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04/07/2016 O divino retorno: uma abordagem fenomenológica de fluxos identitários entre a religião e a cultura http://etnografica.revues.org/1526 1/21 Etnográfica Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia vol. 16 (2) | 2012 : Varia Artigos O divino retorno: uma abordagem fenomenológica de fluxos identitários entre a religião e a cultura The holy return: a phenomenological approach of identity flows between religion and culture JOSÉ ROGÉRIO LOPES p. 339364 Resumos Português English O artigo analisa algumas transformações ocorridas na tradicional Festa do Divino Espírito Santo, realizada na cidade de São Luiz do Paraitinga, estado de São Paulo, Brasil. Em janeiro de 2010, uma enchente atingiu a cidade, derrubando parte de seu patrimônio cultural. Essa perda baixou a autoestima da população e vários agenciamentos religiosos e de políticas culturais emergiram no processo de recuperação da cidade. Através de uma abordagem fenomenológica, buscase descrev er e analisar a dinâmica desses agenciamentos na realização da Festa do Div ino desse ano, evidenciando os fluxos identitários que atravessam os campos da religião e da cultura, buscando se sobrepor na produção do ev ento. The article analyzes some transformations in the traditional Festival of the Holy Spirit held in São Luiz do Paraitinga, a small town in the state of São Paulo, Brazil. In January 2010, a violent flood destroyed part of its built cultural heritage. That loss lowered the population’s selfesteem and many religious and culturalpolicy agencies emerged in the process of recovery. Through a phenomenological approach, the article describes and analy zes the dy namics of such agencies in that y ear’s Festiv al of the Holy Spirit, showing the identity flows that cut across the fields of religion and culture, and their overlapping in the production of the ev ent. Entradas no índice

O Divino Retorno_ Uma Abordagem Fenomenológica de Fluxos Identitários Entre a Religião e a Cultura

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EtnográficaRevista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia

vol. 16 (2) | 2012 :VariaArtigos

O divino retorno: umaabordagem fenomenológica defluxos identitários entre a religiãoe a culturaThe holy return: a phenomenological approach of identity flows between religion and culture

JOSÉ ROGÉRIO LOPESp. 339­364

Resumos

Português EnglishO artigo analisa algumas transformações ocorridas na tradicional Festa do Div inoEspírito Santo, realizada na cidade de São Luiz do Paraitinga, estado de São Paulo, Brasil.Em janeiro de 2010, uma enchente atingiu a cidade, derrubando parte de seu patrimôniocultural. Essa perda baixou a autoestima da população e v ários agenciamentos religiosose de políticas culturais emergiram no processo de recuperação da cidade. Atrav és de umaabordagem fenomenológica, busca­se descrev er e analisar a dinâmica dessesagenciamentos na realização da Festa do Div ino desse ano, ev idenciando os fluxosidentitários que atrav essam os campos da religião e da cultura, buscando se sobrepor naprodução do ev ento.

The article analy zes some transformations in the traditional Festiv al of the Holy Spiritheld in São Luiz do Paraitinga, a small town in the state of São Paulo, Brazil. In January2010, a v iolent flood destroy ed part of its built cultural heritage. That loss lowered thepopulation’s self­esteem and many religious and cultural­policy agencies emerged in theprocess of recov ery . Through a phenomenological approach, the article describes andanaly zes the dy namics of such agencies in that y ear’s Festiv al of the Holy Spirit, showingthe identity flows that cut across the fields of religion and culture, and their ov erlappingin the production of the ev ent.

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Keywords : cultural heritage, religiosity , identity agencies, flowsPalavras­chave : religiosidade, patrimônio cultural, agenciamentos identitários, fluxos

Texto integral

A festa do Divino Espírito Santo e asmudanças no espírito da Festa doDivinoA Festa do Divino tem uma tradição de mais de 200 anos em São Luiz do

Paraitinga, uma pequena cidade localizada no alto da serra do Mar, região leste doestado de São Paulo, Brasil. Nesse período, a festa vem sendo realizadaregularmente, com um intervalo de exceção entre 1918 e 1939 (J. Almeida 2001).1

Essa “antiguidade”, sempre enfatizada pelas pessoas do lugar, carrega marcasidentitárias profundamente relacionadas à região, que já foi uma das maioresprodutoras de café do país, durante o século XIX, e à cidade, que preservoudezenas de casarões imperiais e algumas igrejas do período.2 A importância dessasedificações, algumas projetadas por Euclides da Cunha, fez a cidade ser tombadapelo Condephaat3 como patrimônio histórico4 estadual, em 1982. Alia­se a essaantiguidade inscrita nos casarões, igrejas e festas, o fato de a cidade estarincrustada no “mar de morros” que caracteriza a topografia desse trecho da serrado Mar, entre o vale do rio Paraíba e o litoral norte do estado de São Paulo. Dessaforma, o entorno da cidade é rico de paisagens naturais, destacando­se a florestaremanescente de mata atlântica que hoje está protegida pelo Parque Estadual daSerra do Mar, criado em 197 7 .

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A localização da cidade, relativamente isolada dos fluxos de modernização5 quese desenvolveram nas margens da rodovia Presidente Dutra, durante o século XX,permitiu a manutenção de seus traços tradicionais, configurados em um ambientecultural de expressiva formação caipira, segundo Brandão (1983, 1995),6 onde apresença irregular de missionários católicos, até o fim do período imperial,influenciou a difusão de uma “cultura bíblico­católica” (Brandão 1986) que semanifesta na crescente exteriorização da fé, em modelos devocionais diversos. Umdesses modelos, segundo Hoornaert (1983), se organizou em torno da devoção edas festividades ao Divino Espírito Santo.7

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Apesar da percepção valorativa inscrita na “conaturalidade entre o tema doEspírito Santo e a religião popular”, para esse autor, importa aqui destacar que aFesta do Divino, em São Luiz do Paraitinga como em outras localidades (Leal 1994;Abreu 1999; Jurkevics 2005; Peixoto e Neto 2006; Ferretti 2007 ; Santos 2008),sempre foi organizada em um campo de tensões entre a população local e asrepresentações eclesiásticas, oscilando em referências hierárquicas ora mais, oramenos controladas pelas últimas.

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Outro aspecto a aproximar analiticamente as festividades ao Espírito Santo estáem que a importância do evento assenta­se na sustentação de uma rede de relaçõesentre pessoas, grupos familiares e bairros rurais da região. Essa rede facilitaagenciamentos de recursos sociais diversos, para além da esfera religiosa(Gonçalves 2002; Perez 2000; M. Silva 2000; Leal 1994; Brandão 197 8), eultrapassa em muito os limites do município, estendendo­se para os municípiosvizinhos e, daí, até o vale do Paraíba e o litoral norte do estado de São Paulo. Boaparte dessas relações se reforça, durante todo o ano, pela peregrinação da Folia doDivino.8

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O evento tem duração de duas semanas, realizando­se no período dascelebrações de Pentecostes9 – datação que oscila no calendário litúrgico dascelebrações oficiais da Igreja Católica – e é composto de uma diversidade de

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atividades. A primeira delas é a procissão das bandeiras, ocorrida na primeirasexta­feira da festa. Nesse cortejo, o pároco local abençoa a bandeira do casal defesteiros do ano, que é nova, e inaugura o Império do Divino.10 No sábado, ocorre oEncontro das Bandeiras, um cortejo que se inicia na casa dos festeiros e segue até apraça Teodoro Coelho, em frente ao hospital, onde antigos festeiros, juntamentecom o casal de festeiros do ano, reúnem suas bandeiras particulares e dali seguematé o Império, onde a bandeira do ano fica em exposição. No domingo, ocorremduas missas na igreja Matriz e, ao final da tarde, são coroados o rei e a rainha dafesta (reis congos), figuras simbólicas que participam dos principais rituaisprocessionais. Depois, há um novo cortejo com esses atores, o pároco, membros deirmandades locais e a banda de música da cidade segue até o Império do Divino,onde se encerra. Segue­se uma semana de rogação de ladainhas, pelas manhãs, enovenas diárias, às noites.O segundo sábado da festa amanhece com alvorada de rojões, seguida pela

distribuição do afogado à população, no almoço. À tarde, ocorre uma apresentaçãoda cavalhada, um auto de cavalaria que dramatiza a vitória de Carlos Magno sobreos mouros. Na praça Oswaldo Cruz, durante a mesma tarde, bonecos gigantes saempara brincar com as crianças do lugar. Nesse dia, não há missa na programaçãooficial, evidenciando um tempo de exceção, profano, em meio das celebrações.

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Nos intervalos dessas atividades, a praça e as ruas da cidade, até o mercadomunicipal, costumam ficar lotadas de pessoas circulando, entre encontrosfamiliares e de amigos para comer, beber e conversar, ou para assistir asapresentações dos grupos devocionais de moçambiques, congadas e folias de reis,tanto os da cidade quanto os grupos convidados de outros locais.

