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José António Barreiros O Espião Alemão em Goa

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José António Barreiros

O EspiãoAlemão em Goa

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ÍNDICE

Apresentação da segunda edição ............................... 9

Introdução ................................................................ 13

Uma via fundamental e perigosa ............................... 27

Quatro barcos em busca de paz? ............................... 31

Um emissor clandestino? ........................................... 41

O apetite pelos navios ............................................... 49

O SOE em crise de ações ........................................... 55

O rapto do espião ..................................................... 63

Subornar, uma das virtudes marciais ......................... 71

Uma solução final inesperada .................................... 75

Lua nova, o ataque ................................................... 83

Um telegrama aparentemente precipitado ................. 109

A ratoeira legal ......................................................... 123

Mudança de rumo .................................................... 141

Sempre o império da conveniência ............................ 151

Enfim, o julgamento .................................................. 155

Uma luz ao fundo do túnel ....................................... 159

Da cumplicidade ao encobrimento ............................ 163

Anexos ...................................................................... 171

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UMA VIA FUNDAMENTAL E PERIGOSA

A travessia do Índico durante a Segunda Guerra era uma via indispensável para os abastecimentos aliados e aquele oceano era fundamental para a subsistência do es-forço militar britânico. Dezenas de navios circulavam, por isso, por aquelas águas, transportando cargas preciosas.

Via naval decisiva, o Índico tornava -se, porém, numa via perigosa, infestada pela Marinha de guerra alemã. Re-partindo na região a guerra dos mares com os japoneses, que se ocupam de Burma e da Malaia, os alemães concen-travam esforços no oceano que no passado fora sulcado por Vasco da Gama.

A sorte parecia bafejá -los em excesso. Estranhamente, de facto, os submarinos alemães conseguiam localizar um número impressionante de comboios navais britânicos e afundavam -nos com uma matemática precisão, a ponto de escolherem como alvo qual dos barcos carregava a carga mais importante.

Os naufrágios somavam -se. Só entre 17 de Outubro e 14 de Dezembro de 1942 às autoridades navais portuguesas foi comunicado o afundamento de 29 navios e onze desses ha-viam sido atacados ao largo da costa de Moçambique, entre a Ponta Závora ao Norte e o limite sul do território. Dois dos afundamentos verificaram -se a cerca de dez milhas da costa portuguesa, todos os demais em águas internacionais.

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Uma acção imediata tornava -se instante. As suspei-tas quanto à origem das informações que permitiriam esta situação recaíram primeiramente em Moçambique e nomea damente sobre a actividade do cônsul alemão em Lourenço Marques, o senhor Wertz.

Mas, colocadas perante a questão, as autoridades por-tuguesas atribuíram tal insídia a propaganda originária da União Sul Africana, «por uma questão comercial por detrás da navegação de Durban». E, por isso mesmo, desconsi-deraram o assunto1, apesar de terem concluído que «no porto de Lourenço Marques, no lapso de tempo em questão (como em outros anteriores de maior actividade maríti-ma) houve um grande aumento de entradas de navios no porto a que correspondem, naturalmente a intensificação do ataque pelos submarinos do Eixo», mas porque deram como assente que «não se vê, pois, que indício possa haver de abastecimentos ou informações obtidos na nossa costa pelo facto dos afundamentos referidos».

No entanto, paulatinamente, cruzando dados recolhi-dos a partir do tráfico de comunicações navais do III Reich, os ingleses chegam a uma conjectura: as informações vitais que permitiam à Marinha de guerra alemã tais sucessos po-deriam estar a ser emitidas a partir da Índia, mais precisa-mente de Goa, centralizando possivelmente dados oriundos de agências de navegação sediadas em Moçambique. A ser verdade tal conclusão e uma vez que os dados da escuta

1 É esta precisamente a informação de 12 de Janeiro de 1943 da Majoria -Geral da Armada, subscrita pelo vice -almirante Alfredo Botelho de Sousa (em ANTT/AOS/CO/PC -8D, pasta 2, fls. 20 e seguintes), na sequência de um inquérito efectuado pelo comandante do aviso Afonso de Albuquerque.

