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IMPRESSO E ON-LINE - BOLETIM Nº 19 TIRAGEM: 2.000 - JUN/JUL/AGO - 2012 ANO 05 Ocupacional Artigo Transtornos mentais afetam saúde do trabalhador brasileiro Pág. 06 Psicofobia é crime Pág. 08 CONFIRA TAMBÉM O DRAMA DA REALIDADE DA ESQUIZOFRENIA

O drama da realidade da esquizOfrenia - sindhosp.com.br · Fosse a existência uma equação de solução única, nossa vida seria bem mais simples. Quem dera pudéssemos resolver

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IMPRESSO E ON-LINE - BOLETIM Nº 19 TIRAGEM: 2.000 - JUN/JUL/AGO - 2012

ANO 05

Ocupacional Artigo Transtornos mentais afetam saúde do trabalhador brasileiroPág. 06

Psicofobia é crimePág. 08

CONfIRA TAMBéM

O drama da realidade da esquizOfrenia

Fosse a existência uma equação de solução única, nossa vida seria bem mais simples. Quem dera pudéssemos resolver nossos dilemas subtraindo ou multipli-cando números, exatos e precisos como “dois e dois são quatro”. A matemática da vida, no entanto, é mais complexa.

Nesta edição do Saúde Mental em Foco, exploramos esta complexidade com matéria de capa sobre uma doença devastadora e ainda misteriosa aos olhos da ciência: a esquizofrenia. E aproveitamos para destacar a vida de um dos mais proeminentes esquizofrênicos de nossa contemporaneidade, a do matemático John Forbes Nash. Ele, mais do que ninguém, vive a dualidade entre o racional e o ilógico. E desafia a medicina ao conseguir emergir de sua paranoia e lidar com seus fantasmas, frutos de suas alucinações, sem ajuda de medicamentos. Sem dúvida, um case para os psiquiatras.

Enquanto isso, a ciência avança no sentido de prevenir a doença, detectando seus sinais no cérebro e evitando o primeiro surto psicótico. Já é possível sim, embora haja controvérsias, tratar um indivíduo em estado de pré-esquizofrenia. E então paramos para pensar como poderia ter sido genial se John Nash tivesse se tratado previamente e evitado seu primeiro episódio psicótico.

Este fascinante assunto é tema da reportagem de capa desta edição. E foi inspirado no 3º Congresso Brasileiro de Gestão e Políticas em Saúde Mental, realizado em maio último, na programação do ClasSaúde 2012. Na ocasião, o pesquisador Rodrigo Bressan levou ao público estudos interessantes acerca da esquizofrenia, seu diagnóstico precoce, causas, prevenção e tratamento.

Trazemos também um alerta para o aumento dos afastamentos do trabalho causados pelos transtornos mentais. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a depressão será a segunda maior causa de comorbidades no mundo até 2020. Ranking que nos assombra e que nos faz refletir sobre a condição precária e frágil da condição humana. O impacto disso para as empresas, inevitavelmente, tem sido devastador.

Reproduzimos ainda relevante artigo, do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antonio Geraldo da Silva, no qual ele aborda a grave questão do preconceito em relação ao doente mental. E propõe que a sociedade repense seus valores em relação à doença mental, deixan-do de considerá-la algo passageiro ou pouco importante. Ano passado, inclusive, a ABP deflagrou uma campanha de combate ao preconceito, levando ao público diversas personalidades que já sofreram com transtornos psiquiátricos e que deram seu depoimento em favor da causa. Esta iniciativa teve início no Congresso Bra-sileiro de Psiquiatria, evento anual pro-movido pela entidade. Sua continuidade é essencial para que ultrapassemos esta enorme barreira chamada “estigma”.

Boa leitura, boa reflexão!

