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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 O ENSINO DA HISTÓRIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DE ANÁLISE CULTURAL Edson Peixoto Andrade 1 Edilamara Peixoto de Andrade 2 Pedro Conceição Santiago Junior 3 INTRODUÇÃO Uma das experiências, comum a todos os humanos, é recordar-se de fatos do passado e experimentar, em sua subjetividade, a força de tais elucubrações que, por vezes, passam a influenciar ou mesmo, determinar as atitudes e comportamentos. Por vezes, a pessoa passa a identificar em sua mente algumas imagens um tanto vagas e imprecisas a respeito de um tempo irreal que não são passíveis de localização espacial mantendo, porém, relações com a sucessão de fatos e eventos da própria história pessoal. Isso dá a impressão de um sonho com uma realidade imemorial, num tempo talvez mítico, porém, com elementos que lembram muito da vida, das crenças e ideais. Essas imagens de criança não se apartam dos indivíduos. Talvez, seja o eude homem adulto que não quer rejeitar totalmente o prazer de ter, em um tempo passado, sido criança. Fato é que, o imaginário de adulto em construção está profundamente impregnado de sombras, luzes, fatos sem precisão. Embora não seja possível explicar com precisão a gênese de tais elucubrações, é perceptível que tudo o que se imagina está 1 Especialista em Metodologia do Ensino da História e da Geografia pela Sociedade Universitária Redentor. Licenciado em História pela Universidade de Uberaba. Acadêmico de Psicologia pela Faculdade AGES. [email protected] 2 Especialista em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e Inglesa pela Sociedade Universitária Redentor. Licenciada em Letras pela Faculdade AGES. Acadêmica de Direito pela Faculdade AGES. [email protected] 3 Graduando em História, 4º Período, pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES. [email protected]

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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

O ENSINO DA HISTÓRIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DE

ANÁLISE CULTURAL

Edson Peixoto Andrade1

Edilamara Peixoto de Andrade2

Pedro Conceição Santiago Junior3

INTRODUÇÃO

Uma das experiências, comum a todos os humanos, é recordar-se de fatos

do passado e experimentar, em sua subjetividade, a força de tais elucubrações que, por

vezes, passam a influenciar ou mesmo, determinar as atitudes e comportamentos. Por

vezes, a pessoa passa a identificar em sua mente algumas imagens um tanto vagas e

imprecisas a respeito de um tempo irreal que não são passíveis de localização espacial

mantendo, porém, relações com a sucessão de fatos e eventos da própria história

pessoal. Isso dá a impressão de um sonho com uma realidade imemorial, num tempo

talvez mítico, porém, com elementos que lembram muito da vida, das crenças e ideais.

Essas imagens de criança não se apartam dos indivíduos. Talvez, seja o “eu” de homem

adulto que não quer rejeitar totalmente o prazer de ter, em um tempo passado, sido

criança. Fato é que, o imaginário de adulto em construção está profundamente

impregnado de sombras, luzes, fatos sem precisão. Embora não seja possível explicar

com precisão a gênese de tais elucubrações, é perceptível que tudo o que se imagina está

1 Especialista em Metodologia do Ensino da História e da Geografia pela Sociedade Universitária

Redentor. Licenciado em História pela Universidade de Uberaba. Acadêmico de Psicologia pela

Faculdade AGES. [email protected] 2 Especialista em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e Inglesa pela Sociedade Universitária

Redentor. Licenciada em Letras pela Faculdade AGES. Acadêmica de Direito pela Faculdade AGES.

[email protected] 3 Graduando em História, 4º Período, pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – AGES.

[email protected]

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repleto daquilo que a pessoa é, crê e experimenta nos momentos de pura consciência e

interação e isso está ligado à ideia de cultura, a qual se relaciona com a formação do

indivíduo em sociedade e se apresenta como construtora da mesma.

Dentre tantas coisas que se poderia falar a respeito de cultura, o presente

trabalho aborda a ideia de cultura e seu aparecimento na história das sociedades

humanas bem como, as contribuições que estudos da cultura podem trazer ao ensino da

história.

Sendo uma revisão bibliográfica, o texto inicia abordando o conceito de

cultura, em seguida, reflete sobre o modo como diferentes sociedades constroem seus

sistemas de valores e crenças bem como, seus modos de vida. Por fim, discorre-se a

respeito do ensino da história a partir de um planejamento pautado sobre a cultura,

retirando o foco da narrativa factual, prevalecente na escola.

