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ARTIGO – 07/12/11 O DOMICÍLIO CIVIL DA PESSOA NATURAL COMO UM ELO ENTRE O DIREITO MATERIAL E SUA EFETIVA APLICAÇÃO AO CASO CONCRETO por Bruno Francisco Prado Rocha 1. Introdução – a luta pelo direito. 2. Os desafios da convivência humana e a autoafirmação do Estado. 3. O estabelecimento da ordem jurídica. 4. O direito internacional privado. 5. A pessoa natural como sujeito de direitos e obrigações e o elo entre o direito material e sua efetiva aplicação ao caso concreto. 6. A concepção jurídica do domicílio civil da pessoa natural – considerações. 7. Conclusão. 8. Bibliografia. 1. Introdução – a luta pelo direito. Assim doutrinou IHERING 1 : O objetivo do direito é a paz, a luta é meio de consegui-la. O notável jurista elaborou essa premissa em 1872, destacando-a em seu livro “A Luta pelo Direito” e a fez de forma tão brilhante que ainda hoje se mostra irretocável. Diante de tal conclusão, se o objetivo do direito é a paz, parece ser a guerra a sua regra. Cediço é que o Direito se encontra em um invariável “estado de guerra”, manipulado por interesses individuais escusos que geram multifacetários conflitos e minam abruptamente seu estado de equilíbrio. 2. Os desafios da convivência humana e a autoafirmação do Estado. A alteridade, em sua concepção filosófica, justifica a iteração e interdependência das pessoas. Dessas relações humanas, inevitavelmente surgem casos de rompimento do elo imposto pela Justiça ao caminhar social. A formação e a composição do litígio, então, mostram-se inevitáveis e a busca dessa recomposição da harmonia social se dará através da luta. O convívio em sociedade é natural e necessário, não obstante, complexo. Diante desta simples constatação, mostra-se imperativa à sociedade a manutenção do “contrato social”, proposto por Rousseau, como forma de se manter a ordem pública 2 e se evitar a barbárie entre os povos. 1 IHERING, Rudolf Von, 1818-1892. A luta pelo direito / Rudolf Von Ihering; tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 1. ed. ; 2ª tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. – (RT-textos fundamentais). 2 A noção de ordem pública é uma das mais inconsistentes do direito. Mas o senso jurídico percebe-a, sem dificuldade, no momento em que ela deve reagir contra o elemento que a perturba. BEVILAQUA, Clovis.

O domicílio civil da pessoa natural como um elo entre o direito material e sua efetiva aplicação ao caso concreto

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Percebe-se uma estreita correlação entre o direito material e o processual que se opera através do elo criado pelo instituto jurídico do domicílio . O domicílio civil seria, então, a ponte que une o direito material ao processual para que se forme a jurisdição, estabelecendo-se a competência para se dizer o direito ao caso concreto.

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ARTIGO – 07/12/11

O DOMICÍLIO CIVIL DA PESSOA NATURAL COMO UM ELO ENTRE O DIREITO MATERIAL E SUA EFETIVA APLICAÇÃO AO CASO CONCRETO – por Bruno Francisco Prado Rocha

1. Introdução – a luta pelo direito. 2. Os desafios da convivência humana e a autoafirmação do Estado. 3. O estabelecimento da ordem jurídica. 4. O direito internacional privado. 5. A pessoa natural como sujeito de direitos e obrigações e o elo entre o direito material e sua efetiva aplicação ao caso concreto. 6. A concepção jurídica do domicílio civil da pessoa natural – considerações. 7. Conclusão. 8. Bibliografia.

1. Introdução – a luta pelo direito.

Assim doutrinou IHERING1: O objetivo do direito é a paz, a luta é meio de consegui-la. O

notável jurista elaborou essa premissa em 1872, destacando-a em seu livro “A Luta pelo

Direito” e a fez de forma tão brilhante que ainda hoje se mostra irretocável.

Diante de tal conclusão, se o objetivo do direito é a paz, parece ser a guerra a sua regra.

Cediço é que o Direito se encontra em um invariável “estado de guerra”, manipulado por

interesses individuais escusos que geram multifacetários conflitos e minam abruptamente seu

estado de equilíbrio.

2. Os desafios da convivência humana e a autoafirmação do Estado.

A alteridade, em sua concepção filosófica, justifica a iteração e interdependência das pessoas.

Dessas relações humanas, inevitavelmente surgem casos de rompimento do elo imposto pela

Justiça ao caminhar social. A formação e a composição do litígio, então, mostram-se

inevitáveis e a busca dessa recomposição da harmonia social se dará através da luta.

O convívio em sociedade é natural e necessário, não obstante, complexo. Diante desta simples

constatação, mostra-se imperativa à sociedade a manutenção do “contrato social”, proposto

por Rousseau, como forma de se manter a ordem pública2 e se evitar a barbárie entre os

povos.

