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Artigo Atualização O Enfermeiro como Ser Sócio-Político: refletindo a visibilidade da profissão do cuidado The Nurse as a Social and Political Being: critical analysis of nursing as a caring profession El enfermero como ser sociopolítico: reflexionando la visibilidad de la profesión del cuidado Daiane Dal Pai 1 , Guisela Schrank 2 , Eva Neri Rubim Pedro 3 RESUMO Pretende-se, com este trabalho, instigar o profissional de enfermagem a repensar seu fazer, saber e ser. Trata-se de uma reflexão crítica quanto ao cuidado dispensado à profissão do cuidado. Acredita-se que este deva iniciar com a busca, ocupação ou conhecimento, de um espaço sócio- político que possibilite a conquista de prestígio às competências adquiridas numa prática social de envolvimento íntimo com o indivíduo, sociedade e ambiente. Com base na construção dos saberes de enfermagem, historicamente determinados pelas necessidades compreendidas pela inserção social no campo da saúde, consideram-se os padrões de conhecimento fundamentais em enfermagem, bem como, o campo de atuação e o espaço social da profissão, para apontar considerações relevantes sobre a formação do ser sócio-político. Contudo, há, de fato, espaço para o profissional neste campo de atuação? Defende-se aqui, a necessidade de ocupar espaços que dêem margem ao reconhecimento da enfermagem como protagonista da práxis em saúde e na sociedade. Descritores: Enfermagem; Conhecimento; Política. ABSTRACT The purpose of this study was to investigate professional nurses regarding their competency of doing, knowing, and being. This was a critical analysis study about nursing as a caring profession. It is believed that professional nurses should look for a social and political place that allows them to achieve recognition for their skills, knowledge, and competencies. This will allow nurses to conquer prestige for their social practice through close interaction with the individual, the society, and the environment. Professional nursing knowledge has historically been determined by societal needs. The body of knowledge must be examined in the context of the nursing patterns of knowing and in the context of the social and political place of nursing. However, is there a place for nurses in the social and political arena? Here is a discussion of the need of nurses to occupy a social and political place that grants recognition to the nursing profession as the protist of the praxis in health and society. Keywords: Nursing; Knowlegde; Politics. RESUMEN Con este trabajo se pretende instigar al personal de enfermería a repensar en su hacer, saber, y ser. Se trata de una reflexión crítica sobre el cuidado dispensado a la profesión del cuidado. Se cree que este deba iniciarse con la búsqueda, ocupación o conocimiento, de un espacio sociopolítico que posibilite la conquista del prestigio a las competencias adquiridas en una práctica social de envolvimiento íntimo con el individuo, sociedad y ambiente. Basados en la construcción de los saberes de enfermería, históricamente determinados por las necesidades comprendidas por la inserción social en el campo de la salud, se consideran los patrones de conocimiento fundamentales en enfermería, así como también, el campo de la actuación y el espacio social de la profesión, para adoptar consideraciones relevantes sobre la formación del ser sociopolítico. Pero, ¿hay, de hecho, espacio para el profesional en este campo de actuación? Se defiende, aquí, la necesidad de que ocupemos los espacios que den margen al reconocimiento de la enfermería como protagonista de la praxis en la salud y en la sociedad. Descriptores: Enfermería; Conocimiento; Política. Autor Correspondente: Daiane Dal Pai R. Santana, 807 apto. 205 - Farroupilha - Porto Alegre - RS CEP. 90040-371. E-mail: daiadalpai@y ahoo .com.br Artigo recebido em 26/01/2005 e aprovado em 15/08/2005 Acta Paul Enferm 2006;19(1):82-7. 1 Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. 2 Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. 3 Doutora em Educação. Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

o Enfermeiro Como Ser Socio Politico

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Esse artigo fala sobre como é o enfermeiro como ser político social

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  • Artigo Atualizao

    O Enfermeiro como Ser Scio-Poltico:refletindo a visibilidade da profisso do cuidado

    The Nurse as a Social and Political Being: critical analysis of nursing as a caring profession

    El enfermero como ser sociopoltico: reflexionando la visibilidad de la profesin del cuidado

