Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
LUCIANA RIBEIRO DE SOUZA
O ESTABELECIMENTO DA CADEIA REFERENCIAL EM PORTUGUÊS:
UMA ANÁLISE EM DIFERENTES SEQUÊNCIAS TEXTUAIS
São Paulo
2013
0
LUCIANA RIBEIRO DE SOUZA
O ESTABELECIMENTO DA CADEIA REFERENCIAL EM PORTUGUÊS:
UMA ANÁLISE EM DIFERENTES SEQUÊNCIAS TEXTUAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena de Moura Neves
São Paulo
2013
1
S729a Souza, Luciana Ribeiro de.
O estabelecimento da cadeia referencial em português:
uma análise em diferentes sequências textuais / Luciana
Ribeiro de Souza. – 2013.
172 f.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2013.
Referências bibliográficas: f. 166-172.
1. Funcionalismo. 2. Referenciação. 3. Cadeia referencial.
4. Sequências textuais. I. Título.
CDD 410
2
LUCIANA RIBEIRO DE SOUZA
O ESTABELECIMENTO DA CADEIA REFERENCIAL EM PORTUGUÊS:
UMA ANÁLISE EM DIFERENTES SEQUÊNCIAS TEXTUAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Letras.
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Maria Helena de Moura Neves - Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Profa. Dra. Vanda Maria da Silva Elias
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista
Universidade Presbiteriana Mackenzie
3
Quando eu quero falar com Deus eu apenas falo
Quando eu quero falar com Deus às vezes me calo
É tão lindo falar com Deus em qualquer momento
Deus que vê uma folha que cai e é levada ao vento
Não existe onde ele não esteja. Ele pode escutar nossa voz
Deus no céu, Deus na terra, aonde seja, está dentro de nós
Deus nos ouve, nos mostra o caminho que a Ele conduz
Deus é pai, Deus é luz
Deus nos fala que a ele se chega seguindo Jesus
Roberto Carlos
4
AGRADECIMENTOS
A DEUS, meu melhor amigo, pela presença constante e absolutamente necessária. Se não
fosse por Ele, eu não teria vencido esta batalha.
Aos meus pais, Leslie e Maria, que me ensinaram, com simplicidade e humildade, a ser uma
pessoa correta, forte e feliz. Eles são a minha joia rara, raríssima.
Aos meus irmãos, Leslie, Anayale e Reiller, por fazerem parte da minha vida e por torná-la
mais agradável a cada dia.
Às minhas crianças, Marina, Miguel, André, Manuela e John, pela pureza infantil que me faz
sorrir até nas adversidades.
Aos colegas e professores que compartilharam comigo a experiência do curso de Mestrado,
contribuindo para a construção de mais algumas páginas da minha história.
À Profa. Dra. Elaine Cristina Prado dos Santos, pela confiança, incentivo e amizade, mas
principalmente por acreditar na minha capacidade.
À Profa. Dra. Silvia Etel Gutierrez Bottaro, por ser uma amiga que, sempre que necessário,
contribui carinhosamente para minha formação.
À Profa. Dra. Elisa Guimarães Pinto, pelas sabias palavras de cada encontro, palavras que
tranquilizam o coração, alegram a alma e acenam com a possibilidade de vitória.
À Profa. Dra. Marisa Philbert Lajolo, que participou ativamente desse processo chamado
Mestrado, pela coerência, pelos ensinamentos, pelas oportunidades e pelas conversas que
tanto me engrandeceram como pessoa e como profissional.
Aos professores que gentilmente aceitaram compor a banca examinadora desta Dissertação:
Profa. Dra. Vanda Maria da Silva Elias, pelas contribuições valiosas à pesquisa, pela
disponibilidade e pela atenção para comigo.
Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista, um exemplo de profissionalismo, de educação e de
generosidade. Por tudo isso, ele é responsável pelo meu desejo cada vez maior de desvendar
os mistérios da língua portuguesa.
À FAPESP pelo apoio à pesquisa (Processo nº 2011- 14555/9) e, principalmente, por tornar
possível a realização de um sonho: meu título de Mestre.
5
Agradeço especialmente à minha orientadora profa. Dra.
Maria Helena de Moura Neves,
Amiga presente, que
Resolveu, assim de repente,
Investir em
Alguém que nada sabia: eu.
Heroína do funcionalismo brasileiro,
Ela tornou possível meu crescimento pessoal e profissional.
Levantou questões que eu nem imaginava que existissem.
Educou essa novata em gramática funcional.
Nunca deixou de contribuir e mostrar o caminho correto
A ser trilhado, para que eu pudesse alcançar um resultado consistente.
Dessa forma, hoje
Eu estou aqui, muito feliz, defendendo
Meu título de Mestre. Estou
Orgulhosa pelas conquistas e pelos novos conhecimentos adquiridos.
Uma história cheia de desafios, mas também cheia de
Resultados positivos e
Amadurecimento. Enfim, uma história que merece ser contada e recontada
Neste e noutros tempos.
E a
Você, querida professora Maria Helena,
Eu agradeço e me despeço
Sem saber quando vamos nos encontrar novamente, mas com a certeza de que nunca a esquecerei.
6
Se eu fosse muda, e também não pudesse
escrever, e me perguntassem a que língua eu
queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso
e belo. Mas como não nasci muda e pude
escrever, tornou-se absolutamente claro para
mim que eu queria mesmo era escrever em
português. Eu até queria não ter aprendido
outras línguas: só para que a minha abordagem
do português fosse virgem e límpida.
Clarice Lispector
7
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de analisar, do ponto de vista das relações enunciativas, o
estabelecimento da cadeia referencial em diferentes sequências textuais (narrativas, descritivas e
dissertativas) do gênero romance, no Brasil. Numa perspectiva funcionalista (HALLIDAY 1964;
1973; 1978; 1989; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004; DIK, 1997; NEVES, 2004, 2007) que
aproveita desenvolvimentos da linguística do texto e da linguística cognitiva, a proposta se dirige
à língua em função, numa visão discursivo-textual da gramática. Na realização da pesquisa,
instituiu-se como campo central da análise a cadeia referencial endofórica, vista sob o ângulo da
enunciação, com suas categorias triádicas. Nessa proposta, objetivou-se, especificamente, a
verificação e a interpretação: dos diferentes preenchimentos fóricos das casas em que se opera a
referenciação textual (sintagma nominal, pronome, zero); da relação entre o modo de
preenchimento das casas e o modo de criação e manutenção da rede referencial; do jogo
enuncivo-enunciativo que se monta nessa rede, segundo as sequências textuais selecionadas em
romances de diferentes escolas literárias. A busca de verificação dirigiu-se para: nas sequências
narrativas, o tipo de preenchimento fórico usado para referência às personagens e, em relação a
isso, o grau de identificação dessas personagens, em correlação com esse tipo de preenchimento;
nas sequências descritivas, a introdução e a manutenção dos elementos fóricos que contribuem
para construção espacial das cenas em que se operam as descrições; nas sequências dissertativas, a
introdução e a manutenção dos elementos fóricos usados na construção do ponto de vista do
enunciador. Os resultados dessas análises, dentre outras coisas, mostram (i) nas sequências
narrativas: a relevância dos sintagmas nominais na composição descritiva das personagens; o uso
não canônico do pronome pessoal que apareceu, mais de uma vez, introduzindo referente; (ii) nas
sequências descritivas: uma proporção muito maior de sintagmas nominais e, em contrapartida,
um número pouco significativo de pronome ou da referenciação textual zero; a introdução de
novos referentes associada à descrição do espaço; (iii) nas sequências dissertativas: em que, na
maioria das vezes, o autor introduz sua opinião, uma contribuição especial do conhecimento do
contexto de situação para a construção do sentido do texto. Dentro da proposta aqui instituída,
conclui-se que qualquer que seja a sequência textual, nela há elementos que constituem uma rede
referencial, pela qual entram na constituição da coesão e de todo o sentido do enunciado.
Entretanto, ficou evidente que diferentes sequências textuais e, especialmente, diferentes inserções
das obras e dos autores em diferentes contextos de situação condicionam conduções específicas
na montagem das cadeias referenciais textuais.
Palavras-chave: funcionalismo; referenciação; cadeia referencial; sequências textuais.
8
ABSTRACT
This dissertation analyzes, from the viewpoint of enunciative relations, referential chains in
different textual sequences excerpts (narrative, descriptive and argumentative) of Brazilian
novels. Anchored in functionalism (HALLIDAY 1964; 1973; 1978; 1989; HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004; DIK, 1997; NEVES, 2004, 2007), related with text linguistics and
cognitive linguistics, this proposal analyzes language in function – a textual-discursive view of
grammar. In the realization of this research, it was established as central to the analysis the
chain of endophoric reference and its triadic categories. In this proposal, it was aimed at
verifying and interpreting: the different fillers for referential slots in the text (noun phrases,
pronouns, ø); the relation between the filler of the referential slots and the creation and
maintenance of the referential network; the interplay of enuncive-enunciative categories set up
in this network, according to selected textual sequences from different novels of different
literary periods. The verification had its focus on: in narrative sequences, the type of phoric
filler used in reference to the characters; in descriptive sequences, the introduction and
maintenance of phoric elements on the spatial construction of the descripted scenario. The
results of the analysis showed, among other things, (i) in narrative sequences: the relevance of
noun phrases in creating descriptive traits of characters; the non-canonical use of personal
pronouns, which were used to introduce referents; (ii) in descriptive sequences: a great number
of noun phrases and a very low number of pronominal forms and zeroes; the introduction of
new referents associated with to the description of space; (iii) in argumentative sequences: in
which, most of the times, the author opines, there is a special contribution . It was concluded
that in any textual sequence there are elements that construct the referential chain, through
which these elements are made part of the construction of the cohesive meaning of the
utterance. However, it became evident that in different textual sequences and, specially,
different novels from different literary periods are a conditioning factor to the construal and
maintenance of referential chain in the text.
Key-words: functionalism; reference; referential chain; textual sequences.
9
RESUMEN
Este trabajo tiene el objetivo de analizar, desde el punto de vista de las relaciones enunciativas, el
establecimiento de la cadena referencial en diferentes secuencias textuales (narrativa, descriptiva y
disertativa) del género romance, en Brasil. Desde una perspectiva funcionalista (HALLIDAY 1964;
1973; 1978; 1989; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004; DIK, 1997; NEVES, 2004, 2007) la cual
se vale del desarrollo de la lingüística de texto y de la lingüística cognitiva, la propuesta se dirige a
la lengua en función, en una visión discursiva-textual de la gramática. En la realización de esta
investigación, como campo central de análisis se instituyó la cadena referencial endofórica, vista
bajo el ángulo de la enunciación, con sus categorías tríadicas. En esta propuesta, se objetivó,
específicamente, la verificación y la interpretación: de las diferentes realizaciones fóricas de las
casas en que se opera la referencia textual (sintagma nominal, pronombre, cero); de la relación entre
el modo de realización de las casas y el modo de la creación y mantenimiento de la red referencial;
del juego enuncive-enunciativo que se arma en esta red, según las secuencias textuales
seleccionadas en romances de diferentes escuelas literarias. La búsqueda de verificación se dirigió
hacia: en las secuencias narrativas, el tipo de realización fórica usada para la referencia de los
personajes y, en relación a esto, el grado de identificación de estos personajes, en correlación con
este tipo de realización; en las secuencias descriptivas, la introducción y El mantenimiento de los
elementos fóricos que contribuyen en la construcción espacial de las escenas en que se operan las
descripciones; en las secuencias disertativas, la introducción y el mantenimiento de los elementos
fóricos usados en la construcción del punto de vista del enunciador. Los resultados de estos análisis,
entre otras cosas, muestran (i) en las secuencias narrativas: la relevancia de los sintagmas nominales
en la composición descriptiva de los personajes; el uso no-canónico del pronombre personal que
apareció, más de una vez, introduciendo al referente; (ii) en las secuencias descriptivas: una
proporción mucho mayor de sintagmas nominales y, por otro lado, un número poco significativo del
pronombre o de la referenciación textual cero; la introducción de nuevos referentes asociada con la
descripción del espacio; (iii) en las secuencias disertativas: en que en la mayoría de las veces el
autor introduce su opinión, una contribución especial del conocimiento del contexto de la situación
para la construcción del significado del texto. Dentro de la propuesta aquí establecida, se concluye
que cualquiera que sea la secuencia textuale, en esta hay elementos que constituyen una red
referencial por la cual entran en la constitución de la cohesión y de todo el sentido del enunciado.
Sin embargo, se hizo evidente que diferentes secuencias textuales y, especialmente, diferentes
inserciones de las obras y de los autores en diferentes contextos de situación condicionan
conducciones específicas en el montaje de las cadenas de referencia textuales.
Palabras-clave: funcionalismo; referencia; cadena referencial; secuencias textuales.
10
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance Senhora .............................
78
Quadro 2: Menção / tipo fórico – romance Senhora (N – nome próprio; S –
sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp – (determinante)
pronome possessivo; – zero) ............................................................
78
Quadro 3: Romance Senhora – Grau de identificação correspondente ao tipo
fórico adotado em cada menção ...........................................................
79
Quadro 4: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance O seminarista ....................
82
Quadro 5: Menção / tipo fórico – romance O seminarista (N – nome próprio;
S – sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp – (determinante)
pronome possessivo; – zero) ............................................................
82
Quadro 6: Romance O seminarista – Grau de identificação correspondente ao
tipo fórico adotado em cada menção ....................................................
83
Quadro 7: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance A carne ..............................
86
Quadro 8: Menção / tipo fórico – romance A carne (N – nome próprio; S –
sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp – (determinante)
pronome possessivo; – zero) ............................................................
87
Quadro 9: Romance A carne – Grau de identificação correspondente ao tipo
fórico adotado em cada menção ...........................................................
87
Quadro 10: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance O cortiço ............................
91
Quadro 11: Menção / tipo fórico – romance O cortiço (N – nome próprio; S –
sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp – (determinante)
pronome possessivo; – zero) ............................................................
91
Quadro 12: Romance O cortiço – Grau de identificação correspondente ao tipo
fórico adotado em cada menção ...........................................................
092
11
Quadro 13: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance Amar, verbo intransitivo ...
95
Quadro 14: Menção / tipo fórico – romance Amar, verbo intransitivo (N – nome
próprio; S – sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp –
(determinante) pronome possessivo; – zero) ...................................
96
Quadro 15: Romance Amar, verbo intransitivo – Grau de identificação
correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção ......................
96
Quadro 16: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance Alma .................................
99
Quadro 17: Menção / tipo fórico – romance Alma (N – nome próprio; S –
sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp – (determinante)
pronome possessivo; – zero) ............................................................
100
Quadro 18: Romance Alma – Grau de identificação correspondente ao tipo fórico
adotado em cada menção ......................................................................
100
Quadro 19: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance O filho eterno ....................
104
Quadro 20: Menção / tipo fórico – romance O filho eterno (N – nome próprio;
S – sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp – (determinante)
pronome possessivo; - zero) .............................................................
104
Quadro 21: Romance O filho eterno – Grau de identificação correspondente ao
tipo fórico adotado em cada menção ....................................................
105
Quadro 22: Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na
manutenção das personagens do romance Vozes do deserto ................
108
Quadro 23: Menção / tipo fórico – romance Vozes do deserto (N – nome próprio;
S – sintagma nominal; P – pronome pessoal; Pp – (determinante)
pronome possessivo; - zero) .............................................................
109
Quadro 24: Romance Vozes do deserto – Grau de identificação correspondente
ao tipo fórico adotado em cada menção ...............................................
109
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 14
1. AS BASES TEÓRICAS ....................................................................................... 20
1.1 Princípios funcionalista gerais ............................................................................ 20
1.2 A perspectiva sociointeracionista: interação e contexto ................................... 23
1.2.1 A relação texto-contexto e as funções da linguagem ......................................... 23
1.3 A linguística do texto ........................................................................................... 27
1.4 Os aportes cognitivistas ....................................................................................... 29
1.5 A enunciação e suas categorias ........................................................................... 35
1.5.1 Teoria da enunciação ........................................................................................... 35
1.5.2 As categorias da enunciação ............................................................................... 36
2. O PROCESSO ENUNCIATIVO-ENUNCIVO DA REFERENCIAÇÃO ..... 39
2.1 A referenciação e a interação verbal .................................................................. 39
2.2 A referenciação e a construção textual .............................................................. 40
2.3 A referenciação e a coesão textual ...................................................................... 45
3. FUNDAMENTOS OPERACIONAIS DE ANÁLISE ...................................... 49
3.1 O estabelecimento da cadeia referencial ............................................................ 49
3.2 A categorização e a recategorização .................................................................. 51
3.3 Os modos de preenchimento das casas referenciais ......................................... 52
3.3.1 Sintagma nominal ................................................................................................ 53
3.3.2 Pronomes .............................................................................................................. 54
3.3.3 O papel referencial do artigo definido e o artigo indefinido ............................ 58
4. A PERTINÊNCIA DA NOÇÃO DE GÊNERO DISCURSIVO
E SEQUÊNCIA TEXTUAL NO ESTABELECIMENTO DA CADEIA
REFERENCIAL .................................................................................................. 60
4.1 Os gêneros discursivos ......................................................................................... 60
13
4.1.1 O gênero em uma perspectiva interacionista .................................................... 61
4.1.2 O gênero em uma perspectiva funcionalista: texto e contexto ........................ 66
4.2 As sequências textuais ......................................................................................... 69
4.3 O gênero romance ................................................................................................ 72
5. A ANÁLISE DAS SEQUÊNCIAS TEXTUAIS ................................................ 75
5.1 As sequências narrativas ..................................................................................... 76
5.1.1 A análise das sequências narrativas ................................................................... 76
5.1.2 A referenciação e o grau de identificação das personagens em sequências
narrativas ..............................................................................................................
5.1.2.1 Um exercício de análise da referenciação ligada ao conjunto dos objetos
112
de discurso em geral em sequências narrativas ............................................... 115
5.2 As sequências descritivas .................................................................................... 119
5.2.1 A análise das sequências descritivas .................................................................. 119
5.2.2 A referenciação e a construção espacial de cenas ............................................. 139
5.3 As sequências dissertativas ................................................................................. 142
5.3.1 A análise das sequências dissertativas ............................................................... 142
5.3.2 A referenciação e a construção de pontos de vista ............................................ 156
5.4 Uma recuperação das bases teóricas de direcionamento das análises ............ 158
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 166
14
INTRODUÇÃO
A interação verbal compreende no mínimo dois participantes. Cada interlocutor da
situação discursiva, ao construir o seu enunciado, deposita nele suas intenções e seus
propósitos. Para que o ouvinte/leitor consiga interpretar satisfatoriamente o texto produzido
pelo falante/autor é necessário que haja em sua organização alguns mecanismos que
contribuam para que o texto de fato se constitua como texto, especialmente a coesão
(componente interno do texto, que compreende a referenciação textual). A relação coesiva
que se dá entre os elementos que compõem o texto é resultado das intenções do falante, que,
ao construir o enunciado, cria uma cadeia referencial com o propósito de ser compreendido
pelo ouvinte/leitor.
Este trabalho se propõe analisar, do ponto de vista das relações enunciativas e de sua
expressão, o estabelecimento da cadeia referencial em português. Pretende-se observar os
diferentes modos de preenchimento das casas referenciais e interpretá-los semanticamente.
Para verificar a importância da cadeia referencial na organização do texto, objetiva-se
a observação de diferentes sequências textuais (narrativa, descritiva e dissertativa) de
romances brasileiros de diferentes escolas literárias. Não se pretende realizar um estudo
referente às orientações estéticas dos movimentos literários, mas sim realizar uma avaliação
que encontre diferenciações em seu contexto de produção – contexto de situação e contexto
de cultura – (HALLIDAY, 1964; 1973; 1978; 1989; e HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004;
EGGINS, 2010; NEVES, 2010). Por meio de uma incursão nos diferentes tipos textuais
desses romances, objetivam-se, especificamente, as seguintes verificações:
a) a verificação quantitativa e qualitativa dos diferentes esquemas de preenchimento
gramatical (sintagma nominal, ou pronome, ou zero);
b) a verificação da referenciação endofórica expressa por pronomes pessoais de terceira
pessoa (incluindo-se as relações expressas pelos possessivos), por demonstrativos (em tríade)
e por advérbios pronominais (em tríade correlata);
c) a busca de uma interpretação semântica e pragmática da relação que existe entre o modo de
preenchimento dessas casas e os diversos processos intervenientes no modo de criação e
manutenção da rede referencial textual (acessibilidade e identificabilidade, fluxo informativo
e distribuição de informação, correferenciação e estabelecimento da cadeia referencial);
d) a verificação de alguns aspectos do jogo enunciativo-enuncivo que se monta na cadeia
referencial, segundo a diferença de sequências textuais (narrativa, descritiva, dissertativa) em
algumas obras do gênero romance, no Brasil.
15
e) a interpretação discursiva da criação de efeitos retóricos e seus desdobramentos, ligados à
inserção de novas rotulações, ou à manutenção das categorizações na cadeia referencial.
Fornecem suporte geral para o cumprimento desses objetivos as bases teóricas
funcionalistas. Trata-se de uma teoria que observa a língua em funcionamento, entendendo-se
a gramática como uma integração dos componentes sintático, semântico e pragmático. As
análises se apoiam no modelo teórico de interação verbal (DIK, 1997), relacionado ao modelo
sistêmico funcional (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), bem como implica um modelo
semântico discursivo da referenciação (LYONS 1979; GIVÓN 1984; MONDADA, 2003),
que encontra aparato para o estudo no português do Brasil em obras como Koch, 2011; Koch;
Marcuschi, 2006; Castilho, 2010; Neves, 2007; 2008; Roncarati, 2010.
Nessa perspectiva, a teoria funcionalista aproveita desenvolvimentos da Linguística do
texto, sobretudo no que diz respeito aos mecanismos de coesão que é justamente onde se
abriga o estudo da referenciação textual (HALLIDAY; HASAN, 1976; BEAUGRANDE;
DRESSLER, 1996; KOCH; ELIAS, 2012; FÁVERO; KOCH, 2012; KOCH, 2010; 2011;
MARCUSCHI, 1983).
Faz-se necessário também um auxílio cognitivista que sustente a avaliação dos
deslizamentos das formas em uso, pois a consideração da referência, como operação mental
que é, tem como orientação natural uma angulação cognitivista (DIJK, 1999, 2012; LAKOFF;
JOHNSON, 2009; ABREU, 2010; MARTELOTTA; PALOMARES, 2009; MIRANDA;
SALOMÃO, 2010; KOCH; TRAVAGLIA, 2002, 2008; MARCUSCHI, 2007).