UMA DEFINIÇÃO DE CULTURA

O homem faz cultura, mas, a cultura gera esse mesmo homem. O que, então,

viria primeiro? Os antropólogos, filósofos, sociólogos e historiadores vêm, cada vez

mais, se debruçando sobre este tema até porque, há uma necessidade atual de se

compreender as diferenças uma vez que, o tema em voga, é o da pluralidade e o do

respeito. Só é possível compreender as diferenças a partir do momento em que se

percebe que o processo de desenvolvimento acontece de maneira singular para cada

indivíduo, em cada lugar. Portanto, estado de cultura ou de não-cultura é um campo

muito amplo que precisa ser cuidado com bastante atenção. Segundo Laraia,

Já foi o tempo em que se admitia existir sistemas culturais lógicos e

sistemas culturais pré-lógicos. [...] Todo sistema cultural tem a sua

própria lógica e não passa de um ato primário de etnocentrismo tentar

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transferir a lógica de um sistema para outro. Infelizmente, a tendência

mais comum é de considerar lógico apenas o próprio sistema e atribuir

aos demais um alto grau de irracionalismo. (LARAIA, 2000, p.90)

É sabido que a cultura se desenvolve por si só onde existem condições para

isso. E as condições básicas podem ser resumidas na simples presença humana. Onde

houver uma pessoa humana, ai haverá, certamente, produção cultural. De outro modo, é

importante destacar o fato de que não é o homem que, por sua própria determinação,

constrói sistemas culturais a seu modo e a seu tempo. Ela – a cultura – se desenvolve

por si só, sem que a vontade do homem possa traçar-lhe o mapa do referido

desenvolvimento. Ela simplesmente acontece e vai dando os contornos da civilização e

dos povos. A cultura, dessa forma, pode ser entendida como algo que aparece em meio a

agrupamentos humanos, imprimindo-lhe caráter, modus vivendi, experiências

singulares. Para Laraia (2001)

As diferenças de comportamento entre os homens não podem ser

explicadas através das adversidades somatológicas ou mesológicas.

Tanto o determinismo geográfico como o determinismo biológico [...]

foram incapazes de resolver o dilema proposto no início deste

trabalho.”4(p.16)

A partir desse pressuposto, abre-se aqui uma discussão a respeito da cultura

enquanto formadora de consciências e promotora de todas as visões da vida, do mundo

e do homem existentes na história.

Para Pierre Bourdieu:

A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma

com respeito à situação considerada em seu imediatismo pontual,

porque é o produto da relação dialética entre uma situação e um

4 A conciliação da unidade biológica e a grande diversidade cultural da espécie humana.

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habitus, entendido como um sistema de disposições duradouras e

transferíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona

a cada momento como matriz das percepções, das avaliações e das

ações, e torna possível desempenhar deveres infinitamente

diferenciados, graças à transferência analógica de esquemas que

permitem resolver os problemas que têm a mesma forma. (200, p.21)

De acordo com o sociólogo, o sujeito, a partir do habitus construído pela

cultura da sociedade, adota princípios para sua conduta e padrões de pensamento que

são definidos a priori por todo um contexto de disposições sociais que influenciam a

vida em sua individualidade e da realidade grupal como um todo. O homem, segundo

Bordieu, não é algo que se constrói a si mesmo de forma autônoma e individual. Sua

marcha sobre a terra e toda sua capacidade de produção advém dos “sistemas de

disposições duráveis, princípios geradores de práticas e de representações, que podem

ser ‘objetivamente reguladas e reguladores, sem ser o produto da obediência às regras.5”

(EMILIANI, 2009, p.78) A idéia de habitus não se refere a construções sociais visíveis

que o indivíduo adota por coerção social ou para se adaptar ao meio. Bourdieu postula

que a pessoa assume certos padrões de conduta que vão definindo suas formas de ser,

agir e representar na cotidianidade da vida, como de forma automática, não reflexiva.

Não é o indivíduo que constrói o habitus, mas este é que delimita o agir e o ser do

sujeito. Desse modo, ninguém é totalmente livre, para adotar seus padrões de conduta.

Cada indivíduo é reflexo direto da sua cultura que é engendrada pelos ditos princípios

geradores de práticas e representações. Nessa concepção, os hábitos das pessoas serão

frutos dessas disposições internas, transmitidas pelo bojo social, ao longo do

desenvolvimento do sujeito.

Tudo o que o homem pensa bem como, tudo o que ele é, está carregado de

cultura. O homem traduz a sua cultura durante a vida e a cultura faz o homem, engendra

5 BOURDIEU, P. Esquisse d’une theorie de La pratique. Paris: Seuil,1972

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suas opiniões, possibilita-lhe possuir determinadas visões. Aqui está o ponto – chave da

questão. Segundo Bourdieu, o que a pessoa adota em sua vida como padrões de

pensamento e comportamento não é algo totalmente consciente. A cultura está dentro do

homem como uma bactéria que, embora sendo microscópica, possui uma existência e

uma determinação de certos padrões de ação e reação no organismo do sujeito. O que

vivemos no passado, os costumes que foram sendo transmitidos pelas gerações, as

aprendizagens feitas, tudo isso determina a cultura da pessoa, embora, esta não tenha,

do ponto de vista da vontade, condições de rejeitar tais princípios ou abandoná-los de

todo. Mesmo que, a muito custo, alguém se decida a romper com certos padrões

culturais, pelo fato do habitus estar profundamente arraigado em seu ser, a simples

tentativa de transposição desse estado de coisas pode ser geradora de conflitos.