*Ricardo Mendes é coordenador do Departamento de Saúde Mental do SINDHOSP

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DIRETORIA:

EFETIVODante Ancona Montagnana (presidente)

EDITORA:

Ana Paula Barbulho (MTB 22170)

REDAçãO E REVISãO:

Ana Paula Barbulho, Aline Moura e Fabiane de Sá

EDITORAçãO ElETRônIcA:

Carlos Eduardo, Thiago Alexandre(Marketing)

cOlAbORARAm nESTA EDIçãO:

Ricardo Mendes, coordenador de Saúde Mental do SINDHOSP

cIRculAçãO:

Entre diretores e administradores de hospitais psiquiátricos e clínicas

PERIODIcIDADE:

Trimestral

FOTOS mATÉRIA cAPA:

Thinkstock

DEmAIS FOTOS:

Thinkstock e divulgação

cORRESPOnDêncIAS PARA:

Assessoria de Imprensa R. 24 de Maio, 208 - 9º andarCEP: 01041-000 - São Paulo - SPTel. (11) 3331-1555 - Fax: (11) [email protected]

Saúde mental em Foco é uma publicação do SInDHOSP

CANAL ABERTO EXPEDIENTE

Estima-se que, a cada ano, 56 mil brasileiros irão apresentar o diagnóstico de esquizofrenia. Ainda estigmatizada, a doença tem prevalência em cerca de 1% da população, aparece geralmente antes dos 25 anos de idade tanto em homens quanto em mulheres e pode ser altamente incapacitante. Para se ter uma ideia, cerca de 75% dos portadores de esquizofrenia não trabalham ou estão desem-pregados. Estima-se ainda que de um a dois terços dos moradores de rua sofram da doença.

Marcada pelos surtos psicóticos, a esquizofrenia faz com que o paciente dis-socie seus pensamentos da realidade, podendo chegar a apresentar delírios, discurso desorganizado, disfunções sociais, agitação psicomotora, depressão, comportamento catatônico, fala e risos imotivados, paranoia, ideias delirantes e alucinações auditivas persecutórias.

As estimativas não são boas para esta população, que comparada às pessoas em geral, possui duas a três vezes mais risco de morrer. Cerca de 10% dos esquizo-frênicos, por exemplo, cometem suicídio, sendo esta a maior causa de mortali-dade entre esses pacientes. Outros riscos também são aumentados, como maior predisposição ao uso de drogas (cigarro, álcool, maconha, cocaína), levando a uma diversidade de doenças associadas. Medicamentos utilizados para manter a doença sob controle também podem causar problemas, como síndrome metabó-lica, especialmente entre os antipsicóticos de segunda geração.

Embora o diagnóstico da esquizofrenia seja clínico, e baseado em exame psí-quico, são crescentes os estudos que aproximam a neurociência e a psiquiatria, permitindo importantes constatações. Uma delas, já disseminada – e que dire-ciona os tratamentos medicamentosos – é a de que o esquizofrênico possui uma desregulação no nível de dopamina no cérebro. Novas pesquisas avançam nesta direção e apontam que os receptores glutamatérgicos (maior sistema excitatório do Sistema Nervoso Central) também estejam ligados à fisiopatologia da doen-ça. O psiquiatra e pesquisador brasileiro, Rodrigo Affonseca Bressan, é um dos maiores especialistas do assunto e escreveu sobre o tema em trabalho intitulado “Hipótese glutamatérgica da esquizofrenia”. Atribui-se aos avanços nos estudos de neuroimagem de receptores (PET e SPET) as importantes descobertas para o entendimento da doença e suas origens no cérebro.

Segundo Bressan, que apresentou alguns trabalhos correlacionados durante o 3º Congresso Brasileiro de Gestão e Políticas em Saúde Mental, realizado em maio durante o ClasSaúde 2012, os pesquisado-res têm avançado muito, inclusive no que diz res-peito à prevenção na esquizofrenia – um tema ainda tabu mesmo entre a comunidade científica. Estudos revelam, por exemplo, perda de conectividade e de massa cinzenta em pacientes em estado de risco para o diagnóstico de esquizofrenia. Trocando em miúdos, isso quer dizer que indivíduos ainda não diagnosticados, mas que apresentam pré-sintomas, podem revelar mudanças cerebrais significativas, apontando para o alto risco da doença. "As perdas cerebrais são identificadas antes do primeiro episó-dio psicótico. Existem marcadores biológicos que indicam que alguma coisa está acontecendo no cé-rebro de pessoas em alto risco para este diagnósti-co", afirma Bressan.