    Daiane Dal Pai1, Guisela Schrank2, Eva Neri Rubim Pedro3

    RESUMOPretende-se, com este trabalho, instigar o profissional de enfermagem a repensar seu fazer, saber e ser. Trata-se de uma reflexo crtica quantoao cuidado dispensado profisso do cuidado. Acredita-se que este deva iniciar com a busca, ocupao ou conhecimento, de um espao scio-poltico que possibilite a conquista de prestgio s competncias adquiridas numa prtica social de envolvimento ntimo com o indivduo,sociedade e ambiente. Com base na construo dos saberes de enfermagem, historicamente determinados pelas necessidades compreendidaspela insero social no campo da sade, consideram-se os padres de conhecimento fundamentais em enfermagem, bem como, o campo deatuao e o espao social da profisso, para apontar consideraes relevantes sobre a formao do ser scio-poltico. Contudo, h, de fato,espao para o profissional neste campo de atuao? Defende-se aqui, a necessidade de ocupar espaos que dem margem ao reconhecimentoda enfermagem como protagonista da prxis em sade e na sociedade.Descritores: Enfermagem; Conhecimento; Poltica.

    ABSTRACTThe purpose of this study was to investigate professional nurses regarding their competency of doing, knowing, and being. This was a criticalanalysis study about nursing as a caring profession. It is believed that professional nurses should look for a social and political place that allowsthem to achieve recognition for their skills, knowledge, and competencies. This will allow nurses to conquer prestige for their social practicethrough close interaction with the individual, the society, and the environment. Professional nursing knowledge has historically beendetermined by societal needs. The body of knowledge must be examined in the context of the nursing patterns of knowing and in thecontext of the social and political place of nursing. However, is there a place for nurses in the social and political arena? Here is a discussionof the need of nurses to occupy a social and political place that grants recognition to the nursing profession as the protist of the praxis inhealth and society.Keywords: Nursing; Knowlegde; Politics.

    RESUMENCon este trabajo se pretende instigar al personal de enfermera a repensar en su hacer, saber, y ser. Se trata de una reflexin crtica sobre elcuidado dispensado a la profesin del cuidado. Se cree que este deba iniciarse con la bsqueda, ocupacin o conocimiento, de un espaciosociopoltico que posibilite la conquista del prestigio a las competencias adquiridas en una prctica social de envolvimiento ntimo con elindividuo, sociedad y ambiente. Basados en la construccin de los saberes de enfermera, histricamente determinados por las necesidadescomprendidas por la insercin social en el campo de la salud, se consideran los patrones de conocimiento fundamentales en enfermera, ascomo tambin, el campo de la actuacin y el espacio social de la profesin, para adoptar consideraciones relevantes sobre la formacin del sersociopoltico. Pero, hay, de hecho, espacio para el profesional en este campo de actuacin? Se defiende, aqu, la necesidad de que ocupemoslos espacios que den margen al reconocimiento de la enfermera como protagonista de la praxis en la salud y en la sociedad.Descriptores: Enfermera; Conocimiento; Poltica.

    Autor Correspondente: Daiane Dal PaiR. Santana, 807 apto. 205 - Farroupilha - Porto Alegre - RSCEP. 90040-371. E-mail: [email protected]

    Artigo recebido em 26/01/2005 e aprovado em 15/08/2005

    Acta Paul Enferm 2006;19(1):82-7.

    1 Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Ps-Graduao da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES.2 Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Ps-Graduao da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. BolsistaCAPES.3 Doutora em Educao. Professora Adjunta do Programa de Ps-Graduao da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

  • 83O Enfermeiro como Ser Scio-Poltico: refletindo a visibilidade da profisso do cuidado

    Acta Paul Enferm 2006;19(1):82-7.

    INTRODUO

    A enfermagem uma prtica social que responde sexigncias definidas pelas organizaes das prticaseconmicas, polticas, sociais e ideolgicas. Essasexigncias regulam a prtica por dimensionarem o objetoao qual se aplica, os meios de trabalho que opera, a formae a destinao dos seus produtos, assim, o conhecimentoda enfermagem depende do processo sob o qual elamesma aconteceu. A partir disso, pode-se abordarquestes norteadoras para a compreenso do que aenfermagem(1).