Marilena Chauí, em sua obra “Convite à filosofia” (1998), tenta interpretar

estas questões de uma maneira singular. O primeiro dado que Marilena nos traz é que

os seres humanos são culturais ou históricos. Há aqui, uma inter-relação entre história e

cultura. O fato de ser cultural implica que o ser humano é também, por natureza,

histórico. Isso significa que é na relação com os outros e com a natureza que se encontra

a essência da sociabilidade. Somos seres em construção. Ninguém nasce pronto e

acabado, mas, cada fase da vida é marcada por construções identitárias significativas.

O homem é homem enquanto é um ser em relação. O que nos identifica

mais profundamente é, justamente, o fato de que encontramos a nossa essência no

momento em que nos deixamos ligar a outros semelhantes. A cada contato os humanos

vão se enriquecendo mais um pouco e assim, ao final de tudo, tem-se um misto de

várias experiências e realidades que são passíveis de nomeação e classificação. Para

Sartre, filósofo existencialista, “é no encontro entre os seres que ocorre a identidade e o

sentido do Ser.” O filósofo refere-se a isso como uma “relação original estabelecida

pelo ato do olhar”.(apud JACOBY, 2005, p.49)

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Chauí nos lembra alguns dados significativos que podem elucidar as

questões aqui levantadas.

Os seres humanos são culturais ou históricos enquanto variam em

conseqüência das condições sociais, econômicas, políticas, e históricas em que vivem.

A sociedade forma o indivíduo. Somos produtos de uma cultura enquanto

tudo o que pensamos, fazemos e buscamos é engendrado pelas diversas matizes que

estão interpostas entre nós e aquilo que comumente se chama civilização e progresso.

Algo importante nesse ponto é pensar que não existe uma cultura, mas um misto de

culturas diferentes. São diversos mecanismos que vão se interligando, ao tempo em que

vão se diferenciando, de acordo com o ordenamento espacial possibilitando as

diferenciações nas criações das sociedades e a multiplicidade que é derivada desses

diferentes agentes geradores de cultura.

Não existe uma verdade universal quando se fala de parâmetros culturais. O

homem é fruto de uma cultura, mas, tal não pode ser tida como absoluta ou como

portadora de uma verdade absoluta. Analisando por esse prisma vamos chegar aos

fundamentalismos étnicos-religiosos-culturais que estão imbricados em muitos fatos do

cotidiano e que são característicos do que se chama etnocentrismo, definido por Rocha

como “uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo

e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos,

nossas definições do que é a existência.”(1988, p.5)

O indivíduo enquanto produto e produtor vai encontrando suas próprias

respostas e buscando seus próprios caminhos. Aqui está a razão pela qual todos os

reducionismos, rótulos e preconceitos devem ser abolidos.

As regras são definidoras de cultura enquanto local. Embora existam

aquelas ditas universais porém, mesmo estas, não podem ser tidas como absolutas uma

vez que o universal está preso a uma realidade histórico-espacial.

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Não há nada que seja comum para todos. Mesmo os conceitos de vida e de

morte, mais básicos de todos, são vistos de maneiras diferentes de acordo com os

critérios usados na observação.

Ainda de acordo com Chauí (1998), o homem é um ser cuja ação determina

o modo de viver, agir e pensar. O que determina aquilo que o indivíduo será é a sua

capacidade de agir. A ação está na gênese de todo padrão de vida, de produção e de

pensamento. Laraia, a este respeito, postula:

Resumindo, a contribuição de Kroeber para a ampliação do conceito

de cultura pode ser relacionada nos seguintes pontos: 1. A cultura,

mais do que a herança genética, determina o comportamento do

homem e justifica suas realizações. 2. O homem age de acordo com os

seus padrões culturais [...]. (2000, p.49)

Pode-se encontrar justificativas ao que vai sendo dito aqui, ao se considerar

as experiências culturais e históricas transmitidas pelos hominídeos. Tudo o que eles

apreenderam da vida, do mundo e dos relacionamentos foi resultado direto da sua ação

concreta em relação aos dramas vividos. É a partir da necessidade percebida que ele vai

criar mecanismos de resolução dos seus próprios conflitos. Ele se constrói no seguinte

esquema: drama – observação – reflexão – ação. Tudo está ligado nesse processo. E

aqui pode-se encontrar a gênese de todo processo cultural. Dito dessa forma, tem-se que

“a idéia de um gênero humano natural e de espécies humanas naturais não possui

fundamento na realidade.”(CHAUÍ, 1998, p. 144) Isso quer dizer que nada acontece de

forma pré-determinada enquanto vontade criadora de um “ser superior”. Ninguém nasce

para ser desse modo ou de outro. Todas as características identitárias são produzidas

nesse processo de integração social. É a sociedade que forma o tipo de homem que ela

possui. Embora, não se possa construir uma análise determinista para o que acontece, é

possível, no entanto, perceber que, os fatos são decorrentes das construções sociais a ele

