CAMPOS 1991 p XV)
A ideia de um interlocutor fictiacutecio na enunciaccedilatildeo abre espaccedilo para que Secircneca faccedila
uso da diatribe expandindo suas reflexotildees filosoacuteficas por meio de um diaacutelogo
imaginaacuterio independente dos questionamentos reais do co-enunciador na figura de
Luciacutelio A estrateacutegia da diatribe introduz o uso de exemplos para dar sustentaccedilatildeo
aos argumentos e as maacuteximas para aplicaccedilatildeo moral aos ensinamentos Com esses
recursos Secircneca daacute sequecircncia agrave ordem das epiacutestolas de acordo com os assuntos
que vatildeo sendo introduzidos O proacuteprio Secircneca assume o uso da estrateacutegia da
diatribe ldquoMas jaacute chega de diatribe contra Baacuteias contra os viacutecios poreacutem nunca ela
seraacute excessivardquo (Ep 5113)
Apoiando a ideia da organizaccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca como coleccedilatildeo Inwood
(2005 p 137-146) expotildee que haacute uma variedade de formas identificadas nas
produccedilotildees das epiacutestolas Algumas satildeo mais teacutecnicas e doutrinaacuterias outras satildeo
mais informais permitindo ao autor falar de si mesmo e evidencia suas proacuteprias
experiecircncias Mesmo que a filosofia moral seja predominante outros temas satildeo
acrescentados inclusive a polecircmica contra outras escolas ou mesmo com
antecessores do estoicismo
Todas essas caracteriacutesticas apontadas contribuem para a identificaccedilatildeo das epiacutestolas
de Secircneca constituiacutedas como gecircnero epistolograacutefico e mais especificamente como
gecircnero epistolar filosoacutefico De acordo com as consideraccedilotildees de Edwards (2005 p
278) a leitura das epiacutestolas em sequecircncia permite estabelecer o niacutevel do progresso
filosoacutefico tendo em vista o destinataacuterio O caraacuteter filosoacutefico da obra eacute delineado a
partir da primeira epiacutestola e os temas vatildeo sendo tratados em um crescente e agraves
vezes satildeo revisitados sob outros acircngulos Os toacutepicos como lugar comum na
constituiccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico aparecem como garantia da caracterizaccedilatildeo
do proacuteprio gecircnero Esses toacutepicos satildeo variados de acordo com o remetente e
destinataacuterio podendo ser identificados como o falar de si mesmo abrir-se com o
outro dar conselhos e instruccedilotildees entre outros
Ao constatar a amplitude do uso da correspondecircncia Young (2005 p 11) observa
que a identificaccedilatildeo do gecircnero epistolar se torna crucial na determinaccedilatildeo de como o
134
texto deve ser lido Ainda pode-se acrescentar agrave essa colocaccedilatildeo de Young que a
epiacutestola como gecircnero estaacute ligada a um tipo de discurso que tem sua origem nos
discursos constituintes Esse eacute um fator essencial para a leitura das epiacutestolas de
Secircneca e de Paulo e o tratamento ao corpus de anaacutelise neste trabalho aqui
desenvolvido
23 CONJECTURAS SOBRE A TROCA DE CORRESPONDEcircNCIA ENTRE
PAULO E SEcircNECA
O interesse de aproximaccedilatildeo dos discursos de Paulo e Secircneca se efetua desde os
primoacuterdios do cristianismo Nota-se que a lenda que se criou de uma possiacutevel
correspondecircncia entre estes dois autores tem provocado o interesse de
pesquisadores em desvendar esse cenaacuterio especulativo Um dos pesquisadores
nesta aacuterea eacute Ferreira (2012)152 que deu o seguinte tiacutetulo ao seu trabalho Secircneca e
Paulo de Tarso conjecturas em torno de uma correspondecircncia incerta Ferreira
(2012 p149) observa que em fontes encontradas nos primeiros textos da literatura
cristatilde haacute referecircncias de Tertuliano153 quanto agraves ideias de Secircneca filosoacutefico mas
nenhuma menccedilatildeo quanto agrave aproximaccedilatildeo entre Secircneca e o apoacutestolo Paulo
A pesquisa realizada se mostra bastante minuciosa apontando as dificuldades de se
conceber as possibilidades de uma existecircncia real de tais epiacutestolas trocadas entre
Secircneca e Paulo O material referente agraves fontes toma como base a publicaccedilatildeo de
catorze epiacutestolas ndash oito de Secircneca e seis de Paulo Segundo Ferreira os
manuscritos desta correspondecircncia estatildeo situados entre os seacuteculos XII e XIII dC
No trabalho deste pesquisador eacute realizado um levantamento de dados como
resultado de uma busca histoacuterica que situa as fontes indicadas como suporte para
autenticar ou negar a existecircncia da suposta correspondecircncia Nessa pesquisa de
Ferreira eacute confirmada a referecircncia a jaacute conhecida circulaccedilatildeo das epiacutestolas trocadas
152
Parte integrante do livro produzido pelo Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra intitulado Paulo de Tarso grego e romano judeu e cristatildeo 153
Segundo Ferreira (2012 p 149) ldquodos Padres da Igreja o primeiro a mostrar um bom conhecimento de Seacuteneca foi Quinto Tertuliano que viveu entre 160 e 240 dC e por volta de 195 se converteu ao Cristianismo Entre os oito passos onde explicitamente se menciona o nome ou apenas se pressente o texto de Seacuteneca conta-se Anim 201rdquoSeneca saepe nosterrdquo Ferreira (2012 p 151) ainda menciona que ldquoapesar de se natildeo referirem a qualquer correspondecircncia entre Paulo e Seacuteneca jaacute os Actos Apoacutecrifos dos Apoacutestolos que devem ter sido compostos entre os seacutec II e IV dC relatavam a gesta de Paulo na corte de Nero E seria precisamente aqui que para Bocciolini Palagi estaria a origem da lenda do contacto entre Paulo de Tarso e Seacuteneca que teria servido de intermediaacuterio entre o apoacutestolo e Nerordquo
135
entre Secircneca e Paulo na obra de Jerocircnimo intitulada De uiris illustribus XII154
Ferreira (2012 p 151) assim registra sua traduccedilatildeo com base no texto de Barlow
em inglecircs155
Luacutecio Aneu Seacuteneca de Coacuterduba disciacutepulo do estoacuteico Soacutecion e tio paterno do poeta Lucano levou vida assaz regrada Natildeo o incluiria no cataacutelogo dos santos se a tal me natildeo tivessem induzido as cartas que satildeo lidas por muitos de Paulo a Seacuteneca ou de Seacuteneca a Paulo e onde embora mestre de Nero e o homem mais poderoso do tempo diz que desejava ser tido junto dos seus na mesma conta em que era tido Paulo junto dos Cristatildeos (De uiris illustribus XII)
Em torno dessa colocaccedilatildeo de Jerocircnimo circulam diferentes interpretaccedilotildees como
demonstrado por Ferreira fato que enfraquece a possiacutevel veracidade a respeito da
existecircncia das epiacutestolas citadas como sendo de Secircneca e Paulo no seacuteculo I dC
No seacuteculo IX de nossa era houve uma retomada bem marcada do tema controverso
sobre essa suposta troca de correspondecircncia Com esse mesmo objetivo Ligthfoot
(1892 p 318) faz uma anaacutelise do conteuacutedo das catorze epiacutestolas (oito de Secircneca e
seis de Paulo) e expotildee alguns comentaacuterios a respeito do assunto Para ele as
hipoteacuteticas epiacutestolas trocadas natildeo contecircm questotildees doutrinaacuterias e nem mesmo
alguma informaccedilatildeo histoacuterica relevante A mais provaacutevel inferecircncia que se obteacutem do
resumido comentaacuterio de Jerocircnimo eacute de que natildeo se aceita deliberadamente o fato
como genuiacuteno Ao olhar o comentaacuterio de Jerocircnimo com mais atenccedilatildeo percebe-se
um texto vago e a ausecircncia de informaccedilatildeo segura como pode ser observado ldquoNatildeo
o incluiria no cataacutelogo dos santos se a tal me natildeo tivessem induzido as cartas que
satildeo lidas por muitos de Paulo a Secircneca ou de Secircneca a Paulo []rdquo (De uiris
illustribus XII) Na mesma linha de conduta Agostinho156 natildeo acrescenta nenhum
dado novo repetindo casualmente as informaccedilotildees de Jerocircnimo Assim Ligthfoot
(1892 p 320) conclui ldquoThere is no reason to suppose that Jerome did believe the
correspondence to be genuine as I have shownrdquo157
154
392 dC eacute registrado como o ano da publicaccedilatildeo de De uiris illustribus Segundo Ferreira os manuscritos da correspondecircncia entre Paulo e Secircneca estatildeo situados nos seacuteculos XII e XIII dC 155
Ferreira (2012 p 151) cita o autor de onde retirou o texto base para sua traduccedilatildeo BARLOW C W Epistolae Senecae ad Paulum et Pauli ad Senecam ltquae uocanturgt Roma American Academy in Rome 1938 156
Ferreira (2012 p153) tambeacutem expotildee que ldquoalgum tempo depois mais propriamente em 413 eacute Santo Agostinho quem em Epistula ad Mecedonium se refere agrave correspondecircncia nestes termos Merito ait Seneca (qui temporibus Apostolorum fuit cuius etiam quaedam ad Paulum apostolum leguntur epistolae) ldquoJustamente Seacuteneca (que viveu no tempo dos Apoacutestolos e do qual ainda se lecircem algumas das cartas a Paulo Apoacutestolo)rdquo 157
Lightfoot (1892 p320) ldquoNatildeo haacute razatildeo para supor ser genuiacutena a correspondecircncia (entre Secircneca e Paulo) como eu tenho demonstradordquo
136
Ferreira se posiciona em relaccedilatildeo agraves impossibilidades de autenticidade dessas
epiacutestolas serem oriundas da escrita de Secircneca e de Paulo pelo fato delas se
apresentarem escritas em latim no mesmo patamar de igualdade do uso claacutessico da
liacutengua latina Pela identificaccedilatildeo da escrita das missivas o latim usado por Secircneca eacute
equivalente ao usado por Paulo158 A partir de entatildeo se estabelecem as duacutevidas
visto que as epiacutestolas de Paulo e os demais livros do Novo Testamento foram
escritos em grego e natildeo haacute prova histoacuterica do uso do latim em registros das
produccedilotildees de epiacutestolas de Paulo Nesse ponto Ferreira (2012 p 174) expressa sua
concordacircncia com alguns pesquisadores e expotildee ldquoParecem ter razatildeo quantos
defendem tratar de uma correspondecircncia forjada por quem queria mostrar que o
cristianismo natildeo tinha conquistado adeptos apenas nos estratos sociais mais
baixosrdquo
As discussotildees a respeito da suposta troca de correspondecircncia perpassam por
outras questotildees relacionadas agrave postura de Secircneca mediante os conceitos
fundadores do cristianismo Haveria uma afinidade ideoloacutegicamoral entre os dois
autores das epiacutestolas e natildeo exatamente uma identificaccedilatildeo religiosa Decerto esta
discussatildeo natildeo eacute recente e indica que aceitar a autenticidade do conteuacutedo da
hipoteacutetica correspondecircncia entre Secircneca e Paulo implica aceitar tambeacutem que
Secircneca se converteu ao cristianismo e este eacute o noacute da questatildeo Marcos Viniacutecius
Fernandes Miranda concluiu seu mestrado na Universidade Estadual de Maringaacute
(2008) com a dissertaccedilatildeo intitulada Do viacutecio agrave virtude uma proposta educativa em
Secircneca Em parceria com Joseacute Joaquim Pereira Melo Doutor em Histoacuteria e
professor do departamento de Fundamentos da Educaccedilatildeo da Universidade Estadual
de Maringaacute realizaram a traduccedilatildeo para o portuguecircs das chamadas epiacutestolas
apoacutecrifas de Secircneca e Paulo e informam que as fontes utilizadas satildeo a versatildeo para
liacutengua inglesa feita em 1924 por M R James medievalista da Universidade de
Cambridge e a traduccedilatildeo tambeacutem para o Inglecircs feita em 1938 por C W Barlow em
158
Na penuacuteltima epiacutestola da suposta troca de correspondecircncia entre Secircneca e Paulo o proacuteprio Secircneca faz algumas advertecircncias quanto ao uso do latim nas epiacutestolas de Paulo SEcircNECA PARA PAULO Ep 13 Saudaccedilotildees Em muitas partes do seu trabalho estatildeo incluiacutedas paraacutebolas e enigmas portanto a grande forccedila e talento que foram dados a vocecirc deveriam ser embelezados eu natildeo digo com palavras elegantes mas com certo cuidado Vocecirc natildeo deveria temer quando lhe lembro do que vocecirc frequumlentemente tem dito que muitos que se preocupam com tais coisas corrompem o pensamento e tornam degenerada a profundidade do assunto Eu queria que vocecirc me fizesse uma concessatildeo e adaptasse o genial Latim dando beleza agraves suas nobres palavras e que a grande daacutediva que tem sido concedida a vocecirc possa ser tratada com o devido valor Adeus Dada no dia antes de nones de junho Leo e Sabinus cocircnsules Trad de Marcos V F Miranda e Joseacute Joaquim P Melo
137
Roma No final da traduccedilatildeo Miranda e Melo expressam a seguinte opiniatildeo
As quatorze cartas autecircnticas ou natildeo produto da imaginaccedilatildeo ou uma estrateacutegia de legitimaccedilatildeo ao menos ilustram a inegaacutevel valorizaccedilatildeo de Luacutecio Aneu Secircneca por parte dos primeiros autores cristatildeos Ao contraacuterio de seus criacuteticos que na maioria dos casos se opunham ao seu pensamento e agrave sua praacutetica poliacutetica os cristatildeos adotaram uma postura diferenciada e se voltaram para as suas ideias suas sentenccedilas e sua doutrina orientaccedilatildeo que gerou em alguns deles a ideia comum e aceita de um Secircneca pagatildeo como precursor do cristianismo e em outros a de um Secircneca agraves veacutesperas da conversatildeo ao cristianismo Contudo os legados satildeo muacutetuos se no seacuteculo I dC Secircneca ldquoemprestourdquo seu prestiacutegio agrave feacute cristatilde provavelmente eacute a ela que ele deve a sua ldquosobrevivecircnciardquo e notoriedade ateacute os nossos dias (MIRANDA MELO 2007 p 8)
Na introduccedilatildeo de sua pesquisa sobre epistolografia Ebbeler (2001 p1) menciona a
circulaccedilatildeo da correspondecircncia entre Secircneca e Paulo que ela declara considerar
fictiacutecia Poreacutem esta autora admite que este fenocircmeno fortalece o valor dado agrave
epistolografia em especial no seacuteculo IV d C Em nota informativa fica indicado que
os manuscritos dessas catorze epiacutestolas datados do seacuteculo IX dC se encontram
em Vienna public library
A coleccedilatildeo da suposta correspondecircncia entre Secircneca e Paulo mostra que o gecircnero
epistolograacutefico requerido para aquelas produccedilotildees verdadeiras ou forjadas natildeo
segue os tipos de gecircnero epistolograacutefico usados por Secircneca e Paulo Seria um
terceiro gecircnero voltado para o interesse de comunicaccedilatildeo entre emissaacuterio e
destinataacuterio visando aproximaccedilatildeo e conservaccedilatildeo de uma possiacutevel amizade159
Ebbeler (2001 p 44) defende que a identificaccedilatildeo do gecircnero epistolograacutefico e sua
forma no ato enunciativo eacute essencial para a apreensatildeo do texto Ao revisitar
historicamente o desempenho da epiacutestola desde a Antiguidade eacute possiacutevel observar
a importacircncia desse gecircnero no seacuteculo I dC e o papel fundamental que Secircneca e
Paulo desempenharam como protagonistas na produccedilatildeo epistolar O uso da
correspondecircncia foi muito ampliado no periacuteodo Heleniacutestico pois este representou
um momento de interaccedilatildeo entre povos orientais e ocidentais Assim Paulo estaacute no
lado dos orientais e Secircneca dos ocidentais O ponto de uniatildeo entre ambos eacute o
gecircnero epistolar no contexto da cultura heleniacutestica a partir dos discursos
constituintes que os direcionam
159
SEcircNECA PARA PAULO Ep 3 - Saudaccedilotildees Eu estou compilando e organizando alguns escritos num volume Eu tambeacutem resolvi lecirc- los para Ceacutesar Se a sorte me ajudar que ele possa me ouvir com atenccedilatildeo Talvez vocecirc tambeacutem esteja laacute Caso contraacuterio eu marcarei um outro dia no qual possamos examinar juntos o trabalho Realmente eu natildeo poderia apresentar este trabalho a ele sem primeiro saber da sua opiniatildeo para que natildeo haja risco de vocecirc achar que esteja sendo relegado Adeus querido Paulo Trad de Marcos V F Miranda e Joseacute Joaquim P Melo (2007)
138
3 FORMACcedilAtildeO JUDAICO-HELENIacuteSTICA DE PAULO E SEU POSICIONAMENTO
DISCURSIVO NAS EPIacuteSTOLAS
No livro Greacutecia e Roma Funari (2002 p 75) procura esclarecer a distinccedilatildeo entre
helenismo e heleniacutestico Na origem desses vocabulaacuterios destaca-se o termo helenos
como designaccedilatildeo que identifica os gregos No primeiro plano helenismo significa
todo o movimento histoacuterico que envolve os helenos (gregos) Em segundo plano a
nomeaccedilatildeo heleniacutesticos contempla os povos dominados englobando o periacuteodo das
conquistas de Alexandre na expansatildeo do impeacuterio macedocircnico perdurando este ateacute
a data do domiacutenio de Roma sobre a Greacutecia
De acordo com as observaccedilotildees de Funari o termo helenismo agraves vezes eacute confundido
com o heleniacutestico entatildeo este autor oferece os seguintes esclarecimentos
Os gregos chamavam-se de helenos e os estudiosos modernos utilizaram o termo heleniacutestico para referir-se agrave civilizaccedilatildeo que se utilizava do grego como liacutengua oficial a partir das conquistas de Alexandre o Grande (336 aC) ateacute o domiacutenio romano da Greacutecia em 146 aC Ou seja eacute um termo que natildeo se confunde com helecircnico que eacute o mesmo que grego Embora seja aplicado a um periacuteodo de tempo relativamente curto este foi marcado por grandes interaccedilotildees culturais Alexandre conquistou um imenso territoacuterio as cidades gregas todas mas tambeacutem o Egito a Palestina a Mesopotacircmia a Peacutersia (Iratilde) chegando agrave Iacutendia Depois de sua morte prematura o Impeacuterio dividiu-se em trecircs reinos centrados na Macedocircnia no Egito e na Mesopotacircmia (FUNARI 2002 p 75)
Jaeger (1965 p 13) menciona que na origem do termo helenismo significava o
purismo da liacutengua grega sem outras influecircncias e interferecircncias e primava-se pelo
padratildeo no uso gramatical da liacutengua Nesse contexto os retoacutericos eram os guardiotildees
daquele ideal linguiacutestico e posteriormente o termo helenistas eacute aplicado na
identificaccedilatildeo daqueles que adotavam o grego como sua liacutengua de uso oficial
Portanto independente da nacionalidade o indiviacuteduo falante da liacutengua grega como
forma de comunicaccedilatildeo em seu ambiente de convivecircncia era considerado helenista
De acordo com as observaccedilotildees de Jaeger (1965 p15) algumas referecircncias sobre
helenistas160 estatildeo contidas no Novo Testamento o que pode ser identificado em
160
Vale destacar que essas designaccedilotildees cunhadas de helenismo heleniacutestico e helenistas natildeo fazem parte do arsenal linguiacutestico da Antiguidade pois foram convencionadas a partir do seacuteculo XIX Conforme indica Biazott (2015 p 182) Johann Gustav Droysen (1808 ndash 1884) publicou em 1833 Geschichte Alexanders des Grossen obra responsaacutevel por inaugurar o termo ldquohelenismordquo na era Moderna dando a ele um conceito que extrapolava as conataccedilotildees concebidas no campo religioso no qual seus sentidos estavam integrados
139
Atos 6 15161 conforme mencionado tambeacutem na anaacutelise de Silvatici (2006 p 176)
em sua tese sobre Os judeus helenistas e a primeira expansatildeo cristatilde Aleacutem dessa
indicaccedilatildeo biacuteblica analisada por Silcatici outro fato a ser destacado se encontra na
narrativa do evangelho de Joatildeo162 sobre os gregos que estavam em Jerusaleacutem para
as comemoraccedilotildees da paacutescoa e pediram a Filipe que os encaminhassem a Jesus
porque desejavam falar com Ele A referecircncia aos gregos que procuraram Jesus
aparece no texto biacuteblico em grego koineacute como ελλήνες (helenos) A nota deste
texto na Biacuteblia de Jerusaleacutem identifica que o termo grego eacute referente aos natildeo
judeus que aderiram o monoteiacutesmo de Israel e em certa medida as observacircncias
dos costumes judaicos Outro fato inerente a esse texto eacute a comunicaccedilatildeo daqueles
gregos com o disciacutepulo chamado Filipe por certo um falante da liacutengua grega o que
se justifica pela proacutepria origem do seu nome
Na perspectiva de Ramos (2002 p 197) o helenismo pode ser considerado como
fator de interculturaccedilatildeo entre parte do oriente e do ocidente ldquoNo caso dos hebreus
o pensamento biacuteblico aproveita-se de um espaccedilo cultural exterior ao seu mundo
natural do antigo orienterdquo Assim as condiccedilotildees daquela eacutepoca favorecem uma
adesatildeo e adaptaccedilatildeo agraves influecircncias culturais gregas por parte dos orientais das
regiotildees dominadas pelo impeacuterio macedocircnico Hale (1983 p 9) identifica Alexandre
como o responsaacutevel pela fusatildeo comercial dos paiacuteses orientais dominados tendo a
liacutengua grega como meio de interaccedilatildeo mais favoraacutevel para possibilitar o
relacionamento entre orientais e ocidentais
Conforme indicaccedilotildees de Leacutevecircque (1987 p19) a morte de Alexandre (323 aC) eacute
um marco histoacuterico para o iniacutecio do periacuteodo Heleniacutestico Documentos encontrados
em papiros contendo epiacutestolas de vaacuterios tipos material de estudos transaccedilotildees
comerciais entre outros servem de fonte para informaccedilotildees que contribuem para
161
ldquoIntervieram entatildeo alguns da sinagoga chamada dos libertos dos cireneus e alexandrinos dos da Ciliacutecia e da Aacutesia e puseram-se a discutir com Estevatildeordquo (Biacuteblia de Jerusaleacutem Atos 69) A nota referente a este verso daacute a seguinte informaccedilatildeo ldquoOs helenistas judeus que viveram fora da Palestina haviam adotado certa cultura grega e dispunham em Jerusaleacutem de sinagogas particulares em que a biacuteblia era lida em gregordquo 162
ldquoOra havia alguns gregos entre os que tinham subido a adorar no dia da festa Estes pois dirigiram-se a Filipe que era de Betsaida da Galileacuteia e rogaram-lhe dizendo Senhor queriacuteamos ver a Jesusrdquo (Joatildeo 12 20-21) (ησαν δε τινες ελληνες εκ των αναβαινοντων ινα προσκυνησωσιν εν τη εορτη ουτοι ουν προσηλθον φιλιππω τω απο βηθσαιδα της γαλιλαιας και ηρωτων αυτον λεγοντες κυριε θελομεν τον ιησουν ιδειν )
140
identificaccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo da fase inicial do periacuteodo Heleniacutestico Leacutevecircque
oferece uma descriccedilatildeo bem detalhada sobre os conflitos que se intensificaram com
a perda da figura emblemaacutetica de Alexandre De acordo com os registros de
Leacutevecircque (1987 p 22) apoacutes quarenta anos de disputas internas de poder e a
impossibilidade da manutenccedilatildeo da governabilidade o impeacuterio foi dividido em trecircs
reinos o Egito sob o governo de Ptolomeu II a Aacutesia foi governada por Antiacuteoco I e a
Macedocircnia por Antiacutegono
No periacuteodo Heleniacutestico os judeus compunham-se em dois grupos distintos os que
viviam na Palestina e os da diaacutespora Leacutevecircque (1987 p 47) relata que a Judeia e
Siacuteria integraram o reino do Egito por algum tempo Nesse periacuteodo a cidade de
Alexandria se tornou o centro helenizado que concentrava a reuniatildeo de diferentes
etnias e muitos judeus se estabilizaram naquela regiatildeo Sendo a liacutengua grega o meio
de comunicaccedilatildeo de diferentes raccedilas transformaccedilotildees aconteceram naquele sistema
linguiacutestico surgindo entatildeo o grego koineacute considerado mais popular em relaccedilatildeo ao
claacutessico Leacutevecircque (1987 p 100) ressalta que durante o classicismo o dialeto aacutetico
atingiu uma inegaacutevel primazia sustentada pela superior intelectualidade de Atenas Eacute
este dialeto grego que constitui a base para a liacutengua koineacute com fins pragmaacuteticos
tornando-se numa liacutengua de uma cultura de vasta difusatildeo Nesse contexto Atenas
perde a centralidade das produccedilotildees literaacuterias com exceccedilatildeo da comeacutedia Aos
poucos Alexandria ocupa parte do espaccedilo deixado mas Atenas prevalece como
centro da filosofia e ciecircncias
Hale (1983 p10) observa que a Palestina sofreu uma helenizaccedilatildeo gradual sem
imposiccedilatildeo externa Um fenocircmeno de transformaccedilatildeo linguiacutestica afetou tambeacutem a
Judeia Gradativamente o hebraico na liacutengua falada havia cedido lugar ao
aramaico no periacuteodo dos setenta anos do exiacutelio babilocircnico O mesmo aconteceu
com o grego no domiacutenio do impeacuterio macedocircnico Entatildeo a adesatildeo agrave cultura
heleniacutestica influenciou a retirada de judeus para regiotildees de fala grega e ainda pelo
incentivo do direito de cidadania idecircntico aos macedocircnios concedido pelos
Ptolomeus163
163
Leacutevecircque (1987 p 22) informa que apoacutes a morte de Alexandre o impeacuterio foi governado por quatro dos seus generais Selecircuco ficou com parte da Siacuteria e Mesopotacircmia Ptolomeu com o Egito Palestina e parte da Siacuteria mantendo uma dinastia ateacute o domiacutenio romano Antiacutepatro (que logo foi substituiacutedo por seu filho Casandro) ficou com os domiacutenios da Macedocircnia e Greacutecia Lisiacutemaco governou a Traacutecia e parte da Aacutesia menor
141
A obra Histoacuteria dos hebreus de Flaacutevio Josefo (XI 8452) conteacutem informaccedilotildees a
respeito do contato histoacuterico de Alexandre com o sumo sacerdote Jado164 no
acontecimento da tomada de Jerusaleacutem Essa alianccedila feita entre Alexandre e os
judeus foi determinante na inauguraccedilatildeo do periacuteodo Heleniacutestico e interpenetraccedilatildeo de
costumes judaicos na cultura heleniacutestica pois a cultura judaica influenciou a cultura
heleniacutestica e tambeacutem foi fortemente influenciada por ela
Uma narrativa minuciosa de Flaacutevio Josefo fornece informaccedilotildees detalhadas sobre a
traduccedilatildeo da literatura judaica do hebraico para o grego designada Traduccedilatildeo LXX
em grego e Septuaginta em latim Demeacutetrio de Faleros eacute a figura que se destaca
na descriccedilatildeo de Josefo pois era o responsaacutevel pela biblioteca de Alexandria no
reinado de Ptolomeu II (Filadelfo) indicando obras do mundo inteiro que deveriam
compor o arsenal da biblioteca Josefo apresenta o seguinte relato da solicitaccedilatildeo de
Demeacutetrio ao priacutencipe
Eacute necessaacuterio pois se vossa majestade bem o julgar que se escreva ao sumo sacerdote dos judeus para que se escolha entre os principais de cada tribo os mais inteligentes e os que conhecem com mais perfeiccedilatildeo essas leis e vo-los enviem a fim de que se reuacutenam e faccedilam uma traduccedilatildeo exata e capaz de satisfazer plenamente os desejos de vossa majestade
(JOSEFO Hist Heb XII 11453)
164
Em Jerusaleacutem quando o sumo sacerdote soube que seria atacado por Alexandre e seu exeacutercito levantou um clamor a Deus junto com o povo Foi orientado em sonho para colocar as vestes sacerdotais e todos de branco receberiam Alexandre De acordo com a narrativa de Flaacutevio Josefo (Histoacuteria dos Hebreus) quando o exeacutercito e Alexandre se aproximaram viram um cenaacuterio inesperado Ao reconhecer o sacerdote com aquelas vestes Alexandre inclinou-se diante dele e entatildeo ldquoParmecircnio que desfrutava grande prestiacutegio perguntou-lhe como ele que era adorado em todo mundo adorava o sumo sacerdote dos judeus Respondeu Alexandre Natildeo eacute a ele ao sumo sacerdote que adoro mas ao Deus de quem ele eacute o ministro pois quando eu estava ainda na Macedocircnia e imaginava como poderia conquistar a Aacutesia ele me apareceu em sonhos com essas mesmas vestes e exortou-me a nada temer Disse-me que passasse corajosamente o estreito do Helesponto e garantiu que Deus estaria agrave frente de meu exeacutercito e me faria conquistar o impeacuterio dos persas Eis por que jamais tendo visto antes algueacutem revestido de trajes semelhantes a esses com que ele me apareceu em sonho natildeo posso duvidar de que tenha sido por ordem de Deus que empreendi esta guerra e assim vencerei Dario destruirei o impeacuterio dos persas e todas as coisas suceder-me-atildeo segundo os meus desejos Alexandre depois de assim responder a Parmecircnio abraccedilou o sumo sacerdote e os outros sacerdotes caminhou no meio deles ateacute Jerusaleacutem subiu ao Templo e ofereceu sacrifiacutecios a Deus da maneira como o sumo sacerdote lhe disse para fazer O sumo sacerdote mostrou-lhe em seguida o livro de Daniel no qual estava escrito que um priacutencipe grego destruiria o impeacuterio dos persas e disse-lhe que natildeo duvidava de que era dele que a profecia fazia menccedilatildeo Alexandre ficou muito contente No dia seguinte mandou reunir o povo e ordenou que dissessem que favores desejavam receber dele O sumo sacerdote respondeu que eles suplicavam permissatildeo para viver segundo as suas leis e as de seus antepassados e isenccedilatildeo no seacutetimo ano do tributo que lhe pagariam nos outros anos Ele concordou E tendo eles tambeacutem pedido que os judeus que moravam na Babilocircnia e na Meacutedia desfrutassem os mesmos favores ele o prometeu com grande bondade e disse que se algueacutem desejasse servir em seus exeacutercitos ele permitiria a tal pessoa viver segundo a sua religiatildeo e observar todos os seus costumesrdquo (JOSEFO Hist Heb XI 845)
142
Depois de lida essa solicitaccedilatildeo o rei aprovou o pedido e ordenou que fosse enviada
uma epiacutestola ao sumo sacerdote Eleazar complementado o pedido com uma
autorizaccedilatildeo de liberdade para todos os judeus submissos agrave escravidatildeo naquele
reino conforme orientaccedilatildeo dada por Demeacutetrio O sumo sacerdote dos judeus
respondeu favoravelmente e foram enviados seis tradutores pertencentes a cada
uma das doze tribos totalizando setenta e dois Assim houve a traduccedilatildeo dos textos
sagrados da literatura hebraica para o grego e ainda os tradutores incluiacuteram a
literatura produzida a partir do cativeiro babilocircnico Hale (1983 p 9) destaca a
importacircncia dessa traduccedilatildeo para os judeus165 dispersos tanto os do Egito como os
da Aacutesia e Macedocircnia falantes do grego
Conforme relato de Edersheim (1953 p1456) a Palestina foi governada pelos
Ptolomeus e posteriormente passou a ser dominada pela Siacuteria Antiacuteoco IV Epifacircnio
(175-164) determinou substituir o judaiacutesmo pelo helenismo momento em que
aconteceu a revolta dos macabeus Estes saiacuteram vencedores e estabeleceram uma
dinastia sacerdotal que se manteve de 142 a 63 aC Muitos conflitos e disputas
foram levantados nesse periacuteodo porque a famiacutelia dos macabeus natildeo era de
linhagem real (Davi) e nem sacerdotal (Aratildeo) como Flaacutevio Josefo cita na obra
Histoacuteria dos Hebreus (VIII 467)
Na continuidade de seus relatos Edersheim (1953 p 1468) informa que com a
tomada de Jerusaleacutem por Pompeu (63 aC) encerra-se a atuaccedilatildeo dos macabeus e a
independecircncia da Palestina passando esta para o domiacutenio romano com a obrigaccedilatildeo
de pagamento dos tributos Com o controle da Judeia pelos romanos Antipater foi
designado procurador e Hircano sumo-sacerdote Os filhos de Antipater Fasael e
Herodes foram designados governadores da Judeia e Galileia respectivamente
Com a morte de Antipater e Fasael Herodes recebeu de Antonio e Otaacutevio o tiacutetulo de
165 Aleacutem de Ptolomeu ter mantido o acordo com os judeus a respeito dos seus costumes e culto no impeacuterio romano essa liberdade se manteve Na obra Doze ceacutesares Suetocircnio (sdata p 66) faz menccedilatildeo a uma carta que o imperador Augusto escreveu a Tibeacuterio com o seguinte comentaacuterio sobre costumes judaicos ldquoNatildeo haacute judeu que jejue mais rigorosamente no dia do sabbat como eu jejuo hojerdquo Flaacutevio Josefo (Hist Heb XV 10 698) tambeacutem menciona as concessotildees feitas por Augusto a respeito da religiatildeo dos judeus Ceacutesar Augusto sumo sacerdote e administrador da Repuacuteblica ordena o que se segue Sendo a naccedilatildeo dos judeus natildeo somente no tempo presente mas tambeacutem no passado sempre fiel e afeiccediloada ao povo romano particularmente ao imperador Ceacutesar meu pai quando Hircano era o seu sumo sacerdote ordenamos com o consentimento do senado que os judeus vivam segundo as suas leis e costumes tal como faziam no tempo de Hircano sumo sacerdote do Deus Altiacutessimo que os seus Templos desfrutem sempre o direito de asilo que lhes seja permitido enviar a Jerusaleacutem o dinheiro consagrado ao serviccedilo de Deus que natildeo sejam obrigados a comparecer a julgamento no dia de saacutebado nem na vigiacutelia do saacutebado apoacutes as nove horasrdquo
143
rei dos judeus em 40 aC Herodes desenvolveu um projeto arrojado de construccedilotildees
de fortalezas cidades como a de Cesareia166 e ainda a reconstruccedilatildeo do templo de
Jerusaleacutem iniciada em 19 aC Foi nesse ambiente histoacuterico que Jesus nasceu em
Beleacutem distante de Jerusaleacutem 8 km de acordo com as narrativas dos Evangelhos de
Mateus e Lucas
O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia (vol II p 710-712) situa a morte de Herodes em 4 dC
e informa que seu reino foi dividido em trecircs aacutereas para contemplar seus herdeiros
Judeia e Samaria foram destinadas a Arquelau Galileia e Pereia a Antipas e os
territoacuterios do nordeste para Filipe O governo de Arquelau tornou-se insustentaacutevel e
uma delegaccedilatildeo da Judeacuteia e Samaria foi enviada a Roma para solicitar o afastamento
de Arquelau A partir desse fato a Judeacuteia tornou-se uma proviacutencia romana
passando a ser governada por procuradores nomeados pelo imperador O primeiro
procurador romano na Judeia foi Pocircncio Pilatos que atuou no julgamento de Jesus
Antipas foi denunciado por seu sobrinho Agripa167 que obteve sucesso no seu
intento Sendo seu tio Antipas afastado e exilado Agripa foi nomeado pelo
imperador Caliacutegula como rei O rei Agripa morreu subitamente e foi substituiacutedo por
seu filho Agripa (Herodes Agripa II) que governou como rei nos territoacuterios do norte e
nordeste da Palestina sendo seus domiacutenios ampliado por Nero em 56 dC Agripa
mudou o nome da capital Cesareia para Neronias em homenagem a Nero O
governo de Agripa II durou ateacute o iniacutecio da guerra contra Roma a partir de 66 dC
166
Flavio Josefo em Histoacuteria dos Hebreus (XV 13 669) oferece detalhes sobre a construccedilatildeo da cidade de Cesareia informando que do lado direito estavam duas colunas de pedra tatildeo grandes que superavam a altura da torre Via-se ao redor do porto uma fileira de casas cujas pedras eram muito bem talhadas e construiu-se sobre uma colina que estaacute meio o Templo consagrado a Augusto Os que navegam podem vecirc-lo de bem longe e haacute duas estaacutetuas uma de Roma e outra desse priacutencipe em honra do qual Herodes deu o nome de Cesareacuteia a essa cidade natildeo menos admiraacutevel pela riqueza de suas construccedilotildees que pela magnificecircncia de seus ornamentos Quanto agrave reconstruccedilatildeo do templo Herodes fez a seguinte proposta aos judeus ldquosabeis que o Templo que os nossos antepassados construiacuteram depois de seu regresso do cativeiro da Babilocircnia mede em altura sessenta cocircvados a menos que o construiacutedo por Salomatildeo mas natildeo devemos culpaacute-los pois desejavam tornaacute-lo mais suntuoso que o primeiro poreacutem estando entatildeo sujeitos aos persas e depois aos macedocircnios foram obrigados a seguir as medidas que lhes deram os reis Ciro e Dario filho de Histapes Agora que sou devedor a Deus da coroa que possuo e uso sobre minha cabeccedila da paz de que desfrutamos das riquezas que acumulei e o mais importante da amizade dos romanos que hoje satildeo senhores do mundo esforccedilar-me-ei por demonstrar o meu reconhecimento por tantos favores dando a essa obra a maior perfeiccedilatildeo (JOSEFO Hist Heb XV 14 676) 167
Agripa era filho de Aristoacutebulo e neto de Herodes o Grande Mariane esposa de Herodes e avoacute de Agripa era descendente dos macabeus neta do sumo sacerdote Hircano II A dinastia de Herodes era descendente dos edomitas (Idumeus) que foram dominados pelos macabeus no seacuteculo II aC (O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia vol II p712)
144
Os conflitos entre governantes romanos e governados judeus aumentaram
gradativamente resultando na revolta aberta em 66 dC tendo como desfecho a
invasatildeo da tropa de Tito e a destruiccedilatildeo do templo no ano 70 dC Essas lutas e
disputas tambeacutem coincidiram com a crise poliacutetica do impeacuterio romano que culminou
com a morte de Nero em 68 dC Sem duacutevida eacute inegaacutevel a contribuiccedilatildeo de Flaacutevio
Josefo como fonte para as pesquisas desse periacuteodo histoacuterico visto ser ele um judeu
que enuncia na posiccedilatildeo de romano como ele proacuteprio deixa transparecer em partes
de sua narrativa
Em Flaacutevio Josefo168 percebem-se os efeitos da heranccedila cultural do periacuteodo
Heleniacutestico que deixou marcas e influecircncia tanto na cultura judaica quanto na
histoacuteria dos primoacuterdios do cristianismo Jerocircnimo expressa sua opiniatildeo sobre o
modo como determinados judeus tornaram-se capacitados em vaacuterios campos do
conhecimento agregando agrave formaccedilatildeo judaica certos elementos da formaccedilatildeo
educacional heleniacutestica
Josefo para provar a antiguidade do povo judeu escreve dois livros contra Apiatildeo gramaacutetico alexandrino e expotildee tantos argumentos dos autores pagatildeos que a mim se me apresenta como um milagre como um homem hebreu educado desde a infacircncia com as letras sagradas tenha manuseado toda a biblioteca dos gregos Que poderia eu falar de Filatildeo que os criacuteticos proclamam ou o segundo Platatildeo ou o Platatildeo judeu (JEROcircNIMO Ep LXX 3)
Outro judeu que se destaca nos primoacuterdios de nossa era eacute Fiacutelon de Alexandria
Segundo Edersheim (1953 p 518) Fiacutelon era um judeu helenista e rabino na
sinagoga169 de Alexandria Algumas ideias deste judeu natildeo eram aceitas por rabinos
mais ortodoxos como por exemplo a noccedilatildeo de loacutegos Poreacutem os primeiros cristatildeos
incorporaram o conceito de loacutegos defendido por Fiacutelon como eacute registrado no
Evangelho de Joatildeo 11 para apresentar Jesus como a palavra de Deus encarnada
como segunda pessoa da trindade170
168
Na obra Histoacuteria dos Hebreus na parte Vida de Flaacutevio Josefo escrita por ele mesmo (p 957) em sua autobiografia Flaacutevio Josefo relata ldquoAos 19 anos iniciei-me na vida civil e abracei a seita dos fariseus que se aproxima mais que qualquer outra da dos estoicos entre os gregosrdquo 169
Hale (1983 p 13) informa que durante o exiacutelio dos judeus na Babilocircnia a instruccedilatildeo religiosa foi prosseguida pelos sacerdotes e levitas numa tentativa de conservar o conhecimento de Jeovaacute vivo Esses locais de adoraccedilatildeo e instruccedilatildeo tornaram-se conhecidos como sinagogas a palavra grega que significa reunidos juntos 170
No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus εν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος (Joatildeo 11)
145
Eacute nesse momento histoacuterico do seacuteculo I dC que se destaca o judeu Saulo em sua
origem chamado Paulo depois de sua conversatildeo ao cristianismo no contexto da
cultura romana Apesar de poucos dados a respeito de sua infacircncia171 alguns
informes biacuteblicos mostram que ele foi criado na tradiccedilatildeo judaica de acordo com a
afirmaccedilatildeo em Atos 223 ldquoSou judeu nascido em Tarso da Ciliacutecia mas criado nesta
cidade (Jerusaleacutem) Fui instruiacutedo rigorosamente por Gamaliel na lei de nossos
antepassadosrdquo Ele pertencia agrave tribo de Benjamim e era capaz de se comunicar em
hebraico aramaico e grego e tinha domiacutenio fluente do grego172 no contexto da
cultura heleniacutestica Paulo era descendente de famiacutelia judaica da diaacutespora nasceu
em Tarso cidade da Aacutesia Menor pertencente ao impeacuterio grego e posteriormente ao
domiacutenio do impeacuterio romano Becker faz algumas observaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo
judaica de Paulo no contexto heleniacutestico
Assim eacute de supor que ele desde a infacircncia fosse habituado a falar a liacutengua comum da diaacutespora como liacutengua franca Aleacutem disso deve-se mencionar que o niacutevel de educaccedilatildeo de Paulo por um lado estaacute concentrado na versatildeo grega da Biacuteblia (Paulo utiliza a Septuaginta) sendo por outro lado significativamente determinado pela cultura geral heleniacutestica Paulo enfim como cristatildeo tambeacutem visitou quase somente cidades heleniacutestico-romanas provavelmente tambeacutem um reflexo de sua socializaccedilatildeo em ambiente heleniacutestico urbano Isso por sua vez ajusta-se a cidade heleniacutestica de Tarso como lugar de sua juventude (BECKER 2007 p59)
De acordo com relatos de Pena (2010 p29) a cidade de Tarso estava localizada
numa regiatildeo helenizada durante a dinastia dos Selecircucidas Os habitantes da regiatildeo
mantinham como padratildeo cultural as tradiccedilotildees a literatura e a liacutengua grega Em 67
aC a cidade foi anexada agrave recente Proviacutencia romana da Ciliacutecia da qual se tornou
capital administrativa Em 51 a C teve como prococircnsul Marco Tuacutelio Ciacutecero
Em sua narrativa Grimal (2008 p 30-31) comenta que no periacuteodo do triunvirato
coube a Marco Antocircnio o governo da parte do oriente para conquista definitiva da
Alta Aacutesia Tarso era o local de apoio para as estrateacutegias militares e poliacuteticas de
Marco Antocircnio e foi nesse contexto que ele recebeu Cleoacutepatra em Tarso como uma
princesa vassala e a entrada triunfal dela teria sido por um portal que eacute conservado
ateacute os dias atuais como marco histoacuterico Atualmente a cidade de Tarso integra o 171
Natildeo haacute informaccedilatildeo exata sobre data de nascimento do apoacutestolo Paulo Becker (2007 p 55) verifica que na eacutepoca de sua vocaccedilatildeo Paulo jaacute havia concluiacutedo seu periacuteodo de formaccedilatildeo profissional bem como sua formaccedilatildeo farisaica Dai e possiacutevel e faz sentido supor uma idade entre 20 e 25 anos para a sua vocaccedilatildeo Isso leva a uma data de nascimento com toleracircncia de alguns anos para antes ou depois em torno de 10 dC portanto nos uacuteltimos anos do impeacuterio de Augusto (morto em 14 dC) 172
Becker (1983 2007 p 59) verifica que a liacutengua grega de Paulo usada na escrita das epiacutestolas natildeo soacute estaacute livre de fortes semitismos (portanto dificilmente aprendida mais tarde como liacutengua estrangeira em Jerusaleacutem) como tambeacutem segue com independecircncia o estilo grego
146
paiacutes da Turquia e eacute um local muito visitado pelo seu valor histoacuterico Na parte central
da cidade foi preservado e restaurado o portal de Cleoacutepatra porque essa era uma
ligaccedilatildeo do porto no mediterracircneo com a cidade
No seacuteculo I dC Tarso era um dos eixos do comeacutercio internacional entre o mundo
semita o planalto Anatoacutelio e as cidades gregas viradas para o Egito e a Europa A
posiccedilatildeo estrateacutegica da cidade de Tarso a colocou em destaque no contexto histoacuterico
do Oriente helenizado como afirma Pena (2010 p30) ldquotodos os ramos das artes
liberais figuravam em Tarso poesia retoacuterica e filosofia esta sobretudo com forte
ascendente na tradiccedilatildeo estoica localrdquo
Fabris (1996 p 25) menciona algumas figuras que foram destaque em Tarso ou que
reconheceram o seu valor cultural Atenedoro mestre de Augusto contribuiu para
que Tarso se ampliasse como um centro cultural O depoimento de Estrabatildeo eacute
elogioso agraves escolas de Tarso Outro destaque eacute a tradiccedilatildeo de poetas e filoacutesofos
naquele local como Antiacutepatro chefe da stoa mestre de Paneacutecio academia
platocircnica e o epicurista Liacutesias
A composiccedilatildeo da biografia de Paulo tem como base os dados fornecidos atraveacutes do
livro de Atos173 e de suas proacuteprias epiacutestolas na busca de interligar informaccedilotildees
biacuteblicas com as da proacutepria Histoacuteria De acordo com pesquisas de Fabris (1996 p
16) algumas fontes contribuem para o desenvolvimento cronoloacutegico da vida do
apoacutestolo Paulo entre estas eacute levado em conta o conjunto das sete epiacutestolas