Iniciadas na Austrália, na década de 1990, tais pes-quisas associaram sintomas iniciais de esquizofre-nia - como ideias persecutórias, conteúdo incomum do pensamento e discurso desorganizado - às mu-danças neurocerebrais. Impulsionaram diversos estudos após os resultados iniciais, realizados atu-almente inclusive no Brasil. O passo seguinte às constatações foi indicar terapias neuroprotetoras para esses pacientes em estado de “ultra-alto risco”, o que conseguiu prevenir o surgimento de quadros psicóticos ou diminuir sua incidência. Isso signifi-ca, em outras palavras, medicar pacientes que nun-ca apresentaram nenhum surto, mas que são poten-cialmente esquizofrênicos devido ao seu histórico clínico e neurocerebral. Para Bressan, as vantagens

MATéRIA DE CAPA

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+-x÷a matemática da vidaesquizOfrenia,

uma cOrrida cOntra O tempO

Pesquisas abrem a porta para tratamentos de prevenção possíveis, mas que envolvem

questões éticas complexasAline Moura

Esta frase, “Quem decide o que é racional?”, foi dita na cena final do filme “Uma mente brilhante”, em que o ator Russell Crowe, no papel de John Forbes Nash, discursa em Estocolmo, na Suécia, em agrade-cimento ao Prêmio Nobel de Economia. O grand finale é carregado de poesia. O filme e o seu desfecho ajudam a humanizar uma das doenças mais multiformes e devastadoras que se tem notícia, a esquizofrenia. A película, aclamada pelos críticos, conta a vida de John Nash, o gênio da matemática que aos 30 anos sofreu seu primeiro episódio de esqui-zofrenia paranoide. Por trás das cenas, a vida de Nash, no entanto, não é tão hollywoodiana quanto parece. Antes dos 30, John Nash desenvol-veu a teoria do comportamento racional, pela qual levou o Nobel déca-das mais tarde (1994). Ironicamente, deixou de produzir conhecimento substancial durante este hiato, período em que a doença tomou conta de sua racionalidade, levando a reboque o seu gênio. Nash foi considera-do uma mente brilhante desde cedo, mas também “um estranho”, con-forme conta a autora do livro homônimo do filme, Sylvia Nassar. Em ensaio autobiográfico que escreveu para o Nobel, Nash ainda ressalta que o prêmio não pode restaurar o que foi perdido. Repetidamente, ele se lamenta pela doença e especula se ainda conseguirá produzir algo à altura do que desenvolveu antes do diagnóstico. “Estatisticamente parece improvável que um matemático ou cientista com 66 anos de idade possa fazer um esforço contínuo de pesquisa capaz de acrescentar alguma coisa a suas realizações anteriores. Entretanto, eu ainda estou tentando, e é possível que, com um intervalo de 25 anos de pensamen-to parcialmente delirante representante uma espécie de férias, minha situação seja atípica. Assim, eu tenho esperança de conseguir realizar alguma coisa de valor com os meus estudos atuais ou com novas ideias que me venham no futuro."

Após levar o prêmio máximo da academia, John acabou virando um case para a psiquiatria, e um exemplo de esperança para a cura da doen-ça. Isso porque o matemático, após repetidas internações e medicações, conseguiu conviver com seu estado psicótico, apenas rejeitando as hi-póteses irracionais do pensamento delirante. “Eu emergi do pensamen-to irracional, no fim das contas, sem nenhum remédio”, disse ele, em 1996, para uma plateia de psiquiatras em Madri. Relatou ainda, para o amigo Harold Kuhn: “O fantasma só vem muito tarde, depois das seis, porque até mesmo um fantasma pode ter problemas humanos comuns e precisar consultar um médico”, referindo-se às suas alucinações.