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O domingo também amanhece com alvorada de rojões, mas a sequência de rituaise atividades que se desenrola na cidade é bem mais intensa. São três manifestaçõesimportantes: o cortejo do Divino, às 10 horas, que traslada o andor do Divino doImpério até a igreja Matriz, onde se realiza uma missa; a procissão do Mastro, às 12horas, que traslada um mastro com a bandeira do Divino, da igreja Matriz até oadro da igreja do Rosário, onde o mesmo é fincado; a procissão do Divino, às 18horas, que sai da igreja Matriz com o andor do Divino e de alguns santos patronosde irmandades da cidade, percorrendo as principais ruas do centro histórico dacidade, até retornar para a mesma igreja, onde se realiza a missa de encerramentoda festa, com o anúncio dos festeiros do próximo ano. Essas manifestações centraisproduzem uma gradual efervescência nos circuitos festivo­religiosos realizados nodia e condicionam os outros circuitos secundários do evento, religiosos ouseculares, em suas dinâmicas.11 Um deles é o relacionado às apresentações dosgrupos devocionais já citados. São dezenas deles, cantando e tocando seusinstrumentos em cadências e ritmos os mais diversos, pelos lugares centrais dafesta: em frente ao Império (parada inicial obrigatória para todos) ou à igrejaMatriz, na praça Oswaldo Cruz, no mercado (ocasionalmente), nas ruas do centrohistórico e durante os cortejos e as procissões.

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O ambiente audiovisual da festa proporcionado por essas atividades é acrescidode uma rica decoração, por todo o centro histórico e arredores da cidade, queinclui cordões de bandeirinhas coloridas espalhadas dos coretos das praças até ospostes e pelas ruas, além de bandeirolas e flâmulas vermelhas enfeitando as janelasdos casarões e das casas, faixas e adereços nos postes, com iconografias do DivinoEspírito Santo.

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Esse retrato sucinto da festa12 caracteriza um modelo que predominou durantedécadas, no século XX, oscilando pouco em sua organização e programação.13

Enquanto a manutenção do modelo de organização restringia os espaços denegociação de influências exógenas ao evento, que era geralmente sustentado porargumentos de identidade reconhecidos localmente, a manutenção do modelo deprogramação exteriorizava uma recorrência de manifestações legitimadas pelaautenticidade,14 amplamente reproduzidas pelos meios de comunicação quecobrem o evento.

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Assim, durante muito tempo a festa reproduzia não somente as suasmanifestações tradicionais, senão também uma ordem de relações especializadas

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entre os atores locais, dispostas em uma hierarquia coletivamente estabelecida elegitimada, na qual a negociação constante entre os atores institucionalizadoseclesiais e leigos orientava as pautas de ação do projeto de promoção do evento,mesmo que tensionada por conflitos constantes. Na ausência de agenciamentosexógenos desagregadores, as tipicidades características de um mundo pressuposto(Schutz 2003) das manifestações religiosas tornavam recursivas as finalidadesdefinidas pelos agenciamentos endógenos.Porém, algumas mudanças aconteceram nesses modelos, nas últimas décadas,

promovidas ora pela imposição constante de agenciamentos exógenos – na décadade 1990, evidenciou­se progressivamente uma exposição midiática de algumasmanifestações religiosas e culturais da cidade, como a Festa do Divino, asatividades da Semana Santa e o Carnaval, e desde 2002, quando a cidade é elevadaà condição de estância turística,15 o assédio regular de visi tantes provocado pelaexposição midiática aumentou consideravelmente, impondo a necessidade deincorporar inovações na gestão dessa realidade (Santos 2008) – ora negociadas porpadres que se sucederam na paróquia, após o afastamento por idade do antigomonsenhor no cargo, em meados da década de 1990. Essas últimas, tambémsentidas em festas de cidades vizinhas no mesmo período (A. Silva 2009), deveram­se à introdução de práticas e representações religiosas influenciadas peloMovimento da Renovação Carismática, ou pela formação conservadora ereformista de alguns padres, que não se correspondiam ou reconheciam com astradições religiosas da população local.

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Em 2010, a realização da festa anunciava a tensa continuidade desses elementos,até que dois fatos mudaram o curso dos acontecimentos. Primeiro, uma mudançana ordem das relações especializadas dos atores, devido a que alguns sujeitos locaistiveram projetos de Pontos de Cultura16 aprovados em editais do Ministério daCultura (MINC), em 2009 e 2010. O segundo refere­se a uma enchente do rioParaitinga, que margeia todo o centro histórico da cidade, ocorrida nos primeirosdias de 2010. Nessa “enchente histórica”, o rio subiu mais de dez metros acima deseu nível regular, cobrindo quase todo o centro histórico e provocandodesabamentos de vários casarões, além da igreja Matriz e da igreja das Mercês(figura 1).

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A enchente, sobretudo, foi um fator importante de mudanças na festa de 2010,porque reforçou elementos do imaginário religioso local relacionados a outrosdesastres do passado. Assim, era comum ouvir pessoas da cidade estabelecendocomparações desta enchente com outra, “histórica” também, ocorrida em 1863,quando “as águas do rio Paraitinga chegaram até o segundo degrau da igrejaMatriz”. Sobre a relação entre este desastre ambiental e o imaginário religioso,

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“É v oz corrente que a grande inundação de 1 863 ocorreu logo depois que odelegado de polícia prendeu um grupo de foliões do Div ino que, sem a dev idaautorização, esmolav a pelas ruas da cidade. O edifício mais importantedestruído pela enchente foi justamente a cadeia” (2001 : 84).

O divino retorno: registrosetnográficos de uma festa renovada

Jaime de Almeida escreve:

A catástrofe natural de 2010 teve ampla cobertura jornalística nos meios decomunicação nacionais, gerando uma série surpreendente de manifestaçõessolidárias, que foram de visitações de apoio de personalidades midiáticas até arealização de vários shows ou eventos promovidos por instituições, artistas ejogadores de futebol, v isando arrecadar fundos para a reconstrução da cidade ou oatendimento das pessoas e famílias mais atingidas. Durante os primeiros mesesapós a enchente, era comum ver grupos organizados de denominações religiosas,torcidas organizadas de futebol, instituições filantrópicas, entre outros, visitando acidade e prestando auxílio na limpeza da mesma, no atendimento de famíliasdesabrigadas e de crianças, na reorganização do lugar ou na reconstrução deprédios.

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Evidentemente, os estragos causados pela enchente17 afetaram a autoestima dapopulação, gerando um clima de desconsolo e abandono generalizado, que foiagravado pela demora das intervenções governamentais em prover os recursosnecessários para o restabelecimento das relações cotidianas, em condições dignas.Por outro lado, o desabamento dos lugares centrais de realização dos rituais daFesta do Divino, como a igreja Matriz, gerou um debate extensivo na populaçãosobre a plausibilidade de sua realização, nesse ano. Esse é o contexto em quedescrevo as manifestações ocorridas no período central da festa.

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Desde a chegada a São Luiz do Paraitinga no dia 20 de maio, à noite, eraperceptível um espírito que tomava conta da cidade. A praça Oswaldo Cruz estavatoda decorada com bandeirinhas vermelhas e via­se uma cobertura de lona armadaem frente ao coreto, formando um corredor em direção dos escombros da antigaigreja Matriz. Flâmulas vermelhas com a iconografia do Divino estavam debruçadasnas janelas dos casarões, por todo o centro histórico, como se estivessemcomemorando a conquista de ainda estarem de pé, depois da enchente quederrubou vários deles, e a própria igreja.

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Entre atividades e sensações que compõem o ambiente da festa, havia muitaspessoas circulando apressadas de um lugar para outro. As do lugar ajustavam osúltimos preparativos dos lugares da festa, enquanto as de fora simplesmentecirculavam curiosas de ver os estragos que a enchente deixou pelas ruas ecasarões.

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Reencontramos pessoas conhecidas e os assuntos das conversas que sedesenvolveram até tarde da noite tinham dois temas que sempre se alternavam oucomplementavam: a reconstrução da cidade, depois da enchente, e a “volta àsorigens” da Festa do Divino. De tanto ouvir essas referências associadasdiscursivamente, não havia como deixar de pensar no quanto a memória coletiva éativada conscientemente em situações de desagregação – imaginária ou real(Halbwachs 1990) –, como a causada pela imensa enchente, no início do ano.18

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A manhã da véspera da festa, no dia 21, expõe mais personagens e situações queconvergem para a sua organização e se intensificam durante todo o dia. Caminhõese funcionários da prefeitura local circulam pelas ruas, dando os últimos ajustes nainfraestrutura do evento, que ganha forma, intensidade e se mostra mais visível.Circulo entre lugares e pessoas que organizam e efetuam a festa, e vou percebendosuas permanências e mudanças, em relação às edições anteriores. Além da já

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mencionada cobertura armada na praça, que substitui o espaço da igreja Matriz, ainterdição da rua que liga a rodoviária ao centro histórico, em função de umdeslizamento de terra, leva os organizadores a transferirem o local de distribuiçãodo afogado para o mercado municipal. A última vez que isso aconteceu foi em 1980e o retorno da atividade ao lugar foi o fator inicial a produzir um clima de retornoàs origens.Complementando esse clima, por todos os cantos da cidade há fotografias

expostas com referentes da memória coletiva, em imagens dos casarõesderrubados, de festas antigas, de pessoas conhecidas já falecidas, das váriaspaisagens que a praça já assumiu no passado, além de outras situações.