consideradas autecircnticas Com esse material que forma uma documentaccedilatildeo interna
comparado agraves demais fontes externas de outros textos torna-se possiacutevel uma
ordem cronoloacutegica da vida desse apoacutestolo da sua conversatildeo ateacute sua prisatildeo em
Roma Em especial na epiacutestola aos Gaacutelatas Paulo fornece uma ordem temporal de
173
Em relaccedilatildeo a certos desencontros entre informaccedilotildees contidas na narrativa de Atos e a epiacutestola aos Gaacutelatas Becker faz a seguinte observaccedilatildeo ldquoa participaccedilatildeo do autor de Atos na descriccedilatildeo de Paulo certamente natildeo consiste somente na coleccedilatildeo de tradiccedilotildees isoladas nem soacute na remodelaccedilatildeo literaacuteria das mesmas ou na sua interligaccedilatildeo Bem mais Atos mostra (juntamente com o terceiro evangelho) um esboccedilo teoloacutegico proacuteprio que se enraiacuteza na situaccedilatildeo eclesial do final do primeiro seacuteculo e que quer estar a serviccedilo dessa Igreja A apresentaccedilatildeo de Paulo nos Atos insere-se nesse interesse Por essa razatildeo Paulo natildeo eacute descrito como pessoa biograficamente significativa dos iniacutecios da Igreja nem como teoacutelogo de destaque da primeira geraccedilatildeo cristatilde mas eacute caracterizado como ator decisivo no desenvolvimento do cristianismo desde a comunidade primitiva de Jerusaleacutem ateacute a Igreja espalhada pelo mundo todo Essa eacute a razatildeo porque soacute se alude de passagem ao martiacuterio de Paulo (2025 38 2113) e inversamente a permanecircncia do Apoacutestolo na capital do Impeacuterio Romano aparece como final glorioso dos Atos Por isso mesmo nenhum discurso paulino nos Atos valoriza a teologia do grande missionaacuterio Discursos satildeo colocados na boca de Paulo para mostrar em que direccedilotildees vatildeo os acontecimentos eclesiais segundo a visatildeo de Atosrdquo (BECKER 2007 p 30)
147
suas atividades o que permite uma associaccedilatildeo com outros fatos histoacutericos para
situar as provaacuteveis datas dos acontecimentos Alguns dados nas epiacutestolas aos
Coriacutentios ajudam a decifrar as possiacuteveis eacutepocas de alguns acontecimentos como o
relato do levantamento da oferta de colaboraccedilatildeo agrave igreja de Jerusaleacutem em que
Paulo menciona em 2 Coriacutentios (92) o incentivo que as igrejas da Macedocircnia
tiveram em ajudar pelo exemplo da atitude da igreja de Corinto174
A biografia de Paulo eacute introduzida no livro de Atos com a narrativa do momento da
sua conversatildeo A histoacuteria eacute contada em trecircs momentos diferentes Na primeira vez o
narrador eacute Lucas e nas outras vezes o proacuteprio Paulo conta sua experiecircncia Sendo
um judeu zeloso pertencente ao grupo dos fariseus empenhou-se na perseguiccedilatildeo
contra os seguidores de Jesus Segundo a narrativa de Lucas175 (Atos 9 1-31)
quando Saulo se dirigia a Damasco para executar as prisotildees de seus perseguidos
de repente brilhou ao seu redor uma luz vinda do ceacuteu Nesta visatildeo Jesus o indaga
Saulo por que vocecirc me persegue A partir desse encontro aconteceu a conversatildeo
de Saulo tendo iniacutecio sua trajetoacuteria como missionaacuterio pois conversatildeo e chamada na
vida de Paulo satildeo entendidas a partir de um processo conjunto
Pode-se entatildeo dizer que dois fenocircmenos inseparaacuteveis aconteceram na vida de
Paulo sua conversatildeo e sua chamada missionaacuteria A conversatildeo na vida dele
significou mudanccedila de meta objetivos e nova atitude no modo de pensar e agir
Schreiner (2015 p 42) atenta para o fato de que a partir do evento da conversatildeo
Paulo estabeleceu uma nova leitura e significado da lei de Moiseacutes e o lugar do
judaiacutesmo no plano de Deus para salvaccedilatildeo da humanidade Um ponto comum nas
trecircs narrativas em Lucas sobre a conversatildeo de Paulo eacute a imagem da luz forte que
brilhou causando-lhe cegueira Quando sua visatildeo voltou sua perspectiva de
enxergar o mundo era outra razatildeo da sua disposiccedilatildeo em desbravar os mares para
alcanccedilar os natildeo contemplados com a notiacutecia da vinda morte e ressurreiccedilatildeo de
Jesus
174
ldquoPorque bem sei a prontidatildeo do vosso acircnimo da qual me glorio de voacutes para com os macedocircnios que a Acaia estaacute pronta desde o ano passado e o vosso zelo tem estimulado muitosrdquo (2 Cor 92) 175
No Novo Testamento Atos dos Apoacutestolos se caracteriza como um livro histoacuterico para o iniacutecio do Cristianismo Lucas autor do Evangelho que leva seu nome se coloca como um historiador dirigindo-se a Teoacutefilo nos seguintes termos ldquoeu mesmo investiguei tudo cuidadosamente desde o comeccedilo e decidi escrever-te um relato ordenado oacute excelentiacutessimo Teoacutefilo (Lucas 13) Ele eacute identificado tambeacutem como autor de Atos dos Apoacutestolos e assim introduz os relatos ldquoem meu livro anterior Teoacutefilo escrevi a respeito de tudo que Jesus comeccedilou a fazer e ensinar (Atos 11)
148
Com o objetivo de alcanccedilar a evangelizaccedilatildeo dos gregos integrantes do impeacuterio
romano Paulo manifesta pensamentos filosoacuteficos que remetem a pensadores da
Antiguidade grega por ser familiar ao grupo a que ele se dirige Conforme opiniatildeo
de Johnson (2012 p 134) quando se lanccedila um olhar para o primeiro seacuteculo dC
situa-se o apoacutestolo Paulo na conjuntura do iniacutecio do cristianismo Como
disseminador dos ensinamentos de Jesus Cristo aos gentios (natildeo judeus) falantes
do grego Paulo identificou-se com um puacuteblico de base comum no contexto da
cultura heleniacutestica fato determinante na exposiccedilatildeo de pontos de vista na
transmissatildeo de sua mensagem
Nos fatos levantados por Fabris (1996) nota-se que Paulo natildeo menciona sua terra
de nascimento e nem comenta sobre sua cidadania romana sendo esses dados
informados apenas no livro de Atos No entanto Fabris (1996 p 24) faz algumas
inferecircncias baseadas em alguns relatos de Paulo que podem contribuir para uma
ligaccedilatildeo agraves narrativas de Lucas no livro de Atos Na epiacutestola aos Gaacutelatas Paulo
informa que depois de sua trajetoacuteria176 apoacutes sua conversatildeo ele foi para Araacutebia e em
seguida para Damasco e soacute depois de trecircs anos voltou agrave Jerusaleacutem onde esteve
com Pedro por quinze dias concluindo ldquodepois fui para as partes da Siacuteria e da
Ciliacuteciardquo (Gaacutelatas 121) Assim pode-se deduzir que havia uma identificaccedilatildeo de Paulo
com essa regiatildeo sabendo-se que Tarso onde supostamente ele nasceu fazia parte
da regiatildeo da Ciliacutecia
Quanto ao questionamento sobre a cidadania romana de Paulo Heyer (2008 p 17)
argumenta que eacute impossiacutevel encontrar no conteuacutedo das epiacutestolas por ele escritas
alguma sinalizaccedilatildeo que possa concordar com o relato de Lucas no livro de Atos
onde haacute informaccedilotildees sobre sua cidadania romana177 por direito de nascimento
Quanto a essa questatildeo este autor pondera que o silecircncio de Paulo se presta ao fato
de estar mais interessado em provar que eacute judeu para justificar sua identidade e
seu posicionamento diante de seus opositores nas sinagogas
176
ldquoNem tornei a Jerusaleacutem a ter com os que jaacute antes de mim eram apoacutestolos mas parti para a Araacutebia e voltei outra vez a Damasco Depois passados trecircs anos fui a Jerusaleacutem para ver a Pedro e fiquei com ele quinze dias E natildeo vi a nenhum outro dos apoacutestolos senatildeo a Tiago irmatildeo do Senhorrdquo Depois fui para as partes da Siacuteria e da Ciliacuteciardquo (Gaacutelatas 1 17-20) 177
E vindo o tribuno disse-lhe Dize-me eacutes tu romano E ele disse Sim E respondeu o tribuno Eu com grande soma de dinheiro alcancei este direito de cidadatildeo Paulo disse Mas eu o sou de nascimento (Atos 22 27 28)
149
As viagens missionaacuterias de Paulo estatildeo diretamente relacionadas agraves igrejas por ele
fundadas e sua comunicaccedilatildeo com algumas delas por meio das epiacutestolas Lucas
registra que Barnabeacute enviado pela igreja de Jerusaleacutem aos que se reuniam em
Antioquia da Siacuteria foi a Tarso para obter a ajuda de Paulo em seu trabalho entre os
gentios de Antioquia (Atos 1125) Barnabeacute e Paulo permaneceram ensinando em
Antioquia por mais ou menos um ano e Lucas registra que naquele local os
disciacutepulos pela primeira vez foram chamados cristatildeos (Atos 1126)
A igreja de Antioquia enviou Paulo e Barnabeacute para a realizaccedilatildeo oficial da primeira
viagem missionaacuteria Eles navegaram para Selecircucida e de laacute para Chipre Nota-se
que o trajeto da primeira viagem incluiacutea duas ilhas de importacircncia na cultura grega
Funari (2002 p15) informa que a principal cidade de Creta Knossos era um centro
administrativo monumental Creta foi a diretriz da regiatildeo da Greacutecia na eacutepoca do
Bronze Em meados do segundo milecircnio Creta conheceu o apogeu da chamada
Talassocrassia minoense178 ou seja o poder mariacutetimo de Creta influenciava toda a
regiatildeo
De Creta chegaram a Salamina179 onde havia uma sinagoga dos judeus e laacute
ministraram os ensinamentos aos judeus e gentios Salamina fica distante de Atenas
cerca de 30 km Local histoacuterico importante pois laacute no seacuteculo V aC foi travada a
luta vitoriosa dos gregos contra os persas
Schreiner (2015 p 45) argumenta que o chamado de Paulo foi especiacutefico para levar
o evangelho aos natildeo judeus e na epiacutestola aos Gaacutelatas ele assume seu papel de
apoacutestolo aos gentios Assim Paulo se coloca como responsaacutevel pelo evangelho da
incircunsiccedilatildeo ou seja o evangelho destinado aos natildeo judeus
E conhecendo Tiago Cefas e Joatildeo que eram considerados como as colunas a graccedila que me havia sido dada deram-nos as destras em comunhatildeo comigo e com Barnabeacute para que noacutes focircssemos aos gentios e eles agrave circuncisatildeo (Gaacutelatas 29)
Aleacutem dos natildeo judeus havia tambeacutem os judeus helecircnicos e na percepccedilatildeo de Ramos
(2002 p 210) nos relatos do Novo Testamento estes formam um grupo de judeus
que parece ser bastante numeroso pois eles falam grego e frequentam mais as
178
Segundo Funari (2002 p15) pela imponecircncia dos palaacutecios cretenses os gregos criaram a histoacuteria do labirinto e do minotauro criatura meio homem e meio touro Surgiu o heroacutei grego Teseu que matou o monstro e descobriu a saiacuteda do labirinto Atualmente o siacutetio arqueoloacutegico em Creta oferece uma visatildeo magnifica da arquitetura do palaacutecio de Knossos 179
ldquoE chegados a Salamina anunciavam a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus e tinham tambeacutem a Joatildeo como cooperador (Atos 135)
150
sinagogas do que o templo de Jerusaleacutem Este grupo constitui-se como um dos
principais na recepccedilatildeo da mensagem de Jesus sendo participantes dos
fundamentos do cristianismo que acabou por se firmar como religiatildeo institucional
As viagens de Paulo serviram como oportunidade de seu contato com a cultura do
mundo grego e os relacionamentos firmados em cada lugar foram essenciais para o
processo de evangelizaccedilatildeo aleacutem das fronteiras da Judeia Quando os disciacutepulos
receberam a incumbecircncia da propagaccedilatildeo do evangelho Lucas relata as instruccedilotildees
deixadas por Jesus ldquoMas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito Santo e
ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda a Judeacuteia e Samaria e
ateacute os confins da terrardquo (Atos18)
Apoacutes encerrada a terceira viagem missionaacuteria Paulo retornou a Jerusaleacutem e laacute foi
preso sendo enviado ao Procurador Romano em Cesareia180 no governo do
Imperador Nero181 No tempo do aprisionamento de Paulo em consequecircncia do
atrito religioso com os judeus em Jerusaleacutem Feacutelix era procurador182 da Judeia No
livro de Atos 23 haacute o relato do modo como Paulo foi conduzido de Jerusaleacutem para
Cesareia
E escreveu uma carta que continha isto Claacuteudio Liacutesias183
a Feacutelix potentiacutessimo presidente sauacutede Esse homem foi preso pelos judeus e estando jaacute a ponto de ser morto por eles sobrevim eu com a soldadesca e
180
Segundo as informaccedilotildees de Flaacutevio Josefo quando os romanos dominaram a Judeia as cidedes foram sendo conquistadas e ldquoPompeu restituiu aos seus antigos habitantes as que estavam bem dentro em terra firme a saber Hipona Citoacutepolis Pela Diom Samara Maressa Azoto Jamnia e Aretusa como tambeacutem as que a guerra destruiacutera completamente Quis ele que as cidades mariacutetimas ficassem livres e fizessem parte da proviacutencia a saber Gaza Jope Adora e a torre de Estratatildeo que Herodes depois mandou reconstruir com grande magnificecircncia e enriqueceu com portos e belos Templos mudando-lhe o nome para Cesareacuteiardquo (JOSEFO His Heb XIV 8 577) 181
Taacutecito (Anais XV 44) na narrativa da acusaccedilatildeo de Nero aos cristatildeos como responsaacuteveis pelo incecircndio de Roma cita o procurador Pocircncio Pilatos no julgamento da morte de Cristo o personagem que deu origem ao movimento dos cristatildeos 182
A funccedilatildeo do procurador na Judeia era de controle da proviacutencia responsaacutevel pelo exeacutercito de ocupaccedilatildeo que ficava aquartelado em Cesareia com um destacamento em Jerusaleacutem na fortaleza de Antonia Tinha poder nos julgamentos e podia reverter sentenccedilas capitais decretadas pelo sineacutedrio as quais tinham que ser-lhe submetidas O procurador nomeava o sumo sacerdote e era guardiatildeo das vestes sacerdotais Os procuradores da Judeia (governadores) eram sujeitos agrave autoridade superior do legado imperial (propreter) da Siacuteria Sua sede de governo ficava em Cesareia (O Novo Dicionaacuterio da Biacuteblia vol III p 1317) 183
Claacuteudio Liacutesias tribuno militar aparece pela primeira vez na narrativa dos Atos quando protege Paulo de uma multidatildeo hostil de judeus do lado de fora do Templo de Jerusaleacutem O texto natildeo afirma explicitamente o motivo pelo qual o tribuno prende Paulo mas presume-se que ele foi preso para investigaccedilatildeo como fica claro mais adiante durante o interrogatoacuterio Sabendo da intenccedilatildeo dos judeus em tirar a vida de Paulo Claudio Liacutesias organizou uma escolta militar para conduzi-lo a Cesareia
151
o livrei informado de que era romano E querendo saber a causa por que o acusavam o levei ao seu conselho (Atos 23 25-28)
184
Nota-se que no texto em grego o termo traduzido como carta estaacute grafado epiacutestola
no acusativo (επιστολήν) O introito da epiacutestola segue o modelo romano ldquoClaacuteudio
Liacutesias a Feacutelix potentiacutessimo presidente sauacutederdquo Pode-se dizer que esta eacute uma
epiacutestola documento pois faz parte de um protocolo de registro de accedilotildees tomadas
por parte dos responsaacuteveis por setores da procuradoria romana instalada em
regiotildees da Palestina
Paulo foi encaminhado oficialmente para ser julgado pelo procurador romano em
Cesareia Para evitar qualquer possibilidade de julgamento em Jerusaleacutem com a
participaccedilatildeo dos judeus alegando a prerrogativa de cidadatildeo romano Paulo apelou
para a corte de Ceacutesar Segundo Fabris (1996 p 23) o argumento mais favoraacutevel agrave
questatildeo da cidadania de Paulo eacute o fato de seu pedido para ser julgado em Roma
oriundo de um processo iniciado em Cesareia perante o procurador romano Paulo
aguardou pelo julgamento por dois anos ateacute a substituiccedilatildeo do procurador Felix pelo
receacutem chegado Festo Em sua visita a Jerusaleacutem o novo procurador romano foi
interpelado pelo sumo sacerdote e os principais dos judeus insistindo na acusaccedilatildeo
contra Paulo Festo assim relata a situaccedilatildeo ao rei Agripa
Acerca do qual estando presentes os acusadores nenhuma coisa apontaram daquelas que eu suspeitava Tinham poreacutem contra ele algumas questotildees acerca da sua supersticcedilatildeo e de um tal Jesus morto que Paulo afirmava viver E estando eu perplexo acerca da inquiriccedilatildeo desta causa disse se queria ir a Jerusaleacutem e laacute ser julgado acerca destas coisas E apelando Paulo para que fosse reservado ao conhecimento de Augusto mandei que o guardassem ateacute que o envie a Ceacutesar (Atos 2518-21)
Para cumprimento do apelo de Paulo para ser julgado em Roma foi empreendida
uma viagem narrada por Lucas com muitos detalhes Apoacutes um naufraacutegio a
tripulaccedilatildeo e os presos permanecerem na Ilha de Malta durante trecircs meses depois
tomaram um navio que se dirigia a Alexandria e chegando a Roma Paulo
permaneceu em uma prisatildeo domiciliar por dois anos
Natildeo haacute relatos biacuteblicos sobre as viagens de Paulo empreendidas depois de seu
primeiro aprisionamento em Roma e nem fonte segura que forneccedila informaccedilotildees
sobre sua morte mas conjecturas a partir de outros acontecimentos histoacutericos
Supotildee-se que depois do incecircndio de Roma em 64 dC o imperador Nero teria
184
γραψας επιστολην περιεχουσαν τον τυπον τουτον κλαυδιος λυσιας τω κρατιστω ηγεμονι φηλικι χαιρειν (Atos 2325)
152
culpado e punido os cristatildeos e que possivelmente nesse momento Paulo teria
sido preso novamente Haacute uma versatildeo que indica o segundo aprisionamento e
morte de Paulo em Roma sustentado por algumas indicaccedilotildees na epiacutestola 2
Timoacuteteo185
Essa eacute uma das versotildees que vigora tambeacutem na apresentaccedilatildeo dos locais histoacutericos
em Roma Junto ao local do forum romano existe o chamado caacutercere Mamertinum
onde os apoacutestolos Pedro e Paulo teriam ficado nos momentos que antecederam o
martiacuterio final deles Atualmente o local da antiga prisatildeo funciona como museu e
duas igrejas que estatildeo superpostas ao espaccedilo subterracircneo do caacutercere186
No final de sua obra Becker (2007 p 657) apresenta duas vertentes sobre a morte
de Paulo uma com base em Clemente187 e a outra em Euseacutebio188 Quanto a
correspondecircncia de Clemente escrita de Roma agrave igreja de Corinto no final do
primeiro seacuteculo da era cristatilde teraacute sido produzida mais ou menos na mesma eacutepoca
de Atos dos Apoacutestolos Poderia inclusive constituir-se no documento mais antigo
referente a morte de Paulo Com base em I Clemente (5 47) Becker observa a
185
Na segunda epiacutestola a Timoacuteteo algumas referecircncias contribuem para o entendimento de que Paulo estava preso em Roma ldquoPortanto natildeo te envergonhes do testemunho de nosso Senhor nem de mim que sou prisioneiro seurdquo (2 Tim 18) ldquoO Senhor conceda misericoacuterdia agrave casa de Onesiacuteforo porque muitas vezes me recreou e natildeo se envergonhou das minhas cadeias Antes vindo ele a Roma com muito cuidado me procurou e me achourdquo (2 Tim 1 16-17) ldquoNingueacutem me assistiu na minha primeira defesa antes todos me desampararamrdquo (2 Tim 416) ldquoPorque eu jaacute estou sendo oferecido por aspersatildeo de sacrifiacutecio e o tempo da minha partida estaacute proacuteximordquo (2 Tim 46) 186
Com base em uma visita em agosto de 2016 ao local da prisatildeo chamada Mamertina junto ao forum romano as informaccedilotildees indicam que a prisatildeo foi usada em 63 aC para aprisionar os membros da segunda conspiraccedilatildeo de Catilina Supotildee-se que Pedro e Paulo estiveram presos naquele local ateacute o momento da condenaccedilatildeo final Natildeo se sabe quando a prisatildeo deixou de ser usada permanentemente mas o lugar foi utilizado pelos cristatildeos desde os tempos medievais e eacute atualmente ocupado por duas igrejas superpostas San Giuseppe dei Falegnami na parte superior e San Pietro in Carcere na parte inferior 187
Satildeo Clemente (35- 100 dC) tambeacutem conhecido como Clemente Romano era o bispo de Roma Segundo Jaeger (1965 p 26) o documento mais antigo posterior aos apoacutestolos eacute a epiacutestola de Clemente aos Coriacutentios escrita na uacuteltima deacutecada do primeiro seacuteculo de nossa era Jaeger (1965 p 27-28) observa que Clemente tambeacutem usa os recursos da retoacuterica pelas referecircncias aos exemplos mais antigos e os mais recentes O propoacutesito da epiacutestola toma como base o toacutepos ldquoa discoacuterdia interna tem feito cair grandes reis e destruiacutedo Estados poderososrdquo Para Jaeger este toacutepos era usado como exploraccedilatildeo e diferentes aplicaccedilotildees em diversas situaccedilotildees de conflitos 188
No prefaacutecio da obra Histoacuteria Eclesiaacutestica (2012) o tradutor Wolfgang Fischer informa que ldquoEuseacutebio bispo de Cesareacuteia nasceu em cerca de 270 faleceu no ano 339340 A data de seu nascimento soacute pode ser inferida de sua obra pois ele narra a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos sob Valeriano (258-260) como sendo algo do passado e os eventos seguintes como sendo contemporacircneos seus Natildeo se sabe onde nasceu mas passou a maior e mais importante parte de sua vida em Cesareacuteia na eacutepoca a maior cidade romana da Palestina Era de famiacutelia desconhecida mas certamente cristatilde como indica seu nome Euseacutebio nada fala de si mesmo em sua extensa obra Foi bispo de Cesareacuteia de 313 ou 315 em dianterdquo
153
concordacircncia da versatildeo de Clemente189 com a da tradiccedilatildeo cristatilde de que Paulo e
Pedro foram condenados em Roma
Na versatildeo de Euseacutebio em sua obra Histoacuteria Eclesiaacutestica (II 222) Paulo teria
recuperado a liberdade em Roma realizado seu projeto de visita agrave Espanha e entatildeo
em seu retorno teria sido aprisionado e condenado Essa posiccedilatildeo tem como base
uma tentativa de harmonizar o livro de Atos com a Epiacutestola aos Romanos e 2
Timoacuteteo Diante das incertezas Becker (2007 p 657) em relaccedilatildeo agraves informaccedilotildees
sobre a morte de Paulo finaliza ldquoAssim sendo no caso de Paulo brilham ate hoje
com mais claridade seus testemunhos epistolaresrdquo
As epiacutestolas de Paulo tecircm uma grande relevacircncia como fonte nos estudos que
procuram examinar a histoacuteria dos cristatildeos primitivos do seacuteculo I dC sabendo-se
que ele procurou responder indagaccedilotildees e conflitos daquela eacutepoca na perspectiva de
uma pluralidade cultural em que as influecircncias do periacuteodo Heleniacutestico ainda
perduravam tanto na cultura romana quanto na judaica
Os co-enunciadores (destinataacuterios) de Paulo satildeo identificados como participantes
das Igrejas com as quais ele se comunica atraveacutes das epiacutestolas Vale destacar que
ao se dirigir a uma determinada comunidade cristatilde os argumentos que se
estabelecem procuram enfocar alguma situaccedilatildeo em destaque visto que o
tratamento nas epiacutestolas se difere pelas caracteriacutesticas e problemas enfrentados por
cada comunidade Haacute uma extensatildeo dos ensinamentos para os leitores em geral
visto que os problemas que atingiam os primeiros cristatildeos se identificam em
qualquer eacutepoca ou cultura sendo que os conselhos e instruccedilotildees desenvolvidos em
cada epiacutestola satildeo aplicaacuteveis agraves comunidades cristatildes em geral tanto no passado
quanto no presente
Vale ressaltar que natildeo haacute exclusividade de destinataacuterios tanto no discurso de
Secircneca quanto no de Paulo e nessa perspectiva Mainguenau (2008 p 129 130)
coloca que mesmo que a enunciaccedilatildeo seja marcada pela suposiccedilatildeo de um co-
enunciador outros destinataacuterios tecircm a possibilidade de entrar no circuito da
enunciaccedilatildeo 189
Segundo sua primeira versatildeo da morte de Paulo com base em Clemente Becker (2007 p 657) relata ldquoo texto (1Clem 55-7) diz lsquoPor seu zelo e sua luta recebeu o precircmio reservado a paciecircncia sete vezes acorrentado exilado apedrejado fez-se arauto no oriente e no ocidente e mereceu a verdadeira gloria Depois de pregar a justiccedila a todo o mundo tendo chegado ao confim do ocidente tendo dado testemunho diante dos poderosos deixou o mundo e recolheu-se ao lugar santo tornando-se o maior exemplo de paciecircncia
154
31 MANUAL DE INSTRUCcedilOtildeES DE PAULO Agrave IGREJA DE CORINTO
Como fonte para delimitaccedilatildeo do corpus de anaacutelise neste trabalho foram
selecionadas as duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Essa escolha se justifica por
razotildees jaacute delineadas anteriormente sobre a penetraccedilatildeo da liacutengua grega na cultura
judaica sendo a comunidade de Corinto situada em um dos centros da cultura
heleniacutestica e ao mesmo tempo romanizada em decorrecircncia de sua ocupaccedilatildeo como
proviacutencia do impeacuterio romano No siacutetio arqueoloacutegico da antiga Corinto os vestiacutegios da
civilizaccedilatildeo romana satildeo notoriamente identificados pela exposiccedilatildeo de peccedilas no
museu que sinalizam a predominacircncia dos haacutebitos e costumes romanos visiacutevel
tambeacutem na arquitetura
Kruse (1987 p 16) destaca pelo menos duas razotildees que justificam a importacircncia de
Corinto frente agraves outras proviacutencias romanas Por um lado sua privilegiada
localizaccedilatildeo portuaacuteria que atraiacutea o interesse comercial entre orientais e ocidentais
Por outro lado foi o local de sede dos jogos bienais do istmo de Corinto Agregado a
esses fatos acrescenta-se tambeacutem o papel da cidade de Corinto como local de culto
pagatildeo190
Como observa Kruse (1987 p17) nos tempos de Paulo Corinto havia conquistado
o lugar de polis cosmopolitana pelo fato de agregar representantes de diferentes
nacionalidades A cidade foi totalmente destruiacuteda em 146 aC pelo efeito de guerras
e disputas entre romanos e gregos Poreacutem a reconstruccedilatildeo por Juacutelio Ceacutesar em 44
dC devolveu agrave cidade seu lugar de prestiacutegio no contexto da navegaccedilatildeo
mariacutetima191
Segundo a narrativa do livro de Atos (18 12-17) a primeira visita de Paulo a Corinto
aconteceu durante a uacuteltima fase da segunda viagem missionaacuteria Quando esteve em
Corinto (Acaia) Paulo entrou em contato com Priscila e Aacutequila judeus cristatildeos que
haviam recentemente se transferido de Roma para aquele local onde trabalhavam
produzindo tendas Paulo se juntou a eles nessa atividade e laacute permaneceu por mais
ou menos um ano e meio e de laacute escreveu a primeira epiacutestola agrave igreja de
Tessalocircnica Nesse tempo Paulo foi acusado por um grupo de judeus perante o 190 Pena (2012 p39) lembra que em Corinto vigoravam ainda alguns dos mais traacutegicos e
perturbadores mitos gregos da Antiguidade Medeia Jasatildeo Siacutesifo e Eacutedipo 191 Entre o Golfo de Corinto e o Golfo Sarocircnico haacute uma estreita faixa de terra que liga a peniacutensula do Peloponeso agrave parte continental da Greacutecia o Istmo de Corinto que tambeacutem separa o mar Jocircnico do
mar Egeu Na zona sul desse istmo estaacute localizada a cidade de Corinto 80 km a oeste de Atenas
155
novo prococircnsul de Acaia Gaacutelio192 (irmatildeo de Secircneca) mas Paulo foi inocentado das
acusaccedilotildees que o ameaccedilavam
A narrativa da Terceira Viagem Missionaacuteria focaliza os trecircs anos de Paulo em Eacutefeso
(Atos 19) e nesse periacuteodo ele escreveu as epiacutestolas agrave igreja em Corinto193 O siacutetio
arqueoloacutegico de Eacutefeso eacute um dos mais bem conservados inclusive a fachada da
biblioteca Em partes da rua principal satildeo encontrados pisos de maacutermore Em
algumas residecircncias a estrutura arquitetura piso e decoraccedilatildeo artiacutestica estatildeo sendo
mantidas e restauradas respeitando a forma original
Durante o periacuteodo que Paulo viveu em Eacutefeso194 foram grandes as tribulaccedilotildees e
perseguiccedilotildees por parte dos proacuteprios judeus que rejeitavam os seus ensinos Toda a
situaccedilatildeo vivida por Paulo desde a sua conversatildeo contribui para sua proacutepria
convicccedilatildeo de sua transformaccedilatildeo e missatildeo em compartilhar sua nova visatildeo do
judaiacutesmo Eacute nessa perspectiva que ele se apropriou do recurso da produccedilatildeo de
epiacutestolas para contar sobre sua nova vida a partir da luz que brilhou no seu trajeto
para Damasco Essa mesma luz iluminou sua mente para compreender os
significados mais profundos da lei de Moiseacutes enxergando-a como uma releitura que
se ligava ao sacrifiacutecio de Cristo como demonstraccedilatildeo de amor ao mundo Eacute nesse
espiacuterito que Paulo realizou suas viagens missionaacuterias e manteve contato com os
grupos que ele jaacute havia organizado como igrejas As epiacutestolas agrave igreja de Corinto
192
Hale (1983 p 164) observa que a menccedilatildeo de Gaacutelio eacute um dos poucos itens histoacutericos mencionados no Novo Testamento que podem ser determinados com um razoaacutevel grau de certeza ldquoUma inscriccedilatildeo encontrada no templo de Delfos confirma que Lucio Junio Aneu Galio tornou-se prococircnsul de Acaia durante a vigeacutesima sexta aclamaccedilatildeo de Claudio (que ocorreu em 51 dC) Se Lucas estaacute certo em relatar que Paulo trabalhou em Corinto dezoito meses antes da vinda de Gaacutelio e com o edito de Claudio datado por volta de 49 dC eacute razoavelmente seguro dizer-se que Paulo estava em Corinto nos anos 49-51 dC Becker (2007 p 52) tambeacutem fornece sua contribuiccedilatildeo informando que Lucius Junius Gallio irmatildeo mais velho do filoacutesofo Secircneca e como ele nascido em Cordoba na Espanha foi prococircnsul da Acaia sob Claudio completando depois sua carreira politica Assim como seu irmatildeo Secircneca foi obrigado a escolher sob Nero a morte voluntaacuteria Seu proconsulado na Acaia eacute atestado por meio de um edito imperial gravado em pedra e dirigido agrave cidade de Delfos (a assim chamada inscriccedilatildeo de Gaacutelio) Seu governo tambeacutem pode ser estabelecido cronologicamente com bastante certeza da primavera de 51 ate a primavera de 52 dC (possivel fator de incerteza um ano mais cedo)rdquo 193
Segundo Hale (1983 p166) ldquose Paulo chegou a Eacutefeso em 52 dC os trecircs anos ali duraram ateacute 55 dC De Atos 2016 fica-se sabendo que Paulo estava em Corinto antes de Pentecostes de 56 dC Ali ele deve ter escrito 2 Corintios no outono de 55 dC para dar tempo de passar os trecircs meses em Corinto (At 203) antes de partir para Jerusaleacutem A escrita de 1 Corintios teria sido feita entatildeo durante o fim do inverno de 54-55 dC ou inicio da primavera de 55 dCrdquo 194
Hale (1983 p 143) observa que a narrativa da Terceira Viagem Missionaria (52-56 dC) eacute transferida quase que inteiramente para o ministeacuterio de trecircs anos de Paulo em Eacutefeso (At 19) Quando em Eacutefeso Paulo escreveu pelo menos trecircs cartas agrave igreja em Corinto uma carta perdida (referida em 1 Cor 59) a 1 Coriacutentios canocircnica e uma carta angustiosa (referida em 2 Cor 24 78) De 2 Corintios (1214 131) sabe-se que Paulo fez uma raacutepida visita a Corinto e voltou a Eacutefeso Deixando Eacutefeso apoacutes o tumulto Paulo foi para Trocircade e depois para a Macedocircnia e laacute ele escreveu 2 Coriacutentios
156
satildeo mostras dessa atitude de Paulo pois o contato entre pessoas separadas pela
distacircncia era favorecido pelo uso do gecircnero epistolograacutefico que servia como meio
de sua aproximaccedilatildeo com a igreja
No periacuteodo Heleniacutestico as formas de abertura da escritura de uma epiacutestola seguiam
o modelo grego ou o oriental Brakemeier (2008 p 19) exemplifica a epiacutestola de
Tiago que serve como identificaccedilatildeo da forma grega que eacute resumida condensada em
uma uacutenica sentenccedila ldquoTiago servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo agraves doze
tribos que andam dispersas sauacutederdquo (Tiago 11) O modelo oriental traz a saudaccedilatildeo
em uma segunda frase Paulo segue a forma oriental mas amplia o modelo com
adendos explicativos se estendendo aleacutem da forma protocolar como mostra a
primeira epiacutestola agrave igreja de Corinto
Paulo chamado apoacutestolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus e o irmatildeo Soacutestenes Agrave igreja de Deus que estaacute em Corinto aos santificados em Cristo Jesus chamados santos com todos os que em todo o lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo Senhor deles e nosso Graccedila e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (1Cor 11-3)
Na primeira epiacutestola Paulo se coloca junto de seu companheiro Soacutestenes195 para
efetuar a saudaccedilatildeo O introito da segunda epiacutestola tambeacutem segue o modelo oriental
sendo que o companheiro incluiacutedo na saudaccedilatildeo eacute Timoacuteteo
Paulo apoacutestolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus e o irmatildeo Timoacuteteo agrave igreja de Deus que estaacute em Corinto com todos os santos que estatildeo em toda a Acaia Graccedila a voacutes e paz da parte de Deus nosso Pai e da do Senhor Jesus Cristo (2 Cor 11-2)
Nas duas epiacutestolas agrave igreja de Corinto Paulo tambeacutem afirma ser apoacutestolo de Jesus
Cristo A partir dessa sua posiccedilatildeo na enunciaccedilatildeo declara seu ethos de apoacutestolo e
como enunciador ele dirige-se agrave igreja de Corinto ldquoPaulo chamado a ser apoacutestolo
de Cristo Jesus agrave igreja de Deus que estaacute em Corintordquo Diferente da Epiacutestola aos
Romanos em que natildeo haacute menccedilatildeo de um direcionamento especiacutefico agrave igreja local
na primeira epiacutestola dirigida agrave igreja de Corinto os destinataacuterios satildeo indicados como
os integrantes daquela comunidade196 Ao direcionar sua epiacutestola agrave igreja de Deus
195
Segundo informaccedilotildees de Brakmeier (2008 p 20) ldquoa menccedilatildeo de Soacutestenes como co-remetente reforccedila a natureza oficial da carta O testemunho tal como Paulo o transmite tem o apoio tambeacutem de outros pregadores Soacutecrates natildeo pode ser considerado co-autor porque a partir do verso 4 Paulo se dirige aos seus destinataacuterios em primeira pessoa do singular O que se nota eacute que Paulo estaacute unido a Soacutestenes na defesa do evangelhordquo 196
Mesmo direcionando sua epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo acrescenta a ideia de universalizaccedilatildeo de sua mensagem [] ldquocom todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo Senhor deles e nossordquo (1Cor 12)
157
que estaacute em Corinto (τη εκκλησια του θεου τη ουση εν κορινθω) Paulo197 escolhe em
sua escrita o uso do termo ekklesia para se referir agrave reuniatildeo daquela comunidade de
Corinto a qual ele se dirige o que eacute transcrito ecclesia para o latim na Vulgata
(ecclesiae Dei quae est Corinthi) Conforme as informaccedilotildees de Brakemeier (2008 p
20) o uso do termo grego εκκλησια (assembleia ou ajuntamento popular) de origem
no discurso poliacutetico aparece no grego koineacute da Septuaginta para traduzir o termo
hebraico kahal (congregaccedilatildeo de Deus) Portanto o termo ekklesia passa a ter um
sentido religioso para os judeus
Outra caracteriacutestica na forma de saudaccedilatildeo entre os judeus eacute o uso da expressatildeo
shalom (paz) que no grego koineacute e traduzido como ειρηνη198 Na epistolografia
oriental tambeacutem aparece o uso do sintagma ldquomisericoacuterdia e pazrdquo o que Paulo em
1Cor 13 substitui por ldquograccedila e pazrdquo (χαρις υμιν και ειρηνη) Segundo Brakemeier
(2008 p 21) Paulo introduz o termo charis (graccedila) para evidenciar a essecircncia do
evangelho que eacute a proclamaccedilatildeo da graccedila de Deus em doar seu filho para salvaccedilatildeo
da humanidade Na sequecircncia da introduccedilatildeo epistolar Paulo faz o fechamento das
saudaccedilotildees com expressotildees de accedilotildees de graccedilas de acordo o modelo epistolar mas
particulariza como meio de intercessatildeo e gratidatildeo a Deus pela igreja de Corinto
O propoacutesito da epiacutestola evidencia a construccedilatildeo de uma cenografia que se instaura
na enunciaccedilatildeo mediante a situaccedilatildeo dos problemas enfrentados por aquela igreja
ldquoEu vos exorto irmatildeos em nome do nosso Senhor Jesus Cristo guardai a concoacuterdia
uns com os outros de sorte que natildeo haja divisotildees entre voacutesrdquo (1Cor 110) Assim a
cenografia construiacuteda a partir dessa parte introdutoacuteria no primeiro capiacutetulo eacute
apreendida como um ldquomanual de instruccedilotildees e conselhosrdquo
Atraveacutes de cenas validadas pelo lugar comum do tema sabedoria Paulo conclama
os irmatildeos daquela igreja a se portarem mediante os preceitos da sabedoria tatildeo
valorizada pelos gregos Mas essa sabedoria referida por Paulo se distingue daquela
sabedoria almejada pela Antiguidade claacutessica Paulo esta fazendo referecircncia agrave
sabedoria divina Segundo a observaccedilatildeo de Lopes (2008 p 44) ldquoo conhecimento de
Deus natildeo eacute produto da investigaccedilatildeo humana mas da revelaccedilatildeordquo Deus se revelou
197
Nas epiacutestolas aos Romanos e Filipenses Paulo se dirige aos santos e natildeo usa o termo ekklesia (igreja) 198
Na narrativa de Lucas 24 36 Jesus aparece aos seus disciacutepulos cumprimentando-os com a expressatildeo ldquopaz seja convoscordquo (ειρηνη υμιν)
158
ao homem por meio do loacutegos e entatildeo a palavra (λoacuteγος) se fez carne e habitou entre
os homens na figura de Jesus Cristo199
A partir da introduccedilatildeo da primeira epiacutestola Paulo se coloca como enunciador em
seu ethos parresiasta determinando os significados dos termos recorrentes na
cultura heleniacutestica no enquadramento do discurso religioso Assim a cenografia
construiacuteda como manual de instruccedilotildees e conselhos deveraacute tomar no transcorrer da
enunciaccedilatildeo os princiacutepios ditados pela constituiccedilatildeo do discurso religioso
Na segunda epiacutestola Paulo manteacutem sua proacutepria designaccedilatildeo de apoacutestolo de Jesus
Cristo dirigindo-se tanto agrave igreja de Corinto como a todos os santos que se
encontravam na Acaia200 Ao se apresentar como apoacutestolo Paulo reitera seu
chamado semelhante ao que os doze disciacutepulos de Jesus receberam Ele tambeacutem
segue o mesmo modelo da primeira epiacutestola fazendo introito tradicional de acordo
com os costumes orientais
A postura de Paulo na segunda epiacutestola aos Coriacutentios logo no exoacuterdio identifica-o
em seu ethos de ldquofalar francordquo como algueacutem que usa a escrita da epiacutestola para
abrir-se diante de seus destinataacuterios tanto como aquele que consola quanto aquele
que eacute consolado rdquoE a nossa esperanccedila a vosso respeito eacute firme sabemos que
compartilhando os nossos sofrimentos compartilhareis tambeacutem a vossa consolaccedilatildeordquo
(2 Cor 17)
As cenas validadas que servem para sustentar a enunciaccedilatildeo satildeo principalmente as
que conduzem a memoacuteria do leitor aos sofrimentos de Cristo ldquoAssim como os
sofrimentos de Cristo satildeo copiosos para noacutes assim tambeacutem por Cristo eacute copiosa a
nossa consolaccedilatildeordquo (2 Cor 15) Nessa direccedilatildeo a cenografia na enunciaccedilatildeo eacute
captada pela forma como o enunciador vai se expressando a respeito do sofrimento
O texto da epiacutestola assume um aspecto de desabafo fornecendo algumas
identificaccedilotildees da subjetividade de Paulo Quanto agraves consideraccedilotildees aqui feitas sobre
199
ldquo No princiacutepio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deusrdquo(Joatildeo 11) ldquoE o Verbo se fez carne e habitou entre noacutes e vimos a sua gloacuteria como a gloacuteria do unigecircnito do Pai cheio de graccedila e de verdaderdquo (Joatildeo 114) εν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος (Joatildeo 11) και ο λογος σαρξ εγενετο και εσκηνωσεν εν ημιν και εθεασαμεθα την δοξαν αυτου δοξαν ως μονογενους παρα πατρος πληρης χαριτος και αληθειας (Joatildeo 114) 200
Acaia era uma proviacutencia romana que ficava na regiatildeo leste da Greacutecia e era uma proviacutencia senatorial de grande prestiacutegio Segundo Stern (2008 p534) possivelmente Paulo se refere a uma parte da Acaia que incluiacutea Corinto Atenas e Cencreia onde havia sido implantado o trabalho missionaacuterio
159
essa cenografia pode-se interligaacute-la agraves concepccedilotildees de Foucault sobre a escrita de
si atraveacutes da correspondecircncia
Escrever eacute portanto ldquose mostrarrdquo se expor fazer aparecer seu proacuteprio rosto perto do outro E isso significa que a carta eacute ao mesmo tempo um olhar que se lanccedila sobre o destinataacuterio (pela missiva que ele recebe se sente olhado) e uma maneira de se oferecer ao seu olhar atraveacutes do que lhe eacute dito sobre si mesmo (FOUCAULT 2004 p 156)
Por um lado na primeira epiacutestola Paulo conclama a comunidade de Corinto a viver
em amor uns com outros Por outro lado na segunda o desejo eacute o afeto dele para
com a igreja e da igreja para com ele Assim nas duas epiacutestolas o tema explorado eacute
o amor Becker (2007 p 256) aponta que Paulo percebe que Deus chama pelo
evangelho e o homem responde com feacute amor esperanccedila trilogia que constitui a
linha fundamental na qual ele se centra Quando Paulo afirma em 1 Coriacutentios 1313
que esses trecircs dons deveriam permanecer ele enfatiza que dos trecircs o maior eacute o
amor Pois a origem do amor estaacute em Deus porque Ele demonstrou seu amor para
conosco pelo fato de Cristo ter morrido por noacutes quando eacuteramos ainda pecadores
Por isso Paulo considera que o amor induz o modo de pensar do indiviacuteduo a partir
do outro e natildeo de si mesmo e entatildeo ele declara ldquoJaacute estou crucificado com Cristo e
vivo natildeo mais eu mas Cristo vive em mimrdquo (Gaacutel 220) Se Cristo vive em mim eacute a
partir dessa convicccedilatildeo que devo enxergar o outro Assim Paulo vai mostrando sua
subjetividade que tem a marca da vida transformada e seu ethos pode ser
apreendido pelo seu modo de se colocar na escritura de suas epiacutestolas
32 ETHOS DISCURSIVO DE PAULO DIANTE DE SEUS LEITORES
Em sua opiniatildeo sobre os efeitos da conversatildeo na vida de Paulo Becker (2007 p
59) nota que ldquoa vocaccedilatildeo eacute por ele experimentada como reorientaccedilatildeo das motivaccedilotildees
e crise de identidade com o que a vida anterior se torna quase sem importacircncia
tornando-se o periacuteodo posterior ao chamado a sua vida propriamente ditardquo Pode ser
essa uma razatildeo da ausecircncia de dados biograacuteficos da vida de Paulo pois na epiacutestola
agrave comunidade cristatilde em Filipos ele declara ldquoesquecendo-me das coisas que atraacutes
ficam e avanccedilando para as que estatildeo diante de mim prossigo para o alvo pelo
precircmio da soberana vocaccedilatildeo de Deus em Cristo Jesusrdquo (Filip313 -14) E ainda na
epiacutestola agrave igreja de Corinto Paulo declara ldquoAssim que se algueacutem estaacute em Cristo
nova criatura eacute as coisas velhas jaacute passaram eis que tudo se fez novo (2 Cor
517) Os poucos informes fornecidos atraveacutes das epiacutestolas e algumas pontuaccedilotildees
160
percebidas na narrativa de Atos permitem a conexatildeo de alguns dados com o modo
de enunciar de Paulo e seu ethos no discurso
Segundo Kennedy (1984 p4) a retoacuterica pode ser considerada como uma qualidade
do discurso atraveacutes do qual o leitor procura decifrar seus propoacutesitos A escolha e
arranjo das palavras satildeo formas teacutecnicas que a retoacuterica disponibiliza na produccedilatildeo
dos enunciados Kennedy (1984 p 7) alega que retoacuterica eacute um fenocircmeno cultural e
difere de cultura para cultura e nesse sentido o Novo Testamento eacute contextualizado
no acircmago de diferenccedilas culturais marcantes entre judeus e gregos mas o fato do
proacuteprio Novo Testamento ter sido escrito em grego pressupotildee certa condiccedilatildeo da
capacidade intelectual dos leitores destinataacuterios A partir dessa visatildeo Kennedy
(1984 p 15) coloca que ethos pode ser compreendido como caraacuteter e credibilidade
que o oradorescritor estabelece em sua comunicaccedilatildeo A audiecircncialeitor confia no