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apontavam muito provavelmente para a origem goesa das emissões, a sua transmissão poderia estar a ser efectivada a partir de um dos navios com pavilhão do III Reich alemão.

Vista geral do porto de Mormugão.

A ter correspondido a um objectivo calculado, a ideia tinha sido engenhosa: a máquina de guerra alemã teria concebido um inteligente plano, fazendo deslocar para o porto de Mormugão2, a sul do estuário do rio Zuari, três navios seus, acolitados por um outro italiano, aparente-mente inocentes em busca de protecção e abrigo.

2 Mormugão era um porto com interesse estratégico, visitado por navios estrangeiros, mesmo de guerra. A 6 de Dezembro de 1941 o ministro das Colónias fazia -se eco, por telegrama n.º 49CIF, do pe-dido do Ministério dos Negócios Estrangeiros para que fossem con-cedidas «facilidades usuais» a oito navios de guerra britânicos que pretendiam tocar aquele porto por 24 horas. O número de barcos que ali fundeavam era significativo, nomeadamente para abasteci-mento no posto local de combustíveis e para transporte de cargas.

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Quatro barcos em busca de paz?

Com o início da Segunda Guerra inúmeros navios car-gueiros estacionaram nos nossos portos, procurando a protecção da nossa bandeira e neutralidade.

De acordo com informações do Ministério da Marinha, no dia 5 de Setembro de 1939 era esta a situação no que se refere a navios alemães3: em Ponta Delgada encontravam -se os navios -tanque Rudolf Albrecht e Germania, os navios de carga Antiochia e Eilbeck; na Horta, o Klaus Schoke e o Luise Bornhofen; em Lisboa, o Helios; em Macau, o yacht de re-creio Loya; em Moçambique, o Aller, o Dortmund, o Rufidgi, o Uhenfels e o Watussi; em Angola, o Windhuk, o Qdolf Woermann, o Adolf Leonhardt, o Wameru e o Wagogo; e em Mormugão, o Braunfels, o Drachenfels e o Ehrenfels4.

3 AOS/CO/MA -1B, P3. O ministro da Marinha de então era o co-mandante Manuel Ortins de Bettencourt. Fundador da Legião, fora destacado dirigente da Brigada Naval daquela milícia paramilitar. O seu chefe de gabinete era o comandante Américo Deus Rodrigues Thomaz, que seria em 1958 presidente da República.

4 Em Maio de 1941, encontravam -se em Lisboa o Nancy, francês, e o Egholm e o Skaare, dinamarqueses; no Funchal, o Aurora e o African Reefer; no Faial, o Luise Bornhofen; em Ponta Delgada, o Rubens, belga; em São Vicente, o Gerarchia, italiano; em Moçam-bique, o Gerusalemme, italiano, e o Aller, o Dortmund e o Rudfidji, alemães, além do Holland, holandês; em Angola, o Wameru e o Wagogo; e em Mormugão, para além dos referidos, o Anfora.

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A chegada dos barcos alemães ocorrera em Setembro de 1939, com o advento da guerra. O navio italiano apor-taria em Junho de 1940, quando a Itália entrou no conflito mundial. No dia 9 desse mês, Benito Amilcare Andrea Mussolini anunciaria, num dos seus histriónicos discur-sos, que a Itália entrara na guerra «contra as democracias plutocráticas e reaccionárias que sempre bloquearam a marcha e frequentemente conspiraram contra a existência do povo italiano».