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imbricados. Para tratar os dramas sociais se faz necessário tratar o drama que é vivido

pela sociedade em questão. Em outras palavras, se existem problemas sociais graves é

sinal de que, as forças constitutivas do agrupamento aludido estão em desconexão entre

si. Aqui se encontra lugar propício para distinguir entre aspectos culturais positivos, - a

saber todos os laços sociais que tornam o homem mais integrado e integrador - dos

aspectos culturais negativos que podem ser fruto de feridas sociais pungentes.

Quando se fala de aspectos negativos não se deve confundir com cultura

negativa. Nenhuma cultura o é por essência. Ela é a-moral, ou seja, não está aberta ao

julgamento da moralidade. O que pode acontecer é que, as forças convergentes

determinantes das características culturais podem estar imbuídas de alguns elementos

que não são funcionais, isto é, não estão em consonância com os ideais dos indivíduos.

Para exemplificar, pode-se citar as atitudes preconceituosas em relação a determinados

grupos sociais. Tais atos são gerados por idéias do imaginário coletivo, estando

distantes do ideário positivo de integração dos grupos. Desse modo, pode-se dizer que a

cultura integra os homens entre si ao tempo em que, pode favorecer certo tipo de

competição e exclusividade.

A noção de cultura, portanto, está ligada à natureza, à educação e aos

valores estéticos. Não passa, porém, despercebida, a idéia de cultura como produção

humana que vai dando sentido a símbolos, significados, crenças, tradições e tantas

outras coisas subjetivas, mas que, assumem um caráter definidor da realidade enquanto

transmitem saberes, modos de vida e significados diversos para as experiências que os

seres humanos fazem de si, do outro e das coisas com as quais se relaciona.

Os homens criam e transmitem os mecanismos de suas criações. Tais coisas

vão fazendo parte da vida como se fossem naturais e a sociedade, por sua vez, lança

mão de tais obras como suas, obrigando os grupos a se adequarem, com o passar do

tempo, a essas novas realidades que vão surgindo, por isso, a visão da cultura enquanto

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transmissão do saber não pode ser deixada de lado uma vez que é capaz de traduzir todo

a estrutura de funcionamento da vida humana e da sociedade como um todo.

“Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de

práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e

artística.”(CHAUÍ, 1998, p.152). Cultura é a maneira pela qual os homens se

humanizam. Para os antropólogos “ a diferença homem-natureza surge quando os

humanos decretam uma lei que não poderá ser transgredida sem levar o culpado à

morte... ou, se transgredida, causa a ruína da comunidade e do indivíduo.”(idem,p.153)

Dito de outra forma, o homem se diferencia da natureza enquanto ele percebe coisas

necessárias em si mesmas para o bem de todos e para a harmonia do convívio social.

Sem tais manifestações, a ruína acontece. Em outras palavras, toda vez que a cultura de

um povo, de um lugar, de determinado tempo histórico é desprezada, a humanidade se

empobrece e morre um pouco. A vida não é meramente resultado de fenômenos

biológicos e orgânicos mas, sobretudo, da interação dos indivíduos entre si e da cultura

que é criada para garantir a sobrevivência.

Todos possuem cultura. Embora diferentes, cada uma delas é importante

para o todo orgânico que é a vida em sociedade. Quando uma cultura morre, o homem

morre também. Salvaguardar a espécie humana é exigência. Para que isso aconteça é

preciso conhecer, respeitar e valorizar cada experiência, tradição, costume, lenda,

crença. Seja o que for, venha de onde vier, tudo aquilo que pode ajudar a explicar mais

um pouco sobre a vida, sobre a natureza das coisas e sobre a criatura humana em si, é

importante para o ordenamento social.

Segundo Herbert Marcuse “cultura é entendida como o complexo específico

de crenças religiosas, aquisições, tradições etc. que configuram o “pano de fundo” de

uma sociedade.”(1998, p.34) Toda sociedade só existe como tal a partir de pressupostos.

É o que se chama “pano de fundo”, os elementos constitutivos dos sistemas e

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agrupamentos. Diz-se que a sociedade “x” é diferente de “y” justamente pelo conjunto

diferente dos referidos elementos. Daí a necessidade de trabalhar a consciência do

múltiplo, do diferente e do complementar que são básicos para a construção de uma

nova realidade que leve em consideração todos os complexos pontos dos núcleos

humanos.

Para Marcuse, a cultura é específica de cada povo, de cada região. Há uma

complementaridade cultural quando se há o intercâmbio. Uma cultura nunca é completa.