1 IHERING, Rudolf Von, 1818-1892. A luta pelo direito / Rudolf Von Ihering; tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 1. ed. ; 2ª tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. – (RT-textos fundamentais). 2 A noção de ordem pública é uma das mais inconsistentes do direito. Mas o senso jurídico percebe-a, sem dificuldade, no momento em que ela deve reagir contra o elemento que a perturba. BEVILAQUA, Clovis.

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Ciente, o Direito moderno não se coaduna com batalhas desprovidas de regras. Neste

contexto, afirma-se o Estado como garantidor da normalidade da ordem jurídica estabelecida,

impondo as regras que devem prevalecer para que a paz social seja mantida.

Crédulas nessa missão pela composição harmônica das relações humanas, as pessoas confiam

parcelas de sua liberdade individual ao Estado, e este, legítimo detentor de poder de

ingerência nas relações particulares, presta a tutela adequada e justa para as demandas das

pessoas, confiantes nas soluções que o Direito possa apresentar para se garantir a

tranqüilidade e a paz coletivas.

3. O estabelecimento da ordem jurídica.

Para LIEBMAN, é através da função legislativa que o Estado estabelece a ordem jurídica,

fixando em forma preventiva e hipotética as normas que deverão incidir sobre as situações ou

relações que possivelmente virão a ocorrer entre os homens no convívio social.3

Sob esta ótica, foi editado no Brasil o Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942, por

muitos anos conhecido como Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, atualmente

conhecido como Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, por determinação da Lei

nº 12.376, de 30 de dezembro de 2010.

Na composição desse diploma normativo, sob a influência do Sistema da Territorialidade

Moderada, conhecida também como temperada ou mitigada, foi editada uma regra primária e

fundamental para a efetiva aplicação do sistema normativo brasileiro aos casos concretos, que

se materializa na identificação de qual legislatura a pessoa natural se subordina.

Tal regramento se deu nos exatos termos do contido em seu art. 7º, que assim dispõe: a lei do

país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da

personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.

Código civil dos Estados Unidos do Brasil, comentado por Clovis Bevilaqua. Edição histórica. 6ª tiragem. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1940. p. 154. 3 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di Diritto Processuale Civile. Reimpressão da 2ª ed., v. I, nº 1, p. 3. Milão, 1968. apud Theodoro Júnior, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Humberto Theodoro Júnior. – Rio de Janeiro: Forense, 2001. 1 v.

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Percebe-se uma estreita correlação entre o direito material e o processual que se opera através

do elo criado pelo instituto jurídico do domicílio4. O domicílio civil seria, então, a ponte que

une o direito material ao processual para que se forme a jurisdição, estabelecendo-se a

competência para se dizer o direito ao caso concreto.

4. O direito internacional privado.

Ao tratar sobre o Direito Interespacial, sobre a noção do conflito de leis no espaço, NADER5

aborda primeiramente a situação do estrangeiro perante a sistemática do Direito Romano,

afirmando não haver, neste período, margem ao surgimento de conflitos.

Leciona-nos que, em Roma, estabeleceu-se o princípio da personalidade da lei, pelo qual o

indivíduo ficaria subordinado ao Direito de sua origem. Institui-se, então, o chamado

professio juris, prática pela qual o juiz perguntava à parte: sub qua lege vives? O julgamento

se processava pela lei da pessoa, apesar de todos os seus inconvenientes. Para a aplicação do

estatuto pessoal, o princípio mais adequado seria o da nacionalidade, o jus sanguinis e não o

jus soli. As pessoas deveriam se submeter às leis de sua nacionalidade na hipótese de

extraterritorialidade.

Observa-se, no entanto, que o direito pátrio, ao regular o direito internacional privado,

encarregado da tarefa de conferir direitos tanto a brasileiros como a estrangeiros, submeteu o

estatuto pessoal6 do estrangeiro à lei do domicílio e não à da nacionalidade7. Diante de tal

4 Determinando o domicílio a competência geral do juiz, o processo disputava-lhe a noção ao direito civil. Mas o seu conceito pertence ao direito material. Se é atributo da competência do foro, é precisamente por ser o lugar onde o direito substantivo declara que se acha a pessoa. BEVILAQUA. Op. cit. p. 249. 5 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito / Paulo Nader. 30. ed. 2ª tiragem – Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 255-259, passim. 6 “Denomina-se estatuto pessoal a situação jurídica que rege o estrangeiro pelas leis de seu país de origem. Baseia-se ele na lei da nacionalidade ou na lei do domicílio. (...) pela lei atual, o estatuto pessoal funda-se na lei do domicílio (Lex domicilli) na lei do país onde a pessoa é domiciliada (STF, Súmula 381). GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado, volume I / Carlos Roberto Gonçalves. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 85. 7 “O Sistema Brasileiro tratou do Direito Interespacial de modo diferente a partir de 1942, quando foi promulgada a “Lei de Introdução”, passando o estatuto pessoal do estrangeiro a se submeter à lei do domicílio e não à da nacionalidade”. “A exposição de motivos que acompanhou o ato legislativo justificou a mudança, sob o fundamento de que o Brasil era inda um país de imigrantes e que os nossos nacionais no exterior eram em número bem inferior ao dos estrangeiros aqui domiciliados e que, além dessa circunstância, havia uma patente dificuldade por parte dos juízes brasileiros em conhecerem o Direito estrangeiro, aplicável sobretudo em questões de sucessão e de Direito de Família. Com a alteração do princípio para o do domicílio, os estrangeiros