Embora o foco de análise deste trabalho seja a referenciação textual, o ângulo
condicionante é a enunciação (BENVENISTE, 2005; FIORIN, 1999; FLORES et al, 2011;
NEVES, 2007, 2011), à qual se prende, funcionalmente e no centro, a categoria pessoa,
decorrendo dela as categorias espaço e tempo, e na base, a foricidade, que inclui a dêixis.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, partiu-se de uma primeira etapa em que se
procedeu ao levantamento bibliográfico e às primeiras leituras das obras que compõem o
suporte teórico deste trabalho.
Paralelamente ao levantamento e aos estudos das obras que compõem o referencial
teórico, realizou-se uma incursão na literatura brasileira, a fim de compor o córpus de análise.
Para não multiplicar variáveis, fixou-se a seleção do córpus no gênero romance, dentro do
qual foram selecionadas 8 obras (2 do Romantismo, 2 do Realismo, 2 do Modernismo e 2 da
Contemporaneidade).
Antes de selecionar as obras, houve a necessidade de pesquisar cada movimento
literário. Embora essa pesquisa não integre o texto deste trabalho, ela contribuiu para que se
16
pudesse escolher autores e obras significativos em suas respectivas escolas literárias. A partir
dessa pesquisa, foram selecionados os seguintes romances:
Romantismo – Senhora, de José de Alencar, 1985 (publicado originariamente
em 1875), e O Seminarista, de Bernardo Guimarães, 1990 (publicado
originariamente em 1872).
Realismo – A carne, de Júlio Ribeiro, 1996 (publicado originariamente em
1888), e O cortiço, de Aluísio Azevedo, 1988 (publicado originariamente em
1890).
Modernismo – Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, 2008
(publicado originariamente em 1927), e Alma1, de Oswald de Andrade, 1978
(publicado originariamente em 1922).
Contemporaneidade – O filho eterno, de Cristovão Tezza, 2010 (1ª edição
publicada em 2007) e Vozes do Deserto, de Nélida Piñon, 2006 (1ª edição
publicada em 2004).
Uma vez escolhidas as obras, partiu-se para a definição dos excertos, que foram
selecionados a partir de leitura prévia realizada com o objetivo de escolher trechos que
servissem aos propósitos da análise: sequências narrativas2, descritivas e dissertativas.
Dada a dificuldade em selecionar tipos textuais puros, estabeleceu-se o princípio de
que todas as sequências poderiam ser híbridas, independentemente da extensão ou de haver ou
não a predominância de um tipo textual3. Os trechos híbridos foram mantidos na transcrição
dos excertos, para que as sequências não perdessem a totalidade e o sentido.
Para análise das narrativas foram selecionadas oito sequências (uma de cada obra).
Partiu-se do fato de que em um romance, em geral, as personagens são os elementos a partir
dos quais e em torno dos quais a história acontece. Por essa razão, nessas sequências, o
objetivo de análise do preenchimento fórico foi, especificamente, as personagens, e o campo
dessa análise foi definido como o início de cada romance, especificamente a primeira página
de cada uma das obras. Para tanto, foram cumpridas as seguintes etapas:
a) Identificaram-se as personagens que participam de cada sequência.
b) Verificou-se qual o tipo de preenchimento fórico adotado para introduzi-las ou
recuperá-las (sintagma nominal, pronome pessoal ou zero). Quantificaram-se os sintagmas 1 Este romance faz parte da trilogia reunida no romance Os condenados, de Oswald de Andrade, 1978.
2 O primeiro cuidado foi não contemplar na análise, os diálogos, que, ao mesmo tempo que compõem a
narrativa, distinguem-se fundamentalmente dela quanto à organização. 3 Em grande parte dos trabalhos para o português, os termos tipo textual e sequência textual são usados
indiferentemente (MARCUSCHI, 2008). É o que ocorrerá neste trabalho.
17
nominais compostos por Det. + Nome e Det. + Nome + Mod., nos quais os determinantes
estão representados por pronomes demonstrativos, possessivos ou artigos definidos e
indefinidos4. As menções com nome próprio foram contabilizadas especificamente, dada a
diferente natureza de referenciação, conforme explicitado em Neves (2011), bem como foram
contabilizadas especificamente as menções por determinantes possessivos, pois estes
expressam uma relação bipessoal (Neves, 2011: 471).
c) Verificou-se o grau de identificação das personagens, com apoio em Neves (não
publicado):
grau máximo de identificação – nome próprio;
grau intermediário de identificação – sintagma nominal com núcleo
composto por substantivo comum;
grau baixo de identificação – pronome pessoal e determinante pronome
possessivo;
grau zero de identificação – casa fórica vazia ( ).
O que se considera ―grau máximo de identificação‖ (o do ―nome próprio‖) diz respeito
não à possibilidade de obter-se uma soma significativa de informações sobre a personagem,
mas apenas à possibilidade de reconhecer-se como instaurada inequivocamente uma
personagem, com ―nome e sobrenome‖ (mesmo que não ocorra o ―sobrenome‖), ou seja, uma
pessoa única no universo discursivo criado.
Na análise de cada sequência, procedeu-se da seguinte maneira:
Identificaram-se as personagens e atribuiu-se a cada uma delas um índice
subscrito.
Enumeraram-se as linhas da sequência, para auxiliar no reconhecimento de
algumas indicações referentes ao tipo de preenchimento fórico e, por
conseguinte, ao grau de identificação de cada personagem.
Apresentaram-se os tipos fóricos usados para introduzir e recuperar as
personagens e as respectivas linhas em que eles foram usados.
Dispuseram-se em quadros os tipos fóricos usados para introduzir e recuperar
as personagens: primeiro, contabilizou-se quantas vezes a personagem foi
referida por um determinado tipo fórico; segundo, especificaram-se esses tipos
fóricos, de acordo com as referências feitas às personagens (sendo a primeira
referência correspondente à introdução e as outras referências correspondentes
4 Estes últimos, como explicitado no subitem 3. 3. 3 O papel referencial do artigo definido e o artigo
indefinido, nunca recuperam, mas podem introduzir referentes textuais.
18
aos tipos usados na manutenção das personagens); terceiro, determinou-se o
grau de identificação correspondente a cada tipo fórico.
O recurso de apresentar os dados em quadros teve como propósito quantificar e
especificar as informações coletadas antes de serem analisadas, já que a frequência é um dado
que pode ter significação no uso da linguagem.
Como a análise das sequências narrativas se fixou na verificação do grau de
identificação das personagens, observaram-se apenas os elementos fóricos relacionados a
esses objetos de discurso. No entanto, na cadeia referencial de uma sequência textual há
outros elementos fóricos que se relacionam referencialmente. Para amostra dessa questão em
uma sequência narrativa (a do romance Amar, verbo intransitivo) procedeu-se à análise das
demais referenciações nominais, exatamente nessa sequência constam diálogos, que não estão
sendo analisados neste trabalho, mas que permitem verificar que eles também podem dirigir a
atenção para elementos do texto. Nessa nova analise, pôde-se verificar, então, como se
estabelece a introdução e a manutenção dos elementos fóricos, considerando-se não só as
personagens, como também os outros referentes textuais que compõem a cadeia referencial do
texto.
A análise das sequências descritivas não resultou em quantificação ou especificação
(em quadros) dos elementos fóricos, porque o propósito de análise não envolvia essas
questões. Na seleção das oito sequências descritivas (uma de cada obra) ocorreu que algumas
se configuraram em extensão maior (a do romance Senhora, por exemplo) e outras em
extensão menor (por exemplo, a do romance Amar, verbo intransitivo), o que se considera que
não tenha nenhuma importância para a análise. Nessas sequências, o objetivo de análise do
preenchimento fórico foi, especificamente, a construção espacial das cenas.
Na análise das oito sequências dissertativas (uma de cada obra), assim como nas
sequências descritivas, os elementos fóricos também não foram quantificados ou
especificados em quadros, pelo mesmo motivo. Na busca dessas sequências, verificou-se que,
na maioria dos romances selecionados, elas são de extensão muito pequena e, como se
considera que não é a extensão da sequência que garante uma análise satisfatória dos
preenchimentos fóricos, decidiu-se pela consideração de que um mínimo de cinco linhas para
o excerto era suficiente. Nessas sequências, o objetivo de análise do preenchimento fórico foi,
especificamente, a construção de pontos de vista.
O trabalho paralelo ao levantamento das sequências textuais e às análises teve
continuidade com a leitura das obras que fundamentam a pesquisa, e com o desenvolvimento
efetivo dos textos que compõem este trabalho.
19
A etapa de produção referente ao suporte teórico comporta uma visão das seguintes
questões: princípios funcionalistas gerais; perspectiva sociointeracionista, que abrange as
noções de contexto de cultura e contexto de situação; a linguística do texto; os aportes
cognitivistas; mecanismos de coesão; a enunciação e suas categorias; estabelecimento da
cadeia referencial; categorização e recategorização; modos de preenchimento fórico; a noção
de gênero discursivo.
O resultado das pesquisas e das análises desenvolvidas está disposto da seguinte forma
neste trabalho:
1. As bases teóricas – Nesta parte, vêm tratados: a teoria funcionalista da perspectiva
sociointeracionista (em que se discorre sobre o processo de interação verbal; o contexto de
situação e o contexto de cultura, a relação texto/contexto e os papéis na interlocução); os
aportes teóricos da linguística do texto; o suporte cognitivista; a enunciação e suas categorias.
2. O processo enunciativo-enuncivo da referenciação – Esta parte é dedicada ao
processo de referenciação na interação verbal e na construção textual; além disso, tratam-se a
coesão textual e os mecanismos coesivos implicados na construção do enunciado.
3. Fundamentos operacionais de análise – Nesta parte, trata-se o estabelecimento da
cadeia referencial, com atenção às estratégias de referenciação implicadas em sua construção
e aos diferentes modos de preenchimento fórico.
4. A pertinência da noção de gênero discursivo e sequência textual no
estabelecimento da cadeia referencial – Nesta parte, trata-se a noção de gênero, que
compreende a perspectiva interacionista e a perspectiva funcionalista, e, além disso, tratam-se
as sequências textuais e o gênero romance.
5. A análise das sequências textuais – Esta parte é dedicada à análise das sequências
textuais (narrativas, descritivas e dissertativas) selecionadas para o trabalho. Cada seção de
análise se encerra com conclusões.
6. Considerações finais – Esta parte diz respeito às considerações finais deste
trabalho.
7. Referências Bibliográficas – Por último, apresentam-se as fontes bibliográficas
consultadas para o desenvolvimento da pesquisa.
20
1. AS BASES TEÓRICAS
1.1 Princípios funcionalistas gerais
O desenvolvimento deste trabalho está fixado em bases teóricas funcionalistas,
portanto serão apresentados alguns pressupostos dessa teoria que contribuem à realização da
análise aqui proposta. As reflexões que seguem são resultado de consultas às obras originais,
com apoio em Neves (2004), que explicitou os conceitos de alguns dos principais
representantes dessa teoria.
Um dos principais desideratos da teoria funcionalista é estudar a língua em
funcionamento. Nessa teoria, a gramática é compreendida como uma integração dos
componentes sintático, semântico e pragmático. Assim, uma gramática funcionalista trata da
função de um elemento linguístico em enunciados reais. A noção de função, básica na teoria,
não se refere apenas aos papéis ocupados pelas classes de palavras na estrutura de uma
organização linguística maior, mas dirige-se ao papel que a linguagem desempenha na vida
dos indivíduos, servindo a certos tipos universais de demanda (HALLIDAY, 1973).
Compreende-se que uma gramática produzida sob a perspectiva funcionalista cuida da
organização gramatical considerando o processo de interação verbal, e explicando cada
elemento da língua usado pelos interlocutores por via de sua função na comunicação
linguística.
Uma língua natural é o instrumento de interação social, usado para estabelecer
relacionamentos comunicativos (DIK, 1997: 3). Em outras palavras, o autor diz que a
linguagem natural é vista como parte integrante da competência comunicativa do usuário da
língua natural. Ele acrescenta que a interação verbal constitui uma forma de atividade
cooperativa estruturada, o que em Neves (2004: 21) vem assim explicitado: é cooperativa
porque necessita de, no mínimo, dois participantes para atingir seus objetivos, e é estruturada
porque é governada por regras, normas e convenções. Para Dik (1997: 3-4), essa atividade
cooperativa necessariamente compreende dois sistemas: o primeiro inclui as regras que regem
a constituição das expressões linguísticas (regras semânticas, sintáticas, morfológicas e
fonológicas), e o segundo inclui as regras que regem os padrões de interação verbal em que
essas expressões linguísticas são usadas (regras pragmáticas).
21
Segundo Dik (1997), o usuário de uma língua natural, ao comunicar-se, faz uso de
capacidades que interagem constantemente no ato de comunicação: a capacidade epistêmica,
a capacidade lógica, a capacidade perceptual e a capacidade social. É dessa forma que o
usuário consegue produzir e interpretar as expressões linguísticas do enunciado. A partir das
reflexões desenvolvidas em Dik (1997), entende-se que a capacidade epistêmica permite
produzir, arquivar e explorar uma base de conhecimento organizado. Na capacidade lógica, o
usuário parte de seu conhecimento e, por uma dedução lógica, busca novos conhecimentos. A
capacidade perceptual permite ao falante, após reconhecer o ambiente no qual está inserido,
ter percepção para adquirir conhecimento, produzir e interpretar as expressões linguísticas
envolvidas na situação discursiva. Por meio da capacidade social, o falante consegue fazer uso
da linguagem ideal para cada situação comunicativa em que estiver envolvido.
Entende-se por aí que um enunciado não pode ser compreendido apenas pela forma,
mas por todos os elementos envolvidos no processo da enunciação. Neves (2004: 79),
explicitando Dik (1980), diz que ―a forma dos enunciados não é entendida, pois,
independentemente de sua função: uma descrição completa inclui referência ao falante, ao
ouvinte e a seus papéis e estatuto dentro da situação de interação determinada
socioculturalmente‖.
Para Halliday, desde suas obras iniciais (1973, 1978), essa multiplicidade se reflete na
organização dos aspectos internos da língua, que são responsáveis pela estrutura sintática e
semântica do enunciado. Nesse ponto de vista, a língua é um sistema funcional que mantém
lado a lado o sistêmico e o funcional. De acordo com o autor, a linguagem tem a propriedade
de transmitir e manter a ordem social, bem como de potencialmente modificá-la, e, por essa
razão a linguagem é funcional e possui componentes que permitem sua efetivação na
interação verbal. É nesse processo que se ativam as três metafunções da linguagem propostas
em Halliday (1973, 1978): função ideacional, função interpessoal e função textual.
Por meio da função ideacional, o falante e o ouvinte conseguem comunicar-se,
incorporando suas experiências de mundo, e isso inclui as experiências do mundo interno
(suas reações, cognições, percepções) e também seus atos linguísticos da fala e compreensão
(HALLIDAY, 1973: 106). Dentro dessa função, Halliday (1973, 1978) distingue duas
subfunções distintas, a experiencial e a lógica. A função experiencial está relacionada ao
‗conteúdo‘ da linguagem, ou seja, ―é a linguagem como expressão dos processos e de outros
fenômenos do mundo externo, incluindo o mundo da própria consciência do falante, o mundo
22
dos pensamentos, sentimentos e assim por diante‖5 (HALLIDAY, 1978: 48). A função lógica
é expressa por estruturas recorrentes, o que a diferencia de todas as outras funções no sistema
linguístico, as quais são expressas por estruturas não recorrentes. Segundo o autor, a função
experiencial representa as experiências do falante/ouvinte, enquanto o componente lógico
efetiva essas experiências por meio de coordenação, condição, modificação, etc. A relação
entre a função experiencial e a função lógica constitui a forma como os interlocutores
expressam suas experiências no ato de interação verbal, ou seja, as ideias e as experiências do
falante/ouvinte são organizadas de modo lógico.
A função interpessoal é ao mesmo tempo interacional e pessoal, serve como veículo de
organização e expressão do mundo interno e externo do falante. Diz Halliday (1973) que na
função interpessoal a linguagem é usada como mediadora de papéis, incluindo, por um lado,
as expressões internas e pessoais dos interlocutores e, por outro lado, as formas de interação
social com outros participantes do discurso.
A função textual, finalmente, contextualiza as unidades linguísticas, tornando o
discurso possível. De acordo com Halliday (1973: 66) ―é esse componente que permite ao
falante organizar o que está dizendo de tal forma que faça sentido no contexto e cumpra a sua
função como uma mensagem‖6. Neves (2004), explicitando Halliday (1985), afirma que a
função textual confere relevância às funções ideacional e interpessoal.
A proposta deste trabalho envolve a interação verbal vista especialmente por esse
modelo sistêmico-funcional, cuja primeira versão, apresentada – segundo Matthiessen (1989),
explicitado em Neves (2004) – em Halliday (1961), compreende a linguagem como a
capacidade de ‗significar‘ e a relaciona com o ambiente em que se instaura. Nessa concepção,
Halliday (1978) considera que texto e contexto são elementos indissociáveis, acrescentando
que a situação, ou os contextos sociais, são gerados pela cultura. Por essa explanação é
possível compreender que cultura e contexto são elementos imprescindíveis à observação da
linguagem. Um exemplo do que propõe o autor será mostrado no subitem 1.2.1,
especificamente em uma sequência de Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade.
5 As traduções deste trabalho são de responsabilidade da mestranda. Texto original: It is language as the
expression of the processes and other phenomena of the external world, including the world of the speaker‘s own
consciousness, the world of thoughts, feelings and so on. 6 Texto original: It is this component that enables the speaker to organize what he is saying in such a way that it
makes sense in the context and fulfils its function as a message.
23
1.2 A perspectiva sociointeracionista: interação e contexto
1.2.1 A relação texto-contexto e as funções da linguagem
Segundo Halliday; Matthiessen, (2004: 27), ―os textos variam de acordo com a
natureza dos contextos em que são usados‖.7 Na relação texto/contexto, o texto cria o
contexto, bem como o contexto cria o texto (HALLIDAY, 1989), ou seja, um pressupõe o
outro. Nesse propósito, a observação da linguagem se concentra não só na produção
propriamente dita do texto como também no contexto em que o texto foi produzido.
Essa atenção para a importância do contexto na produção linguística, encontrada na
teoria sistêmico-funcional de Halliday, mostra bem sua origem no contextualismo
desenvolvido por Malinowski em 1923, referido no próprio Halliday (1989). Em sua
investigação, realizada com os habitantes das Ilhas Trobiand, Malinowski observou que seria
impossível traduzir palavra por palavra um texto produzido pelos habitantes das Ilhas, bem
como compreender o sentido desse texto, sem que houvesse algumas informações relativas ao
ambiente em que eles foram produzidos. A partir dessas considerações, o autor observou a
existência e a relevância de dois contextos, o contexto de cultura e o contexto de situação, o
primeiro, relacionado ao conjunto aberto de possibilidades de uso da língua, e o segundo,
restrito à seleção que é feita dentre as opções de uso linguístico.
Explicitando Malinowski, Eggins (2010) desenvolve a noção de que a língua de um
povo só pode ser compreendida quando é colocada em seu contexto de situação. Assim, um
estudioso que se disponha a pesquisar a língua de uma sociedade que vive em condições
diferentes e possui uma cultura diferente precisa considerar, além da língua, a cultura e o
ambiente em que vive essa sociedade. Só assim conseguirá compreender os significados
expressos pela linguagem da sociedade em estudo.
Ao tratar o contexto de cultura e o contexto de situação, Malinowski identificou três
funções da linguagem, ―uma função pragmática (linguagem como forma de ação), uma
função mágica (linguagem como meio de controle do ambiente) e uma função narrativa
(linguagem como estoque de informação preservada na história)‖ (NEVES, 2010:80), mas,
segundo Eggins (2010), ele não as relacionou à organização funcional da língua.
Defendendo a correlação entre a organização da língua e as especificidades
contextuais, Halliday, McIntosh e Strevens (1964) propuseram três variáveis para descrever as
7 Texto original: Texts vary according to the nature of the contexts they are used in.
24
características que compõem o contexto de situação: o campo, o modo e a relação. Halliday
(1978) associou essas três variáveis ao registro, que, segundo o autor, ―é uma variedade
funcional da língua, os padrões de instanciação do sistema global associado a um determinado
tipo de contexto (um tipo de situação)‖8 (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004: 27).
O campo é o evento no qual o discurso funciona, incluídas a produção do discurso em
si e as intenções que são inseridas no ato discursivo (HALLIDAY,1973). Incluem-se no
campo os elementos que fazem parte da situação discursiva, como os objetos e as pessoas. A
linguagem é construída de acordo com o espaço em que as ações sociais ocorrem. Eggins
(2010), ao explicitar esse conceito de Halliday, diz que o campo é provavelmente a melhor
variável para demonstrar o registro de forma convincente, pois tem uma dimensão linguística
relevante no contexto de situação.
O modo é a função do texto no evento, incluindo não apenas o canal tomado pela
linguagem, que pode ser oral ou escrito, improvisado ou preparado, mas também o seu gênero
ou modo retórico, que pode ser didático, persuasivo, etc. (HALLIDAY; HASAN, 1976:22).
Essa variável se configura internamente, pois está relacionada à construção do texto,
incluindo-se, aí, os elementos da linguagem que são selecionados pelo falante para compor o
enunciado. Diz Halliday (1989: 144), que ―a seleção de opções nos sistemas textuais, tais
como as de tema, informação e voz, e também a seleção de padrões coesivos, tais como as de
referência, substituição e elipse, e conjunção, tende a ser determinada pelas formas simbólicas
tomadas pela interação‖9.
Ainda tratando o modo, Eggins (2010) pontua que a distância entre os interlocutores é
muito importante, pois, em uma interação face a face, em que a distância é muito pequena, a
resposta costuma ser imediata, diferentemente de uma situação em que a interação não ocorre
face a face, como, por exemplo, a relação entre escritor e leitor. Justamente pela distância
entre os interlocutores, uma opinião, uma pergunta ou qualquer outra manifestação do leitor
não será, provavelmente, conhecida pelo autor, pelo menos não imediatamente. Por aí, Eggins
(2010) explicita o contraste entre a língua falada e a língua escrita, a partir do fato que, em
situações de fala – os interlocutores estão em contato direto –, a linguagem é usada para
atingir alguma ação social em curso, enquanto em situações de escrita, em que não há a
interação face a face, a linguagem é usada para refletir algum tema.
8 Texto original: A register is a functional variety of language, the patterns of instantiation of the overall system
associated with a given type of context (a situation type). 9 Texto original: The selection of options in the textual systems, such as those of theme, information and voice,
and also the selection of cohesive patterns, those of reference, substitution and ellipsis, and conjunction, tend to
be determined by the symbolic forms taken by the interaction.
25
As diferenças linguísticas entre uma situação de fala e uma situação de escrita,
segundo Eggins (2010), não são acidentais, são consequências dos diferentes modos
situacionais. A autora aponta duas características responsáveis pelas diferenças mais
marcantes entre a fala e a escrita, sensíveis à variação de modo: o grau de complexidade
gramatical e a densidade lexical do idioma escolhido.