É um sistema aberto que vai lucrando e se enriquecendo no contato com outras

realidades. Para o teórico, a “cultura aparece como o complexo de objetivos ou valores

morais, intelectuais e estéticos, considerados por uma sociedade como meta da

organização, da divisão e da direção de seu trabalho – “O Bem” que deve ser alcançado

mediante o modo de vida por ela instituído”.(idem, p. 36) Esta é uma verdade que

precisa ser levada em consideração. Cada grupo vai criando suas normas morais de

acordo com a meta a qual se dirige. Alguém já falou que o homem é um ser religioso. E

isso pode ser entendido não só no sentido estrito de religião como ligação

transcendental e sim, como busca por valores morais, estéticos que preencham seu

espírito de conhecimento, de visão de novas coisas e, por que não, de espiritualidade.

Tudo o que a sociedade quer, ela consegue mediante a criação de sistemas

fechados que levem o indivíduo obrigatoriamente a se adequar a seus valores e ideais.

Dessa forma, é possível dizer que a cultura é algo criado intencionalmente pelo grupo

com uma funcionalidade adequada aos interesses diversos. Aquilo que acreditamos,

apoiamos e almejamos, está dentro deste contexto funcional da sociedade em geral. Os

homens criam leis, hábitos, conceitos e preconceitos justamente para atingir seus

objetivos. Porém, nesse aspecto há de se perceber que, aqueles que ditam tais regras

nem sempre são as lideranças. Na maioria dos casos, um hábito mal compreendido

acaba por gerar novo hábito que, por sua vez, cria outro, e assim sucessivamente. A

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cadeia de elementos vai crescendo cada vez mais nesse amplo processo de criação,

transformação, recriação e apropriação.

As leis, costumes e crenças têm caráter funcional e não-espiritual mesmo

que, por vezes, apareça uma relação de semelhança entre espiritualidade e cultura,

sendo que, a espiritualidade é uma forma de cultura. Aquilo que o homem acredita é

uma convenção da sociedade em que esse mesmo homem vive a partir de um objetivo

prático em prol dos interesses do grupo. Daqui se depreende que a mudança de

costumes gera impactos para a comunidade que não estava acostumada com mudanças.

A cultura é sempre uma imposição do sistema social vigente. Quando o

indivíduo se dá conta, já está implicado nas diversas manifestações do seu entorno de

forma que, as assume como suas, gerando outro conceito pertinente: a cultura é

inquestionável para aquele que a possui. Um dado não é relativo para quem deposita

nele, a sua confiança. As pessoas aceitam ser impregnadas dos valores e costumes de tal

forma que, não saberiam viver sem tais valores. E aqui Marcuse explica: “Falamos de

uma cultura (passada ou presente) como existente apenas quando os objetivos e os

valores representativos foram (ou são) reconhecidamente traduzidos na realidade

social.”(1998, p.51) Ou seja, somente enquanto todo o grupo aceita tal coisa como

expressão da sua verdade, então diz-se ter se criado um sistema cultural.

A cultura, embora seja fechada, sofre os impactos históricos e se transforma

paulatinamente. Essas mudanças são muito lentas, mas provocam alterações

significativas que não passam despercebidas dos bons observadores.

Marcuse ainda diz:

A maioria dos homens usufrui de um considerável espaço para compra

e venda, para a busca de um trabalho e em sua escolha; podem

expressar sua opinião e mover-se livremente – mas suas opiniões

jamais transcendem o sistema social estabelecido, que determina suas

necessidades, sua escolha e suas opiniões.(1998, p.56)

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Mesmo os mais críticos, céticos ou espirituais jamais conseguem romper

com seus laços culturais. Se o fizessem deixariam de ser humanos. O “pano de fundo”

da vida humana e o marco de sua existência é o que se chama de cultura. O homem é

cultural não apenas enquanto cria coisas, mas, no sentido em que sobrevive por meio

das crenças, manifestações, costumes etc. Tirar a cultura do homem é como deixá-lo

sem alma, sem sangue, sem vida.

O ENSINO DE HISTÓRIA NUMA PERSPECTIVA CULTURAL

Partindo de tais elucubrações sobre a gênese cultura e a função da cultura

para a vida em sociedade, é pertinente iniciar uma nova sessão que pretende ser a última

do presente trabalho, buscando encontrar um novo caminho para o ensino da história na

educação básica que considere a cultura como elo propulsor da reflexão conteudinal na

sala de aula e que, ao mesmo tempo, gere nos alunos a capacidade crítica de perceber

como existem inferências culturais no processo de construção de valores e

transformações de situações no cotidiano da vida pessoal e social.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais, quando se referem aos objetivos

propostos para o ensino da história, postulam que este existe para construir identidade o

que se faz mediante metodologias que dêem ênfase aos aspectos sócio-culturais.

Segundo o supracitado texto,

O ensino de História possui objetivos específicos, sendo um dos mais

relevantes o que se relaciona à constituição da noção de identidade.