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Em meio a essa imagética da memória que se mistura com a “decoração” da festa,a imagem da igreja Matriz é um ícone recorrente. E se hoje a igreja está emescombros, vai se evidenciando nessa imagética da memória a importância queesse espaço possuía, e possui, como referente que projeta um “imagináriocoletivamente significante” para a identidade do lugar, um “nós” à maneirameadiana (Mead 1982).19

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Entre outras referências dessa imagética da memória que gravitam em torno daigreja, o tapume que cerca a obra de reconstrução da mesma foi todo preenchidocom desenhos pintados por alunos das escolas do centro da cidade (figura 2). Otema desses desenhos é a própria igreja, de forma que seus escombros estãoliteralmente cercados de imagens do que ela ainda significa para as pessoas dolugar, em sentidos figurados diversos, que se intercalam horizontalmente com oslogotipos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e daempreiteira Biapó, que assumiu o projeto de reconstrução da igreja.

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Outros referentes importantes dessa imagética estão localizados no mercadomunicipal e no Império. No mercado, uma exposição de fotografias coloridas deRosa Gauditano, sobre aspectos da Festa do Divino de 1984, plotadas em painéisplásticos, recria o ambiente festivo de “antigamente”, também composto pelasbandeirinhas vermelhas distribuídas entre o telhado e uma grande barraca armadano seu interior, para a distribuição do afogado. No Império, um grande quadro coma fotografia da igreja Matriz está exposto no espaço de um altar central, antesocupado pelo andor do Divino Espírito Santo.

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Essa disseminação de uma imagética20 que reforça a memória local nos lugares desociabilidade da festa, enfatizando elementos de tradição, vai constituindo uma

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“A reconstrução e restauração completa da cidade lev ará alguns meses,talv ez anos. Dependerá de muito dinheiro e trabalho. Porém para dar iníciona reconstrução de sua v ida basta v ocê olhar para Jesus e dizer: sim, euaceito como meu único Senhor e Salv ador. Ele v irá com seus braços deamor, o abraçará e iniciará uma grande obra em sua v ida.”

convergência identitária que agencia a religiosidade e a cultura locais. Se talconvergência de elementos festivos, religiosos e culturais era agenciadainconscientemente na organização de festas anteriores, em 2010 ela produz umasíntese original, nesse contexto, como nas missas que encerram os cortejosprocessionais dos rituais da festa, no sábado e no domingo, quando a liturgia doscultos é acompanhada por corais e músicos que entoam canções tipicamente“caipiras”, ou do cancioneiro popular devocional, como “Os devotos do Divino” ou“Cálice bento”.21

Durante todo o dia, essas percepções se reforçam nas visitas que fazemos emcasas de moradores locais, para realizar entrevistas ou encontrar pessoasconhecidas. As casas geralmente estão em reformas, propiciando propósitos paraconversar sobre a reconstrução da cidade e “da vida”, ou são depositárias demateriais e recursos diversos que seriam utilizados na festa, motivando conversassobre sua organização ou o caráter extraordinário do evento que inverte ocotidiano das pessoas e famílias.

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Entre tais visitas, alternamos a orientação do olhar que observa para outrasparticularidades ainda não percebidas. Isso possibilita encontrar indícios de outraspresenças religiosas nessa festa devocional católica, que gravitam em torno dostemas recorrentes ou predominantes na situação pesquisada, ou se apropriam doimaginário coletivo que ali se refaz, pela convergência dos fatores já esboçados.Nesse momento, destacaria três deles. O primeiro se refere a cartazes espalhadosem murais da cidade, produzidos pela Igreja Universal do Reino de Deus, ondeconstava uma evocação provocante, em caixa alta – “Deixa Deus guerrear a suaguerra” –, complementada por considerações textuais sobre a importância deconfiar a Deus a resolução da desagregação conflitiva que a sensação de abandono eperda produz na vida coletiva e na autoestima dos indivíduos. Essa evocação eraacompanhada de informes sobre locais e horários de cultos, na cidade.

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O segundo é um folheto dobrável em três abas, produzido pela Primeira IgrejaBatista, da cidade de São José dos Campos, e distribuído pelas casas e lugarespúblicos. Na aba da frente se destaca a frase “Deus ama essa cidade, mas ama aindamais você!” A segunda aba, interna, traz o seguinte enunciado:

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Muito providencialmente, a terceira aba, externa, trazia a foto de uma janelatípica dos casarões da cidade, utilizada recorrentemente em quadros de pintoreslocais e em produtos artesanais vendidos em lojas locais. Por fim, a aba que fazia oanverso do folheto, quando fechado, trazia convites para assistir “o programa daIgreja na TV Bandeirantes, aos sábados, às 10h”, e o site da Igreja na web.

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O terceiro é um folheto, também dobrável em três abas, produzido e distribuídopela denominação religiosa Testemunhas de Jeová. Trata­se de um típico folheto dedivulgação dessa denominação religiosa, mas selecionado tambémprovidencialmente para a situação. Na aba que abre o folheto, lê­se o título: “AVida num Pacífico Mundo Novo”. Nas abas internas, um longo texto composto deexcertos de passagens bíblicas do Gênesis (1:28), do Apocalipse (21:4), dosevangelhos de Pedro (3:13), Isaías (65:17 ; 55:11; 2:4; 33:24), Mateus (6:9),Miquéias (4:4), João (17 :3), e dos Salmos (89:36; 37 :29; 67 :6; 7 2:16), discorriasobre a razão para ter esperanças em um mundo novo, frente à experiênciadesagregadora das realidades de hoje.

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Dessa forma, outros agenciamentos religiosos efetuados na festa22 tambémarticulavam os temas recorrentes da reconstrução (da cidade e “da vida”) e davolta às origens, assim como os elementos convergentes em torno da síntese entrefestividade, religiosidade e identidade, em contextos de desagregação imaginária econcreta da vida coletiva.

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O encontro desses indícios reforçou uma prática de coleta de folhetos32

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distribuídos nesses eventos, que aprendi a considerar desde a experiência decampo na festa do Círio de Nazaré.23 E essa prática se mostrou provocativa denovas apreensões em São Luiz do Paraitinga. Assim, quando estava coletando umdesses folhetos jogados no chão, fui abordado por um conhecido local, que épromotor público em Taubaté, uma cidade próxima. Indagando­me se eu estavalimpando a cidade, começou a expor a possibilidade de realizar outras formas deauxiliar a cidade, em suas necessidades atuais. Ele havia criado, juntamente comoutras personalidades locais, uma associação que objetivava auxiliar areconstrução das casas das pessoas pobres que haviam sido derrubadas pelaenchente, e precisavam de doações. Embora já conhecesse a iniciativa, através dematérias de jornais publicados em edições online, impressionou­me a suadisposição para abordar diversos conhecidos durante todo o período da festa,sobretudo porque ele estava se recuperando de um sério acidente de motocicletaque sofreu na estrada de Taubaté para São Luiz do Paraitinga, justamente noperíodo posterior ao da enchente, em que atuou ativamente no cuidado àpopulação mais afetada.A festa adquiria, com esse e outros agenciamentos similares, um caráter

ampliado de evento solidário,24 pela negociação entre atores endógenos e exógenosao lugar, na apropriação de recursos para a reconstrução da cidade.

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Porém, um aparente paradoxo se expõe nas situações que compõem esse evento,quando chega o sábado e, desde cedo, forma­se uma fila enorme de pessoas dolugar e de visitantes, nas ruas de acesso ao mercado municipal, para a distribuiçãodo afogado. Na edição da festa desse ano, foram “carneados” 18 bois para apreparação do alimento distribuído à população, em um suposto desperdício derecursos em tempos de escassez,25 como me afirmaram alguns sujeitos locais.26

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Esse paradoxo, entre outros, emerge nas conversas coletivas que presenciei, oudas quais participei, durante o evento. Nessas conversas, a realidade ali produzidaera novamente debatida e negociada entre pessoas do lugar e de fora dele, de formaque as “ações latentes e manifestas” (Schutz 2003: 49) na festa religiosa erammedidas em termos valorativos por propósitos definidos em escalas e situaçõesdistintas daquelas que formavam tradicionalmente o evento, explicitandoagenciamentos de interesses e projetos diversos buscando sobreporem­se uns aosoutros.