A história guarda inúmeros outros exemplos de pessoas extremamente inteligentes e que eram portadoras da esquizofrenia, como Vicent Van Gogh e Isaac Newton. Esta íntima ligação entre a genialidade e a doen-ça, inclusive, já foi tema de pesquisas científicas.

Os norte-americanos, por exemplo, levantaram a hipótese de a esqui-zofrenia estar ligada a um gene que aumenta a habilidade do cérebro de pensar. Desenvolvido pelo Instituto Nacional para a Saúde Mental dos Estados Unidos, em Maryland, o trabalho foi publicado no Journal of Clinical Investigation. E demonstrou a ligação entre o gene DAR-PP-32, ligado ao raciocínio mais sofisticado, a 257 famílias com histó-rico de esquizofrenia. Os resultados mostraram que o gene é bastante comum entre pessoas com a doença. O DARPP-32 amplia a capacidade de processamento de informação e, quando o cérebro funciona normal-mente, o indivíduo ganha flexibilidade para pensar e um melhor desem-penho da memória. Outros genes e as condições de vida, no entanto, podem fazer com que o cérebro encontre dificuldades para gerenciar esse ganho, ocasionando efeito colateral.

de se medicar um paciente ainda sem diagnóstico definido envolve questões éticas complexas. "Tenho ressalvas em usar antipsicótico em casos de pessoas que não tiveram quadro psicótico ainda, mas os ensaios mostram que a prática tem sido eficaz."

A medicação consegue amenizar os sintomas já detectados e impedir a neu-roprogressão da doença, prevenir o desenvolvimento da psicose e reduzir os quadros psicóticos. As desvantagens desta medicação precoce, segundo o pro-fessor, são a possível aplicação de um tratamento inapropriado, os efeitos cola-terais e a estigmatização.

Para o psiquiatra Thiago Marques Fidalgo, chefe do plantão de emergências psiquiátricas da Unifesp, o estigma é um dos maiores problemas a serem en-frentados no tratamento das pessoas que sofrem de esquizofrenia. “A própria denominação da doença já é um estigma."

À parte as questões éticas, os estudos na área demonstram a importância de se pesquisar mais e melhor a neurociência, e sua aplicabilidade na prevenção das doenças mentais. Por outro lado, Rodrigo Bressan admite que os sintomas são uma atividade mental altamente prevalente, e que quanto mais se manifes-tam, mais se sedimentam e se tornam automatizados. Nos surtos psicóticos, por exemplo, as manifestações tendem a ser tornar mais intensas na ausência de tratamento, menos espaçadas, comprometendo cada vez mais a capacidade de remissão do paciente. Esta constatação, que vale para diversos outros pro-blemas mentais, também tem a ver com a formação do cérebro, composto pela genética e pela interação com o meio ambiente. Sabe-se ainda que existe determinada ligação da esquizofrenia com a heredi-tariedade. Recentemente, pesquisadores suecos e israelenses divulgaram que crianças cujos pais ou irmãos foram diagnosticados com esquizofrenia têm três vezes mais chances de desenvolver a doença, além de poderem apresentar outros distúrbios, como autismo ou a síndro-me de Aspenger. O estudo, publicado nos Arquivos de Psiquiatria dos Estados Unidos, analisou três bancos de dados – dois que acompanharam crianças e suas famílias na Suécia e seus diagnósticos e outro com informações sobre todos os cidadãos que entraram no serviço militar de Israel, in-cluindo irmãos. Para os pesquisadores, há certas mutações ge-néticas que aparente-mente provocam a pre-disposição ao autismo e à esquizofrenia.

MATéRIA DE CAPA

Os avanços nos estudos em torno da doença sofis-ticam cada vez mais os tratamentos disponíveis. Atualmente, os antipsicóticos da segunda geração se mostram eficazes no controle dos surtos e são largamente utilizados entre os pacientes esquizo-frênicos. No entanto, a simples medicação já não é mais recomendada de forma isolada, como se fazia no passado. Rodrigo Bressan, ao lado do psiquiatra Cristiano Noto, também da Unifesp, lançaram re-centemente o livro “Esquizofrenia: avanços no tra-tamento multidisciplinar” (editora ArtMed, 2012, 312 páginas). Nele, os médicos combatem as inter-nações de longo prazo, comuns há algumas déca-das para os pacientes esquizofrênicos, e propõem uma abordagem diferente, não apenas baseada na ministração de medicamentos. Psicoterapia, terapia cognitivo-comportamental, psicoeducação e inter-venções familiares são consideradas fundamentais para a estabilização do paciente e a para a manu-tenção de uma vida digna, principalmente na fase remissiva dos surtos, quando é comum o apareci-mento de depressão, apatia e outros sintomas cha-mados negativos.