Neste ponto, as variáveis do contexto de situação desenvolvidas por Halliday,
McIntosh e Strevens (1964) devem ser retomadas para a indicação de que a relação entre os
interlocutores está associada aos papéis que eles representam no processo de interação
(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). Essa variável (a relação) pode manifestar-se de
diferentes maneiras, pois o sujeito vive naturalmente diversas situações discursivas em seu dia
a dia, e em cada situação assume um papel diferente (EGGINS, 2010), como, por exemplo,
um menino que, na escola, se relaciona com o seu professor e, depois, em sua casa, relaciona-
se com o verdureiro do seu bairro: ele é a mesma pessoa, mas irá assumir papéis diferentes em
cada uma das situações.
Ao tratar dessa variável, Poynton (1985) sugere dividi-la em três dimensões diferentes:
poder, contato e envolvimento afetivo. Explicitando a proposta desse autor, Eggins (2010) diz
que: a primeira dimensão pode ser de igualdade (relação entre amigos) ou de desigualdade
(relação entre patrão e empregado); a relação de contato pode ser frequente (contato, entre
conjugues, por exemplo) ou infrequente (contato ocasional entre conhecidos); o envolvimento
afetivo pode ser alto ou baixo, ficando o grau de afetividade determinado pelo envolvimento
emocional e/ou pelo comprometimento com determinada situação.
Nota-se que na variável relação também há uma diferença significativa entre uma
situação formal e uma situação informal. Eggins (2010: 101) explica que, em uma situação
informal, normalmente os sujeitos são de igual poder, encontram-se com frequência e são
afetivamente envolvidos, enquanto, em uma situação formal, os sujeitos normalmente não são
de igual poder, o contato é pouco frequente e o envolvimento afetivo é baixo.
Na concretização da linguagem as três variáveis que compõem o contexto de situação
se relacionam com o contexto de cultura, aquele ―manifestando a ligação entre o texto e seu
microcontexto‖, e este ―manifestando a ligação entre o texto e seu macrocontexto‖ (NEVES,
2010: 84).
Eggins (2010) mostra que, segundo Halliday, a concretização da linguagem acontece
em uma situação e em um tempo de uso da língua, e que apenas as três variantes do registro
(campo, modo e relação) têm um impacto direto e significativo no tipo de linguagem que
será produzido, isso porque elas estão na estrutura semiótica da linguagem.
26
Entende-se, a partir de Neves (2010), que há ―uma relação sistemática entre o texto, o
sistema linguístico e a situação‖. Nesse sentido, a situação é interpretada ―não como ambiente
material, mas como estrutura semiótica cujos elementos são significados sociais‖ (NEVES,
2010:84)
A observação de um texto, de qualquer gênero, tem de fixar-se não só nas metafunções
(ideacional, interpessoal e textual), mas também nas variáveis do registro (campo, modo e
relação), pois o estudo delas permite identificar a relação entre linguagem e contexto. Nessa
relação entre contexto e linguagem, Halliday (1978) associa cada variável do registro a uma
metafunção da linguagem. Assim, o campo corresponde à função ideacional, o modo associa-
se à função textual e a relação corresponde à função interpessoal.
A presença das metafunções ou variáveis do contexto de situação pode ser observada
nesta sequência do romance Amar, verbo intransitivo:
Fräulein fazia Maria Luísa estudar no piano pequenos Lieder populares
dum livro em quarto com figuras coloridas. Lhe dava também pecinhas de
Schubert e alegros de Haydn. Pra divertir, fez ela decorar uma transcrição
fácil da "Canção da estrela", do Tannhäuser. As crianças já cantavam em
uníssono o Tannenbaum e um cantar-de-estrada mais recente, que pretendia
ser alegre mas era pândego. Fräulein fazia a segunda voz. E falava sempre
que não deviam cantar maxixes nem foxtrotes. Não entendia aquele
sarapintado abuso da sincopa. (2008: 41)
Considerando-se que essa sequência é parte de uma obra do gênero romance, pode-se
dizer que a linguagem se realiza no ―campo‖ ficcional e, como é transmitida pelo ―modo‖
escrito, a ―relação‖ entre os interlocutores é indireta (não há interação face a face). Nesse tipo
de relação não é possível identificar, por exemplo, a distância hierárquica entre os indivíduos
implicados no processo de interação.
Por outro lado, no uso da linguagem são observados elementos relevantes do contexto
de situação, pois, como mostrou Halliday, o ambiente no qual a linguagem se instaura pode
estar manifesto no texto. No caso, os elementos usados na construção do texto relevam dois
contextos de situação: as expressões pequenos Lieder populares, pecinhas de Schubert,
alegros de Haydn, a "Canção da estrela", do Tannhäuser e o Tannenbaum trazem
elementos que remetem ao país em que nasceu e viveu por alguns anos Fräulein (uma das
personagens principais do romance), enquanto as expressões maxixes e foxtrotes remetem ao
contexto de situação brasileiro.
As expressões que revelam esses diferentes contextos são condicionadas por fatores
linguísticos e extralinguísticos do ambiente no qual a obra foi produzida (os padrões de
27
instanciação do sistema global, ou seja, o registro). As informações reveladas por essas
expressões ajudam a construir o sentido do texto.
Segundo Halliday e Hasan (1976: 23), o registro, bem como a coesão10
, são condições
que definem um texto, e nenhuma delas é suficiente no texto. Assim, um texto que apresenta
passagens coesas, mas não apresenta consistência de registro, ou vice-versa, será falho como
texto.
A principal diretriz de análise deste trabalho está fixada nessa teoria funcionalista, no
entanto, para a consistência dos resultados, faz-se necessário o apoio de outras linhas teóricas,
que trazem novos aportes à análise: a linguística do texto, que se coaduna, em certa medida,
com a teoria funcionalista, ao propor uma observação dos elementos linguístico inseridos no
contexto (o texto como um todo); o cognitivismo, que abre caminho para que se observe a
linguagem como componente integrado da interação comunicativa; e a linguística da
enunciação, que direciona para a identificação dos participantes (falante e ouvinte) do
processo interativo, bem como suas respectivas posições num espaço e num tempo
determinado. Os reflexos dessas linhas de pensamento serão verificados tanto nas análises do
item 5 como no subitem 5.4.
A seguir será apresentada mais especificamente cada uma dessas teorias que servem
de apoio a este trabalho.
1.3 A linguística do texto
A proposta desenvolvida pela linguística textual ou linguística do texto consiste em
tomar como objeto de estudo, ―não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto, por serem os
textos a forma específica de manifestação da linguagem‖ (FÁVERO, KOCH, 2012: 15).
Como dizem as autoras, a linguística textual começou a desenvolver-se, na década de 60,
exatamente com o propósito de compreender as lacunas deixadas pelas gramáticas de frases
na sua explicação de fenômenos como a correferência, a pronominalização, a seleção dos
artigos (definido ou indefinido), etc. (FÁVERO, KOCH, 2012).
Nessa perspectiva, o texto é observado não só como um todo de sentido, mas também
dentro de uma situação de interação verbal, pois, como diz Guimarães (2007: 7), essa é uma
―condição para que o texto preencha em plenitude suas funções‖.
10
A coesão, importante elemento da referenciação textual, será tratada mais especificamente no processo
enunciativo de referenciação (no item 2.3 A referenciação e a coesão textual).
28
Beaugrande e Dressler (1996) notam que a questão mais importante é a forma como os
textos funcionam em interação humana, uma vez que o texto – que é um sistema real
composto por vários elementos da língua enquanto sistema virtual – requer uma interação
entre as restrições da língua e as restrições do contexto em que ele se desenvolve
(BEAUGRANDE, 1997). É a conectividade entre os elementos que compõe a textualidade
que gera a significação do texto. De acordo com Beaugrande (1997), o princípio de
textualidade compreende ―sete modos de conectividade‖: coesão, coerência, intencionalidade,
aceitabilidade, informatividade, situacionalidade e a intertextualidade. Ainda segundo o autor,
esses modos designam as mais importantes formas de conectividade e não as fronteiras entre
textos e não textos. Dessa forma, caso falte um desses modos, o texto poderá ser considerado
como não apropriado a determinada situação, mas não deixará de ser um texto. Koch (2004)
pontua que mesmo que o texto pareça a princípio incoerente, se o interlocutor aceitar a
manifestação linguística do parceiro, ele fará o possível para atribuir-lhe um sentido.
Marcuschi (1983) sugere que se incluam nesses modos os fatores de contextualização
(os contextualizadores propriamente ditos e os prospectivos), pois são eles os responsáveis
pela ancoragem do texto em uma determinada situação discursiva, bem como, muitas vezes,
eles são decisivos para a interpretação do texto.
Interpretando essas reflexões, entende-se que os estudiosos da linguística textual ou
linguística do texto observam o texto dentro do contexto, como sugerem Halliday e Hasan
(1989). Dessa forma, torna-se possível desvendar o que está por trás das palavras e das frases
que compõem o enunciado, e torna-se possível reconhecer a função do texto no contexto, e
vice-versa.
As expressões linguísticas que são introduzidas e mantidas na construção do texto,
obviamente, não têm uma interpretação única. Essas diferentes interpretações, que, segundo
Barros (1999: 4), não se explicam apenas como ―ou isto ou aquilo‖, interessam bastante aos
estudiosos da linguagem. Nesse ponto, aproximam-se os estudos desenvolvidos pela
linguística do texto e pela gramática funcional. Neves (2007: 27) ilustra esse fato dizendo que
―gramática funcional e linguística do texto se aliam no tratamento de processos de
constituição do enunciado‖, principalmente no que diz respeito à referenciação, que tem sido
―extensivamente tratada nos trabalhos mais recentes de linguística do texto‖.
De acordo com Neves (2007), as análises da referenciação feitas sob o ponto vista da
linguística do texto e feitas sob o ponto de vista funcionalista se harmonizam fortemente. A
autora mostra que há uma categoria central do componente pragmático, que é objeto de estudo
tanto da linguística do texto como da gramática funcional, que é o Tópico (frasal ou
29
discursivo), ―o qual, juntamente com o Foco, permite que os eventos descritos no discurso e
as entidades neles envolvidas tenham sua importância comunicativa e sua relevância relativa
estabelecidas‖. (NEVES, 2007: 27)
Marcuschi (1983: 12-13) diz que a ―linguística textual trata o texto como um ato de
comunicação unificado num complexo universo de ações humanas‖ e pondera que, nesse
trabalho, deve-se ―preservar a organização linear que é o tratamento estritamente linguístico
abordado no aspecto da coesão‖, bem como ―considerar a organização reticulada ou
tentacular, não linear, portanto, dos níveis de sentido e intenções que realizam a coerência no
aspecto semântico e funções pragmáticas‖.
O desenvolvimento geral da linguística textual está se ampliando a cada dia, o que a
faz tornar-se mais substancial e interdisciplinar, e lhe permite oferecer contribuições a
disciplinas afins não-linguísticas e ser enriquecida por elas (FÁVERO; KOCH, 2012). Esse
papel interdisciplinar está no fato de que a linguística do texto, segundo Dressler (1977),
explicitado em Koch e Fávero (2012:17), comporta diversos papéis. Na divisão desses papéis:
cabe à semântica do texto explicitar o que se deve entender por significação de um texto e
como ela se constitui; cabe à pragmática do texto dizer qual é a função de um texto no
contexto (extralinguístico); cabe à sintaxe do texto o encargo de verificar como vem expressa
sintaticamente a significação de um texto. É justamente o interesse em estudar os diferentes
segmentos que envolvem a construção do texto que desperta uma dupla contribuição: a da
linguística textual às disciplinas não linguísticas, bem como a destas últimas a linguística
textual.
As contribuições que os postulados da linguística textual oferecem a este trabalho, que
analisa a referenciação textual – processo intrinsecamente relacionado ao ato comunicativo,
ou processo de interação verbal –, estão justamente no fato de a orientação desse campo de
trabalho compreender o nível dos constituintes linguísticos, o nível semântico e cognitivo e o
sistema de pressuposições e implicações no nível pragmático da produção de sentido
(MARCUSCHI, 1983).
1.4 Os aportes cognitivistas
Cognição ―é a capacidade que os seres humanos têm de processar informações
adaptando-se às mais variadas situações possíveis‖ (ABREU, 2010: 9). Segundo Marcuschi
(2007:33), a cognição ―reporta-se à natureza e aos tipos de operações mentais realizadas no
30
ato de conhecer ou de dar a conhecer‖. Compreende-se que os interlocutores, no ato da
interação verbal, organizam seus conhecimentos de forma a se fazer compreender pelo outro.
Ao dar-se a compreensão, falante e ouvinte podem tanto fornecer como receber
conhecimento.
Na visão funcionalista, como diz Marcuschi (2007), os conhecimentos do indivíduo
resultam da integração entre os aspectos da mente (geradora de conhecimento) e fontes
provedoras de informação como, por exemplo, a cultura e a sociedade. Explicitando Lakoff
(1990), o autor diz que o compromisso cognitivista surgido nos anos 70 se firmou como ―a
tentativa de observar a língua situada e essencialmente ligada à atividade humana e
comandada pela realidade sociocultural‖ (p. 65). Portanto, as informações que podem
aumentar os conhecimentos do falante/ouvinte são, como ponderam Lakoff e Johnson (2009),
decorrentes de suas próprias experiências interacionais.
O conhecimento adquirido pelo usuário da língua em suas vivências armazena-se na
memória e se organiza em unidades completas de conhecimento, as estruturas cognitivas ou
―modelos cognitivos globais‖, nomeados como frames, esquemas, planos, scripts e cenários
(KOCH; TRAVAGLIA, 2002: 63).
Estratégias e esquemas são recursos para um processamento rápido e funcional da
informação (VAN DIJK, 1999). Tomem-se como ilustração disso o frame e o script. O
primeiro é um domínio semântico ligado à palavra, composto tanto por elementos
prototípicos, como por elementos vinculados à imaginação (ABREU, 2010). Nesse modelo
global, que é o frame, o indivíduo tem uma palavra, uma situação ou um objeto como
referência, por exemplo, uma biblioteca, e, no momento em que lhe é atribuída essa palavra
são ativados em sua memória os elementos que podem compor o ambiente, tais como livros,
estantes, mesas, etc. Por outro lado, o script, ao ser ativado, permite ordenar
cronologicamente os elementos de um frame (ABREU, 2010).
Essas unidades cognitivas são constantemente usadas no processo de interação verbal,
processo em que as atividades comunicativas devem, como sugerem Beaugrande e Dressler
(1996), ser determinadas em parte pela organização da memória e em parte pela natureza do
comportamento significativo.
Tratando a capacidade de organizar e processar informações, Abreu (2010) mostra que
há dois princípios básicos da linguística cognitiva. O primeiro é o de que ―a linguagem não é
uma faculdade autônoma em relação às outras faculdades humanas como a visão, a audição, a
memória, a capacidade de pensar e de se emocionar‖ (p. 9-10). A linguagem diferencia o
homem dos outros animais, pois faculta a ele, e somente a ele, a capacidade de falar e,
31
portanto, de criar representações abstratas e ter consciência de si mesmo. O segundo é o de
que a gramática de uma língua é resultado de conceptualizações, ou seja: envolve a maneira
como o homem vê e recorta o mundo, como cria categorias, a partir de generalizações, e como
estabelece semelhanças ou analogias entre as coisas, criando metáforas, por exemplo. (p.12-
13). O homem tem a capacidade cognitiva de categorizar, o que lhe permite formar conceitos
e organizá-los em uma grande rede de conhecimentos usados no processo de interação verbal.
Lakoff e Johnson (2009) sugerem que o sistema conceptual do ser humano é em
grande medida metafórico, e a maneira como ele pensa, o que ele experimenta e o que faz a
cada dia também são, em grande medida, coisas metafóricas. A maior parte do sistema
conceptual do ser humano está estruturado metaforicamente, ou seja, a maioria dos conceitos
são entendidos parcialmente em termos de outros conceitos.
A metáfora ―impregna a vida cotidiana, não somente a linguagem, mas também o
pensamento e a ação‖11
(LAKOFF; JOHNSON, 2009: 39). De acordo com os autores, os
conceitos que regem os pensamentos do indivíduo, regem também o funcionamento
cotidiano, incluindo os aspectos mais mundanos. Completando, os autores indicam que são
esses conceitos que estruturam o que o indivíduo percebe, o modo como ele se move no
mundo e a maneira como se relaciona com outras pessoas, e, por isso, o sistema conceptual
desempenha um papel fundamental na definição das realidades cotidianas.
Na perspectiva funcionalista, entende-se que o uso da metáfora acrescenta um aspecto
emocional àquilo que é dito e isso potencializa a interação (ABREU, 2010). Afinal, como
apontam Lakoff e Johnson (2009: 41), ―a essência da metáfora é entender e experienciar um
tipo de coisa em termos de outra‖12
.
Ainda tratando da metáfora, Lakoff e Johnson (2009) argumentam que a verdade é
sempre relativa a um sistema conceptual e, como este é em grande medida de natureza
metafórica, não há, portanto, uma verdade objetiva ou absoluta. Isso não quer dizer que a
verdade deva ser vista de maneira radicalmente subjetiva, pois sempre há um meio termo em
que não se é nem totalmente objetivo nem totalmente subjetivo. Dessa forma, os autores
oferecem uma terceira alternativa para os mitos13
do objetivismo e do subjetivismo: o
experiencialismo.
11
Texto original: La metáfora impregna la vida cotidiana, no solamente el lenguaje, sino también el pensamiento
y la acción. 12
Texto original: La esencia de la metáfora es entender y experimentar un tipo de cosa en términos de otra. 13
Lakoff e Johnson ressaltam que não utilizam o termo ―mito‖ de maneira depreciativa, pois consideram que os
mitos proporcionam formas de compreender as experiências, e, assim como as metáforas, são necessários para
entender o que está acontecendo ao redor dos indivíduos. Os autores consideram os mitos de sua cultura como
verdades. (2009: 229)
32
Segundo os autores para os objetivistas, os mitos e as metáforas não podem ser
levados a sério porque não são objetivamente verdadeiros. Para eles, o mundo é constituído
por objetos que tem propriedades inerentes de qualquer outro ser; o conhecimento de mundo é
baseado em experiências; os objetos são entendidos em termos de categorias e conceptos, eles
representam uma realidade objetiva, mas o mesmo não ocorre com o ser humano, pois este
está propenso a olhar o objeto de forma subjetiva.
No subjetivismo, oposto à objetividade, o indivíduo expressa suas intenções, os
sentimentos, as emoções, etc., sendo que nenhuma dessas manifestações é puramente racional
ou objetiva. Nesse sentido, de acordo com Lakoff e Johnson (2009), o uso da metáfora é
necessário para expressar aspectos significativos de suas experiências.
Objetivismo e subjetivismo coexistem. Ser objetivo ou subjetivo depende de pessoa
para pessoa e de cultura para cultura. (LAKOFF; JOHNSON, 2009)
O experiencialismo, alternativa oferecida pelos autores, nega que a objetividade e a
subjetividade sejam as únicas possibilidades para explicar a verdade. Essa perspectiva é
centrada na metáfora que, segundo os autores, ―une a razão e a imaginação‖. Razão supõe
categorização, implicação, inferência, enquanto a imaginação, dentre outros aspectos, supõe
ver um tipo de coisa em termos de outra. (LAKOFF; JOHNSON, 2009: 235). Assim, a
verdade é relativa à compreensão, portanto não há verdade absoluta, mas, sim, uma verdade
baseada nas experiências do indivíduo e das outras pessoas com quais ele interage.
No processo de interação verbal, o indivíduo cria um texto e deposita nele suas
intenções. Essas intenções, que podem expressar um pedido de perdão, uma ordem, um
convencimento, etc., constituem os atos de fala. Para construir um texto em que fiquem claros
os propósitos do falante/autor, ele aciona seus conhecimentos, e, para compreender o texto, o
ouvinte/leitor também ativa seus conhecimentos. Van Dijk (1999: 74) nota que uma teoria
cognitiva do uso da língua constitui um componente fundamental de uma teoria integrada da
interação comunicativa. Segundo o autor, essa teoria oferece percepções ―não apenas sobre os
processos e estruturas envolvidos na produção real, compreensão, armazenamento,
reprodução e outros tipos de processamentos das sentenças e discursos, como também sobre
as formas de planejamento, execução e compreensão dos atos de fala‖ (2009:74).
Os atos de fala são as ações empreendidas por meio da linguagem em diferentes
situações comunicativas (BATISTA, 2012). Apoiado na classificação de Austin (1990), o
autor explica que ―são três os atos de fala, estabelecidos a partir do momento em que um
enunciador, com determinadas intenções e valores, se dirige para outro falante, conseguindo
ou não obter aquilo que deseja e que foi expresso (direta ou indiretamente) por meio do uso de
33
formas linguísticas‖ (p. 77): locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Assim o autor
define esses atos: o ato locucionário relaciona-se com ―o proferimento de uma sequência
linguística em uma sentença pertinente para a transmissão de uma proposição que seja
compreendida pelo ouvinte‖; o ato ilocucionário corresponde às intenções manifestadas,
direta ou indiretamente, pelos interlocutores no processo de interação verbal; o ato
perlocucionário corresponde às consequências dos atos ilocucionários, sendo diretamente
relacionado ao ouvinte, que pode acatar ou não o que foi proferido em uma dada situação
discursiva (BATISTA, 2012: 79).
Nessa perspectiva, uma frase, ou mesmo uma expressão, pode ser entendida de
diversas maneiras, pois a força ilocucionária depende do contexto em que a frase é proferida.
Segundo Van Dijk (2012: 188), ―cada evento comunicativo é uma combinação única e
complexa de condições situacionais e de suas consequências discursivas‖. Por conta disso,
como mostra o autor, para compreender o enunciado é preciso que se focalize a atenção em
diferentes traços contextuais, ficando simplificado que ―esse contexto não é a situação social
objetiva, e sim a maneira como os participantes a interpretam‖ na situação interativa. (p. 281)
Pelo exposto, nota-se que a produção de um texto (falado ou escrito) envolve, além
das características textuais, características sociocognitivas14
do falante e do ouvinte. Por isso,
a produção textual se caracteriza, segundo Koch (2008a), como um processo ativo e contínuo
de construção de sentidos, que se realiza na interação entre os interlocutores. De acordo com a
autora,
a produção da linguagem constitui uma atividade cognitivo-interativa
altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente,
com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua
forma de organização, mas que requer não apenas a mobilização de um vasto
conjunto de saberes, como também, sobretudo, a sua reconstrução no
momento da interação verbal. (KOCH, 2008a: 202)
O uso das estratégias textuais e cognitivas na construção ou reconstrução do enunciado
depende do nível de conhecimento dos interlocutores. Ao construir um texto o falante insere
informações que são de seu conhecimento e que ele julga serem do conhecimento de seu
interlocutor, embora nem sempre as informações sejam, de fato, do conhecimento do ouvinte
(NEVES, 2007).