que eacute dito de acordo com a emoccedilatildeo despertada em seu interior e o loacutegos revela o
argumento loacutegico desenvolvido no discurso Em qualquer retoacuterica ou comunicaccedilatildeo
persuasiva esses trecircs fatores satildeo universais
Becker (2007 p 601) chama atenccedilatildeo para o fato de que Paulo atraveacutes de seus
ensinos e conselhos procura despertar em seus destinataacuterios os valores eacuteticos que
deveriam ser almejados e praticados Os conteuacutedos concretos do ethos defendido
por Paulo estatildeo profundamente enraizados no sistema de normas daquela eacutepoca
resultantes ainda dos efeitos da cultura heleniacutestica Poreacutem ao recorrer aos valores
eacuteticos e normas morais do seu tempo Paulo congrega os valores da heranccedila de sua
formaccedilatildeo aos compromissos da vida cristatilde
O conhecimento e relacionamento com as culturas judaica grega e romana se
tornam evidentes em partes dos textos de suas Epiacutestolas e assim citaccedilotildees ou
alusotildees a pensadores da Antiguidade como tambeacutem citaccedilotildees da Septuaginta201
emergem desses textos como auxiacutelio retoacuterico aos seus ensinamentos pois uma das
facetas da escola de preparaccedilatildeo religiosa do grupo dos fariseus era exegese dos
textos biacuteblicos Alguns exemplos e citaccedilotildees identificados na epiacutestolas aos Coriacutentios
satildeo analisados na terceira parte deste trabalho
201
Segundo Becker (2007 p 86) Paulo em sua correspondecircncia via de regra cita a Septuaginta como a memorizou nos tempos de escola utilizando tambeacutem aqui e ali o proacuteprio texto da Septuaginta
161
Segundo as descriccedilotildees histoacutericas de Flaacutevio Josefo (Hist Heb X 520-544) no
seacuteculo II aC surgiram duas correntes religiosas entre os judeus Os saduceus
integravam a aristocracia sacerdotal influenciados pela cultura heleniacutestica adotaram
valores que os afastavam do judaiacutesmo tradicional Tornaram-se conciliaacuteveis com
algumas praacuteticas heleniacutesticas eram mais materialistas quanto ao modo de vida O
ponto fundamental que os distinguia era a rejeiccedilatildeo da concepccedilatildeo filosoacutefica da
imortalidade da alma e a ressurreiccedilatildeo dos mortos Quanto aos fariseus eram
observadores rigorosos da lei mosaica acreditavam em anjos e democircnios na
ressurreiccedilatildeo dos mortos e favoraacuteveis agrave concepccedilatildeo da separaccedilatildeo corpo e alma Na
narrativa de Atos202 Paulo se identifica como fariseu no momento de sua defesa
diante do sumo sacerdote em Jerusaleacutem Quando ele escreveu agrave igreja de Filipos
anunciou sobre sua origem judaica e de sua ligaccedilatildeo com os fariseus ldquoCircuncidado
ao oitavo dia da linhagem de Israel da tribo de Benjamim hebreu de hebreus
segundo a lei fui fariseurdquo (Filip 36) A fusatildeo das trecircs culturas judaiacuteca heleniacutestica e
romana interferem na manifestaccedilatildeo do ethos de Paulo como bem observa Becker
Paulo eacute um fariseu rigoroso quanto a Lei mas ao mesmo tempo um habitante de uma cidade helenista que era um centro de formaccedilatildeo helenista Igualmente o direito de cidadania romana da famiacutelia de orientaccedilatildeo farisaica testemunha a favor de uma abertura ao Impeacuterio Romano o que para uma parte do judaiacutesmo da diaacutespora certamente era tiacutepico Paulo portanto integra dois mundos em sua pessoa judaiacutesmo e helenismo (BECKER 2007 p 67)
A construccedilatildeo discursiva203 do ethos dito de Paulo como apoacutestolo se mostra como
sustentaccedilatildeo da sua funccedilatildeo de enviado de Jesus Heyer (2008 p 169) aponta para
as questotildees que colocavam em duacutevida esta posiccedilatildeo [] ldquoconsequentemente nos
momentos menos oportunos sua condiccedilatildeo de apoacutestolo seraacute questionada Seu
passado estava exposto a discussotildees e isso o fazia vulneraacutevelrdquo204 Quando Paulo
202
E Paulo sabendo que uma parte era de saduceus e outra de fariseus clamou no conselho Homens irmatildeos eu sou fariseu filho de fariseu no tocante agrave esperanccedila e ressurreiccedilatildeo dos mortos sou julgado E havendo dito isto houve dissensatildeo entre os fariseus e saduceus e a multidatildeo se dividiu Porque os saduceus dizem que natildeo haacute ressurreiccedilatildeo nem anjo nem espiacuterito mas os fariseus reconhecem uma e outra coisa (Atos 23 6-8) 203
A construccedilatildeo discursiva do ethos de Paulo se estabelece em seu proacuteprio discurso como enunciador que se apresenta como apoacutestolo O ethos pode ser considerado dito porque ele proacuteprio se designa como apoacutestolo de Jesus Cristo 204
Mas faccedilo-vos saber irmatildeos que o evangelho que por mim foi anunciado natildeo eacute segundo os homens Porque natildeo o recebi nem aprendi de homem algum mas pela revelaccedilatildeo de Jesus Cristo Porque jaacute ouvistes qual foi antigamente a minha conduta no judaiacutesmo como sobremaneira perseguia a igreja de Deus e a assolava E na minha naccedilatildeo excedia em judaiacutesmo a muitos da minha idade sendo extremamente zeloso das tradiccedilotildees de meus pais Mas quando aprouve a Deus que desde o ventre de minha matildee me separou e me chamou pela sua graccedila revelar seu Filho em mim para que o pregasse entre os gentios natildeo consultei a carne nem o sangue nem tornei a Jerusaleacutem a ter com
162
escreve agrave igreja na Galaacutecia ele ressalta que eacute apoacutestolo por causa de seu chamado
ldquoPaulo apoacutestolo natildeo da parte dos homens nem por homem algum mas por Jesus
Cristo e por Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortosrdquo Assim como os outros
apoacutestolos ele era testemunha da ressurreiccedilatildeo de Cristo pois o encontrou e foi por
Ele convocado para uma missatildeo especial
Euseacutebio comenta que o nuacutemero dos apoacutestolos natildeo era restrito aos doze disciacutepulos
que acompanharam o ministeacuterio de Jesus mas se estendia tambeacutem aos setenta
enviados205 os quais natildeo se datildeo a conhecer os nomes poreacutem supotildee-se que
Barnabeacute companheiro de Paulo nas viagens missionaacuterias compunha aquele grupo
dos setenta E assim Euseacutebio conclui ldquoPortanto de qualquer forma os apoacutestolos agrave
imagem dos doze eram muitos mais - o proacuteprio Paulo o erardquo (Hist Ecles I XII5)
Ao expor suas ideias a respeito da duplicidade da formaccedilatildeo cultural de Paulo Pena
(2012 p36) enfatiza que ldquoPaulo integra no seu curriculum alguns dos princiacutepios
estruturantes da paideia grega desde Homerordquo Este autor citado toma como
exemplo o recurso retoacuterico da imagem do atleta usado por Paulo na primeira
epiacutestola agrave igreja de Corinto Pena acrescenta que pela descriccedilatildeo de Paulo da figura
do atleta ele poderia estar enunciando do lugar de algueacutem que viveu a experiecircncia
do atletismo em sua formaccedilatildeo na cultura heleniacutestica206
Quanto agrave paidea grega Jaeger (1995) analisa os vaacuterios campos do saber na cultura
grega e a soma do conjunto dos seus valores na formaccedilatildeo do cidadatildeo Este autor
toca no tema da conversatildeo ao bem como um alvo da educaccedilatildeo filosoacutefica que
origina a ideia de ldquoconversatildeordquo Este termo encontra parte de seu significado na
Repuacuteblica de Platatildeo em especial no episoacutedio da caverna Jaeger (1995 p 889)
define que a conversatildeo ldquoeacute um volver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luzrdquo Nota-se
que essa definiccedilatildeo eacute naturalmente associada agrave experiecircncia da conversatildeo de Paulo
que se torna uma ponte para apropriaccedilatildeo do termo filosoacutefico conversatildeo por parte da
Patriacutestica associando-o ao o sentido religioso
os que jaacute antes de mim eram apoacutestolos mas parti para a Araacutebia e voltei outra vez a Damasco (Gaacutelatas 111-17) 205
E depois disto designou o Senhor ainda outros setenta e mandou-os adiante da sua face de dois em dois a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir (Lucas 101) 206
Pena (2012 p 36) assevera que ldquoa participaccedilatildeo dos Judeus da Aacutesia nos espetaacuteculos do mundo pagatildeo eacute um facto bem conhecido Em Mileto por exemplo os Judeus tinham lugares reservados no teatro e gozavam de vaacuterios outros privileacutegiosrdquo
163
Fabris (1993 p 33) chama a atenccedilatildeo para o fato de que Paulo vive e atua no
contexto da heranccedila da cultura heleniacutestica cosmopolita do seacuteculo I dC mas
consegue integraacute-la com aquela que tem suas raiacutezes no ambiente biacuteblico e judaico-
cristatildeo Sua postura de apoacutestolo chamado para alcanccedilar os natildeo judeus com a sua
mensagem contribui para a manifestaccedilatildeo de seu ethos de pregador que auto se
sustenta sem ser pesado financeiramente agraves comunidades com as quais manteve
relacionamento mais proacuteximo Em Corinto durante sua estadia de aproximadamente
um ano e meio ele se juntou a Aacutequila e Priscila na confecccedilatildeo de tendas provando
pela proacutepria accedilatildeo a sua convicccedilatildeo de independecircncia econocircmica para o proacuteprio
sustento Sendo um missionaacuterio independente Paulo natildeo contava com recursos
externos para mantecirc-lo nas atividades evangeliacutesticas Essa eacute a razatildeo de sua
argumentaccedilatildeo diante da igreja de Corinto a respeito do apostolado que ele assumiu
arcando com as despesas de sua sobrevivecircncia sem ser pesado a ningueacutem
demonstrando sua atitude de amor se colocando no papel de pai que procura cuidar
dos filhos como ele expotildee
Os sinais do meu apostolado foram manifestados entre voacutes com toda a paciecircncia por sinais prodiacutegios e maravilhas Pois em que tendes voacutes sido inferiores agraves outras igrejas a natildeo ser que eu mesmo vos natildeo fui pesado Perdoai-me este agravo Eis aqui estou pronto para pela terceira vez ir ter convosco e natildeo vos serei pesado pois que natildeo busco o que eacute vosso mas sim a voacutes porque natildeo devem os filhos entesourar para os pais mas os pais para os filhos Eu de muito boa vontade gastarei e me deixarei gastar pelas vossas almas ainda que amando-vos cada vez mais seja menos amado Mas seja assim eu natildeo vos fui pesado mas sendo astuto vos tomei com dolo (2 Cor 1212-16)
O ethos de liberdade de accedilatildeo que Paulo mostra diante da comunidade de Corinto
tambeacutem se revela diante da igreja de Tessalocircnica ldquoPorque bem vos lembrais
irmatildeos do nosso trabalho e fadiga pois trabalhando noite e dia para natildeo sermos
pesados a nenhum de voacutes vos pregamos o evangelho de Deusrdquo (1 Tessal 29) Sua
franqueza em admitir seu proacuteprio sustento chama a atenccedilatildeo para o fato de que a
missatildeo do seu apostolado eacute realizada pelo amor como ele mesmo coloca ldquoAssim
como bem sabeis de que modo vos exortaacutevamos e consolaacutevamos e
testemunhaacutevamos a cada um de voacutes como o pai a seus filhos (1Tess 211) A
tocircnica sobre o amor que Paulo desenvolve a partir da construccedilatildeo da cenografia das
epiacutestolas agrave igreja de Corinto se mostra no decorrer de seu discurso ora focalizando
a atitude de manifestaccedilatildeo de amor entre os participantes da comunidade ora da
comunidade para com ele e dele para com a comunidade Ele eacute o fundador da igreja
164
e se coloca no lugar de pai tanto quanto aos conselhos e exortaccedilatildeo quanto agrave sua
proacutepria dedicaccedilatildeo de pai para filho Segundo Becker (2007 p 197) na elaboraccedilatildeo
do discurso de Paulo nota-se uma relaccedilatildeo entre o ethos de apoacutestolo do evangelho
que Paulo constroacutei de si mesmo com o ethos de liberdade de accedilatildeo que se
manifesta na prova de seu amor com a igreja O ethos de apoacutestolo tambeacutem estaacute
inter-relacionado com seu ethos de convertido
Pensando o significado de ethos em sua origem como habitaccedilatildeo da alma a
definiccedilatildeo de conversatildeo como volver da alma para a luz contribui para o
entendimento do novo direcionamento que o ethos de Paulo experimentou em
associar toda sua formaccedilatildeo cultural herdada de diferente etnias para se concentrar
nos significados que a nova vida de convertido lhe impunha Pena (2012 p 37)
pondera que o significado do ldquologos como palavra razatildeo e inteligibilidade fazia
parte do patrimoacutenio cultural dos gregosrdquo Este autor ainda acrescenta que logos
tambeacutem estaacute associado agrave liberdade de palavra ou parresiacutea Eacute exatamente este
termo em grego (παρρησια) que Paulo usa na segunda epiacutestola agrave igreja de Corinto
ldquoTendo pois tal esperanccedila usamos de muita ousadia no falarrdquo (2 Cor 312)207
Pena (2012 p 38) constata que em vaacuterias intervenccedilotildees de Paulo nomeadamente o
discurso do Areoacutepago com claras alusotildees agrave filosofia estoacuteica do deus uacutenico deixaraacute
marcas indeleacuteveis na filosofia patriacutestica
O areoacutepago natildeo era exatamente destinado agraves discussotildees filosoacuteficas ou temaacuteticas
mas a finalidade do local era destinada agrave reuniotildees do conselho e decisotildees de
assuntos da justiccedila Ele ficava situado sobre uma pequena colina bem proacutexima da
parte mais alta onde situava a Acroacutepole Uma visita ao local permite vislumbrar que
em volta do pequeno elevado onde estava construiacutedo o areoacutepago haacute muitas aacutervores
que demarcam os locais onde situavam as diversas estaacutetuas representando os
vaacuterios deuses Entre estas estava uma dedicada ao deus desconhecido que se
transformou em referecircncia para a proclamaccedilatildeo da mensagem de Paulo
O discurso de Paulo no areoacutepago208 tornou-se referecircncia para os primeiros cristatildeos
e a parresiacutea como modelo a ser seguido da manifestaccedilatildeo do seu ethos A partir de
207
εχοντες ουν τοιαυτην ελπιδα πολλη παρρησια χρωμεθα (2Cor 312) 208
ldquoE enquanto Paulo os esperava em Atenas o seu espiacuterito se comovia em si mesmo vendo a cidade tatildeo entregue agrave idolatria De sorte que disputava na sinagoga com os judeus e religiosos e todos os dias na praccedila com os que se apresentavam E alguns dos filoacutesofos epicureus e estoacuteicos contendiam com ele e uns diziam Que quer dizer este paroleiro E outros Parece que eacute pregador de deuses estranhos porque lhes anunciava a Jesus e a ressurreiccedilatildeo (Atos 17 16-18)
165
uma forma retoacuterica exemplar Paulo apresentou aos atenienses o Deus
desconhecido partindo da proacutepria expectativa deles em relaccedilatildeo aos deuses A
conjunccedilatildeo ecircthos paacutethos e loacutegos procedeu harmoniosamente no registro do seu
discurso Mesmo que momentaneamente aquele discurso natildeo tenha causado
grandes efeitos aparentes diante dos ouvintes mas a partir daquela experiecircncia o
exemplo da ousadia e coragem no falar continuou a ser um desafio para os cristatildeos
O ldquofalar francordquo como resultado da coragem em assumir o discurso com todos os
seus riscos eacute captado pelo narrador de Atos no relato do discurso de Paulo no
areoacutepago Este mesmo toacutepos eacute identificado no discurso de Paulo ao escrever as
epiacutestolas aos Coriacutentios Eacute justo afirmar que o ethos de Paulo ecoou a partir de sua
proacutepria escrita das epiacutestolas e por meio da narrativa de Lucas O nuacutemero de seus
leitores tornou-se infinitamente maior do que seus destinataacuterios especiacuteficos das
epiacutestolas e assim o ethos de Paulo estaacute sempre se mostrando desafiador como um
processo interpretativo que se iniciou no seacuteculo I dC perdurando ativamente na
atualidade
Como observado neste capiacutetulo a formaccedilatildeo judaico-heleniacutestica de Paulo contribui
para a organizaccedilatildeo de seu pensamento que se expressa pelo discurso com os
recursos retoacutericos que naturalmente favorecem sua comunicaccedilatildeo atraveacutes do gecircnero
epistolar O posicionamento discursivo de Paulo eacute definido como resultado de sua
formaccedilatildeo de suas experiecircncias e heranccedila cultural O discurso constituinte religioso
direciona seus posicionamentos no ato enunciativo e eacute deste lugar discursivo que
ele pronuncia seus discursos
O ponto de aproximaccedilatildeo entre a formaccedilatildeo educativa de Paulo e a de Secircneca pode
ser identificado pelas influecircncias do periacuteodo Heleniacutestico O que Paulo herda do
periacuteodo Heleniacutestico interfere em seu posicionamento religioso e o que Secircneca
recebe daquele periacuteodo eacute determinante no seu posicionamento filosoacutefico
166
4 FILOSOFIA LITERATURA E POLIacuteTICA NA TRAJETOacuteRIA DE SEcircNECA E A
CONSTITUICcedilAtildeO DA CENOGRAFIA EM SUAS EPIacuteSTOLAS
As condiccedilotildees de produccedilatildeo contribuem para realizaccedilatildeo linguiacutestica do discurso pois
segundo os autores Charaudeau e Maingueneau (2008 p 115) por um lado ldquoo
sujeito falante eacute sempre parcialmente sobredeterminado pelos saberes crenccedilas e
valores que circulam no grupo social ao qual pertencerdquo por outro lado ldquoele eacute
igualmente sobredeterminado pelos dispositivos de comunicaccedilatildeo nos quais se
insere para falar e que lhe impotildeem certos lugares papeis e comportamentosrdquo
Vale relembrar que a escolha do gecircnero adotado na produccedilatildeo do discurso eacute
fundamental na construccedilatildeo dos sentidos e a cenografia orienta os rumos da
enunciaccedilatildeo a partir de um determinado contexto sociocultural que valida uma
memoacuteria coletiva Por isso faz-se necessaacuterio compreender as condiccedilotildees de
produccedilatildeo que determinam os discursos de Secircneca suas experiecircncias nos vaacuterios
campos do saber e criaccedilatildeo literaacuteria sua atuaccedilatildeo na esfera social e poliacutetica e seu
papel como continuador do estoicismo na implantaccedilatildeo da terceira fase no priacuteodo do
seacuteculo I dC
O estoicismo teve seu iniacutecio no periacuteodo Heleniacutestico e Sedley (2003 p 8) menciona
que esta escola filosoacutefica foi fundada por Zenatildeo de Ciacutetio sob o acircngulo do encontro
entre dois mundos oriente e ocidente A famiacutelia de Zenatildeo era originaacuteria de regiatildeo
mediterracircnea do oriente e transferiu-se para Ciacutetio aacuterea portuaacuteria na ilha de Chipre
Natildeo haacute muitas informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo de Zenatildeo mas sabe-se que ele era
um leitor dos pensamentos socraacuteticos Aos vinte e dois anos ele se fixou em Atenas
e seu primeiro mestre foi Crates da escola dos ciacutenicos Alguns princiacutepios filosoacuteficos
daquele grupo influenciaram as ideias de Zenatildeo em alguns aspectos morais do
estoicismo209 por ele fundado
Segundo registros de Sedley (2003 p 8) Zenatildeo permaneceu em Atenas ateacute sua
morte em 262 aC sendo sucedido por seu disciacutepulo Cleantes de Assos (Trocircade
regiatildeo da Turquia) Na sequecircncia das substituiccedilotildees dos dirigentes da escola entra
209
As reuniotildees de Zenatildeo com seus disciacutepulos aconteciam no Poacutertico colorido de Atenas denominado Stoa (Estoaacute) A partir deessa origem o grupo passou a ser chamado estoicos
167
em cena outro filoacutesofo oriental Crisipo originaacuterio da Ciliacutecia e foi seguido por
Dioacutegenes da Babilocircnia e Antiacutepatro210 de Tarso mestre de Paneacutecio de Rodes
No periacuteodo Heleniacutestico Rodes tornou-se um centro avanccedilado que abrigava o
estoicismo No siacutetio arqueoloacutegico da acroacutepole de Lindos eacute possiacutevel identificar a maior
parte das colunas que sustentava o poacutertico que abrigava os participantes da escola
estoica que laacute se reuniam Do alto da acroacutepole avista-se a Baia de Satildeo Paulo onde
o apoacutestolo teria aportado na eacutepoca de sua terceira viagem missionaacuteria211 A praia de
Lindos e o local do Colosso de Rodes uma das seacutetimas maravilhas do mundo
antigo tambeacutem satildeo contemplados laacute do alto da acroacutepole de Lindos
De acordo com observaccedilotildees de Sedley (2003 27) nos dois uacuteltimos seacuteculos aC
houve uma tendecircncia de descentralizaccedilatildeo do estoicismo em Atenas e o
funcionamento da Stoa em Rodes eacute uma demonstraccedilatildeo da opccedilatildeo do regionalismo
como forma de reunir participantes da escola estoica Paneacutecio de Rodes foi
substituiacutedo por Possidocircnio que assumiu a lideranccedila da escola mas optou pela
centralizaccedilatildeo em Rodes Sedley (2003 p 30) identifica que aos poucos o
afastamento de Atenas conduziu os filoacutesofos para outras aacutereas do impeacuterio romano
a partir da metade do uacuteltimo seacuteculo aC Tarso tambeacutem foi uma opccedilatildeo tardia de
concentraccedilatildeo de filoacutesofos pois de laacute originaram trecircs liacutederes do estoicismo Zenatildeo de
Tarso Antiacutepatro de Tarso e os pais de Crisipo tambeacutem eram daquela cidade A
importacircncia dessa concentraccedilatildeo regional de filoacutesofos em Tarso eacute comprovada pela
proacutepria escolha por parte do futuro imperador Augusto do seu mestre e conselheiro
Atenodoro de Tarso212
Desde o iniacutecio da fundaccedilatildeo da escola os estoicos procuravam associar
intelectualmente em seu sistema eacutetico a virtude com a sabedoria a partir da
influecircncia socraacutetica ponto baacutesico que se manteve em todas as fases a despeito
das modificaccedilotildees que se sucederam No periacuteodo Heleniacutestico predominaram quatro
210
Em algumas traduccedilotildees o nome de Antiacutepatro aparece como Antiacutepater mas para manter uma uacutenica designaccedilatildeo opta-se por seguir o seu nome grego Antiacutepatro de Tarso (em grego Ἀντίπατρος) 211
ldquoE aconteceu que separando-nos deles navegamos e fomos correndo caminho direito e chegamos a Coacutes e no dia seguinte a Rodes de onde passamos a Paacutetarardquo (Atos 211) 212
Atenodoro de Tarso (74 ndash 07 aC) foi aluno de Posidocircnio de Rodes e professor de Otaviano (futuro Augusto) em Apoloacutenia Em 44 aC seguiu Otaviano ateacute Roma e continuou a ser seu mentor Sedley (2003 p 31) informa sobre a importacircncia dos filoacutesofos de Tarso no ensino do estoicismo em Roma pois Atenodoro e Estrabatildeo foram escolhidos pelo imperador Augusto para funccedilotildees poliacuteticas e ensino da filosofia em Roma Atenodoro era conselheiro de Augusto e escreveu sobre eacutetica e moral tendo suas obras influenciado a formaccedilatildeo estoica de Secircneca
168
novas correntes filosoacuteficas sendo o ceticismo e o cinismo213 direcionados por uma
filosofia mais popular e as escolas de linha mais dogmaacuteticas e competidoras entre
si foram o estoicismo e o epicurismo214 As quatro linhas filosoacuteficas que se
destacaram tiveram suas origens nos postulados socraacuteticos e cada uma tomou uma
determinada direccedilatildeo de acordo com as concepccedilotildees filosoacuteficas de seus fundadores
Segundo Hadot (2004 p 153) no platonismo aristotelismo e estoicismo prevalece a
tradiccedilatildeo socraacutetica de que o ldquoamor do bem eacute o instinto primordial do ser humanordquo
Nestas escolas permanece a dupla finalidade da formaccedilatildeo nos campos da poliacutetica e
da filosofia
No estoicismo Zenatildeo concebia uma filosofia tripartida que consistia na loacutegica fiacutesica
e eacutetica Sedley (2003 p 12) expotildee que a eacutetica era respaldada em uma revisatildeo da
moral dos ciacutenicos a fiacutesica no Timeu de Platatildeo acrescentando-se o elemento fogo
inspirado em Heraacuteclito a loacutegica contempla natildeo soacute o estudo formal dos argumentos
mas inclui tambeacutem a tese de como a impressatildeo sensorial eacute um guia infaliacutevel para
apreensatildeo da verdade sendo a impressatildeo cognitiva considerada um tipo de
percepccedilatildeo sensorial Essas questotildees sobre loacutegica foram retomadas pelos
continuadores da primeira fase do estoicismo em especial Crisipo dando
fundamentaccedilatildeo agraves discussotildees e postulados nos estudos da gramaacutetica
desenvolvendo as concepccedilotildees teoacutericas de significante e significado215
A segunda fase do estoicismo eacute marcada pela lideranccedila de Paneacutecio de Rodes e a
caracteriacutestica mais acentuada desta fase eacute o ecletismo com a adesatildeo a
pensamentos de Platatildeo e Aristoacuteteles Gourunat e Barnes (2009 p26) na introduccedilatildeo
da obra Ler os estoicos relatam que Paneacutecio de Rodes se fixou por algum tempo
213
Segundo Hadot (2004 p 153) a corrente do cetismo foi iniciada por Pirro e a do cinismo por Dioacutegenes o Ciacutenico Essas duas correntes natildeo tinham dogmas e nem organizaccedilatildeo escolar mas representavam um modo de vida Sexto Empiacuterico era ceacutetico e atraveacutes de suas criacuteticas ao estoicismo e epicurismo eacute que se conservaram textos que conteacutem informaccedilotildees destas duas escolas criticadas por ele 214
Novak (1999 p 258) menciona que ldquoEpicuro de Samos (342341-271270) cidadatildeo ateniense teria sido disciacutepulo do platocircnico Pacircnfilo (Cic ND I 26 72) Dos dezoito aos vinte anos efebo em Atenas e companheiro de Menandro teria ouvido liccedilotildees na Academia e no Liceu A seguir por razotildees poliacuteticas natildeo pode voltar a Samos e passa os anos seguintes em Colofatildeo Mitilene e Lacircmpsaco provavelmente vai tambeacutem a Rodes Elabora o que podemos chamar a sua teoria moral Em 306 volta a Atenas e cria a Escola do Jardimrdquo 215
Em seu artigo A definiccedilatildeo de Zenatildeo da fantasia kataleptike Sedley (2014 p148) fornece a seguinte explicaccedilatildeo ldquoa teoria de Zenatildeo natildeo eacute apenas empirista mas de fato identifica seu criteacuterio fundamental de verdade a impressatildeo cognitiva com um tipo de percepccedilatildeo sensorial Aleacutem disso a teoria da percepccedilatildeo sensorial em questatildeo eacute causal Nossas impressotildees sensoriais diretas ou antes um subconjunto privilegiado delas obteacutem sua apreensatildeo infaliacutevel do mundo porque satildeo diretamente causadas por ( ἀπὸ ndash lsquoa partir dersquo) coisas externas das quais satildeo impressotildeesrdquo
169
em Roma e laacute se tornou orientador filosoacutefico de Cipiatildeo e o acompanhou nas
expediccedilotildees orientais Paneacutecio se esforccedilou por adaptar a eacutetica estoica aos costumes
romanos adotando alguns pontos das doutrinas poliacuteticas de Platatildeo e Aristoacuteteles
advertindo para as formas mistas de governo Escreveu sobre o oacutecio a tranquilidade
da alma e a providecircncia temas proacuteprios para o espiacuterito romano destacando-se o
tiacutetulo Sobre os deveres obra mencionada por Ciacutecero Tambeacutem foram de sua autoria
Da Providecircncia e um comentaacuterio ao Timeu de Platatildeo Poreacutem de suas obras restaram
apenas fragmentos e referecircncias doxograacuteficas
O continuador de Paneacutecio na segunda fase do estoicismo foi Possidocircnio mestre de
Ciacutecero e amigo de Pompeu Com sua competecircncia vasta Possidocircnio se interessou
por histoacuteria continuando o trabalho de Poliacutebio assuntos de teologia e de geometria
A terceira fase do estoicismo eacute situada em Roma em um novo contexto histoacuterico
natildeo mais centrada na escola institucionalizada mas emergindo de diferentes
filoacutesofos independentes enfatizando a eacutetica como ponto central da filosofia estoica
aproximando-se dos interesses e praticidade do cidadatildeo romano Hadot (2004 p
2016) pontua que ldquoo fenocircmeno da dispersatildeo das escolas teve consequecircncias para o
proacuteprio ensinordquo Nesse novo contexto o ensino consiste em explicar textos da
lsquoautoridadesrsquo como por exemplo os diaacutelogos de Platatildeo os tratados de Aristoacuteteles e
as obras de seus continuadores e reformadores Nesse clima havia uma tendecircncia
de aplicaccedilatildeo do conhecimento dos dogmas das quatro grandes escolas (platocircnicos
aristoteacutelicos epicuristas e estoicos) sem objetivo de uma especializaccedilatildeo Nessas
circunstacircncias amplia-se o interesse pela cultura geral Em muitas situaccedilotildees a
filosofia passa a ser concebida como ldquoprogresso espiritual como meio de
transformaccedilatildeo interiorrdquo
Integrando esse novo cenaacuterio surge Secircneca como filoacutesofo estoico que manteacutem
princiacutepios da escola fundadora no campo da moral sustentando que a virtude pode
ser adquirida via sabedoria a qual tem seus ensinamentos na filosofia A vida de
Secircneca coincide tambeacutem com o novo marco temporal da histoacuteria do ocidente e parte
do oriente pois ele nasceu em Coacuterdoba aproximadamente no ano 1 do seacuteculo I
aC Ele era integrante de uma famiacutelia respeitada em Roma pois seu pai Annaeus
Secircneca conhecido como Secircneca o Velho tem destaque na Histoacuteria por suas
contribuiccedilotildees como renomado retoacuterico por meio de suas obras produzidas
170
Controversiae e Suasoriae De acordo com observaccedilotildees de Wilson (2007 p 425)
haacute uma clara influecircncia paterna na formaccedilatildeo de Secircneca
Ainda na infacircncia Secircneca desenvolveu seus estudos em Roma tendo como base a
oratoacuteria e filosofia Na epiacutestola cento e oito Secircneca216 recorda a primeira fase de
sua formaccedilatildeo com os mestres pitagoacutericos Soacutetion e Fabiano Passada a experiecircncia
com os pitagoacutericos Secircneca se identificou com os estoicos e ele faz o seguinte
comentaacuterio a respeito do seu mestre Aacutetalo
[] nos tempos em que frequentava a sua escola (onde era sempre o primeiro a chegar e o uacuteltimo a sair) ateacute mesmo durante os passeios do mestre eu o aliciava agrave discussatildeo de um ou outro problema aproveitando-me do facto de ele estar sempre pronto a ir ao encontro dos interesses dos seus disciacutepulos (Secircn Ep 108 3)
Com base nas condiccedilotildees da educaccedilatildeo romana Secircneca se destacou no campo da
filosofia literatura e poliacutetica na vigecircncia do primeiro seacuteculo de nossa era Assim a
sua formaccedilatildeo filosoacutefica tem como fonte os pensadores estoicos do periacuteodo
Heleniacutestico Veillard (2013 p 230) registra que a histoacuteria da penetraccedilatildeo do
estoicismo em Roma tem seus primoacuterdios mais ou menos 155 a C quando Atenas
acusada por questotildees de desentendimentos nos assuntos poliacuteticos enviou trecircs dos
seus filoacutesofos mais importantes para defenderem suas posiccedilotildees diante do senado
romano Carneacuteades217 era o representante da academia de Platatildeo e discursou sobre
os fundamentos da justiccedila Critolau o peripateacutetico e Dioacutegenes da Babilocircnia
representando os estoicos A partir dessa experiecircncia dois filoacutesofos estoicos
passaram a ocupar o centro de atenccedilatildeo por debaterem questotildees sobre a justiccedila e
poliacutetica Veillard (2013 p 232) constata que por um lado Antiacutepatro de Tarso
(disciacutepulo e sucessor de Dioacutegenes da Babilotildenia) ldquofavorece primeiramente os
reformadores que insistem na igualdade de todos os homensrdquo Para os problemas
dos fundamentos da igualdade a orientaccedilatildeo eacute dada por Dioacutegenes agrave legitimidade de
direitos Por outro lado ldquoos aristocratas apoiam-se no respeito agrave propriedade privada
afirmado por Dioacutegenes mas apelam a Antiacutepatro para rejeitar a definiccedilatildeo do justo
como igualdade estrita das partesrdquo A diferenccedila de tratamento dos problemas
levantados por parte de Antiacutepatro e Dioacutegenes pode ser concebida natildeo como
questatildeo de princiacutepio mas de meacutetodo O posicionamento de Antiacutepatro teve certo
216
Em suas epiacutestolas Secircneca natildeo costuma fornecer dados biograacuteficos que possam contribuir para uma montagem cronoloacutegica de sua trajetoacuteria poreacutem agraves vezes escapam algumas informaccedilotildees como as que ele fornece ao longo da epiacutestola 108 em que faz algumas menccedilotildees agrave sua juventude 217
Carneaacutedes eacute citado por Ciacutecero na obra Da Repuacuteblica III XVII
171
alcance diante dos romanos e Veillard (2013 p 233) reconhece que haacute alguns
pontos de contato entre seus ensinamentos com a nova legislaccedilatildeo sobre o direito
privado editada pelo imperador Augusto218 em 18 aC
Nota-se que naquele periacuteodo filosofia e poliacutetica estavam interligadas em detrimento
do bom funcionamento da repuacuteblica e em seguida do impeacuterio romano Paul Veyne
(1995 p11) observa que Ciacutecero criou um modelo de homem total que deveria ser
senador literato e filoacutesofo Nesse aspecto Secircneca foi sucessor de Ciacutecero em
relaccedilatildeo ao desempenho desse triplo papel
Na concepccedilatildeo de Veillard (2013 p 235) Secircneca investe em harmonizar poliacutetica e
filosofia procurando atender outras questotildees que natildeo foram privilegiadas nas
discussotildees de seus antecessores estoicos mais imediatos Ele se respalda em
Crisipo para abordar a noccedilatildeo de favor como um ato de benevolecircncia ldquopois se trata
de querer o bem do outro e transformar essa intenccedilatildeo em accedilatildeordquo A ideia de Secircneca
confronta a praacutetica do conceito de favor no campo poliacutetico econocircmico que no seu
tempo e contexto visavam alianccedilas forccediladas aprisionando indiviacuteduos em diacutevidas de
favores como acontecia no modo de agir do patronato219
Secircneca natildeo se limitou a ocupar o lugar de expectador do transcorrer da histoacuteria
poliacutetica no Principado romano220 mas se engajou como participante Sua famiacutelia
ocupava posiccedilatildeo ativa na vida poliacutetica de Roma sendo seu irmatildeo Lucio Gaacutelio221
prococircnsul (administrador puacuteblico) na proviacutencia da Acaia no tempo do Imperador
218
Segundo Veillard (2013 p234) os ensinamentos de Antiacutepatro defendem que a finalidade do casamento natildeo eacute apenas a procriaccedilatildeo mas em primeiro lugar a vida em comum dos casais entrelaccedilando alma e corpo Na lei de Augusto havia puniccedilatildeo para o desrespeito e infidelidade entre os casais tentando corrigir costumes decadentes fazendo da ceacutelula conjugal um espaccedilo de estabilidade e de virtude na valorizaccedilatildeo do respeito muacutetuo 219
Venturini (2001 p 2015-2016) informa que ldquoo termo patrono era usado para descrever o papel que um indiviacuteduo tinha na sociedade bem como a atenccedilatildeo que ele recebia em funccedilatildeo de suas capacidades materiais e morais estas lhe davam a autoridade (auctoritas) para atuar publicamente tornando possiacutevel a reuniatildeo de um grupo de amici ao seu redor Desse modo havia um contexto romano para a praacutetica do patronato A amicitia natildeo era somente um laccedilo subjetivo de afeiccedilatildeo mas tambeacutem uma ligaccedilatildeo objetiva baseada na assistecircncia muacutetua e na fides isto eacute na lealdade entre os amicirdquo 220
Grimal (2008 p 53) menciona que a designaccedilatildeo princeps era usada no periacuteodo da Repuacuteblica para indicar pessoa que ocupava posiccedilatildeo de autoridade e honra como no caso do liacuteder nas tomadas de decisotildees no senado Nesse contexto Augusto era princeps senatus em razatildeo de sua credibilidade autoridade poliacutetica e moral O termo Principado como regime poliacutetico eacute de uso posterior a esse momento histoacuterico Portanto o Principado eacute a fase convencionada pelos historiadores para designar o Impeacuterio Romano a partir de 27 aC quando o senado investiu Otaviano o futuro Augusto no poder supremo com a denominaccedilatildeo de priacutencipe (princeps) ldquoo homem que os deuses designaram como guiardquo 221
O prococircnsul Luacutecio Gaacutelio foi citado no livro de Atos ldquoMas sendo Gaacutelio prococircnsul da Acaia levantaram-se os judeus concordemente contra Paulo e o levaram ao tribunalrdquo (Atos 1812)
172
Claudio Secircneca foi testemunha da ascensatildeo de quatro imperadores romanos
Tibeacuterio Caliacutegula Claudio e Nero Na epiacutestola 108 Secircneca fornece alguns dados
biograacuteficos mencionando alguns fatos ldquoO meu tempo de juventude coincidiu com o
acesso de Tibeacuterio Ceacutesar222 no Principado Por essa eacutepoca praticavam-se em Roma
vaacuterios cultos exoacuteticosrdquo223 Secircneca faz um retrospecto remontando ao tempo de sua
juventude para abordar sobre sua transiccedilatildeo do pitagorismo ao estoicismo e a
importacircncia e desafio de se encontrar um mestre que vivesse de acordo com seus
proacuteprios ensinamentos
No governo de Caliacutegula Secircneca se destacava como escritor e era alvo de criacuteticas
do imperador como relata Suetocircnio (sdata p 134)224 A simples inveja do
imperador colocou a vida de Secircneca em risco Mas Caliacutegula foi alertado sobre a
debilidade da sauacutede do escritor e assim natildeo cumpriu seu ato de puniccedilatildeo planejado
Referecircncias indiretas a esse respeito satildeo feitas na epiacutestola setenta e oito Secircneca
comenta sobre o problema de sauacutede de Luciacutelio lembrando que na juventude ele
proacuteprio passara por situaccedilatildeo ainda mais grave ficando quase tuberculoso Na
sequecircncia do relato ele diz ldquomuitos homens houve a que a doenccedila adiou sua morte
iminenterdquo (Ep 786)
Conforme as informaccedilotildees de Shotter (2008 p 2829) no governo do imperador
Claudio Secircneca jaacute era participante oficial do senado e em 41 dC foi exilado na ilha
de Coacutersega por acusaccedilatildeo de envolvimento com a sobrinha do imperador e laacute
permaneceu ateacute 49 dC Durante esse tempo Secircneca escreveu uma de suas obras
222
Segurado e Campos informa em nota explicativa (Ep 108 22) que Tibeacuterio Ceacutesar subiu ao poder em 14 dC e nesse tempo tempo Secircneca deveria ter entre 15 ou 16 anos 223
De acordo com os comentaacuterios de Secircneca (Ep 108 19-23) os pitagoacutericos estavam disseminando as suas doutrinas que incluiacuteam a abstinecircncia da carne de animais Secircneca esteve ligado aos pitagoacutericos e por um ano se absteve de carne mas seu pai o convenceu de abandonar aquela seita filosoacutefica Taacutecito (Anais II 85) fornece algumas informaccedilotildees ldquoTratou-se de abolir tambeacutem os cultos egiacutepcios e judaicos e um senatusconsulto mandou deportar para a Sardenha quatro mil da classe dos libertos imbuiacutedos dessas supersticcedilotildees e em idade militar [] os outros foram mandados sair da Itaacutelia se ateacute determinado dia natildeo abjurassem os ritos profanos Em sua dissertaccedilatildeo de mestrado Miranda (2008 p 47) relata que Secircneca aos 25 anos sentindo sua sauacutede abalada foi tratar-se no Egito Por certo as ameaccedilas e perseguiccedilatildeo de Tibeacuterio aos pitagoacutericos forccedilaram a retirada de Secircneca Em Alexandria estabeleceu relaccedilotildees com filoacutesofos e a religiatildeo oriental Permaneceu por seis anos naquele retiro e retornou agraves suas funccedilotildees poliacuteticas em Roma em 31 dC Foi nomeado senador em 33 dC e tribuno da peble em 37 dC A partir dessa fase se destacou como orador despertando a inveja de Caliacutegula sendo ameaccedilado de morte 224 Suetocircnio (sdata p 134) informa que quando Caliacutegula tinha de falar em publico ldquodizia que ia lanccedilar os traccedilos das suas vigiacutelias desprezando aliaacutes o modo de escrever mais moderado e mais aprimorado ao ponto de chamar aacutes obras de Seacuteneca o autor entatildeo mais em voga amplificaccedilotildees escolaacutesticas e de as comparar a edifiacutecios onde natildeo ha senatildeo pedra ou areia sem cal nem cimento tinha o costume de responder aacutes arengas dos oradores mesmo os mais afamadosrdquo
173
intitulada Consolaccedilatildeo agrave minha matildee Heacutelvia Algumas informaccedilotildees sobre
relacionamento filial de Secircneca com sua matildee estatildeo registradas nesta obra Ao
mesmo tempo em que Secircneca consola sua matildee desenvolve argumentos sobre o
significado de consolar como um lugar comum em especial no gecircnero epistolar Agrave
medida que ele busca compreender as perdas que afetaram a vida de sua matildee
fornece informaccedilotildees biograacuteficas sobre alguns acontecimentos Nesta obra (Cons
HeacutelvII4) Secircneca relata sobre o pequeno intervalo em que ela perdeu o irmatildeo e
um mecircs depois o esposo (Secircneca o Velho) Nessa produccedilatildeo em que Secircneca
consola sua matildee o motivo destacado eacute o exiacutelio que o separou da famiacutelia Em suas
consideraccedilotildees Secircneca argumenta ldquoexiacutelio eacute na substacircncia uma mudanccedila de lugarrdquo
(Cons Heacutelv VI1) O modo como ele discorre filosoficamente sobre o significado do
exiacutelio revela seu posicionamento estoico pois ele toca em vaacuterios aspectos
defendidos pela escola quando desdobra a ideia de mudanccedila de lugar em variados
postulados estoicos225
Em 49 dC com a morte de Messalina esposa do Imperador Claudio a suposta
responsaacutevel pela acusaccedilatildeo e exiacutelio de Secircneca o Imperador casou-se com Agripina
e esta solicitou o retorno de Secircneca a Roma para cuidar da educaccedilatildeo de seu filho
Nero que estava com 11 anos de idade
Segundo Mendes em 54 dC conforme uma das versotildees da histoacuteria da morte do
Imperador Claudio a execuccedilatildeo do seu envenenamento foi atribuiacuteda agrave sua esposa
Agripina Nessas circunstacircncias o imperador foi sucedido por Nero sendo este
aclamado pelos pretorianos e tendo sido ratificado tal ato pelo senado Como Nero
ainda era muito jovem (17 anos) foi orientado por dois tutores Secircneca e Afracircnio
Burro prefeito do Pretoacuterio A partir de tal composiccedilatildeo poliacutetica nos primeiros cinco
anos do mandato de Nero ldquoa ideologia imperial reflete as ideias heleniacutesticas sobre
valor piedade justiccedila e clemecircnciardquo (MENDES 2006 p44)
Secircneca procurou orientar o jovem Imperador para uma poliacutetica justa e humanitaacuteria
de acordo com os valores estoicos Graccedilas aos dois preceptores de Nero os
225
Ao discorrer sobre o movimento Secircneca comenta na obra Consolaccedilatildeo agrave minha matildee Heacutelvia VI 8 que ldquotodas as coisas rodam e passam vatildeo de um ao outro ponto como ordena a inexoraacutevel lei do mundo quando teratildeo terminado durante um determinado periacuteodo de tempo sua volta faratildeo novamente o caminho percorridordquo Sobre o destino na mesma obra (VIII 5) Secircneca comentardquo por isso alegres e de cabeccedila erguida iremos com passo intreacutepido aonde quer que a sorte nos leverdquo[] Sobre corpoalma (XI7) ldquoEacute esse nosso miacutesero corpo prisatildeo e corrente da alma que pode ser jogado em qualquer lugar sobre ele tecircm poder os supliacutecios os roubos as doenccedilas a alma eacute sagrada e eterna e ningueacutem lhe pode fazer violecircnciardquo (Trad de Giulio Davide Leoni)
174
primeiros anos de seu reinado evidenciaram alguma semelhanccedila com o reinado de
Augusto Eacute nesse contexto que Secircneca escreveu o tratado De Clemencia Segundo
Grimal (1993 p 95) ldquocom Secircneca surge explicitamente uma teoria do poder
imperial no acircmbito do principado augustanordquo O programa proposto por Secircneca
pode ser identificado pela ideologia estoica atraveacutes daquele tratado destinado a
Nero a quem ele se dirige em uma dedicatoacuteria no exoacuterdio Percebe-se que Secircneca
como enunciador se propotildee a enfatizar as qualidades de Nero226 como Imperador e
a partir desse propoacutesito toma como tema a clemecircncia numa busca de expor seus
significados com base nos valores estoicos referindo-se a ela como uma virtude que
eacute ldquouma inclinaccedilatildeo do espiacuterito para a brandura ao executar a puniccedilatildeordquo (De Clem II
I2)
Como afirma Shotter (2008 p 89) o objetivo de Secircneca era apresentar a Nero a
afirmaccedilatildeo clara do modelo que ele proacuteprio prometera aderir na apresentaccedilatildeo de seu
primeiro discurso no senado Shotter (2008 p 41) lembra que Nero tivera diferentes
mestres em retoacuterica e filosofia mas seu interesse maior era focado em diversos