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preceito, pode-se concluir com respaldo nos ensinamentos de FARIAS8 que, embora as leis

sejam editadas para serem aplicadas no território nacional (princípio da territorialidade),

admite-se, sem ferir a soberania estatal nacional e a ordem internacional, em determinadas

hipóteses, a aplicação da norma estrangeira em território nacional ou a aplicação da lei

brasileira em território estrangeiro (princípio da extraterritorialiadade).

Ressalte-se, no entanto, que o critério da observância do estatuto pessoal não é absoluto, vez

que a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro consagra outros critérios para a

admissibilidade da lei estrangeira, como se exemplifica nos casos do art. 8º, art. 9, § 2º, art.

10, § 1º, art. 14 e, no CPC, art. 337.

Para BEVILAQUA9, “o direito internacional privado deve considerar o conjunto dos

preceitos reguladores das relações de ordem privada da sociedade internacional. ZEBALLOS

denomina-o direito privado humano (Justiça internacional positiva, p.10)”.

Ainda, segundo o autor10,

Não se deve confundir a sociedade internacional, a que se alude nesta definição, com a sociedade dos Estados, cuja regulamentação é objeto do direito público internacional. O agregado social, de que aqui se trata, compõe-se de indivíduos e não de nações. E as duas disciplinas têm por objeto relações jurídicas essencialmente diferentes. No direito internacional privado, o sujeito das relações jurídicas é o indivíduo, e o interesse, sobre que elas se formam, é partilhar. No direito público internacional, são os Estados que, promovendo interesses coletivos, constituem-se sujeitos das relações jurídicas internacionais. Não se deve, também, tratar o direito internacional privado como um departamento de direito interno, porque a sua função sociológica é harmonizar a concentração nacional e a expansão individual, criando uma forma elevada de direito humano, que projeta o interesse do particular, qualquer que seja a sua nacionalidade, e onde quer que ele se ache, sem tentar desarraigá-lo de sua pátria.

que aqui viviam ficaram subordinados não mais à legislação de origem, mas ao Direito brasileiro. Lembre-se que a alteração do princípio ocorreu em plena “Segunda Guerra Mundial”, na qual o Brasil participou, juntando-se aos “aliados”, no combate às forças dos “países do eixo”. NADER, Paulo. Op. cit. p. 255-259, passim. 8 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito civil: teoria geral / Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald. 9. ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 117. 9 Op. cit. p. 117-119, passim. 10 Foi alterada a ortografia utilizada pelo autor à época, atualizando-a de forma a facilitar a leitura, suavizando o texto.

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Assim, no direito internacional privado se aliam duas poderosas tendências, o individualismo e o humanismo, que se devem ter sempre em vista na solução dos problemas, que ele é chamado a resolver. Não obstante, aplicando-se às relações privadas da sociedade internacional, as leis internas se apresentam sob uma outra feição, que não é a originária. Internacionalizando-se, humanizam-se. Depreendem-se do âmbito nacional e adquirem eficácia em todo o mundo civilizado. Dilatam-se e espiritualizam-se para poderem se harmonizar com outras leis divergentes. Esta aplicação internacional do direito interno, esta humanização do direito nacional transfigura-o, fazendo-o funcionar como um complexo de leis da sociedade internacional.

O direito internacional privado deverá, então, apresentar as regras que irão determinar qual a

norma que será aplicável em cada caso concreto que ao Direito desafia.

Conforme destacado por FARIAS11, é preciso ressaltar, todavia, que a admissibilidade da

aplicação da lei estrangeira em território nacional pressupõe a inexistência de ofensa à

soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes, como preconiza o art. 17, da Lei de

Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Sob vênia pelo uso desmedido das lições do mestre Bevilaqua12, forçoso destacar suas

palavras sobre a compreensão e a exata dimensão da importância do direito internacional

privado na vida jurídica social.