14
Martelotta e Palomares (2009) lembram que o acréscimo do elemento sócio ao vocábulo designativo da escola
cognitivista enfatiza a importância do contexto nos processos de significação, bem como o aspecto social da
cognição humana.
34
A construção de um texto na interação verbal, como mostra Marcuschi (2007), é um
processo colaborativo, entre os interlocutores, do qual resulta a coerência textual, a qual não é
concebida nem como uma propriedade do texto nem como um processo inferencial, pois ―a
noção interacional de coerência toma como base para a produção de sentido os processos
colaborativos no uso efetivo da língua‖ (MARCUSCHI, 2007: 15).
De acordo com Van Dijk (1999: 158), a noção de ―coerência‖ ou de ―interpretação‖
não pode ser explicada apenas em termos linguísticos/gramaticais ou de estrutura textual, ela
também tem de explicar-se em termos de organização e aplicação do conhecimento na
compreensão do texto, por exemplo, em termos de estruturas cognitivas, como frames ou
scripts. Para o autor ―o léxico cognitivo, como uma abstração linguisticamente monitorada de
tais estruturas cognitivas, fornece as relações conceituais que definem parte da coerência
semântica de um discurso‖ (p. 158), e essa ―unidade‖ intuitiva é baseada primeiramente na
relação referencial.
Compreende-se que o léxico não pode ser observado isoladamente, mas em relação
com o contexto de uso e com os outros elementos linguísticos com os quais se interliga, pois,
como postula Marcuschi (2007: 70), ―a língua é um sistema de indeterminações sintático-
semânticas que se resolvem nas atividades dos interlocutores em situações socio-
comunicativas‖. Dessa forma, a interpretação de um referente depende basicamente das
condições em que é usado.
As diferenças lexicais que surgem de enunciado para enunciado têm a ver com
diferentes perspectivas dentro de cada situação comunicativa, de acordo com aquilo que o
falante deseja focalizar (SALOMÃO, 2009). A autora aponta que essas diferentes
perspectivas ―não podem ser reduzidas a critérios veridicionais e exigem, por conta disso,
uma semântica não denotacionista‖ (p. 24), ou seja, para que o significado de uma expressão
linguística seja compreendido, ela não pode ser interpretada apenas pelo critério de verdade.
Nessa perspectiva, Mondada e Dubois (2003) mostram que o mesmo referente, por
exemplo, um piano, pode ser visto como um instrumento musical no contexto de um concerto,
ou como um objeto incômodo no contexto de uma mudança. Isso ocorre, segundo as autoras,
porque as categorias usadas para descrever o mundo são instáveis, variáveis e flexíveis,
podendo, portanto, variar de acordo com o ponto de vista adotado pelos interlocutores.
Sirvam-se ainda de ilustração sobre essa questão as observações que Marcuschi (2007:
70) faz sobre expressões comuns do dia a dia, como ―Silêncio, Hospital‖ ou ―Devagar,
Escola‖, encontradas em placas de trânsito ou de estabelecimentos comerciais, que remetem
muito mais ao contexto em que são usadas do que às condições de verdade. Diz o autor que
35
essas expressões remetem mais a doentes e a estudantes do que propriamente a hospitais e a
escolas. Ou seja, as condições de verdade permitem ao ouvinte/ leitor compreender que há um
hospital ou uma escola nas proximidades, mas é a visão semântica não denotacionista que
permite a ele reconhecer nessas expressões referentes como doentes e estudantes. Entende-se
que a interpretação de uma expressão linguística depende basicamente das condições de uso.
Tratando do significado das expressões linguísticas, Turner (apud Fauconnier, 1994,
explicitado em Abreu, 2010: 81), diz que as
expressões linguísticas não significam; elas são propostas de significação
para que nós construamos os significados trabalhando com processos que já
conhecemos. De maneira alguma o significado de [uma]... enunciação está
―diretamente nas palavras‖. Quando nós entendemos uma enunciação, nós,
de maneira alguma, estamos entendendo ―exatamente o que as palavras
dizem‖; as palavras por si mesmas não dizem nada independentemente do
conhecimento magnificamente detalhado e dos eficientes processos
cognitivos que trazemos como suporte.
Compreender o sentido que há na relação estabelecida entre os referentes textuais que
compõem o enunciado envolve um conjunto de fatores, dentre os quais estão as intenções, as
estruturas cognitivas, o conhecimento de mundo, o conhecimento lexical ou gramatical e o
contexto em que o processo interativo é realizado, e no qual as palavras ganham significados.
1.5 A enunciação e suas categorias
1.5.1 Teoria da enunciação
Embora a referenciação textual seja o campo central da análise neste trabalho, o
ângulo condicionante para realização da proposta é a enunciação. Flores et al. (2011) notam
que foi a partir dos estudos de Benveniste (publicados em Problemas de linguística geral I e
Problemas de linguística geral II) que esse campo do saber se convencionou chamar Teoria
da enunciação. No entanto, segundo Flores (2010), em nenhuma das duas obras o autor usou o
sintagma teoria da enunciação. O fato de essa teoria ser atribuída ao autor se deve mais a
―uma construção feita a posteriori pelos leitores dos textos do que propriamente uma intenção
explícita de Benveniste‖ (2010: 396).
O objeto de estudo dessa teoria são os atos, que, como pondera Fiorin (2004: 167), são
―realizações linguísticas concretas‖. O ato é ―o próprio fato de o locutor relacionar-se com a
36
língua a partir de determinadas formas linguísticas da enunciação que marcam essa
enunciação‖ (FLORES et al., 2011: 37). De acordo com os autores, na teoria da enunciação
todos os níveis da análise linguística são estudados do ponto de vista semântico, ou seja, nessa
teoria há uma preocupação em tratar os mecanismos de produção do sentido da enunciação
(da língua em uso).
Enunciar, segundo Benveniste (1989: 82), é colocar a língua em funcionamento por
um ato individual de utilização. Nesta ótica, a enunciação é o ato de apropriação da língua
pelo falante ―a partir do aparelho formal da enunciação, o qual tem como parâmetro um
locutor e um alocutário‖ (FLORES et al., 2011: 37). Para os autores, esse quadro teórico
supõe o processo de referenciação como parte da enunciação, pois ao se apropriar da língua, o
falante estabelece uma relação com o mundo via discurso, enquanto ao ouvinte cabe correferir
no diálogo.
O ato que confere à língua o estatuto de língua é intersubjetivo, pois tomar a palavra
implica a utilização de uma forma da língua (eu) que constitui o sujeito da e na língua, e
institui o tu (o não eu) que reconhece e compreende a língua e que, porque reconhece e
compreende, é passível de tornar-se eu (FLORES et al., 2011: 74). Os autores notam que a
intersubjetividade da língua está não só no fato de que ela prevê eu e tu, mas também no fato
de que ela estabelece a não pessoa15
do discurso, todos os signos que medeiam a relação
intersubjetiva.
Entende-se que a enunciação comporta as categorias que representam pessoa, tempo e
espaço, além da não pessoa, e que essas categorias se atualizam em cada situação discursiva.
1.5.2 As categorias da enunciação
No processo de construção do enunciado, a linguagem, por ser uma capacidade natural
do homem, não pode ser vista como um instrumento fabricado, pois ―é na linguagem e pela
linguagem que o homem se constitui como sujeito‖ (BENVENISTE, 2005: 286). Além disso,
―as línguas e a linguagem inscrevem-se num espaço real, num tempo histórico e são faladas
por seres situados nesse espaço e nesse tempo‖ (FIORIN, 1999:10).
15
A não pessoa será tratada a seguir.
37
De acordo com Lyons (1979: 290),
todo enunciado linguístico se realiza num lugar particular e num tempo
particular: ocorre numa certa situação espacio-temporal. É produzido por
uma pessoa – o falante – e em geral se dirige a alguma outra pessoa – o
ouvinte. O falante e o ouvinte, diremos, são tipicamente distintos um do
outro, podendo, certamente, haver mais de um ouvinte, e estão, além disso,
na mesma situação espaço-temporal.
O que se configura nas palavras do autor como pessoa, tempo e espaço são exatamente
as categorias invocadas por Benveniste (2005) no tratamento da enunciação, assim como por
Fiorin (1999), que tem Benveniste na sua base.
As pessoas instituídas no discurso são instituídas no tempo e no espaço da enunciação:
eu-aqui-agora (BENVENISTE 2005). Flores et al. (2011: 54) trazem a seguinte explicação:
―aqui-agora – espaço e tempo na e pela enunciação – estabelece coordenadas para as
expressões espaciais e temporais e, como estas expressões estão vinculadas a eu-tu, é pela via
da intersubjetividade que têm referência‖. O autor diz ainda que o sujeito é que dispõe espaço
e tempo, ou seja, ao expressar-se, ele ―temporaliza‖ e ―espacializa‖ os acontecimentos.
O tempo, como diz Fiorin (1999: 140), ―manifesta-se na linguagem na discursivização
das ações‖. Trata-se da manifestação do que está passando, do que já passou ou do que ainda
será, tudo presentificado na linguagem. A temporalidade, portanto, está intrinsecamente
relacionada à sucessão de estados e transformações expressos no texto, que pode ou não
respeitar a ordem natural dos acontecimentos, dependendo do propósito do falante (FIORIN,
1999). Como mostra Lyons (1979: 320), o tempo ―é uma categoria dêitica, que, como todos
os traços sintáticos parcial ou completamente dêiticos é simultaneamente uma propriedade da
frase e do enunciado‖.
Quanto à categoria de espaço, Fiorin (1999) fala de elementos que podem indicar o
espaço linguístico do discurso, ou seja, o espaço em que ocorre o ato de comunicação. Eles
são os responsáveis por atualizar e situar o falante no espaço, pois atuam em função dêitica,
anafórica ou catafórica, apontando, retomando ou antecipando elementos do discurso.
É à categoria de pessoa, que Benveniste (2005: 250) dirige especial atenção, dizendo
que essa categoria ―pertence realmente às noções fundamentais e necessárias do verbo‖. Ele
indica que o verbo é, com o pronome, ―a única espécie de palavra submetida à categoria de
pessoa‖, entretanto, ele nota que o pronome ―tem tantos outros caracteres que lhe pertencem
particularmente e comporta relações tão diferentes que exigiria um estudo independente‖
(BENVENISTE, 2005: 247).
38
Nessa concepção, Benveniste (2005) mostra que as pessoas do discurso são três no
singular e três no plural, e denominações como eu, tu e ele são diferenças lexicais que ―não
nos informam nem sobre a necessidade da categoria, nem sobre o conteúdo que ela implica
nem sobre as relações que reúnem as diferentes pessoas‖ (BENVENISTE, 2005: 248).
Benveniste (2005) nota que há heterogeneidade na relação entre as três pessoas do
discurso, porque apenas na primeira e na segunda pessoa há ao mesmo tempo uma pessoa
implicada e um discurso sobre essa pessoa. A primeira pessoa é aquela que fala, a segunda é
aquela com quem se fala, enquanto a terceira, aquela de quem se fala, é enunciada fora do
‖eu-tu‖, e pode referir-se a qualquer coisa ou pessoa não específica. Por essa razão, a terceira
pessoa exprime aquele que está ausente, a ―não-pessoa‖ (BENVENISTE, 2005:251).
Castilho (2010: 239) nomeia a primeira pessoa como locutor (o participante do
discurso com direito a voz); a segunda pessoa como interlocutor, ou ouvinte; e a terceira
pessoa como tópico conversacional, o assunto do texto que está sendo construído. O autor
mostra que, quando a primeira e a segunda pessoa funcionam como articuladores do
enunciado, institui-se um diálogo no qual locutor e interlocutor estão em presença, enquanto o
tópico (a terceira pessoa) não é dominado previamente por nenhum dos participantes, mas
elaborado em coautoria, na junção dos dados que cada participante vai veiculando.
Desse modo, eu e tu são únicos no discurso: quem fala e a quem alguém se dirige,
respectivamente (papéis que se invertem constantemente no processo de interação verbal), e a
terceira pessoa é aquela que pode fazer referência a várias ―coisas‖ (LYONS, 1979), a um
sujeito determinado ou até mesmo a nenhum sujeito, razão pela qual a terceira pessoa tem
papel fundamental no processo de referenciação textual (endofórica), já que, ao antecipar ou
retomar elementos que compõem o enunciado, contribui para garantir a coesão textual.
Benveniste (2005) define duas correlações que organizam as expressões da pessoa
verbal no processo de interação: ―correlação de personalidade‖, que opõe as pessoas eu/tu à
não-pessoa ele, e ―correlação de subjetividade‖, que opõe eu a tu. Para ele, uma distinção de
singular e de plural deve ser interpretada, na ordem da pessoa, ―por uma distinção entre
pessoa estrita (= ―singular‖) e pessoa amplificada (= ―plural‖)‖ e somente a ―terceira pessoa‖,
por ser não-pessoa, admite o verdadeiro plural (BENVENISTE, 2005: 258-259).
Na proposta deste trabalho, parte-se das categorias espaço, tempo e pessoa instituídas
na enunciação, e aqui descritas (eu-aqui-agora), para a relação que há entre elas e as outras
tríades envolvidas na função fórica, os elementos eu-tu/você-ele, ao lado dos elementos este-
esse-aquele e a contraparte adverbial: aqui-aí-lá/ali. A observação dessas relações permite,
muitas vezes, verificar a diluição entre os pontos referenciais que são aparentemente fixos.
39
2. O PROCESSO ENUNCIATIVO-ENUNCIVO DA REFERENCIAÇÃO
2.1 A referenciação e a interação verbal
A referenciação se constitui no processo de interação verbal, sobretudo nas ―operações
efetuadas pelos sujeitos à medida que o discurso se desenvolve‖ (APOTHELÓZ,
REICHLER-BÉGUELIN, 1995: 265).
Na ação discursiva, o falante ―opera sobre o material linguístico que tem à sua
disposição e procede a escolhas significativas para representar estados de coisas, de modo
condizente com a sua proposta de sentido‖ (KOCH; ELIAS, 2012: 124).
De acordo com Neves (2007: 75), a referenciação se efetua num universo do discurso
em que os participantes negociam e escolhem ―referir-se a algum (alguns) indivíduos(s) cuja
identidade estabelecem – ou não – segundo queiram – ou não – garantir a sua existência nesse
universo‖. Portanto, como observa a autora, referenciação envolve interação e intenção.
Dirigindo a atenção para a progressão referencial, Koch e Elias (2012: 123) dizem que
a referenciação, assim como a progressão referencial ―consistem na construção e reconstrução
de objetos de discurso‖. Na medida em que esses referentes ―são retomados mais adiante no
texto ou servem de base para a introdução de novos referentes‖, ocorre o que as autoras
denominam como progressão.
Nota-se, a partir daí, que a referenciação é um processo do discurso em que o falante
escolhe elementos da língua para construir a rede referencial que tece o texto. Os elementos
que compõem essa cadeia são introduzidos e mantidos no texto, ora retomando ora
antecipando o conteúdo do enunciado. A manutenção adequada contribui para a progressão
textual, que, por sua vez, contribui para que se construam os novos sentidos, e para que a
interação verbal se mantenha.
O processo de interação conta com no mínimo dois participantes que interagem, com
propósitos a serem exteriorizados e identificados, respectivamente, pelo produtor e pelo
receptor da situação discursiva. Inclui-se, na categoria de produtor, aquele que escreve ou
fala, e na categoria de receptor, o ouvinte ou o leitor.
É na interação que o falante constrói a cadeia referencial, projetando suas escolhas e
intenções. São as predicações, instituídas na organização do enunciado, que ativam a cadeia
referencial. Na organização dessa cadeia, ―o falante usa um termo para que o ouvinte construa
um referente para esse termo e introduza esse referente em seu modelo mental‖ (NEVES,
2007: 75-76), configurando, assim, uma das formas de referenciar descritas por Dik (1997:
40
130), que é a construção de referentes, ou objetos de discurso. Ainda segundo o autor, a
segunda maneira de referenciar, que é a identificação de referentes, configura-se quando o
falante usa um termo para ajudar o ouvinte a identificar um referente que, em certo sentido, já
está disponível16
.
De um modo geral, na perspectiva sociointerativa os referentes são construídos no
interior e através do próprio discurso, recortado pela dimensão perceptivo-cognitiva e
subjetiva que se cria no universo textual (RONCARATI, 2010). Segundo a autora, e assim
como pontuou Neves (2007), os referentes são instituídos no texto com base em enquadres
instalados pela atividade cooperativa entre falante e ouvinte. Dessa forma, os processos
fóricos de introdução e manutenção, que instalam ―os objetos em construção no/pelo discurso,
criando as bases para a progressão textual, são regulados por uma intrincada relação entre a
atividade linguística, a cognitiva e a sociocultural‖ (2010: 44).
Os objetos de discurso que se constituem no processo de construção textual são os
referentes textuais, que uma vez introduzidos podem ou não ser retomados. Como postula
Mondada (1994: 62), "é no e pelo discurso que são postos, delimitados, desenvolvidos,
transformados, os objetos de discurso que não lhe preexistem e que não têm uma estrutura
fixa, mas que ao contrário emergem e se elaboram progressivamente na dinâmica discursiva".
Apoiado na linha de pensamento da autora, Marcuschi (2001) nota que os objetos de
discurso são dinâmicos, ou seja, ―podem ser introduzidos e depois modificados, desativados,
reativados ou reciclados em movimentos discursivos". Por conta disso, os objetos de discurso,
referidos no texto pelas expressões referenciais, não se esgotam, ―mas se desenvolvem
discursivamente categorizando ou recategorizando os objetos‖ (p. 218).
A seguir, apresentam-se os processos fóricos usados pelos interlocutores na construção
textual, para referir os objetos de discurso.
2.2 A referenciação e a construção textual
Na interação verbal, o enunciado é construído e reconstruído pelos interlocutores.
Nesse processo, o falante e o ouvinte podem referir, remeter ou retomar elementos do texto.
Essas categorias são, muitas vezes, vistas como categorias idênticas, mas, como observa Koch
16
Diferentes designações são adotadas para denominar os referentes textuais ou objetos de discurso. Dik
(1997:127) denomina referente potencial, a entidade que pode ter um termo se referindo a ela, e referente
pretendido, aquele usado para se referir a outro elemento do texto.
41
(2004), são categorias distintas que respeitam a ―seguinte relação de subordinação
hierárquica: a retomada implica remissão e referenciação, a remissão implica referenciação e
não necessariamente retomada, e a referenciação não implica remissão pontualizada nem
retomada‖. (KOCH, 2004:59)
Entende-se, portanto, que um referente ou objeto de discurso não é necessariamente
retomado no texto (pode ser um referente de menção única), mas a remissão ou a retomada só
ocorrerão se houver um referente com o qual se estabeleçam essas relações, ainda que tal
referente esteja implícito.
Nesse sentido, há que se notar que a remissão que um elemento faz a outro elemento
prévio no texto, com o qual mantém uma espécie de relação estrita, constitui a anáfora direta.
Por outro lado, a retomada pode não ser explícita, configurando-se a anáfora indireta. De
acordo com Koch e Elias (2012: 128), as anáforas indiretas ―caracterizam-se pelo fato de não
existir no cotexto um antecedente explícito, mas, sim, um elemento de relação que se pode
denominar de âncora e que é decisivo para a interpretação‖.
Marcuschi (2001: 217) mostra que a anáfora indireta “é geralmente constituída por
expressões nominais definidas ou pronomes interpretados referencialmente sem que lhes
corresponda um antecedente (ou subsequente) explícito no texto‖. De acordo com o autor,
esse tipo de anáfora representa uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos, e
não uma reativação de referentes já conhecidos, o que configura um processo de referenciação
implícita.
Apoiado nos estudos de Schwarz (2000), Marcuschi (2001: 226-232) propõe que as
anáforas indiretas podem apresentar aspectos diferentes, dentre eles:
Anáforas indiretas baseadas em relações semânticas inscritas nos sintagmas nominais
definidos (nesse caso, pode-se observar especialmente as relações mereonímeas –
relações parte-todo –, e, em menor escala, as relações de hiponímias, hiperonímias e
os campos léxicos. Exemplo: ―Não compre a xícara amarela. O cabo está quebrado.
[parte integrante]‖. (p. 227)
Anáforas indiretas baseadas em esquemas cognitivos e modelos mentais (nesse caso, a
anáfora indireta é ancorada ―em representações conceituais ou relações cognitivas
encapsuladas em modelos mentais comumente chamados de frames – enquadres –,
cenários, esquemas, scripts etc.‖. Estes ―representam focos implícitos armazenados em
nossa memória de longo prazo como conhecimentos de mundo organizados‖).
Exemplo: ―Nos últimos dias de agosto... a menina Rita Seidel acorda num minúsculo
quarto de hospital... A enfermeira chega até a cama...‖. (p.228)
42
Anáforas indiretas baseadas em inferências ancoradas no modelo do mundo textual
(nesse caso, a anáfora indireta ancora em uma informação explicitada no modelo do
mundo textual precedente). Segundo o autor, ―trata-se de anáforas fundadas em
conhecimentos retrabalhados por estratégias inferenciais maximizadas pelo conjunto
de conhecimentos textuais mobilizados‖. Exemplo:
O Náutico não fez uma exibição primorosa, mas jogou o suficiente para se
impor diante da fraca Tuna Luso com um placar de 3x0, ontem à tarde, nos
Aflitos. Foi a primeira vitória alvirrubra na Segunda Divisão do
Brasileiro, depois de quatro jogos, e serviu para levantar o moral do time que
subiu para cinco pontos no Grupo A. Lêniton, Mael e Lopeu marcaram os
gols alvirrubros. Com o ponta esquerda Lêniton, improvisado de
centroavante, e Ricardinho na esquerda, o Náutico demorou a se encontrar
em campo. A Tuna jogava fechada e seu técnico, Bira Burro, orientava os
atacantes Joacir e Ageu para ficarem enfiados entre os zagueiros alvirrubros.
O restante do time paraense ficava em frente da área. (p. 229).
Anáforas indiretas esquemáticas realizadas por pronomes introdutores de referentes
(nesse caso, os pronomes ―não são retomadas de referentes anteriormente
introduzidos, mas ativadores de novos referentes com base em elementos prévios que
aparecem no discurso‖). A compreensão desse tipo de anáfora nem sempre é fácil, e,
além disso, o grau de aceitabilidade é variável e não homogêneo (MARCUSCHI,
2001). O autor lembra que, de um modo geral, toda anáfora indireta pronominal tem
―sua interpretação e determinação referencial ancorada em algum elemento lexical
anterior confirmado por algum elemento posterior‖. Exemplo: ―Estamos pescando há
mais de duas horas e nada, porque eles simplesmente não mordem a isca‖. (p. 231)
A forma como o falante institui os objetos de discurso na construção do texto é
fundamental para a identificação dos referentes e para a interpretação do sentido.