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Nesse período da festa, esses agenciamentos eram perceptíveis em outroscírculos de conversação (Simmel 1983). Isso foi o que ocorreu, desde o almoço desexta­feira, em um restaurante local, de propriedade de Pedro. O diálogo comPedro evidenciou e reforçou outra mudança na lógica dos atores locais e seusagenciamentos, que extrapolavam o contexto da festa, mas assumiamespecificidades manifestas na mesma. Ocorre que alguns atores culturais locais –incluindo o próprio Pedro – tiveram projetos de Pontos de Cultura aprovados noseditais do Ministério da Cultura, em um total de cinco, no município. Aimplementação desses projetos alocou recursos diretos para esses atores,permitindo uma relativa autonomia de ação dos mesmos, em detrimento domodelo de agenciamento prevalecente no município e no estado de São Paulo,baseado na dependência dos mesmos das definições e diretrizes das políticasculturais dos governos municipais e estadual. Neste modelo, geralmente aliberação de recursos converge para a implementação e manutenção de umcalendário cultural oficial do estado, com circuitos identitários elaborados sobremanifestações culturais materiais e imateriais de determinadas regiões.Constituídos no âmbito de planos de governo, esses calendários privilegiam oupriorizam manifestações organizadas segundo critérios oficialmente legitimados decultura, incluindo­se aí um “campo de possibilidades abertas” (Schutz 2003) àsespecificidades locais que compõem regiões e estados do país. Ora, os atoresculturais que agenciam projetos, nesse modelo, tendem a especializar suaperformance segundo os “imperativos sociais de desempenho” (Yúdice 2006)estabelecidos nas trocas e circularidades de influências políticas em jogo, nesseprocesso reproduzindo normas e modelos circunscritos em um campo hegemônicode legitimações e reconhecimentos.27

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“PONTO DE CULTURA FAZENDA SÃO LUIZ

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E. M. E. F. “Cassiana dos Santos Moreira”

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Os projetos e manifestações dos atores locais, em São Luiz do Paraitinga edurante a Festa do Divino, por outro lado, evidenciam a potencialidade dos Pontosde Cultura implementados no município para mudar a escala hierárquica dasrelações locais de agenciamento de recursos e romper com a lógica de umahegemonia no campo cultural. Essa potencialidade se efetua na medida em que osrecursos agenciados permitem estender as deliberações da ação dos atores para um“campo de possibilidades problemáticas” que extrapola, por sua vez, o mundopressuposto da ordem tradicional da cultura.

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Todavia, ao extrapolar o mundo pressuposto dessa ordem tradicional, tais atoresutilizam algumas tipicidades constituídas e constituintes da cultura local parafabricar novas identidades. Assim, na maioria dos casos observados durante afesta, esses atores e seus projetos efetuam “traduções” (Hall 2005) dasmanifestações locais, que retroagem nos circuitos e atividades do evento.28 Citodois casos: em um, Cláudia, professora e moradora local, que teve um projeto dePonto de Cultura selecionado nos editais do MINC, utilizou os recursos obtidospara montar o Moçambique São Luiz do Paraitinga, formado predominantementepor mulheres. Como o moçambique de Cláudia é composto por algumasprofessoras do município, também é conhecido como “moçambique dasprofessoras”. Além das mulheres que dançam, o grupo é composto também portrês homens: dois instrumentistas (acordeom e caixa) e um mestre, que ordenamúsicas e performance das demais. O segundo é o caso de Pedro, que utilizou osrecursos obtidos para montar a Imperial Congada Cortejo de Todos os Santos,formada por sujeitos predominantemente de fora do lugar, mas que frequentam acidade regularmente e com ela mantêm alguma relação. Neste caso, são sujeitosligados à mídia regional, professores de universidades e cursos pré­vestibulares, ouagentes culturais e de ONG, de cidades próximas de São Luiz. O grupo se apresentacom várias mulheres na frente, uniformizadas e carregando grandes bandeiras, bemdecoradas, que também desempenham as vozes do coro, nas canções entoadas pelogrupo. Às mulheres, segue um cortejo de instrumentistas, com várias violas eviolões, caixas, tambores e pandeiros, com uniformes que mesclam motivos degrupos devocionais com traços carnavalescos.

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As formas de inserção desses projetos na festa se efetuaram segundo estratégiasdistintas. O moçambique “das professoras” se apresentou no sábado e no domingo,no meio de outros grupos populares, disputando espaço e audiência com osmesmos no entorno da praça Oswaldo Cruz, durante os intervalos dos rituaisreligiosos oficiais da festa. Já a Imperial Congada saiu em horários alternativos – nanoite de sábado e no fim da tarde do domingo –, inaugurando um novo circuito deapresentações, que começava no mercado municipal e percorria ruas quecircundavam o centro da festa, mas finalizava em frente ao Império, como osgrupos populares tradicionalmente fazem.

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Dois aspectos importantes desses projetos agenciados na festa merecem serdestacados. Primeiro, o fato de que os coordenadores dos mesmos imprimiram edistribuíram folhetos informativos de suas manifestações, durante a festa. Segundo,que tais folhetos exteriorizam condições e propósitos distintos acerca dos projetosdesses atores. Cláudia distribuía um folheto explicativo da formação do grupo – umimpresso caseiro – situando seu vínculo com as atividades do Ponto de Cultura e aproposta da formação do grupo, composto por mulheres. Na sequência, umachamada para mulheres que quisessem compor o grupo afirmava, em uma forteconotação de gênero:

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Estamos div ulgando a Dança do Moçambique como dança da culturapopular caipira, originária da antiga “paulistânia”. Inicialmentedesenv olv ida por jesuítas e, posteriormente, influenciada pela cultura afro.Estimula a atenção, concentração, coordenação motora, reflexo econdicionamento aeróbico requerendo um esforço mediano. Perda de 350 a450 calorias em 1 h. de prática.

Ativ idade ideal para todas as idades!

CULTURA POPULAR NO DIA A DIA É A CARA DO BRASIL.”

“Muito se perdeu em nossa cidade. Quando lembramos e falamos da trágicaenchente um nó na garganta se forma, calando as palav ras. Há muito quelimpar, restaurar e reconstruir, ainda temos muito trabalho pela frente.Contudo, o que não pode se perder é a v ontade de fazer aquilo que gostamose v alorizamos. Tocar e cantar Congada na Festa do Div ino é muito gostoso,‘restaura’ nossas Almas, nos alimenta de energia para continuarmoslutando para v iv er uma v ida digna e honesta em São Luiz do Paraitinga,que é um bem de ‘TODOS’. Que o Div ino nos abençoe! CANTE COM AGENTE!”

Já Pedro e outros participantes da Imperial Congada distribuíam um folhetoimpresso em uma gráfica na cidade de Taubaté, nas cores branca e vermelha, ondeconstavam: um texto de sua autoria, letras de músicas cantadas pela congada,algumas imagens ilustrativas de ícones da festa, e endereços eletrônicos e númerosde celulares dos seus organizadores. Além das produções diferenciadas dosfolhetos, que já apontam para condições e propósitos distintos de seusagenciamentos, destacaria o texto de Pedro, que está grafado na folha inicial de seufolheto:

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Aqui, diferentemente dos propósitos manifestos no folheto do moçambique,enfatiza­se os temas recorrentes nas conversações ocorridas na festa –reconstrução da cidade e “da vida”, volta às origens – em suas imbricações comoutras referências de relações locais, identificadas nas expressões “‘restaura’nossas almas”, “vida digna e honesta em São Luiz do Paraitinga”, e “bem de‘TODOS’”. Insinuações veladas, como o gato que passa na sombra, que provocaramreações diversas entre as pessoas que receberam e leram o material, comoconstatei no domingo da festa.