Compreendido, assim, o direito internacional, resolvem-se, muito facilmente, as controvérsias a respeito das leis que devem ser aplicadas aos casos ocorrentes. As relações de direito, que são emanações diretas da personalidade, assim como esta mesma personalidade e todo o direito das pessoas, devem ser regidas pelo direito nacional do indivíduo, porque foi esse direito, que presidiu ao seu aparecimento na vida jurídica, e lhes imprimiu o caráter, com que se apresentam. Devem ainda ser regidas por esse direito, porque a lei referente à capacidade e às relações jurídicas do homem na qualidade de membro de uma família são leis pessoais ou individuais, isto é, tendo por objeto o indivíduo, a pessoa; e, como o direito internacional privado foi instituído para assegurar aos indivíduos as suas expansões jurídicas fora do país, é natural que as leis pessoais recebam um acréscimo de eficácia, dilatem-se ao exterior, acompanhem o indivíduo, por onde ele se dirija: sejam extra-territoriaes. Ao contrário, as leis que se referem à coexistência social, à organização da vida em comum, ao território nacional, à ordem pública, sendo leis sociais, restringem-se ao país onde foram promulgadas, não se dilatam, são territoriaes.

11 FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit. p. 120. 12 Op. cit. p. 119.

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5. A pessoa natural como sujeito de direitos e obrigações e o elo entre o direito material e

sua efetiva aplicação ao caso concreto

Ao tratar da personalidade e da capacidade das pessoas naturais, o Código Civil estabelece

como suas primeiras regras (arts. 1º e 2º) que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na

ordem civil e que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei

põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Como ficou acima demonstrado, e em atenção ao art. 7º da Lei de Introdução às normas do

Direito Brasileiro, novamente destacado, que dispõe: a lei do país em que for domiciliada a

pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e

os direitos de família; resta-nos dimensionar a noção de domicílio civil estatuído pelo direito

pátrio para determinarmos a exata correlação entre o direito material garantido pela norma e

sua forma de execução efetiva no mundo jurídico.

Ao nos depararmos com as regras dos arts. 1º e 2º do Código Civil, percebemos que todas as

pessoas são sujeitas de direitos e obrigações. Mas para que tal direito material assegurado pela

norma ultrapasse as barreiras filosóficas, do mundo das idéias, do ser, e se apresente ao

mundo do dever-ser de Kelsen, dos fatos concretos e perceptíveis, esperado pelas pessoas, o

Direito determina que se deva percorrer um caminho previamente conhecido e seguro, que

são as vias dos processos judiciais.

Sob esta concepção, o domicílio se mostra como um instituto essencial ao Direito, um elo por

onde se estabelece o encontro entre o direito material assegurado e o procedimento para sua

efetiva observância pelo Estado, quando da determinação da tutela adequada ao caso

concreto.

Sem que haja a definição do domicílio civil da pessoa, não há como o Direito se relacionar

com seu titular, seria como se condenado estivesse por algo semelhante ao “Feitiço de

Áquila”.

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Para THEODORO JÚNIOR13, citando Liebman, o encargo e o monopólio estatal para definir

o direito concretamente aplicável diante das situações litigiosas, bem como o de realizar

coercitivamente esse mesmo direito, deve se dar através da jurisdição, entendida como o

poder que toca ao Estado, entre as suas atividades soberanas, de formular e fazer atuar

praticamente a regra jurídica concreta que, por força do direito vigente, disciplina

determinada situação jurídica.

Ainda, esta função jurisdicional só deve atuar diante de casos concretos de conflitos de

interesse (lide ou litígio) e sempre na dependência da invocação dos interessados, porque são

deveres primários destes a obediência à ordem jurídica e a aplicação voluntária de suas

normas nos negócios jurídicos praticados.

6. A concepção jurídica do domicílio civil da pessoa natural – considerações.

Segundo FARIAS14, no Direito pátrio, há uma garantia constitucional ao domicílio como

corolário da afirmação da proteção à dignidade humana.

GAGLIANO e PAMPLONA FILHO15, afirmam que o Direito Romano delineou uma

definição clara e precisa de domicílio (domus = casa). O domicílio era, simplesmente, o lugar

onde a pessoa se estabelecia permanentemente. O propósito de permanecer (“animus

manendi”). Foram os franceses que complicaram a noção de domicílio, imaginando haver

uma relação jurídica entre a pessoa e o lugar que habitava. Sob a égide do direito brasileiro,

assim o conceituam:

Domicílio civil da pessoa natural é o lugar onde estabelece residência com ânimo definitivo, convertendo-o, em regra, em centro principal de seus negócios jurídicos ou de sua atividade profissional.

Observa, ademais, que por imperativo de segurança jurídica, toda pessoa deve ter um lugar

que seja considerado a sede central de seus negócios. Neste local, salvo disposição especial

13 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Humberto Theodoro Júnior. – Rio de Janeiro: Forense, 2001. 1 v. p. 30, passim. 14 Op. cit. p. 357. 15 GAGLIANO, Paulo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: (abrangendo o Código de 1916 e o novo Código Civil) / Paulo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho. – São Paulo: Saraiva, 2003. p. 243-247, passim.