campos culturais como arte arquitetura e muacutesica durante sua formaccedilatildeo escolar
Para os mestres e tutores responsaacuteveis pela educaccedilatildeo em Roma a literatura
contribuiacutea como apoio textual tanto no exerciacutecio da leitura quanto no treinamento de
formulaccedilatildeo de ideias atraveacutes dos textos Quintiliano faz referecircncia ao valor dessa
praacutetica em mirar-se na produccedilatildeo literaacuteria quando ele assim se expressa
[] Verdadeiramente dos poetas se busca o sopro que eacute vida nas ideias a
sublimidade que se eleva nas palavras todos os movimentos que se agitam nos afetos a caracterizaccedilatildeo que existe nas personagens em especial porque a mente desgastada no agir diaacuterio do foacuterum como que se restaura no seu melhor por meio desta liberdade de tudo Exatamente por isto Ciacutecero entende que se deva descansar neste tipo de leitura (Inst Or X I27)
As instruccedilotildees de Quintiliano sobre a formaccedilatildeo educacional ideal para o homem
romano delineadas no livro X da obra Institutio Oratoria oferecem possibilidades de
compreensatildeo de que retoacuterica e literatura eram naturalmente vinculadas Rezende
(2008 p76) chama a atenccedilatildeo para esse fato observando que Quintiliano toma
226
Como relata Flaacutevio Josefo (Hist Heb III 22176) ldquoQuando Nero se viu guindado ao aacutepice do poder num cuacutemulo de prosperidade abusou de tal modo de sua fortuna que eu natildeo poderia fazer uma descriccedilatildeo fiel de suas accedilotildees sem causar horror Assim contentar-me-ei em dizer em geral que ele chegou a um espantoso excesso de crueldade e de loucura que manchou suas matildeos no sangue de seu irmatildeo de sua mulher de sua proacutepria matildee e de outras pessoas parentes e amigosrdquo
175
Ciacutecero como exemplo no exerciacutecio da praacutetica juriacutedica contribuindo para que retoacuterica
oratoacuteria e literatura fossem constitutivas do proacuteprio discurso
No que diz respeito agrave importacircncia da educaccedilatildeo filosoacutefica na formaccedilatildeo do cidadatildeo
romano ao analisar o funcionamento da filosofia na eacutepoca inicial do impeacuterio romano
Grimal (1993 p 73) defende que ldquoa persistecircncia do grego como linguagem da vida
moral contribui para unir entre si as duas metades do imperiumrdquo Pode-se dizer que
o pensamento filosoacutefico em suas variadas facetas estava ligado agrave heranccedila grega
Nesse ambiente de formaccedilatildeo do intelectual romano no seacuteculo I dC Secircneca eacute visto
como o poeta-filoacutesofo pois de acordo com algumas colocaccedilotildees de Cardoso (2003
p 45 a 47) a linguagem usada por Secircneca contribui para a identificaccedilatildeo de
caracteriacutesticas do entrecruzamento entre discurso literaacuterio e filosoacutefico em suas
produccedilotildees Ele permite refletir em sua obra literaacuteria aspectos do pensamento
estoico visto que nos cacircnticos corais por ele produzidos satildeo ressaltados temas
cosmoloacutegicos e metafiacutesicos De acordo com as informaccedilotildees histoacutericas Secircneca se
torna uma importante referecircncia da trageacutedia romana deixando como heranccedila a ideia
de continuidade que serviu de influecircncia para o teatro no periacuteodo do Renascimento
com destaque para Shakespeare na Inglaterra e Cervantes na Espanha
Secircneca se inspirou nas trageacutedias gregas ao produzir as trageacutedias latinas Uma visita
ao teatro de Epidauro227 oferece uma oportunidade de se avaliar o funcionamento
dos teatros gregos e sua importacircncia como exposiccedilatildeo das obras dos poetas que
produziam trageacutedias e comeacutedias A qualidade da acuacutestica faz notar a capacidade da
engenharia arquitetocircnica da eacutepoca fazendo valer os recursos naturais para atender
a demanda de uma ampla assistecircncia puacuteblica desde a nobreza ateacute a mais popular
O teatro de Epidauro serviu de Palco para apresentaccedilatildeo de trageacutedias gregas de
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes Estes poetas tambeacutem serviram de modelo para
Secircneca
227
A conservaccedilatildeo do teatro quase intacta se deve ao fato de com o passar do tempo ele foi sendo abandonado coberto pela vegetaccedilatildeo local e soterramento das colinas em volta Nada mais nada menos que seis metros de solo o protegeram por esse longo periacuteodo Foi apenas no seacuteculo XIX que um arquiteto grego chamado Panagis Kavadias impulsionado pela descriccedilatildeo do geoacutegrafo grego Pausacircnias acerca do monumental esplendor arquitetocircnico do teatro de Epidauro o redescobriu sob as jaacute citadas colinas mais precisamente em 1881 O trabalho das escavaccedilotildees durou 6 anos vendo surgir o imponente teatro (Informaccedilotildees turiacutesticas fornecidas na visita realizada ao teatro de Epidauro em 10 de agosto de 2016)
176
Furlan (2006 p 258) menciona que o seacuteculo II aC representou uma significante
fase da trageacutedia romana atraveacutes das produccedilotildees de Pacuacutevio (220-130 aC) e Aacutecio
(170-86 aC) Pode-se notar que os romanos aproveitaram algumas caracteriacutesticas
do modelo do teatro grego228 mas inovaram com a tecnologia dos arcos e tornaram
seu uso mais diversificado em termos populares A princiacutepio o teatro romano foi
palco da comeacutedia nova com destaque para Plauto e Terecircncio A construccedilatildeo do
espaccedilo para as apresentaccedilotildees do teatro romano natildeo era definitiva visto o caraacuteter
ambulante dos apresentadores
O interesse mais evidente no entretenimento que reunia multidotildees passou a ser a
realizaccedilatildeo dos jogos fato esse que contribuiu para mudanccedilas nos acontecimentos e
caracteriacutesticas dos jogos de origem grega tanto quanto modificaccedilotildees no
funcionamento do proacuteprio teatro Como observa Cardoso (2003 p 43) no seacuteculo I
dC o teatro nos moldes claacutessicos jaacute natildeo atraia a plateia que preferia os mimos
danccedilas entre outras apresentaccedilotildees
Essas consideraccedilotildees sobre o teatro romano comparado ao grego contribuem para
o surgimento de certas hipoacuteteses de que as peccedilas de Secircneca natildeo eram destinadas
agraves apresentaccedilotildees nos palcos teatrais pois eram mais voltadas para leitores do que
para espectadores Como bem afirma Taacutecito (Anais XIII3) ldquoos escritos de Secircneca
eram perfeitamente adaptaacuteveis ao gosto de seus contemporacircneosrdquo
De acordo com as colocaccedilotildees de Furlan (2006 p 258) as dez peccedilas traacutegicas
construiacutedas por Secircneca partem de um lugar comum que era a exploraccedilatildeo de mitos
lendas e histoacuterias Dessas fontes Secircneca extrai diferentes temas que de certa
forma permitem a dramatizaccedilatildeo de valores da filosofia estoica Para Cardoso (2003
p 43) a falta de teatralidade nas peccedilas escritas por Secircneca justificam essa
concepccedilatildeo do objetivo de leitura e natildeo de representaccedilatildeo no teatro ldquoSecircneca
escreveu peccedilas possivelmente para serem lidas em sessotildees puacuteblicas frequentadas
por uma elite familiarizada com os velhos mitosrdquo Outro diferencial que Cardoso
(2003 p 44) aponta na comparaccedilatildeo entre as peccedilas gregas e as de Secircneca eacute a
228
Cardoso (2003 p 39 40) informa que o surgimento da trageacutedia helecircnica origina dos rituais religiosos quando os coros participavam nos festejos religiosos Aos poucos foram ocorrendo mudanccedilas e havia alternacircncias entre um cantor uacutenico e posteriormente em algumas passagens um ator substituiacutea o cantor declamando o texto e representando por meio de gestos e movimentos Aos poucos a trageacutedia foi se tornando uma estrutura intercalada por coro e atores Em Roma Livio Andronico traduziu a Odisseia como primeira apresentaccedilatildeo Continuou seu trabalho de traduccedilatildeo colocando os romanos em contato com o teatro grego Em seguida surgiram outros poetas como Neacutevio Ecircni Pacuacutevio e Aacutecio Das demais trageacutedias da era augustana pouco se conservou
177
movimentaccedilatildeo quase estaacutetica que este autor imprime agraves cenas tornando-as
inadequadas agrave encenaccedilatildeo teatral Para Cardoso mesmo partindo de modelos do
teatro grego Secircneca inova no modo de construccedilatildeo das personagens realccedilando os
traccedilos do caraacuteter e caricaturas traacutegicas Neste mesmo sentido Albrech (2008 p
124) argumenta que para Secircneca o uso de material dos escritores anteriores natildeo eacute
impedimento para originalidade mas senso literaacuterio
Grimal (2011 p 71) observa que em Roma aos poucos o teatro literaacuterio abandonou
o palco tornando-se em recitatio Conforme Wilson tambeacutem registra Secircneca iniciou
sua formaccedilatildeo no campo da retoacuterica com o uso da praacutetica da declamaccedilatildeo segundo
a forma pedagoacutegica defendida por seu pai Secircneca o Velho a partir da aplicaccedilatildeo do
recitatio como exerciacutecios da retoacuterica e oratoacuteria
Seneca like other Romans of his generation was trained in rhetoric and practiced in declamation In fact he was one of the addressees of his fatherrsquos Controversiae and Suasoriae which indicate that in his youth he
was an eager student of rhetorical techniques (WILSON 2007 p 425)229
Aleacutem de apoiar-se nos modelos do teatro grego como referecircncias para construir
suas trageacutedias230 Secircneca tambeacutem se inspira em Oviacutedio231 que representa a quebra
do ritual na produccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios de seu tempo com a criaccedilatildeo da obra
Metamorfoses marcando uma mudanccedila de expectativa no campo da literatura
Auhagen (2007 p 415) verifica que na obra Controveacutersias Secircneca232 o Velho
menciona a habilidade de Oviacutedio na retoacuterica e seu talento na declamaccedilatildeo de
controveacutersias (leis fictiacutecias sobre determinado caso) poreacutem Oviacutedio preferia suasoacuteria
(discursos fictiacutecios de persuasatildeo) Ainda segundo Auhagen (2007 p415) Secircneca
o Velho menciona a capacidade de Oviacutedio em transferir seu talento no campo da
retoacuterica para seu proacuteprio desempenho na arte poeacutetica Pode-se dizer que Oviacutedio
representou um exemplo para Secircneca o Jovem pois a partir de sua educaccedilatildeo e
influecircncia paterna conseguiu utilizar seus conhecimentos da retoacuterica interligando a
filosofia aos gecircneros literaacuterios que ele habilmente conseguiu desenvolver Assim
229
Secircneca como outros de sua geraccedilatildeo foi treinado em retoacuterica e declamaccedilatildeo De fato ele era um dos endereccedilados das obras Controversiae e Suasoriae de seu pai O que indica que em sua juventude ele era um estudante dedicado na aacuterea de teacutecnicas retoacutericas 230
Trageacutedias de Secircneca As loucuras de Heacutercules As troianas As feniacutecias Medeia Fedra Eacutedipo Agamenon Tiestes Heacutercules no Fta Octaacutevia (atribuiacuteda a Secircneca) 231
Citaccedilatildeo da preferecircncia de leitura de Oviacutedio quanto agraves duas produccedilotildees de Secircneca o Velho 232
Grimal (2011 p 72) observa que ldquoo livro de Secircneca Pai intitulado Suasoriae et controvesiae (discurso para persuadir e discurso para defender uma causa) revela os principais nomes dos mestres de retoacuterica no principado de Augusto e os seus meacutetodos de ensinordquo
178
Secircneca inova ligando literatura e filosofia ao enxertar na produccedilatildeo das trageacutedias
certos princiacutepios do estoicismo
Fantham (2005 p 123124) esclarece que natildeo haacute fontes de informaccedilotildees precisas
quanto agraves datas das produccedilotildees das trageacutedias de Secircneca Algumas conjecturas satildeo
levantadas com base no conteuacutedo e contexto histoacuterico localizando hipoteticamente
a produccedilatildeo de algumas peccedilas entre 41 a 54 d C e outras de 55 a 62 d C Esta
autora tambeacutem aponta o valor das influecircncias de poetas romanos pois Secircneca
constroacutei suas trageacutedias em cinco atos forma esta recomendada por Horaacutecio
Na produccedilatildeo das trageacutedias Secircneca manteacutem o valor da imitatio como explorado
pelos poetas da literatura greco-latina e esse recurso da criaccedilatildeo poeacutetica pode ser
apontado como uso de um lugar comum de uma fonte que permite caracterizar a
forma e modo de cada produccedilatildeo Na epiacutestola oitenta e quatro Secircneca discorre
sobre o valor das ideias que satildeo coligidas das leituras usando a imagem da abelha
como metaacutefora ldquocomo soe dizer devemos imitar as abelhas que deambulam pelas
flores escolhendo as mais apropriadas ao fabrico do mel e depois trabalham o
material recolhido distribuem-no pelos favosrdquo (Ep 843) Assim a leitura serve a
Secircneca como meio de coleta de material para sua criaccedilatildeo dos temas literaacuterios e
filosoacuteficos
Rezende (2008 p 109) entende o conceito de imitatio na concepccedilatildeo de Quintiliano
ldquocomo um exerciacutecio um procedimento uma estrateacutegia pedagoacutegica que se faz
mediaccedilatildeo sem fim em si mesma portanto entre um saber jaacute construiacutedo e outro
saber que se pretende aprimorarrdquo Eacute nesse vieacutes que Quintiliano (Inst Or X 21)
argumenta [] ldquonatildeo haacute que duvidar de que uma grande parte da arte esteja
circunscrita agrave imitaccedilatildeordquo
Partindo da influecircncia de seus antecessores no campo da literatura Secircneca busca
nos personagens da mitologia grega a accedilatildeo para suas trageacutedias e quanto agrave
aplicaccedilatildeo moral das peccedilas ele toma a literatura do periacuteodo augustano como fonte
para situar seus personagens no enquadramento da moral romana Eacute nessa
perspectiva que Secircneca encontra o caminho para explorar os princiacutepios da filosofia
estoica Wilson (2007 428) focaliza Secircneca no contexto em que ele recoloca a
filosofia na escrita latina libertando-a de sua ligaccedilatildeo exclusiva com a liacutengua grega
transpondo termos filosoacuteficos gregos para a liacutengua latina Com base em sua
179
formaccedilatildeo e habilidade no campo da retoacuterica Secircneca foi capaz de adaptar a filosofia
agrave literatura e poliacutetica reunindo eloquecircncia e argumentaccedilatildeo
A capacidade de Secircneca em integrar filosofia retoacuterica e poliacutetica garantiu-lhe o
prestiacutegio de ser escolhido para exercer o papel de tutor do futuro imperador Nero
Taacutecito (Anais XIII 2) menciona que Secircneca aleacutem de professor de Nero foi
responsaacutevel pela produccedilatildeo de alguns discursos pronunciados pelo jovem imperador
Confirmando esse desempenho de Secircneca Taacutecito (Anais XIII 3) relata que no
funeral do imperador Claudio Nero fez o elogio protocolar usando o discurso escrito
por Secircneca Taacutecito elogia o discurso dizendo que fora composto com muita arte
pois Secircneca era um homem de sedutor engenho ldquomuito ao gosto daquela eacutepocardquo
Por um periacuteodo de cinco anos (54 a 59 dC) Secircneca no papel de conselheiro foi
capaz de intermediar uma conciliaccedilatildeo entre poliacutetica e filosofia no principado de
Nero Acontecimentos que se sucederam como a morte de Agripina e
posteriormente a de Bruto provocaram certa instabilidade na poliacutetica imperial e
nesse ambiente acontece o afastamento de Secircneca Segundo Veyne dos anos 62
ateacute 65 dC Secircneca recolhe-se ao oacutecio dedicando-se agrave sua obra e meditaccedilatildeo
ldquoSeus uacuteltimos anos satildeo cercados por sua escritura de um suacutedito de Nero que sabe
que seus dias estatildeo contados Secircneca se isola na solidatildeo de um oacutecio letrado para
continuar a poliacutetica por esses outros meios de accedilatildeordquo (VEYNE1995 p168)
Quanto agrave escolha de Secircneca em finalizar sua carreira optando pelo gecircnero
epistolograacutefico Wilson (2007 p 436) comenta que este gecircnero permitiu-lhe construir
de forma pessoal o discurso filosoacutefico e seguir mais proacuteximo o movimento de sua
mente cultivando a ideia de uma conversa privada e natildeo de um discurso puacuteblico
permitindo-lhe o tracircnsito livre nas mudanccedilas e direccedilatildeo do pensamento Este autor
remete aos gregos para lembrar que por um lado a epiacutestola tem sua heranccedila no
diaacutelogo filosoacutefico como gecircnero podendo a epiacutestola ser tratada como metade do
diaacutelogo pelas circunstacircncias da ausecircncia do destinataacuterio Por outro lado Secircneca
adota o gecircnero epistolar transferindo a linguagem filosoacutefica da sua oralidade para
sua condiccedilatildeo de escrita O proacuteprio Secircneca aponta este fato ao mencionar que o
discurso de seu mestre Fabiano era construiacutedo para a mente dos leitores e natildeo para
os ouvidos de uma audiecircncia (Ep 100 2-3)
180
Portanto Secircneca elege o gecircnero epistolograacutefico seguindo a forma protocolar
inerente a esse formato e ainda contribui construindo a cenografia de um tratado
filosoacutefico caracterizando o gecircnero como epiacutestola filosoacutefica
41 CONSTRUCcedilAtildeO DA CENOGRAFIA COMO TRATADO FILOSOacuteFICO NAS
EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA
O corpus selecionado nesta pesquisa para anaacutelise especiacutefica dos toacutepoi filosoacuteficos e
argumentos retoacutericos tem como fonte determinadas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo
jaacute sinalizadas e apresentadas nos quadros de organizaccedilatildeo indicadas na introduccedilatildeo
deste trabalho nas p 25 26 e 27 A produccedilatildeo da escrita de Secircneca na obra Annae
Senecae ad Lucilium Epistulae Morales eacute norteada pela opccedilatildeo do gecircnero
epistolograacutefico como jaacute apresentado anteriormente A coleccedilatildeo que eacute composta de
cento e vinte quatro epiacutestolas233 organizadas em vinte livros apresenta-se
consistente de acordo com a caracterizaccedilatildeo do gecircnero escolhido Em relaccedilatildeo a
Luciacutelio como destinataacuterio existem indagaccedilotildees se ele seria um personagem real ou
fictiacutecio Segurado e Campos (1991 p VI-VII) faz algumas observaccedilotildees em sua
introduccedilatildeo da obra alegando que haacute certas evidecircncias da existecircncia de Luciacutelio no
contexto histoacuterico-social de Secircneca A despeito dos escassos dados de sua
biografia devendo sua imortalidade ao proacuteprio Secircneca que o elegeu como
destinataacuterio de suas epiacutestolas sabe-se que seu nome completo era Gaio Luciacutelio
Juacutenior originaacuterio de Pompeia na Campacircnia o que se deduz por algumas
referecircncias de Secircneca Quanto agrave data de seu nascimento natildeo haacute referecircncia para
esta informaccedilatildeo somente comentaacuterios234 de Secircneca que fazem supor ser ele
proacuteprio um pouco mais velho do que Luciacutelio No fechamento da epiacutestola oito Secircneca
oferece o brinde costumeiro de uma maacutexima ao seu destinataacuterio aproveitando para
refletir sobre o valor e citaccedilatildeo de maacuteximas e de versos Apoacutes a citaccedilatildeo de um verso
de Publilio Secircneca prestigia Luciacutelio afirmando ldquoa mesma ideia exprimiste tu bem
me lembro num verso natildeo menos brilhante e concisordquo - Natildeo eacute verdadeiramente teu
o que eacute teu por dom da sorte (Ep 810) E Secircneca ainda acrescenta mais um verso
233
Segundo Reynolds (1957 p 5) a princiacutepio a coleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca foi dividida em dois volumes O primeiro era formado pelas epiacutestolas de 1-88 compondo um manuscrito do seacuteculo IX dC e o segundo volume eacute composto pelas epiacutestolas de 89-124 em outro manuscrito do seacuteculo X dC Esses manuscritos serviram de base para as traduccedilotildees para o inglecircs 234
Na epiacutestola 267 Secircneca se refere a Luciacutelio como mais novo ldquoEacutes mais novo do que eu mas isso natildeo importa o que conta natildeo satildeo os anosrdquo Na epiacutestola 352 Secircneca comenta que a diferenccedila de idade entre os dois natildeo eacute tatildeo significativa [] ldquosei que o que minha idade jaacute perdeu em vigor poderaacute recebecirc-lo da tua embora natildeo muito distanterdquo
181
de Luciacutelio dizendo ldquonatildeo me esqueccedilo tambeacutem de outro verso teu melhor aindardquo ndash
Bem que se pode dar pode tambeacutem tirar-se (Ep 810) Em outra epiacutestola Secircneca
confirma seu apreccedilo por Luciacutelio como poeta ldquoQue presente queres tu que eu te
ofereccedila para te dissuadir de incluiacuteres no teu poema a descriccedilatildeo do Etnardquo (Ep 795)
No discurso construiacutedo por Secircneca natildeo importa se Luciacutelio eacute simplesmente um
personagem fictiacutecio pois a enunciaccedilatildeo se estabelece a partir da imagem dele como
destinataacuterio Na constituiccedilatildeo da cenografia o EU que se dirige ao TU toma uma
posiccedilatildeo de comando e instruccedilotildees a partir da construccedilatildeo imageacutetica do receptor da
epiacutestola Assim Secircneca trata Luciacutelio como um disciacutepulo procurando convencecirc-lo da
superioridade do estoicismo sobre o epicurismo Gazola (2008 p 101) observa que
Secircneca usa a didaacutetica para ensinar Luciacutelio atraveacutes das epiacutestolas e assim se
posiciona ldquoNatildeo se pode perder de vista que Secircneca natildeo estaacute expondo os detalhes
teoacutericos mais complexos da ontologia estoicardquo Na verdade os ensinamentos de
Secircneca partem de uma visatildeo praacutetica dos princiacutepios filosoacuteficos estoicos
No quadro da cenografia que se constitui na enunciaccedilatildeo o papel do enunciador eacute de
mestre que se dirige ao seu co-enunciador como disciacutepulo Hadot (1999 p 21)
pontua que o discurso do mestre de filosofia na Antiguidade toma a forma de um
exerciacutecio espiritual agrave medida que ldquoesse discurso se apresente sob forma tal que o
disciacutepulo do mesmo modo que o ouvinte o leitor ou o interlocutor possa progredir
espiritualmente e transformar-se interiormenterdquo
A primeira epiacutestola de Secircneca eacute o ponto de partida para o estabelecimento da
cenografia de todo o conjunto da coleccedilatildeo A introduccedilatildeo se daacute por meio de certo
afastamento do modo da escrita epistolar convencional Assim Secircneca natildeo faz uso
da saudaccedilatildeo introdutoacuteria protocolar simplificando-a com a expressatildeo Seneca
Lucilio suo salutem Na epiacutestola quinze ele registra alguns comentaacuterios sobre a
tradiccedilatildeo de seguir o modelo de introduccedilatildeo no gecircnero epistolograacutefico fato que
justifica sua escolha da forma de saudaccedilatildeo no gecircnero epistolar por ele adotado
Costumavam os antigos (e o uso conservou-se ateacute ao meu tempo) escrever logo a seguir agrave epiacutegrafe das cartas estas palavras ldquoSe estaacutes de boa sauacutede tanto melhor eu estou de boa sauacutederdquo Quanto a noacutes teremos antes razotildees para dizer ldquose te aplicas agrave filosofia tanto melhorrdquo De fato eacute na filosofia que reside a sauacutede verdadeira (Ep 151)
Essa colocaccedilatildeo de Secircneca comprova seu afastamento da forma usual da escritura
na abertura da epiacutestola sinalizando o objeto central de seu foco que eacute a filosofia
182
conformando-se com a cenografia de um tratado Nessa epiacutestola quinze tem-se a
confirmaccedilatildeo da cenografia que foi instaurada a partir da introduccedilatildeo da coleccedilatildeo
como tratado filosoacutefico Ao mesmo tempo Secircneca escreve essa epiacutestola quinze
entre outras tambeacutem fazendo uso do toacutepico sobre questotildees de sauacutede recorrente no
gecircnero epistolograacutefico Nessa conjectura ele se manteacutem enquadrado nas
caracteriacutesticas do gecircnero mas adapta o seu modo ao campo filosoacutefico quando ele
afirma ldquoCultiva portanto em primeiro lugar a sauacutede da alma e soacute em segundo lugar
a do corpordquo (Ep 152)
Maingueneau analisa uma situaccedilatildeo de debate puacuteblico em que o discurso eacute
construiacutedo a partir de uma cenografia epistolar e assim ele aborda a carta natildeo
como gecircnero mas como cenografia de carta privada235 Atraveacutes das discussotildees ele
faz a seguinte observaccedilatildeo quanto agrave importacircncia do papel da cenografia na
enunciaccedilatildeo
A cenografia epistolar como qualquer cenografia tem inevitavelmente por efeito fazer passar a cena englobante e a cena geneacuterica ao segundo plano de modo que o leitor se encontre preso numa armadilha se a cenografia eacute bem explorada ele recebe esse texto como uma carta e natildeo como um libelo (MAINGUENEAU 2008 p117)
Essa anaacutelise do Maingueneau contribui para chamar a atenccedilatildeo sobre a importacircncia
de se captar a cenografia na enunciaccedilatildeo e identificaacute-la em seu funcionamento no
discurso Talvez a discussatildeo que se levanta entre os que defendem as epiacutestolas de
Secircneca como tratado no papel de gecircnero do discurso se encaixe nessa armadilha
que a cenografia bem explorada provoca A cenografia como tratado na construccedilatildeo
discursiva das epiacutestolas natildeo invalida o gecircnero epistolar pois este se manteacutem em
suas caracteriacutesticas de definiccedilatildeo do gecircnero
Na epiacutestola introdutoacuteria da coleccedilatildeo a figura que primeiramente se destaca eacute a do
destinataacuterio estabelecendo o diaacutelogo pretendido entre EU emissaacuterio e TU
destinataacuterio
Procede deste modo caro Luciacutelio reclama o direito de dispores de ti concentra e aproveita todo o tempo que ateacute agora te era roubado te era subtraiacutedo que te fugia das matildeos Convence-te de que as coisas satildeo como as descrevo uma parte do tempo eacute nos tomada outra parte vai-se sem darmos por isso outra deixamo-la escapar Mas o pior de tudo eacute o tempo esperdiccedilado por negligecircncia Se bem reparares durante grande parte da
235
Maingueneau (2008 115-135) escolhe o libelo religioso e o programa poliacutetico eleitoral como gecircneros do discurso distintos que recorrem ao uso da cenografia epistolar para a construccedilatildeo do discurso
183
vida agimos mal durante a maior parte natildeo agimos nada durante toda a vida agimos inutilmente (Ep 11)
Muhana (2000 p 341) argumenta que uma das caracteriacutesticas preconizadas no
gecircnero epistolar desde a Antiguidade eacute a imagem do destinataacuterio em primeiro
lugar Fato este que evidencia a importacircncia do tu em relaccedilatildeo ao eu na interlocuccedilatildeo
entre ausentes Esta caracteriacutestica apontada pode ser identificada na epiacutestola
introdutoacuteria de Secircneca a Luciacutelio Eacute notoacuterio observar que no papel de mestre Secircneca
valoriza a figura do disciacutepulo colocando-o em destaque na abertura de sua epiacutestola
O assunto a ser abordado eacute introduzido girando em torno do tema filosoacutefico ldquoo
tempordquo como um direcionamento para toda a organizaccedilatildeo da coleccedilatildeo de epiacutestolas
Os assuntos giram em torno de variadas reflexotildees sobre o tempo e os seus
desdobramentos em toacutepicos Esse pode ser considerado o tema filosoacutefico
centralizador em torno do qual gera a produccedilatildeo argumentativa da obra por meio de
toacutepoi e argumentos retoacutericos
O tema filosoacutefico ldquoo tempordquo eacute identificado na primeira epiacutestola e segue sendo
desenvolvido por meio de subtemas direcionados pela filosofia estoica Segundo
Gazola (2008 p 109) o tempo para os estoicos eacute o intervalo do movimento236 pois o
intervalo eacute a marca do ponto inicial ateacute o ponto final do movimento designado como
tempo Os anos de vida de uma pessoa satildeo marcados do nascimento ateacute a morte e
este intervalo eacute entendido pelos estoicos como tempo Assim o tema ldquoo tempordquo nas
epiacutestolas de Secircneca se desdobra em subtemas como nascimento vida velhice e
morte Apoacutes a apresentaccedilatildeo do interlocutor no funcionamento do TU no diaacutelogo
emerge a presenccedila marcada do EU no ato da enunciaccedilatildeo
Talvez te apeteccedila perguntar como procedo eu que dou todos esses preceitos Dir-te-ei com franqueza como algueacutem que vive bem mas sem esbanjamento Tenho as minhas contas em dia Natildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de que modo o perco (Ep I4)
236
Eacutemile Breacutehier (2012 95-103) expotildee que a tese de Zenatildeo sobre o tempo se aproxima da de Aristoacuteteles Para Zenatildeo o tempo eacute o intervalo do movimento e para Aristoacuteteles o tempo eacute o nuacutemero do movimento Crisipo defendia que o tempo eacute o intervalo que acompanha o movimento do cosmo Segundo Aristoacuteteles o tempo eacute medido por um tempo definido a unidade de tempo Este tempo definido eacute medido por um movimento definido que eacute o movimento circular do ceacuteu pois soacute ele eacute uniforme A teoria de que o tempo eacute o movimento do ceacuteu eacute atribuiacuteda a Platatildeo mas natildeo tem o mesmo sentido da teoria estoica de que o tempo eacute o intervalo do movimento do mundo Para os estoicos o tempo eacute incorpoacutereo pois sua forma eacute vazia e os acontecimentos se sucedem segundo leis que o tempo natildeo possui Os incorpoacutereos satildeo desprovidos de ser tendo sua existecircncia marcada a partir do contato de um corpo com outro
184
A expressatildeo fatebor ingenue237 identifica um ethos parresiasta do enunciador ou
seja o franco falar a liberdade a abertura para se dizer o que deve ser dito Esse
modo de dizer a verdade aponta para a subjetividade do enunciador quando fala de
si ldquoNatildeo te posso dizer que nunca perco tempo mas sei dizer quanto porquecirc e de
que modo o percordquo Nesta situaccedilatildeo pode ser aplicada a explanaccedilatildeo de Foucault
(2010a p 334) sobre parresiacutea ao afirmar que ldquoo termo parresiacutea refere-se por um
lado agrave qualidade moral agrave atitude moral ao ethos e por outro lado ao procedimento
teacutecnico indispensaacutevel para transmitir o discurso verdadeirordquo
No desfecho desta primeira epiacutestola o enunciador menciona a maacutexima
Jaacute vem tarde a poupanccedila quando o vinho estaacute no fundo
Dois aspectos importantes contribuem para a instituiccedilatildeo da cenografia o uso do
tema sobre o tempo como lugar comum e o fechamento da epiacutestola com uma
maacutexima Na Antiguidade era recorrente entre os escritores greco-romanos o uso de
uma maacutexima como brinde de acordo com o tema em pauta Braren identifica essa
praacutetica nas epiacutestolas de Secircneca fazendo conexatildeo com o toacutepico do uso de maacuteximas
em epiacutestolas de Ciacutecero
Natildeo se deve entretanto esquecer outro toacutepico importante fornecido pela epistolografia antiga que consiste em considerar que a finalidade de uma carta eacute ofertar algum brinde toacutepico condensado por Ciacutecero em poucas palavras polliceri aliquid ldquoofertar algordquo (BRAREN 1999 p 42)
238
Na Antiguidade aleacutem das maacuteximas ou sententiae funcionarem como brinde no
gecircnero epistolograacutefico outras funccedilotildees destas podem ser observadas na construccedilatildeo
do discurso Costriano (2010 p 37) menciona que Secircneca o Velho opta por uma
abordagem mais didaacutetica no exerciacutecio da declamaccedilatildeo usando sententiae como
parte do elocutio por serem adequadas ao iniacutecio ou encerramento de uma
argumentaccedilatildeo ou mesmo para enfatizar um determinado assunto Portanto
Secircneca busca situar a ideia de tempo como tema filosoacutefico e uso de uma maacutexima239
237
ldquoconfesso com franquezardquo 238
Braren (1999 p 42) identifica Ciacutecero recorrendo ao uso de maacuteximas como brinde nas epiacutestolas Fam 4 13 6 e Fam 6 10 6 Secircneca segue o mesmo protocolo reforccedilando o caraacuteter argumentativo desse recurso 239
O que os tradutores de Aristoacuteteles chamam de maacutexima na retoacuterica latina era designado como sententia Quintiliano (Inst Or VIII 53) alega que o termo usado pelos latinos como sententia significava o que para o gregos era gnome O proacuteprio Secircneca usa o termo sententia aplicando-o em diferentes contextos como por exemplo ideia ou opiniatildeo como usado no grego (γνώμη ) e natildeo especificamente para se referir aos ditos de algueacutem Sic est non muto sententiam (Ep 101) Eacute assim
como te digo natildeo mudo de opiniatildeo Em Aristoacuteteles (Ret II 21 2) ἔστι δὴ γνώμη ἀπόφανσις[] a maacutexima eacute uma afirmaccedilatildeo (declaraccedilatildeo) ou seja a opiniatildeo eacute uma afirmaccedilatildeo
185
como argumento retoacuterico na busca de cenas validadas para mobilizar a instauraccedilatildeo
da cenografia A partir desta cenografia ficam delineados os toacutepoi e recursos
retoacutericos como estrateacutegias argumentativas na conduccedilatildeo do discurso
No todo da primeira epiacutestola que serve de abertura para o conjunto da coleccedilatildeo o
proacuteprio texto mostra a cenografia que o torna possiacutevel Assim fica evidenciada a
cenografia de um lsquotratado filosoacutefico estoicorsquo pela proacutepria intertextualidade que a
enunciaccedilatildeo mobiliza Nessa ordem a noccedilatildeo de cenografia como Maingueneau
(2005 2008 2012) postula em sua abordagem teoacuterica coopera para uma
compreensatildeo do processo pelo qual a enunciaccedilatildeo se autolegitima ao instituir um
enunciador e um co-enunciador de acordo com um conteuacutedo desenvolvido no
proacuteprio texto Essa abordagem intensifica a ideia de que o destinataacuterio Luciacutelio se
constitui na decircixis empiacuterica como o TU na enunciaccedilatildeo mas na decircixis discursiva ele
pode ser a figura dos leitores de Secircneca O estabelecimento da cenografia nessa
obra tambeacutem concorre para definir o enunciador como o filoacutesofo estoico
responsaacutevel pelo tratado filosoacutefico constituiacutedo na cenografia Dessa forma a decircixis
linguiacutestica serve como ponto de partida mas aos poucos vai cedendo lugar agrave decircixis
discursiva permitindo a apreensatildeo do ethos discursivo que se mostra na
enunciaccedilatildeo A topografia tambeacutem tem o lugar fiacutesico como partida empiacuterica para se
chegar ao discursivo ou seja Secircneca fala do lugar do seu retiro ou oacutecio fora da
poliacutetica e suas implicaccedilotildees sociais Aos poucos a discursividade da ideia desse
lugar ocupa variados sentidos no discurso
Como visto na contextualizaccedilatildeo histoacuterica que aponta para diferentes facetas que
englobam a vida de Secircneca tais dados contribuem para localizar discursivamente o
lugar de onde ele enuncia No momento histoacuterico em que ele escreve as epiacutestolas
percebe-se efeitos de seu deslocamento de posiccedilatildeo poliacutetica destacada para um
afastamento de todo o ambiente social e aristocrata Esse novo espaccedilo eacute o ldquoaquirdquo
que identifica o lugar da meditaccedilatildeo reflexatildeo e avaliaccedilatildeo O tempo percebido
empiricamente eacute toda trajetoacuteria que culmina na velhice como ele mesmo declara
Na cenografia que utiliza o tempo como tema direcionador da enunciaccedilatildeo a
cronografia pode ser vista como um ldquoagorardquo que prevecirc um momento final proacuteximo
Nesse contexto Secircneca tira proveito das vantagens do gecircnero epistolograacutefico e faz
dele o meio de depositar suas ideias e conselhos finais que vatildeo ao encontro de seu
destinataacuterio Luciacutelio Atraveacutes desse gecircnero epistolar cumprem-se os propoacutesitos da
186
escrita de si e cuidado de si como tambeacutem o cuidado do outro favorecendo a
Secircneca a perenidade de seu discurso atraveacutes da coleccedilatildeo de epiacutestolas por ele
produzidas e divulgadas
42 ETHOS DE SEcircNECA DE ACORDO COM SUA POSICcedilAtildeO DISCURSIVA
A construccedilatildeo do ethos de Secircneca atraveacutes da leitura de sua obra em especial com
base no foco de sua correspondecircncia com Luciacutelio compactua com a ideia de
Aristoacuteteles sobre as trecircs provas apontadas como constituintes do discurso ecircthos
paacutethos e loacutegos Inwood indica possibilidades de captaccedilatildeo da subjetividade de
Secircneca demonstrada atraveacutes da composiccedilatildeo de sua obra e faz o seguinte
comentaacuterio
In the corpus of his writing and in the relatively rich historical record we possess about him we see Seneca in many guises as an occasionally Machiavellian political figure of great but transient power as an eloquent orator devoted to the artfulness of fine speech as much as to its power to persuade as a dark but brilliant poet as a friend son and brother as a philosopher of surprisingly wide interests and as a moral adviser (INWOOD 2010 p ix)
240
De acordo com essa interpretaccedilatildeo de Inwood o ethos de Secircneca se revela nos
variados campos em que ele atuou como poliacutetico orador poeta e filoacutesofo A
fundamentaccedilatildeo para as manifestaccedilotildees da subjetividade de Secircneca estaacute contida no
estoicismo o qual direciona seu posicionamento discursivo nos vaacuterios campos do
saber Nessa mesma expectativa de apreensatildeo do ethos de Secircneca Wilson faz as
seguintes observaccedilotildees
He is able to present himself in a variety of roles as teacher counsellor comforter fellow student satirist literary critic moralist autobiographer friend or scientific observer Stoic or admirer of Epicurus physician psychotherapist or companion in suffering In the Epistles he resituates himself in every letter in a new set of circumstances in a new mood in a new reflective contex (WILSON 2007 433)
241
240
Inwood (2010 p xi) ldquoNo corpus da escrita e no registro histoacuterico relativamente rico que noacutes possuiacutemos sobre a vida de Secircneca noacutes o vemos de muitas formas como uma figura poliacutetica ocasionalmente maquiaveacutelica como um orador eloquente devotado agrave astuacutecia do bom discurso tanto quanto o seu poder de persuadir como um obscuro mas brilhante poeta como amigo filho e irmatildeo como filoacutesofo de interesses surpreendentemente amplos e como um conselheiro moralrdquo Observa-se na colocaccedilatildeo de Inwood que a expressatildeo maquiaveacutelica se refere agrave legitimidade e poder do governante compromissado com as virtudes inerentes ao posto poliacutetico ocupado 241 Wilson (2007 p 433) ldquoEle eacute capaz de apresentar-se em uma variedade de papeacuteis como mestre
conselheiro consolador colega de estudos satiacuterico criacutetico literaacuterio moralista autobioacutegrafo amigo ou observador cientiacutefico estoacuteico ou admirador de Epicuro meacutedico psicoterapeuta ou companheiro amigo ou observador cientiacutefico estoacuteico ou admirador de Epicuro meacutedico psicoterapeuta ou
187
Wilson observa que em cada epiacutestola dirigida a Luciacutelio Secircneca revela seu caraacuteter
oferecendo oportunidades para que a sua subjetividade seja identificada em
diferentes aspectos de acordo com o assunto em pauta e mesmo revendo e
reavaliando suas proacuteprias atitudes Como visto na construccedilatildeo da cenografia a partir
da primeira epiacutestola como abertura da coleccedilatildeo marcas do ethos de estoico satildeo
mostradas pela revelaccedilatildeo da subjetividade do enunciador que se coloca diante do
co-enunciador como parceiro na enunciaccedilatildeo ldquoTalvez te apeteccedila perguntar como
procedo eu que dou todos esses preceitosrdquo (Ep I4) O modo de proceder no papel
de estoico estaacute vinculado aos princiacutepios da proacutepria filosofia que lhes daacute o
direcionamento na forma de agir Na organizaccedilatildeo loacutegica da proposiccedilatildeo de Secircneca o
ato de proceder antecede ao de ensinar porque a forccedila do exemplo eacute fundamental
nos ensinamentos Para os estoicos romanos242 o disciacutepulo deve se espelhar no
mestre como aponta Secircneca ldquoa via atraveacutes de conselhos eacute longa atraveacutes de
exemplos eacute curta e eficazrdquo (Ep 65) Secircneca menciona esse fato em sua juventude
quando traz agrave proacutepria lembranccedila a imagem de seu mestre Aacutetalo ldquoAinda guardo na
memoacuteria um preceito que ouvi a Aacutetalo nos tempos em que frequentava a sua escolardquo
(Ep 1083) Atraveacutes dessas recordaccedilotildees Secircneca relata sua admiraccedilatildeo e atenccedilatildeo
em ouvir seu mestre sendo o primeiro a chegar aos encontros e o uacuteltimo a sair
Nessas reuniotildees dizia Aacutetalo ldquoo docente e o discente se devem unir num propoacutesito
comumrdquo (Ep 1084) Na sequecircncia de seu raciociacutenio Secircneca propotildee a Luciacutelio
ldquoFaccedilamos com que nosso estudo transforme as palavras em atordquo (Ep 10836)
Como indica Foucault (2010a p291) ldquoa paraskueacute243 eacute a estrutura permanente dos
discursos verdadeiros ancorados no sujeito em princiacutepios de comportamentos
moralmente aceitaacuteveisrdquo Entatildeo a paraskeueacute eacute o elemento de transformaccedilatildeo do
conhecimento em praacutetica que se revela no ethos
Toda preparaccedilatildeo que Secircneca recebeu ao longo de sua trajetoacuteria contribuiu para
sua formaccedilatildeo e adesatildeo ao estoicismo Ele proacuteprio relata que em sua juventude seu
primeiro mestre foi um pitagoacuterico fato que influenciou em sua adesatildeo a alguns
princiacutepios e regras de comportamento daquele grupo
companheiro em sofrimento Nas Epiacutestolas ele se recoloca em cada uma delas em um novo conjunto de circunstacircncias num novo clima num novo contexto reflexivordquo 242
Segundo Gourinat (2013 p 221) ldquona eacutepoca romana alguns estoicos encarnavam o estoicismo de maneira exemplar a comeccedilar por Catatildeo de Utica que Secircneca propotildee como modelo de saacutebio 243
No Novo Testamento o termo grego paraskeueacute (παρασκευε) tem o sentido de preparaccedilatildeo e no evangelho de Joatildeo 1914 aparece como preparaccedilatildeo da paacutescoa - Eν δε παρασκευε του πασχα
188
Foucault ((2010a p 283) analisa a noccedilatildeo de discurso verdadeiro na Antiguidade
como um processo da asceacutetica244 que estimula a escuta e a recepccedilatildeo na aquisiccedilatildeo
dos conhecimentos e estes fornecem meios para preparaccedilatildeo e constituiccedilatildeo da
subjetividade que se revela no indiviacuteduo por meio do ethos Partindo desses
princiacutepios observa-se que Secircneca se apropriou dos fundamentos do estoicismo e
vivenciou estas experiecircncias formando seu caraacuteter de filoacutesofo estoico Nas epiacutestolas
a Luciacutelio Secircneca procura convencecirc-lo de suas proacuteprias convicccedilotildees e assim passa
a exercer o papel de mestre diante do disciacutepulo
Em Secircneca o ethos de mestre cumpre a funccedilatildeo de ensinamentos dos postulados da
filosofia natildeo como dogmas mas como direcionamento do cuidado de si Foucault
(2011 p 410) analisa a diferenccedila entre o cuidado de si em Platatildeo e os estoicos
informando que para estes ldquopor intermeacutedio da faculdade da razatildeo de decisatildeo sobre
o controle das demais faculdades que se deve realizar o cuidado de sirdquo O que se
extrai dessa afirmativa eacute a ideia de que quando o indiviacuteduo lanccedila seu olhar sobre si
mesmo permite agrave razatildeo observar julgar e controlar os proacuteprios atos E Foucault
acrescenta ldquoO que faz a grande diferenccedila entre os animais e os humanos eacute que os
animais natildeo tecircm que se ocupar consigo mesmosrdquo
A partir de sua postura de formaccedilatildeo estoica sobre o cuidado de si Secircneca procura
investir seu tempo oferecendo seus ensinamentos a Luciacutelio com o objetivo de
ajudaacute-lo a alcanccedilar uma racionalidade no modo de agir que revertesse no cuidado
de si Na epiacutestola cento e seis Secircneca ressalta seu ethos de mestre procurando
convencer Luciacutelio a encarar o destino245 de forma racional e natural ldquoA melhor
atitude a tomar eacute aceitar o que natildeo podemos alterar e conformarmos sem
resmungar com os desiacutegnios da divindade que rege o curso do universordquo (Ep 107
9) Como estrateacutegia retoacuterica Secircneca cita versos do poema de Cleantes dedicado a
Zeus e ainda informa ter feito a traduccedilatildeo imitando Ciacutecero que costumava traduzir