A interação poderá não ser bem sucedida se o falante não avaliar devidamente para
quem está sendo produzido o discurso. Produzir um discurso adequadamente direcionado ao
seu público contribui para que esse público compreenda o enunciado. Dik (1997) salienta que
a relação entre falante (intenção) e ouvinte (interpretação) é mediada, não estabelecida, por
meio da expressão linguística. Isso quer dizer que a interpretação só em parte se baseará nas
informações que estão contidas na expressão linguística.
O conhecimento de mundo é um dos fatores que permite, para quem ouve ou lê o
enunciado, identificar e bem interpretar os referentes. Isso implica que a interpretação de uma
43
expressão referencial, nominal ou pronominal, ―consiste não em localizar um segmento
linguístico (um ―antecedente‖) ou um objeto específico no mundo, mas sim em estabelecer
uma ligação com algum tipo de informação que se encontra na memória discursiva‖ (KOCH,
2011: 81).
Quando o processo de referenciação é realizado adequadamente, o ouvinte consegue
interpretar e compreender o propósito de seu interlocutor, e com isso mantém a continuidade
da interação verbal. Segundo Kleiber (1994c: 11, apud Neves, 2007:77),
a tendência atual dos estudos que descrevem os processos de interpretação
referencial é cada vez mais abrigar a pragmática, mostrando que, muito além
do que se tem considerado, os referentes são recuperados mais por cálculos
inferenciais – entrando em jogo o contexto da enunciação e o conhecimento
compartilhado – do que por regras fixas ou convencionais ligadas às
expressões que quase mecanicamente liberariam esses referentes.
Pode-se compreender que, no processo de identificação e interpretação de um
referente, o ouvinte necessita ir além de uma simples recuperação, necessita observar as
diferentes maneiras pelas quais os referentes foram instituídos no discurso, e reconhecer que
esses referentes são entidades que pertencem a ―algum mundo‖.
Examinando a construção dos objetos de discursos, Mondada e Dubois (2003:19)
dizem ―que um mundo autônomo já discretizado em objetos ou ―entidades‖ existe
independente de qualquer sujeito que se refira a ele, e que as representações linguísticas são
instruções que devem se ajustar adequadamente a este mundo‖. De acordo com Neves (2007:
80) ―a construção desse mundo tem ponto de partida nos propósitos do falante, que constrói
seus enunciados conferindo relevância aos argumentos segundo o que seja conveniente a
esses propósitos‖.
Isso significa que um elemento instituído no discurso não precisa necessariamente
existir no mundo real, mas, para que haja sucesso no processo de interação, os interlocutores
necessitam reconhecer e aceitar o referente como participante do enunciado, pois no discurso
o referente será sempre real. Nas palavras de Lyons (1979: 450) ―dizer que uma dada palavra
(ou outra unidade que tenha significado) ―se refere‖ a um objeto implica que seu referente é
um objeto que ―existe‖ (―é real‖)‖.
Dik (1997) lembra que, nas línguas naturais, quando um termo se refere a uma
entidade de algum mundo, esse mundo não é real, mas é um mundo mental, construído e
negociado entre os interlocutores. No entanto, na visão lógica da linguagem, os propósitos dos
interlocutores são desconsiderados, e a referencialidade ou a não referencialidade são
44
configuradas em termos de um mundo real, onde, segundo Givón (1984), um termo ou tem ou
não tem referência.
Uma diferença que se aponta entre a referenciação do ponto de vista lógico e a
referenciação das línguas naturais é a presença de um quantificador, que pode ser existencial
ou universal. Explicitando essa oposição, Neves (2007: 78) diz, que na visão lógica, a
presença de um quantificador existencial indica que um argumento se refere a um termo real,
como no seguinte exemplo: O livro é interessante (em que há um termo real, o livro, e ele é
interessante). Por outro lado, ―o quantificador universal indica que um argumento se refere a
todos os membros (ou espécimes) do grupo (ou tipo) abrigados no termo‖, como em: todas as
casas estão em construção (em que todos os elementos que pertencem à classe referida estão
em construção).
Entende-se por aí que a presença de um quantificador nomeado em algumas literaturas
como determinante, cuja função é exercida por artigos e alguns pronomes na constituição de
um sintagma nominal (SN) facilita identificar a verdade ou não do argumento ao qual o termo
se refere, bem como reconhecer se o referente é individual ou genérico.
Neves (2007) explica que um quantificador existencial normalmente indica a presença
de um referente individual (aquele que em alguns casos pode referir-se a todos os elementos
de um gênero, e, em outros, a apenas alguns elementos desse gênero), enquanto o
quantificador universal é mais genérico, por remeter a todos os elementos de uma espécie. Por
essa razão, em muitos casos, o quantificador universal é considerado como não referencial.
Em outras palavras, a presença de um determinante definido no sintagma nominal contribui,
em geral, para que se identifique um referente individualizado, enquanto a presença de um
determinante indefinido contribui, na maioria das vezes, para que se identifique um referente
genérico.
Num resumo da explanação de Neves (2007), pode-se indicar a existência de dois
tipos referenciais, o genérico e o individual, assinalados, normalmente, pelo tipo de
determinante (ou quantificador) que ocorre no sintagma nominal. O genérico e o individual se
relacionam no jogo em que se constrói a cadeia referencial, e esse jogo é manipulado, pelos
interlocutores, ―dentro da negociação em que se constitui o estabelecimento do universo
discursivo‖. (p. 86)
Nesse universo discursivo, a rede referencial que se estabelece é a principal
responsável por manter a coesão textual.
45
2.3 A referenciação e a coesão textual
Uma importante fonte de referência para o estudo da referenciação textual, vista como
um dos mecanismos de coesão textual, é Cohesion in English, de Halliday e Hasan (1976),
obra que serviu e serve de base teórica para a maioria dos autores que trabalham com tal
processo. Essa obra fornece base teórica para as reflexões que seguem.
Nessa obra, a base para o tratamento da coesão – que é um dos modos de
conectividade compreendidos no princípio de textualidade (Beaugrande, 1997) de que se
falou em 1.3 – é a noção de texto, que é assim definido: ―qualquer passagem, falada ou
escrita, de qualquer extensão, que forme um todo unificado‖17
(HALLIDAY; HASAN,
1976:1). Para os autores, coesão é a relação de sentido que ocorre no interior do texto, e que o
define como texto. Embora essa relação seja de natureza semântica, ela se estabelece por meio
de uma organização linear entre os elementos lexicais e gramaticais que constituem o texto.
De acordo com os autores, as relações coesivas entre esses elementos podem ocorrer por
cinco mecanismos: referência, substituição, elipse e conjunção (se a relação ocorrer por via
gramatical) e coesão lexical (se a relação ocorrer por via lexical).
A relação coesiva se dá quando a interpretação de algum elemento utilizado no
discurso depende de outro elemento também utilizado no discurso. Dessa forma, um elemento
pressupõe o outro. Segundo Halliday e Hasan (1976:4), ―quando isso acontece é criada uma
relação de coesão, e os dois elementos, o que pressupõe e o pressuposto, ao menos no texto,
estão potencialmente integrados18
‖.
Alguns autores, dentre eles Marcuschi (1983), defendem a ideia de que a coesão não é
uma condição necessária para que um texto seja de fato um texto, pois há enunciados em que
não é verificado o uso de mecanismos coesivos e, no entanto, a continuidade é mantida, pois
esta se ―dá ao nível do sentido e não ao nível das relações entre os constituintes linguísticos‖.
Para o autor, a coesão está na superfície textual, diferentemente de Halliday e Hasan (1976),
que consideram a coesão um processo interno e necessário para que um texto se configure
com tal.
Segundo Halliday e Hasan (1976:13), cada uma das categorias implicadas na coesão
textual (referência, substituição, elipse, conjunção e coesão lexical) é representada no texto
por marcas particulares: repetições, omissões e ocorrências de certas palavras e construções,
17
Texto original: Any passage, spoken or written, of whatever length, that does form a unified whole. 18
Texto original: When this happens, a relation of cohesion is set up, and the two elements, the presupposing
and the presupposed, are thereby at least potentially integrated into a text.
46
que têm em comum a propriedade de sinalizar que a interpretação de um elemento depende de
outro elemento.
Essas categorias ativam diferentes relações coesivas e proporcionam um meio prático
de descrever e analisar textos. Para Halliday e Hasan (1976), há outros tipos de relações
semânticas associadas a um texto, porém as categorias eleitas na obra, por serem comuns a
todos os enunciados, são consideradas as mais importantes. Assim os autores definem essas
diferentes categorias coesivas:
A referência19
(que pode ser pessoal, demonstrativa ou comparativa) se dá
quando um elemento da língua que não pode ser interpretado isoladamente faz
referência a outro elemento. Essa relação permite a interpretação semântica de
ambos. A referência pode ocorrer dentro (textual/endofórica) ou fora
(situacional/exofórica) do texto. A referenciação endofórica pode ser anafórica
ou catafórica: esta antecipa e aquela retoma elementos do texto.
A substituição (que pode ser nominal, verbal ou frasal) consiste
especificamente na substituição de um termo por outro ou de um termo por
uma oração (inteira ou parcial). Esse mecanismo é usado para manter o sentido
e evitar as repetições.
A elipse, que pode ser nominal, verbal ou frasal, (nomeada por Halliday e
Hasan (1976: 142) como ―substituição por zero‖20
), é a omissão de elementos,
orações e períodos, que são recuperáveis no decorrer do texto.
A conjunção é a relação entre partes do texto efetuada não só por elementos
conjuntivos (como as conjunções subordinativas e as coordenativas, as
locuções conjuntivas e as prepositivas, e os advérbios, entre outros), como
também por outros elementos da língua, tais como os verbos e os advérbios.
Essas relações podem ser verificadas entre orações, períodos e parágrafos. Na
maioria das vezes, elas coexistem dentro do texto.
A coesão lexical se dá pela relação de um item lexical com um elemento
precedente, porém, como a função coesiva não é comum aos elementos
lexicais, para que ela seja reconhecida é necessário que haja algo que remeta à
relação com um item antecedente. Esse tipo de coesão pode ocorrer por
19
Aqui a denominação usada para essa categoria é a referenciação. O termo referência fica reservado para todo
o processo de referenciar. 20
Neste trabalho, seguindo a linha adotada por Neves (2007) para a descrição do português, a elipse será
considerada como ―referenciação‖ textual zero, e não como ―substituição‖ zero.
47
reiteração ou colocação. A primeira é a repetição de um termo já referido no
enunciado, e compreende a sinonímia, a hiponímia, etc. A segunda refere-se ao
emprego de palavras com mesmo sentido em contexto semelhantes. A
reiteração e a colocação são processos que ocorrem simultaneamente em um
texto.
Naturalmente em um texto coexistem os diversos mecanismos coesivos. Esses
mecanismos são ativados de acordo com a intenção e o efeito de sentido que o falante deseja
produzir no ato de comunicação. Desse jogo interativo resultam diferentes relações
semânticas a serem identificadas pelo ouvinte.
Dentre os mecanismos de coesão descritos por Halliday e Hasan (1976) existe um que
divide a opinião dos autores que tratam a coesão textual: a substituição, que é o mecanismo
pelo qual um item da língua substitui outro. Essa relação pode efetuar-se entre itens
linguísticos, palavras semelhantes, ou frases. Como já foi indicado aqui, nesse processo de
coesão inclui-se a elipse (substituição zero). Embora apontem algumas diferenças entre a
substituição e a referência, dizendo que a primeira pertence ao nível gramatical, e a segunda,
ao nível semântico, e, ainda, que na referência ocorre identidade total entre o referente e o
referenciador, enquanto na substituição não há uma identidade plena entre os termos
relacionados, Halliday e Hasan (1976) ressaltam que essa classificação das relações coesivas
não deve ser vista como uma divisão rígida, pois há muitos exemplos que não encontram
fronteiras entre os dois mecanismos e poderiam ser interpretados como um ou outro.
De acordo com Koch (2010: 22), essa ―fluidez dos limites‖ que há entre a
referenciação e a substituição provoca uma discussão entre os autores que trabalham com a
coesão textual, pois, enquanto alguns estudiosos descrevem a substituição com a mesma
função da referenciação, outros rejeitam essa ideia. Os que pertencem ao primeiro grupo
acreditam que, se na substituição um item substitui outro elemento citado anteriormente no
texto, esse mecanismo poderia, sim, ser incluído na referência, uma vez que, no processo de
referenciação, um termo retoma outro. Nessa linha de pensamento, Harweg (1968) afirma
que, se a substituição é a troca de um elemento linguístico por outra expressão linguística, não
há porque diferenciá-la da referência. Por outro lado, Brown & Yule (1983) são contrários à
ideia da substituição. Koch (2012: 26), explicitando os autores, diz que, ―à medida que um
texto se desenvolve, o referente sofre mudanças de estado, de modo que sua descrição vai se
modificando‖, isso impede um elemento linguístico de ser visto apenas como substituto de
referente.
48
Para Kallmeyer, Meyer-Hermann et al. (1974. apud Koch, 2010: 23), há na língua
elementos que, ao serem usados no processo de comunicação, conduzem o ouvinte a
determinadas instruções, que podem ser de consequência (nível pragmático), de sentido (nível
semântico) e de conexão (nível sintático). Nesta última incluem-se os pronomes pessoais de
terceira pessoa, que, por si sós, não têm sentido algum no texto, mas relacionam-se a outro
item linguístico do enunciado (um sintagma nominal) com o qual concordam em número e
gênero, e assim produzem uma relação de sentido.
É fácil operacionalizar essas noções em um trecho do romance O Cortiço, de Aluísio
Azevedo (1988). Na observação deste trecho da página 13
Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro
da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que
ela produzia.
verifica-se que as instruções de conexão dos pronomes ele e ela permitem ao ouvinte/leitor
estabelecer a relação de sentido entre o pronome ele e João Romão, e entre o pronome ela e a
crioula. Por outro lado, num caso em que haja mais de um sintagma antecedente que possa
compatibilizar-se em número e gênero com determinada expressão referencial, como se
observa neste trecho da página 49,
à boca um enorme charuto de dois vinténs e na mão um grosso porrete de
Petrópolis, que nunca sossegava, tantas voltas lhe dava ele a um tempo por
entre os dedos magros e nervosos
são as instruções de sentido da predicação relacionada ao pronome lhe que conduzem o
ouvinte/leitor ao referente textual um grosso porrete de Petrópolis e remetem o pronome ele
à personagem do romance.
Compreende-se que não se trata de simples substituição de um sintagma nominal por
um pronome, uma vez que a relação de referência não se efetua apenas pela presença, em
determinado contexto, dos dois constituintes envolvidos, mas principalmente, pela
―contribuição de elementos con-textuais de ambos os constituintes dessa relação, que trazem
instruções de sentido para o estabelecimento da relação textual adequada‖ (KOCH, 2010: 24).
Tal concepção possibilita verificar, sobretudo, a relação entre os elementos implicados
no discurso, que, ao serem identificados, permitem uma interpretação semântica e pragmática
do enunciado.
49
A proposta deste trabalho é justamente identificar os mecanismos coesivos instituídos
no interior das diferentes sequências textuais que constituem o córpus de análise, bem como
interpretar a relação semântica que há entre esses mecanismos.
3. FUNDAMENTOS OPERACIONAIS DE ANÁLISE
3.1 O estabelecimento da cadeia referencial
Uma cadeia referencial é composta por elementos que expressam os referentes do
texto. Esses elementos, aos quais se referiu o item 2.1, são introduzidos no texto (para
expressar os referentes textuais) e nele mantidos (por meio de expressões referenciais) por
algumas estratégias textuais, que serão conhecidas a seguir. A introdução desses referentes no
texto, a possibilidade de eles passarem a compor o texto e a possibilidade de eles continuarem
a ser mantidos no texto implica que eles possam ser identificados pelo ouvinte, pois, se o
destinatário da mensagem não os identificar, não haverá compreensão satisfatória do
enunciado.
De acordo com Roncarati (2010), não há um modelo único de formulação de uma
cadeia referencial, ―qualquer formulação sempre será provisória, adaptativa e variável, em
função do tipo textual ou do gênero textual da fala ou da escrita com que estivermos lidando‖.
(p. 80)
De todo modo, na construção de uma cadeia referencial estão no geral envolvidas,
como explicitam Koch e Elias (2012), algumas estratégias de referenciação, tais como:
- Introdução de referente, que é a estratégia pela qual o referente é introduzido (ou
ativado) no enunciado. A nominalização, a anáfora associativa (que serão tratadas adiante), e
a anáfora indireta, tratada em 2.2, incluem-se nessa estratégia, pois introduzem referentes
novos: no primeiro caso, os termos introduzidos estão associados a um referente; no segundo
caso, os termos introduzidos permitem que o ouvinte identifique no texto um referente
implícito. E, no último caso, o termo introduzido resume uma sequência anterior.
- Manutenção de referente, que é a estratégia pela qual um referente que já foi
introduzido é retomado, uma ou mais vezes, pelos referenciadores textuais. Trata-se da
operação fundamental para manter a progressão referencial.
- Desfocalização de referente, que é a estratégia pela qual ocorre mudança de foco, ou
seja, introduzido um novo referente, a atenção do ouvinte se volta para ele. O referente que foi
50
introduzido primeiro é mantido no texto, podendo retornar ou não à ―posição focal‖. Neste
particular, Koch (2004) lembra, ainda, ―que muitos problemas de ambiguidade referencial são
devidos a instruções pouco claras sobre com qual dos objetos de discurso presentes na
memória a relação deverá ser estabelecida‖. (p. 62)
Por meio dessas estratégias o enunciado é construído e reconstruído continuamente.
Os elementos que compõem a rede referencial podem ser ―modificados ou expandidos‖
(KOCH; ELIAS 2012: 126) de acordo com os propósitos do falante ao produzir o discurso. A
introdução e a manutenção adequadas dos referentes textuais estão na base da coesão textual.
De acordo com Neves (2007), uma reflexão sobre a cadeia referencial do texto é a que
se assenta na correferenciação, mecanismo em que um referente determinado é retomado pelo
falante, que o reapresenta não só como um elemento dado, mas também como um elemento
conhecido do ouvinte. Quando isso acontece há ―identidade total entre o antecedente e a
anáfora‖, pois o elemento que a anáfora representa é o mesmo elemento designado pelo
antecedente. (p. 92)
Por outro lado, como mostra Neves (2007: 106) é operante um tipo particular de
anáfora nominal não correferencial, a anáfora associativa, que ―introduz como conhecido um
referente que ainda não foi explicitamente mencionado no contexto anterior‖, mas que pode
ser recuperado com base em informações presentes no universo discursivo. Pode-se, mesmo,
entender, que, por introduzir um elemento que ainda não foi mencionado no texto, a anáfora
associativa, na verdade, introduz um novo referente (CHAROLLES, 1999).
De acordo com Milner (2003, p. 112-113), embora na correferenciação as duas
unidades referenciais (A e B) tenham a mesma referência, a interpretação de uma pode
ocorrer sem que a interpretação da outra seja afetada. O autor acrescenta ainda que ―os dois
termos relacionados podem ser homogêneos ou não quanto à sua natureza categorial‖ (2003:
113).
Quanto ao aspecto formal da composição da cadeia referencial, e sua relação com a
correferencialidade, vale lembrar a indicação de Levinson (1987; 1991), explicitada em Neves
(2007: 93): ―quanto menor a forma da expressão referencial maior a preferência por uma
leitura de correferência‖. Assim sendo, a correferencialidade será observada mais facilmente
se o falante usar zero no preenchimento fórico, enquanto o reconhecimento da
correferencialidade tende a diminuir se o elemento usado pelo falante for um pronome, e a
diminuir ainda mais com o uso de um sintagma nominal.
51
3.2 A categorização e a recategorização
Mondada e Dubois (2003: 21) mostram a questão da referenciação a partir de duas
reflexões: uma linguística (sobre os objetos de discurso) e outra psicológica (sobre a
categorização em si). Ressaltam que, embora as duas reflexões estejam diretamente
relacionadas ―às práticas e aos discursos‖, devem ―ser diferenciadas a fim de evitar uma
redução de um nível a outro‖.
Ao construir um enunciado o falante discretiza a língua e o mundo, bem como dá
―sentido a eles, constituindo individualmente e socialmente as entidades‖ (Dubois e Mondada,
2003: 20), ou seja, é ele (o falante) que decide, dentre as inúmeras possibilidades de
construção e reconstrução, em que categoria irá situar os objetos de discurso instituídos na
organização do enunciado.
Quando um objeto de discurso que já foi nomeado (categorizado) no texto recebe
outra designação, opera-se uma recategorização. Segundo Koch (2008b), em geral, opera-se
uma recategorização quando uma expressão nominal é retomada por outra expressão nominal.
Nesse processo, segundo Neves (2007: 114), ―as duas designações - a inicial e a remissiva -
estarão necessariamente enfeixando um conjunto de propriedades predicativas, e não
totalmente coincidentes‖. Ainda de acordo com a autora, a segunda designação (a remissiva)
pode ser ora mais específica, ora mais genérica que a primeira, configurando uma relação de
hiperonímia ou hiponímia, respectivamente.
Muito frequentemente a categorização se faz por uma nominalização, que é a forma de
categorizar em que um termo referenciador, novo no discurso, encapsula ou resume
informações apresentadas anteriormente no enunciado. Apothéloz e Chanet (2003: 132), que
usam para esse modo de categorizar o termo nomeação, definem-no como ―a operação
discursiva que consiste em referir-se, por meio de um sintagma nominal, a um processo ou
estado que foi anteriormente expresso por uma proposição‖.
Uma função da nominalização é o encapsulamento, definido por Conte (2003: 178)
como ―um recurso coesivo pelo qual um sintagma nominal funciona como uma paráfrase
resumidora para uma porção precedente do texto‖. De acordo com a autora (2003), o sintagma
que expressa esse termo anafórico tem como núcleo um nome geral, e como determinante, na
maioria das vezes, um pronome demonstrativo.
Roncarati (2010: 146) mostra que as formas pronominais neutras (isto, isso, aquilo, o)
podem funcionar com capacidade de encapsulamento ou rotulação, exercendo função de
sumarização da informação suporte. Dessa maneira, elas contribuem para manter o foco de
52
consciência em proporções maiores e para organizar a articulação entre os tópicos tratados no
texto, funcionando como um enquadre final, que implica ou não mudança de tópico. Nesse
caso, segundo a autora, o pronome pode exercer simultaneamente função anafórica e dêitica,
isso porque ao mesmo tempo em que retoma, aponta para o segmento precedente.
Segundo Koch (2004:71), a interpretação da referenciação que se opera por
encapsulamento, obriga o ouvinte/leitor a pôr em ação as estratégias cognitivas, bem como a
capacidade de interpretação de informação adicional.