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em contrário, a parte com quem contratamos poderá ser demandada, uma vez que o foro de

domicílio do réu fixa a regra geral de competência territorial (art. 94 do CPC).

A fixação do domicílio tem natureza jurídica de ato jurídico não-negocial

(ato jurídico em sentido estrito), segundo lição da Escola Alemã. Nesse sentido, ENNECERUS-NIPPERFEY: “A constituição e a supressão do domicílio não são negócios jurídicos, pois não requerem a vontade de constituir ou suprimir um domicílio no sentido jurídico, senão, apenas a vontade de se estabelecer permanentemente num lugar determinado ou de abandoná-lo. São, pois, unicamente, atos jurídicos, que exigem, entretanto, a capacidade de agir”.16

SÍLVIO RODRIGUES17, ao conceituar domicílio, nos ensina que vivendo o homem em

sociedade, mantendo relações jurídicas com outros homens, é necessário que haja um lugar

onde possa ele oficialmente ser encontrado, para responder pelas obrigações que assumiu.

Todos os sujeitos de direito devem ter, por livre escolha ou por determinação da lei, um lugar

certo, no espaço, de onde irradiem suas atividades jurídicas. Esse lugar é o seu domicílio.

Afirma adiante que a lei oferece subsídios para uma conceituação de domicílio, ao definir o

domicílio da pessoa natural e ao indicar qual o da pessoa jurídica. Em ambos os casos usa a

expressão lugar, que é adequada, pois domicílio é o lugar em que a pessoa atua na vida

jurídica. Esse, de resto, é o entendimento que deflui da lei.

FARIAS18 avança em suas considerações sobre o domicílio, expondo que na visão civil-

constitucional, reforça-se a importância do domicílio em face da grande ameaça da vida

“tornar-se pública”, passando a casa19 a representar “o refúgio dos refúgios”, acobertada pela

inarredável característica da inviolabilidade, tornando-se uma “fortaleza da privacy,

verdadeiro templo das coisas íntimas”.

Por isso, é lícito vislumbrar que a regulamentação legal do domicílio corresponde, em última análise, à projeção da proteção constitucional da própria pessoa humana, eis que ‘a casa é o asilo inviolável do indivíduo’

16 Citado por Orlando Gomes, Introdução do Direito Civil, 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 184-5. apud GAGLIANO. Op. cit. p. 248. 17 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. parte geral. V.1. / Sílvio Rodrigues. 27. Ed. – São Paulo: Saraiva, 1997. p. 97-106, passim. 18 Op. cit. p. 356-357, passim. 19 Aliás, o Pretório Excelso já afirmou que a proteção do domicílio, através de um amplo conceito jurídico de casa, ‘revela-se plenamente consentâneo com a exigência constitucional de proteção à esfera de liberdade individual e de privacidade pessoal’ (STF, AP370-3/DF, re. Min. Celso de Mello, in RTJ 162:249-50). In FARIAS. Op. cit. p. 357.

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(CF, art. 5º, XI). Pode-se afirmar, sem a menor sombra de dúvidas, que a disciplina jurídica do domicílio visa à preservação da vida privada da pessoa humana, garantindo a dignidade humana afirmada constitucionalmente. Mais incisiva, ROSA MARIA ANDRADE NERY20 chega mesmo a disparar que “a pretensão de morar e estruturar-se em seu domicílio é algo que convive com os sentimentos mais íntimos da pessoa, é anseio natural do ser humano e fomenta incessante busca do homem em direção da estabilidade material que lhe permita resguardo moral de sua dignidade”.

GONÇALVES21 trabalha o conceito de domicílio civil22, afirmando que o mesmo é composto

por dois elementos, o objetivo23, que é a residência, mero estado de fato material e o subjetivo,

de caráter psicológico, consistente no ânimo definitivo, na intenção de fixar-se no local de

modo permanente.

LOURES24, tecendo seus comentários ao art. 76 do CC/02, demonstrou a importância da

fixação ou estabelecimento do domicílio nas seguintes palavras:

A importância da fixação ou do estabelecimento do domicílio reside, em primeira linha, na determinação da competência geral do juiz (CPC. Art. 94); depois, na circunstância de ser o lugar onde, normal e comumente, a pessoa deve cumprir suas obrigações (art. 327), ou onde se abre a sucessão (art. 1.809). Como existem determinadas categorias de pessoas que não podem escolher o seu domicílio, a lei há de cuidar de fixá-los, como se faz no presente artigo, com a determinação obrigatória do domicílio de cada uma das classes enumeradas.