obras do grego para o latim Do poema Secircneca escolheu versos que abordam os
postulados estoicos sobre o determnismo fechando com o verso ldquoO destino guia
quem o segue e arrasta quem o resisterdquo (Ep 10711)
244
Lembrando que para Foucault (2010a p374) asceacutetica eacute o conjunto mais ou menos coordenado de exerciacutecios disponiacuteveis recomendados ateacute mesmo obrigatoacuterios ou utilizaacuteveis pelos indiviacuteduos em um sistema moral filosoacutefico e religiosordquo 245
Gazolla (2008 p 125) menciona que Ciacutecero defende que ldquonatildeo se deve compreender destino por meio da adivinhaccedilatildeo do tempo futuro ligado ao passado como fazem os adivinhos pois trata-se de um princiacutepio coacutesmico um modo de ser de todas as coisas e natildeo de passado e futuro de algueacutemrdquo
189
Outra demonstraccedilatildeo do ethos de mestre identificado em Secircneca eacute observado em
seus ensinamentos a Luciacutelio sobre o tema pobreza Nessa questatildeo aparentemente
Secircneca se mostra incoerente com seu proacuteprio discurso pois sendo ele rico pregava
a teacutecnica do exerciacutecio da pobreza Os estoicos eram criticados pelos paradoxos que
externamente se manifestavam em seus discursos e assim Secircneca ironiza sobre
essa criacutetica ao introduzir esse assunto em seus ensinamentos a Luciacutelio ldquoNaufraguei
antes mesmo de embarcar Natildeo vou dizer-te como isto sucedeu mas natildeo fiques
pensando que se trata de mais um paradoxo estoicordquo (Ep 871) Com esta
introduccedilatildeo Secircneca comeccedila a argumentar com Luciacutelio sobre o assunto do
antogonismo entre riqueza e pobreza Para convencer Luciacutelio do seu papel de
mestre estoico ele relata nesta mesma epiacutestola sobre uma passeio por ele
realizado na companhia de um amigo encarando as condiccedilotildees miacutenimas de
sobrevivecircncia em relaccedilatildeo ao abrigo para o repouso e a alimentaccedilatildeo reduzida a patildeo
e figo O meio de transporte normalmente realizado em carruagem foi substituiacutedo
por uma carroccedila de campo guiada por uma mula vagarosa e um carroceiro
descalccedilo Diante desta cena Secircneca confessa
Dificilmente consigo de mim proacuteprio a confissatildeo aberta que uma tal carroccedila me pertence Ainda me natildeo libertei por completo dessa vergonha de agir bem sempre que vem ao nosso encontro algum grupo mais aparantoso coro embora contrariado Isto soacute prova como aquele modo de agir que eu considero digno e louvaacutevel ainda natildeo se fixou de modo definitivo e inabalaacutevel no meu espiacuterito (Ep 874)
Essa revelaccedilatildeo de Secircneca indica que ele estaacute procurando reformular seu conceito
de riqueza e pobreza compatiacutevel com teoria e praacutetica Segundo Foucault (2010a p
413) ldquono estoicismo o olhar sobre si deve ser a prova constitutiva de si como sujeito
de verdade e deve secirc-lo pelo exerciacutecio reflexivo da meditaccedilatildeordquo
Quando Secircneca escolhe o gecircnero epistolar para comunicar princiacutepios da filosofia
estoica ele tem consciecircncia da liberdade de escrita que este gecircnero oferece Este
fato sustenta o que Foucault (2004) defende sobre a escrita de si na
correspondecircncia Desse modo Secircneca se abre diante de seu amigo Luciacutelio
mostrando um ethos de sinceridade e ausecircncia de subterfuacutegios para encarar as
proacuteprias limitaccedilotildees em atingir a posiccedilatildeo ideal de um estoico
Paul Veyne (1995 p 28) situa alguns pontos sobre o tema riqueza na Antiguidade e
expotildee que na Roma antiga as consideraccedilotildees sobre a riqueza poderiam ser vistas
sob dois modos distintos Por um lado se o entendimento por moral se refere agrave
190
atitude de algueacutem consciente do que deve ou natildeo deve ser feito entatildeo a posse de
riquezas representa uma consciecircncia sem escruacutepulos Por outro lado se por moral
se compreende um coacutedigo taacutecito de comportamento implicado nas condutas
consideradas normais entatildeo a riqueza eacute objeto de prestiacutegio e sua posse naquela
situaccedilatildeo significava uma espeacutecie de dever para os poliacuteticos em especial para os
senadores Na posiccedilatildeo de poliacutetico a riqueza para Secircneca era uma condiccedilatildeo social e
nesse contexto ele escreveu o tratado sobre os benefiacutecios e de certa forma para
ele a riqueza oferecida por um beneficiador se torna para quem recebe natildeo uma
questatildeo de aceitaccedilatildeo mas de obediecircncia Tal fato evidencia o ethos de Secircneca no
papel de poliacutetico em seu envolvimento e exerciacutecio no cumprimento de suas
responsabilidades no senado que se torna indissociaacutevel em alguns aspectos com
seu ethos de estoico na concepccedilatildeo romana
O conceito de pobreza para os estoicos tem implicaccedilotildees filosoacuteficas que compactuam
com certos postulados pitagoacutericos e ciacutenicos ou seja pobreza eacute a ausecircncia de
acuacutemulo de bens desnecessaacuterios agrave sobrevivecircncia humana Eacute nessa perspectiva que
a beneficecircncia pregada por Secircneca se situa no contexto de sua vida puacuteblica natildeo
consistindo em oferecer bens aos pobres mas aos que solicitavam ajuda e
poderiam devolver o benefiacutecio o que demonstrava atitude de reconhecimento ou
gratidatildeo no ambiente poliacutetico do patronato
No dizer de Paul Veyne (1995 p 31) no campo da poliacutetica Secircneca escrevia como
filoacutesofo e natildeo como senador lanccedilando-se em um desafio de filosofar a poliacutetica
Assim Secircneca engrandece a praacutetica da escrita da filosofia em latim246 e se reafirma
como filoacutesofo expandido sua capacidade versaacutetil de aplicar os princiacutepios filosoacuteficos
que defendia nas formas bem diversificados de gecircneros do discurso como trageacutedia
saacutetira e epistolografria Eacute no gecircnero epistolar que Secircneca encontrou o espaccedilo
apropriado para registrar suas convicccedilotildees filosoacuteficas deixando-as para a
posteridade
O retiro de Secircneca da poliacutetica vai ao encontro de seu ideal de dedicaccedilatildeo exclusiva agrave
filosofia Como informa Taacutecito (Anais XIV 53-56 ) em 62 dC oficialmente Secircneca
solicitou a Nero o seu afastamento de sua funccedilatildeo de conselheiro do imperador
246
Como observa Paul Veyne (1995 p 31) em Roma a liacutengua teacutecnica para escrita da filosofia e medicina era o grego Nesse aspecto Ciacutecero e Secircneca introduziram o uso da liacutengua latina no campo da filosofia por reconhecerem a importacircncia de valorizar a liacutengua nacional e se considerarem capazes de fazecirc-lo
191
procurando tambeacutem devolver os bens recebidos e acumulados durante sua gestatildeo
indicando que a riqueza era o suporte da vida poliacutetica e a partir de seu afastamento
ambas perdiam o sentido e utilidade em sua vida Mediante a recusa de Nero247
Secircneca permaneceu em seu posto mas mudou seu modo de vida Evitou a clientela
e as companhias do seu meio social sendo visto raramente em ambiente puacuteblico
dedicando-se quase exclusivamente agrave filosofia Somente depois do incecircndio de
Roma eacute que aconteceu o afastamento definitivo de Secircneca248
Na epiacutestola setenta e trecircs Secircneca registra seu agradecimento ao priacutencepe por
permitir-lhe a oportunidade de dedicaccedilatildeo agrave filosofia Ainda sob o efeito da produccedilatildeo
de seu proacuteprio tratado sobre os benefiacutecios Secircneca mostra um ethos de gratidatildeo
originaacuterio de sua postura de saacutebio como consequecircncia dos ensinamentos
apreendidos da filosofia
Os filoacutesofos portanto que nos seus esforccedilos com vista a uma vida consagrada agrave moral soacute tem a beneficiar com a seguranccedila social veneram como a um pai o priacutencipe a quem devem tal benesse tem mesmo para com ele uma diacutevida muito superior agrave dos que vivem no meio da agitaccedilatildeo da poliacutetica pois estes embora muito devam aos priacutencipes muito tambeacutem exigem deles (Ep 732) [] o homem sincero e puro que abandona o senado o foro e todos os demais cargos administrativos do Estado esse homem soacute sente estimativa pelo priacutencipe que lhe permite a libertaccedilatildeo apenas esse homem pode testemunhar desinteressadamente em favor do priacutencipe e ter em relaccedilatildeo a ele sem que este o saiba uma enorme diacutevida de gratidatildeo (Ep 734)
Quando Secircneca se desliga de suas obrigaccedilotildees poliacuteticas ele se recolhe em um
ambiente mais propiacutecio agrave meditaccedilatildeo e eacute nesse contexto que ele produz sua obra
247
Taacutecito (Anais XIV 56) relata que Nero deu a seguinte resposta agrave solicitaccedilatildeo de Secircneca ldquoSe me restituiacuteres as tuas propriedades ou te retirares agrave vida privada a opiniatildeo puacuteblica o atribuiraacute a avareza de minha parte ou a receios teus de crueldade minha e se principalmente merecer aplausos tua abnegaccedilatildeo natildeo seraacute decoroso para tua sabedoria receber louvores deixando em descreacutedito teu amigordquo 248
As supostas epiacutestolas trocadas entre Secircneca e Paulo satildeo datadas a partir de 58 dC ateacute 64 dC Na antepenuacuteltima epiacutestola Secircneca escreve falando sobre o incecircndio em Roma SEcircNECA PARA PAULO Saudaccedilotildees meu querido Paulo Pensa que eu natildeo estou triste e aflito por seu povo inocente ser frequentemente condenado a sofrer E tambeacutem porque todos acham que vocecirc eacute tatildeo insensiacutevel e tatildeo propenso ao crime que eacute o suposto autor de cada infortuacutenio da cidade Vamos suportar isto pacientemente e contentar-nos com o que a sorte nos traz ateacute que a suprema felicidade coloque fim aos nossos problemas Nos tempos antigos era preciso suportar os macedocircnios o filho de Felipe e depois Dario Dioniacutesio e em nossos dias temos que suportar Gaius Ceacutesar para todos eles seus desejos eram lei O fogo devastou as planiacutecies de Roma mas se os homens humildes pudessem falar sem risco nesse tempo de trevas tudo se tornaria evidente para todos Cristatildeos e judeus satildeo comumente executados como os autores do incecircndio Quem quer que seja o criminoso cujo prazer eacute o de um accedilougueiro e que se esconde atraacutes de uma mentira ele teraacute sua hora e como o melhor homem foi sacrificado por muitos assim ele jurado de morte por todos seraacute queimado com o fogo Cento e trinta e duas casas e quatro quarteirotildees foram queimados em seis dias o seacutetimo trouxe uma pausa Eu rezo para que vocecirc esteja bem irmatildeo Dado em 5 das calendas de abril Frugi e Bassus ndash cocircnsules (64 dc) Trad Marcos Viniacutecius Fernandes Miranda e Joseacute Joaquim Pereira Melo
192
Epistulae Morales Nesse espaccedilo favoraacutevel ao desenvolvimento do pensamento
estoico Secircneca eacute capaz de conciliar discurso e praacutetica de vida permitindo emergir
em seu discurso seu ethos de filoacutesofo estoico Secircneca se dirige a Luciacutelio exortando-
o a abdicar-se das prisotildees impostas pela riqueza defendendo que ldquoa pobreza limita-
se a satisfazer as necessidades mais prementesrdquo e ele ainda acrescenta ldquoo estudo
da filosofia natildeo daraacute fruto se natildeo adotares uma vida frugal ora a frugalidade natildeo
passa de pobreza voluntaacuteriardquo (Ep 175) Com esses ensinamentos a Luciacutelio
Secircneca declara que a filosofia ensina o indiviacuteduo a morrer bem
No estoicismo os aconselhamentos sobre determinismo riqueza e tempo estatildeo
interligadados em alguns pontos de uniatildeo Secircneca alerta Luciacutelio a se afastar das
miragens sedutoras da riqueza ldquoPara quecirc esquecer-me da fragilidade humana e
pocircr-me a acumular bens Para quecirc penar por eles Este dia seraacute o meu uacuteltimo dia
e se acaso o natildeo for decerto que o meu fim jaacute natildeo estaacute distanterdquo (Ep 1511)
Na fase de afastamento de Secircneca pelas implicaccedilotildees poliacuteticas em seu contexto
histoacuterico ele vive uma situaccedilatildeo de inteira convicccedilatildeo da aproximaccedilatildeo do momento da
morte A epiacutestola setenta eacute uma amostra evidente da espectativa de Secircneca em
relaccedilatildeo agrave aproximaccedilatildeo do fim de sua vida justificando o suiciacutedio como uma
alternativa racional Assim ele declara ldquomorrer mais cedo morrer mais tarde eacute
questatildeo irrelevante relevante eacute sim saber se morre-se com dignidade ou sem ela
pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo de viver sem elardquo (Ep 70 6)
Nesta mesma epiacutestola Secircneca coloca diante de Luciacutelio algumas consideraccedilotildees
sobre a melhor atitude de um condenado diante da iminente morte O conceito A
VIDA Eacute UMA VIAGEM aparece no seu argumento metafoacuterico ldquose eu escolho o navio
em que vou navegar ou a casa em que vou habitar tambeacutem ao deixar esta vida
posso escolher a forma como morrerrdquo (Ep 7011) E ainda no mesmo raciociacutenio
metafoacuterico Secircneca alega ldquoeacutes livre de regressar ao lugar de onde viesterdquo (Ep
7015)
Na constituiccedilatildeo da cenografia a partir da primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacuteclio o
tema filosoacutefico ldquoo tempordquo eacute definido como norteador na elaboraccedilatildeo dos conselhos
Ligado ao tempo as instruccedilotildees de Secircneca como mestre tomam como base a
sabedoria que eacute adquirida atraveacutes da filosofia Saber viver eacute preparar-se para morrer
e o tempo precisa ser aproveitado e valorizado Eacute nessa perspectiva que Foucault
aponta que a meditaccedilatildeo sobre a morte eacute um exerciacutecio que permite ao indiviacuteduo
193
perceber a si mesmo A partir da expectativa da iminecircncia da morte cada dia ou
momento deve ser pensado como se fosse o uacuteltimo ldquoPortanto o pensamento sobre
a morte eacute que permite a retrospecccedilatildeo e a memorizaccedilatildeo valorativa da vidardquo
(FOUCAULT 2010a p 430) Portanto eacute desse lugar enunciativo que Secircneca
produz seu discurso optanto pelo gecircnero epistolar para atraveacutes deste tanto abrir-se
diante do outro revelando seu ethos de filoacutesofo estoico como tambeacutem compartilhar
com o outro os princiacutepios da filosofia estoica colocando-se como mestre que
tambeacutem procura ser coerente com seu discurso e praacutetica conforme expectativas
impostas pelo proacuteprio ideal do cidadatildeo romano
194
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DA PARTE II
Nesta segunda parte da tese o propoacutesito de enfocar a cena geneacuterica da enunciaccedilatildeo
eacute relevante por evidenciar o gecircnero epistolar como definidor do discurso
desenvolvido atraveacutes das epiacutestolas de Paulo e de Secircneca O gecircnero do discurso
cenografia ethos pathos e logos satildeo elementos indissociaacuteveis da cena geneacuterica no
ato enunciativo O posicionamento ocupado pelos enunciadores eacute o meio de
interligaccedilatildeo que toma como base o discurso constituinte
O gecircnero epistolar como concebido na Antiguidade era abrangente no sentido de
variedades no seu uso como epiacutestola filosoacutefica epiacutestola de aconselhamento
epiacutestola de consolo epiacutestola documental entre outros Como visto o gecircnero
epistolar poderia ser diversificado na sua forma de conteuacutedo e apresentaccedilatildeo mas a
sua designaccedilatildeo era mantida como epiacutestola Assim a discussatildeo sobre diferenccedilas
entre carta e epiacutestola na Antiguidade se torna inadequada visto que o termo carta
naquele momento histoacuterico natildeo funcionava como sinocircnimo de epiacutestola
Para esclarecer como o uso do termo carta adquiriu um domiacutenio semacircntico entre os
falantes Orlandi (2005 p 104) analisa o tiacutetulo do documento249 Carta da Terra e os
possiacuteveis significados que acarretam essa escolha Esta autora parte de
pressupostos teoacutericos de que ldquoas palavras natildeo significam por si mas na relaccedilatildeo com
a exterioridade que inclui os sujeitos que as falam a memoacuteria discursiva e as
condiccedilotildees de produccedilatildeordquo A primeira indagaccedilatildeo eacute sobre o uso do termo Carta ao
inveacutes de Declaraccedilatildeo de Direitos Tratado de Intenccedilotildees entre outras opccedilotildees
Primeiramente o sentido de carta migra do discurso poliacutetico global para uma
situaccedilatildeo mais privada e familiar de correspondecircncia fortalecendo a ideia de que o
mundo eacute uma grande famiacutelia Em segundo lugar o termo carta remete agrave cartografia
mapa sinalizando a ideia de territoacuterio Nessas conjecturas Orlandi (2005 p 105)
aponta que ldquoo discurso resulta da inscriccedilatildeo da liacutengua na histoacuteriardquo e do termo carta
ldquoressoam efeitos de sentidos submetidos a uma filiaccedilatildeo de falas que jaacute se
249 Carta da Terra (Earth Charter) eacute resultado de um diaacutelogo mundial que teve seus primeiros esboccedilos no Foacuterum Mundial da Eco 92 no Rio de Janeiro A Carta da Terra teve seu lanccedilamento oficial no palaacutecio da Paz em Haia no dia 29 de junho de 2000 O grande objetivo do conteuacutedo do documento eacute o da criaccedilatildeo de um mundo sustentaacutevel Disponiacutevel em
httpwww2camaralegbrresponsabilidade-socialecocamaraarquivosCARTAdaTERRA
195
estabilizaram como sendo as que organizam as outrasrdquo Desse modo natildeo haacute como
enunciar uma palavra dando a ela o sentido que se deseja pois ldquoelas significam pelo
jogo de relaccedilotildees de forccedila e de sentido (memoacuteria do dizer) no imaginaacuterio em que
estatildeo imersasrdquo Esta anaacutelise de Orlandi pode ser aplicada ao fenocircmeno da
insistecircncia do uso do termo carta ao inveacutes de epiacutestola mesmo pensando em textos
da Antiguidade Assim as colocaccedilotildees sobre o uso do termo carta apontam para
questotildees de linguagem que satildeo influenciadas pelo jogo de forccedilas de sentido e
memoacuteria do dizer como se nota tambeacutem na tentativa de transpor o uso atual do
termo carta para o de epiacutestola na Antiguidade
A discussatildeo sobre o uso dos termos carta e epiacutestola como sinocircnimo no contexto da
Antiguidade natildeo eacute simplesmente uma questatildeo de vocabulaacuterio mas inclui tambeacutem a
concepccedilatildeo de gecircnero epistolograacutefico em sua funccedilatildeo de uso abrangente na
Antiguidade O que se observa eacute que as epiacutestolas de Paulo e de Secircneca
enquadram-se no gecircnero epistolograacutefico mas se diversificam de acordo com os
subconjuntos que compotildeem o gecircnero como um todo Desse modo Paulo estabelece
sua correspondecircncia a partir do gecircnero epistolar de conselhos e Secircneca o gecircnero
epistolar filosoacutefico Vale destacar que estes gecircneros escolhidos por estes autores
natildeo mantecircm uma forma exclusiva mas se abrem para abrigar outros subconjuntos
de gecircneros Isto indica que as epiacutestolas de Paulo natildeo se limitam agraves caracteriacutesticas
do aconselhamento mas se dispotildeem para aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos
religiosos culturais e assim por diante O tom de aconselhamento eacute a forma que se
expande como base para desenvolver os propoacutesitos dos ensinamentos paulinos via
epiacutestola
Segundo Inwood (2007 p136) as epiacutestolas filosoacuteficas de Secircneca estatildeo organizadas
em forma de coleccedilatildeo fato este que lhe permite uma variedade na totalidade de
produccedilatildeo epistolar no conjunto da obra Algumas epiacutestolas satildeo mais doutrinaacuterias e
teacutecnicas algumas satildeo informais ou mesmo pessoais outras satildeo mais naturais do
que artificiais Mesmo que a coleccedilatildeo das Epistolae Morales seja formada por
epiacutestolas que apresentam diferentes propoacutesitos a constituiccedilatildeo da cenografia na
epiacutestola introdutoacuteria corrobora para a manutenccedilatildeo do gecircnero epistolar filosoacutefico
No discurso de Paulo a escolha do gecircnero epistolar direcionado pela cenografia de
um manual de aconselhamento tem como base o discurso constituinte religioso Por
um lado o judaiacutesmo eacute influenciado pela cultura heleniacutestica tanto na esfera da
196
filosofia quanto no campo da literatura Por outro lado as tradiccedilotildees judaicas250 satildeo
mantidas como tambeacutem relata Flaacutevio Josefo em Histoacuteria dos Hebreus Em sua
correspondecircncia Paulo procura harmonizar valores da cultura judaica e heleniacutestica
somando-os ao seu novo modo de conceber seu proacuteprio lugar no discurso religioso
a partir de sua conversatildeo A formaccedilatildeo educativa de Paulo na convergecircncia do
mundo oriental e ocidental serviu de base para o desempenho de sua missatildeo e seu
relacionamento com as comunidades cristatildes que ele proacuteprio ajudou organizar O
papel de Paulo como remetente de suas epiacutestolas agrave igreja de Corinto permite-lhe
demonstrar seu ethos de apoacutestolo251 missionaacuterio e conselheiro
Paralelo a Paulo Secircneca em sua carreira de escritor transita entre dois discursos
constituintes o literaacuterio e o filosoacutefico A influecircncia da cultura heleniacutestica em Secircneca
se daacute em vista de sua proacutepria decisatildeo de escolha pelo estoicismo A grande parte
dos liacutederes e disciacutepulos da escola estoica eacute de origem oriental252 Decerto esse fato
contribui para o intercacircmbio entre cultura oriental e ocidental visto que a formaccedilatildeo
intelectual desses liacutederes tomava como base a filosofia socraacutetica Quando Secircneca
escreve as trageacutedias ele lanccedila matildeo da cultura grega para construccedilatildeo do enredo e da
cultura heleniacutestica para a aplicaccedilatildeo moral de acordo com os princiacutepios da filosofia
estoica
Secircneca procura dar sua contribuiccedilatildeo agrave poliacutetica do impeacuterio romano pelo prisma da
filosofia estoica Segundo Griffin (2013 p 14) as duas obras de Secircneca De
beneficiis e De clementia marcam afinidades com o desenvolvimento da imagem
idealizada do priacutencipe
Nos uacuteltimos anos de sua vida Secircneca dedicou-se agrave filosofia e decidiu pela inclusatildeo
do gecircnero epistolar como meio mais favoraacutevel para expressatildeo de seu pensamento
e discussotildees de questotildees eacuteticas
250
Paulo escrevendo aos gaacutelatas diz E na minha naccedilatildeo excedia em judaiacutesmo a muitos da minha idade sendo extremamente zeloso das tradiccedilotildees de meus pais (Gaacutelatas 114) 251
Natildeo sou eu apoacutestolo Natildeo sou livre Natildeo vi eu a Jesus Cristo Senhor nosso Natildeo sois voacutes a minha obra no Senhor Se eu natildeo sou apoacutestolo para os outros ao menos o sou para voacutes porque voacutes sois o selo do meu apostolado no Senhor (1 Coriacutentios 912) Porque aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisatildeo esse operou tambeacutem em mim com eficaacutecia para com os gentios (Gaacutelatas 28) 251
Zenatildeo era originaacuterio da Feniacutecia Crisipo Antiacutepater e Aquedemo eram de Tarso Cleantes era da Aacutesia Menor Dioacutegenes da Babilotildenia e Apolodoro da Caldeia
197
Na segunda parte desta pesquisa nota-se que a cena geneacuterica na enunciaccedilatildeo eacute
promovida pelo gecircnero do discurso e cenografia que incorporam os trecircs elementos
do discurso ethos pathos e logos A anaacutelise do ethos de Secircneca e de Paulo
contribui para identificaccedilatildeo do posicionamento discursivo que cada um deles ocupa
no discurso A partir da posiccedilatildeo de enunciador constituiacuteda na enunciaccedilatildeo o discurso
eacute construiacutedo com a finalidade de atingir as emoccedilotildees do co-enunciador como
parceiro no ato enunciativo A cenografia eacute instituiacuteda em funccedilatildeo do pathos pois o
texto no quadro da enunciaccedilatildeo eacute voltado para o co-enunciador que deve ser
mobilizado para que haja adesatildeo aos propoacutesitos do discurso
Na terceira parte que se segue o destaque eacute para o logos concebido a partir do
modo como o discurso se desenvolve na cena enunciativa pela participaccedilatildeo do
ethos que se dirige ao pathos Os corpora253 delimitados satildeo analisados com a
finalidade de observar o funcionamento dos toacutepoi e argumentos retoacutericos nas
epiacutestolas de Secircneca e Paulo e a utilizaccedilatildeo destes no desenvolvimento dos temas
que satildeo abordados a partir da construccedilatildeo da cenografia
253
Aleacutem das seleccedilotildees dos corpora de anaacutelise que identifcam as epiacutestolas que contecircm marcas do toacutepos ldquofalar francordquo exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas como argumentos retoacutericos temas ldquoo tempordquo e ldquoo amorrdquo outras epistolas da coleccedilatildeo de Secircneca e de Paulo servem como fontes para o tratamento de diferentes questotildees
198
PARTE III
1 CONSIDERACcedilOtildeES INICIAIS SOBRE A CONSTITUICcedilAtildeO DO DISCURSO NAS
EPIacuteSTOLAS DE SEcircNECA E PAULO
O objetivo mais central na terceira parte da pesquisa aqui desenvolvida tem como
foco as anaacutelises que tomam como base os textos das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio
e de Paulo agrave igreja de Corinto concebidos como o logos ou seja a manifestaccedilatildeo da
organizaccedilatildeo do pensamento por meio do discurso O propoacutesito impulsionador eacute
observar alguma viabilidade de apreensatildeo da construccedilatildeo de sentidos que se
verificam a partir do posicionamento discursivo de cada um desses autores em foco
na determinaccedilatildeo do uso do toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo como direcionador da
construccedilatildeo do discurso Os recursos argumentativos retirados de um tipo de arquivo
que funciona como um lugar comum no contexto histoacuterico-social do primeiro seacuteculo
dC reforccedilam a organizaccedilatildeo entimemaacutetica do discurso Busca-se observar o modo
como as escolhas desses recursos retoacutericos satildeo determinadas pelo acesso aos
discursos constituintes filosoacutefico religioso e literaacuterio Por um lado a constataccedilatildeo de
entrecruzamento entre estes discursos nas epiacutestolas de Secircneca e de Paulo
possibilita a verificaccedilatildeo da influecircncia da filosofia herdada dos gregos e sua releitura
na cultura heleniacutestica unindo o pensamento oriental ao ocidental Por outro lado a
identificaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo no desenvolvimento do discurso e a verificaccedilatildeo
do uso dos argumentos retoacutericos na composiccedilatildeo das epiacutestolas permitem visualizar
possiacuteveis identificaccedilotildees que podem suscitar um efeito de aproximaccedilatildeo ou
afastamento entre eles O posicionamento discursivo que cada um ocupa no
processo enunciativo se reveste da influecircncia exercida pelo discurso constituinte que
caracteriza e distingue a cena enunciativa em cada gecircnero epistolograacutefico de
suporte do discurso de cada um dos autores
A visita aos lugares comuns que indicam as escolhas de Secircneca e de Paulo em
seus discursos tem em vista dois roteiros O primeiro roteiro leva em conta a nova
roupagem que os romanos estabelecem para o sentido de lugar comum a partir do
periacuteodo Heleniacutestico como um reservatoacuterio de temas disponiacuteveis a serem
reelaborados de acordo com a finalidade de quem se propotildee a fazer uso destes A
partir dessa releitura sobre os toacutepoi autores como Curtius (1993) e Thom (2003)
199
oferecem algumas contribuiccedilotildees estendendo a classificaccedilatildeo dos toacutepicos retoacutericos
para o campo da filosofia e literatura O segundo roteiro elege como guia os estudos
aristoteacutelicos na concepccedilatildeo de argumentos retoacutericos no campo da linguagem que
caracterizam a funccedilatildeo argumentativa de determinados recursos retoacutericos
Na obra Retoacuterica Aristoacuteteles inicia seu manual instrutivo estabelecendo o significado
e conceito de retoacuterica expandindo a ideia de persuasatildeo nesse campo Ele ressalta
que seu interesse primordial estaacute focado nos meios de prova no discurso por serem
estes menos valorizados e negligenciados pelos autores da arte retoacuterica de seu
tempo (Ret I 2 1356a) Aristoacuteteles recolheu dados tambeacutem das experiecircncias dos
retoacutericos que o antecederam argumentando que os tratados sobre retoacuterica jaacute
produzidos natildeo contemplavam questotildees importantes como o tratamento de
entimemas254 e a partir de entatildeo organizou todo seu escopo teoacuterico apresentando
uma forma mais pragmaacutetica para identificaccedilatildeo do funcionamento da retoacuterica
Aristoacuteteles se preocupou em definir o papel da retoacuterica em contraponto ao da
dialeacutetica delimitando a funccedilatildeo e atuaccedilatildeo de cada uma no campo da persuasatildeo
Assim ele sustenta que a persuasatildeo natildeo eacute exatamente o foco de interesse da
retoacuterica mas seu objeto de atenccedilatildeo eacute a identificaccedilatildeo de meios possiacuteveis para o
acontecimento do fenocircmeno da persuasatildeo no discurso (Ret I 2 1355b)
Nas obras Retoacuterica e Toacutepicos Aristoacuteteles dispotildee retoacuterica e dialeacutetica em um mesmo
patamar de importacircncia mas com suas funccedilotildees bem demarcadas Sobre esta
questatildeo Segurado e Campos faz a seguinte observaccedilatildeo
Nestes termos e conforme Aristoacuteteles natildeo ignora a dialeacutectica torna-se uma disciplina afim da retoacuterica nos seus objectivos jaacute que ambas tecircm por finalidade mais a laquoopiniatildeoraquo (δοξα) do que o laquosaberraquo (επιστημη) mas ao mesmo tempo distinguem-se pelo seu modo de actuar na medida em que uma pratica o diaacutelogo e a outra o discurso e mesmo que ambas recorram ao uso dos laquolugares-comunsraquo (τοπόι) eacute diferente o que para cada uma significam esses lugares (SEGURADO E CAMPOS 2007 p 88)
Essa dualidade retoacuterica e dialeacutetica aparece tambeacutem na epiacutestola oitenta e nove de
Secircneca a Luciacutelio em sua exposiccedilatildeo sobre um contraponto entre filosofia e
254
Em sua nota explicativa da traduccedilatildeo do Livro da Retoacuterica Alexandre Jr (2005 p 90) informa que entimema eacute um silogismo retoacuterico isto eacute a forma dedutiva de argumentaccedilatildeo retoacuterica que tem no paradigma a sua forma indutiva Assim o entimema se torna mais viaacutevel no campo da retoacuterica por ser mais econocircmico em termos de linguagem visto que representa uma siacutentese do silogismo Na afirmativa de Descartes ldquoPenso logo existordquo estaacute contido um entimema que resume o silogismo eu penso aquele que pensa existe logo eu existo
200
sabedoria Nessa explanaccedilatildeo Secircneca faz uma retrospectiva sobre algumas
concepccedilotildees de filosofia destacando a triparticcedilatildeo eacutetica fiacutesica e loacutegica255
Na sequecircncia de suas ideias Secircneca resume sua abordagem sobre filosofia em
dois campos filosofia natural e filosofia racional Nesses termos a filosofia natural
divide-se em duas partes o estudo dos seres corpoacutereos e o estudo dos seres
incorpoacutereos256 Quanto agrave filosofia racional Secircneca assim argumenta
Resta-me indicar a divisatildeo da filosofia racional Todo discurso ou eacute contiacutenuo ou eacute dividido por dois interlocutores em sistema de pergunta e resposta Ao estudo deste segundo tipo costuma chamar-se διαλεκτική (dialektikecirc) ao do primeiro ρητορική (rhetorikecirc) A ρητορική ocupa-se das palavras das ideias e da estrutura do discurso a διαλεκτική divide-se em duas partes os termos e os significados isto eacute os conceitos que queremos exprimir e os vocaacutebulos pelos quais os exprimimos (Ep 8917)
Secircneca concorda com alguns filoacutesofos que o antecederam a respeito de
determinadas concepccedilotildees de retoacuterica e dialeacutetica apontando que cada uma destas
tem uma funccedilatildeo especiacutefica na construccedilatildeo do discurso e ao mesmo tempo as situa
no campo da filosofia Secircneca demonstra rejeitar dos proacuteprios estoicos que o
antecederam257 certos aspectos da eloquecircncia que na epiacutestola 752 ele denomina
de artifiacutecios dos oradores Nessa mesma perspectiva Paulo coloca sua posiccedilatildeo
diante dos destinataacuterios de suas epiacutestolas procurando afastar-se da ideia de
eloquecircncia e assim coloca sua defesa ldquoEu mesmo quando fui ter convosco irmatildeos
natildeo me apresentei com o prestiacutegio da palavra ou da sabedoria258 para vos anunciar
255
Como informa Reale (1994a p 107) a triparticcedilatildeo na filosofia foi feita por Xenoacutecrates tornando-se o eixo de todo o pensamento da era heleniacutestica Xenoacutecrates (406-314 aC) era disciacutepulo de Platatildeo e foi seu segundo sucessor na academia 256
Segundo Gazolla (1999 p 14) a noccedilatildeo de incorpoacutereo representa a reflexatildeo dogmaacutetica sobre a natureza e eacute ponto baacutesico para a stoa O poacutertico resolveu inovar na ontologia quando nomeou os quatro incorpoacutereos o tempo o lugar o vazio e o exprimiacutevel como ldquoquase-seresrdquo em contraste com os corpoacutereos seres reais agentes-pacientes 257
Alexandre Jr (2005 p30) comenta que a definiccedilatildeo aristoteacutelica de retoacuterica entra bem cedo em concorrecircncia com a de Crisipo Cleantes e os demais que contemplam a retoacuterica como ars bene dicendi Estes filosoacutefos mencionados tendem para a composiccedilatildeo esteacutetico-estiliacutestica do discurso em detrimento da eficaacutecia argumentativa 258
Segundo Bird (2008 p377-379) [hellip] however when Paul says that he did not use lsquoeloquence or superior wisdomrsquo in his proclamation (1 Cor 21) what he probably meant is that he did not use lsquofloweryrsquo or lsquoornamentedrsquo rhetoric in his preaching the type that was so prized and esteemed by the Corinthians That way all attention would focus on the message and not the messenger Bruce Winter contends that what Paul rejects here is sophistry or the use of oratory in preaching that draws attention to the rhetorical prowess of the messenger rather than drawing attention to the content of the message [hellip] Even so primacy should be given to the epistolographic nature of Paulrsquos writings with rhetorical categories being employed only secondarily to supplement their potential effect as a form of persuasive discourse (No entanto quando Paulo diz que natildeo usou eloquumlecircncia ou sabedoria superior em sua proclamaccedilatildeo (1Cor 21) o que ele provavelmente quis dizer eacute que ele natildeo usou retoacuterica florida ou ornamentada em sua pregaccedilatildeo o modo tatildeo estimado e apreciado pelos coriacutentios Dessa forma toda a atenccedilatildeo se concentraria na mensagem e natildeo no mensageiro Bruce
201
o ministeacuterio de Deusrdquo (1Cor 21) Segundo Alexandre Jr (2005 p 45) eacute relevante
observar que Aristoacuteteles considera o valor do estilo no discurso mas no sentido de
que seu funcionamento deve estar voltado para o auxiacutelio da argumentaccedilatildeo e natildeo
necessariamente para teacutecnicas de ornamentaccedilatildeo
Quintiliano na obra Institutio Oratoria (II XV15-21) remonta agraves diferentes definiccedilotildees
de retoacuterica inclusive esta de Aristoacuteteles Ele desenvolve uma seacuterie de argumentos
quanto agraves concepccedilotildees de retoacuterica como persuasatildeo e concluiu que nessa
perspectiva uma sobrecarga de responsabilidade recai sobre o orador Segundo
Quintiliano a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles que coloca a retoacuterica na funccedilatildeo da descoberta
dos meios adequados agrave persuasatildeo no discurso ainda oferece um problema maior
pois ldquoesta definiccedilatildeo tem o defeito de se restringir o papel do orador agrave invenccedilatildeo pois
sem elocuccedilatildeo natildeo haacute discursordquo (Inst Or II 1514) Quintiliano faz uma retrospectiva
agraves demais conceituaccedilotildees de retoacuterica mencionando inclusive as posiccedilotildees de Platatildeo
em Goacutergias e Fedro a de Isoacutecrates no campo da filosofia e a de Ciacutecero como
scientia civilis (ciecircncia de estado ou poliacutetica) Por fim Quintiliano (Inst Or V 10 54)
expressa sua opiniatildeo mantendo seu conceito rhetorice est bene dicendi scientia (a
retoacuterica eacute a ciecircncia de bem dizer) A este conceito ele acrescenta que a virtude do
discurso estaacute diretamente ligada agraves qualidades do orador ou seja o preparo
intelectual e conhecimento do assunto coerentes com o modo de vida do emissor do
discurso Quintiliano interliga a sua concepccedilatildeo de retoacuterica agrave dos estoicos259 ldquoa
ciecircncia de falar com propriedaderdquo260 Quanto esta posiccedilatildeo de Quintiliano Secircneca
anteriormente jaacute se mostrava defensor da virtude do orador como requisito para sua
proacutepria credibilidade no discurso O conselho dado a Luciacutelio expressa essa ideia da
teoria ser condizente com a praacutetica
O nosso objetivo uacuteltimo deve ser este dizer o que sentimos sentir o que dizemos isto eacute pormos a nossa vida de acordo com as nossas palavras Imagina um mestre qualquer se a impressatildeo que tu sentes contemplando as suas accedilotildees eacute idecircntica agrave que tens ouvindo o seu discurso esse mestre atingiu o seu propoacutesito Observemos a qualidade dos seus atos a fluidez do seu discurso entre ambos a mais perfeita unidade (Ep 754)
Winter afirma que o que Paulo rejeita aqui eacute o sofisma ou o uso da oratoacuteria na pregaccedilatildeo que chama a atenccedilatildeo para as proezas retoacutericas do mensageiro em vez de chamar a atenccedilatildeo para o conteuacutedo da mensagem [] Mesmo assim a primazia deve ser dada agrave natureza epistolograacutefica dos escritos de Paulo com categorias retoacutericas sendo empregadas apenas secundariamente para complementar seu efeito potencial como uma forma de discurso persuasivo) 259
Alexandre Jr (2005 30) informa que a concepccedilatildeo da retoacuterica como falar bem eacute identifacada nos estoicos Criacutesipo e Cleante 260
Traduccedilatildeo de Antonio Fidalgo
202
Quintiliano assume tambeacutem essa posiccedilatildeo estoica a respeito da retoacuterica e manteacutem
certo distanciamento da postura de Ciacutecero em relaccedilatildeo ao objetivo da retoacuterica como
persuasatildeo argumentando que o dinheiro tambeacutem persuade assim como a
autoridade ou dignidade do orador (II XV6) Ao relacionar os nomes de escritores
gregos e romanos ao longo da Antiguidade Quintiliano apresenta uma siacutentese sobre
cada um e se posiciona apontando a identificaccedilatildeo de Ciacutecero com Platatildeo
Dos filoacutesofos dos quais Ciacutecero confessa haver buscado muitiacutessimo de sua eloquecircncia quem duvida de que Platatildeo foi o mais importante seja pela sua agudez de raciociacutenio seja por sua capacidade de eloquecircncia que eacute divina e quase homeacuterica Ele se eleva muito acima da conversaccedilatildeo linear a que os gregos chamaram de ldquolinguagem pedestrerdquo de tal maneira que a mim pareccedila inspirado natildeo pelo talento de um ser humano mas por um oraacuteculo deacutelfico (Inst Or X 1 81)
Na verdade pode-se avaliar que Ciacutecero soube aproveitar dos benefiacutecios das
contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles quanto agrave retoacuterica as de Platatildeo no campo da dialeacutetica e
de outros gregos tambeacutem Ele explorou dessas fontes o que melhor poderia ser
aplicaacutevel ao seu proacuteprio gosto e estilo de acordo com o gecircnero de discurso
judiciaacuterio ao qual ele se dedicou como orador e no campo da prosa literaacuteria latina
em sua faceta de escritor de tratados e epiacutestolas
Essa retrospectiva sucinta que faz remissatildeo a alguns conceitos de retoacuterica tem
como propoacutesito o de justificar a escolha de contribuiccedilotildees de Aristoacuteteles como base
para a anaacutelise dos argumentos retoacutericos no corpus delimitado nesta pesquisa Pelas
colocaccedilotildees de Quintiliano nota-se que a retoacuterica estoica natildeo compactua em alguns
pontos com a aristoteacutelica Tomando certa distacircncia dessas avaliaccedilotildees de Quintiliano
fica evidente que algumas contribuiccedilotildees herdadas de Aristoacuteteles quanto aos
recursos de linguagem que promovem a argumentaccedilatildeo no discurso podem servir a
qualquer gecircnero discursivo Por um lado Aristoacuteteles defende que o raciociacutenio
dedutivo na expressatildeo da linguagem em forma de entimemas se efetua por meio
de afirmativas e postulados sendo produtivo na linguagem pela economia na
exposiccedilatildeo de ideias O entimema eacute um silogismo reduzido pois evita a foacutermula
silogiacutestica de premissa maior premissa menor e conclusatildeo As maacuteximas e os
aforismos se enquadram na forma entimemaacutetica pois quando Descartes faz a
declaraccedilatildeo ldquopenso logo existordquo o entimema foi suficiente para a expressatildeo da sua
ideia No entimema uma ou mais partes do silogismo podem ser omitidas pois as
restantes satildeo deduzidas no proacuteprio discurso Por outro lado o exemplo em toda a
sua dimensatildeo clarifica o discurso por se efetivar por meio do raciociacutenio indutivo de
203
forma convincente pela forccedila do testemunho da ligaccedilatildeo de fatos seja no acircmbito da
historicidade ou mesmo da ficcionalidade O raciociacutenio dedutivo parte de uma ideia
geral de um todo para uma aplicaccedilatildeo particular como o caso do uso das
metaacuteforas O exemplo estaacute no campo da induccedilatildeo porque parte de um caso particular
para aplicaccedilotildees gerais nos ensinamentos Aleacutem dessas vantagens como instruccedilotildees
na organizaccedilatildeo do discurso leva-se em conta tambeacutem que Ariacutestoacuteteles assume uma
posiccedilatildeo mais neutra em relaccedilatildeo ao sistema retoacuterico delegando ao orador a
responsabilidade do uso dos recursos da persuasatildeo Assim abre-se uma opccedilatildeo
para os estudos atuais da linguagem como oportunidade de se olhar os textos da
Antiguidade pelo vieacutes da retoacuterica aristoteacutelica de acordo com as proposiccedilotildees da
anaacutelise do discurso de base enunciativa
Para determinar um corpus de anaacutelise foi necessaacuteria uma leitura preacutevia que
delimitasse um recorte que permitisse a apreensatildeo de algumas ideias contidas nas
epiacutestolas de Secircneca e Paulo O ponto inicial resulta da verificaccedilatildeo da construccedilatildeo da
cenografia que se constitui a partir da introduccedilatildeo da produccedilatildeo das epiacutestolas em
questatildeo em que gecircnero do discurso (logos) enunciador (ethos)261 e co-enunciador
(pathos) estatildeo imbricados na trama enunciativa
Nesta terceira parte torna-se fundamental o aproveitamento da reuniatildeo dos
conteuacutedos que jaacute foram expostos nas partes anteriores como embasamento teoacuterico
e contextual para auxiliar nos procedimentos de anaacutelise Na segunda parte jaacute foi
identificada a cenografia e tambeacutem os dois elementos do discurso ethos e pathos
Mediante os resultados obtidos desses dois meios de prova na elaboraccedilatildeo do
discurso congrega-se nesta terceira parte a anaacutelise do desempenho do logos como
o terceiro elemento dos meios de prova De acordo com a meta planejada tendo em
vista os objetivos propostos no introito deste trabalho intensifica-se nesta terceira
parte o interesse em observar como em suas epiacutestolas Secircneca toma como base o
discurso filosoacutefico valendo-se tanto do discurso literaacuterio como do religioso Indaga-
se tambeacutem como Paulo tendo como referecircncia o discurso religioso deixa
transparecer que em suas epiacutestolas eacute perceptiacutevel o atravessamento do discurso
261
Como jaacute foi mencionado anteriormente (p 93 nota 88) a palavra ethos na anaacutelise do discurso de base enunciativa natildeo eacute acentuada por esta ser um junccedilatildeo de dois termos usados distintamente no grego claacutessico Em nota Maingueneau (2008a p 55) observa que o ldquoethos potildee problemas de ortografia se quisermos respeitar as convenccedilotildees usuais em mateacuteria de palavras gregas teriacuteamos de escrevecirc-la com um ecirc mas muitos usam um simples e o que tambeacutem faccedilo aquirdquo Seguindo a mesma praacutetica de natildeo acentuar a palavra ethos o mesmo seraacute feito em relaccedilatildeo ao termos pathos e logos