3.3 Os modos de preenchimento das casas referenciais
As casas fóricas que compõem a cadeia referencial são preenchidas por expressões
referenciais que podem ser representadas por elementos lexicais ou por elementos
gramaticais. Cavalcante (2002) afirma que a diferença entre as formas remissivas gramaticais
e as formas lexicais se estabelece no âmbito do sentido, não no âmbito da referência.
Como explicita Koch (2012), as formas lexicais, podem ser representadas por grupos
nominais definidos (introduzidos pelo artigo definido ou pelo demonstrativo que exercem
função remissiva), nominalizações, sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos e expressões
referenciais que representam uma categorização. Quanto às formas gramaticais, a autora
afirma que elas não expressam instruções de sentido, mas evidenciam relações de
concordância de gênero e número. Algumas dessas formas compõem o sintagma nominal,
determinando ou modificando o núcleo, incluindo-se aí os artigos e os pronomes adjetivos
(demonstrativos e possessivos). Há outras formas gramaticais que ―não acompanham um
nome dentro de um grupo nominal, mas que podem ser utilizadas para fazer remissão,
anafórica ou cataforicamente, a um ou mais constituintes do universo textual‖ (KOCH, 2012:
38). São elas: os pronomes pessoais de terceira pessoa (ele, ela, eles, elas), os pronomes
substantivos (demonstrativos, possessivos etc.) e os advérbios pronominais. Lembre-se, por
outro lado, que, conforme já tem sido desenvolvido neste trabalho, a remissão é
frequentemente operada pela elipse (aqui nomeada como referenciação textual zero), a qual
ganha sentido quando se recupera a relação com o referente.
53
3.3.1 Sintagma nominal
Castilho (2010: 55) mostra que o termo sintagma ―provém da terminologia militar
grega, em que designava um esquadrão, ou seja, um número fixo de soldados, distribuídos de
forma também regular, aos quais eram atribuídas funções próprias‖. Segundo o autor, os
linguistas se apropriaram desse termo, que parecia adequado para indicar o modo como
algumas classes de palavras (substantivos, verbos, adjetivos, advérbios e preposições)
costumam agregar outras classes de palavras.
Formalmente, o sintagma é uma unidade composta por um núcleo em torno do qual
algumas classes de palavras se associam. De acordo com o núcleo que compõe essa unidade,
o sintagma pode ser nominal, verbal, adjetival, adverbial, ou preposicional.
Neste trabalho, como o foco é o estudo da referenciação, está envolvido,
particularmente, o sintagma nominal (SN), que é organizado ―a partir de um nome
(substantivo) como núcleo, o qual pode ser acompanhado de determinantes (artigo,
determinados pronomes em função adjetiva), de quantificadores (numerais e palavras como
todos, ambos) e de modificadores (adjetivos, locuções adjetivas e preposicionais)‖ (BATISTA,
2011: 83). Desse modo, uma possibilidade de construção dessa unidade sintagmática é a que
se representa pela seguinte forma: Det Mod. + Nome Mod. (KOCH, 2011).
Na maioria das vezes, o determinante que acompanha o núcleo do SN permite ao
ouvinte identificar se esse sintagma é definido ou indefinido.
Como mostra Givón (1984), ao escolher para o enunciado uma expressão referencial
definida, ou seja, um sintagma que abriga artigo, ou pronome demonstrativo ou pronome
possessivo, o falante pressupõe que o ouvinte já tenha conhecimento do referente, e que,
portanto, o reconhecerá, pois lhe atribuirá uma referência única (GIVON, 1984). Isso ocorre,
segundo o autor, devido à acessibilidade dêitica da situação ou à acessibilidade referencial do
arquivo permanente do ouvinte, que permite identificar o referente mesmo quando ele não
está explícito. Ainda segundo o autor, quando a escolha é por uma expressão referencial
indefinida a intenção do falante é introduzir uma informação nova que deverá ser
compreendida e assimilada, ampliando os conhecimentos do ouvinte.
Neves (2011) mostra que a presença de um sintagma nominal indefinido traz à
existência o referente e, explicitando Lyons (1977), a autora afirma ―que a descrição definida
é um mecanismo de referência tão importante que chega a ser mais fácil imaginar a língua
sem nomes próprios do que imaginá-la operando sem as expressões definidas‖ (2007: 123).
54
Quanto ao núcleo do sintagma nominal, ele pode ser representado, dentre outras
possibilidades, por substantivos próprios e por substantivos comuns, casos que serão
observados especialmente nas análises das sequências narrativas. No primeiro caso, segundo
Neves (2011: 69), o substantivo faz ―designação individual dos elementos a que se referem,
identificando um referente único com identidade distinta dos demais referentes‖. A autora
nota que os substantivos próprios não evidenciam traços descritivos de seus referentes,
diferentemente do substantivo comum que tem seu estatuto definido ―basicamente pelas
funções de denominação e de descrição da classe de referentes‖ (p.67).
3.3.2 Pronomes
Tratando da classe dos pronomes, Benveniste (2005: 277) ressalta que é um hábito
―considerar essas formas linguísticas como formando uma mesma classe, formal e
funcionalmente; à maneira, por exemplo, das formas nominais e das formas verbais‖. Ainda
segundo o autor, todas as línguas possuem pronomes e, em todas, eles são definidos por
referência às mesmas categorias de expressão (pronomes pessoais, demonstrativos, etc.).
Benveniste (2005) observa que definir os pronomes apenas pelas categorias de
expressão não permite reconhecer a verdadeira funcionalidade dessa classe. Para que isso
ocorra, eles devem ser analisados não apenas pela sintaxe mas também pela semântica, pela
pragmática e pelo discurso, considerando-se, ainda, a intenção do locutor ao produzir o
discurso, bem como o uso efetivo do pronome neste contexto. Afinal, alguns pronomes
pertencem à sintaxe da língua, outros são característicos daquilo a que o autor chama as
instâncias do discurso, ―os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada
em palavra por um locutor‖ (BENVENISTE, 2005: 277).
Como mostram Flores et al. (2011: 79), ―os pronomes que têm como referência a
situação de discurso participam do mesmo status dos pronomes pessoais, eu e tu‖. Pode-se
dizer, ainda segundo o autor, que os pronomes demonstrativos se organizam correlativamente
com os indicadores de pessoa, eu e tu, e que os pronomes possessivos se organizam em torno
do sujeito tomado como ponto de referência.
Quanto aos pronomes pessoais, Neves (2011: 457) afirma que uma das suas funções
básicas ―é a de constituir expressões referenciais que representam, na estrutura formal dos
enunciados, os interlocutores que se alternam na enunciação‖.
55
Benveniste (2005: 278) observa que o pronome eu, diferentemente dos outros
elementos utilizados no discurso, não tem um referente que o represente de forma idêntica,
pois ―cada eu tem a sua referência própria e corresponde cada vez a um ser único, proposto
como tal‖. Assim, continua o autor, o eu cria o seu próprio discurso, e somente nele é
identificado; uma vez instaurado no discurso, introduz uma situação de alocução em que o tu
é instaurado como alocutário.
Por outro lado, o pronome pessoal de terceira pessoa remete a outro referente no
discurso. Quando usados como formas remissivas, esses pronomes ―fornecem ao
leitor/ouvinte instruções de conexão a respeito do elemento de referência com o qual tal
conexão deve ser estabelecida‖ (KOCH, 2010).
Neves (2011) ensina que a referenciação textual feita pelos pronomes pessoais de
terceira pessoa garante a unidade do texto, pois eles remetem a elementos do próprio texto,
ora retomando-os (anáfora) ora antecipando-os (catáfora), como nestes respectivos exemplos
retirados do romance Senhora, de José de Alencar, 1985:
Aurélia concentra-se de todo dentro de si; ninguém ao ver essa gentil
menina, na aparência tão calma e tranquila, acreditaria que nesse momento
ela agita e resolve o problema de sua existência. (p.16)
Frequentando assiduamente e com algum brilho a sociedade, adquirindo
relações, e cultivando a amizade de pessoas influentes que o acolhiam com
distinção, era natural que ele, Seixas, fizesse uma bonita carreira. (p. 38)
As formas tônicas de terceira pessoa ele, eles, ela, elas, normalmente, podem ocorrer
como sujeito de verbos em forma finita, enquanto as formas átonas de terceira pessoa o, os, a,
as, lhe, lhes não exercem essa função (NEVES, 2011), mas, sim, a função de complemento de
verbos. Nessa função, o átono retoma um referente textual. Tome-se como exemplo, retirado
de Senhora (1985:13), o uso da flexão feminina do pronome pessoal o, retomando o referente
textual Aurélia, em ―Aurélia era órfã; e tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D.
Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade‖.
Quando o sujeito da situação discursiva é conhecido, pode-se, como mostra Bechara
(1989), omitir o pronome complemento do verbo (e isso vale para todas as pessoas do
discurso). Nesse caso, configura-se o que neste trabalho tem-se nomeado referenciação
textual zero, como neste exemplo de Júlio Ribeiro (2002: 13), em que o pronome de terceira
pessoa (ele) é omitido: ―Lopes Matoso vergou à força do golpe, mas, como homem forte que
era, não se deixou abater de vez: reergueu-se e aceitou a nova ordem de coisas que lhe era
imposta pela imparcialidade brutal da natureza‖.
56
No caso dos pronomes plurais de terceira pessoa, Neves (2011) postula que essas
formas têm a propriedade de fazer um tipo de referenciação genérica. Entretanto, a autora
ressalta que essa indeterminação ―é parcial, já que ela só abrange o universo das terceiras
pessoas, ficando excluídas as outras pessoas do discurso‖, como neste exemplo ―Sabe como é,
quando a gente se acostuma com uma coisa, eles inventam outra‖. (p. 464)
Enquanto os pronomes pessoais são sempre funcionalmente substantivos, ou seja, eles
sempre preenchem a casa referencial, os possessivos, no geral de seu uso, ―não são mais do
que as formas adjetivas dos pronomes pessoais propriamente ditos‖ (CÂMARA Jr., 2011:
122). Eles podem funcionar ora como determinantes ora como predicadores. Os pronomes
possessivos são bipessoais, ou seja, relacionam duas pessoas do discurso, e essa relação pode
ser expressa de diferentes formas: entre a 1ª e a 3ª pessoa; entre a 2ª e a 3ª pessoa; entre a 3ª e
a 3ª pessoa. Isso quer dizer que, em sintagmas nominais cujo determinante é um possessivo, o
núcleo será sempre uma terceira pessoa (nome, ou substantivo), posta em relação com outra
pessoa, que pode ser a 1ª, a 2ª ou a 3ª (NEVES, 2011: 471).
Castilho diz (2010: 504) que os possessivos funcionam como ―um operador dêitico
que seleciona dois escopos, sendo um textual, referencial, e outro contextual, que são as
pessoas do discurso‖, e a relação entre esses dois escopos, na maioria das vezes, é de posse.
Além dessa indicação, o possessivo traz em relação ao substantivo outras relações semânticas,
como mostra Neves (no prelo: 545): ―o pronome possessivo estabelece relações infinitamente
variadas, às vezes bastante frouxas e genéricas, em dependência do contexto em que as duas
pessoas do discurso são postas em relação‖.
Em algumas construções em que o pronome possessivo de terceira pessoa seus(s) atua
como determinante do sintagma nominal, ele tanto pode fazer referência à segunda como à
terceira pessoa do discurso, dificultando a identificação referencial do possuidor, e, por conta
disso, facilmente criando ambiguidade (NEVES, no prelo). A autora mostra que é muito
frequente o uso da expressão formada por de + substantivo ou pronome, em lugar do
possessivo seu. Nesse formato ―ficam bem evidentes a pessoa (2ª ou 3ª), o número (singular
ou plural), e, em alguns casos, o gênero (masculino ou feminino) do possuidor‖ (p. 537),
como neste trecho do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, 1988: ―Foi até o portão da
estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se tinham visto Jerônimo; ninguém dava
notícias dele‖ (p. 120), no qual o uso da expressão dele permite identificar como possuidor
Jerônimo (terceira pessoa; masculino; singular).
Embora o possessivo seja, em princípio, um pronome adjetivo, como já se observou,
ele pode constituir o núcleo de um sintagma nominal, assumindo a função exercida por esse
57
sintagma (sujeito, complemento, etc.), como na seguinte construção oferecida por Neves (no
prelo: 542): ―Eu... eu jamais seria capaz de levar uma vida como... como a sua, por
exemplo...‖. Ainda segundo a autora, nos casos em que o pronome possessivo ―funciona
como predicativo do sujeito, ele se relaciona com um sintagma nominal (ou um pronome
pessoal que esteja em seu lugar), sem fazer parte desse sintagma‖ (p. 541).
Assim como os possessivos, os pronomes demonstrativos também podem ser usados
em função adjetiva ou substantiva, mas em geral funcionam como adjuntos, à exceção dos
invariáveis ou neutros (isto, isso e aquilo), que sempre ocorrem como núcleo do sintagma
(pronome substantivo), e, além disso, são frequentemente usados para retomar uma porção do
texto, como neste trecho do romance Senhora, 1985, em que o pronome isso nominaliza a
sequência o sacrifício enorme de renunciar à vida elegante, dando a esse conjunto de
informações o estatuto discursivo de referente (APOTHÉLOZ; CHANET, 2003):
De um homem assim organizado com a molécula do luxo e do galanteio, não
se podia esperar o sacrifício enorme de renunciar à vida elegante. Excedia
isso a suas forças; era uma aberração de sua natureza. (p.83)
A função básica do pronome demonstrativo, segundo Neves (no prelo: 550), ―é fazer
referência a outro(s) elemento(s), seja na situação seja no texto, apontando-o(s) por menção à
posição relativa desses elementos (na situação ou no texto)‖. Castilho (2010) mostra que
normalmente os pronomes este, esse e aquele são estabelecidos como vocábulos que apontam
para referentes que se localizam, respectivamente, próximos à primeira, à segunda e à terceira
pessoa, resultando em um esquema ternário. O autor ressalta, porém, que esse esquema não
corresponde ao uso contemporâneo, pois na língua falada, ele tem perdido espaço para o
sistema binário esse/este e aquele. Um exemplo dessa mudança foi observado pelo autor no
português falado culto de São Paulo, em que se registrou um aumentado considerável do uso
do pronome esse no lugar de este21
.
Em língua portuguesa há alguns demonstrativos de natureza adverbial (locativos),
como, por exemplo, aqui, aí e ali. No geral, o primeiro corresponde ao falante; o segundo
corresponde ao ouvinte; o terceiro corresponde a uma área distante tanto do falante quanto do
ouvinte. Segundo Neves (2011), o uso de advérbios pronominais (aqui, aí e lá) junto dos
demonstrativos de 1ª, 2ª ou 3ª pessoa especifica a proximidade ou a distância do referente,
21
O uso do pronome esse no lugar de este foi registrado nas pesquisas realizadas pelos estudiosos do Projeto
NURC (Projeto de Estudo Coordenado da Norma Urbana Linguística Culta).
58
como na frase ―Está pensando que isto aqui é a Inglaterra‖, em que o pronome isto indica
maior proximidade com o falante. (p. 555)
A lição geral sobre os pronomes demonstrativos e as palavras referenciadoras em
geral, como indica Neves (no prelo: 552), ―diz que a linguagem se constrói por referência a
elementos que se vão incorporando no texto (como objetos de discurso), e no texto vão
formando uma rede referencial coesiva, ou seja, vão relacionando os referentes do texto, vão
constituindo referencialmente o texto‖.
Essa relação tripartida dos demonstrativos com as pessoas do discurso (estabelecidas
no tempo e no espaço da enunciação) transfere-se para relações textuais de proximidade e de
distância, o que é naturalmente aproveitado para construir e manter a coesão textual, dada a
própria natureza referenciadora dos pronomes demonstrativos.
Nesta pesquisa, cuja proposta é realizar uma análise da referenciação textual
(endofórica), a análise dos elementos fóricos se concentra, obviamente, nos pronomes
pessoais, possessivos e demonstrativos de terceira pessoa do singular e do plural, que são os
pronomes que fazem esse tipo de referência.
3.3.3 O papel referencial do artigo definido e o artigo indefinido
Quanto ao uso do artigo definido, uma proposta de Hawkins (1978) considera três usos
para esse artigo, um anafórico e dois situacionais. Explicitando o autor, Neves (2007) diz que
o uso anafórico implica uma forma de instrução que permite ao ouvinte relacionar um
referente textual a um objeto particular em sua memória, isso porque tanto o falante como o
ouvinte têm na memória um conjunto de princípios organizacionais (identificação entre os
interlocutores, conhecimento compartilhado, interações prévias e a própria situação
discursiva) que agrupam objetos disponíveis para uma referenciação definida.
Quanto ao uso situacional, Neves (2007: 133-134) explicita que ele está dividido em
dois tipos, o de ‗situação imediata‘ e o de ‗situação ampla‘: o primeiro tipo implica um
referente textual único e visível, pelo menos para o ouvinte, ou um referente que não está
visível, mas pode ser inferido pelos interlocutores na situação discursiva; o segundo implica o
conhecimento que o ouvinte tem sobre referentes que se situam numa situação mais ampla de
discurso, como, por exemplo, interlocutores que moram ou moraram em uma mesma região,
e, portanto, compartilham o conhecimento de referentes existentes nessa região. Nos casos de
situação ampla em que os interlocutores não compartilham conhecimento suficiente, mas o
59
ouvinte consegue reconhecer, por inferência, o referente, o enunciado é interpretado
adequadamente (NEVES, 2007).
Tratando o artigo definido, Castilho (2010: 491) afirma que sintaticamente a presença
ou a ausência do artigo no sintagma nominal é irrelevante à boa organização estrutural, exceto
quando o artigo nominaliza outras classes de palavras, ou em casos em que a complementação
do sintagma nominal torna a referenciação do substantivo altamente definida, como neste
exemplo oferecido na obra: Acabei a lição mais difícil. O autor ressalta que, do ponto de vista
semântico, a presença ou ausência do artigo altera fortemente a interpretação das expressões.
Para Neves (2011), de um modo geral, o artigo definido particulariza um indivíduo
dentre os demais indivíduos da espécie, entretanto isso não exclui que ele possa ter usos que
se possam entender como genéricos, desde que seja em referência, por exemplo, ―a toda uma
classe de pessoas ou coisas‖. (p. 395)
Diferentemente do artigo definido, o artigo indefinido tem, frequentemente um uso
não referencial, podendo aplicar-se a qualquer elemento da classe ou grupo que é descrito
pelo sintagma nominal, o que configura uma generalização (NEVES, 2011).
Neves (2007: 135) observa que é uma ideia corrente que o artigo indefinido indica que
o objeto referido é um membro de uma classe infinita de objetos. Ressalta, porém, com base
em Hawkins (1978: 173), que um artigo indefinido não é usado apenas para indicar que o
objeto referido não existe em nenhum conjunto compartilhado pelos interlocutores, pois a
referência feita por meio de uma expressão indefinida pode resultar da exploração de um
conhecimento ou de uma situação compartilhados pelos participantes do discurso. Nessa
perspectiva, o autor nota que o artigo indefinido, assim como o artigo definido, pode ocorrer
tanto em situação imediata, em que o referente está visível, como em situação ampla, em que
o referente é reconhecido no conjunto.
A diretriz de análise deste trabalho é a referenciação, e é dentro desse processo
coesivo que vem tratada, além dos sintagmas nominais e dos pronomes, a elipse, considerada
como anáfora zero. Esse tipo de referenciação constitui, segundo Oliveira (2009: 197), ―um
mecanismo de coesão em que a recuperação de um constituinte é processada num espaço
formalmente vazio‖, em que ―o preenchimento fórico se faz no plano semântico com a
ativação das informações subentendidas‖, que, em princípio, já ocorreram num momento do
texto.
60
4. A PERTINÊNCIA DA NOÇÃO DE GÊNERO DISCURSIVO E SEQUÊNCIA
TEXTUAL NO ESTABELECIMENTO DA CADEIA REFERENCIAL
4.1 Os gêneros discursivos
A consideração da existência de gêneros teve origem na Antiguidade Clássica, com
Platão (MARCUSCHI, 2008). Veio a seguir Aristóteles, que tratou os gêneros e a natureza do
discurso na Retórica e na Poética (Aristóteles, 199-22
).
Aristóteles [199-: 39] definiu três gêneros da ―Retórica‖, o deliberativo, o demonstrativo
e o judiciário, que correspondiam a três categorias de ouvintes dos discursos: a pessoa que
fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala, sendo este último, necessariamente,
espectador ou juiz, ou seja, o componente que dirige o discurso. Entretanto, pela própria
natureza do discurso, esse ouvinte não era visto como parceiro em interlocução (NEVES,
2010).
Na ―Poética‖, [199-] estabeleceu mais três gêneros, o épico, o trágico e o lírico,
chamados gêneros literários, sendo os dois primeiros (épico e trágico) considerados pelo
autor como os mais importantes. O critério utilizado por Aristóteles para diferenciar esses
gêneros era a imitação: a imitação de pessoas de nível elevado correspondia ao épico e ao
trágico, e a imitação de pessoas de níveis menores correspondia à comédia.
A concepção de gênero esteve por muito tempo mais atrelada à literatura do que a
outros meios discursivos, mas atualmente o número de gêneros considerados, tanto na
oralidade como na escrita tem-se ampliado, e ―hoje, gênero é facilmente usado para referir
uma categoria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem
aspirações literárias‖ (SWALES, 1990: 33; apud Marcuschi, 2010: 31).
De acordo com Neves (2010: 90), ―falar de gêneros, hoje, na era da Linguística, é ter
como foco a interação pela linguagem, enquanto falar de gênero, em Aristóteles, era falar do
objeto ‗poética‘ ou do objeto ‗retórica‘, tendo como foco o ‗dizer bem‘ com a linguagem‖,
pois, como diz a autora, o autor nunca perdeu de vista a linguagem como instrumento para
dizer a verdade. No entanto, a linguagem não era foco de interação.
Machado (2007) mostra que, a partir dos estudos de Bakhtin, houve uma mudança na
rota dos estudos sobre gêneros, pois, além das formações poéticas, o autor afirmou ―a
necessidade de um exame circunstanciado não apenas da retórica mas, sobretudo, das práticas
22 Esse é o modo de indicação da data (desconhecida), na obra consultada.
61
prosaicas que diferentes usos da linguagem fazem do discurso, oferecendo-o como
manifestação de pluralidade‖ (p. 152).
4.1.1 O gênero em uma perspectiva interacionista
Para Bakhtin (1997: 294), o enunciado não é uma unidade convencional, é uma
unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos interlocutores (os sujeitos falantes).
O autor considera que todo enunciado termina com a transferência da palavra ao outro, como
um sinal, percebido pelo ouvinte, de que o falante terminou.