FARIAS25 trata do assunto exemplificando outras conseqüências importantes decorrentes da

fixação do domicílio que seriam: i) determina as regras sobre o começo e o fim da

20 NERY, Rosa Maria Andrade. “Preservação do direito ao domicílio. In VIANA, Rui Geraldo Camargo; NERY, Rosa Maria Andrade (org.), Temas atuais de Direito Civil na Constituição Federal, São Paulo: RT, 2000. p. 54. apud FARIAS. Op. cit. p. 357. 21 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado, volume I / Carlos Roberto Gonçalves. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 143-149, passim. 22 “O código Civil brasileiro, seguindo o modelo suíço, o define o conceito de domicílio no artigo 70”. 23 “Primeiro elemento: residência. A residência é, portanto, apenas um elemento componente do conceito de domicílio, que é mais amplo e com ela não se confunde. Residência, como foi dito, é simples estado de fato, sendo o domicílio uma situação jurídica. Residência, que indica a radicação do indivíduo em determinado lugar, também não se confunde com morada ou habitação, local que a pessoa ocupa esporadicamente, como a casa de praia ou de campo, o hotel em que passa uma temporada ou mesmo o local para onde se mudou provisoriamente até concluir a reforma de sua casa. É mera relação de fato, de menor expressão que residência. Segundo elemento: ânimo definitivo. Consiste na intenção de se fixar em determinado local, de forma permanente. As pessoas podem mudar de domicílio. Para que a mudança se caracterize, não basta trocarem de endereço. É necessário que estejam imbuídas da ‘intenção manifesta de mudar’, como exige o art. 74 do Código Civil”. GONÇALVES. Op. cit. p. 143-149, passim. 24 LOURES, José Costa; GUIMARÃES, Tais Maria Loures Dolabela. Novo código civil comentado / José Costa Loures; Tais Maria Loures Dolabela Guimarães. – Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 40. 25 Op. cit. p. 361.

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personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família (LICC, art. 7º); ii) estabelece o

local onde será aberta a sucessão hereditária e proposto o inventário (CC, art. 1.785 e CPC,

art. 96); iii) fixa o local onde a pessoa deverá cumprir suas obrigações (CC, art. 327), sendo o

lugar do pagamento.

DINIZ26, por seu turno nos leciona que o domicílio nada mais é do que a sede jurídica da

pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito e onde exerce ou pratica,

habitualmente, seus atos e negócios jurídicos.

A autora traça distinções entre o conceito de habitação ou moradia, afirmando que neste tem-

se uma mera relação de fato, ou seja, é o local em que a pessoa permanece, acidentalmente,

sem o ânimo de ficar, e o conceito de residência, que é o lugar em que a pessoa habita, com

intenção de permanecer, mesmo que dele se ausente temporariamente.

O domicílio, então, deve ser entendido como um conceito jurídico, por ser o local onde a

pessoa responde, permanentemente, por seus negócios e atos jurídicos, sendo importantíssimo

para a determinação do lugar onde se devem celebrar tais atos, exercer direitos, propor ação

judicial, responder pelas obrigações.

De forma a não contrariar a realidade das coisas, por amor de uma abstração infundada, o

Código Civil pronunciou-se em seus artigos 71 a 73 pela pluralidade de domicílios, no que

nada mais fez do que acompanhar a lição do direito romano e a tradição de nosso direito27.

Para DINIZ28, reconhecendo-se a pluralidade de domicílios – com o uso do critério de

residência para se estabelecer o domicílio civil e a admissão do domicílio profissional –

quebra-se o princípio da unidade domiciliar, ressalvando a exceção da existência de pessoas

sem domicílio, conforme preconiza o art. 73 do CC.

26 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 1: teoria geral do direito civil / Maria Helena Diniz. – 20. ed. ver. aum. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10-1-2002). – São Paulo: Saraiva, 2003. p. 194-195, passim. 27 BEVILAQUA. Op. cit. p. 251. 28 Op. cit. p. 194-195, passim.

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O DOMICÍLIO CIVIL DA PESSOA NATURAL COMO UM ELO ENTRE O DIREITO MATERIAL E SUA EFETIVA APLICAÇÃO AO CASO CONCRETO – por Bruno Francisco Prado Rocha

Em decorrência da admissibilidade da pluralidade de domicílios, LEVENHAGEN29 afirma

que se a pessoa tiver residência num lugar e centro de negócios habituais em outro, o

domicílio será o do lugar da residência; se não tiver residência fixa, mas desenvolver, em

determinado lugar, as suas atividades profissionais, nesse lugar será o seu domicílio.

Como referência, podemos ainda citar a nota de RODRIGUES30 que assim se pronunciou: o

Código Civil brasileiro admitiu a idéia da pluralidade de domicílios, adotando, assim, o

critério da legislação alemã e fugindo à orientação do direito francês. Neste último sistema o

domicílio é necessariamente um só, enquanto no Código alemão se admite a pluralidade de

domicílios31; bem como a nota de GONÇALVES32, o Código Civil brasileiro, adotando o

critério das legislações alemã, austríaca, grega e chilena, dentre outras, e afastando a

orientação do direito francês, admite a pluralidade domiciliar.