    Esta reflexo parte da construo dos saberes deenfermagem, historicamente determinados pelasnecessidades compreendidas pela insero social nocampo da sade, a fim de avanar em prol da discussosobre a atuao scio-poltica do enfermeiro e a suaimportncia para o reconhecimento profissional domesmo.

    Esta temtica nos interessa por pressupormos arepresentao social da profisso ainda incipiente,considerando-se o potencial de conhecimento que estaformao prtica proporciona. incmodo reconheceros limites de uma prtica social que parece no ir aoencontro de uma atuao de seres crticos, criativos,conhecedores das mais variadas prticas de sade,estimulados competncia interpessoal, gerncia e sensibilidade humana.

    O modelo biomdico de ateno sade fatorprevalente nas organizaes dos servios de sade, naassistncia prestada e no prprio senso comum. Istoacontece porque o curativismo permanece sendo o focoprincipal, seno nico, na promoo da sade. Nestecontexto, as contribuies da enfermagem acabam sendosustentaes s prticas mdicas, constituindo-se de umtrabalho complementar na hegemonia mdica e assimsendo reconhecido na sociedade. Admirados pelacaridade, os profissionais de enfermagem acabam porsustentar, muitas vezes, o mito da doao vocacionalcomo alternativa para garantir prestgio social.

    Hoje, as autoras, profissionais participantes daconstruo do conhecimento na rea - o meio acadmico- entendem que o saber da enfermagem fica limitado adiscusses fechadas e, desta forma, perpetua-se o antigoe atual espao de atuao incumbido e ocupado peloenfermeiro. Assim, permanece em desconhecimento ariqueza da ampla viso sobre as prticas de sade, no seudigno significado, a qual o enfermeiro possui pelascompetncias que adquire no envolvimento ntimo como indivduo, enquanto ser de necessidade, seu ncleo sociale suas relaes com o ambiente. Alm disso, aadministrao dos servios de sade proporciona acompreenso sobre o todo no fazer dos diversosprofissionais de sade, permitindo assim, apreender o

    movimento das aes multifocais em prol da sade.Somos profissionais do cuidado, no entanto no

    estamos atendendo s necessidades de reconhecimentodo nosso prprio ncleo scio-profissional, sendo que,por inmeras vezes, interpretamos esta questo comoproblema quando atuamos em prol do cuidado integral.Vimos, por meio deste trabalho, contribuir para odespertar da conscincia crtica do profissional em relao construo cotidiana do fazer, saber e ser, e proporcuidado profisso do cuidado, pressupondo que estedeva iniciar com a busca por um espao scio-polticoque possibilite ao enfermeiro desenvolver seu potenciale, assim, conquistar o prestgio digno profisso.

    CONSIDERAES SOBRE A CONSTRUOHISTRICO-SOCIAL DO SABER DA ENFERMAGEM

    O saber da enfermagem, determinado pelas caracte-rsticas do objeto e pela finalidade do trabalho, consi-derado o instrumento que a enfermagem utiliza pararealizar o seu trabalho. Este instrumento legitimado ereproduzido pelo ensino desta prtica(2).

    Nas primeiras dcadas do sculo XX foram organi-zadas e sistematizadas as tcnicas de enfermagem comoestruturas do saber, consideradas como arte de enferma-gem. As tcnicas, descrio minuciosa da execuo deprocedimentos de enfermagem e dos materiais necessriospara tal, passam a ser parte da rea de conhecimentobsico dos currculos de enfermagem organizados nosEUA. A arte, como eram denominadas as tcnicas, foiconsiderada o principal conhecimento do ensino deenfermagem.