“Contidos os primeiros sintomas mais violentos da doença, os pacientes podem levar uma vida comum, contanto que tomem os remédios corretos regular-mente e contem com tratamento multidisciplinar”, afirma Bressan.

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MATéRIA DE CAPA

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Thiago marques Fidalgo

Rodrigo Affonseca bressan no 3º congresso brasileiro de Gestão e Políticas em Saúde mental, realizado em maio, durante o clasSaúde 2012

quem decide O que é raciOnal?

Cenas do filme "Uma mente brilhante"

Duílio Antero de camargo

OCUPACIONAL

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Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) alertam que de 25% a 30% da população mundial sofrerá, ao longo da vida, algum tipo de perturbação mental ou comportamental. Quando abordado um grupo específico da sociedade, como a classe trabalhadora, os números também são preocupantes. Segundo a OMS, os transtornos mentais menores acometem cerca de 30% dos trabalhadores ocupados. Os mais graves atingem de 5% a 10% da classe.

A realidade no Brasil segue a tendência mundial. Os transtornos mentais e com-portamentais respondem pela terceira causa de afastamento do trabalho no país, de acordo com o levantamento feito pela Previdência Social de 2008 a 2011. Essas doenças perdem apenas para as do sistema osteomuscular, como a LER/DORT (Lesão por esforço repetitivo/Distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho), e as lesões traumáticas.

De acordo com o último Anuário Estatístico de Acidente de Trabalho da Previ-dência Social, o número de acidentes de trabalho no Brasil apresentou redução de 7,2% entre 2008 e 2010. No entanto, os transtornos mentais não estão acompa-nhando esta tendência. A concessão de auxílios em função dessas doenças subiu mais 1,5% de 2010 para 2011, passando de 12.150 para 12.337 casos.

Dentro dos transtornos mentais e comportamentais, as doenças que mais afastaram os trabalhadores no ano passado foram os episódios depressivos e transtornos depressivos recorrentes, que respondem por mais de 50% das licenças concedi-das; transtornos de ansiedade, como o transtorno do pânico e o de estresse pós--traumático; seguidos pelos transtornos decorrentes de substâncias psicoativas (álcool e dependência de drogas); e esquizofrenia.

A depressão é um mal que acomete mais as mulheres – na proporção de duas para cada homem –, devido à sobrecarga de trabalho (dupla jornada) e, por consequência, de responsabilidade, e por fatores de questão hormonal. No sexo masculino, a predominância maior é de perturbações originárias pelo consumo de álcool e uso de drogas, principalmente cocaína.

Para o perito médico da Previdência Social, Mario Jorge Tsuchiya, a justificativa para esses números está no fato de a administração e a gestão dos processos produtivos terem se alterado substancialmente nas últimas décadas, ganhando relevância a evolução pautada no processo produtivo voltado para metas, con-siderando a automação, cada vez maior, do processo produtivo, o que acaba por gerar maior demanda no trabalho, tudo em nome da competitividade e produtivi-dade. “Praticamente todas as atividades humanas na sociedade, desde educação, trabalhos de produção ou de serviços, foram afetados, aumentando as exigências principalmente mentais e comportamentais de todos”, disse.

Os transtornos mentais e de comportamento relacionados ao trabalho, no entanto, não resultam de fatores isolados, mas de contextos de trabalho em interação com o corpo e o aparato psíquico dos trabalhadores. Segundo o psiquiatra, médico do trabalho e coordenador do Grupo de Saúde Mental e Psiquiatria do Trabalho do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, Duílio Antero de Camargo, o desencadeamento desse tipo de doença que resulta em licença do trabalho está associado a um tripé de fatores formado pelos aspectos social, individual e o ambiente e exercício da ocupação profissional.