Quanto à perda do domicílio, DINIZ33 doutrina que se perde o domicílio: i) pela mudança,

porque o domicílio da pessoa passa a ser o mais recente, deixando de ser o anterior; ii) por

determinação de lei, pois, nas hipóteses de domicílio legal, o domicílio antecedente cede

lugar ao preceito normativo; e iii) por contrato, em razão de eleição das partes no que atina

aos efeitos dele oriundos.

No mesmo sentido GONÇALVES34 afirma que se perde o domicílio, porém, não só pela

mudança, mas também por determinação de lei (quando venha a ocorrer uma hipótese de

domicílio legal que prejudique o anterior) e pela vontade ou eleição das partes, nos

contratos, no que respeita à execução das obrigações deles resultantes (CC, art. 78).

Para GAGLIANO e PAMPLONA FILHO35, a mudança de domicílio opera-se com a

transferência da residência aliada à intenção manifesta de alterá-lo, e quanto aos seus efeitos,

expõe que

29 LEVENHAGEN, Antônio José de Souza. Código Civil: comentários didáticos: parte geral / Antônio José de Souza Levenhagen. Atualizado até setembro de 1994 por Carlos Augusto de Barros Levenhagen – 4. Ed. – São Paulo: Atlas, 1995. p. 58. 30 Op. cit. p. 97-106, passim. 31 Código Civil alemão, art. 7º, 2ª alínea: “O domicílio pode existir, ao mesmo tempo, em vários lugares”. 32 Op. cit. p. 143-149, passim. 33 Op. cit. p. 197. 34Op. cit. p. 143-149, passim. 35 Op. cit. p. 248.

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A mudança de domicílio, depois de ajuizada a ação, nenhuma influência tem cobre a competência de foro. O art. 87 do Código de Processo Civil dispõe: ‘Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia’.36

No que se refere às espécies de domicílios, DINIZ37 afirma serem duas, o domicílio

Necessário ou legal, quando for determinado por lei, em razão da condição ou situação de

certas pessoas e o domicílio Voluntário, quando escolhido livremente, podendo ser “geral”,

se fixado pela própria vontade do indivíduo quando capaz, e “especial”, se estabelecido

conforme os interesses das partes em um contrato.

Para GONÇALVES38, as espécies de domicílio podem ser assim identificadas: i) quanto ao

número ou quantidade: único ou plúrimo; ii) quanto à existência: real ou presumido; iii)

quanto à liberdade de escolha: necessário ou legal, ou então, voluntário. O domicílio

voluntário pode se dividir em geral e especial, que por sua vez se divide em: foro do contrato

ou foro de eleição.

Há ainda casos em que a pessoa não tem residência certa. Para esta hipótese, o art. 73, do CC,

determina que se terá por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o

lugar onde for encontrada.

Segundo lição de GAGLIANO e PAMPLONA FILHO39, para as pessoas que não tenham

residência certa ou vivam constantemente em viagens, o direito pátrio valeu-se da teoria do

domicílio aparente ou ocasional, fruto do gênio de HENRI DE PAGE, segundo o qual

“aquele que cria as aparências de um domicílio em um lugar pode ser considerado pelo

terceiro como tendo aí seu domicílio”.40

O Código trata do domicílio necessário em seu art. 76, e assim dispõe: têm domicílio

necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso. Parágrafo único. O

domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar

36 Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil – Parte Geral, 37. ed., São Paulo: Saraiva, 2000, v. 1, p. 138. apud GAGLIANO, op. cit. p. 248-250, passim. 37 Op. cit. p. 196-197, passim. 38 Op. cit. p. 143-149, passim. 39 Op. cit. p. 248. 40 Orlando Gomes. op. cit. p 187. apud GAGLIANO, op. cit. p 250.

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em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da

Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente

subordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que

cumprir a sentença.

Diversas situações jurídicas podem advir das regras acima, como é o caso do incapaz.

Segundo RODRIGUES41, os incapazes têm necessariamente o domicílio de seus

representantes. A lei não lhes permite, ainda que somente relativamente incapazes, a escolha

de um domicílio; ao invés, define-o, dizendo ser o de seus representantes, conhecido também

como domicílio de origem.

Julgado interessante (RT, 204/324), em que se encontra a aplicação desse texto, diz respeito a certo menor, residente na Itália e herdeiro de pessoa falecida no Brasil, reclamando contra a conta de impostos elaborada pelo contador, na qual era taxado por um acréscimo devido pelo herdeiro ou legatário domiciliado voluntariamente no exterior. Alegou não ser tal acréscimo devido, porque seu domicílio não era voluntário, mas necessário, pois, sendo menor, não lhe cabia a escolha de domicílio, que lhe era imposto por lei. Seu argumento, acolhido, foi dispensado da sobretaxa.