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Ainda no sábado, porém, outras situações explicitaram as combinações earranjos dos temas da festa. A mais importante delas ocorreu na distribuição doafogado, no mercado municipal. Desde as 11 horas, formava­se uma fila que seprojetava pelas ruas que levam ao centro histórico, com centenas de pessoascarregando panelas e vasilhames de plástico para acondicionar a comida. Oentorno do mercado estava lotado de pessoas da cidade, distribuídas em espaçosdistintos, que observavam a fila, o preparo do afogado e a sua distribuição, comoum espetáculo. Essas pessoas se confundiam, nessas situações, com dezenas defotógrafos, repórteres e alunos de cursos de graduação – de universidades daregião, de São Paulo, Campinas e do Rio de Janeiro. Às 12 horas, começou um showde música sertaneja, no palco montado na rua ao lado da saída principal domercado, cuja amplificação sonora atinge os sujeitos das duas situações anteriores,tornando­os partícipes de uma espetacularização que atinge os sentidos (físicos esimbólicos) da comunhão comunitária e popular característica da distribuição doafogado, em associação com um show de música sertaneja típico das produçõespopulares da indústria cultural.29

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Essas situações descritas evidenciam e enfatizam um jogo de significaçõessemânticas variadas do que é o “popular”, em tais festas. Se antes tais significaçõesestavam separadas em manifestações que ocorriam em locais e tempos distantes,na ordem da festa, hoje elas se sobrepõem e atravessam, não somente em uma“circularidade de influências” típica dos elementos em jogo nesses eventos, como jádescrito por Bakthin (1987 ), mas também em uma “coetaneidade” de experiências,

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como descrita por Fabian (2006), onde o partilhamento do mesmo tempo entreatores distintos produz objetivações do real. Nesse sentido, o “popular massivo” eo “popular laico” fundem­se em uma mesma “corporeidade festiva” (Csordas2004).O restante do sábado é de calmaria e celebrações religiosas oficiais, que cumprem

a programação da festa, sobrando, contudo, espaços marginais para a realização dobingo, no calçadão, e para os encontros etílicos de jovens e demais sujeitos, locais evisitantes, que agora se avolumam nas ruas, restaurantes e bares.

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O domingo da festa explode em uma alvorada de fogos de artifício, seguida deuma intensidade de manifestações diversas, que se alternam até o fim da tarde.Grupos devocionais populares de congadas, moçambiques e folias de reis, dacidade e de municípios próximos, se apresentam desde as 8h, em diferenteslugares,30 cruzando­se entre conhecidos, amigos e parentes, em uma trama detrocas simbólicas e de reciprocidade de reverências, definidas por critériosreconhecidos de legitimidade entre eles: os mestres de saber, no comando dosgrupos, são os mais reconhecidos; os antigos “na dança”; os que participam há anosda festa; os que participam de redes de parentesco, além de outros critérios.

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Os três momentos de interrupção dessas apresentações são os relativos aoscortejos processionais que anunciam as missas que ocorrem nesse dia principal dafesta: o cortejo do Divino (10h), a procissão do mastro (12h) e a procissão doDivino Espírito Santo (18h). O primeiro cortejo cumpre um circuito curto dedeslocamento, que sai do Império e segue até a praça, onde ocorre a missa; já osegundo, que ocorre logo depois da missa, segue até a igreja do Rosário, ondeocorre a fixação de um mastro com uma bandeira do Divino. Essa procissão éformada pelo núcleo dos cortejos ocorridos na festa: um casal ricamente vestido derei e rainha do congo, com uma criança à sua frente vestida de príncipe ecarregando um pequeno andor do Divino, os festeiros do ano com sua bandeira, ossacerdotes locais e a banda de música da cidade. A procissão do Divino sai da praçae percorre várias ruas da cidade, circundando todo o centro histórico, até retornarà mesma, onde se realiza uma missa e a festa se encerra, oficialmente. Essa é agrande procissão local, na qual se somam ao núcleo dos cortejos o próprio andordo Divino, dezenas de anjinhos, sete crianças carregando cartazes com os dons doEspírito Santo, senhoras e senhores de irmandades religiosas locais (com osrespectivos andores de seus santos), dezenas de antigos festeiros com suasrespectivas bandeiras, todos os grupos devocionais presentes na festa e boa parteda população local, além de visitantes e turistas. De novidade nesses cortejos, alémdos aspectos já destacados anteriormente, ocorreu a incorporação do quadro coma fotografia da igreja Matriz, exposto no Império, como componente intermediárioentre os grupos populares e os anjinhos (figura 3).

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“Esperei o Pedro sair para falar uma coisa para v ocês, senão ele me pegav apelo pescoço e colocav a para fora. Vocês são uns parasitas! Jornalistas,repórteres, de São José dos Campos, São Paulo, v ocês v êm aqui e sugam acidade, a gente da cidade, mas não deixam nada. Vocês não prestam, bandode hipócritas. O negócio de v ocês é se div ertir, usar a cidade, e depois v ãoembora. Hipócritas, sanguessugas. Bando de comospolitas [sic]!”

O encerramento da missa anunciava um período de finalização da festa, no qualse percebia um gradual esvaziamento das atividades, decorrente da perda deintensidade que se experimentava nesse período. Havia planejado para essehorário um encontro da equipe de pesquisa no restaurante de Pedro, paradiscutirmos alguns procedimentos posteriores de sistematização do materialproduzido e coletado durante o evento. Todavia, enquanto me dirigia para lá, comalguns colegas, fomos avisados de uma última manifestação: a apresentação de umgrupo de maracatu, que sairia naquele momento do mercado municipal. Chegandoao local, encontramos vários ex­alunos de graduação de Taubaté que compõem oBatuque do Vale, grupo de maracatu formado por iniciativa de dois deles, Itajubá eB. A. O grupo iniciava uma apresentação que seguiria o circuito alternativoinaugurado pela Imperial Congada, no dia anterior, atraindo várias pessoas comseu som acústico de tambores artesanais, cadenciado por chocalhos feitos decabaça e sementes e tocados por outras jovens do grupo, com uma jovemcarregando uma bandeira, à frente. Entre uma música e outra, Itajubá discursavaao público assistente a proposta do grupo, de começar uma nova tradição na Festado Divino, afirmando que sairiam todo ano, para finalizar o evento.

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Após a saída do grupo, sigo para o restaurante de Pedro, pensando que já haviavisto tudo da festa. O encerramento dessa experiência etnográfica, porém, foiinusitado.

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O restaurante já estava esvaziando, com apenas dois casais jantando perto daentrada, enquanto ao fundo Pedro, um garçom e alguns componentes da ImperialCongada conversavam. Chego com mais cinco colegas e nos sentamos em umamesa perto dos casais. Durante nossa conversa, Pedro vem se sentar à mesa etrocar ideias. Entre uma cerveja e outra, a esposa de Pedro vem chamá­lo pararesolver um problema e ele sai do restaurante. Nesse momento, um sujeito queestava na mesa do fundo, vestindo o uniforme da Congada, se levanta, vai até aporta, olha para fora e volta, dirigindo­se para os que estavam no restaurante emum discurso. Percebia­se que ele estava “alterado”, em um estado de nervosismomisturado com embriaguês, enquanto falava em alto tom:

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O sujeito fala e sai do restaurante, deixando uma atmosfera de tremendoincômodo no lugar. O garçom que estava na mesa ao fundo se levanta e diz para

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Encerramento provisório

“Afinal, os seres humanos usam seus símbolos sobretudo para agir, e nãosomente para se comunicar. O patrimônio é usado não apenas parasimbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir. Essa categoria faz amediação sensív el entre seres humanos e div indades, entre mortos e v iv os,entre passado e presente, entre o céu e a terra e entre outras oposições. Nãoexiste apenas para representar ideias e v alores abstratos e para sercontemplado. O patrimônio, de certo modo, constrói, forma as pessoas”(2003: 27 ).

nós: “Liga não, que ele é meio doente, não bate bem da cabeça”. De qualquer forma,evidencia­se ali um sentimento de que o discurso do sujeito traduz outra lógica derelações entre os elementos endógenos e exógenos que se arranjam ou combinamna Festa do Divino desse ano. E talvez outros discursos e traduções tenhamescapado de nossas percepções de pesquisadores.

Diante dessa dinâmica dos fluxos de acontecimentos e manifestações, vem logo àmente a elaboração de Williams (197 4) de que os fluxos não possuem sequência.31

No caso dessa edição da Festa do Divino de São Luiz do Paraitinga, entretanto, taisfluxos foram produzidos pela ruptura causada por um evento crítico: a enchente.Se o período imediatamente posterior à enchente evidenciou um sentimento deperda e abandono, e uma baixa autoestima coletiva entre a população local, arealização da Festa do Divino buscava uma redenção. Na medida em que tal eventosuprimiu os lugares patrimonializados de referência que davam suporte aoscircuitos da festa, impôs também rearranjos nos modelos de sua promoção.

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Esses rearranjos organizaram­se de forma diversificada, desde a combinação deregistros históricos, como no resgate e exposição de uma imagética do patrimôniolocal que se confundia com a decoração da festa, até a combinação de registros damemória coletiva, ativados ora pelos agenciamentos religiosos que buscavamresgatar a autoestima da população, ora pelos agenciamentos culturais inovadoresdos atores locais. Nesses rearranjos, a imaginação das pessoas projetava imagensdos lugares e representações dos eventos passados, em uma retração sobre amemória coletiva, recriando circuitos que sobrepunham os campos da religião e dacultura, na produção do evento.