204
filosoacutefico e literaacuterio Enfim a recorrecircncia aos trecircs discursos262 identificados eacute de uso
comum entre os dois autores estudados Resta observar de que forma esses
discursos constituintes no seu conjunto promovem a discursividade na cena
enunciativa das epiacutestolas de cada um desses enunciadores abordados
Eacute oportuno registrar que esta terceira parte da pesquisa se firma na concepccedilatildeo de
retoacuterica estruturada por Aristoacuteteles visto que esta serve tambeacutem de fonte para as
construccedilotildees teoacutericas da retoacuterica latina nova retoacuterica como tambeacutem da anaacutelise do
discurso francesa de base enunciativa Como jaacute mencionado na primeira parte
desta pesquisa ressalta-se a contribuiccedilatildeo de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005 p
6) na composiccedilatildeo teoacuterica que funda a nova retoacuterica partindo de formulaccedilotildees
herdadas de Aristoacuteteles amplificando a funccedilatildeo do auditoacuterio na oratoacuteria para a funccedilatildeo
do leitor na escrita Este eacute um aspecto primordial nos estudos de Maingueneau
(2005 p 69) ao instituir em suas pesquisas a importacircncia da identificaccedilatildeo do ethos
na figura do enunciador no discurso Esta elaboraccedilatildeo teoacuterica de Maingueneau se
fundamenta nos postulados em que Aristoacuteteles (Ret I 2 1356a) situa suas
instruccedilotildees no campo da retoacuterica apontando os trecircs elementos constitutivos da
enunciaccedilatildeo referentes ao caraacuteter do enunciador (ecircthos) as emoccedilotildees que o
enunciador desperta no co-enunciador (paacutethos) e o argumentos retoacutericos
desenvolvidos no discurso (loacutegos)
Depois de identificadas as cenografias que delineiam o direcionamento dos
discursos de Secircneca e de Paulo produzidos atraveacutes dos textos de suas epiacutestolas
observou-se que a partir destas os temas identificados constituem-se como
alavancas que direcionam a argumentaccedilatildeo na cena enunciativa Na organizaccedilatildeo dos
discursos a retoacuterica se manifesta atraveacutes de marcas linguiacutesticas que podem ser
observadas nos textos caracterizando as fontes de lugares comuns de onde Secircneca
e Paulo retiram os meios de argumentaccedilatildeo Os exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas satildeo
auxiliares na estrateacutegia argumentativa pois estes recursos fortalecem os entimemas
ou seja as premissas afirmativas e opiniotildees satildeo sustentadas pelo uso desses
262
Mircea Eliacuteade (1992 p5) expotildee que o sagrado na Antiguidade pertence ao campo da religiatildeo e Teofrasto (372-287) que sucedeu a Aristoacuteteles na direccedilatildeo do Liceu pode ser considerado o primeiro historiador grego das religiotildees segundo Dioacutegenes Laeacutercio (V 48) Teofrasto compocircs uma histoacuteria das religiotildees em seis livros O discurso religioso tambeacutem eacute presente na filosofia estoica e desse modo o discurso de Secircneca eacute atravessado pelos trecircs discursos constituintes filosoacutefico literaacuterio e religioso O mesmo sucede no discurso de Paulo em relaccedilatildeo ao atravessamento dos trecircs discursos religioso filosoacutefico e literaacuterio
205
recursos argumentativos De acordo com as contribuiccedilotildees de Thom (2003) os toacutepoi
podem ser classificados em tipos designados como toacutepos retoacuterico toacutepos literaacuterio e
toacutepos filosoacutefico-moral Os toacutepicos retoacutericos satildeo identificados como meios de
argumentaccedilatildeo na construccedilatildeo entimemaacutetica do discurso No desenvolvimento dos
temas tempo e amor nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo se feita uma anaacutelise
detalhada quanto aos toacutepoi de acordo com a classificaccedilatildeo de Thom podem ser
distinguidos toacutepos retoacuterico e toacutepos filosoacutefico Nesta tese natildeo haacute um propoacutesito de
anaacutelise de todas as ocorrecircncias dos toacutepoi nos temas ldquotempo e amorrdquo desenvolvidos
nas epiacutestolas de Secircneca e Paulo mas satildeo delimitados trecircs toacutepicos de cada tema e
identificados alguns toacutepoi que norteiam as argumentaccedilotildees nas abordagens do tema
geral
O toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo contribui para a organizaccedilatildeo e direcionamento
do discurso pois eacute instaurado a partir da cenografia constituiacuteda nas epiacutestolas dos
autores em pauta Ainda os temas filosoacuteficos identificados nas epiacutestolas distribuem-
se em uma seacuterie de subtemas como mostrado nos quadros 2 e 3 nas p 26 e 27
apresentado na introduccedilatildeo As divisotildees de cada tema corroboram para construccedilatildeo
de sentidos do tema geral funcionando como toacutepicos Os recursos retoacutericos e o
toacutepos ldquofalar francordquo permeiam as epiacutestolas de Secircneca e Paulo conforme os discursos
constituintes que os direcionam adquirindo diferentes significados na funccedilatildeo
argumentativa no gecircnero epistolar
A identificaccedilatildeo e anaacutelise deste toacutepos no corpus selecionado integra o capiacutetulo 2
desta terceira parte da tese como distinccedilatildeo para o modo como Secircneca e Paulo
desenvolvem o gecircnero epistolar segundo as anaacutelises de Foucault relacionadas ao
tema parresiacutea Na primeira parte deste trabalho estatildeo apontadas algumas
concepccedilotildees sobre a parresiacutea como falar franco interligado ao toacutepos ldquoeacute preciso dizer
a verdaderdquo como ponto de partida para o uso de argumentos que segundo
Aristoacuteteles (Ret III 17 1418a) satildeo auxiliares aos entimemas que satildeo formados
pelos conceitos e premissas que datildeo estrutura organizacional ao discurso Destaca-
se a ocorrecircncia de exemplos como ldquomais apropriados ao discurso deliberativordquo263
Aproveitam-se tambeacutem de Aristoacuteteles as consideraccedilotildees de que as metaacuteforas mais
produtivas na prosa satildeo as construiacutedas por analogia (Ret III 10 1411a) 263
Aristoacuteteles (Ret I 1 1354b) aponta que ldquono gecircnero deliberativo o ouvinte julga sobre coisas que o afetam pessoalmente e portanto o conselheiro apenas precisa de demonstrar a exatidatildeo do que afirmardquo
206
funcionando como forma de estilo e meio argumentativo Nesses termos Aristoacuteteles
acrescenta que ldquoos siacutemiles ateacute certo ponto funcionam como metaacuteforas pois
expressam-se sempre partindo de dois termos tal como a metaacutefora por analogiardquo
(Ret III 1413a)
O segundo capiacutetulo desta terceira parte tambeacutem tem a funccedilatildeo de apontar certos
recursos retoacutericos presentes na elaboraccedilatildeo de determinadas epiacutestolas de Secircneca a
Luciacutelio e de Paulo agrave igreja de Corinto Nesses discursos em destaque podem ser
observados os usos de estrateacutegias retoacutericas sendo bastante recorrentes os
exemplos que ora remetem a um tempo histoacuterico de determinadas situaccedilotildees jaacute
valorizadas no imaginaacuterio do leitor ora a disposiccedilatildeo do proacuteprio testemunho do
enunciador A citaccedilatildeo traz para o discurso outras vozes que podem atuar como
autoridades concordantes com determinadas posiccedilotildees discursivas funcionando
como uma evidecircncia de que o discurso eacute constituiacutedo no bojo do interdiscurso Em
termos de citaccedilatildeo Aristoacuteteles (Ret II 20 1393a) identifca o uso de maacuteximas no
campo do pensamento dedutivo ldquoAs provas comuns satildeo de dois gecircneros exemplo
e entimema pois a maacutexima eacute uma parte do entimemardquo
A metaacutefora exerce uma funccedilatildeo de auxiacutelio agrave compreensatildeo de conceitos abstratos
pela imagem do concreto que ela fornece como similaridade em uma funccedilatildeo
analoacutegica No que se refere ao uso dessas estrateacutegias mencionadas Foucault
(2010a p122) em sua avaliaccedilatildeo sobre o papel da retoacuterica refere-se a esta como ldquoo
inventaacuterio e a anaacutelise dos meios pelos quais pode agir-se sobre o outro mediante o
discursordquo
No terceiro capiacutetulo toma-se como base a primeira epiacutestola de Secircneca a Luciacutelio em
que o uso do tema ldquoo tempordquo evidencia-se logo na constituiccedilatildeo da cenografia de
um tratado filosoacutefico estoico no campo da eacutetica que atraveacutes do tema identificado
direciona toda a enunciaccedilatildeo Algumas marcas linguiacutesticas que aparecem na primeira
epiacutestola no tratamento retoacuterico favorecem a construccedilatildeo discursiva do tema
podendo ser identificadas por meio de expressotildees metafoacutericas264 que revelam certos
264
Lakoff e Johnson (2002 p 50) sustentam que ldquoexpressotildees metafoacutericas em nossa liacutengua satildeo ligadas a conceitos metafoacutericos de uma maneira sistemaacuteticardquo No exemplo ldquoComecemos atingida a velhice a preparar nossa bagagemrdquo o contexto em que o termo bagagem eacute usado e identificado como expressatildeo metafoacuterica ele aponta para o Conceito metafoacuterico A VIDA Eacute UMA VIAGEM Portanto a expressotildees metafoacutericas usadas pelos falantes emergem no contexto de uma determinada cultura contribuindo para identificar os conceitos metafoacutericos que norteiam o comportamento e valores de uma sociedade Esses autores citados satildeo referecircncias nos estudos da metaacutefora
207
conceitos metafoacutericos a elas subjacentes Este conceito anunciado na epiacutestola de
abertura identifica o tempo como um valor de prestiacutegio para a filosofia estoica em
torno do qual satildeo intriacutensecas as noccedilotildees de vida velhice e morte Para os estoicos a
partir do nascimento tambeacutem se inicia a caminhada para a morte e a velhice eacute um
processo que se instaura a partir do nascimento culminando com a morte Secircneca
define que ldquoa filosofia eacute a lei que rege a totalidade da vidardquo (Ep 9439) Eacute nessa
trajetoacuteria que Secircneca desenvolve diferentes toacutepicos sobre o tempo utilizando-se do
toacutepos filosoacutefico-moral ldquofalar francordquo determinante no seu modo de conduccedilatildeo do
discurso O tema em destaque eacute desenvolvido por meio de recursos com base em
toacutepicos que identificam lugares comuns entre os autores expressotildees metafoacutericas
que sinalizam conceitos metafoacutericos norteadores de posicionamentos discursivos
exemplos histoacutericos ou pessoais e citaccedilotildees provindas tanto do discurso filosoacutefico
quanto do literaacuterio em suas variadas dimensotildees265
Com a finalidade de fornecer uma visibilidade do recorte assumido na pesquisa do
tema ldquoo tempordquo um quadro esquemaacutetico apresentado na introduccedilatildeo p 26 serve
como identificaccedilatildeo da seleccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio destacadas na
formaccedilatildeo do corpus Estas foram delimitadas como fonte para as anaacutelises de
acordo com a constataccedilatildeo de diferentes abordagens no desenvolvimento do tema
em questatildeo
No quarto capiacutetulo desta terceira parte elege-se como corpus de anaacutelise
determinados versiacuteculos de capiacutetulos contidos nas duas epiacutestolas do apoacutestolo Paulo
agrave igreja de Corinto A cenografia que se instaura a partir da introduccedilatildeo da primeira
epiacutestola aponta para um manual de aconselhamento em que diferentes partes
integrantes do tema ldquoo amorrdquo se desdobram em variados aspectos funcionando
como toacutepicos Na organizaccedilatildeo do corpus um quadro esquemaacutetico jaacute mostrado na p
27 apresenta as abordagens que compotildeem o tema A heterogeneidade mostrada e
a constitutiva sendo concebidas como manifestaccedilatildeo dialoacutegica da linguagem podem
ser apreendidas atraveacutes de recursos retoacutericos acionados de lugares comuns tais
como o exemplo citaccedilatildeo e metaacutefora O toacutepos ldquofalar francordquo eacute o direcionador do
conceitual e definem que os conceitos metafoacutericos apreendidos atraveacutes das expressotildees metafoacutericas devem ser grafados em letras maiuacutesculas o que tambeacutem eacute feito neste trabalho 265
Na introduccedilatildeo da Retoacuterica de Aristoacuteteles Alexandre Jr (2005 p 98) atenta para o valor dos exemplos das citaccedilotildees e das paraacutefrases nas obras antigas como fontes de informaccedilotildees sendo muitas vezes uma uacutenica indicaccedilatildeo de registros histoacutericos Autores como por exemplo Dioniacutesio de Halicarnasso registraram algumas informaccedilotildees sobre obras que acabaram se perdendo ou ainda delas restaram pouquiacutessimos fragmentos como mencionado em nota por Alexandre Jr
208
modo de dizer Essas estrateacutegias argumentativas contribuem para a compreensatildeo
da discursividade que se instaura no discurso por meio do inter-relacionamento com
outros discursos
Nas consideraccedilotildees finais da parte III satildeo identificados alguns paralelos comparativos
entre os corpora em destaque No primeiro plano eacute relevante a percepccedilatildeo da
apropriaccedilatildeo de recursos argumentativos originaacuterios de um lugar comum na
constituiccedilatildeo retoacuterica do discurso No segundo plano busca-se observar o
funcionamento daqueles recursos retoacutericos comuns aos dois autores na aplicaccedilatildeo
do desenvolvimento dos temas instituiacutedos a partir da identificaccedilatildeo da cenografia que
se instaura a partir do discurso constituinte Sabe-se tambeacutem que o entrecruzamento
entre os discursos constituintes filosoacutefico literaacuterio e religioso no processo
enunciativo resulta em certo movimento que ora pode causar um efeito de
aproximaccedilatildeo ora de afastamento de posicionamentos discursivos entre os dois
autores como apontado na exposiccedilatildeo dos pontos conclusivos no fechamento da
pesquisa
209
2 TOacutePOS FILOSOacuteFICOMORAL E ARGUMENTOS RETOacuteRICOS NAS
EPIacuteSTOLAS
Um dos mecanismos de abordagem dos toacutepoi como concebido na Antiguidade eacute a
identificaccedilatildeo de temas recorrentes sempre retomados e retirados das fontes dos
lugares comuns em diferentes eacutepocas Em suas pesquisas Curtius (1999 p121)
observa que ldquono antigo sistema da retoacuterica a toacutepica eacute o celeiro de provisotildeesrdquo Os
autores na Antiguidade utilizavam temas de um lugar comum como uma espeacutecie de
arquivo de acesso aos mais diversos assuntos266 descobrindo neles facetas ainda
natildeo exploradas ou mesmo dando uma interpretaccedilatildeo ainda natildeo ventilada Thom
(2003 p 82) aproveita-se das contribuiccedilotildees de Curtius e ordena as questotildees sobre
os toacutepoi dividindo-os em trecircs grupos de acordo com a adequaccedilatildeo ao gecircnero de
discurso o toacutepos retoacuterico especificamente caracterizado por sua funccedilatildeo nas
estrateacutegias argumentativas o toacutepos literaacuterio tipicamente recorrente na construccedilatildeo
poeacutetica o toacutepos filosoacutefico como organizador dos temas no desenvolvimento do
diferentes discursos sendo mais adequados ao campo da moral da eacutetica e da
religiatildeo
Em sua aula inaugural no Collegravege de France267 Hadot (2012 p 36) aponta que
muitos toacutepoi recorrentes na Antiguidade mantiveram sua permanecircncia na cultura
ocidental como modelos preacute-fabricados que podem ser identificados por meio de
metaacuteforas e maacuteximas e que para o escritor ou pensador se mostram indispensaacuteveis
para expressatildeo do pensamento Hadot cita como exemplo a maacutexima ldquoconhece-te a ti
mesmordquo e a metaacutefora ldquoa forccedila da verdaderdquo Na continuidade de sua exposiccedilatildeo sobre
os toacutepoi da Antiguidade e a presenccedila desses recursos no contexto da
contemporaneidade Hadot (2012 p 38) anuncia que no seu curso a ser ofertado a
anaacutelise dos toacutepicos da Antiguidade parte do aforismo de Heraacuteclito conhecido como
ldquoa natureza gosta de se esconderrdquo A proposta consiste em analisar a trajetoacuteria do
uso deste aforismo observando ldquoos significados que a foacutermula tomaraacute ao longo da
Antiguidade e ulteriormente em funccedilatildeo da evoluccedilatildeo da ideia de naturezardquo Nesse
266
Curtius (1999 p 133) apresenta o toacutepos exordial ldquoDeve-se evitar a preguiccedilaldquo Satildeo citados alguns autores da Antiguidade como Horaacutecio Oviacutedio Secircneca Marcial que tratam desse tema Curtius observa que ldquoo toacutepos da preguiccedila pode chegar a tal ponto que escrever poesia eacute aconselhado como remeacutedio contra a ociosidade e o viacuteciordquo No texto biacuteblico tambeacutem haacute presenccedila desse toacutepos ldquoVai ter com a formiga oacute preguiccediloso olha para os seus caminhos e secirc saacutebiordquo (Proveacuterbios 66) 267
Pierre Hadot pronunciou sua aula inaugural da cadeira de histoacuteria do pensamento heleniacutestico e romano intitulada Elogio da Filosofia Antiga em 18 de fevereiro de 1983
210
mesmo contexto do jaacute-dito que se atualiza Hansen (2012 p 168) observa que ldquoos
grandes autores satildeo lidos para colher aqui e ali certo nuacutemero de sentenccedilas uacuteteis agrave
causa que eacute expostardquo Nessa mesma linha de raciociacutenio Hansen faz as seguintes
alegaccedilotildees
Quando o orador fala eficazmente compotildee a memoacuteria do destinataacuterio como reconhecimento do que eacute dito para isso repete os lugares comuns que satildeo patrimocircnio da memoacuteria coletiva especificando as qualidades que os particularizam como se estivessem muito proacuteximos dos ouvintes (HANSEN 2012 p 170)
Mediante essa formulaccedilatildeo de Hansen eacute possiacutevel conceber que muitos toacutepoi podem
ser desenvolvidos com base em exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas e que cada um
destes tem sua validade arquivada na memoacuteria coletiva Quando se trata do gecircnero
epistolar alguns toacutepoi e argumentos retoacutericos satildeo constitutivos deste proacuteprio gecircnero
Entatildeo pode-se afirmar que o toacutepos ldquofalar francordquo eacute condutor da escrita das epiacutestolas
de Secircneca e Paulo
21 TOacutePOS FILOSOacuteFICO-MORAL ldquoFALAR FRANCOrdquo
[] aquilo que se trata na parresiacutea eacute uma espeacutecie de retoacuterica proacutepria (Foucault 2010a p 328)
Ao formular seus postulados sobre retoacuterica Aristoacuteteles condiciona a noccedilatildeo de toacutepos
em seu funcionamento como elemento do entimema na constituiccedilatildeo do discurso
Por meio da elaboraccedilatildeo e organizaccedilatildeo de toacutepicos retoacutericos inerentes aos trecircs
gecircneros do discurso (deliberativo judiciaacuterio e epidiacutetico) Aristoacuteteles contribui com um
repertoacuterio de opccedilotildees que funciona como um ponto de partida
Na cultura greco-romana a ideia de toacutepicos se aplica tambeacutem agrave produccedilatildeo de textos
literaacuterios e filosoacuteficos como pode ser destacado em Filodemo268 em sua obra
filosoacutefica intitulada Peri Parresiacutea Silva (2009 p 85) indica em sua pesquisa que a
parresiacutea moral e filosoacutefica comeccedila a adquirir importacircncia a partir do momento em
que seu sentido de liberdade de expressatildeo passa a perder forccedila na esfera
268
ldquoFilodemo de Gadara grego originaacuterio do Oriente-Proacuteximo dirige-se primeiramente a Atenas junto ao epicurista Zenatildeo de Siacutedon e depois a Roma nos anos setenta aC onde se torna amigo confidente e diretor de consciecircncia de L Calpurnius Piso Caesonius sogro de Ceacutesar e cocircnsul em 58 aC (sobre esta relaccedilatildeo cf Gigante La Bibliotheque de Philodeme et leacutepicuriacutesme romaIacuten opeit capo 1) antes de instalar-se definitivamente em Herculano na Vila hoje chamada dos Papyri propriedade de Lucius Piso cuja biblioteca encerrava numerosos e importantes textos epicuristasrdquo (FOUCAULT 2010a p 180 nota 27)
211
democraacutetica da poliacutetica Assim a ideia de parresiacutea falar franco no periacuteodo
Heleniacutestico passa a ser valorizada nos relacionamentos interpessoais como um
atrativo na manutenccedilatildeo da amizade Filodemo era epicurista contemporacircneo de
Ciacutecero e produziu suas obras em grego tanto no campo da literatura quanto no da
poesia Segundo informaccedilotildees de Silva (2009 p 97) em sua obra Peri Parresiacutea
Filodemo enxerta alguns toacutepicos ao tema parresiacutea de acordo com suas aplicaccedilotildees
aos meacutetodos educativos da escola epicurista Alguns toacutepoi no mesmo campo
semacircntico satildeo explorados em forma de toacutepicos Entre estes podem ser destacados
a criacutetica franca por parte do mestre e do disciacutepulo a disposiccedilatildeo para o jogo
parresiaacutestico ou seja a disposiccedilatildeo do interlocutor em ouvir a verdade e dela se
apropriar Outro toacutepos em destaque eacute o da importacircncia da parresiacutea na conservaccedilatildeo
dos laccedilos de amizade entre os participantes da comunidade epicurista
Em sua busca em compreender o funcionamento dos toacutepoi na Antiguidade Thom
(2003 p 570) observa que o universo da moral no mundo greco-romano eacute dividido
em regiotildees ou toacutepoi e cada um tem a sua proacutepria estrutura interna Os toacutepoi
tambeacutem satildeo conectados com outros pelas ligaccedilotildees semacircnticas Por exemplo o
toacutepos da amizade eacute ligado ao toacutepos falar franco e assim funda-se uma intricada
rede de inter-relaccedilotildees entre os toacutepoi A partir destas constataccedilotildees verifica-se que a
moral no mundo antigo pode ser mapeada em termos de toacutepoi e um autor pode usaacute-
los como referecircncias e agraves vezes uma simples alusatildeo eacute suficiente para identificaccedilatildeo
do lugar comum
Em sua pesquisa Thom (2003 567) vislumbra que o toacutepos filosoacuteficomoral pode ser
distinguido de outros pela abordagem de determinado tema ser recorrente em
diferentes autores e o tradicional tratamento moral no modo como eacute abordado
Desse modo este autor afirma ldquoa topos expresses a cultural consensusrdquo (um toacutepos
expressa um consenso cultural)
Eacute nesse contexto que Foucualt (2010a p 310) observa que o discurso filosoacutefico tem
o compromisso de dizer a verdade e ldquoele tambeacutem tem efeitos que satildeo devidos de
certo modo agrave sua materialidade proacutepria agrave sua plaacutestica proacutepria agrave sua retoacuterica
proacutepriardquo Em sua busca em compreender a parresia na Antiguidade Foucault avalia
que esta pode ser observada em diferentes modalidades A parresiacutea como accedilatildeo
filosoacutefica pode ser identificada a partir de Platatildeo Segundo Foucault (2010b p 189)
212
nas epiacutestolas de Platatildeo observa-se que a accedilatildeo da parresiacutea se apresenta natildeo
somente no corpo da cidade mas tambeacutem sobre a alma do indiviacuteduo
Para observar a manifestaccedilatildeo do toacutepos ldquofalar francordquo Foucault recorre ao gecircnero
epistolar Em especial na epiacutestola VII de Platatildeo Foucault (2010b p 197) nota que
pela leitura da epiacutestola o pensamento poliacutetico eacute tratado como racionalizaccedilatildeo da
accedilatildeo poliacutetica tendo a filosofia como base para o conselho
Foucault identifica o falar franco no campo da filosofia a partir da avaliaccedilatildeo de Platatildeo
quanto agrave postura de Soacutecrates frente aos enfrentamentos no campo da poliacutetica
Eacute para participar de uma detenccedilatildeo arbitraacuteria que os tiranos pedem que Soacutecrates participe de uma accedilatildeo judicial ilegal e Soacutecrates se recusa Soacutecrates se recusa como filosoacutefo um exemplo de resistecircncia filosoacutefica a um poder poliacutetico exemplo de parresiacutea que vai ser por muito tempo um modelo
de atitude filosoacutefica diante do poder [] (FOUCAULT 2010b p 198)
A partir da observaccedilatildeo da atitude parresiaacutestica de Soacutecrates Foucault (2011 p15)
fortalece sua definiccedilatildeo de parresiacutea como ldquouma atitude uma maneira de ser que se
aparenta agrave virtude uma maneira de fazerrdquo Assim a parresiacutea pode ser caracterizada
como uma modalidade de dizer a verdade
Foucault (2010b p 253) identifica na escrita epistolar de Platatildeo algumas
caracteriacutesticas relacionadas agrave parresiacutea e o ponto central eacute o aconselhamento Em
primeiro lugar em suas epiacutestolas Platatildeo oferece sua contribuiccedilatildeo aos amigos e
parentes de Dion e ao povo de Siracusa269 que estaacute em conflito poliacutetico Conforme
essa visatildeo a parresiacutea se caracteriza pela atenccedilatildeo a uma situaccedilatildeo especiacutefica sendo
o conselho de caraacuteter particular em funccedilatildeo de uma situaccedilatildeo especiacutefica As
orientaccedilotildees se desenvolvem com referecircncias a princiacutepios gerais que se aplicam agraves
circuntacircncias particulares Os conselhos aos dois grupos rivais satildeo ministrados por
Platatildeo no exerciacutecio de seu papel de aacuterbitro e a parresiacutea funciona como meio de
convocaccedilatildeo para a uniatildeo entre todos
269
Foucault (2010b p252) fornece um resumo para situar o contexto em que as epiacutestolas VII e VIII de Platatildeo satildeo escritas ldquoDion conhece Platatildeo segue seu ensino e aproveita as liccedilotildees que o mestre lhe daacute Nesse momento sua verdadeira e boa natureza reaparece e diz ele - eacute aiacute que se abordam as coisas - na candura juvenil da sua alma Dion esperava que Dioniacutesio (seu tio o tirano) sob a influecircncia das mesmas liccedilotildees que ele havia recebido experimentasse os mesmos sentimentos que ele e se deixasse ganhar facilmente para o bem Em seu entusiasmo portanto ele fez tudo para que Dioniacutesio entrasse em relaccedilatildeo com Platatildeo e escutasse suas liccedilotildees Agora estatildeo em cena Platatildeo Dion e Dioniacutesiordquo Na introduccedilatildeo da epiacutestola VIII Platatildeo escreve ldquoVou fazer o possiacutevel por vos explicar quais devem ser os vossos sentimentos para que possais viver verdadeiramente uma vida de bem e de felicidade E espero proporcionar-vos conselhos salutares natildeo apenas a voacutes embora estejais em primeiro lugar mas tambeacutem e em segundo lugar a todos os Siracusanos e em fim em terceiro lugar aos vossos adversaacuterios e inimigosrdquo []
213
Nas aulas ministradas no Collegravege de France em 1983 Foucault redimensiona a
relaccedilatildeo entre retoacuterica e parresiacutea a partir de uma percepccedilatildeo mais ampla da noccedilatildeo de
retoacuterica quanto agrave praacutetica do falar franco na constituiccedilatildeo do discurso verdadeiro
[] a retoacuterica pode se apresentar como sendo a proacutepria arte do dizer-a-verdade do dizer convenientemente e do dizer em condiccedilotildees teacutecnicas tais que esse dizer-a-verdade seja persuasivo Nessa medida como arte dominada por um homem de bem que sabendo da verdade eacute capaz de persuadir outros por meio dessa arte especiacutefica a retoacuterica pode aparecer como sendo efetivamente a teacutecnica proacutepria dessa parresiacutea desse dizer-a-verdade (FOUCAULT 2010b p 276)
A forma como Foucault relaciona parresiacutea e retoacuterica se funda em uma concepccedilatildeo de
retoacuterica filosoacutefica que toma como base a escrita das epiacutestolas de Platatildeo Em seus
estudos Foucault (2010b p 5) constata que na moral da Antiguidade entre gregos e
romanos era evidente a importacircncia do princiacutepio ldquoeacute preciso dizer a verdade sobre si
mesmordquo Foucault considera que a correspondecircncia se tornava um meio de
desenvolvimento dessa praacutetica Por isso a confidecircncia tanto em Secircneca quanto em
Paulo se constitui como ferramenta para o enunciador despojar de si mesmo diante
de seu destinataacuterio Ainda a forma de aconselhamento pressupotildee o falar franco que
eacute interligado ao discurso verdadeiro na essecircncia da escrita epistolar desses dois
autores
211 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio
Uma forma de parresiacutea (libertas) ldquofalar francordquo eacute a coragem de ser verdadeiro
consigo mesmo Na cena enunciativa da epiacutestola introdutoacuteria da obra Epiacutestolas a
Luciacutelio de Secircneca eacute identificado o ethos dito270 no papel de enunciador do
discurso pela forma pessoal como ele se coloca no discurso ldquoTalvez te apeteccedila
perguntar como procedo eu que dou todos esses preceitos Dir-te-ei com franqueza
como algueacutem que vive bem mas sem esbanjamentordquo (Ep 14) A expressatildeo ldquodir-te-
ei com franquezardquo aponta para toacutepos ldquofalar francordquo no sentido de liberdade abertura
para se dizer o que deve ser dito
Foucault (2010b p 8) observa que em Secircneca os seus textos comprovam que a
praacutetica da parresiacutea como dizer a verdade era bem delineada por uma seacuterie de
categorizaccedilotildees e descriccedilotildees Poreacutem o termo parresiacutea natildeo eacute empregado talvez pela
270
Charaudeau e Maingueneau (2008) no dicionaacuterio de Anaacutelise do Discurso afirmam que ethos eacute considerado dito quando o enunciador se manifesta pessoalmente no discurso e mostrado quando eacute captado atraveacutes da percepccedilatildeo do leitor ou ouvinte
214
ausecircncia de traduccedilatildeo O toacutepico parresiacutea como falar franco resultou no uso de
vaacuterios termos latinos como licentia libertas oratio liberta Foucault ressalta que nos
seacuteculos I e II de nossa era eacute recorrente entre os romanos a substituiccedilatildeo do termo
parresiacutea pelo termo libertas271 Por meio da leitura dos textos essa noccedilatildeo pode ser
identificada de forma bem especiacutefica para a realidade histoacuterica daquele momento
Na epiacutestola vinte e cinco Secircneca relata a Luciacutelio a respeito do tratamento
pedagoacutegico que deveria ser dado de forma distinta a dois amigos com base no
toacutepos ldquofalar francordquo
O tratamento adequado aos nossos dois amigos tem de usar meacutetodos completamente diferentes De fato enquanto os viacutecios de um deles carecem de correccedilatildeo os do outro exigem ser travados agrave forccedila Dirte-ei com toda franqueza soacute serei seu amigo se for violento com ele (Ep 251)
Quod ad duos amicos nostros pertinet diversa via eundum est alterius enim vitia emendanda alterius frangenda sunt Utar libertate tota non amo illum nisi ofendo (Ep 251)
Eacute possiacutevel confirmar as informaccedilotildees fornecidas por Foucalt sobre o uso de libertas
como traduccedilatildeo de parresiacutea Ao referir-se a respeito de sua franqueza em relaccedilatildeo
aos viacutecios do amigo Secircneca se dirige a Luciacutelio usando a expressatildeo utar libertate
tota Esta expressatildeo remete o seu sentido ao toacutepos ldquofalar francordquo
Na anaacutelise de Foucault o ldquofalar francordquo se mostra matizado em diferentes nuances e
uma delas eacute a coragem de ser verdadeiro correndo o risco da incompreensatildeo e de
abalo na relaccedilatildeo com o outro Eacute nessa perspectiva que Secircneca coloca a dureza da
franqueza como condiccedilatildeo na verdadeira amizade Quanto a esse aspecto das
relaccedilotildees humanas Foucault (2010b p 11) observa que ldquosoacute pode haver conduccedilatildeo
de consciecircncia se haacute amizade e em que o uso da verdade nessa conduccedilatildeo de
consciecircncia corre precisamente o risco de romper os laccedilos da relaccedilatildeordquo
Para Secircneca a aquisiccedilatildeo de libertas estaacute condicionada agrave contribuiccedilatildeo da filosofia
fato que ele argumenta por meio da citaccedilatildeo da maacutexima de Epicuro ldquoDeves ser servo
da filosofia se pretendes obter a verdadeira liberdaderdquo (Ep 87) Quanto agrave noccedilatildeo de
liberdade Secircneca faz algumas ligaccedilotildees entre a coragem com atitudes do indiviacuteduo
em determinadas situaccedilotildees ldquoE a liberdade desaparece quando natildeo desprezamos
tudo quanto pretende nos subjugarrdquo [] perit libertas nisi illa contemnimus quae
271
Foucault (2010a p 360) na ministraccedilatildeo da aula de 8 marccedilo de 1982 no Collegravege de France analisou algumas epiacutestolas de Secircneca (Ep 38 Ep 40) procurando apontar as indicaccedilotildees de que o discurso deve ser simples na sua composiccedilatildeo refletida demonstrando o sentido de libertas Ele fez uma paraacutefrase da escrita da epiacutestola setenta e cinco observando que nela havia uma verdadeira exposiccedilatildeo do que era libertas para os romanos e parresiacutea para os gregos
215
nobis iugum inponunt (Ep 8528) A liberdade ligada agrave coragem eacute conquistada pela
determinaccedilatildeo no cuidado de si que prepara para os enfrentamentos na vida Secircneca
afirma ldquoa coragem consiste em desprezar as causas de terror tudo o que inspira
medo e subjuga a nossa liberdade tudo ela despreza desafia e derrubardquo []
terribilia et sub iugum libertatem nostram mittentia despicit provocat frangit
numquid ergo hanc liberalia studia corroborant (Ep 88 29) A coragem como base
para o ldquofalar francordquo se expande tambeacutem para outras formas de comportamento
como o enfrentamento no modo de conceber a morte ldquoLiberta-te para comeccedilar do
medo da morte (jaacute que o medo da morte nos oprime como um jogo)rdquo Libera te
primum metu mortis (illa nobis iugum inponit) (Ep 80 5)
Em Secircneca o ldquofalar francordquo apresenta diferentes aplicaccedilotildees que tecircm seus
significados de acordo com o discurso constituinte filosoacutefico que funciona como
base de sua enunciaccedilatildeo A partir do valor da noccedilatildeo de liberdade eacute que Secircneca
procura se desvencilhar de imposiccedilotildees teacutecnicas da retoacuterica optando por uma
construccedilatildeo mais livre do seu discurso Quanto a este aspecto Foucault (2010a p
335) pondera que em relaccedilatildeo agrave retoacuterica o falar franco deve liberar-se dela natildeo para
exclui-la mas para se libertar em relaccedilatildeo agraves suas regras e condiccedilotildees e fazer uso do
que eacute produtivo ao discurso parresiaacutestico
Os questionamentos de Secircneca quanto agraves imposiccedilotildees da retoacuterica se voltam para o
campo das teacutecnicas da eloquecircncia no seu objetivo de engrandecer o desempenho
do orador Na epiacutestola oitenta e nove ele situa a retoacuterica no quadro da filosofia
racional por meio da sucinta definiccedilatildeo ldquoa retoacuterica ocupa-se das palavras das
ideias da estrutura do discursordquo (Rhetorike verba curat et sensus et ordinem) (Ep
89 17) Decerto a retoacuterica eacute indispensaacutevel no modo de organizaccedilatildeo do discurso
mas Secircneca procura se esquivar da eloquecircncia valorizando o texto mais coloquial
Assim o gecircnero epistolar favorece esta preferecircncia de Secircneca como ele afirma ldquoo
nosso objetivo uacuteltimo deve ser este dizer o que sentimos sentir o que dizemosrdquo (Ep
754) Esta afirmativa de Secircneca consolida a relaccedilatildeo entre ldquofalar francordquo e verdade
Na epiacutestola seis Secircneca abre-se diante de Luciacutelio declarando as mudanccedilas que ele
proacuteprio experimentou a partir de sua dedicaccedilatildeo agrave filosofia
Desejaria compartilhar contigo essa suacutebita mudanccedila operada em mim Comeccedilaria entatildeo a ter uma mais segura confianccedila em nossa amizade que nem a esperanccedila ou o medo ou a busca da utilidade pode quebrar numa amizade daquelas com a qual e pela qual os homens podem morrer (SEcircNECA Ep 62)
216
Secircneca coloca-se diante de seu amigo sem reservas compartilhando sua
convicccedilatildeo de verdade a respeito das mudanccedilas processadas em sua proacutepria vida A
amizade eacute um sinal de aprovaccedilatildeo para o ldquofalar francordquo sem reservas e subterfuacutegios
A partir de seu propoacutesito de investigar as relaccedilotildees sujeitoverdade Foucault (2011
p 4) observa natildeo o discurso de verdade que se poderia dizer sobre o sujeito mas o
discurso de verdade que o sujeito eacute capaz de dizer de si mesmo Assim ldquofalar
francordquo (parresiacutea) eacute uma modalidade do dizer a verdade como o sujeito representa a
si mesmo e eacute reconhecido pelo outro como dizendo a verdade
A partir de seu objetivo em identificar sujeito e verdade na Antiguidade Foucault
verifica que o dizer a verdade se apresenta no aparato de quatro modalidades
teacutecnica parresiasta filosoacutefica e profeacutetica Para situar a noccedilatildeo de parresiacutea como
modalidade de dizer a verdade Foucault (2011 p 17) faz uma oposiccedilatildeo entre
parresiasta e saacutebio pois este fala o discurso da sabedoria mas pode mantecirc-la em
silecircncio para si mesmo O saacutebio diz o que eacute e quando o seu discurso eacute prescritivo
natildeo se apresenta em forma de conselho mas ligado a um princiacutepio geral de
conduta Foucault (2011 28) percebe que o saacutebio guiado pelo discurso filosoacutefico
tem a funccedilatildeo de refletir sobre a finitude humana e a criacutetica a respeito da ordem
moral e nesse aspecto parresiacutea e sabedoria se aproximam O filoacutesofo diz a verdade
das coisas e o parresiasta sobretudo diz sua verdade aos homens A partir dessas
delimitaccedilotildees apontadas por Foucault eacute possiacutevel identificar na escrita das epiacutestolas
de Secircneca o intercacircmbio entre parresiacutea e filosofia confirmando o dito de Foucault
(2010a 328) que ldquoaquilo que se trata na parresiacutea eacute uma espeacutecie de retoacuterica proacutepriardquo
Com base nessa afirmativa pode-se pensar o toacutepos ldquofalar francordquo como forma de
conduccedilatildeo do discurso constituinte filosoacutefico como desenvolvido por Secircneca por
meio do gecircnero epistolograacutefico
212 O toacutepos ldquofalar francordquo nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto
No contexto do discurso religioso no periacuteodo Heleniacutestico Foucault (2011 291)
identifica que a parresiacutea no texto da Septuaginta natildeo eacute a coragem do homem
isolado mas eacute a relaccedilatildeo do homem com Deus e nesse movimento a manifestaccedilatildeo
da bondade de Deus eacute revelada por meio do seu poder e vontade Na sequecircncia
histoacuterica na literatura neotestamentaacuteria a parresiacutea eacute concebida como um modo de
ser uma forma de atividade humana que ateacute certo ponto se revela pela coragem e
217
ousadia em falar Foucault observa que a parresiacutea como virtude apostoacutelica
aproxima-se do seu significado de uso grego
O termo parresiacutea no grego koineacute (παρρησια) eacute usado por Paulo em suas epiacutestolas
aos Coriacutentios O exemplo pessoal que aponta para o sofrimento e as lutas
enfrentadas por ele permite-lhe a revelaccedilatildeo de seu ethos parresiasta pela
determinaccedilatildeo e coragem de se abrir diante da igreja atraveacutes da correspondecircncia
Essa forma corajosa de falar enfrentando os desafios eacute expressa por ele nos
seguintes termos ldquoTendo pois tal esperanccedila usamos de muita ousadia no falarrdquo
(2Cor 312)272
Segundo Fredrickson (1992 p 348) nesta citaccedilatildeo paulina encontra-
se a claacutessica associaccedilatildeo entre ldquofalar francordquo e liberdade pois liberdade de accedilatildeo e
fala franca representam os dois lados de uma mesma moeda Paulo recorre agrave
esperanccedila como base de sua fala franca
Lopes (2008 p 86) observa que no contexto em que Paulo usa o termo parresia o
significado eacute de ousadia com liberdade sem maacutescara e nada a esconder A figura
que Paulo usa como ilustraccedilatildeo eacute a de Moiseacutes273 que apoacutes quarenta dias de direta
comunhatildeo com Deus no Sinai quando de laacute desceu com as taacutebuas da lei a pele do
seu rosto brilhava assim como todas as vezes que Moiseacutes se encontrava com Deus
A praacutetica do uso de um veacuteu indicava que Moiseacutes cobria o rosto para o povo natildeo ver
a falta do brilho da gloacuteria em seu rosto nos intervalos dos seus encontros com Deus
A liccedilatildeo que Paulo apresenta por meio dessa intertextualidade com a passagem de
Ecircxodo 34 34-35 eacute o alerta de que o siacutembolo mostrado aponta para um veacuteu que
disfarccedila esconde e separa A partir dessa interpretaccedilatildeo a imagem do veacuteu funciona
como uma metoniacutemia que representa a ideia de maacutescara que encobre a verdade
Com a nova alianccedila cai o veacuteu da separaccedilatildeo e Paulo pondera que se o brilho que se
desvanecia no rosto de Moiseacutes era glorioso muito mais eacute o brilho que permanece
com a presenccedila de Deus na Eternidade Esta eacute a razatildeo da esperanccedila a que Paulo
se refere e que lhe imputa a ousadia no falar Esses argumentos de Paulo
demonstram coragem em enfrentar a maneira de expressar sua nova compreensatildeo
das tradiccedilotildees e textos judaicos
272
εχοντες ουν τοιαυτην ελπιδα πολλη παρρησια χρωμεθα (2Cor 312) 273
O texto que Paulo usa como base de seu comentaacuterio encontra-se no livro de Exocircdo ldquoMas entrando Moiseacutes perante o Senhor para falar com ele tirava o veacuteu ateacute sair e saindo dizia aos filhos de Israel o que lhe era ordenado Assim pois viam os filhos de Israel o rosto de Moiseacutes e que a pele do seu rosto resplandecia e tornava Moiseacutes a pocircr o veacuteu sobre o seu rosto ateacute entrar para falar com Deus (Ecircxodo 34 34-35)
218
Segundo Foucault (2011 p12) ldquoaleacutem da parresiacutea dizer tudo e dizer a verdade eacute
preciso que esta verdade constitua efetivamente a opiniatildeo daquele que fala sendo
realmente o que ele pensardquo Partindo dessa afirmativa de Foucault observa-se que
em seus ensinamentos Paulo indica o uso de algumas dessas caracteriacutesticas do
discurso parresiaacutestico em seu manual de conselhos agrave igreja de Corinto ldquoE temos
portanto o mesmo espiacuterito de feacute como estaacute escrito Cri por isso falei noacutes cremos
tambeacutem por isso tambeacutem falamos (2Cor 413) Nesse aspecto a condiccedilatildeo da
parresiacutea parte do princiacutepio ldquocri por isso faleirdquo Em primeiro lugar Paulo afirma
pessoalmente e em segundo lugar inclui os outros dizendo ldquonoacutes cremosrdquo e esta eacute a
declaraccedilatildeo que o autoriza dizer ldquopor isso tambeacutem falamosrdquo
Na mesma epiacutestola Paulo recorre novamente ao uso do termo parresiacutea declarando
seu ethos parresiasta ao afirmar ldquoGrande eacute a minha franqueza para convosco e
muito me glorio a respeito de voacutes estou cheio de consolaccedilatildeo transbordo de gozo
em todas as nossas tribulaccedilotildeesrdquo (2Cor 7 4)
O termo parresiacutea (παρρησια) ldquofalar francordquo usado por Paulo nesse contexto estaacute
ligado agrave ideia de amizade condiccedilatildeo essencial para sua franqueza No final do
capiacutetulo Paulo declara Regozijo-me porque em tudo tenho confianccedila em voacutes (2Cor
7 16) Esta afirmativa de Paulo implica a ideia do jogo parresiaacutestico em relaccedilatildeo aos
interlocutores na correspondecircncia Conforme menciona Foucault (2011 p 36) no
jogo parresiaacutestico haacute uma expectativa do leitorouvinte ldquoaceitar uma verdade que lhe
desagrada como uma forma de desafio para que o discurso verdadeiro tome o seu
lugarrdquo Fundado nessa convicccedilatildeo eacute que Paulo se abre com franqueza diante de seus
destinataacuterios natildeo se escondendo por traacutes de uma maacutescara resultante da falsidade
mas usando a ldquofala francardquo como forma da verdade ldquoPorque em muita tribulaccedilatildeo e
anguacutestia do coraccedilatildeo vos escrevi com muitas laacutegrimas natildeo para que vos
entristececircsseis mas para que conhececircsseis o amor que abundantemente vos tenhordquo
(2Cor 2 4) No jogo parresiaacutestico haacute uma espeacutecie de pacto em que o remetente da
epiacutestola tem o papel de assumir o risco de dizer a verdade e os destinataacuterios tecircm a
funccedilatildeo de aceitar as correccedilotildees por mais desagradaacuteveis que se mostrem Nas
epiacutestolas aos Coriacutentios os conselhos satildeo dados de forma dura e franca e Paulo se