Assim, é primordial que o ensino de História estabeleça relações entre

identidades individuais, sociais e coletivas, entre as quais as que se

constituem como nacionais. (BRASIL, 1997,p.26)

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Na esteira dessas reflexões ficam explicitados três processos considerados

fundamentais para que tais objetivos sejam alcançados.

Em primeiro lugar, a construção da relação entre o particular e o geral com

relação ao estudante.

Inicialmente, a inclusão da constituição da identidade social

[...]necessita um tratamento capaz de situar a relação entre o particular

e o geral, quer se trate do indivíduo, sua ação e seu papel na sua

localidade e cultura, quer se trate das relações entre a localidade

específica, a sociedade nacional e o mundo. (idem)

Um segundo processo é o que concerne ao trabalho com as noções de

semelhança e diferença que são fundamentais quando se quer situar o indivíduo num

contexto de variadas experiências no qual seja possível conviver com dados novos,

diferentes dos habituais do seu bojo cultural e que precisam ser assimilados de forma

coerente para que ações excludentes e preconceituosas não venham a interferir no

processo de vivência da alteridade e aceitação do novo.

Segundo os Parâmetros,

Do trabalho com a identidade decorre, também, a questão da

construção das noções de diferenças e de semelhanças. Nesse aspecto,

é importante a compreensão do “eu” e a percepção do “outro”, do

estranho, que se apresenta como alguém diferente. Para existir a

compreensão do “outro”, os estudos devem permitir a identificação

das diferenças no próprio grupo de convívio, considerando os jovens e

os velhos, os homens e as mulheres, as crianças e os adultos, e o

“outro” exterior, o “forasteiro”, aquele que vive em outro local. Para

existir a compreensão do “nós”, é importante a identificação de

elementos culturais comuns no grupo local e comum a toda a

população nacional e, ainda, a percepção de que outros grupos e

povos, próximos ou distantes no tempo e no espaço, constroem modos

de vida diferenciados. (BRASIL, 1997, p.26-27)

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Aliado a isto pode-se apresentar o conceito de etnocentrismo “que significa

a supervalorização da própria cultura em detrimento das demais.”(LAKATOS,

1990,p.133). Segundo Everardo Rocha,

Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é

tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos

através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que

é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade

de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de

estranheza, medo, hostilidade, etc. (1988,p.5)

O trabalho em História, nesta perspectiva, assume a função de trabalhar os

conceitos basilares da alteridade, da tolerância e da convivência pacífica entre grupos

diferentes, o que não se torna algo distante do seu propósito fundamental quando se

considera que a marcha das sociedades é marcada por sinais de preconceito e exclusão

bem como, por tentativas de integração de grupos minoritários e revoluções culturais

que culminaram na vitória sobre estereótipos e guetos.

Quando se pensa, por exemplo, nos movimentos dos gregos antigos rumo à

construção do pensamento filosófico em detrimento da maneira de pensar anterior ou

nos ideais de grupos que lutaram pelo fim do Absolutismo na Europa e da Escravidão

nas Américas percebe-se exemplos concretos de movimentos que empreenderam a saída

de um estado de coisas considerado padrão para outro mais tolerante onde a convivência

fosse possibilitada.

Continuando a reflexão sobre fatos históricos marcantes, poder-se-ia citar os

Modernistas Brasileiros do início do Século XX, os movimentos de Contracultura que

se espalharam pelo mundo e as reflexões que surgiram durante o Período da Ditadura

Militar e que garantiram a eclosão da Constituição Cidadã de 1988.

Atualmente, não faltariam exemplos para trabalhar os conceitos de

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tolerância, aceitação do novo, quebra de paradigmas. Basta apenas visualizar as lutas

pela emancipação da mulher, os movimentos dos homossexuais, as lutas

antimanicomiais e os diversos programas de inclusão surgidos a partir de ações de

ONG’s e das próprias forças governamentais.

Dito isso, postula-se que é possível construir novos padrões de pensamento,

tendo como elo propulsor, os diversos conteúdos que se devem trabalhar ao longo do

programa de História no Ensino Fundamental e Médio desde que se tenha como visão

macro a idéia de que os conceitos servem para construir novos pensamentos e não, para

serem memorizados e logo depois, esquecidos.

Segundo Edgar Morin,

[...] a cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, fazeres, regras,

normas, proibições, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se

transmite de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo,

controla a existência da sociedade e mantém a complexidade

psicológica e social. Não sociedade humana, arcaica ou moderna,

desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim, sempre

existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio das

culturas. (2001,p.56)

Construir identidade em vista do respeito às diferenças só é possível,

seguindo o pensamento do filósofo, se a cultura for trabalhada “por meio das culturas”.

Não pode existir, quando se pretende um ensino inovador de história, uma postura

pautada simplesmente na transmissão de conceitos uma vez que, por sua própria

natureza, a história lida com as culturas e, somente por meio das mesmas é que pode ser

compreendidas e favorecer a construção dos valores propostos no ensino da mesma.