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De um lado, esses rearranjos resgatavam e atualizavam as redes de solidariedadeque sustentam o princípio devocional de realização da Festa do Divino, de outro,introduziam agenciamentos religiosos e culturais que valorizam e atualizam amemória local do patrimônio cultural perdido com a enchente. Assim, taisagenciamentos operados no evento deslocavam seu núcleo hierofânico,descentralizando os elementos que se combinavam na sua configuração, dando aoevento um caráter de ritual complexo.32

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Na medida em que os rearranjos agenciados na festa operaram reflexividadessobre seus marcos históricos (que estabeleciam trajetos e movimentações dosatores significativos na produção do evento festivo) e seus circuitos, evidencia­se,aqui, mesmo que pela destruição, que o patrimônio cultural de uma coletividadedeve ser pensado em suas profundas imbricações com as relações sociais ousimbólicas desenvolvidas no lugar (ou para além dele), como sugere Gonçalves:

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Assim, a desagregação dos circuitos que configuravam a organização e aprogramação da festa – sustentados por representações tradicionais ecomplementares de autenticidade e identidade – abriu um campo de possibilidadespara rearranjos diversos e complexos, onde os atores endógenos e exógenos àpromoção do evento passaram a expressar propósitos manifestos de preservação emudanças.

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Na diversidade e complexidade desses arranjos se explicita a configuração devários bens religiosos e culturais, de fundo identitário, e os sentidos dasapropriações que devotos e outros atores religiosos e culturais operam desse bem,

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“[...] distinguir de forma mais clara entre uma política pessoal deidentidade coletiv a, na qual atores indiv iduais com compromissos claroslutam para afirmar uma identidade compartilhada, e uma política coletiv ade identidade pessoal, na qual cada ator em um grupo de atores comcompromissos ambíguos luta para obter uma identidade indiv idual”(2008: 22).

Bibliografia

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como demarcação social (Douglas e Isherwood 2006). Tal complexidade, ao exporsentidos de apropriação e demarcação social que os atores operam, tambémpermite pensar que a festa torna­se o ápice de um conjunto de “interações sociaismultidirecionais” (R. Almeida 2010: 381) que para ela convergem, no períododevocional.Uma vez que os agenciamentos identitários sempre carregam a marca da

ambiguidade, o problema que se coloca aqui é o de perceber a liberdade que osatores exercem de exteriorizar e manifestar essa ambiguidade. A diversidade demanifestações que se inscrevem na Festa do Divino projeta­se como tensão internados processos identitários que produzem o evento, em seu conjunto, mas tambémcomo agenciamentos dos atores, nos circuitos que efetivam os fluxos centrais esecundários da festa. Passa a ocorrer aqui, como em outras festas religiosas que sereproduzem contemporaneamente (Lopes 2011), uma tensão reguladora econstante das próprias relações em que os sujeitos religiosos se constituem, nadinâmica entre interioridade e exterioridade de sua fé.

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O reconhecimento das múltiplas manifestações que compõem as festas religiosasfaz emergir identidades residuais ou instituintes que demarcam campos internos eterritórios de tensão ritual expressivos, que produzem negociações do carátertradicional da festa com os registros da alma do lugar (Yázigi 2001), em constanteprocesso de mudança.33 No caso da Festa do Divino, em São Luiz do Paraitinga, essaemergência também impulsiona a difusão do evento para o encontro com amemória do lugar (Agier 2001) e a própria reconstrução da cidade, em escalasvariadas de negociação da diversidade identitária. Assim, essas festas religiosascontemporâneas têm ultrapassado a dinâmica tensa entre as relações estruturais eantiestruturais que configuravam seus rituais, à maneira de Turner (197 4), uma vezque a tensão atualizadora dos agenciamentos endógenos aos circuitos e fluxos dasfestas equilibraria as liminaridades potencialmente disruptoras dos seus circuitos efluxos exógenos.

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Por fim, o que o evento crítico da enchente explicitou, em relação à Festa doDivino, é que ela se rearranja processualmente por agenciamentos diversos, emcaminho de uma atualização. Embora o caráter religioso e devocional da festa sejacentral para a definição e reprodução dos circuitos que compõem o evento, umavez que ele orienta a atualização da festa como uma “formação inclusiva” (Williams197 9), cada vez mais a festa evidencia­se como um campo dialético que tensionapolíticas identitárias, conforme com a análise de Csordas, segundo a qual se deve

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Dessa forma, a complexidade dos agenciamentos operados na Festa do Divino,desde 2010, pode ser definida como uma hipérbole da tensão interna entre osatores e as manifestações que a compõem.

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Notas

1 Agradecimentos ao CNPq e à Capes, pelo auxílio financeiro que subsidiou a pesquisacujos dados são em parte considerados aqui, e aos colegas do Núcleo de Estudos da Religião(NER), da UFRGS, pelas contribuições na discussão desse artigo.

2 Destacam­se três igrejas na paisagem da cidade: a igreja Matriz de São Luiz de Tolosa,na praça Oswaldo Cruz, tev e duas construções, a primeira – pela comunidade – no iníciodo século XIX, e a segunda, erigida pela elite agrária local, entre 1 839 e 1 900; a capeladas Mercês, localizada na rua Coronel Domingues de Castro, data do início do século XIX efoi erigida por uma dev ota local; a igreja do Rosário, construção em estilo neogótico,localizada em um morro mais elev ado que as demais, datada de 1 921 e erigida pelaIrmandade de São Benedito, com recursos comunitários (Toledo 2001 ; J. Almeida 1 987 ).

3 Conselho para o Desenv olv imento do Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Artístico doEstado de São Paulo.

4 A concepção de patrimônio histórico, ou histórico­arquitetônico, explicita um modelo de“colecionamento de objetos materiais, cujo efeito é demarcar um domínio subjetiv o emoposição a um determinado ‘outro’ [...] com o propósito de acumular e reter bens que sãoreunidos” (Gonçalv es 2003: 22). Geralmente, tal concepção firma­se como categoriapreserv acionista (paradoxalmente moderna), com delimitações relacionadas com a depropriedade. Todav ia, pretende­se mostrar que os acontecimentos aqui descritos lev am apensar sobre os limites e possibilidades de compreensão da v ida social e cultural que aconcepção de patrimônio prov oca.

5 A ideia de uma cidade isolada dos fluxos de modernização, na sociedade contemporânea,pode parecer paradoxal. Contudo, a referência a modos de modernização que operam porfluxos segue a concepção de Williams (1 97 4), de que os fluxos não têm sequência. Assim,mesmo situada próximo da rodov ia que liga os dois maiores pólos de desenv olv imento dopaís (São Paulo e Rio de Janeiro), e “integrada com os meios mais modernos decomunicação existentes em nosso país – como a Internet, TV a cabo –, é inegáv el o quantoainda impera um modo de v ida singular em localidades como São Luiz do Paraitinga, emuma posição totalmente diferente daquela pregada como moderna pelos grandes centros”(Santos 2008: 3).

6 Essa formação caipira é tão ev idente, ainda hoje, em v ários traços constitutiv os da v idacoletiv a, na cidade e em sua zona rural, que alguns atores culturais locais estãoorganizando um dossiê para solicitar o tombamento dessa cultura imaterial, junto aoInstituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O interessante dessainiciativ a é que ela surgiu como estratégia de enfrentamento ao plantio extensiv o deeucalipto que a empresa VCP – Votorantin Celulose e Papel promov e no município, desdefinal da década de 1 990.

7 Segundo Hoornaert (1 983), a dev oção ao Espírito Santo escapav a ao controle da Igreja,no período colonial, dev ido ao seu caráter inspirador, emocionante e animador, que “secomunica atrav és de uma experiência de v ida e não tanto atrav és da palav ra”. Asdiv ersas e grandiosas festas ao Div ino Espírito Santo que surgem nos períodos colonial eimperial ganharam tanta aceitação que algumas permanecem grandiosas até hoje. “Otema do Espírito Santo fugiu à manipulação pelo poder dominante e emergiu com asmanifestações sempre mais ev identes da religião popular em tempos recentes. A rápidaaceitação – por parte do pov o – da experiência extática cultiv ada em cultos sobretudopentecostais demonstra que sempre houv e uma conaturalidade entre o tema do Espírito

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pentecostais demonstra que sempre houv e uma conaturalidade entre o tema do EspíritoSanto e a religião popular: o Espírito Santo se ‘manifesta’ pela expressão corporal, meio decomunicação próprio dos oprimidos aos quais a expressão v erbal está sendo negada”(Hoornaert 1 983: 346).