    A prtica mdica e a de enfermagem passam, ento,de independentes a ocuparem o mesmo espao, e omodelo religioso perde fora. Com Florence Nightingale,a disciplina incorporada pela enfermagem com o intuitode normalizar e regulamentar o meio ambiente dopaciente. Na dcada de 50, o saber de enfermagemprocura moldar-se buscando uma fundamentao paraas tcnicas de enfermagem. Esta fundamentao, chamadacientfica, embasou-se nas cincias naturais e sociais, eacabou por aproximar-se do saber da medicina e suaautoridade(2). Nos dias atuais, os princpios cientficosconstituem um saber da enfermagem com presenamarcante nos currculos da enfermagem brasileira.

    A teoria do objeto da enfermagem, trazida de outrasreas do conhecimento, foi agregada s tcnicas deenfermagem, que no possuam teoria, para construirinstrumentos que permitissem aprender o objeto e, assim,possibilitar a dimenso intelectual do trabalho deenfermagem.

    O trabalho de gerncia da enfermeira, atravs daadministrao dita cientfica, permitido e estimuladopelo discurso do trabalho de enfermagem realizado em

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    equipe ou em grupo, fundamentado por princpios daEscola de Relaes Humanas. Desta forma, reitera-se afragmentao do cuidado, pois a concepo deste acabapertencendo enfermeira e a execuo aos auxiliares(2).

    A procura pela autonomia e especificidade daenfermagem repercute na necessidade de um novodirecionamento para o saber da enfermagem, aconstruo de um corpo de conhecimentos especficosda enfermagem. As teorias de enfermagem seriam, apartir de ento, o instrumento indicado para orientar aenfermagem na busca pela autonomia, delimitando seucampo de atuao(2). As teorias de enfermagem, por suavez, enfocam essencialmente o paciente e o cuidado,abrangem ambiente, relaes cuidado-cuidador eprocesso sade-doena.

    PADRES DE CONHECIMENTOFUNDAMENTAIS EM ENFERMAGEM

    Em 1978, Carper prope quatro padres deconhecimento definindo-os como fundamentais enfermagem. Na dcada de 90, estes padres soexplorados e modificados e Jacobs-Kramer e Chinndivulgam, em 1988, um novo modelo de aplicao dosquatro padres na prtica, justificando que ascontribuies do passado deveriam ser analisadas nocontexto das pocas(3).

    Os padres referiam-se ao Conhecimento Emprico- cincia e metodologia; tico - conhecimento de normase cdigos ticos, a fim de fornecer suporte a dilemasmorais; Pessoal autoconhecimento para o encontro como outro; e Esttico arte da percepo, empatia. Assim,como as teorias de enfermagem, os quatro padres deconhecimento fundamentais enfermagem atendemnecessidades referentes ao cuidado, relao cuidado-cuidador e processo sade-doena.

    O quinto padro de conhecimento, posteriormenteelaborado, preocupa-se com a profisso, com a prtica deenfermagem no contexto social e as polticas de sade.Esta proposta entendida como fundamental para aapreenso de todos os outros modelos, uma vez que setrata do esforo em visualizar a enfermagem no mundosocial, poltico e econmico a estruturao de relaesde poder que afetam resultados de sade-doena, assimcomo a enfermagem no planejamento e decises sobresade(3).

    Este quinto padro entendido como um desafiopara a enfermagem porque freqentemente aceitamos oreconhecimento pela atuao nos momentos de dor, nascrises e nos momentos de intimidade, situaes nas quaiso paciente encontra-se perturbado. No entanto, aceitamoso esquecimento do ser (paciente) politicamente capaz,uma vez que no somos reconhecidos por contribuiespara a construo, deciso e planejamento, de diretrizes

    polticas sade.O padro de conhecimento scio-poltico permite

    adotarmos uma postura crtica sobre o contexto da nossaprtica em prol do futuro da sade e da profisso.Embora tenha esta relevncia, por vezes este padro no considerado nas reflexes crticas sobre o conhecimentoda enfermagem. Isto pode ser constatado em discursos(4-5)que no incluem o conhecimento (e, portanto, tambm aatuao) scio-poltico do enfermeiro, mesmo nos casosem que a discusso volta-se totalidade na formao doser enfermeiro.