Desde o início dos anos 2000, explica Camargo, estamos vivendo a era da ansiedade, do aumento da competitividade entre as pessoas, da violência e dos conflitos familiares. Associado a isso, tem-se a questão da predisposição genética ou familiar de cada indivíduo para transtornos e doenças mentais, convivendo com a insegurança quanto à manutenção do emprego, o excesso de cobrança e

como neurose. Isso significa que, do ponto de vista psiquiátrico, a pessoa não perdeu o contado com a realidade, mas pode acabar evoluindo para um quadro de depressão. Como o exame das funções mentais apresenta muita dificuldade para a maioria dos médicos não psiquiatras em suas atividades diárias, até mesmo para o médico do trabalho das empresas, esses sintomas acabam sendo registrados como transtornos mentais, o que também tem feito aumentar o número de casos dessas doenças, promo-vendo a banalização dos diagnósticos.

Mudar este cenário é meta dos psiquiatras que atuam na medicina do trabalho. Eles defendem que para uma maior capacidade de avaliação do diagnósti-co é preciso mais informação, acesso a diretrizes específicas, melhora do sistema de atendimento na área de saúde mental, maior integração do médico do trabalho da empresa com os demais atores parti-cipantes no sistema.

Prevenção da doença e promoção da saúde

Um bom começo para diminuir o número de casos de afastamento do trabalho por transtornos mentais, segundo o perito Tsuchiya, é provocar maior discus-são sobre o assunto, proporcionar diagnósticos mais precisos, identificar possíveis fatores laborais e criar soluções focadas em cada caso, já que não há como generalizar uma solução. “A prevenção de doenças e promoção da saúde são as medidas desejáveis em qualquer espécie de doença. Além de reduzir o custo para as empresas, reduziria o próprio custo da assis-tência à saúde, significaria uma verdadeira mudança de cultura em nossa sociedade.”

Camargo ainda defende que o acesso à informação, seja por meio de palestras, folders, campanhas, é a melhor forma de prevenção dessas doenças, aliadas a uma boa comunicação interna nas empresas, com acompanhamento do departamento de Recursos Humanos, para verificar o relacionamento entre as lideranças, chefias e demais funcionários, num pro-cesso moldado pela cultura organizacional.

A promoção de saúde mental se dá por meio de ações que propiciem mudanças de atitudes na chefia e nos funcionários, para que eles tenham ferramen-tas que possibilitem identificar sintomas e sinais de maneira precoce, sem estigmas e preconceitos – considerados uma das grandes barreiras quando o assunto é saúde mental. Neste aspecto, justifica Thatiane, a família pode ajudar muito, verificando qualquer mudança de comportamento, acompa-nhando ao médico e incentivando à psicoterapia e a prática de hábitos saudáveis que propiciem uma melhora na qualidade de vida.

transtOrnOs mentais afetam saúde dO trabalhadOr brasileirOde atividades, aumento das responsabilidades e con-flitos com a chefia. “É a junção de todos esses fatores que pode desencadear ou não o transtorno psíquico. São situações, períodos de ajustamento em que se pode ter origem as doenças mentais e gerar ou não a incapacidade do trabalhador. É sempre um conjunto de fatores. Nunca é um fator isolado.”

A opinião é compartilhada por Thatiane Fernandes, médica psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, que evidencia que a cultura da competição, a rapidez das informações, o excesso de cobrança e as demais ações do mundo moderno podem, ao mesmo tempo, tirar o melhor e o pior de cada pessoa, e levar a resultados diferentes em cada indivíduo. “Se é cobrado para ser magro, o mais bonito, o mais rico, ser bem-sucedido, e não seremos assim. Isso gera descontentamentos, sen-sação de esvaziamento interior, cria vidas vazias de propósitos, criatividade e de valores, levando a uma frustração, que pode se tornar uma depressão ou não.” De acordo com dados da OMS, a depressão irá se tornar a segunda maior causa de comorbidade no mundo ocidental até 2020.