Ostensivamente desactivados, lançaram amarras os navios mercantes Ehrenfels, de 7752 toneladas, construído em 1935, comandado por Johann Röfer, o Drachenfels, de 6342 toneladas, comandado por August Schmidt, construí-do em 1921, e o Braunfels, de 7847 toneladas, comandado por Johan Bilt, construído em 1927, todos da Deutsche Dampfschiff Hansa germânica, e, a seguir, o italiano An-fora, de 5425 toneladas, da Lloyd Triestino, construído em 1922, cujo capitão era Leopold Lindemann.

De todos eles, o primeiro tinha algumas peculiaridades dignas de atenção, pois quer pela potência do motor, um MAN diesel de 3820 cavalos, quer pelas especialidades da sua construção, poderia ser transformado, com facilidade, num vaso de guerra, tal como sucedera com o seu homó-logo, o Penguin 5.

Aos serviços britânicos não escapou, de facto, a circuns-tância de o Ehrenfels poder ser rapidamente transformado num navio de guerra, desde que lhe fossem introduzidos

5 Originariamente, o cruzador auxiliar Penguin era o Kandelfels, na-vio gémeo do Ehrenfels. Seria afundado em 1941, não sem antes ter causado significativo estrago às forças navais aliadas, tendo afun-dado 28 navios.

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alguns pequenos ajustamentos. Por isso, durante algum tempo, as embarcações foram vigiadas, sob a suspeita de que poderiam a qualquer momento zarpar para fins bé-licos6. A 13 de Março de 1942, Londres faz entregar em Lisboa uma nota verbal na qual se alertavam as autoridades portuguesas para a eventualidade de que «estes navios re-cebam agora instruções para tentarem evadir -se do local de refúgio e tomar parte activa na guerra, talvez como navios de reabastecimento para unidades navais inimigas». Mas os acontecimentos não viriam a confirmar estes receios e os barcos manter -se -iam estacionados no local onde tinham efectuado ancoradouro, sem quaisquer limitações de maior.

Portugal tinha sido sossegado a este propósito pelas autoridades diplomáticas, que informaram que o destino final dos seus navios seria, logo que possível pelos sucessos da guerra, o Japão. Por isso, a perigosidade potencial do estacionamento dos barcos no nosso porto naquelas lon-gínquas paragens passou para segundo plano.

A questão que se colocara no princípio, com a chegada dos navios alemães, a da obstrução à nave-gação, estava praticamente resolvida, pois seria de-masiado oneroso providenciar pela descarga das mercadorias que faziam lastro e impediam o aportar7

6 Leio no Arquivo dos Negócios Estrangeiros que em Maio desse ano o cônsul britânico em Goa informa as autoridades portuguesas que «tripulante navio alemão atravessou fronteira foi preso Índia inglesa fez declarações dizendo vapor Ehrenfels construção especial (…)» (MNE/AHD, armário 47, maço 170).

7 Disso dá conta o telegrama do governador -geral para o ministro das Colónias de 7 de Setembro de 1943 [28CIF]: «Dois dos navios alemães estão fundeados fora do porto motivo seu calado não permitir estarem fundeadouro Mormugão PONTO Receio que possam obstruir entra-

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e assim eles estacionaram à entrada do porto de Mor-mugão.

O próprio governador -geral, mau grado as suas sim-patias britânicas, entendia que o seu papel não deveria ultrapassar a satisfação das razoáveis necessidades corren-tes das tripulações, sem mais interferências e, por isso, as autoridades não molestavam a permanência dos navios.

Sediados ao largo, os barcos seriam, porém, objecto de apetite de potências estrangeiras, interessadas na sua compra. Valiosos em tempo de escassez de meios navais, atraíram o interesse comercial da Turquia, que ensaiou, sem sucesso, a sua aquisição8. A isso se opunham, porém, as leis de guerra que visavam impedir o comércio com o

da do porto ou complicar navios de guerra ingleses julgo indispensável sejam mandados recolher porto mas para isso tem descarregar parte carga para armazéns o que ele envolver despesas poderá ser possa pró-pria carga PONTO Peço instruções» [sic].