Nessa perspectiva, de acordo com Machado (2007), Bakhtin propôs uma alternativa
para a ―Poética‖, voltando a atenção para outra esfera discursiva: a prosa. É nessa esfera que
se encontra o grande objeto de estudo do autor, o romance.
A valorização do romance nos estudos de Bakhtin (1997) não se deu apenas pelo fato
de ser este o gênero maior da cultura letrada, pois
na verdade, o romance só lhe interessou porque nele Bakhtin encontrou a
representação da voz na figura dos homens que falam, discutem ideias,
procuram posicionar-se no mundo. Isso para não dizer que, no romance, a
própria cultura letrada se deixa conduzir pelas diversas formas discursivas da
oralidade contra as quais ela se insurgira. Além disso, por se reportar a
diferentes tradições culturais, o romance surge como um gênero de
possibilidades combinatórias não apenas de discursos como também de
gêneros. (Machado, 2007: 153)
Compreende-se que o romance, embora de forma indireta, pois os interlocutores não
estão face a face, possibilita um processo de interação em que o falante/autor ganha voz para
enunciar os seus propósitos, dentro de um contexto cultural que se reflete na obra, podendo
atingir diferentes esferas comunicativas.
Em cada esfera de utilização da língua são elaborados tipos estáveis de enunciados
(BAKHTIN, 1997). São esses tipos estáveis que o autor denomina gêneros do discurso. Por
se constituírem na esfera prosaica da linguagem (interação discursiva), eles ―incluem toda
sorte de diálogos cotidianos bem como enunciações da vida pública, institucional, artística,
científica e filosófica‖ (MACHADO, 2007: 155).
A grande variedade dos gêneros do discurso, como pontua Bakhtin (1997), ocorre pela
variedade virtual da atividade humana, que é inesgotável, sendo que ―cada esfera dessa
atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e
ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa‖ (p. 279).
62
Por conta disso há dificuldade em definir o caráter genérico dos enunciados. Nesse
ponto, Bakhtin (1997) sugere uma diferenciação entre o gênero primário e o secundário.
Segundo o autor, os gêneros secundários são os mais complexos, são gêneros ―da
comunicação produzida a partir de códigos culturais elaborados, como a escrita‖, e, durante
seu processo de formação, os gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros
primários, que são mais simples, são ―gêneros da comunicação cotidiana‖ (MACHADO,
2007: 155). Estes, ao serem absorvidos, transformam-se e adquirem características
particulares.
Bakhtin (1997: 281-282) afirma que ―a distinção entre gêneros primários e gêneros
secundários tem grande importância teórica, sendo esta a razão pela qual a natureza do
enunciado deve ser elucidada e definida por uma análise de ambos os gêneros‖. O autor
postula que ―só com esta condição a análise se adequaria à natureza complexa e sutil do
enunciado e abrangeria seus aspectos essenciais‖.
Os gêneros secundários são unidades de comunicação verbal, que, mesmo mantendo
sua nitidez externa, adquirem uma individualidade interna, que corresponde à visão de mundo
do falante (o autor da obra). É justamente essa individualidade ―que cria as fronteiras internas
específicas que, no processo da comunicação verbal, a distinguem das outras obras com as
quais se relaciona dentro de uma dada esfera cultural‖ (BAKHTIN, 1997: 298).
Para concretizar seu propósito comunicativo ou o ―querer-dizer‖, o falante apropria-se
de um gênero discursivo. Essa escolha é condicionada à esfera discursiva, às necessidades
temáticas e aos interlocutores da interação verbal (BAKHTIN, 1997). Nesse processo
comunicativo há uma dinâmica verificada na interação entre o falante e o ouvinte, na qual
ambos são ativos, pois, no momento em que o falante termina sua comunicação, que é
realizada por meio de um enunciado, o ouvinte, que até então era passivo, assume a posição
ativa para responder, por meio de seu enunciado.
Machado (2007), ao relatar as perspectivas de Bakhtin, afirma que ―antes mesmo de se
configurar como terreno de produção de mensagens, os gêneros são elos de uma cadeia que
não apenas une como também dinamiza as relações entre pessoas ou sistemas de linguagens e
não apenas entre interlocutor e receptor‖ (p. 158). Nesse ponto, Silva (1995) nota que o tipo
de texto e o tipo de discurso resultam do processo interlocutivo estabelecido pelos
interlocutores em uma dada situação discursiva. A relação estreita que há entre tipo de texto e
tipo de discurso se evidencia ―na medida em que o discurso se materializa linguisticamente
por meio do texto‖ (p. 37).
63
Assim sendo,
os gêneros podem ser inicialmente entendidos como modos de organização
da informação ou de estruturação discursiva; num segundo momento, como
unidades de uso dessas estruturas discursivas em situações comunicativas
particulares; ou ainda como categorias que incorporam vários modos de
condução discursiva, de um modo mais complexo e abrangente, como a carta
pessoal e a conversa, onde diversas unidades menores coexistem, sem, no
entanto, perder suas características enquanto unidades discursivas. Desse
modo, são considerações de ordem formal e de ordem funcional que se
integram na categorização. (PAREDES SILVA, 1997: 94)
Entende-se que o gênero é um grande veículo de comunicação e que, como postula
Bakhtin (1997), as unidades menores que o compõem não perdem suas características
próprias, muito embora percam sua relação direta com a realidade, para se integrarem à
realidade do gênero ao qual se inserem. Por exemplo, um diálogo cotidiano, que passa a fazer
parte de um romance, só adquire sentido dentro do dito romance.
As unidades menores que compõem um romance, considerado por Bakhtin (1997)
como gênero complexo, são os tipos textuais. Normalmente, em um enunciado coexistem
harmonicamente diferentes tipos, como pontua Travaglia (1992: 43): ―o texto todo pode ser
de um tipo, as sequências podem se alternar, um tipo pode ser usado em função do outro ou
eles podem se combinar‖. O autor nota que entre os tipos textuais pode haver ―relações de
aliança, inclusão, conflito, determinação ou outras detectáveis pela análise do funcionamento
discursivo‖ (p. 43).
Tratando da constituição e da funcionalidade dos textos, Travaglia (2010) mostra que
há quatro categorias de textos: de um lado, os tipos e os subtipos; de outro lado, os gêneros e
as espécies.
Segundo o autor, ―o tipo é identificado e se caracteriza por instaurar um modo de
interação, uma maneira de interlocução segundo perspectivas do produtor que são variáveis e
constituem critérios para o estabelecimento de tipologias diferentes‖ (p. 148). Marcuschi
(2008: 154) acrescenta que ―o tipo caracteriza-se muito mais como sequências linguísticas
(sequências retóricas) do que como textos materializados; a rigor são modos textuais‖. O
subtipo ―é um modo de interação que é variante do modo de interação estabelecido por um
tipo em função de algum fator que cria os subtipos‖ (TRAVAGLIA, 2010: 148).
Ainda segundo Travaglia (2010: 148), ―o gênero é identificado e se caracteriza por
exercer uma função social específica de natureza interativa e comunicacional‖. Nesse sentido,
Marcuschi (2008: 155) diz que ―em contraposição aos tipos, os gêneros são entidades
empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações diversas, constituindo
64
em princípio listagens abertas‖. A espécie ―é identificada e se caracteriza por aspectos formais
de estrutura (inclusive superestrutura) e da superfície linguística e/ou por aspectos de
conteúdo‖ (TRAVAGLIA, 2010: 149). Exemplos de espécie são categorias de texto tais como
textos em prosa e textos em versos; carta, telegrama, etc.
O gênero, dentre as quatro categorias eleitas por Travaglia (2010), é a mais numerosa,
afinal é por meio dessa categoria que os integrantes de uma sociedade interagem entre si e
com outras comunidades. Isso permite compreender que o grande número de gêneros textuais
se explica pelo fato de haver em uma sociedade diferentes comunidades discursivas que
necessitam criar gêneros que permitam a interação entre seus membros, bem como com outras
comunidades.
De acordo com Travaglia (2010), os tipos, os subtipos e as espécies compõem o
gênero. Este, normalmente, é integrado por mais de um tipo textual, com predomínio de um
deles. Assim sendo, considera-se que um texto é narrativo se é esse o tipo textual que
predomina, e, portanto, dificilmente se encontrarão ―tipos puros‖ (TRAVAGLIA, 2002). De
acordo com o autor, os diferentes tipos textuais ―representam recursos diversos que
funcionam diferentemente na constituição dos textos, como marcas linguísticas que contêm
pistas e instruções de sentido‖ (2002: 202).
No gênero romance, por exemplo, predomina o tipo narrativo, com o qual coexistem
outros tipos textuais (TRAVAGLIA, 2010). Nesse sentido, o autor nota que existem
diferenças entre textos do mundo narrado e textos do mundo comentado. É nesses tipos de
textos que se pode observar a diferença entre uma descrição no presente do indicativo, ―em
que o produtor do texto se compromete com a validade do que diz‖ (p.152), e uma descrição
no pretérito imperfeito do indicativo, ―em que o produtor não se compromete‖ (p.152). O
autor mostra que a primeira formação corresponde à narração do mundo comentado, enquanto
a segunda, à narração do mundo narrado.
Para Bronckart (2003), o mundo narrado é o mundo do narrar e o mundo comentado é
o mundo do expor. Explicitando Hamburguer (1996: 75-87), o autor mostra que os fatos
organizados em um mundo narrado autônomo ou atemporal, quando não estão ancorados em
nenhuma origem específica, organizam-se em referência às coordenadas gerais da ação da
linguagem em curso. Nesse tipo de construção os fatos são organizados como acessíveis aos
protagonistas da interação, portanto, não são narrados, são expostos.
Seguindo ainda as reflexões de Hamburguer (1996), Bronckart (2003) explica que, na
ordem do narrar, o mundo discursivo é situado em outro lugar, que, no entanto, deve
permanecer como um mundo que pode ser interpretado pelos leitores. Quanto ao mundo do
65
expor, o autor diz que o conteúdo temático dos mundos discursivos conjuntos são, em
princípio, interpretados sempre à luz dos critérios de validade, que será ―baseada
exclusivamente nos critérios de elaboração e de validação dos conhecimentos no mundo
ordinário‖ (BRONCKART, 2003: 154); ou seja, neste último, os acontecimentos são narrados
de forma expositiva e crítica.
Ao tratar das narrativas, Paredes Silva (1997: 88), explicitando Schiffrin (1994), diz
que, ―se, por um lado, narrativas podem ter certa autonomia, enquanto estruturas com uma
organização característica, por outro, elas são sensíveis ao contexto em que se desenrolam, às
experiências de quem as conta‖. Paredes Silva (1997) mostra que comparar estruturas textuais
diferentes, ajuda a compreender melhor por que uma dada cadeia de enunciados é identificada
como ocorrência de um gênero discursivo e não de outro. Isso ocorre porque cada sequência,
normalmente, apresenta uma estrutura específica23
.
Em suma, nota-se que todo texto se realiza em algum gênero. Este, por sua vez, é
composto, na maioria das vezes, por diferentes tipos textuais, realiza-se em um domínio
discursivo e, de acordo com Marcuschi (2008: 176), fixa-se ―em algum suporte pelo qual
atinge a sociedade‖. O suporte de um gênero é definido pelo autor como ―um lócus físico ou
virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero
materializado como texto‖ (2008: 174). O autor identifica duas categorias de suportes
textuais: a categoria dos suportes convencionais, típicos para a finalidade de fixar textos
(livros, jornais, quadro de avisos, etc.) e a categoria dos suportes incidentais, que podem
trazer textos, mas não são destinados para essa finalidade, são meios casuais que emergem em
situações especiais (roupas, embalagens, paredes, etc.). Quanto ao domínio discursivo, ele
―não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários deles‖ (MARCUSCHI, 2008:
155).
O gênero escolhido para este trabalho, o romance, está fixado no suporte convencional
– que tem como finalidade fixar textos (MARCUSCHI, 2008) –, cujo domínio discursivo é o
ficcional. Trabalha-se, como pontuado na metodologia, com romances de diferentes épocas, o
que faz lembrar que os gêneros são ―formas culturais e cognitivas de ação social
corporificadas de modo particular na linguagem‖ (Marcuschi, 2008: 156). São, portanto,
entidades dinâmicas que não podem ser consideradas independentemente, pois estão
intrinsecamente relacionadas aos contextos nos quais foram produzidas (incluem-se nesses
contextos os fatores sociais, culturais, etc.).
23
As sequências textuais serão tratadas adiante.
66
4.1.2 O gênero em uma perspectiva funcionalista: texto e contexto
Segundo Bronckart (2003: 137), na escala sócio-histórica,
os textos são produtos da atividade de linguagem em funcionamento
permanente nas formações sociais: em função de seus objetivos, interesses e
questões específicas, essas formações elaboram diferentes espécies de textos,
que apresentam características relativamente estáveis (justificando-se que
sejam chamadas de gêneros de texto) e que ficam disponíveis no intertexto
como modelos indexados, para os contemporâneos e para as gerações
posteriores.
Compreende-se que a necessidade interacional acarreta mudanças em um gênero. O
gênero, portanto, não é um produto linguístico fixo, mas sim um produto aberto a novas
incorporações ou supressões textuais, que ocorrem de acordo com os propósitos dos falantes
no ato comunicativo, seja oral ou escrito. São essas alterações que modificam as
características de um gênero preexistente, impossibilitando uma ―classificação racional,
estável e definitiva‖ (BRONCKART, 2003: 138).
Os gêneros têm uma forma e uma função, um estilo e um conteúdo, mas sua
determinação ocorre pela função e não pela forma (MARCUSCHI, 2008). Assim sendo, o
gênero é um instrumento de funcionamento da língua e da linguagem, usado no processo
discursivo entre o sujeito (falante) e o objeto, ou o sujeito e a situação, na qual ocorre a
interação, com o propósito de produzir sentido e estabelecer a comunicação pretendida
(SCHNEUWLY, 2004).
Nesse sentido, como lembra Paredes Silva (1997), cada gênero se associa a
determinadas situações de uso. A autora nota que o discurso é vinculado à vida social,
portanto sua análise interliga significados, sistema e atividades externas a ele. Nessa
perspectiva, ―o trato dos gêneros diz respeito ao trato da língua em seu cotidiano nas mais
diversas formas‖ (MARCUSCHI, 2008: 149).
Entende-se por aí que um estudo sobre gênero tende a observar sobretudo a relação
entre texto e contexto. É o que pondera Hasan, em sua obra conjunta com Halliday (1989), ao
afirmar que toda análise da linguagem precisa considerar o contexto em que ela foi produzida.
Segundo Motta-Roth e Herbele (2010), o argumento central dos textos de Hasan é a
necessidade e a possibilidade de analisar a linguagem como um sistema sociossemiótico,
utilizando os conceitos de gênero e de estrutura potencial do gênero, em consonância com o
modelo sistêmico funcional hallidayano.
Na perspectiva de Halliday (1964, 1973, 1978, 1989), a relação do texto/contexto é
definida, como já se mostrou em 1.2.1, em termos de contexto de cultura e de contexto de
67
situação, sendo, o primeiro, o conjunto amplo e aberto de possibilidades de uso da língua,
enquanto o segundo corresponde à seleção feita dentre as várias opções de uso linguístico. O
autor delimitou três variáveis do contexto de situação: o campo, o modo e a relação, que se
realizam por meio das metafunções de seu modelo sistêmico funcional: ideacional,
interpessoal e textual.
Motta-Roth e Herbele (2010), seguindo as reflexões de Hasan, dizem que cada
contexto de situação é um sistema que motiva o uso da linguagem de forma tal que uma
determinada atividade humana e a interação entre os participantes do processo discursivo são
mediados pela linguagem. Assim, o que é relevante em termos de uso da linguagem é, ao
mesmo tempo, um processo individual (no que diz respeito ao falante) e compartilhado (no
que diz respeito à interação). Ainda segundo as autoras, ―um conjunto compartilhado de
contextos da situação constitui um dado contexto da cultura, sistema de experiências com
significados compartilhados‖ (p.15). Além disso, ―enquanto o texto pode ser previsto a partir
de pistas contextuais, o contexto é construído pelo conjunto de textos produzidos dentro de
uma situação específica num contexto de cultura‖ (p.17).
Do ponto de vista funcionalista, na relação funcional que se estabelece entre
linguagem e contexto da situação, ―cada gênero corresponde a padrões textuais recorrentes (o
uso que se faz da linguagem para atingir certos objetivos comunicativos) e contextuais (a
situação de experiência humana com a qual determinado registro de linguagem é comumente
associado)‖ (MOTTA-ROTH; HERBELE, 2010: 17).
Neves (2010: 96-97), ao tratar o gênero, faz um imbricamento entre a visão
funcionalista e a linguística do texto. Ao explicar as reflexões de Eggins e Martin (2003), a
autora diz que na visão funcionalista, ―o texto é visto como a codificação e construção de
diferentes níveis/estratos de contextos nos quais ele é posto em cena‖. Dessa forma, o texto
tanto é a realização de tipos de contexto – observando-se que aí entra o ―registro‖ –, como é a
colocação em cena daquilo que interessa aos interlocutores de uma cultura em situações
discursivas – observando-se que aí entra o gênero.
A linguística do texto, segundo Neves (2010), é uma corrente que adota o texto como
objeto de investigação. A autora, citando Ciapuscio (2005), mostra que a linguística textual e
a corrente funcionalista
têm procedência epistemológica partilhada, especialmente quanto à inclusão
dos aspectos sociais e culturais como fatores determinantes das teorizações,
e quanto à perspectiva teórica, de inspiração funcionalista, de consideração
das línguas como repertórios oferecidos a uma constante escolha por parte
dos interactantes, características que explicam a relevância que a noção de
gênero tem em ambas as correntes. (NEVES, 2010: 97)
68
Segundo Adam (1990, apud Bronckart, 2003: 145), o método da linguística textual
consiste em apagar a relação com o contexto – escolha teórica que poderia aproximar-se da
ideologia do texto absoluto –, e ―analisar as grandes regularidades transfrasais observáveis
nesse artefato constituído pela variável textual‖. Entretanto, Bronckart (2003) lembra Culioli
(1973), Ducrot (1980), Eco (1985), Rastier (1989) e Ricoeur (1986), autores citados pelo
próprio Adam (1990), para os quais um texto só ganha sentido mediante a atividade de
interpretação de seus leitores. Nessa atividade, o leitor reconstrói o sentido a partir dos
elementos que lhe são oferecidos concretamente no texto. Como postula Adam (1992), esses
elementos que se materializam no texto funcionam como instrumentos destinados a orientar o
leitor na interpretação do texto.
Tanto uma corrente como a outra sustentam o propósito de que cada comunidade
linguística tem uma série de estilos, com os quais se comunica, de forma oral ou escrita, em
cada situação de uso.
Na mesma linha de pensamento, o teórico funcionalista Dik (1997) postula que todo
discurso está inserido em um evento discursivo em que se realiza. Apoiado em Hymes (1972),
o autor diz que a concretização do discurso em uma situação discursiva implica: os
participantes; a relação que há entre eles; o lugar e o tempo da fala; além dos direitos e das
dúvidas dos interlocutores. Justamente por envolver todos esses aspectos, a concretização da
interação resulta em diferentes tipos, os gêneros.
Os gêneros, segundo Dik (1997), organizam-se por diferentes parâmetros discursivos,
dentre eles: o meio de comunicação, que pode ser falado ou escrito; a participação, que pode
efetuar-se por monólogo, diálogo, etc.; a relação entre os participantes, que pode ser direta,
indireta ou semi-indireta; a formalidade, que corresponde ao grau de institucionalização do
evento discursivo e ao grau de formalidade do estilo de interação; e o propósito da
comunicação, que pode ser narrativo, argumentativo, didático, estético. Nota-se que os
parâmetros discursivos, instituídos pelo autor, assemelham-se às variáveis do contexto de
situação desenvolvidas por Halliday, reforçando a relevância do contexto para qualquer
situação discursiva em que o enunciado se realize. Isso será mais especificado no item 4.3 O
gênero romance.
69
4.2 As sequências textuais
Dolz e Schneuwly (2004: 51-52), situados na teoria bakhtiniana, consideram que todo
gênero se define por três dimensões essenciais, a saber: os conteúdos que são dizíveis através
dele; a estrutura particular dos textos pertencentes ao gênero; as configurações específicas das
unidades de linguagem (que são sobretudo traços da posição enunciativa do falante) e os
conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura.
Uma teorização da organização dos textos baseada na noção fundamental de sequência
foi proposta, segundo Bronckart (2003), por Adam (1990, 1991a, 1991b, 1992). Nessa
teorização, as sequências são consideradas como
unidades estruturais relativamente autônomas, que integram e organizam
macroproposições, que, por sua vez, combinam diversas proposições,
podendo a organização linear do texto ser concebida como o produto da
combinação e da articulação de diferentes tipos de sequências.
(BRONCKART, 2003: 218)
Bonini (2010) mostra que Adam (1992), em suas reflexões, se vale da noção de
estabilidade proposta por Bakhtin (1953), pensando-a mediante o raciocínio prototípico de
Rosch (1978): as sequências são entendidas como ―pontos centrais da categorização dos
textos e, portanto, como os principais componentes para a atividade com textos‖ (p. 210).
Para o autor ―os gêneros marcam situações sociais específicas, sendo essencialmente
heterogêneos‖ enquanto as sequências, que constituem componentes que atravessam todos os
gêneros, ―são relativamente estáveis, logo, mais facilmente delimitáveis em um pequeno
conjunto de tipos (uma tipologia)‖.
Nesse conjunto, Travaglia (1991) mostra que há quatro tipos fundamentais de
sequências: a narrativa, a descritiva, a argumentativa e a injuntiva. Duas dessas sequências (a
narrativa e a descritiva), bem como a sequência dissertativa, serão objetos de estudo deste
trabalho, portanto, cabe, a seguir, uma breve definição dessas categorias. As sequências
injuntivas, por outro lado, não serão analisadas, pois elas, normalmente, trazem uma
referenciação exofórica, o que fugiria à proposta deste trabalho (referenciação endofórica).
Na constituição de sequências narrativas e descritivas, por exemplo, a questão das
fases aparece, segundo Bronckart (2003), como uma particularidade indispensável em Labov
e Waletzky (1967), Adam (1992; 1993) e Adam e Petitjean (1989). Embora o propósito deste
trabalho não seja o de analisar as fases que constituem cada sequência, parece pertinente uma
breve explicitação referente a elas, tendo em vista que muitos estudos sobre sequências
textuais partem dessas reflexões.
70
Para Labov e Waletzky (1967), explicitado em Bronckart (2003), uma sequência
narrativa compreende cinco fases principais que se sucedem obrigatoriamente, a saber: fase de
situação inicial, fase de complicações, fase de ações, fase de resolução e fase de situação final.