Outro ponto sobre o qual se deve ter clareza é o da reprodução cultural. A

esse respeito, Silva postula:

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para Bourdieu e Passeron, a dinâmica da reprodução está centrada no

processo de reprodução cultural. É através da reprodução cultural

dominante que a reprodução mais ampla da sociedade fica garantida.

A cultura que tem prestígio e valor social é justamente a cultura das

classes dominantes: seus valores, seus gostos, seus costumes, seus

hábitos, seus modos de se comportar e agir. Na medida em que essa

cultura tem valor em termos sociais; na medida em que ela vale

alguma coisa; na medida em que ela faz com que a pessoa que a

possui obtenha vantagens materiais e simbólicas, ela se constitui como

capital cultural. [...] Finalmente, o capital cultural manifesta-se de

forma incorporada, introjetada, internalizada. (2002,p.34)

Mais uma vez faz-se mister destacar ser, a função do estudo da história no

ensino regular, trabalhar o conceito de cultura como algo inerente à vida humana de

modo a que, cada vez mais, seja possível diminuir a distância entre o que se chama

erudito e popular e assim, perceber que o cultural não pode ser valorável como superior

ou inferior, justamente por conta da função da cultura, da sua gênese e das suas formas

de expressão nas sociedades e nos povos.

Por fim, os PCN’s apresentam um terceiro passo, no sentido de construção

da identidade a partir do ensino de história. Diz o texto:

O trabalho com identidade envolve um terceiro aspecto: a construção

de noções de continuidade e de permanência. É fundamental a

percepção de que o “eu” e o “nós” são distintos de “outros” de outros

tempos, que viviam, compreendiam o mundo, trabalhavam, vestiam-se

e se relacionavam de outra maneira. Ao mesmo tempo, é importante a

compreensão de que o “outro” é, simultaneamente, o

“antepassado”, aquele que legou uma história e um mundo

específico para ser vivido e transformado. (BRASIL, 1997,p.27)

Conforme explicitado anteriormente, não há outra forma de se trabalhar a

cultura senão, como sendo um resultado da caminhada de grupos inteiros ao longo dos

tempos. Tal caminhada deixa marcas que vão sendo agrupadas. É justamente a partir de

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tais marcas que o ensino frutuoso de história deverá se debruçar. Para que isso seja

possível, lançar mão de metodologias inovadoras, trazer as notícias do presente, fazer

memória das ritualizações dos povos e culturas e relembrar os fatos marcantes dessa

produção cultura é o caminho promissor para que o ensino cumpra a sua função de

construção identitária.

O novo paradigma levanta a questão de que é possível trabalhar os conceitos

estabelecendo o elo de relação direta entre o passado e o presente, lançando mão de

todos os recursos disponíveis, quer sejam áudio-visuais, escritos, materiais, imateriais

etc. Os conteúdos, dessa forma, podem ser trabalhados de forma integrada ou

seqüencial. O que é mais importante, porém, é a contextualização que, embora já tenha

se tornado lugar comum nas reflexões metodológicas, nesse trabalho assume a

conotação de intermediação entre entes culturais diferentes que devem estar presentes

como mola-mestra de todo o trabalho em história na sala de aula. Nesse contexto, é

importante refletir sobre os novos rumos que a história ganhou após a tendência

historicizante dos tempos passados. A partir da década de vinte do século passado,

começa a ganhar terreno o esboço da história das mentalidades que, no futuro iria

engendrar aquilo que se convencionou chamar de história cultural onde, Segundo

Pesavento (2004, pp.14-15),

Foram deixadas de lado concepções de viés marxista, que entendiam a

cultura como integrante da superestrutura, como mero refluxo da

infraestrutura, ou mesmo da cultura como manifestação superior do

espírito humano e, portanto, como domínio das elites. Também foram

deixadas para trás concepções que opunham a cultura erudita à cultura

popular, esta ingenuamente concebida como reduto do autêntico.

Longe vão também as assertivas herdeiras de uma concepção da belle époque, que entendia a literatura e, por extensão, a cultura, como o

sorriso da sociedade, como produção para o deleite e a pura fruição do

espírito.

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Nesse contexto, Ainda segundo Pesavento (Idem, p. 15), abre-se uma nova

forma de tratar a cultura, “Não mais como uma mera história do pensamento, onde

estudava-se os grandes nomes de uma dada corrente ou escola. Mas, enxergar a cultura

como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar

o mundo.”