    A ATUAO DA ENFERMAGEM E OESPAO SOCIAL DA PROFISSO

    O trabalho da enfermagem, localizado na interfacedos outros trabalhos em sade, possui caractersticas queo identificam, assim como a seus trabalhadores, tais comoa forma como os seus saberes esto constitudos, seusinstrumentos e seus objetos de trabalho, suas formas deorganizao e submisso e seus movimentos no espao etempo do planto. A realidade do trabalho em sade eem enfermagem (re)configura essas caractersticas. Destaforma, no prprio cotidiano do trabalho que aidentidade do enfermeiro construda, atravs demediaes do ser em seu mundo cotidiano de trabalho(6).

    O processo de trabalho da enfermagem na produode cuidados de sade no modelo clnico tem sua direoatribuda ao projeto intelectual(7). Assim, o modo comoo trabalho realizado, as relaes que se do entre oshomens no trabalho, e como a produo de cuidados seestrutura, esto sob orientao do modelo clnico quearticula os atores deste cenrio em torno da atuaomdica.

    Embora muito se tenha discutido sobre a importnciado trabalho interdisciplinar da equipe de sade para aconstruo de um modelo centrado no paciente a fim denortear o planejamento e a execuo das aes de sade,encontramos uma realidade organizada em funo dodiagnstico e teraputica de corpos doentes. Desde 1986,com a Carta de Otawa, o conceito de sade extrapola ocorpo fsico, sendo ampliado de modo a considerar ocontexto social, ambiental, poltico e econmico.

    Porm, as prticas cotidianas em sade continuamprestando uma assistncia em prol da queixa-conduta.Nesse sentido, a atuao da enfermagem acompanha aevoluo do setor sade, uma vez que, continua realizandoseu trabalho em decorrncia da clnica do corpo, da qualo mdico o protagonista.

    O que pode ser observado junto ao processo detrabalho da enfermagem hospitalar a liberdade de aoda enfermeira, construda na relao de interdependnciacom os profissionais de sade. Alm disso, a prtica decuidar e a de gerenciar so dimenses modificveis

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    conforme a especificidade das atividades realizadas pelasenfermeiras nas diferentes unidades especializadas(8).

    Ainda na atualidade, constata-se uma idealizao dacaridade no trabalho da enfermeira por meio da fortepresena de mitos da profisso. Essa idealizao choca-se com a concretude exigida pelo modelo clnico, no qualseus elementos estruturais inviabilizam essa associao(8).

    Estudos realizados pela enfermagem(6,9-12) e o prprioMinistrio da Sade(13), reconhecem a necessidade deespaos no local de trabalho para a materializao daspotencialidades do ser trabalhador. Estes so resultadosde olhares voltados s classes dominadas, uma vez que asrelaes de poder sempre marcaram o trabalho em sade.

    O trabalho da enfermagem brasileira acontece, muitasvezes, sob condies precrias de recursos humanos emateriais, baixos salrios, ambiente insalubre, dividido portarefas e com extensas horas dedicadas ao trabalho que,na maioria das vezes, no oferece sequer local apropriadoao descanso. Onde esto os protagonistas desta cena?Estariam alienados ao trabalho, sua sade e qualidadedo servio prestado?

    Quanto ao poder, a interdependncia e a complemen-taridade no trabalho hospitalar da enfermagem, pode-sedizer que a enfermeira est menos armada para asdisputas de espao e para a consolidao do seu saber.Majoritariamente mulheres, as enfermeiras universitriase a enfermagem atestam as nuances de gnero queestruturam a diviso sexual e as relaes de trabalho nasade. A diviso sexual do trabalho se exprime no trabalhode enfermagem e no trabalho hospitalar de uma formageral. As relaes hierrquicas, a segregao dos servios,de postos e funes, atestam que o setor hospitalar soubetirar proveito das qualidades femininas(14).

    Desta forma, a atuao da enfermagem, bem comoo espao social da profisso, tm implicaes de gnerona consolidao de prticas subjetivadas atestando adiviso sexual do trabalho no campo da sade.