É de se ressaltar também o domicílio do preso, vez que o artigo transcrito dispõe que seu

domicílio será o lugar onde esteja cumprindo sentença. Sendo assim, segundo

LEVENHAGEN42, tratando-se de preso ainda não condenado definitivamente, o seu

domicílio continua sendo o seu, real ou voluntário. A mudança de domicílio do preso em

função do cumprimento de sentença definitiva só se dará com respeito a ele individualmente,

não se estendendo aos familiares, especialmente aos incapazes, que ficarão sob a guarda de

outro representante ou assistente.

Quanto ao domicílio voluntário, de eleição, FARIAS43 nos adverte que a cláusula de eleição

de foro somente tem eficácia plena quando houver inteira liberdade de contratar (autonomia

da vontade). Limitada a liberdade, não pode prevalecer a cláusula de eleição de foro em

detrimento do consumidor (ou do aderente, em termos gerais).

41 Op. cit. p. 97-106, passim. 42 Op. cit. p. 66. 43 Op. cit. p. 359-360, passim.

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Nos dizeres do art. 112 do CPC, a nulidade de cláusula de eleição de foro, em contrato de

adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo de

domicílio do réu.

No que se refere aos contratos de consumo, a cláusula contratual de foro de eleição é nula de

pleno direito, em conformidade com o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, se vier a

estabelecer prejuízo ao hipossuficiente e vulnerável (o consumidor), podendo o juiz declarar,

de ofício inclusive, a nulidade da cláusula e remeter ao juízo competente, declarando-se

incompetente, porque, neste caso, a competência passa a ser fixada por regra absoluta.

Nestes termos, ainda segundo o autor, mitiga-se a aplicação da Súmula 33 do Superior

Tribunal de Justiça, admitindo-se que o juiz, de ofício, reconheça a sua incompetência

relativa, no caso de foro de eleição em contrato de adesão. Aliás, aponte-se que a lei

transcendeu, inclusive, a própria orientação jurisprudencial, permitindo que o juiz reconheça

a incompetência territorial não apenas nos contratos de consumo, mas em todo e qualquer

contrato de adesão, mesmo naqueles não consumeristas.

7. Conclusão.

Pelo que se expôs até o momento, percebe-se a dimensão que o instituto jurídico do domicílio

civil44 tem para as pessoas em suas relações sociais. A mensuração de seus efeitos e de seu

real alcance na conjuntura jurídica se mostra desafiadora.

Exemplificativamente, podemos relacionar o domicílio apenas com a Lei de Registros

Públicos e a Lei dos Notários e Registradores, combinadas com as demais normas pertinentes

à matéria, e constataremos sua aplicação imediata em todas as funções registrárias e notariais.

Resumidamente, no Registro Civil das Pessoas Naturais, quando da prática dos atos principais

da vida civil, que são o nascimento, o casamento e o óbito. No Registro Civil de Títulos e

Documentos e das Pessoas Jurídicas, no que se refere às regras de sua competência funcional.

No Registro de Imóveis, no que tange aos atos relacionados à situação jurídica dos bens e em

questões pessoais com repercussão direta no âmbito do direito real. No Tabelionato de

44 Não nos referindo aqui ao domicílio político, eleitoral, fiscal, tributário, trabalhista, penal etc.

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Protesto, especialmente no que diz respeito à regra de se respeitar o domicílio do devedor. No

Tabelionato de Notas, no qual o notário milita diretamente em contato com as partes,

recebendo suas declarações e elaborando documentos respaldados pela segurança jurídica.

Destaca-se, nesta hipótese, a exigência da apresentação das certidões dos feitos ajuizados para

a lavratura de escritura envolvendo disposição de bens imóveis, que devem ser emitidas no

domicílio do vendedor e do imóvel, caso sejam diferentes.

A estrita atenção às regras conceituais sobre a pluralidade de domicílios e sobre residência

deve ser o supedâneo das orientações prestadas pelos profissionais do direito.

Somente com o reconhecimento da devida importância do instituto do domicílio podem as

pessoas entender as manifestações e nuances do Direito. A luta pela harmonia social passa

necessariamente pela observância de regras impostas pela ordem jurídica. Não há falar em

solução de conflito sem que se saibam as regras a serem aplicadas.

Se os conflitos sociais são inevitáveis e o modo de se atingir a paz é com a luta, será com o

domicílio que se estabelecerá o palco da batalha e as diretrizes da guerra.

A harmonia social dependerá da correta junção do direito material ao processual, pelos trilhos

condutores do domicílio, de forma que o elo criado seja estável o bastante para se manter, em

última análise, o estado de equilíbrio do Direito.

8. Bibliografia.

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(abrangendo o Código de 1916 e o novo Código Civil) / Paulo Stolze Gagliano; Rodolfo

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GUIMARÃES, Deoclecioano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico / Deoclecioano Torrieri

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LOURES, José Costa; GUIMARÃES, Tais Maria Loures Dolabela. Novo código civil

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NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito / Paulo Nader. 30. ed. 2ª tiragem – Rio de

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