A história cultural é, portanto, uma nova forma de se trabalhar a história

buscando “se aproximar das massas anônimas.”(FILHO,2005). Para este autor,

Podemos, portanto, afirmar que a Nova História Cultural revela uma

especial afeição pelo informal, por análises historiográficas que

apresentem caminhos alternativos para a investigação histórica, indo

onde as abordagens tradicionais não foram. (idem)

Seguindo a trilha dos historiadores da linha supracitada é possível

compreender como a história das culturas pode gerar nos indivíduos uma nova

capacidade de refletir criticamente a respeito de si, do outro e do mundo e assim, adotar

novas posturas que dêem conta de contribuir com a transformação da sociedade uma

vez que traga ao cenário, a visibilidade dos sujeitos que, por ventura, se encontrem à

margem do processo sócio-histórico.

Trazer as manifestações culturais que se apresentam em forma de fatos,

acontecimentos, ideologias, construções e descontruções pode ser um caminho

promissor para que novas mentalidades surjam como resultado das análises dos fatos

históricos contextualizados e comprometidos com a realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que é o homem? O que é ser humano? O que é produzir? O que é cultura?

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Estas perguntas nunca encontrarão respostas satisfatórias. Quando se

procura analisar tais questões chega-se a diversas conclusões e, sobretudo, percebe-se o

conceito de que nenhum povo, nenhuma civilização, nenhuma época ou grupo social

pode se sobrepor aos demais sob o argumento da civilidade. Cultura e civilização são

aspectos imprescindíveis da busca do homem na Terra, mas sempre permanecerão

sendo uma busca. Nunca chegarão a um termo. Entender isso evita o fundamentalismo,

o medo do diferente e a morte da esperança.

Em épocas de exclusão social, quebra de paradigmas, lutas contra posturas

preconceituosas e emergência de grupos sociais, é importante refletir sobre o caráter

individual e social da cultura identificando a mesma como resultado de processo do agir

histórico e fonte de possíveis mudanças e transformações sociais.

Para as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, no volume sobre as

Ciências Humanas e Suas Tecnologias, encontram-se pertinentes definições a respeito

da cultura e explicitam-se os objetivos básicos para se trabalhar esses conceitos na

educação em história. Segundo o documento,

A cultura não é apenas o conjunto das manifestações artísticas e

materiais. É também constituída pelas formas de organização do

trabalho, da casa, da família, do cotidiano das pessoas, dos ritos, das

religiões, das festas. As diversidades étnicas, sexuais, religiosas, de

gerações e de classes constroem representações que constituem as

culturas e que se expressam em conflitos de interpretações e de

posicionamentos na disputa por seu lugar no imaginário social das

sociedades, dos grupos sociais e dos povos. (BRASIL, 2008, p.77)

Partindo de tais pressupostos é que se justifica a postura adotada para a

reflexão no trabalho aqui apresentado, a saber, uma metodologia voltada para o ensino

da história a partir de todos os fatos, contextos, símbolos e aspectos culturais percebidos

como portadores de história e facilitadores de uma visão crítico-construtiva que permita

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aos historiadores e professores compreender melhor a sociedade e os povos tendo como

parâmetros os dados que são percebidos a partir das diversas vivências que se

naturalizam no cotidiano dos mais variados grupos que existem em dado contexto

social. Dito de outra forma, acredita-se que, a partir de análises de textos veiculados em

revistas, de vídeos, filmes, músicas, jogos, festas, crenças, mitos e outras realidades

culturais, seja possível estabelecer vínculos profícuos com fatos do passado e assim,

reconstruir a história que não tenha um viés “historicizante” mas que possibilite a

reflexão sobre a vida e sobre o mundo e a adoção de visão e posturas críticas da

realidade. Nesse contexto, faz-se mister, citar as habilidades para o trabalho com a

cultura dentro do currículo de história no Ensino Médio, a saber,

Compreender a cultura como um conjunto de representações sociais que

emerge no cotidiano da vida social e se solidifica nas diversas organizações e

instituições da sociedade; perceber que as formações sociais são resultado de

várias culturas; situar as diversas produções da cultura – as linguagens, as

artes, a filosofia, a religião, as ciências, as tecnologias e outras manifestações

sociais – nos contextos históricos de sua contribuição e significação; perceber e

respeitar as diversidades étnicas, sexuais, religiosas de gerações e de classes

como manifestações culturais por vezes conflitantes. (idem, p. 83)

No trabalho em história, o estabelecimento de conexões entre os conteúdos

curriculares e os dados culturais resulta em benefícios para todo o processo de ensino-

aprendizagem e possibilita a emergência de novos atores sociais e a visualização de

diversos contextos que não ficam latentes quando se adota uma metodologia focada

simplesmente na transmissão dos conceitos de forma desconexa das produções sociais

que envolvem a vida como um todo, tanto de professores e alunos quanto, das

instituições como um todo. A partir de uma perspectiva cultural, vislumbra-se a

possibilidade de fazer a vida aparecer em meio aos dados históricos e, dessa forma, há a

chance de se trabalhar de forma crítica as consciências, os valores e as atitudes do

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sujeito, tendo como parâmetros, os fatos da história e suas inferências na construção do

cotidiano de cada um em particular e dos grupos sociais como um todo.

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