Mas Camargo faz uma ressalva: é muito importante a avaliação bem específica das causas do desenvol-vimento dos transtornos mentais (análise do nexo causal), pois a doença pode não ter sido provocada pelo exercício da profissão ou não impedir o indiví-duo de realizar as suas atividades no trabalho. “Nesse caso, não justifica o afastamento. Além disso, desde a mudança na legislação, em 2007, quando houve a inversão do ônus da prova, cabe a empresa, assim que solicitada a licença das funções profissionais do empregado, provar que não foi ela a causadora da doença no funcionário.” A recente legislação também mexe com o caixa das empresas, pois quanto mais acidente de trabalho (assim também chamado o afastamento do serviço por doença), mais a empresa terá que pagar pelo RAT (risco de acidente de trabalho).

Tsuchiya também alerta para a confusão existente entre doença e incapacidade, que só se justifica quan-do as manifestações clínicas impedem o exercício da atividade habitual. Nestes casos, o que vale é a adequação das condições de trabalho.

Excesso de diagnósticos

Para os três médicos, a deturpação entre tristeza e depressão e incapacidade ou não do trabalhador tem levado ao excesso de diagnósticos de transtornos mentais. Antigamente, segundo Thatiane, situações de simples tristeza, ansiedade ou solidão, reações humanas consideradas normais, eram classificadas

Há também casos de pessoas que simulam transtornos mentais para se afastar do trabalho e conseguir ficar recebendo sem trabalhar ou acumulando renda do Instituto Nacional de Serviço Social (INSS).

Thatiane Fernandes, que também é perita do INSS, informa que como muitas vezes não há exames que comprovem essas doenças, a técnica e a experiência do médico para identificar a simulação dos sintomas dos transtornos mentais são fundamentais. Ela relata que é preciso estar atento quando o funcionário diz estar tendo esquecimentos e brancos, ouvindo vozes ou vendo vultos.

Duílio Camargo alerta para o feito contrário: a dissimulação, que ocorre quando por medo de perder o emprego o funcionário disfarça os sintomas e esconde que está doente. “O presenteísmo, que é trabalhar com uma doença considerada simples (como dor de cabeça), leva ao absenteísmo (falta ao trabalho). Para evitar o estigma de que é sempre o funcionário que falta, muitos escondem os que realmente estão sentindo e passando, e com isso o que poderia ser tratado como uma doença comum, pode acabar evoluindo para um transtorno mental considerável”, explica.

Ele lembra que mais que com-bater o absenteísmo, muito presente na área da saúde e de segurança do trabalho, é preciso estar atento ao que acontece com o funcionário, para perceber quando ele está em sofrimento psíquico e não adoe-ceu ainda. “O progra-ma de saúde mental de uma empresa deve atuar na promoção, prevenção, intervenção, remediação e reintegração, quando necessá-rio. E antes mesmo do programa ser lançado o ideal é que o serviço de saúde e o RH da empresa sejam treinados e preparados para lidar com o tema e a demanda.”

simulaçÃO e dissimulaçÃO

efeitos profundos e duradouros, que dificultam a reinserção social dos que tentam se recuperar de um episódio de depressão.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a depressão e os demais transtornos mentais atingem a muitos brasileiros, o preconceito em torno deles é crescente na sociedade. Já é hora de combater essa discriminação, como atualmente já se faz com os homossexuais, os negros e as mulheres. A expressão psicofobia expressa justa-mente o nefasto preconceito contra os doentes mentais e os portadores de deficiência.

Se não se deve debochar ou subestimar de doenças como o câncer, conforme apontou o outdoor no aeroporto americano, também não há razão para as doen-ças mentais não serem encaradas com a seriedade que elas pedem e seus portadores exigem. Há várias formas de preconceito, entre elas a própria negação da doença como algo menor ou passageiro. Como disse Albert Einstein, lamentando a triste época em que vivia, “é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”. Em pleno 2012, ideias preconceituosas devem ser combatidas com veemência. É chegada a hora de a sociedade olhar com maturidade e res-peito para os portadores de transtornos mentais. Psicofobia é crime.