8 Trata­se de um grupo v otiv o de dev oção ao Div ino Espírito Santo, com formaçãosemelhante às Folias de Santos Reis e mantido pela coordenação da festa de cada ano, que“esmola” por toda a região, pousando em lugares e períodos específicos durante suaperegrinação. A cada pouso, a Folia atrai centenas de pessoas, que reproduzem o espíritoda festa em comemorações locais, fazendo doações div ersas, em espécie ou dinheiro, queserão rev ertidas para a Festa do Div ino, em geral na distribuição do afogado – cozido decarnes e batata serv ido no almoço do sábado final da festa – ou de café com paçoca que éserv ido à população e seus v isitantes, durante o período. Estudos detalhados dessamanifestação estão elaborados nas obras de Veiga (2008), Jaime de Almeida (2001 ,1 987 ) e de Brandão (1 981 , 1 97 8). Para análise de manifestações correlatas, no ciclodev ocional do Div ino Espírito Santo, v er Ferretti (2007 ), M. Silv a (2000), Leal (1 994).

9 “No Velho Testamento, Pentecostes era a festa judaica de colheita do trigo (Chawuot),celebrando sua maturação e colheita sete domingos ou cinquenta dias após a Páscoa, comoferendas e sacrifícios. Na história bíblica, foi num domingo de Pentecostes que a VirgemMaria e os doze apóstolos de Cristo receberam o Espírito Santo sob a forma de ‘línguas defogo’ e, falando em numerosas línguas, dispersaram sua fé pelo mundo. Para os cristãos,esse é o marco de fundação da Igreja Católica e de sua diáspora ev angelizadora pelomundo” (Veiga 2008: 1 36).

1 0 Império é o nome dado aos locais de guarda e exposição pública dos santos padroeirosdas festas, na região. Em geral, esse nome é mais utilizado nas festas dedicadas ao Div inoEspírito Santo e originalmente designav a a própria festa (Abreu 1 999), mas já constateiseu uso para designar os locais de guarda de outros santos, em festas locais. Nesse recinto,ricamente decorado em tons de v ermelho e dourado, fica exposta também a bandeira dafesta do ano. Ali, os dev otos podem fazer v isitação, rezar, pagar promessas, além de sereceberem santinhos da festa ou um saquinho com “sal do Div ino”, que se acredita serabençoado e portador de saúde quando utilizado nos alimentos.

1 1 Nesse período, em recantos mais afastados do centro histórico, é possív el presenciar arealização de danças de jongo e lundu, inclusiv e, como algumas que presenciei entre1 986 e 1 992.

1 2 Enfatizo que esse esboço do ev ento não tem pretensão de se assumir como etnografia,mas, sim, de ev idenciar a correlação entre as manifestações que o compõem e os lugarespatrimonializados da cidade, configurados em circuitos. Nesse sentido, denomino comocircuito um trajeto específico demarcado pela mov imentação de atores significativ os naprodução de um ev ento festiv o. No caso em análise, os circuitos que demarcam os cortejosprocessionais ocorridos na festa estão relacionados aos ev entos originais que compõem oimaginário dev ocional ao Div ino Espírito Santo e seus desdobramentos históricos. A esserespeito, v er Abreu (1 999), Gonçalv es (2002), Santos (2008), Carv alho (2008).

1 3 A festa é organizada por um casal de festeiros escolhido ou indicado pelo pároco local,que conv ida outras pessoas a se responsabilizarem por elementos parciais da festa,formando uma comissão que, ao final do ev ento, presta contas ao pároco. A tradição derealização da festa reproduz­se nos seus elementos, apesar de v ariarem os atores dascomissões encarregadas pelos mesmos, a cada ano. Assim, a decoração da festa, sobretudodo andor e do Império do Div ino, estev e a cargo de uma professora local durante décadas.Da mesma forma, o cozinheiro responsáv el pela preparação do afogado, os nov eneiros, omaestro que ensaiav a o coral que cantav a em latim nas missas, as mulheres queorganizav am as seções dos anjinhos nas procissões, os responsáv eis das irmandadesreligiosas locais pelos andores de seus santos, o maestro da Corporação Musical São Luiz deTolosa e formador da banda que acompanha as procissões, além dos mestres dos gruposdev ocionais conv idados a se apresentar na festa, foram inv ariav elmente os mesmosdurante anos. Nesse sentido, a trajetória histórica da festa produziu uma especialização desaberes e fazeres entre alguns atores legitimados, formando eles um núcleo duro daprodução dessas manifestações.

1 4 As concepções locais de autenticidade, partilhadas entre agentes eclesiásticos, do poderpúblico, historiadores e membros de irmandades locais, assentam­se em registros daantiguidade ou fundação da festa (sua origem), enquanto as concepções de identidade sãoamplamente reconhecidas pela população como registros de ações tradicionais, pelaimersão na rede de relações que se forma em torno do ev ento, durante todo o ano (suamanutenção ou continuidade).

1 5 Lei Estadual de São Paulo n.º 1 1 .1 97 , de 5 de julho de 2002.

1 6 Os Pontos de Cultura são estabelecidos em municípios do país segundo projetosapresentados por atores culturais aos editais do Programa Cultura Viv a do Ministério daCultura. “O Programa Cultura Viv a é concebido como uma rede orgânica de criação egestão cultural, mediado pelos Pontos de Cultura, sua principal ação. A implantação doprograma prev ê um processo contínuo e dinâmico e seu desenv olv imento é semelhante aode um organismo v iv o, que se articula com atores pré­existentes. Em lugar dedeterminar (ou impor) ações e condutas locais, o programa estimula a criativ idade,

potencializando desejos e criando situações de encantamento social” (disponív el em

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potencializando desejos e criando situações de encantamento social” (disponív el em<http: / / www.ipecpesquisas.org.br / usuario / GerenciaNav egacao.php?caderno_id=396&niv el=3>, acesso em 1 2 / 7 / 2010).

1 7 Outros registros imagéticos dos estragos causados pela enchente podem serv isualizados em sítios div ersos na web, atrav és de uma busca na plataforma Google.Conferir, por exemplo, <http: / / www.oeco.com.br / fotografia / 23433­sao­luis­do­paraitinga>.

1 8 Segundo Halbwachs (1 990), a memória reproduz simbolicamente significadospartilhados e v iv enciados por grupos, comunidades e sociedades, de forma a dotar desentidos os acontecimentos históricos e permitir a incorporação de conceitos naexperiência coletiv a. Nesse sentido, memória e imaginação operam regularmentecontrações uma sobre a outra, como já indicou Deleuze (1 988). Buscando interpretaressas contrações, Santos descrev e: “Jean Duv ignaud, comentando o texto de Halbwachs,constata, a partir dessa discussão, a distinção entre a ‘memória histórica’ formada pelosfatos do passado construído a partir do presente, e a ‘memória coletiv a’ que traz umaspecto mais mágico a este mesmo passado. A festa permite a construção dessa memóriacoletiv a e também acaba influenciando diretamente a história do local no qual se realiza”(2008: 1 7 ).

1 9 E se Mead expõe esse “nós” na forma de um “outro generalizado, ou organizado” (1 982:184), que permite aos self indiv iduais desenv olv er um centro de ativ idades, ou estruturade atitudes, nas interações sociais, é também v erdade que os objetos que formam oambiente dessas interações podem se assumir, ou serem apropriados, nas identificaçõesdos outros com quem interagimos, assumindo uma centralidade como mediação, emalguns casos, pelo caráter significativ o que propiciam à organização das mesmasinterações. Esse é o caso da igreja Matriz de São Luiz do Paraitinga, como pude v erificar,mesmo antes da festa, em v ários depoimentos de sujeitos da cidade entrev istados poremissoras de telev isão, logo após a queda da igreja, durante a cobertura que realizaramda enchente.

20 O termo imagética busca imprimir um caráter substantiv o ao conjunto de imagensque se entrelaça e grav ita em torno de determinadas práticas religiosas e v iv ênciasdev ocionais contemporâneas. Buscando superar a importância secundária atribuída aouso das imagens no entendimento do fenômeno religioso, tratando­as regularmente comoum registro simbólico que se reproduzia desde práticas e estratégias institucionais deev angelização ou difusão doutrinal das denominações religiosas, a concepção de imagéticareligiosa, ou dev ocional, requer reconhecer um caráter presencial às imagens, nacontemporaneidade, que extrapola a impressão de um registro simbólico produzido foradelas, para, a seguir, interpretar essas presenças como constitutiv as de redes de sentido,organizadas em torno de determinadas dev oções e práticas religiosas. Assim, as imagensreligiosas e dev ocionais existem como suporte ritual de demarcação social, uma espécie degeografia do sagrado ou, ao menos, das experiências religiosas v iv enciadas pelas pessoasem determinadas situações (Lopes 2010).

21 As edições anteriores da festa realmente não tinham esse caráter popular expresso naliturgia dos rituais. Até 1 988, inclusiv e, as liturgias das missas de festas do Div ino queacompanhei, na cidade, eram todas cantadas em latim, por um coral que se prostrav a nomezanino anterior superior da nav e da igreja Matriz. Esse elemento ortodoxo do ritual foisubstituído pelas liturgias acompanhadas de cânticos ev angelizadores de orientaçãoreformista, como se v erificou ocorrer nos centros urbanos do país, desde o final da décadade 1 980, e que predominav am até a festa de 2009, em que pesou a influência ocasionaldos carismáticos, que renov aram a liturgia das missas com suas canções em estilo gospel.