coloca diante de seus destinataacuterios na funccedilatildeo de pai que se doa movido pelo amor
como ele declara ldquonuma justa compensaccedilatildeo falo como a meus filhos abram
219
tambeacutem o coraccedilatildeo para noacutesrdquo (2Cor 6 13)274 Na Antiguidade o ldquorelacionamento
entre pais e filhosrdquo era um toacutepos tratado na filosofia275 observado em Aristoacuteteles e
tambeacutem em textos do estoicismo Foucault (2010a p 531) faz a seguinte
observaccedilatildeo ldquoo velho tema estoacuteico bastante claacutessico do Deus Deus que eacute pai (pai
em relaccedilatildeo ao mundo pai em relaccedilatildeo aos homens) pai que deve ser reconhecido e
honrado segundo o modelo da relaccedilatildeo familiarrdquo Paulo tambeacutem lanccedila matildeo desse
toacutepos no fechamento do mesmo capiacutetulo em que ele proacuteprio se coloca como pai e
finaliza dando uma dimensatildeo maior ao colocar a figura de Deus como pai ldquoe eu
serei para voacutes Pai e voacutes sereis para mim filhos e filhas diz o Senhor Todo-
Poderosordquo (2Cor 618)
Se comparados os discursos parresiaacutesticos de Secircneca e Paulo nota-se que o toacutepos
ldquofalar francordquo identificado em suas epiacutestolas tem como ponto de referecircncia o
discurso constituinte que os move Em Secircneca como visto a parresiacutea como
modalidade da verdade estaacute em acordo com o discurso do filoacutesofo A parresiacutea em
Paulo se constitui em consonacircncia com o discurso religioso por meio da modalidade
da fala profeacutetica Foucault (2011 p 16) distingue que o profeta ldquoarticula e profere um
discurso que natildeo eacute dele Endereccedila aos homens uma verdade que vem de outro
lugarrdquo Segundo Foucault (2011 p 28) eacute compatiacutevel o agrupamento da modalidade
parresiaacutestica com o a modalidade profeacutetica Algumas caracteriacutesticas do discurso
profeacutetico satildeo fundadas em dizer a verdade sobre o futuro o que estaacute encoberto ao
homem pela proacutepria razatildeo de sua finitude Entatildeo Paulo assim diz ldquoPorque todos
devemos comparecer ante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o
que tiver feito por meio do corpo ou bem ou malrdquo (2Cor 510) Com base na
caracterizaccedilatildeo da modalidade profeacutetica e sua relaccedilatildeo com a modalidade
parresiaacutestica Foucault (2011 p 28) observa ldquoQuem diz a iminecircncia ameaccediladora do
amanhatilde do Reino do uacuteltimo dia do juiacutezo final que se aproxima diz ao mesmo
tempo aos homens o que eles satildeo e suas faltas e lhes diz francamente com toda
parresiacuteardquo
274
Traduccedilatildeo da Biacuteblia NVI (Nova Versatildeo Internacional) 275
Aristoacuteteles trata do tema amizadeamor na obra Eacutetica a Nicocircmaco nos livros VIII e IX e quando ele introduz noccedilotildees de amizadeamor ele expotildee ldquoa amizade parece ser um sentimento natural do pai por seu filho e do filho por seu pai (EN VIII 1155a) Assim como Aristoacuteteles aborda a amizade nas vaacuterias formas de relacionamentos Secircneca tambeacutem comenta ldquoaquela parte da filosofia que proporciona os conselhos adequados a cada indiviacuteduo e se destina portanto natildeo agrave formaccedilatildeo do homem em geral mas sim por exemplo a indicar ao marido como comportar-se em relaccedilatildeo agrave mulher ao pai como educar os filhosrdquo [] (Ep 942)
220
No final da epiacutestola Paulo declara ldquoPorque nada podemos contra a verdade poreacutem
a favor da verdaderdquo (2Cor 138) (ου γαρ δυναμεθα τι κατα της αλλ υπερ της
αληθειας) O termo aletheia (αληθειας) no contexto em que Paulo usa verdade
assume o sentido da mensagem do evangelho e ele se dispotildee a favor da
proclamaccedilatildeo dessa mesma verdade
Mesmo natildeo seguindo o rigor retoacuterico da eacutepoca na escrita de suas epiacutestolas Secircneca
e Paulo usam a parresiacutea com algumas estrateacutegias que a retoacuterica oferece
Determinados recursos retoacutericos mencionados na Retoacuterica de Aristoacuteteles satildeo
tambeacutem identificados nas escritas das epiacutestolas destes dois autores sendo
portadores de uma discursividade caracterizada pelos efeitos da intertextualidade
inerente ao proacuteprio discurso em uma perspectiva dialoacutegica da linguagem Desse
modo nas partes que se seguem os recursos argumentativos que se desenvolvem
a partir de um lugar comum delimitados como recursos retoacutericos na organizaccedilatildeo do
discurso satildeo desenvolvidos de acordo com o posicionamento discursivo de cada
autor na produccedilatildeo das epiacutestolas em destaque A anaacutelise que se segue leva em
consideraccedilatildeo o uso de exemplos citaccedilotildees e metaacuteforas nas epiacutestolas de Secircneca e
de Paulo reconhecendo estes elementos linguiacutesticos delimitados e o funcionamento
que se efetua tanto no campo do discurso filosoacutefico e literaacuterio quanto no religioso
22 O EXEMPLO COMO RECURSO RETOacuteRICO
Pensa na grande utilidade que para noacutes tecircm os bons exemplos e concluiraacutes que as lembranccedilas dos grandes homens natildeo eacute menos uacutetil do que a sua presenccedila
Secircneca (Ep 10230)
Aristoacuteteles propotildee uma inovaccedilatildeo em suas formulaccedilotildees no campo da retoacuterica
distinguindo-a da dialeacutetica em termos da conduccedilatildeo do discurso Ao relacionar o
entimema e o exemplo como participantes concomitantes na esfera do discurso ele
tambeacutem vislumbra que a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo formam uma parceria que contribui
para resultados argumentativos no discurso (Ret I 1 1356b)
O exemplo atua no campo do raciociacutenio indutivo podendo servir como evidecircncia
fortalecendo os propoacutesitos argumentativos no discurso Sendo o efeito do exemplo
mais convincente mais claro e mais apreensiacutevel pelos sentidos estaacute ao alcance da
maioria das pessoas ao passo que o raciociacutenio dedutivo tem mais forccedila
221
demonstrativa e eacute mais eficaz para responder aos contraditores Os exemplos
podem ser retirados de fatos histoacutericos mas podem estar contidos em faacutebulas ou
mesmo paraacutebolas como por exemplo ocorre em narrativas dos Evangelhos de
acordo com suas aplicaccedilotildees em um determinado contexto
Aristoacuteteles (Ret I 21356b) esclarece que chama entimema ao silogismo retoacuterico
pois o encadeamento de raciociacutenio do entimema se aproxima ao do silogismo em
alguns aspectos entretanto este eacute portador de um raciociacutenio tripartido para
fechamento da conclusatildeo enquanto aquele se restringe agrave premissa posta ou sua
conclusatildeo que subentende as premissas encobertas Por isso entimema estaacute ligado
agrave deduccedilatildeo e exemplo agrave induccedilatildeo formando um todo no corpo do discurso
Na opiniatildeo de Aristoacuteteles quando se recorre ao uso de exemplos os fatos histoacutericos
podem exercer uma forccedila mais persuasiva em comparaccedilatildeo agraves faacutebulas ou paraacutebolas
como ele proacuteprio exemplifica
Quando se afirma que Dioniacutesio intenta a tirania porque pede uma guarda pois tambeacutem antes Pisiacutestrato ao intentaacute-la pediu uma guarda e converteu-se em tirano mal a conseguiu e Teaacutegenes fez o mesmo em Meacutegara estes e outros que se conhecem todos eles servem de exemplo para Dioniacutesio de quem ainda natildeo se sabe se eacute essa a razatildeo por que a pede (Ret I
21357b)
Para os propoacutesitos da retoacuterica eacute fundamental que o exemplo tenha como base os
fatos que conduzem o raciociacutenio indutivo A partir desse princiacutepio Aristoacuteteles expotildee
suas consideraccedilotildees afirmando que ldquoo exemplo natildeo apresenta relaccedilotildees da parte para
o todo nem do todo para a parte nem do todo para o todo mas apenas da parte
para a parte do semelhante para o semelhanterdquo (Ret I 21357b)
Com base nesses pressupostos aristoteacutelicos sobre o exemplo como retoacuterica
indutiva efetua-se a seguir uma anaacutelise desse funcionamento persuasivo do
exemplo no discurso atraveacutes de partes de epiacutestolas de Secircneca e Paulo em que
esses autores buscam exemplos em uma fonte de lugares comuns como meios
retoacutericos de argumentaccedilatildeo
221 Exemplos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio
Secircneca assume em seu discurso a importacircncia que tem para ele o uso dos
exemplos narrando para Luciacutelio a histoacuteria de um personagem chamado Marcelino
contando em detalhes como ele encarou a morte e no final Secircneca comenta
ldquoTambeacutem espero que minha histoacuteria natildeo tenha sido inuacutetil pois muitas vezes as
222
circunstacircncias tornam necessaacuteria a presenccedila de tais exemplosrdquo (Ep 7710) A partir
do exemplo em destaque Secircneca desenvolve algumas ideias filosoacuteficas sobre o
determinismo com base na inevitaacutevel certeza da morte Secircneca argumenta com
Luciacutelio [] ldquonatildeo existiremos no futuro tal como natildeo existimos no passado [] Tu
fostes projetado para este ponto do tempordquo (Ep 77 11-12) Segundo observaccedilatildeo de
Puente para os estoicos ldquoo presente eacute aquilo que depende de noacutes enquanto noacutes o
vivemos passado e futuro natildeo dependem de noacutes pois jaacute estatildeo determinadosrdquo
(PUENTE 2012 p117) Conclui-se que cada dia deve ser vivido como se fosse o
uacuteltimo pois eacute apenas no presente que se vive efetivamente
Quando Secircneca faz suas reflexotildees sobre a morte na escrita das epiacutestolas eacute
perceptiacutevel certa relutacircncia em relaccedilatildeo ao uso de silogismos hipoteacuteticos assumindo
sua preferecircncia pelo uso retoacuterico dos exemplos Na escrita das epiacutestolas Secircneca
critica os gregos incluindo tambeacutem o ancestral Zenatildeo pela tentativa de
demonstrarem que apenas por meio de um raciociacutenio silogiacutestico algueacutem poderia
ser convencido de que a morte natildeo eacute um mal A partir de sua proacutepria discordacircncia
Secircneca menciona o seguinte silogismo usado por Zenatildeo ldquoNenhum mal eacute causa de
gloacuteria ora a morte natildeo eacute causa de gloacuteria logo a morte natildeo eacute um malrdquo (Ep 82 9)
Secircneca endurece seus comentaacuterios a respeito da montagem desse silogismo
Magniacutefico Jaacute estou liberto do medo Depois disto jaacute natildeo hesitarei em estender o pescoccedilo ao carrasco Vamos laacute falar com mais dignidade sem cobrir de ridiacuteculo um homem que vai morrer Pelos deuses Nem sei dizer-te qual dos dois parece mais imbecil se quem imaginou com este silogismo eliminou o medo da morte se quem se aplicou a solucionaacute-lo como se ele fosse pertinente para o caso (Ep 82 9)
Eacute pontual a ldquofala francardquo de Secircneca e sua rejeiccedilatildeo ao uso do silogismo no discurso
poreacutem atraveacutes da reflexatildeo de silogismos de seus antecessores eacute que ele parte para
uma tentativa de argumentaccedilatildeo mais convincente atraveacutes do exemplo a respeito do
tema sobre o medo da morte
O mesmo silogismo lembrado por Secircneca eacute contraposto a outro silogismo de sentido
inverso agrave concepccedilatildeo de indiferenccedila defendida pelos estoicos em relaccedilatildeo agrave morte
ldquoNenhuma coisa indiferente eacute causa de gloacuteria ora a morte eacute causa de gloacuteria logo a
morte natildeo eacute indiferenterdquo (Ep 8210) Secircneca argumenta com Luciacutelio sobre os efeitos
de possiacuteveis significados da palavra gloacuteria na composiccedilatildeo deste silogismo exposto
comentando que ldquoningueacutem louva a morte em si mas sim ao homem que a morte
223
arrebata sem previamente lhe perturbar o acircnimordquo (Ep 82 11) A partir desta
afirmativa Secircneca baseia seus argumentos com a introduccedilatildeo do seguinte exemplo
A mesma morte que em Catatildeo foi gloriosa tornou-se em Bruto vergonhosa e vil Refiro-me aquele Bruto que condenado agrave morte procurou uma forma de adiar a execuccedilatildeo retirou-se para aliviar o ventre chamaram-no para ser executado ordenaram-lhe que submetesse o pescoccedilo ao carrasco ldquoEu submetordquo ndash gritou ndash ldquomas deixem-me viverrdquo (Ep 8212)
Secircneca lanccedila matildeo de um exemplo que apresenta um cenaacuterio com valor positivo
para o comportamento de Catatildeo276 e negativo para o de Bruto277 No bojo desse
exemplo encontra-se um toacutepos retoacuterico referencial de contrariedade ou seja o juiacutezo
sobre um caso contraacuterio (Ret II 23 1397a) A partir de comportamentos opostos
desses personagens no enfrentamento da morte Secircneca discorre com Luciacutelio sobre
sua forma de pensar este tema de acordo os postulados estoicos Secircneca aponta
algumas razotildees do temor da morte comentando que ldquorepelimos a ideia da morte
porque se conhecemos bem este mundo ignoramos tudo do mundo para que
iremos e o homem tem horror ao desconhecidordquo (Ep 8215) Suas conclusotildees
mostram que eacute dever do indiviacuteduo natildeo temer a morte mas eacute necessaacuterio um preparo
para robustecer tal posiccedilatildeo Para Secircneca natildeo eacute um simples silogismo que teraacute o
poder de convencimento No entanto a forccedila do exemplo de algueacutem que encarou a
morte com naturalidade e coragem eacute mais convincente do que um raciociacutenio loacutegico a
respeito do assunto Secircneca coloca em pauta certos pressupostos do estoicismo
sobre o enfrentamento da morte como libertaccedilatildeo da alma que habita o corpo em
oposiccedilatildeo aos epicuristas que defendem que a morte eacute um sono eterno natildeo havendo
separaccedilatildeo entre corpo e alma o que implica tambeacutem a concepccedilatildeo de destino
Secircneca usa o recurso do exemplo para fortalecer o toacutepos de que ldquoeacute preciso avanccedilar
com audaacutecia e determinaccedilatildeo nas decisotildeesrdquo e destaca as figuras histoacutericas de Catatildeo
e Bruto para firmar seus argumentos A avaliaccedilatildeo do exemplo de Catatildeo eacute positiva
mediante as expectativas do pensamento estoico Assim pode-se observar que tal
exemplo eacute escolhido como reforccedilo de um princiacutepio estoico que serve de modelo para
276
Catatildeo o Jovem (95-46 d C) era seguidor do estoicismo e defensor da repuacuteblica Fazia oposiccedilatildeo a Juacutelio Ceacutesar Sua histoacuteria ficou marcada pela coragem em assumir a proacutepria morte Na epiacutestola 24 Secircneca fornece vaacuterios exemplos de homens que enfrentaram a morte sem medo inclusive Soacutecrates Em suas reflexotildees Secircneca diz ldquoMorremos diariamente jaacute que diariamente ficamos privados de parte da vidardquo (Ep 24 20) 277
O Bruto que Secircneca menciona tambeacutem participou do grupo de poliacuteticos conspiradores do assassinato de Juacutelio Ceacutesar e foi um general e poliacutetico romano que conquistou a proximidade de Juacutelio Ceacutesar No ano de 45 aC Ceacutesar o destinou ao cargo de governador da Gaacutelia
224
os integrantes da escola ou para aquele que pretende aderir aos postulados do
estoicismo Aleacutem do posicionamento do enunciador estar direcionado agrave persuasatildeo
com objetivo de convencimento os argumentos fazem surgir algumas concepccedilotildees
estoicas sobre a morte Por um lado os propoacutesitos da exemplificaccedilatildeo exerce o papel
de introduzir um personagem que age em um determinado contexto histoacuterico
funcionando como um arquivo que fornece o estiacutemulo e incentivo positivo para
accedilotildees futuras Por outro lado a remissatildeo a um personagem de exemplo negativo
natildeo serve de modelo para ilustrar a coragem diante do enfrentamento da morte
Foucault lanccedila um olhar investigativo para o momento histoacuterico em que Secircneca
estava investido e faz a seguinte observaccedilatildeo quanto ao uso do exemplo em suas
epiacutestolas
[] o verdadeiro valor do exemplum histoacuterico exemplum histoacuterico que natildeo buscaraacute na vida dos reis estrangeiros o modelo a ser mostrado o exemplum histoacuterico eacute bom na medida em que nos mostra modelos autoacutectones (romanos) e em que faz aparecer os verdadeiros traccedilos da grandeza que justamente natildeo satildeo as formas visiacuteveis do brilho e do poder mas as formas individuais do domiacutenio de si Exemplo da modeacutestia de Catatildeo exemplo tambeacutem de Cipiatildeo ao deixar Roma a fim de garantir a liberdade para a sua cidade (FOUCAULT 2010a p 236)
Foucault identifica que nos exemplos apontados por Secircneca os personagens
histoacutericos merecedores de atenccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo aqueles que se mostraram natildeo
exatamente donos do mundo mas de si mesmos Estes alcanccedilaram tal domiacutenio
galgando a escalada da virtude
Nas epiacutestolas de Secircneca algumas concepccedilotildees filosoacuteficas do estoicismo satildeo
tratadas com o recurso do exemplo como forccedila persuasiva Os exemplos de Catatildeo
e Bruto servem a Secircneca como reflexatildeo sobre o medo da morte como ponto
decisivo na compreensatildeo da separaccedilatildeo corpo e alma o que justifica a incerteza do
depois da morte
Secircneca na epiacutestola vinte e quatro faz uma narrativa mais detalhada da corajosa
morte de Catatildeo e no desfecho ele dirige o seguinte comentaacuterio a Luciacutelio ldquoNatildeo
estou a coligir exemplos apenas para aguccedilar o engenho mas para que te sirvam de
exortaccedilatildeo contra aquele que imaginamos ser o mais terriacutevel dos malesrdquo (Ep 249)
Secircneca faz questatildeo de registrar o que representa para ele o uso do exemplo como
meio de persuasatildeo partindo do princiacutepio que ldquoo exemplo fala mais altordquo
225
O exemplo para Secircneca deve funcionar como modelo de sabedoria e virtude e ele
explora esse toacutepico recorrendo aos versos de Vergiacutelio de parte de um poema
introduzindo a voz do poeta em seu discurso de forma enigmaacutetica
Sem demora a cria de raccedila nobre pelos campos marcha altaneira as tenras patas flectindo antes dos demais potildee-se a caminho afronta as torrentes impetuosas sem receio afoita-se a percorrer um trilho ignoto e natildeo treme ao ouvir vatildeos ruiacutedos Tem ereto o pescoccedilo fina a cabeccedila breve o ventre liso o dorso e o peito animoso eacute musculado e forte [] E quando ao longe se ouve o sinal de combate Natildeo paacutera quieto erguem-se lhe as orelhas as pernas Tremem e a custo reprimem nas narinas a respiraccedilatildeo Ardente (Ep 95 68)
278
Antes de introduzir Vergiacutelio em seu discurso Secircneca estaacute argumentando sobre a
importacircncia de instruccedilotildees sobre a virtude acompanhada de modelos Ao mencionar
os versos de Vergiacutelio o enunciador provoca certa expectativa pelo uso metafoacuterico e
enigmaacutetico do poema em relaccedilatildeo ao que vinha sendo dito na enunciaccedilatildeo Poreacutem
logo apoacutes a indicaccedilatildeo dos versos eacute realizada uma aplicaccedilatildeo de parte do poema
como metaacutefora Partindo da ideia do valor do modelo na aquisiccedilatildeo da virtude
Secircneca esclarece
Tratando embora um assunto diferente o grande Vergiacutelio faz nestes versos a descriccedilatildeo do verdadeiro heroacutei Pelo menos natildeo eacute diferente a imagem que eu faccedilo do que seja um heroacutei Se eu quisesse descrever a atitude de M Catatildeo impaacutevido entre os fragores da guerra civil partindo ao ataque do exeacutercito inimigo que jaacute descia dos alpes opondo o proacuteprio peito agrave guerra civil ndash pois natildeo o pintaria com outro rosto natildeo lhe atribuiria outra atitude (Ep 9569)
Por meio de suas memoacuterias da histoacuteria da vida de Catatildeo279 Secircneca continua
refletindo sobre o valor de se ter um heroacutei como este para se espelhar e acrescenta
ldquoQue vigor que energia de alma havia neste homem que autoconfianccedila ele
demostrou quando num momento em que todos tremiam de pavorrdquo (Ep 9571) A
figura de Catatildeo o Jovem eacute valorizada tambeacutem pelo modo como lutou pela
repuacuteblica Secircneca exclama [] ldquoa ferida mortal que Catatildeo como decisivo ato de
278
Traduccedilatildeo de Segurado e Campos Partes do poema de Vergiacutelio (Georg III 75-81 e 83- 85) No poema Vergiacutelio trata de questotildees da vida no campo com foco nos animais Nesses versos apontados por Secircneca eacute destacada a imagem do cavalo e suas funccedilotildees e nessas descriccedilotildees percebe-se um cunho de aplicaccedilatildeo filosoacutefico-moral Eacute nesse sentido que Secircneca tambeacutem faz uma comparaccedilatildeo da imagem do cavalo como heroacutei ao seu personagem Catatildeo (o Jovem) 279
Marco Poacutercio Catatildeo referido por Secircneca no diaacutelogo com o poema de Vergiacutelio se trata do bisneto de Catatildeo o Velho Na mesma epiacutestola ainda nas referecircncias aos exemplos de outros personagens histoacutericos Secircneca acrescenta ldquoou os feitos sublimes puacuteblicos e privados do outro Catatildeo (o Velho) (Ep 9572)
226
coragem infligiu a si mesmo ferida por onde a liberdade republicana exalou o uacuteltimo
suspirordquo (Ep 9572)
Os versos introduzem a voz de Vergiacutelio na enunciaccedilatildeo como forccedila metafoacuterica para a
analogia que Secircneca se propotildee em relaccedilatildeo agrave figura de Catatildeo como um
personagem histoacuterico de valor na poliacutetica Na epiacutestola vinte e quatro Secircneca insiste
com a questatildeo da importacircncia do exemplo e faz a seguinte afirmativa ldquoO problema
natildeo eacute descobrir exemplos mas sim escolhecirc-losrdquo (Ep 243)
Secircneca concebe a virtude como um requisito a ser adquirido pelo aprendizado
mostrando a importacircncia de se pautar em um modelo como referecircncia Assim ele
atrai seu leitor com versos de Vergiacutelio e com base nestes introduz a figura de
Catatildeo jaacute valorizada culturalmente no imaginaacuterio do leitor280 Observa-se entatildeo que
o discurso literaacuterio agrega-se ao discurso filosoacutefico e serve de base para
fortalecimento dos argumentos contribuindo para um sentido de completude entre
discursos constituintes
Secircneca aconselha Luciacutelio a escolher um modelo de personalidade a ser seguido
colocando em cena Catatildeo281 o Velho Essas satildeo suas sugestotildees ldquoEscolhe por
exemplo Catatildeo se este te parecer demasiado riacutegido escolhe Leacutelio que eacute homem de
espiacuterito mais maleaacutevelrdquo (Ep 1110) Na concepccedilatildeo de Secircneca o indiviacuteduo tem
necessidade de algueacutem em que possa se espelhar e afinar ao seu proacuteprio caraacuteter O
fechamento desses conselhos persuasivos quanto agrave eficaacutecia do exemplo eacute feito
atraveacutes da seguinte maacutexima ldquoriscos tortos soacute se corrigem com a reacuteguardquo (Ep 1110)
Assim como o exemplo histoacuterico tem por si soacute uma forccedila persuasiva como
defendido por Aristoacuteteles o exemplo pessoal funciona no discurso em instacircncias
distintas Por um lado o enunciador traz para a enunciaccedilatildeo fato ocorrido de sua
proacutepria experiecircncia para servir de exemplo aos seus destinataacuterios Por outro lado o
exemplo pessoal serve como forma de identificaccedilatildeo do ethos mostrado no discurso
Consequentemente o efeito do logos atinge o pathos ou seja o discurso alcanccedila a
280
Na epiacutestola vinte e quatro Secircneca argumenta com Luciacutelio que a histoacuteria de Catatildeo era repetida em todas as escolas principalmente quando se tratava do problema do desprezo pela morte (Ep 246) 281
Catatildeo o Velho (234 - 149 dC) era referecircncia entre os romanos Foi poliacutetico e escritor que valorizou e fortificou a escrita em liacutengua latina e era bisavocirc de Catatildeo o Jovem Ciacutecero no tratado sobre a velhice M Tvlli Ciceronis Cato Maior de Senectvte faz uso da dialeacutetica trazendo para o discurso a voz do idoso e experiente Catatildeo (o Velho) que em forma de diaacutelogo discute com Leacutelio e Cipiatildeo as questotildees sobre a forma saacutebia de se assumir a velhice
227
audiecircncia agrave qual o ethos se dirige Nessa perspectiva as trecircs provas ethos logos e
pathos satildeo acionadas em conjunto pela estrateacutegia do recurso ao exemplo pessoal
No gecircnero epistolar o uso do exemplo do outro pode funcionar diante do
destinataacuterio como um incentivo agrave imitaccedilatildeo enquanto o exemplo pessoal pode
estabelecer uma relaccedilatildeo de autoridade testemunhal de quem fala trazendo para a
enunciaccedilatildeo uma discursividade distinta daquela do exemplo histoacuterico Neste caso o
proacuteprio enunciador coloca-se como voz autorizada no fortalecimento da persuasatildeo
Pode-se aventar que o exemplo pessoal no gecircnero epistolar pode operar como
ensinamento de algo comum entre o emissaacuterio e o destinataacuterio a quem se dirige O
exemplo pessoal coloca o enunciador na posiccedilatildeo de um indiviacuteduo experiente em
relaccedilatildeo aos conteuacutedos de seus ensinamentos e argumentaccedilatildeo Ele se coloca como
uma prova contundente da eficaacutecia de seu discurso
A esse respeito Secircneca mostra-se diante de Luciacutelio por meio da correspondecircncia
como a voz da experiecircncia legitimada que pelo desabafo introduz seus conselhos
ao destinataacuterio de sua missiva
Se tens alguma confianccedila em mim revelar-te-ei totalmente os meus mais iacutentimos sentimentos eu formei o meu caraacuteter no meio de toda a espeacutecie de circunstacircncias aparentemente desfavoraacuteveis e duras mas natildeo me limito a ceder agrave vontade dos deuses dou-lhes mesmo a minha concordacircncia submeto-me espontaneamente Nunca me acontece nada que eu receba com amargura ou de maacute cara natildeo haacute imposto algum que eu pague contra a vontade (Ep 962)
Na sua anaacutelise sobre a escrita de si Foucault (2004 p 156) aponta que a
correspondecircncia oferece a vantagem do emissaacuterio mostrar-se ao olhar do outro
atraveacutes do que lhe eacute dito sobre si mesmo Eacute nesse tom que Secircneca se dirige a
Luciacutelio ldquorevelar-te-ei totalmente os meus mais iacutentimos sentimentosrdquo Com essa
disposiccedilatildeo Secircneca coloca-se como algueacutem que sabe encarar com coragem os
enfrentamentos da vida revertendo situaccedilotildees desfavoraacuteveis Por meio desse
exemplo pessoal ele se oferece ao olhar do outro tanto em razatildeo de suas
experiecircncias individuais quanto de suas proacuteprias convicccedilotildees existenciais Tais
procedimentos estatildeo diretamente ligados ao seu posicionamento de estoico
praticante
Nessa abertura que Secircneca faz de si para o outro ele investe na forccedila persuasiva
do proacuteprio exemplo como meio de defender certos postulados da filosofia estoica
que ele incorporou na sua praacutetica de vida O eixo central dessa argumentaccedilatildeo eacute a
228
defesa do determinismo como um postulado filosoacutefico que permite a coerecircncia com
a noccedilatildeo de liberdade Reale (1994a p 316) interliga os conceitos estoicos de
providecircncia282 e de necessidade ao de determinismo que formando um conjunto
vinculam-se ao conceito de deuses Para os estoicos os deuses nascem e morrem
junto com a evoluccedilatildeo ciacuteclica do cosmo O deus supremo permanece havendo
identificaccedilatildeo entre deus natureza Hirschberger (1965 p 264) observa que os
estoicos admitem um princiacutepio imanente de explicaccedilatildeo do mundo O devir se
desenvolve em grandes ciclos e a restauraccedilatildeo universal se daacute por vezes infinitas e o
mesmo se repete Existe uma forccedila divina primitiva que engloba a ideia de deus
razatildeo destino e natureza
Foucault (2010a p249) procura associar conhecimento de si e conhecimento da
natureza e comenta que em Secircneca esse conhecimento da natureza permite que o
ser humano apreenda por ele mesmo o lugar que ocupa nesse mundo de uma
providecircncia divina Segundo a interpretaccedilatildeo e afirmativa de Foucault
[] eacute essa providecircncia divina que nos colocou laacute onde estamos que nos
situou pois no interior de um encadeamento de causas e efeitos particulares que precisamos aceitar se quisermos nos liberar desse
encadeamento (FOUCAULT 2010a p 250)
A partir dessas observaccedilotildees Foucault ressalta que o saber sobre a natureza eacute
liberador na medida em que permite que o ser humano natildeo desvie de si mesmo
enquanto ligado a um conjunto de determinaccedilotildees e necessidades cuja racionalidade
se torna compreensiacutevel
Eacute firmado nesses princiacutepios da filosofia estoica que Secircneca revela a Luciacutelio ldquomas
natildeo me limito a ceder agrave vontade dos deuses dou-lhes mesmo a minha
concordacircncia submeto-me espontaneamente e natildeo por tal ser inevitaacutevelrdquo (Ep
962) Com esta declaraccedilatildeo Secircneca mostra-se concordante com o determinismo
pela vontade dos deuses natildeo no sentido de obediecircncia a uma imposiccedilatildeo mas com
a liberdade que proveacutem de sua escolha de aceitaccedilatildeo do funcionamento da natureza
pois para os estoicos o destino eacute causa natural e irreversiacutevel de todas as coisas
282
Segundo Reale (1994a p 314) a providecircncia estoica natildeo tem nada a ver com a providecircncia de um Deus pessoal pois trata-se de uma providecircncia imanente e natildeo transcendente A imanecircncia eacute a presenccedila de uma forccedila divina que permeia todas as coisas que existem e eacute capaz de influenciaacute-las direta ou indiretamente A transcendecircncia atribui a Deus uma existecircncia separada das coisas das quais ele eacute o criador Com essas distinccedilotildees Reale aponta que a providecircncia na concepccedilatildeo imanente natildeo se ocupa dos homens individualmente e eacute nessa perspectiva que os estoicos concebem o destino como ordem natural e necessaacuteria de todas as coisas
229
Esta eacute a convicccedilatildeo que Secircneca procura transmitir ao seu amigo Luciacutelio com a forccedila
persuasiva de sua proacutepria experiecircncia e exemplo
Ainda Secircneca fala de si de sua experiecircncia e de seu proacuteprio exemplo afirmando
sua convicccedilatildeo de estar bem preparado para enfrentar duas realidades que ao ser
humano satildeo destinadas a velhice e a morte
Estou preparado para partir e assim gozo tanto mais a vida quanto menos me preocupa saber quanto tempo o futuro ainda me reserva Antes de atingir a velhice tive a preocupaccedilatildeo de viver bem agora que sou velho preocupo-me em morrer bem e morrer bem significa ser capaz de aceitar a morte (Ep 612)
Para Foucault (2010a p102) esta declaraccedilatildeo de Secircneca resume a noccedilatildeo do
cuidado de si sendo este o resultado da escolha de um modo de vida O indiviacuteduo
que adota os preceitos do cuidado de si como meta seraacute capaz de experimentar o
coroamento e recompensa de tal escolha no periacuteodo da velhice Sobre a ideia de
morrer bem Foucault (2010a p 412) observa que para os estoicos o pensamento
em relaccedilatildeo agrave morte apreende o valor do presente pois a morte eacute um processo
contiacutenuo desde o nascimento e viver eacute morrer um pouco a cada dia
A chance de falar de si mesmo e usar esse meio como forma de argumentaccedilatildeo e
convencimento de seu destinataacuterio torna-se um meio favorecido pelo gecircnero
epistolar Segundo Paul Veyne (1995 p 251) na Antiguidade um escritor soacute
poderia manifestar-se livremente para falar de si mesmo283 com fins de edificaccedilatildeo
filosoacutefica ou religiosa Entatildeo a melhor forma de convencimento era colocar como
exemplo a proacutepria existecircncia Secircneca encontra espaccedilo na filosofia para falar de si
atraveacutes do gecircnero epistolar e Paulo no campo religioso para se colocar diante de
seus destinataacuterios tomando sua proacutepria experiecircncia de conversatildeo como exemplo
pessoal em suas epiacutestolas
O exemplo como argumento retoacuterico tambeacutem eacute utilizado po Paulo em suas epiacutestolas
agrave igreja de Corinto A escolha dos exemplos em Secircneca eacute direcionada pelo discurso
constituinte filosoacutefico Nas epiacutestolas de Paulo os exemplos tecircm sustentaccedilatildeo no
discurso constituinte religioso
283
Paul Veyne (1995 p 251) constata que se o poeta falava de si de seus amores e assim por diante tudo era considerado ficccedilatildeo
230
222 Exemplos nas epiacutestolas de Paulo agrave igreja de Corinto
No discurso religioso da cultura judaico-cristatilde lugar de onde Paulo enuncia
registrando a escrita de suas epiacutestolas haacute um princiacutepio de valorizaccedilatildeo de eventos
histoacutericos como prova e testemunho da atuaccedilatildeo de Deus Eacute nesse sentido que os
exemplos apontados na escrita de Paulo tanto evidenciam a atuaccedilatildeo de Deus no
passado quanto no seu proacuteprio presente Atraveacutes da histoacuteria de personagens que se
destacaram quer de forma positiva pela vida e experiecircncia na relaccedilatildeo com Deus
quer de forma negativa pela desobediecircncia os exemplos contribuem para
atualizaccedilatildeo do passado no momento presente da enunciaccedilatildeo No texto biacuteblico
muitos exemplos em certas circunstacircncias atuam como uma representaccedilatildeo
alegoacuterica para se entender os significados de fenocircmenos da atualidade por uma
imagem simboacutelica do passado
Nas duas epiacutestolas dirigidas agrave igreja de Corinto Paulo investe no uso do exemplo
testemunhal como forccedila persuasiva no discurso com vistas aos ensinamentos
admoestaccedilotildees e reflexotildees A partir desse recurso os exemplos comparecem no
discurso com uma determinada finalidade para as quais cada um se destina Na
primeira epiacutestola o destaque eacute para o capiacutetulo dez pois fornece um exemplo
construiacutedo a partir de imagens alegoacutericas Esse exemplo eacute constituiacutedo atraveacutes do
resgate da memoacuteria por meio da experiecircncia vivida pelo povo de Israel durante sua
jornada de quarenta anos pelo deserto Em conjunto com essa memoacuteria histoacuterica
baacutesica para o raciociacutenio indutivo Paulo expotildee que as experiecircncias do povo da
caminhada no deserto foram registradas para servir de exemplo agrave posteridade Ao
mesmo tempo o raciociacutenio dedutivo resulta na aplicaccedilatildeo da alegoria adotada como
reforccedilo aos postulados expostos
Pois natildeo quero irmatildeos que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem e todos passaram pelo mar e na nuvem e no mar todos foram batizados em Moiseacutes e todos comeram do mesmo alimento espiritual e beberam todos da mesma bebida espiritual porque bebiam da pedra espiritual que os acompanhava e a pedra era Cristo Mas Deus natildeo se agradou da maior parte deles pelo que foram prostrados no deserto Ora estas coisas nos foram feitas para exemplo a fim de que natildeo cobicemos as coisas maacutes como eles cobiccedilaram E natildeo murmureis como alguns deles murmuraram e pereceram pelo destruidor Ora tudo isto lhes acontecia como exemplo e foi escrito para aviso nosso para quem jaacute satildeo chegados os fins dos seacuteculos (1Cor 10 1-6 10-11)
Em seus ensinamentos Paulo traz para seu discurso a imagem do povo de Israel na
caminhada no deserto em busca da terra prometida Com os recursos dessa
231
imagem ele estaacute apontando para os riscos da desobediecircncia Este mesmo exemplo
acionado por Paulo foi usado na literatura poeacutetica pois o texto em Salmos setenta e
oito284 eacute todo construiacutedo em torno dos relatos da histoacuteria da caminhada do povo de
Israel jaacute deixando nas entrelinhas um posicionamento de captaccedilatildeo de sentidos
alegoacutericos Mais tarde o meacutetodo alegoacuterico vai ser amplamente assumido e utilizado
por Fiacutelon de Alexandria que tambeacutem retoma essa narrativa das experiecircncias do
povo hebraico em sua trajetoacuteria histoacuterica rumo ao lugar tatildeo almejado Acerca desse
fato Becker (2007 p89) informa que ldquoa interpretaccedilatildeo sinagogal da Septuaginta
conhece jaacute o meacutetodo alegoacuterico influiacutedo de espiacuterito grego tal como Paulo o usardquo
De acordo com Stern a alegoria usada por Fiacutelon285 que relaciona as figuras do
manaacute e da aacutegua com a palavra e a sabedoria de Deus pode ter servido de base
para essa construccedilatildeo alegoacuterica feita por Paulo Este autor ainda acrescenta que de
acordo com o Aggadah286 ldquoos filhos de Israel eram acompanhados no deserto por
uma pedra rolante da qual manava aacuteguardquo (STERN 2008 p 508)
Essas informaccedilotildees contribuem para a identificaccedilatildeo dos efeitos da intertextualidade
entre o texto de Paulo com outros textos que o antecederam como um lugar comum
na literatura hebraica A alegoria paulina resgatada da passagem aqui analisada e
revestida da finalidade da aplicaccedilatildeo dos significados traz para a enunciaccedilatildeo a forccedila
argumentativa do exemplo Paulo extrai da narrativa da caminhada do povo de Israel
vaacuterios modelos associados agraves situaccedilotildees vividas pelos seus liderados naquele
284
No livro de Salmos (78 13-18 23) o poeta assim traz o exemplo da desobediecircncia do povo de Israel [] Dividiu o mar e os fez atravessar barrando as aacuteguas como num dique De dia guiou-os com a nuvem e com a luz de um fogo toda a noite fendeu rochedos pelo deserto e deu-lhes a beber como a fonte do grande Abismo da pedra fez brotar torrentes e as aacuteguas desceram como rios Mas continuaram pecando contra ele rebelando-se contra o Altiacutessimo na estepe tentaram a Deus em seu coraccedilatildeo pedindo comida conforme seu gosto [] Contudo ordenou agraves nuvens do alto e abriu as portas do ceacuteu para os alimentar fez chover o manaacute deu para eles o trigo do ceacuteu 285
Charles Duke Yonge traduziu do grego para o inglecircs (1854-55) o conjunto das obras de Fiacutelon de Alexandria intitulada The Works of Philo ldquo[hellip] and the thirst which is that of the passions seizes on it until God sends forth upon it the stream of his own accurate wisdom and causes the changed soul to drink of unchangeable health for the abrupt rock is the wisdom of God which being both sublime and the first of things he quarried out of his own powers and of it he gives drink to the souls that love God and they when they have drunk are also filled with the most universal manna for manna is called something which is the primary genus of everything But the most universal of all things is God and in the second place the word of Godrdquo [hellip] (Allegorical Interpretation II 86) ( [hellip] e a sede que eacute a das paixotildees se apodera dela (alma) ateacute que Deus envia sobre ela (alma) o fluxo de sua proacutepria sabedoria e faz com que a alma mudada beba de sauacutede imutaacutevel pois a rocha abrupta eacute a sabedoria de Deus que eacute sublime e a primeira das coisas que ele extraiu de seus proacuteprios poderes e dele daacute bebida agraves almas que amam a Deus E eles quando bebem satildeo tambeacutem enchidos com o manaacute mais universal pois o manaacute eacute chamado de algo que eacute o gecircnero primaacuterio de tudo Mas a mais universal de todas as coisas eacute Deus e em segundo lugar a palavra de Deusrdquo [] ) 286
Aggadah eacute a designaccedilatildeo para o material lendaacuterio e midraacuteshico da cultura hebraica tecido em torno do Tanakh (conjunto dos livros sagrados do judaiacutesmo)
232
momento As imagens do manaacute e da aacutegua satildeo aplicadas como metaacuteforas analoacutegicas
aos siacutembolos da ceia do Senhor Supostamente esta histoacuteria do povo de Israel jaacute
era conhecida pela igreja de Corinto visto que Paulo jaacute parte das analogias De
acordo com o entendimento e interpretaccedilatildeo de Brakemeier (2008 128) a alegoria
usada fornece aplicaccedilatildeo tambeacutem para as questotildees do batismo Paulo associa a
experiecircncia da travessia do mar com o batismo em Moiseacutes fazendo comparaccedilatildeo
com o ato do batismo cristatildeo de seu tempo
Quando Paulo expotildee que no deserto o povo foi saciado com comida (manaacute) e aacutegua
espiritual (de origem divina) haacute uma analogia com o ato da ceia do Senhor Nessa
mesma linha Schreiner (2015 p 350) tambeacutem interpreta esse exemplo de Paulo
apontando que as imagens de alimento e aacutegua representavam uma antecipaccedilatildeo do
memorial da ceia do Senhor
Na exposiccedilatildeo de Paulo a aacutegua espiritual jorrava daquela rocha que acompanhava a
trajetoacuteria do povo e essa rocha era Cristo Stern (2008 508) sugere que a ideia de
Paulo em comparar aquela rocha com Cristo tem base em outros textos biacuteblicos
que apontam para essa analogia287 Outra ligaccedilatildeo que pode ser acrescentada eacute a
intertextualidade com a cena do diaacutelogo de Jesus com a mulher samaritana quando
Ele declarou ser a fonte da aacutegua viva (Joatildeo 410) Assim a imagem da rocha como
Cristo fornece duas aplicaccedilotildees distintas mas que se interligam Em primeiro lugar
lanccedilando um olhar para a rocha que caminhava com o povo no deserto vecirc-se que
sua caracteriacutestica era a de uma fonte de aacutegua que tinha como funccedilatildeo saciar a sede
Em segundo lugar a rocha fornece outra analogia que funciona como fundamento
para a edificaccedilatildeo Assim Paulo afirma ldquoMas cada um veja como constroacutei Quanto ao
fundamento ningueacutem pode por outro diverso do que foi posto Jesus Cristordquo (1 Cor
311) Quanto ao uso da imagem da rocha comparada com Cristo Heyer formula o
seguinte comentaacuterio
Paulo queria prevenir a comunidade de Corinto e serviu-se da viagem do povo de Israel pelo deserto para consegui-lo A fim de dar mais ecircnfase agrave sua comparaccedilatildeo sugeriu que Cristo jaacute acompanhava o povo de Israel mas nem sequer a presenccedila da ldquorocha no desertordquo foi suficiente para salvar a todos ante a idolatria e a impiedade (HEYER 2009 p 113)
287
Jesus poreacutem fixando o olhar neles disse Que significa entatildeo o que estaacute escrito A pedra que os edificadores tinham rejeitado tornou-se a pedra angular ( Lucas 20 17)
233
Com esta compreensatildeo do uso da metaacutefora da rocha como Cristo Heyer tambeacutem
interpreta a posiccedilatildeo de Paulo em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo desse siacutembolo alegoacuterico
como forma de prevenir os participantes da igreja de Corinto contra os riscos das
consequecircncias da desobediecircncia e idolatria Paulo alerta que mesmo o povo de
Israel sendo acompanhado pela rocha que eacute Cristo deixou-se levar pelos atrativos
do pecado sendo que a maior parte daquela geraccedilatildeo que saiu do Egito natildeo teve a
oportunidade de entrar na Canaatilde prometida
Pode-se pensar que essas analogias impliacutecitas satildeo identificadas como
heterogeneidade enunciativa pois outros discursos estatildeo funcionando como
interdiscurso na sustentaccedilatildeo do discurso que se atualiza na enunciaccedilatildeo Vale
observar que no periacuteodo que Paulo escreveu suas epiacutestolas ainda natildeo havia
circulaccedilatildeo da escrita dos evangelhos e a oralidade era vital para transmissatildeo dos
ensinamentos de Jesus Hale (1983 p 57) defende que o primeiro evangelho a ser
escrito foi o de Marcos o que deve ter ocorrido logo apoacutes a morte de Paulo mais ou
menos em 65 dC Paulo traz para sua enunciaccedilatildeo a complementaridade de um
passado mais remoto com o de um passado mais recente interligando certos
sentidos atraveacutes dos intertextos tanto da escrita quanto da oralidade
Na enunciaccedilatildeo desse exemplo Paulo segue uma sequecircncia loacutegica Primeiro coloca
em cena um fato histoacuterico dos antepassados construindo conjuntamente uma
alegoria com as imagens do mar do manaacute e da aacutegua que implicitamente podem
tambeacutem ser remetidas agraves experiecircncias da igreja de Corinto com relaccedilatildeo ao batismo
e agrave celebraccedilatildeo da ceia Na sequecircncia ele faz uso de um entimema com a seguinte
construccedilatildeo retoacuterica ldquoMas Deus natildeo se agradou da maior parte deles pelo que foram
prostrados no desertordquo (1Cor105) Essa construccedilatildeo entimemaacutetica serve como
argumento para introduzir os ensinamentos e admoestaccedilotildees que ele deseja
ministrar pelo uso do raciociacutenio indutivo ldquoOra esses fatos aconteceram para nos