8 Um aide mémoire de 24 de Fevereiro de 1942 da Legação da Turquia em Lisboa, n.º 76/13 (ANTT/AOS/CO/NE -2G21), enviado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, dá conta de que o Governo da República Turca estava em vias de negociar com o Governo do Reich a compra de quatro navios de mercadorias estacionados no porto de Mormugão, na Índia Portuguesa, e de um outro, estacionado na Horta (Açores), facto que seria levado ao conhecimento do Governo britânico, através dos bons ofícios da Embaixada britânica em Ancara. O Governo turco solicitou, então, a intervenção do Governo português no sentido de le-var a cabo as formalidades inerentes à mudança de pavilhão, de modo a facilitar a transferência dos navios e a contratação da equipagem necessária para o efeito. Tal mudança contrariava, porém, o Direito marítimo internacional e podia ter efeitos negativos a nível da política de defesa dos Aliados, porque a autorização implicaria aceitar como válido o acto de subtrair ao pavilhão do Eixo navios que poderiam continuar a navegar em benefício do III Reich, mas agora sob a ban-deira de um país terceiro. O assunto não teria, por isso, seguimento.

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inimigo, e também os artigos 55.º e 56.º da Convenção de Londres de 1909 sobre o direito de guerra marítima, pelo que a compra ficou sem efeito.

O Governo português, estando também interessado em adquirir os navios, e além destes também o Wagogo e o Wameru, estacionados no porto do Lobito, bem como outros aportados em Angola e Moçambique, entendeu não apoiar a pretensão turca.

Cais de Dona Paula.

Na verdade, desde o Verão de 1941 que havia junto de círculos empresariais de Lisboa movimentações no sentido da aquisição de algumas embarcações, concretamente o Aller, o Dortmund, o Wameru, o Wagogo e o Rufidgi, o que se con-sumou em 1942. Mais tarde seria a vez do Luise Borhofen.

Numa mesma lógica, os britânicos ensaiaram algu-ma negociação com as autoridades portuguesas no sen-tido de fazer transferir para pavilhão português os navios esta cio nados em Mormugão. Mas a verdade é que a

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oficialização de tal processo diplomático foi sendo sistema-ticamente adiada. A presença das embarcações acabou por tornar -se habitual para a população local e lentamente uma relação amistosa desenvolveu -se com os naturais.

Um pequeno incidente com o Anfora, cujo comandante, num gesto inopinado, alegadamente se decidira a hastear a bandeira nipónica, rapidamente se sanou com a firme intervenção das autoridades portuguesas. E a paz voltou a reinar entre os embarcados e os de terra. Jogava -se futebol entre as equipagens e os habitantes locais, e um incipien-te comércio de víveres foi -se desenvolvendo. Os marujos italianos do Anfora tinham já uma pequena horta a bordo e uma improvisada pocilga por sua conta, para se auto- -abastecerem do essencial. Mas muitas das aquisições eram feitas a crédito, com base na promessa de pagamento, logo que possível. Com muito tempo de ociosidade, alguns dos membros da tripulação arranjariam, entretanto, pequenas ocupações em terra, outros aproveitavam para nadar na praia de Dona Paula, ali nas imediações.

As suas dificuldades financeiras eram patentes9. A per-manência dos barcos era suportada em parte pelo Tesouro português. Mas os próprios países de bandeira ajudavam os seus navios com transferências bancárias. O Anfora recebia de Itália uma subvenção para custear a subsistência

9 No seu relatório de 19 de Março de 1942, o cônsul em Goa informa Nova Deli de que, tendo representado, de viva voz, ao governador a necessidade de uma intervenção mais directa no que respeita ao perigo que poderia implicar a presença de tais alemães, nomeada-mente ante a liberdade de movimentos de que desfrutavam, deu conta de que aquele alto responsável português não estava muito predisposto a efectuar uma grande intervenção, até por ser sensível às dificuldades económicas dos membros das equipagens.