22 Aqui, exponho um caráter dos agenciamentos religiosos sobre a festa que é decorrentede tentativ as de resgatar a autoestima da população local. Entretanto, essesagenciamentos religiosos operam também outras influências sobre a população e a festa,na medida em que configuram lentamente um campo religioso plural na cidade, deconcorrência pela apropriação de fiéis, como descrito em Santos (2008: 1 57 ­1 62). Ocorreque essa pluralidade reduzia­se a mais quatro denominações ev angélicas e um terreiro deumbanda, com sedes em áreas periféricas da cidade, até o período da enchente. Em 201 1 ,quando retornei à cidade para acompanhar a festa, o secretário de Turismo da prefeiturame informou que hav iam se registrado e sediado no município dez nov as denominaçõesev angélicas. Algumas, como a Igreja Univ ersal da Graça, ocupav am antigos casarões naregião central da cidade.

23 Na festa do Círio de Nazaré, na cidade de Belém, estado do Pará, percebi que essesfolhetos eram produzidos e distribuídos pela maioria dos atores que agenciav am algumtipo de recurso identitário no ev ento, buscando apropriar­se do capital simbólico emdifusão nos seus rituais centrais e prov ocando fluxos que atrav essav am a ordem e ocontrole da linearidade de suas ativ idades.

24 Aqui, sigo a concepção de Lipov etsky (2000), quando analisa os agenciamentos derecursos realizados por atores env olv idos em ev entos de massa, na contemporaneidade.Para esse autor, [continua][continuação] a própria ideia de solidariedade seespetaculariza, nesses ev entos, em uma expressão pós­moderna da solidariedade orgânica.Aqui, busco enfatizar que os agenciamentos de recursos para a reconstrução da cidade

operam com mais força nos ev entos festiv os da cidade. O Carnav al é outro exemplo. Em

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operam com mais força nos ev entos festiv os da cidade. O Carnav al é outro exemplo. Em2010, logo após a enchente, ele foi suprimido do calendário local, retornando em 201 1com um nov o modelo de organização e programação, e chamado de “Carnav al solidário”.

25 Embora a questão da escassez / desperdício tenha sido o motiv o das discussões aquianalisadas, é importante reconhecer que a concepção de fartura compõe uma díadecomplementar com aquela, na distribuição de alimentos tradicional nas Festas do Div ino.“Simbolicamente, ‘dar de comer’ implica em fazer o corpo do outro, dar substância aov isitante. A distribuição alimentar, um gesto de caridade e bênção, é parte fundamentalda etiqueta e da ética das festas do Espírito Santo, bem como seu v asto consumo” (Veiga2008: 1 40). Ver também a análise sobre as festas do Div ino nos Açores elaborada por Leal(1 994), sobretudo o capítulo intitulado “Jantares, gastos e festas”, em que o autor expõeas redes sociais env olv idas na produção, distribuição e consumo de alimentos.

26 Esse aparente paradoxo também encontra respaldo no imaginário e na memórialocais. Jaime de Almeida (2001 ) relata que foi o desperdício de alimentação que lev ou,inclusiv e, o monsenhor da cidade, em 1 918, a interromper sua realização: “A festamantev e a tradição dos div ertimentos profanos e da comilança até 1 91 6, quando afartura e o desperdício atingiram um grau inusitado. A casa da festa serv iu comida àv ontade a toda a população durante oito dias; os 28 degraus do casarão tinham dois dedosde comida pisoteada; 1 50 leitoas, além das muitas rezes e av es, foram abatidas. Contratais excessos, o v igário Ignacio Gioia proibiu o sorteio do próximo festeiro e suspendeualguns div ertimentos profanos e a distribuição de comida. Em 1 918, já não houv e festasprofanas [...] A tradição só foi retomada em 1 940” (Almeida 2001 : 84). Essa questão foiretomada, em 2008, gerando uma discussão acalorada entre o pároco e o prefeito locais,como relata Santos (2008: 1 63­1 64).

27 Desde a noção de agenciamento esboçada por Yúdice, trata­se de identificar atores queagenciam recursos identitários recuperados de uma “reserv a disponív el” nas trajetóriascomuns de suas formações culturais, em diálogo com modelos culturais (no caso, estatais)predominantes na sociedade globalizada. Esse predomínio se expressa na configuração deum campo de forças performativ as a condicionar a ação dos atores que, por v ezes,imprimem uma dinâmica de operar agenciamentos nos interv alos daqueles modelos.

28 E lembrando Stuart Hall (2005: 1 03), essas traduções são elaboradas “[...] por genteque v iaja, mesmo quando permanece em suas casas ou escritórios”. Nesse sentido, épróprio afirmar que as traduções podem até ser locais, mas os criadores culturais que aselaboram são “sujeitos em trânsito” pelos processos da globalização, como o “homem emtrânsito” consumidor de cultura, descrito por Toffler (1 965: 50).

29 Vistos desde os acontecimentos em torno do afogado, pessoas do lugar e pesquisadores / repórteres são categorias distintas de sujeitos em ação. Vistos desde o show sertanejo, sãouma mesma categoria de público. Essas distintas percepções sintetizam bem os fluxos dosagenciamentos que operam sobreposições das esferas culturais e religiosas na Festa doDiv ino.

30 Neste ano, uma organização da cidade de São Paulo estav a grav ando, no pátio daEscola Coronel Domingues de Castro, cantorias dos grupos que se apresentav am na festa.Segundo informações de Galv ão, ator cultural local, tratav a­se de um projeto paraproduzir um DVD sobre cultura popular na Festa do Div ino, com v erba da Secretaria deEstado da Cultura de São Paulo.

31 A noção de fluxo está associada à capacidade de estabelecer estranhamentos e foidescrita mais especificamente em Williams (1 97 4), e comentada por sociólogos da culturacomo Ramos (1 998) e Coelho (1 998). Esses autores destacam o impacto causado pelocontato de Williams com a propaganda telev isiv a, nos EUA, como fator decisiv o para aelaboração do conceito de “fluxo”, pelo mesmo. Na contemporaneidade globalizada em quev iv emos, esses estranhamentos têm se div ersificado, em v ez de retraírem, e reforçadouma propensão dos atores sociais a pensarem e utilizarem suas culturas como recursoestratégico de v isualização do mundo (Yúdice 2006) ou de gestão de suas relações comalteridades distintas (De Certeau 1 994).

32 Aqui, estabeleço uma correspondência com a análise elaborada por Alv es (1 980) sobrea festa do Círio de Nazaré, na qual a noção de ritual complexo explicita um conjunto demanifestações rituais que grav itam em torno de uma estrutura mítica, ou dev ocional, decaráter ora residual, ora emergente em relação à centralidade dos ev entos quecondicionam o curso dos acontecimentos ritualizados. Numa análise correspondente sobrea Festa do Div ino em Pirenópolis, estado de Goiás, Veiga (2008: 1 36) reconhece esseconjunto ao expressar que se promov em “festas dentro da festa”. Elaborada sobre aconcepção de liminaridade de Turner (1 97 4), a análise de Alv es mostra que a oscilaçãoconstante do caráter dessas manifestações projeta no ev ento uma tensão constante entreelementos ou fatores de manutenção e inov ação.

33 “Alma do lugar” é um termo cunhado por Yázigi (2001 : 29) para definir a perspectiv ado lugar como uma arrumação que produz algo singular, considerado na extensão de seussistemas. Seu estudo busca afirmar a produção da “singularidade dos lugares”, comopreserv ação da paisagem, a partir da contribuição da fisionomia geográfica local para aconstrução de uma personalidade: “Reconheço o lugar como uma arrumação que produz osingular, mas estimo que de modo algum se poderá entendê­lo ou trabalhá­lo sem a

consideração da extensão de seus sistemas. Ele tem uma personalidade sim, mas não é

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consideração da extensão de seus sistemas. Ele tem uma personalidade sim, mas não ésujeito” (Yázigi 2001 : 38).

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Para citar este artigo

Referência da edição impressaJosé Rogério Lopes, « O divino retorno: uma abordagem fenomenológica de fluxosidentitários entre a religião e a cultura », Etnográfica, vol. 16 (2) | 2012, 339­364.

Referência da edição eletrónicaJosé Rogério Lopes, « O divino retorno: uma abordagem fenomenológica de fluxosidentitários entre a religião e a cultura », Etnográfica [Online], vol. 16 (2) | 2012, Online desde26 Junho 2012, consultado em 04 Julho 2016. URL : http://etnografica.revues.org/1526 ; DOI :10.4000/etnografica.1526

Autor

José Rogério LopesUniversidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), RS, Brasil, [email protected]

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