servir de exemplo a fim de que natildeo cobicemos coisas maacutes como eles cobiccedilaramrdquo
(1Cor 106)
Em um contexto de compreensatildeo equivocada do significado de algumas praacuteticas
rituais como o da celebraccedilatildeo da ceia e do batismo Paulo trata alegoricamente o
exemplo que traz para seu discurso com finalidades persuasivas percebiacuteveis na
forma como ele o aplica aos seus conselhos De acordo com este ponto de vista
Schreiner expressa a seguinte opiniatildeo
234
O texto de 1 Coriacutentios 10 daacute a entender que alguns estavam compreendendo o batismo e a ceia do Senhor num sentido maacutegico achando que por participar deles seriam preservados de qualquer mal de modo que poderiam pecar impunemente [] Para combater essa visatildeo Paulo constroacutei uma analogia entre a experiecircncia de Israel e a dos crentes (SCHREINER 2015 p 346)
Como informa Schreiner (2015 p 350) no tempo de Paulo a primeira parte da
celebraccedilatildeo da ceia funcionava como momento comum de uma refeiccedilatildeo e como
efeito comeccedilou haver desentendimento a respeito da distribuiccedilatildeo desigual Diante
dessa situaccedilatildeo Paulo exortou a comunidade quanto ao verdadeiro significado
daquela observacircncia Em relaccedilatildeo ao batismo havia certa facccedilatildeo entre os
componentes da igreja de Corinto em funccedilatildeo do valor das lideranccedilas de Paulo de
Apolo e de Pedro talvez pela preferecircncia daquele liacuteder288 que os havia batizado A
esse respeito Schreiner (2015 p 347) reflete que nesse contexto o batismo podia
estar sendo indevidamente exaltado perdendo seu significado simboacutelico Conforme
observa Thielman (2007 p 331) uma preocupaccedilatildeo relevante na epiacutestola de Paulo
dirigida aos participantes da igreja de Corinto era promover a concoacuterdia e a uniatildeo
Alguns usos e costumes estavam tornando-se conflitantes naquela comunidade
entre os quais estaacute incluiacutedo o modo de compreensatildeo do significado da celebraccedilatildeo
da ceia pois no capiacutetulo seguinte Paulo fornece as instruccedilotildees de como o ato deveria
ser realizado
As aplicaccedilotildees do exemplo levantado sugerem que Paulo estava aconselhando a
comunidade de Corinto com o propoacutesito de fazecirc-la refletir por meio de figuras
alegoacutericas que nem o valor simboacutelico da passagem pelo mar vermelho nem a
presenccedila da rocha (Cristo) que os acompanhava nem o patildeo e a aacutegua espiritual que
os alimentava serviram de livramento da condenaccedilatildeo Portanto fica entendido que a
desobediecircncia e a idolatria foram as causas da puniccedilatildeo pois com tais atitudes o
povo natildeo conseguiu alcanccedilar o verdadeiro significado da presenccedila constante da
rocha como fonte que jorrava aacutegua e do manaacute que caiacutea do ceacuteu No fechamento de
sua ideia quanto aos significados da alegoria Paulo enfatiza ldquoEstas coisas lhes
aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para nossa instruccedilatildeordquo (1Cor
1011) Desse modo Paulo elabora seu aconselhamento natildeo com imposiccedilatildeo ou
288
Segundo Stern (2008 p 480) ldquopor um lado Apolo era o sucessor de Paulo na igreja de Corinto e viveu na Alexandria helenizada e poderia ter uma formaccedilatildeo influenciada por Filo de Alexandria Por outro lado Pedro em seus ensinamentos teria enfatizado a tradiccedilatildeo judaica Portanto Paulo estaria em uma posiccedilatildeo de acordo entre as duas partes atendendo aos gregos e judeusrdquo Stern (2008 p 481) observa que naquele contexto Paulo se referia aos gentios como gregos ou seja os gentios eram os natildeo judeus
235
proibiccedilatildeo mas com a forccedila de um exemplo registrado na literatura hebraica Assim
apreende-se um efeito de intertextualidade que permite atualizar a discursividade de
um fato passado no presente daquela comunidade de Corinto
Aleacutem do uso argumentativo do exemplo histoacuterico como identificado em Secircneca
Paulo tambeacutem valendo-se do gecircnero epistolar expotildee sua subjetividade usando o
exemplo pessoal como forma de alcanccedilar seus destinataacuterios Sua segunda epiacutestola
dirigida agrave igreja de Corinto eacute marcada pela franqueza e sinceridade ficando claro
que ele deseja consolar mas tambeacutem manifesta sua necessidade de ser consolado
Logo no iniacutecio da epiacutestola esta questatildeo eacute ventilada e Paulo se expressa dizendo que
ldquosabendo que compartilhando os nossos sofrimentos compartilhareis tambeacutem a
nossa consolaccedilatildeordquo (2Cor 17) Eacute nesse contexto que na sequecircncia da epiacutestola
Paulo assim se expotildee no quarto capiacutetulo
7-Temos poreacutem este tesouro em vasos de barro para que a excelecircncia do poder seja de Deus e natildeo de noacutes 8- Em tudo somos atribulados mas natildeo angustiados perplexos mas natildeo desanimados 9 - perseguidos mas natildeo desamparados abatidos mas natildeo destruiacutedos 10 - Trazendo sempre por toda a parte a mortificaccedilatildeo do Senhor Jesus no nosso corpo para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem nos nossos corpos 11 - E assim noacutes que vivemos estamos sempre entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem na nossa carne mortal 14- Sabendo que o que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitaraacute tambeacutem por Jesus e nos apresentaraacute convosco 15- Porque tudo isto eacute por amor de voacutes para que a graccedila multiplicada por meio de muitos faccedila abundar a accedilatildeo de graccedilas para gloacuteria de Deus 16 - Por isso natildeo desfalecemos mas ainda que o nosso homem exterior se corrompa o interior contudo se renova de
dia em dia (2Cor 4 7-11 14 -16)
Nesses versos do capiacutetulo quatro Paulo se coloca pessoalmente diante de
acusaccedilotildees de seus adversaacuterios falando em seu proacuteprio nome e nos de seus
companheiros de missatildeo No verso sete ele usa a metaacutefora ldquovaso de barrordquo em
sintonia textual com o antigo testamento que tambeacutem em sentido metafoacuterico era
anunciado pela voz dos profetas289 apontando que ldquoDeus eacute o oleiro e o homem eacute o
barrordquo Este eacute um toacutepos que amplia as relaccedilotildees de intertextualidade com outros
textos como o da narrativa do livro de Gecircnesis pois o homem foi criado do poacute da
terra no princiacutepio de tudo O efeito dessa heterogeneidade discursiva eacute reforccedilar a
noccedilatildeo de finitude de que o ser humano eacute constituiacutedo De acordo com essa
perspectiva Paulo parte da afirmativa ldquotemos poreacutem este tesouro em vasos de
barrordquo para argumentar sobre o toacutepos ldquofragilidade do corpordquo como vulnerabilidade do
289
Livro de Jeremias 181-6 e Livro de Isaias 648
236
ser humano em oposiccedilatildeo ao poder de Deus Identifica-se a seguinte conclusatildeo
entimemaacutetica ldquopara que a excelecircncia do poder seja de Deus e natildeo de noacutesrdquo Com
esta conclusatildeo Paulo confirma uma concepccedilatildeo de Deus que natildeo poderia ser
ignorada ou seja a sua soberania sobre o mundo em contraposiccedilatildeo ao
pensamento estoico de um deus imanente
Kruse (2008 p106) observa que o contraste entre tesouro e vaso de barro tem o
propoacutesito de mostrar que o poder transcendente pertence a Deus e natildeo ao homem
Desse ponto de vista o exemplo pessoal colocado por Paulo fundamenta-se em um
propoacutesito de mostrar os dois lados de uma mesma moeda isto eacute a fragilidade do
homem e o poder de Deus como enunciado em forma paradoxal ldquoatribulados mas
natildeo angustiados perseguidos mas natildeo desamparados abatidos mas natildeo
destruiacutedosrdquo (vs 8 e 9) A partir dessa mesma convicccedilatildeo Paulo declara agrave igreja de
Filipos ldquoTudo posso naquele que me fortalecerdquo (Fil 413)
Na anaacutelise da segunda epiacutestola aos Coriacutentios Heyer chama atenccedilatildeo para o fato de
que Paulo usa o sintagma Cristo Jesus ou Jesus Cristo somente nos seis versos
iniciais do capiacutetulo quatro mencionado acima A partir do verso sete ele introduz a
metaacutefora tesouro em vaso de barro e nos versos seguintes a designaccedilatildeo Jesus e
natildeo Cristo Jesus ou Jesus Cristo290
Paulo contrariamente a seu costume natildeo fala de Cristo Jesus ou Jesus Cristo mas somente de Jesus e mais precisamente da ldquomorte de Jesusrdquo e da ldquovida de Jesusrdquo O apoacutestolo elegeu deliberadamente e com seguranccedila essas expressotildees Com isso opunha-se a certas mudanccedilas que estavam se produzindo na comunidade de Corinto e que o preocupavam Sob a influecircncia de certas concepccedilotildees gnoacutesticas alguns estavam criando uma imagem de Cristo fortemente espiritualizada e que carregava uma grande ecircnfase em sua glorificaccedilatildeo ateacute o ponto que a vida terrena de Jesus corria perigo de desaparecer ou de ser relegada ao uacuteltimo plano (HEYER 2008 p 153)
Com base nessa observaccedilatildeo de Heyer pode-se constatar que o exemplo pessoal
de Paulo na manifestaccedilatildeo de um ethos de fragilidade que aponta para a finitude que
cerca o ser humano atualiza a figura de Jesus em sua humanidade vulneraacutevel ao
290
No texto desta passagem em grego fica evidente no trecho citado a ausecircncia dos sintagmas Cristo Jesus ou Jesus Cristo frequentes na escrita de Paulo mas somente Jesus (ιησου) ldquoE assim noacutes que vivemos estamos sempre entregues agrave morte por amor de Jesus para que a vida de Jesus se manifeste tambeacutem na nossa carne mortalrdquo ( 2 Cor 411) αει γαρ ημεις οι ζωντες εις θανατον παραδιδομεθα δια ιησουν ινα και η ζωη του ιησου φανερωθη εν τη θνητη σαρκι ημων
237
sofrimento Esse fato eacute fundamental para estabelecimento do valor do sacrifiacutecio de
Jesus e que tambeacutem serve de exemplo para Paulo e seus colaboradores Eacute a partir
dessa perspectiva que a certeza da vitoacuteria de Jesus sobre a morte torna-se ponto de
referecircncia para fortalecimento da coragem parresiacutea e disposiccedilatildeo de seus
seguidores em enfrentar os perigos da morte O posicionamento discursivo na
escrita de Paulo remete a esse lugar que fundamenta seu proacuteprio exemplo e assim
ele toma Jesus como modelo exemplar e na sequecircncia de sua epiacutestola escreve aos
participantes da igreja de Corinto ldquoSede meus imitadores como eu mesmo sou de
Cristordquo (1Cor 111)
De acordo com a visatildeo de Thielman (2007 402) Paulo se firma na certeza de que
as marcas do sofrimento de Jesus estatildeo impressas na exterioridade de seu corpo
mas em seu interior estaacute firmada a garantia da recompensa de uma eternidade com
Ele Este eacute o significado da aplicaccedilatildeo retoacuterica da metaacutefora tesouro em analogia agrave
alma salva que seu fraacutegil corpo abriga Este tambeacutem eacute um dos contrapontos frente
aos estoicos em relaccedilatildeo agrave eternidade que mesmo concebendo a imortalidade da
alma natildeo fazem uma referecircncia consistente quanto ao seu destino
Em Paulo a parresiacutea como coragem no enfrentamento da morte eacute fortalecida pela
esperanccedila da ressurreiccedilatildeo Brakemeier (2008 101-218) aponta que Paulo insiste
em um ponto crucial da implantaccedilatildeo do cristianismo a ressurreiccedilatildeo de Jesus Tal
fato significou a garantia da continuidade do ministeacuterio do proacuteprio Jesus atraveacutes de
seus seguidores A certeza da realidade daquele Jesus vivo tornou-se como fonte
para o enfrentamento da vulnerabilidade do corpo que como vaso de barro volta a
terra mas pela ligaccedilatildeo com Jesus eacute certa a garantia da ressurreiccedilatildeo Este eacute o ponto
fundamental de identidade do cristianismo sem nenhum similar com nenhuma
corrente filosoacutefica ou religiosa que o antecedeu delimitando um distanciamento
entre cristianismo e estoicismo
Algumas observaccedilotildees de Penner e Stichele (2009 p 250-252) evidenciam que nos
primoacuterdios do cristianismo uma marca caracteriacutestica do uso da retoacuterica eacute a
evocaccedilatildeo de textos sagrados do Velho Testamento Desse modo textos
pertencentes agraves escrituras hebraicas podem servir de intertexto tanto nos livros dos
evangelhos quanto nas epiacutestolas Estes autores ainda destacam a forccedila dos
exemplos como fonte para exortaccedilatildeo Assim tanto os testemunhos quanto os
238
exemplos dos antigos funcionam como uma forma de reconfiguraccedilatildeo da parresia
para criar um efeito de estiacutemulo agrave coragem e determinaccedilatildeo
O exemplo em sua funccedilatildeo argumentativa serve de orientaccedilatildeo para uma forma
modelar a ser seguida Conclui-se que do mesmo modo como Secircneca apresenta em
seu discurso um exemplo histoacuterico a ser seguido e tambeacutem se coloca como exemplo
de suas proacuteprias convicccedilotildees diante de seu destinataacuterio Paulo tambeacutem lanccedila matildeo
deste mesmo recurso retoacuterico em suas argumentaccedilotildees Mesmo recorrendo ao
exemplo como argumento retoacuterico cada um desses autores eacute guiado pelo discurso
constituinte que funciona como direcionamento para a tomada de um
posicionamento discursivo na produccedilatildeo de suas epiacutestolas
No proacuteximo item as citaccedilotildees tambeacutem satildeo vistas como argumento retoacuterico mas seu
lugar na enunciaccedilatildeo tem um efeito discursivo distinto do exemplo Tambeacutem a
estrateacutegia argumentativa de integrar outra voz enunciante no proacuteprio discurso eacute
determinada pelo posicionamento que o enunciador assume em seu discurso
23 CITACcedilOtildeES E ENTRECRUZAMENTO DE DISCURSOS CONSTITUINTES
Eacute preciso temperar a leitura com a escrita e reciprocamente de modo que a composiccedilatildeo escrita decirc corpo agravequilo que a leitura recolheu Foucault (2010a p320)
291
As citaccedilotildees comparecem em determinados gecircneros do discurso de acordo com a
imagem que se constroacutei do leitor segundo Maingueneau o leitor modelo Macedo
(2012 p 40) em sua tese sobre este tema adverte que para se perceber a funccedilatildeo
de uma citaccedilatildeo eacute tambeacutem indispensaacutevel levar em conta o contexto em que ela estaacute
inserida Na verdade para quem cita eacute importante projetar no puacuteblico alvo a quem a
obra se dirige a proacutepria capacidade e habilidade de uso de fontes valorizadas como
no caso de Secircneca e de Paulo em suas epiacutestolas
Na colocaccedilatildeo de Maingueneau (1997 p 100) o responsaacutevel pela enunciaccedilatildeo na
qualidade de citante da voz que ressoa de um lugar de autoridade remete-se a um
locutor ausente que garante a validade da enunciaccedilatildeo Quem identifica a autoridade
291
Paraacutefrase de Foucault (2010a p320) com base na epiacutestola oitenta e quatro de Secircneca em seus conselhos sobre leitura e escrita [] ldquodevemos alternar ambas as atividades (leitura e escrita) equilibraacute-las para que a pena venha a dar forma agraves ideias coligidas das leituras (Ep 84 2)
239
da voz citada eacute a coletividade que compartilha certos enunciados fundadores de um
determinado posicionamento discursivo
Das muitas fontes que contribuem para essas concepccedilotildees de noccedilatildeo de citaccedilatildeo
destacam-se as que satildeo identificadas na composiccedilatildeo dos estudos de Bakhtin (2004)
O conceito de citaccedilatildeo apresentado por este autor pode ser considerado como
demonstraccedilatildeo de um iacutecone do entendimento do dialogismo na linguagem ldquoo
discurso citado eacute o discurso no discurso a enunciaccedilatildeo na enunciaccedilatildeo mas eacute ao
mesmo tempo um discurso sobre o discurso uma enunciaccedilatildeo sobre a enunciaccedilatildeordquo
(BAKHTIN 2004 p 144) De acordo com esta constataccedilatildeo este autor distingue as
duas tendecircncias mais evidentes em relaccedilatildeo ao discurso citado Por um lado pode
haver o destaque do discurso citado que congrega a forccedila de sua autonomia
definindo sua importacircncia e papel na cena enunciativa Por outro lado a voz do que
enuncia pode ser confundida com a voz do que eacute citado Em concordacircncia com esta
primeira tendecircncia Charaudeau (2008 p 240) acrescenta ainda que no modo
argumentativo do discurso a citaccedilatildeo ldquoconsiste em referir-se o mais fielmente
possiacutevel agraves emissotildees escritas ou orais de um outro locutor diferente daquele que
cita para produzir na argumentaccedilatildeo um efeito de autenticidaderdquo Por isso
Charaudeau (2008 p240) ainda ressalta que ldquoa citaccedilatildeo funciona como uma fonte de
verdade testemunho de um dizer de uma experiecircncia de um saberrdquo
O modo de citar apresenta certas nuances de acordo com o tipo de discurso ou
mesmo em detrimento de diferenciados posicionamentos que podem ser assumidos
na cena enunciativa Bakhtin (2004 p153) pondera que ldquoo discurso retoacuterico
diferentemente do discurso literaacuterio pela proacutepria natureza da sua orientaccedilatildeo natildeo eacute
tatildeo livre na sua maneira de tratar as palavras de outremrdquo No desenrolar de suas
consideraccedilotildees Bakhtin (2004 p153) aponta a importacircncia da comunicaccedilatildeo soacutecio-
verbal na transmissatildeo do discurso de outrem pois existe influecircncia das forccedilas
sociais na apreensatildeo do discurso292
Partindo desses princiacutepios que auxiliam na identificaccedilatildeo do fenocircmeno da citaccedilatildeo na
heterogeneidade da linguagem deve-se ressaltar tambeacutem que nesta perspectiva
haacute uma sustentaccedilatildeo da concepccedilatildeo do discurso como produto do interdiscurso
sendo este constituiacutedo pela relaccedilatildeo entre os discursos 292
Bakhtin (2004 p143) menciona a questatildeo da ausecircncia de atenccedilatildeo ao fenocircmeno do discurso citado tatildeo relevante na linguagem Assim ele procura dar uma orientaccedilatildeo socioloacutegica agrave sua proacutepria metodologia na observaccedilatildeo da transmissatildeo do discurso de outrem
240
A seguir atraveacutes da anaacutelise de textos de epiacutestolas de Secircneca e de Paulo que
contecircm citaccedilotildees de diferentes fontes procura-se observar como o discurso do outro
eacute assumido em seus proacuteprios discursos e que ressonacircncias essas vozes trazem
para a enunciaccedilatildeo Em suma que significados trazem para a enunciaccedilatildeo a
presenccedila do outro como uma voz que se manifesta com uma determinada
finalidade por parte do enunciador que articula sua proacutepria fala com a do outro Que
efeitos discursivos resultam do atravessamento de outros discursos constituintes em
que cada um tem a sua autonomia mas contribuem na promoccedilatildeo dos sentidos pelo
fenocircmeno de sua presenccedila em outro discurso como no caso dos discursos
religioso filosoacutefico e literaacuterio
231 Citaccedilotildees de maacuteximas e versos nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio
Na abordagem de Aristoacuteteles em que ele concebe os entimemas e exemplos como
constituintes do corpo da retoacuterica a maacutexima pode ser vista como premissa ou
conclusatildeo de um entimema Isto implica dizer que quando eacute colocada uma
conclusatildeo em uma maacutexima esta se torna um entimema Aristoacuteteles fornece o
exemplo de duas maacuteximas ldquoNatildeo haacute homem que seja inteiramente felizrdquo ldquoNatildeo haacute
homem que seja livrerdquo Estas duas premissas satildeo maacuteximas mas se for
acrescentada a conclusatildeo ldquoporque o homem eacute escravo da riqueza ou da fortunardquo
entatildeo seraacute um entimemema (Ret II 1394b) Outro aspecto que Aristoacuteteles aborda
sobre o valor do uso da maacutexima eacute o seu caraacuteter eacutetico Desse modo as maacuteximas
revestem-se de uma funccedilatildeo de aplicaccedilatildeo moral no discurso (Ret II 1395b)
O termo maacutexima eacute uma traduccedilatildeo de gnome do grego (γνώμη) conforme a escrita de
Aristoacuteteles293 na obra Retoacuterica e tem sentido de declaraccedilatildeo opiniatildeo ou afirmaccedilatildeo
Na retoacuterica latina o termo gnome eacute traduzido como sententiae como informa
Quintiliano294 (Inst Or VIII 5 3) Martin Dinter (2015 p 52) observa que ldquoSententiae
satildeo tidas como pontos-alto de arte retoacuterica e vistas como o legado mais duradouro
do autor aleacutem disso satildeo extraiacuteveis e incorporaacuteveis em novos textos literaacuteriosrdquo Este
autor ainda acrescenta ldquoas sententiae ajudam a construir uma base eacutetica plausiacutevel
293
Segundo Martin Dinter (2015 p56) Aristoacuteteles em sua discussatildeo sobre o uso de gnome na Retoacuterica (2211395b) sugere que talvez haja relaccedilatildeo entre o caraacuteter moral do autor e a qualidade eacutetica de sua gnome 294
Antiquissimae sunt quae proprie quamvis omnibus idem nomen sit sententiae vocantur quas
Graeci gnomas appellant (Inst Or VIII 5 3) Ao referir-se ao uso de sententia Quintiliano observa
que as mais antigas satildeo aquelas que embora todas tenham o mesmo nome satildeo chamadas de sententiae as quais os gregos datildeo o nome de gnome
241
para a apresentaccedilatildeo da visatildeo do autorrdquo Martin Dinter (2014 p 323) em suas
pesquisas sobre o uso de sententiae nas trageacutedias de Secircneca identifica a
importacircncia de Secircneca o Velho na transmissatildeo da sua coletacircnea de sententiae
para os seus filhos A evidecircncia desse fato eacute notada no modo como Secircneca faz uso
recorrente de sententiae na sua obra poeacutetica e filosoacutefica
Na traduccedilatildeo das epiacutestolas de Secircneca Segurado e Campos opta por traduzir o termo
sententiae como maacuteximas estabelecendo um uso comum para as formas como
Secircneca aplica o termo em suas epiacutestolas O uso do termo maacuteximas tanto refere-se a
sententiae no latim como a gnome no grego Portanto na pesquisa aqui
desenvolvida fica mantido o termo maacuteximas como traduzido por Segurado e
Campos
Nas epiacutestolas de Secircneca a Luciacutelio destaca-se o uso frequente de citaccedilotildees de
maacuteximas Como estrateacutegia retoacuterica Secircneca defende tanto o uso de maacuteximas quanto
de versos Na epiacutestola noventa e quatro ele desenvolve alguns argumentos sobre a
importacircncia e papel da advertecircncia e dos preceitos e daacute as seguintes instruccedilotildees
[] preceitos ministrados podem ter por si soacute muita forccedila se vierem por exemplo sob forma meacutetrica ou mesmo em prosa sob forma de uma sentenccedila concisa Tal acontece por exemplo com as famosas maacuteximas de Catatildeo Natildeo compres o necessaacuterio mas apenas o imprescindiacutevel o que natildeo eacute necessaacuterio mesmo por um tostatildeo jaacute eacute caro ou entatildeo com as natildeo menos ceacutelebres sentenccedilas oraculares ou semelhantes aproveita o tempo conhece-te a ti mesmo [] Tais maacuteximas natildeo carecem de advogado atuam diretamente sobre as paixotildees a sua utilidade nasce do fato de elas exercerem a sua accedilatildeo por forccedila da sua natureza (Ep 94 27-28)
Essas orientaccedilotildees de Secircneca aparecem nesta epiacutestola noventa e quatro como
constataccedilatildeo de sua proacutepria praacutetica na organizaccedilatildeo retoacuterica de seu discurso Quando
Secircneca afirma que as maacuteximas atuam diretamente sobre as paixotildees ele coloca em
pauta as trecircs provas do discurso ethos pathos e logos Ao enfatizar a accedilatildeo do logos
direcionado ao pathos Secircneca tambeacutem admite a importacircncia e valor da atenccedilatildeo aos
interesses e gostos dos seus leitores
Logo no iniacutecio da compilaccedilatildeo de suas epiacutestolas Secircneca usa uma estrateacutegia
argumentativa em suas citaccedilotildees de maacuteximas Ele declara a Luciacutelio que vai oferecer
uma maacutexima como brinde no fechamento de suas epiacutestolas Pode ser verificado
que da epiacutestola dois ateacute a vinte e nove Secircneca cumpre rigorosamente sua
promessa
242
O que se pode observar nessa estrateacutegia de Secircneca eacute o interesse em alcanccedilar seu
destinataacuterio com ensinamentos de princiacutepios da filosofia estoica de acordo com
seus proacuteprios posicionamentos De fato em algumas de suas epiacutestolas ele discorda
em alguns pontos com representantes do estoicismo inclusive de Zenatildeo mas
reafirma repetidas vezes que eacute integrante da escola estoica295
Nota-se que a primeira maacutexima oferecida a Luciacutelio eacute de Epicuro acompanhada da
sugestatildeo do uso diaacuterio de uma maacutexima para meditaccedilatildeo
Eacute isso o que eu mesmo faccedilo de muita coisa que li retenho uma certa maacutexima A minha maacutexima de hoje encontrei-a em Epicuro (eacute um haacutebito percorrer os acampamentos alheios natildeo como desertor mas sim como batedor) Diz ele Eacute um bem desejaacutevel conservar a alegria em plena pobrezardquo E com razatildeo pois se haacute alegria natildeo pode haver pobreza natildeo eacute pobre quem tem pouco mas sim que deseja mais (Ep 25-6)
Ao evocar uma maacutexima oriunda de um autor de oposiccedilatildeo filosoacutefica aos estoicos
Secircneca prova que natildeo adota uma posiccedilatildeo radical em relaccedilatildeo aos epicuristas mas
tenta extrair de pensadores daquela escola o que eacute proveitoso para suas proacuteprias
concepccedilotildees filosoacuteficas Isto eacute o que ele mesmo afirma que ao penetrar em
acampamento alheio ele natildeo se porta como desertor mas como batedor Com essa
afirmativa metafoacuterica ele anuncia que natildeo eacute um desistente do estoicismo mas um
usufruidor do epicurismo
Esta maacutexima que Secircneca aproveita de Epicuro tem como finalidade a confirmaccedilatildeo
de sua proacutepria posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao toacutepos que aborda pobreza riqueza Este
fato eacute identificado atraveacutes da construccedilatildeo de outra maacutexima que Secircneca superpotildee agrave
de Epicuro ldquonatildeo eacute pobre quem tem pouco mas sim quem deseja maisrdquo (Ep 26)
Outro assunto que Secircneca desenvolve apoiado em citaccedilotildees de maacuteximas eacute o tema
da morte As maacuteximas de Epicuro fornecem material para Secircneca discutir com
Luciacutelio sobre a preparaccedilatildeo para o enfrentamento da morte Esta eacute uma estrateacutegia
significativa porque ele parte do epicurismo para desenvolver suas concepccedilotildees de
princiacutepios estoicos Secircneca justifica-se diante de Luciacutelio quanto agraves suas escolhas
apontando que as maacuteximas de Epicuro pertencem a todos Para explicar sua opccedilatildeo
Secircneca faz a seguinte analogia ldquoEm mateacuteria de filosofia entendo que se pode
295
A respeito de certas divergecircncias pontuais entre integrantes da escola estoica Gazolla (1999 17) faz o seguinte comentaacuterio ldquoApesar de algumas diferenccedilas profundas de pensamento entre certos filoacutesofos estoicos satildeo todos eles partiacutecipes da escola estoica como se ela fosse um todo harmonioso que persistiu por quase quinhentos anos Como no caso de Secircneca teorizando e vivenciando os princiacutepios da stoa por vezes modifica-os em funccedilatildeo exatamente de sua proacutepria experiecircncia de vidardquo
243
proceder como no senado se algueacutem faz uma proposta que apenas me agrada em
parte mando-o dividi-la em aliacuteneas e dou o meu voto agrave aliacutenea que aprovordquo (Ep 21
9) Secircneca cita algumas maacuteximas de Epicuro para delas retirar o que eacute proveitoso
para a filosofia estoica
Ao chegar quase no final da seacuterie de epiacutestolas em que Secircneca oferece um brinde a
Luciacutelio com a oferta de maacuteximas fazendo um comentaacuterio bem metafoacuterico e
humorado com base em uma cena de transaccedilatildeo de negoacutecios decerto familiar no
setor econocircmico em que ambos participavam
Jaacute estava a terminar jaacute a minha matildeo se aprontava para a foacutermula final devo no entanto contar as moedas e dar a esta carta o seu viaacutetico Mesmo que eu natildeo diga a quem vou pedir o dinheiro emprestado tu jaacute calculaste a que cofre vou bater Mas espera por mim mais um pouco e eu passarei a pagar-te do meu proacuteprio bolso Entretanto o banqueiro seraacute Epicuro o qual nos aconselha a ldquomeditar na morterdquo ou a ldquoatribuir a maior importacircncia agrave aprendizagem da morterdquo (Ep 268)
Secircneca expotildee que Epicuro nos aconselha a ldquomeditar na morterdquo Este toacutepos eacute comum
agraves duas escolas mesmo tendo aplicaccedilotildees divergentes As reflexotildees sobre a morte
satildeo constantes na maior parte das epiacutestolas de Secircneca firmemente apoiando-se na
seleccedilatildeo de citaccedilotildees de maacuteximas na evoluccedilatildeo de suas argumentaccedilotildees
Aleacutem do recurso retoacuterico da citaccedilatildeo Secircneca coloca na cena enunciativa a presenccedila
do representante da escola filosoacutefica rival Com uma taacutetica persuasiva excepcional
ele procura convencer Luciacutelio a aceitar os princiacutepios da filosofia estoica valendo-se
do proacuteprio epicurismo como ponto de partida Quando Secircneca chega ao final do
cumprimento de sua proposta das ofertas de maacuteximas ele faz algumas
observaccedilotildees
Se natildeo fosses muito rigoroso bem poderias isentar-me do uacuteltimo pagamento mas natildeo vou ser mesquinho agora que a diacutevida estaacute no fim Aiacute tens o que devo ldquoNunca pretendi agradar ao vulgo daquilo que eu sei o vulgo natildeo gosta daquilo que o vulgo gosta natildeo quero eu saberrdquo Quem eacute o autor Pareces pensar que eu ignoro que pessoa eacute o meu disciacutepulo Eacute Epicuro mas o mesmo te diratildeo os mestres de todas as outras escolas peripateacuteticos acadecircmicos estoicos ciacutenicos (Ep 2910-11)
Segurado e Campos (1991 p XV) identifica que uma das caracteriacutesticas da diatribe
eacute ldquoo chamado locutor fictiacuteciordquo em que o autor imagina que sua afirmaccedilatildeo eacute
contestada pelo interlocutor passando a discutir com ele como se estivesse lendo
seus pensamentos Secircneca usa esse recurso como se estivesse em frente a Luciacutelio
ouvindo sua reaccedilatildeo em resposta agrave citaccedilatildeo da maacutexima Secircneca coloca suas palavras
na boca de Luciacutelio quem eacute o autor E o proacuteprio Secircneca exclama ldquoPareces pensar
244
que eu ignoro que pessoa eacute o meu disciacutepulordquo Nota-se a influecircncia dos ciacutenicos em
relaccedilatildeo ao uso da diatribe tanto no estilo da composiccedilatildeo de partes do discurso
quanto na indicaccedilatildeo dos exemplos a ser imitados e na citaccedilatildeo de maacuteximas que tecircm
a moral como pano de fundo
Em epiacutestolas anteriores Secircneca usou diferentes justificativas para suas citaccedilotildees de
maacuteximas de Epicuro alegando que ldquoqualquer boa maacutexima seja qual for o autor eacute
minha propriedaderdquo (quidquid bene dictum est ab ullo meum est) (Ep 167) No
fechamento do bloco de vinte oito epiacutestolas em que ele usou deliberadamente
maacuteximas de Epicuro eacute colocada a questatildeo da autoria Para ele depois que o
discurso eacute divulgado passa a ser de domiacutenio puacuteblico Isto eacute confirmado em sua
posiccedilatildeo quando se refere agraves demais escolas A esse respeito em nota da traduccedilatildeo
da epiacutestola trinta e um Segurado e Campos faz as seguintes alegaccedilotildees
Ao contraacuterio do que sucedia nas cartas precedentes Secircneca deixa a partir de agora de encerrar as suas epiacutestolas com a citaccedilatildeo de uma maacutexima de Epicuro Fecirc-lo a princiacutepio na convicccedilatildeo de que lhe seria mais faacutecil converter Luciacutelio ao estoicismo se comeccedilasse por alimentar a meditaccedilatildeo com pensamentos epicuristas embora interpretados em sentido estoico De aqui em diante contudo Secircneca toma a conversatildeo do amigo como um dado adquirido pelo que se considera desobrigado de recorrer agrave seara alheia (SEGURADO E CAMPOS 1991 p 116)
Secircneca trata seu destinataacuterio como disciacutepulo e eacute a partir dessa perspectiva que ele
se posiciona na enunciaccedilatildeo ou seja o enunciador mestre que se dirige ao co-
enunciador disciacutepulo No objetivo de alcanccedilar seu destinataacuterio Secircneca invoca a
citaccedilatildeo de maacuteximas como um depoacutesito em um lugar comum para dar sequecircncia agraves
formulaccedilotildees de seus postulados estoicos que satildeo desenvolvidos ao longo da
coletacircnea de suas epiacutestolas
Outra estrateacutegia retoacuterica assumida por Secircneca eacute a taacutetica do uso de versos Como
reforccedilo para a exposiccedilatildeo de princiacutepios da filosofia estoica ele lanccedila matildeo da citaccedilatildeo
de versos de diferentes poetas mas com evidente destaque para Vergiacutelio Como
pode ser observado os discursos constituintes filosoacutefico e literaacuterio formam um
conjunto na construccedilatildeo da cena enunciativa promovendo um intercacircmbio entre
filosofia e literatura isto eacute trazendo para o discurso filosoacutefico determinados textos da
escrita poeacutetica sendo um fortalecido pelo outro Por um lado as citaccedilotildees de
Vergiacutelio na finalizaccedilatildeo de argumentos de Secircneca satildeo recorrentes e comparecem
como uma forccedila que complementa tanto os efeitos persuasivos dos exemplos
245
histoacutericos quanto os pessoais Por outro lado as citaccedilotildees dos versos se
assemelham agraves maacuteximas que habitam um lugar comum
Na continuidade do uso de citaccedilotildees de versos o prestiacutegio da voz de Vergiacutelio
contribui para reforccedilar a noccedilatildeo da existecircncia do divino para os estoicos Secircneca
coloca diante de Luciacutelio algumas concepccedilotildees de deus procurando convencecirc-lo
mediante variadas descriccedilotildees da natureza que vatildeo formando imagens na mente do
leitor e diferentes cenaacuterios Secircneca argumenta ldquoEacute verdade Luciacutelio dentro de noacutes
reside um espiacuterito divino que observa e rege os nossos atosrdquo (Ep 422) Secircneca
coloca Vergiacutelio em cena para apoiar e dar sequecircncia agrave sua ideia ldquoqual seja o deus
ignora-se mas existe um deus296 (Ep 412) A introduccedilatildeo da opiniatildeo de Vergiacutelio
nesse ponto da enunciaccedilatildeo produz um efeito de heterogeneidade na linguagem
atualizando e agregando o seu dito ao de Secircneca Nessa situaccedilatildeo enunciativa eacute
introduzido o discurso religioso em seu sentido abrangente dando ao discurso a
caracteriacutestica de uma visatildeo contemplativa do mundo Com base nesse
posicionamento na epiacutestola noventa Secircneca desenvolve alguns postulados para
definir filosofia e faz o seguinte comentaacuterio ldquoa uacutenica tarefa da filosofia eacute descobrir a
verdade acerca das coisas divinas e humanas nunca estatildeo agrave margem dela a
religiatildeo a piedade a justiccedila e todo o conjunto de virtudesrdquo (Ep 903) Por intermeacutedio
desse comentaacuterio Secircneca indica que pelo proacuteprio caraacuteter de sua finalidade o
discurso filosoacutefico eacute atravessado pelo discurso religioso
Eacute possiacutevel perceber que o discurso literaacuterio em Vergiacutelio eacute tambeacutem atravessado pelo
discurso religioso e introduzido no contexto do discurso filosoacutefico desenvolvido por
Secircneca Por meio das citaccedilotildees o enunciador intensifica seu posicionamento no
discurso no processo de adesatildeo a uma voz que contribui para os efeitos de
sentidos almejados permitindo a inter-relaccedilatildeo entre os trecircs discursos constituintes
filosoacutefico literaacuterio e religioso
Servindo como fonte na busca de uma cena validada e valorizada na memoacuteria do
leitor a voz que Secircneca invoca para fortalecer seu argumento eacute novamente a de
Vergiacutelio ldquoNatildeo esperes alterar com preces o destino fixado pelos deusesrdquo (Ep
7712)297 Vergiacutelio comparece ao ato enunciativo como autoridade para corroborar a
ideia de que o destino eacute ldquofixado pelos deusesrdquo Secircneca complementa a ideia do
296
[quis deus incertum est] habitat deus ( Ep 412) Citaccedilatildeo de Vergiacutelio (AenVIII 352) 297
Desine fata deum flecti sperare precando (Aen VI 376)
246
verso de Vergiacutelio ponderando ldquoque os destinos estatildeo determinados uma vez por
todas e prosseguem a sua marcha em obediecircncia agrave lei eterna do universordquo (Ep
7712)
Os postulados estoicos sobre o destino satildeo interligados ao tema que trata das
instruccedilotildees filosoacuteficas para o enfrentamento da morte Secircneca argumenta sobre a
dificuldade que o ser humano tem ao deparar-se com a realidade da certeza da
finitude da vida Ele acrescenta mais uma reflexatildeo com base na realidade do medo
da morte trazendo para sua enunciaccedilatildeo uma citaccedilatildeo extraiacuteda da ficccedilatildeo remontando
tambeacutem a Vergiacutelio
O gigantesco porteiro do Orco estendido no antro sangrento sobre ossadas meio roiacutedas assusta com seu ladrar incessante as almas exangues (Ep 8216)
298
Secircneca pondera que para os conhecedores desses versos por mais que saibam
que se trata de uma ficccedilatildeo essa leitura desperta tanto o receio comum da existecircncia
do inferno quanto da inexistecircncia de qualquer lugar Com esta citaccedilatildeo ele tambeacutem
reflete sobre as pressotildees fantasiosas que recaem sobre os indiviacuteduos aguccedilando o
medo do enfrentamento da morte Nesse ponto do raciociacutenio Secircneca procura
defender que mediante situaccedilotildees negativas que se interpotildeem diante do indiviacuteduo a
respeito da morte a coragem perante esta situaccedilatildeo eacute uma fonte de gloacuteria Para que
o indiviacuteduo seja elevado ao patamar da virtude eacute necessaacuterio que se conscientize do
valor de encarar a morte natildeo como um mal mas de forma indiferente Como reforccedilo
argumentativo eacute trazida a voz de Vergiacutelio atraveacutes de seus versos como uma visatildeo
positiva e de incentivo
Natildeo cedas agrave desgraccedila antes avanccedila mais audaz ainda do que a proacutepria fortuna te permite (Ep 8218)
299
298
ingens ianitor Orci ossa super recubans antro semesa cruento aeternum latrans exsangues terreat umbras Conforme nota de Segurado (1991 p 365 nota 11) Secircneca fez junccedilatildeo de versos da Aeneida de Vergiacutelio dos livros VI 4001 e VIII 2967) 299
Tu ne cede malis sed contra audentior ito quam tua te fortuna sinet (Aen VI 956) Os textos colocados em caixas satildeo os que tecircm no maacuteximo trecircs linhas e funcionam como destaque na anaacutelise
247
Na sequecircncia de sua escrita Secircneca continua abordando certos aspectos desse
encontro entre discurso filosoacutefico e religioso formulando alguns princiacutepios a respeito
do ato de culto ponderando que o fundamental eacute acreditar nos deuses e reconhecer
neles a majestade Para ele eacute necessaacuterio admitir que os deuses presidem o
universo e governam tudo sendo cuidadores da seguranccedila da humanidade no
sentido global e natildeo necessariamente individual300 Em outras epiacutestolas Secircneca
tambeacutem aborda esse postulado estoico sobre a providecircncia ldquoTodo o universo
permanece natildeo porque seja eterno mas porque estaacute sob a guarda de um ser que o
regerdquo [] e Secircneca ainda acrecenta ldquoeacute o obreiro do universo que o conserva
dominando pelo seu poder a fragilidade da mateacuteriardquo (Ep 5828)
Em alguns momentos Secircneca parece situar-se entre os conceitos monoteiacutesta e
politeiacutesta de deus sendo esta uma heranccedila jaacute estabelecida no periacuteodo Heleniacutestico
com uma influecircncia determinante nas concepccedilotildees filosoacuteficas sobre a accedilatildeo e funccedilatildeo
dos deuses Segundo a exposiccedilatildeo de Algra (2003 p 165) o pensamento estoico
sobre questotildees referentes agrave natureza de deus ou deuses eacute complexa
caracterizando-se por uma mistura entre teiacutesmo panteiacutesmo e politeiacutesmo Algra
(2013 p 195)301 desenvolve o tema sobre cosmologia e teologia no estoicismo e
finaliza ldquoparece que os estoicos da era imperial e os estoicos em geral haviam
adotado uma espeacutecie de abordagem de duplo niacutevel em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo religiosardquo
Com o auxiacutelio de maacuteximas e versos Secircneca faz cruzar em sua enunciaccedilatildeo os
discursos constituintes filosoacutefico religioso e literaacuterio Mesmo estes discursos sendo
independentes com caracteriacutesticas de autosustentaccedilatildeo percebe-se que um
discurso fornece credibilidade ao outro formando assim uma rede de relaccedilotildees entre
diferentes discursos que se associam na produccedilatildeo da discursividade
Paulo tambeacutem usa a argumentaccedilatildeo retoacuterica da citaccedilatildeo Em Secircneca as citaccedilotildees se
fortalecem com base no discurso literaacuterio que fazem parte de sua formaccedilatildeo e estatildeo
registradas na memoacuteria Em Paulo predominam as citaccedilotildees oriundas dos textos da
religiatildeo hebraica que ele tambeacutem cita em algumas partes e em outras faz alusatildeo
300
Esta eacute uma abordagem da teoria de deus imanente para os estoicos e que se conjuga com o conceito de providecircncia 301
Algra (2013 195) observa que na epiacutestola 95 47-50 Secircneca avalia o comportamento ritual de vaacuterias religiotildees inclusive a guarda sabaacutetica dos judeus afirmando que o modo correto de adorar um deus eacute conhececirc-lo e imitaacute-lo
248
232 Citaccedilotildees de Paulo nas epiacutestolas aos Coriacutentios
Segundo Berger (2004 261) ldquoquando um texto biacuteblico eacute citado isso natildeo ocorre para
honrar o texto passado mas para articular e formular com ele aquilo que estaacute
acontecendo na nova situaccedilatildeordquo Nesse caso o texto citado eacute usado como aplicaccedilatildeo
Ainda um fato que se pode acrescentar a esse fenocircmeno da citaccedilatildeo eacute que ao trazer
para a enunciaccedilatildeo um dito jaacute familiar contribui-se para que o discurso atualize a
citaccedilatildeo tornando puacuteblica a anterioridade de um jaacute-dito identificaacutevel Outro fator que
contribui para o valor do recurso da citaccedilatildeo eacute a identificaccedilatildeo de analogias entre o
discurso presentificado com o texto citado e atualizado em novo contexto textual por
meio dos efeitos da intertextualidade
Maingueneau (1997) atesta que um discurso eacute constituiacutedo no interior do
interdiscurso isto eacute outros discursos formam uma camada de sustentaccedilatildeo para a
formaccedilatildeo de um novo discurso Desse mesmo modo Maingueneau (2007 p 120)
afirma que ao se fazer referecircncia agrave constitutividade do interdiscurso significa dizer
que ldquoum discurso nasce de um trabalho sobre outros discursosrdquo Vale lembrar que eacute
nessa perspectiva que Maingueneau (1997 p 75) desenvolve uma abordagem
sobre a heterogeneidade dos discursos com base na verificaccedilatildeo de que na
enunciaccedilatildeo a heterogeneidade pode ser mostrada quando sua manifestaccedilatildeo eacute
expliacutecita sob variadas formas No caso de ausecircncia de visibilidade da
heterogeneidade esta eacute considerada constitutiva por operar no plano do
interdiscurso
Este enfoque concernente agrave heterogeneidade do discurso eacute proposital no sentido de
estabelecer uma fundamentaccedilatildeo teoacuterica da Anaacutelise do Discurso de base
enunciativa para concordar com Heil (2005) em sua anaacutelise da constituiccedilatildeo retoacuterica
na primeira epiacutestola de Paulo aos Coriacutentios Este autor observa que esta epiacutestolaa
de Paulo eacute toda construiacuteda com referecircncias ao Velho Testamento Heil faz um
levantamento minucioso para situar tais referecircncias que natildeo satildeo visiacuteveis no texto
mas satildeo identificaacuteveis para os que tecircm conhecimento do Velho Testamento Essa
verificaccedilatildeo de Heil eacute uacutetil para justificar que nas duas epiacutestolas aos Coriacutentios haacute
incidecircncia de poucas citaccedilotildees em forma de intertexto como entendidas pelo sentido
de heterogeneidade mostrada Mesmo citando algumas passagens Paulo natildeo
aponta referecircncias apenas oferece algumas indicaccedilotildees como por exemplo ldquona lei