    A interdisciplinaridade da equipe para a promooda sade tem sido uma questo de investimentos nasatuais estratgias de implementao do Programa deSade da Famlia, o que mostra o reconhecimento dossaberes de diferentes profissionais a fim de promoversade de forma integral. As estratgias do programapressupem que a sade esteja voltada comunidade,interagindo de forma coletiva a fim de promover aeqidade, universalidade e a integralidade. Permeando estesprincpios, que balizam o Sistema nico de Sade,encontramos as propostas de humanizao da assistnciaatravs do acolhimento e da participao social. narealizao destas aes que o enfermeiro pe em prticaum saber que contempla no modelo de sade as relaessociais do indivduo e do mesmo com o ambiente. Assim,o enfermeiro legitima seu saber, e isso inquieta quelesque sempre detinham o saber determinante para as

    prticas dos outros profissionais de sade. Porm, mesmoneste campo de atuao, a organizao do trabalho emsade ainda encontra-se na dependncia do horrio daconsulta mdica e da medicalizao da doena. Aenfermagem como prtica social, por sua vez, atende sexigncias assim definidas, reproduzindo aes comple-mentares prtica mdica.

    Diante disto, acrescentam-se ainda as diferenas salariaisque colocam a enfermagem em desvantagens na luta pelarepresentatividade da classe em espaos de poder. Estasituao, no entanto, no repercute em verdadeiras aesem prol do desejo de mudana desta realidade.

    A FORMAO DO SER SCIO-POLTICO

    As reformas curriculares do ensino de enfermagemtm procurado considerar as demandas do mercado detrabalho e transformaes ocorridas no setor sade comodesafios na formao de marcos referenciais e conceituaisde seus currculos. Para tal, espaos de construo ecirculao de saberes emergem no ambiente acadmico,o que possibilita a transversalidade do conhecimento emprol da globalizao, elemento determinante desteprocesso(15-17).

    No entanto, deve-se considerar insuficiente almejar umconhecimento que apenas permita ao profissionalequiparidade na concorrncia do mercado de trabalho.Alm disso, precisa-se construir uma formao criadorade identidade e representatividade visvel s diversasesferas sociais e, desta forma, alcanar o reconhecimentoda profisso e reconstruir as exigncias sociais que nossustentam, participando das organizaes das polticas desade e construindo o processo de ser enfermagem.

    Pensa-se como uma possibilidade de mudana aavaliao dos discursos acadmicos, uma vez que estesconstrem, tambm, subjetivamente, modos de ser. Oplanejamento das aes pedaggicas deve, portanto,privilegiar a formao com base em prioridades pautadasna busca por reconhecimento como uma necessidade.

    O ensino um momento privilegiado de construodo saber a fim de estimular a consolidao de um corpode conhecimento prprio da enfermagem, repercutindona identidade do enfermeiro(18). Este, em nossa opinio,potencializa-se atravs de prticas discursivas queconsolidem um paradigma inovador no sentido de formarprofissionais instigados participao poltica quepossibilite a visibilidade do corpo de conhecimentoproduzido pela enfermagem, assim como da identidadedo profissional atuante em defesa da vida.

    Atualmente, o profissional de enfermagem deve sercapaz de compreender e participar de decises maiscomplexas e interagir socialmente, mobilizando um saberconstrudo na interao do indivduo com a situao. Essesaber significa ter uma viso globalizada colocando, na

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    prtica, fragmentos de diferentes especialidades combina-das com a prpria experincia.

    O saber da enfermagem est no exerccio das ativi-dades, no qual os profissionais devem relacionar osconhecimentos conceituais adquiridos com os problemase acontecimentos encontrados em situaes concretas.Assim, o enfermeiro estar atuando criticamente,rompendo com as delimitaes impostas e tornandovisvel as suas competncias.

    Na construo de projetos poltico-pedaggicos naenfermagem, deve-se incluir educao profissional odesenvolvimento de atitudes crticas e reflexivas e oconhecimento para praticar a interdisciplinaridade. Aenfermagem, no contexto da rea da sade, espelha oresultado das polticas sociais e econmicas nacionais einternacionais. Sendo assim, produto de interessesdiversos no espao poltico, o qual no um campo neutro, um campo do saber, portanto local de disputa derelaes de poder(19). Desta forma, lidar com a relaosaber-poder torna-se um desafio a fim de que possamosexplicitar a enfermagem frente s polticas de sade ede educao com comprometimento social, participandodo planejamento e no somente da execuo de aes.