(Publicado no jornal O Globo, em 29 de junho de 2012)

psicOfObia é crime

castigOs físicOs aumentam chances de crianças apresentarem distúrbiOs mentais na vida adulta

ARTIGO

DEU NA IMPRENSA

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No desembarque do aeroporto JFK, em Nova York, no começo deste ano, o outdoor que recebia milhares de pessoas diariamente não trazia nenhuma bela foto da cidade ou mensagem de boas-vindas. O que os viajantes encontravam era uma enorme propaganda com a mensagem “Relaxe, vai passar, isso é tempo-rário… Se você não diz isso sobre o câncer, também não diga sobre a depressão”. A ironia desconcertante da publicidade reflete muito da imagem que alguns transtornos mentais ainda recebem por parte da so-ciedade: para alguns, um destempero; para outros, uma fraqueza. Mas a depressão é um transtorno mental dos mais graves e incapacitantes. Dentre as dez principais causas de afastamento do trabalho em todo o mundo, cinco são decorrências de transtornos mentais. A depressão aparece em primeiro lugar.

Para 46 milhões de brasileiros, segundo dados do Ministério da Saúde, a depressão é uma realidade: 20% a 25% da população já tiveram ou têm depres-são ao longo da vida. A incapacitação profissional, a falta de interesse e de motivação para participar de atividades sociais rotineiras e de ter prazer nas coisas que gostam e com as pessoas que amam transformam dramaticamente o cotidiano dessas pessoas, o de seus familiares e amigos, trazendo consequências devasta-doras. Essa falta de capacidade de se relacionar tem

Punições físicas aplicadas pelos pais para disciplinar os filhos podem desencadear uma série de problemas mentais entre as crianças ao longo da vida. Segundo um novo estudo publicado nesta segunda-feira na revista Pediatrics, agressões — mesmo que não se-jam as formas mais graves de abuso, como sexual ou negligência, comprovadamente prejudiciais à saúde mental, como empurrar, bater e agarrar, estão asso-ciadas a distúrbios de ansiedade e de personalidade.

Segundo os autores do trabalho, está clara a relação entre maus tratos às crianças, tanto físicos e emocio-nais quanto abuso sexual, e problemas emocionais apresentados por elas durante a vida adulta. No entanto, de acordo com eles, pouco foi estudado sobre os efeitos negativos das punições físicas que são usadas como uma forma de castigo, para a saúde mental dos indivíduos.

Para a pesquisa, uma equipe da Universidade de McMaster, no Canadá, se baseou em dados de 600 americanos inscritos no Exame Nacional de Epide-

Por Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

miologia em Álcool e Condições Relacionadas, dos Estados Unidos, que coletou dados de 34.653 pessoas maiores do que 20 anos entre 2004 e 2005. Os autores observaram que entre 2% e 7% dos distúrbios mentais apresentados pelos par-ticipantes — entre eles os transtornos de humor, ansiedade, bulimia, transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e abuso de álcool e drogas — foram atribuídos a punições físicas na infância.

Os autores da pesquisa explicam que, embora essa porcentagem pareça pequena, ela já é suficiente para mostrar que os castigos físicos podem ser considerados como fatores de risco para problemas mentais. Eles acreditam que esses resultados reforçam a ideia de que reduzir o castigo físico pode ajudar a diminuir a prevalência de transtornos mentais na população em geral.

brasil — Uma pesquisa divulgada em junho pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo indicou que um em cada cinco brasileiros sofreu punição física regular, ou seja, ao menos uma vez por semana, na infância, e que pouco mais de 70% apanharam ao menos uma vez quando crianças. O levantamen-to, feito em 2010 com 4.025 pessoas de onze capitais do país, também mostrou que os indivíduos que relataram sofrer mais punições físicas apresentavam mais chances de adotar a violência na criação de seus filhos.

(Fonte: Revista Veja, 2 de julho de 2012)