    O impacto que ocorre na transio da academia paraa atividade profissional poderia ser diminudo se, durantea formao, os alunos desenvolvessem um pensamentocrtico, participativo e transversal das diversas reas dosaber, participando de atividades acadmicas queenvolvam questes scio-polticas. Desta forma, o futuroprofissional j estaria desperto para uma postura crticasobre o contexto da enfermagem no mundo e do mundoda enfermagem.

    Alm do compromisso dos futuros profissionais deenfermagem com uma ateno sade mais justa,igualitria e de melhor qualidade, os formadores destesprofissionais tambm devem estar inseridos nessecontexto, realizando uma prtica coerente com o discurso,concretizando diretrizes curriculares comprometidastambm com o futuro da profisso. Portanto, pertencetambm aos formadores a tarefa de relacionar saberes,prticas e as conseqncias da profisso para a sade,para a qualidade de vida e, principalmente, para odesenvolvimento de uma prtica scio-poltica, refletindosobre a teoria e a prtica, compreendendo-as de mododesafiador na busca pela criticidade e criatividade doenfermeiro como ser participante na estruturao sociale poltica das prticas de sade.

    CONSIDERAES FINAIS

    O conhecimento da enfermagem provm de umaviso ampla e abrangente sobre sade, transcendente sprticas mdico-hospitalares. O carter dessa profisso,s vezes convergente, mltiplo, heterogneo, conflitivo,

    ambivalente, afetivo e socialmente relevante, projeta umainfinidade de competncias scio-polticas. Esta situaoreflete sua singularidade e a preocupao dos seus atoresque buscam conhecimentos nos diversos nveis de suaatuao social.

    Para o direcionamento da enfermagem, alm doensino e da pesquisa, considera-se importante a organiza-o poltica da profisso, uma vez que, por meio dofortalecimento desta, alcanar-se- uma representatividadesocial importante e, talvez, um novo paradigma na prticadiscursiva a respeito da atuao do profissional enfer-meiro, assim como, na abrangncia do seu saber.

    Adotar uma postura crtica frente ao contexto daprtica significa, tambm, pensar em transformaes.Acredita-se na relevncia destas, principalmente em relaoaos discursos que orientam objetiva e subjetivamente aformao profissional, uma vez que a enfermagem pareceestar ausente nas posies de poder que garantem asdecises sociais, sendo que dentre estas, imprescindvelque o enfermeiro atue nas relacionadas sade.

    Diante destas colocaes, surgem indagaes relativas atuao scio-poltica do enfermeiro. H, de fato,espao para o profissional neste campo de atuao? Serque podemos afirmar que no existem espaos para estesprofissionais? Ou estariam alheios ao que est posto,distanciando-se de um compromisso e responsabilidadeque criassem condies de assumir e demonstrar acapacidade crtico-reflexiva-criativa em prol da sade dapopulao?

    Ser, ainda, no dar visibilidade profisso uma formade escamotear a vontade do enfermeiro em aprofundara sua capacidade cognitiva e de transformao de suaprtica? Essas e outras tantas questes nos inquietam enos fazem refletir sobre o nosso papel no contexto detodo o processo sade-doena, ensino-aprendizagem,individual-coletivo, pblico-privado, entre outros.

    O desejo que aqui expomos o de construirmos,coletivamente, uma profisso mais atuante,comprometida, participante das instncias decisrias daspolticas pblicas, sociais e institucionais. O primeiro passoa ser dado, talvez o principal e mais desafiador, seja amudana paradigmtica na formao do profissionalenfermeiro para que possamos construir uma profissomais atuante(19), com o compromisso social necessriopara que busquemos conquistar esferas de deciso a fimde realmente atuarmos em defesa da vida, e mais do queisso, possibilitar espaos que dem visibilidade profisso,garantindo assim a chance de novas margens imagemda enfermagem perante a sociedade.

    REFERNCIAS

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