Além dessas, os autores consideram mais duas fases como componentes da narrativa: fase de
avaliação e fase de moral. Essas fases são aplicadas de acordo com a intenção do narrador.
Em uma sequência não necessariamente aparecerão todas as fases, muito embora em um
gênero como o romance, em que a sequência narrativa predomina, a organização dessas fases
pode surgir de forma bastante complexa.
A sequência descritiva, de acordo com Adam (1992; 1993) e Adam e Petitjean (1989),
explicitados em Bronckart (2003: 222), ―apresenta a particularidade de ser composta de fases
que não se organizam em uma ordem linear obrigatória, mas que se combinam e se encaixam
em uma ordem hierárquica ou vertical‖. Dando continuidade a esse raciocínio, Bronckart
apresenta as três fases implicadas na sequência descritiva: fase de ancoragem (em que o tema
da descrição é apresentado, podendo ocorrer no início, meio ou fim da descrição); fase de
aspectualização (em que é enumerada uma série de aspectos relacionados ao tema); e fase de
relacionamento (em que os aspectos descritos se relacionam uns aos outros por meio de
comparações ou metáforas).
Schiffrin (1994) mostra que a diferença básica entre uma sequência narrativa e uma
sequência descritiva, a qual a autora nomeia como lista, é que a primeira conta algo que
aconteceu, enquanto a segunda descreve uma entidade (PAREDES SILVA, 1997). A ideia de
lista parece bastante apropriada para nomear o tipo textual descritivo, no qual, normalmente, o
autor introduz (ou enumera) uma série de elementos linguísticos, para compor uma
personagem, um objeto ou um ambiente. Essas listas, segundo Charaudeau (2010: 113), não
são frutos do acaso, pois ―a atividade descritiva se inscreve sempre numa finalidade
comunicativa que fornece, e até mesmo impõe, seu quadro de pertinência‖.
Tratando as diferenças entre sequência narrativa e descritiva, Charaudeau (2010)
mostra que muitos estudos propõem esclarecer as diferenças entre esta e aquela, a partir das
marcas linguísticas presentes ou ausentes no texto. Segundo o autor, de fato existe uma
afinidade entre categorias de língua e modos discursivos, mas ele ressalta que a repetição de
uma mesma categoria ―não pode por si só determinar uma ordem discursiva e, muito menos,
caracterizar um texto (que depende da situação de comunicação)‖. Nesse sentido, uma mesma
categoria de língua pode estar presente em diferentes modos de organização do discurso
(narrativa, descritiva, dissertativa, etc.), bem como um mesmo modo de discurso pode evocar
diferentes categorias linguísticas. (p. 109-110)
71
Quanto à sequência dissertativa, Travaglia (1991) postula que, nela, ―busca-se o
refletir, o explicar, o avaliar, o conceituar, expor ideias para dar a conhecer, para fazer saber,
associando-se à análise e à síntese de representações‖ (p. 49). Segundo o autor, a dissertação
instaura o interlocutor como ser pensante, que raciocina.
Silva (1995) mostra que, em uma sequência dissertativa, a ordenação das situações
caracteriza-se pela simultaneidade em relação ao tempo. A autora lembra que, como se trata
de um tipo textual que se presta mais ―à interpretação, a fazer conhecer uma dada realidade
por meio de conceitos e generalizações, ela se apresenta, muitas vezes, abstraída de tempo e
espaço‖ (p. 51).
Nota-se que, no tipo textual dissertativo, as relações que se estabelecem entre os
interlocutores são de natureza lógica, o que permite ao ouvinte pôr em prática o seu
conhecimento de mundo, para refletir e compreender o enunciado proposto pelo falante.
Como pontuou Travaglia (2002), dificilmente um tipo textual será puro, podendo ser
predominantemente de um tipo ou de outro. Normalmente, as sequências são híbridas. Por
esse viés, uma sequência narrativa, por exemplo, pode constituir-se em termos de primeiro ou
de segundo plano para outro tipo textual. Nesse sentido, segundo Travaglia (1991), as
informações são organizadas em termos de informações essenciais e informações secundárias.
O autor mostra que os verbos, com suas formas e categorias, têm importante papel na
organização das informações, conforme elas sejam essenciais ou secundárias. O contraste
entre os dois planos ―pode chegar a interessantes determinações sobre o fazer do texto, sua
organização temática, a distribuição da informação, a focalização, e, afinal, o gênero da obra‖
(NEVES, 2007: 69). De acordo com a autora, no primeiro plano evidenciam-se formas
verbais perfectivas, enquanto no segundo plano ocorrem formas imperfectivas.
Qualquer que seja a sequência (narrativa, descritiva, dissertativa, etc.), nela haverá
elementos que constituem uma cadeia referencial. Nesse sentido, Toole (1996) diz que o
gênero não condiciona as escolhas referenciais que o compõem. Isso faz compreender que,
nas sequências textuais que compõem um gênero, como por exemplo, o romance, as
expressões referenciais que preenchem as casas fóricas são selecionadas pelo autor
exclusivamente a partir de suas intenções e necessidades comunicacionais, considerando-se o
contexto de produção da obra.
Na análise proposta neste trabalho será possível verificar as indicações de Toole
(1996), uma vez que ela visa justamente a verificar os tipos de preenchimentos fóricos
presentes no estabelecimento da cadeia referencial de diferentes sequências textuais, no
romance brasileiro.
72
4.3 O gênero romance
Para não multiplicar variáveis, os objetos de estudo deste trabalho (sequências
narrativas, descritivas e dissertativas) foram selecionados unicamente no gênero romance,
considerado, segundo apontou Bakhtin (1997), como um gênero secundário e complexo. De
acordo com o autor, independentemente do grau de complexidade ou da multiplicidade de
componentes, o gênero secundário ―não deixa de ser em seu todo (e como todo) um único e
mesmo enunciado real que tem um autor real e destinatários que o autor percebe e imagina
realmente‖ (p. 312).
Quando surgiu, na Inglaterra do século XVIII, o romance era considerado como um
gênero destinado apenas a um público menos intelectualizado que o da poesia épica e lírica
(FARACO & MOURA, 1988). O que pesou sobre o romance foi justamente o fato de que
―diferentemente de outros gêneros literários, que cumpriam funções nobres, como exaltar
feitos heroicos (a epopeia), exprimir dramas íntimos (a poesia lírica) ou representar emoções
(o teatro), o romance nasceu divertindo seus leitores‖ (LAJOLO, 2004: 29-30), e ao que
parece, até hoje essa é a função dos romances.
Segundo Faraco e Moura (1988), foi com a ascensão da burguesia europeia, que o
romance passou gradativamente a ser aceito como gênero respeitável.
Quando chegou ao Brasil, no século XIX, o romance já era um gênero consolidado na
Europa. Por conta disso, os romancistas brasileiros não precisaram empenhar-se muito –
como ocorreu na trajetória dos romances estrangeiros – para justificar o sentimento de
inferioridade da ficção frente à tradição da tragédia e dos textos épicos, como aponta
Vasconcelos (2002). Por essa razão, pontua a autora, os autores brasileiros puderam tratar de
outros assuntos, como, por exemplo, o cotidiano dos homens comuns, tema constante nas
obras tupiniquins.
De acordo com Vasconcelos (2002), nessa época o romance não era acessível como é
hoje: a efetivação do processo interativo entre autor e leitor dependia dos gabinetes de leitura,
que foram os responsáveis pela difusão e circulação dos romances no Brasil, a partir de 1830.
Um dos principais órgãos de divulgação das experiências brasileiras no terreno
ficcional, a partir do final de 1830, foi o Jornal do Comércio, que publicava, na seção
denominada Folhetim, o rodapé do jornal, uma mistura dessas experiências com romances
consagrados na Europa (VASCONCELOS, 2002). Lajolo (2004) mostra que, desde o início já
havia a preocupação em publicar bons textos, pois uma boa história prendia a atenção do
leitor que, interessado em dar a continuidade a sua leitura, compraria a próxima edição do
73
jornal. Dessa forma, tanto o jornal como o autor saiam ganhando: o primeiro, por aumentar
suas vendas e o segundo, por conseguir divulgar sua obra.
Muitos romances foram publicados primeiramente em folhetins e somente mais tarde
foram reunidos em livros, como foi o caso de A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo,
―primeiro romance brasileiro moderno de sucesso e longa permanência no gosto do público‖
(LAJOLO, 2004: 44). Compreende-se que essa forma de publicação contribuiu para formação
do público leitor.
Lajolo (2004) postula que, a partir da metade do século XIX, o romance não só se
firmou no Brasil como também começou a se ―abrasileirar‖: a preocupação em apresentar os
cenários brasileiros se tornou palavra de ordem. Nesse contexto, o Rio de Janeiro era o
cenário tanto de romances que retratavam o lado refinado da cidade, como Senhora, quanto
daqueles que retratavam o lado menos favorecido, como O cortiço. Aliás, José de Alencar e
Aluísio Azevedo, autores dos referidos romances, são dois dos autores que ―celebraram como
poucos o coração carioca da cidade do Rio de Janeiro‖ (LAJOLO, 2004: 71).
No século XX, como nota Lajolo (2004), o romance aconteceu em São Paulo. A
autora mostra que essa mudança de cenário se deu graças ao grande crescimento populacional
e econômico vivido pela cidade, e ressalta Mário de Andrade como um dos autores que
convida o leitor para a posição de ―voyeur‖ na cidade de São Paulo.
De um modo geral, depois que o romance se firmou no Brasil, ele aconteceu em
diferentes cenários e, independentemente de esse cenário ser urbano ou regional, na maioria
das vezes retratou, e ainda retrata, fatos cotidianos. Nesse sentido, como nota Jauss (1994),
mesmo que uma obra não surja como novidade absoluta, ela predispõe seu público a recebê-la
de uma maneira bastante definida, justamente pelos sinais, pelos traços familiares ou pelas
indicações implícitas em seu conteúdo. Assim sendo, uma obra, normalmente,
desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a
―meio e fim‖, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo
isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se
pode, então – e não antes disso –, colocar a questão acerca da subjetividade
da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.
(JAUSS, 1994: 28)
Compreende-se que um dos dispositivos que mantém a interlocução ativa entre autor e
leitor é justamente o fato de esse leitor se identificar com aquilo lê. Essa identificação mantém
o leitor preso ao texto, pois ele quer saber o que vai acontecer no decorrer da história.
Tratando essa relação entre autor, obra e leitor, Lajolo (2004) diz que o narrador mantém um
74
pacto com o leitor, na forma de contar a história, para enredá-lo em suas teias, pois sem o
leitor não há razão para que haja o romance.
Mesmo a história sendo construída à imagem e semelhança do leitor, há diferentes
maneiras de contá-la, bem como de prender a atenção do leitor, mantendo o processo
interativo. Assim, há escritores cujas obras requerem dos leitores substituir seus hábitos
mentais por atitudes novas, e outros que parecem ajustar-se aos hábitos mentais do leitor, ou
seja, há escritores que exigem mais dos seus leitores, enquanto outros parecem entregar tudo
picadinho não exigindo nenhum esforço mental (ANTONIO CANDIDO, 2009).
Para Lajolo (2004), seja de uma forma ou de outra, o autor produz sua obra para ser
lida não só por um, mas por muitos e variados leitores, o que resulta em uma infinidade de
interpretações. Segundo a autora (2008: 51), é ―no exercício dessa reinterpretação que cada
leitor, assenhorando-se do texto, torna-se sujeito de sua leitura‖. Acrescente-se também aos
seus dizeres que é nesse exercício que o leitor se torna um interlocutor indispensável.
Não bastasse tudo o que se disse sobre a interação que o romance promove entre autor
e leitor, é importante dizer que o romance se articula com a sociedade pela qual circula, a
sociedade que o escreve e que o consome (LAJOLO, 2004). Em outras palavras, cada
romance traduz em suas linhas os reflexos do contexto de cultura e do contexto de situação
que envolve sua produção (HALLIDAY, 1964; 1973; 1978; 1989; e HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004).
Como ponderou Lajolo (2004), uma das funções do romance é distrair o leitor, mas,
nessa função, ele pode, dentre outras coisas, instruir e informar quem o lê, principalmente
pelo fato de retratar aspectos de uma sociedade condicionada por um determinado contexto.
Aí entram os elementos que revelam esse contexto, como se viu na sequência de Amar, verbo
intransitivo explicitada no subitem 1.2.1 deste trabalho. Nesse sentido, na medida em que os
elementos linguísticos (expressões referenciais, ou objetos de discurso) que compõem a
cadeia referencial são introduzidos ou mantidos no texto, eles trazem para o leitor
informações de outros ambientes. Com isso, o ouvinte/leitor agrega novos conhecimentos, ou
revê conhecimentos já adquiridos. Além disso, a linguagem do romance, em certa medida,
pode transmitir e manter a ordem social, bem como conduzir a escolhas de composição
textual, como se poderá verificar nas análises das sequências narrativas dos romances
modernos e contemporâneos que serão apresentadas.
Entende-se que, em um romance, o leitor se identifica não só com os aspectos
cotidianos (pessoal, cultural, social, etc.), que prendem sua atenção, mas também com o
sistema linguístico de sua cultura. Afinal no processo de criação,
75
propriedades e elementos do sistema linguístico (unidades sonoras,
morfológicas, lexicais, sintáticas e suas relações) se relacionam de forma
extremamente próxima com a busca pela série de efeitos de sentido e
estéticos que o texto literário tem a intenção de despertar em seus leitores. A
pragmática se coloca de forma especial na efetivação desse diálogo, uma vez
que a observação da linguagem em uso implica analisar de que forma
aspectos linguísticos são empregados para que se atinja um determinado fim.
(BATISTA; GUIMARÃES, 2012: 120)
Selecionando-se para este trabalho sequências textuais de romances brasileiros que
foram produzidos em diferentes épocas (Romantismo, Realismo, Modernismo e
Contemporaneidade), pode-se preparar a visão de um contexto que permite verificar o sentido
que os elementos implicados no uso da linguagem – mais especificamente na constituição da
cadeia referencial de cada texto – revelam para os leitores. Afinal, pode-se obter um material
que contribui para observar o sistema linguístico operando em diferentes contextos.
5. A ANÁLISE DAS SEQUÊNCIAS TEXTUAIS
Como se especificou na metodologia, as sequências aqui analisadas foram
selecionadas em oito romances brasileiros de diferentes épocas, a saber: do Romantismo
(Senhora, de José de Alencar, e O seminarista, de Bernardo Guimarães); do Realismo (A
carne, de Júlio Ribeiro, e O cortiço, de Aluísio Azevedo); do Modernismo (Amar, verbo
intransitivo, de Mário de Andrade, e Alma, de Oswald de Andrade); e da Contemporaneidade
(O filho eterno, de Cristovão Tezza, e Vozes do Deserto, de Nélida Piñon).
Para compor o córpus, como também foi especificado na metodologia, foram
selecionadas em cada obra: oito sequências narrativas, oito sequências descritivas e oito
sequências dissertativas. A análise desse corpus se faz em três partes: 5.1 As sequências
narrativas; 5.2 As sequências descritivas; 5.3 As sequências dissertativas. Os diferentes
romances analisados se indicam, adiante, em sequência numérica, a partir do Romantismo até
a Contemporaneidade, passando pelo Realismo e pelo Modernismo.
76
5.1 As sequências narrativas
5.1.1 A análise das sequências narrativas
A análise das sequências narrativas tem por objetivo verificar os tipos de
preenchimentos fóricos usados para introduzir ou para recuperar as personagens, e, a partir
disso, verificar o grau de identificação que trazem tais elementos fóricos. Para tanto (e
resumindo as indicações que a metodologia24
fornece), serão cumpridas as seguintes etapas:
identificar as personagens que participam de cada sequência, verificar qual o tipo de
preenchimento fórico adotado para introduzi-las ou recuperá-las (sintagma nominal, pronome
pessoal, determinante pronome possessivo ou zero); verificar o grau de identificação dessas
personagens (grau máximo de identificação: nome próprio; grau intermediário de
identificação: sintagma nominal com núcleo composto por substantivo comum; grau baixo de
identificação: pronome pessoal e determinante possessivo; grau zero de identificação: casa
fórica vazia ).
Os dados referentes ao tipo de preenchimento fórico e ao grau de identificação se
apresentam dispostos em quadros, com o propósito de quantificar as informações coletadas
antes de serem analisadas.
1ª) O primeiro excerto analisado é parte integrante do capítulo I, O preço, da obra
romântica Senhora. Nesse trecho são introduzidas três personagens, a protagonista, Aurélia, e
duas coadjuvantes, D. Firmina Mascarenhas e o tutor. Para classificação das casas fóricas
em que essas personagens são referidas, elas recebem, na transcrição do texto, um índice
subscrito: as casas referentes a Aurélia recebem o índice (i); as referentes a D. Firmina
recebem o índice (j) e as referentes ao tutor recebem o índice (k).
01) Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrelai.
02) Desde o momento de suai ascensão ninguém lhei disputou o cetro; i foi
03) proclamada a rainha dos salões.
04) Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em
05) disponibilidade.
06) i Era rica e formosa.
07) Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro; dois
08) esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.
24
A metodologia consta da parte final da introdução deste trabalho.
77
09) Quem não se recorda da Aurélia Camargoi, que atravessou o
10) firmamento da Corte como brilhante meteoroi, e apagou-se de repente
11) no meio do deslumbramento que produzira o seui fulgor?
12) Tinha elai dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade.
13) Não ai conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca
14) da grande novidade do diai.
15) Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos
16) a verdade, sem os comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros.
17) Auréliai era órfã; e tinha em suai companhia uma velha parentaj, viúva,
18) D. Firmina Mascarenhas, que sempre ai acompanhava na sociedade.
19) Mas essa parentaj não passava de mãe de encomenda, para condescender
20) com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha
21) admitido ainda certa emancipação feminina.
22) Guardando com a viúvaj as deferências devidas à idade, a moçai não
23) declinava um instante do firme propósito de governar suai casa e dirigir
24) suasi ações como entendesse.
25) Constava também que Auréliai tinha um tutork; mas essa entidade
26) desconhecidak, a julgar pelo caráter da pupilai, não devia exercer maior
27) influência em suai vontade, do que a velha parentaj.
28) A convicção geral era que o futuro da moçai dependia exclusivamente de
29) suasi inclinações ou de seui capricho; e por isso todas as adorações se iam
30) prostrar aos próprios pés do ídoloi. (1985: 13)
No excerto, a personagem Auréliai é introduzida pelo sintagma nominal uma nova
estrela (na linha 1) e retomada: por nome próprio (nas linhas 9, 17 e 25); pelos sintagmas
nominais brilhante meteoro (na linha 10), a grande novidade do dia (na linha 14), a moça
(nas linhas 22 e 28), a pupila (na linha 26), e o ídolo (na linha 30); pelos pronomes
possessivos que atuam como determinantes dos sintagmas nominais sua ascensão (na linha
2), o seu fulgor (na linha 11), sua companhia (na linha 17), sua casa (na linha 23), suas
ações (na linha 24), sua vontade (na linha 27), suas inclinações (na linha 29), e seu capricho
(na linha 29); pelos pronomes pessoais lhe (na linha 2), ela (na linha 12), e a (nas linhas 13 e
18); zero (nas linhas 2 e 6).
D. Firmina Mascarenhasj é introduzida pelo sintagma nominal uma velha parenta (na
linha 17) e retomada pelos sintagmas nominais essa parenta (na linha 19), a viúva (na linha
22) e a velha parenta (na linha 27).
O Tutork é introduzido pelo sintagma nominal indefinido um tutor (na linha 25) e
retomado, na mesma linha, pelo sintagma nominal essa entidade desconhecida.
78
Os tipos de preenchimentos fóricos usados para introduzir e recuperar as personagens
estão quantificados no quadro que segue25
:
Quadro 1 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na manutenção das personagens do romance Senhora
No quadro abaixo, especificam-se os elementos fóricos usados no texto, de acordo
com as referências feitas às personagens (a 1ª corresponde à introdução e as outras
correspondem aos elementos usados na manutenção das personagens):
Quadro 2 - Menção / tipo fórico – romance Senhora (N - nome próprio; S - sintagma nominal; P - pronome pessoal;
Pp - (determinante) pronome possessivo; - zero)
Observando-se as menções e os tipos fóricos que representam as três personagens, a
cada vez que elas são referidas, pode-se verificar o grau de identificação correspondente aos
respectivos preenchimentos fóricos. No quadro a seguir estão dispostas, na horizontal, as
sequências numéricas de apresentação das personagens, e, na vertical, o grau de identificação
em cada uma das referências, o que permite comparar os pontos da narrativa em que ocorrem
as diferentes possibilidades de identificação.
25
O mesmo procedimento é adotado nos quadros referentes às outras sequências textuais aqui analisadas.
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
Aurélia 3 7 8 4 2
D. Firmina 0 4 0 0 0
Tutor 0 2 0 0 0
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª 11ª 12ª 13ª 14ª 15ª 16ª 17ª 18ª 19ª 20ª 21ª 22ª 23ª 24ª
Aurélia S Pp P N S Pp P P S N Pp P S Pp Pp N S Pp S Pp Pp S
D. Firmina S S S S
Tutor S S
79
Quadro 3 - Romance Senhora - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção Personagens: i Aurélia
j D. Firmina
k Tutor
Observa-se que a personagem principal, Aurélia, transita, na maior parte da narrativa,
nos graus baixo e intermediário de identificação. Ela é introduzida na linha 1 pelo sintagma
uma nova estrela, uma metáfora que remete a um nome feminino, permitindo ao leitor
identificar que se trata de uma personagem feminina.
A nova estrela é identificada na linha 9, com nome e sobrenome – ―Quem não se
recorda da Aurélia Camargo‖ –, o grau máximo de identificação. É o tipo de referência que
identifica a personagem como única no universo discursivo, sem trazer nenhuma descrição
sobre ela (NEVES, 2011).
As descrições, menções correspondentes ao grau intermediário de identificação,
aparecem em sintagmas nominais com substantivos comuns que, revelando características de
Aurélia, ajudam o leitor a compor o seu perfil. Assim, além de feminina, sabe-se que ela é
jovem (―a moça não declinava um instante do firme propósito de governar sua casa), desperta
a atenção das outras pessoas (―atravessou o firmamento como brilhante meteoro‖), não é
conhecida das pessoas com as quais está em contato (―e logo buscaram todos informações
acerca da grande novidade do dia‖), mas, no entanto, tem admiradores entre os novos
conhecidos (―e por isso todas as adorações se iam prostrar aos próprios pés do ídolo‖).
Nas menções em que as casas fóricas referentes a Aurélia são preenchidas por
pronome ou zero – respectivamente, grau baixo e zero de identificação –, o leitor não tem
novas informações relacionadas à personagem, no entanto, consegue identificar que esses
elementos recuperam a protagonista, pois se trata do uso mais geral, aquele em que o pronome
pessoal e o zero são usados para retomar um referente conhecido do ouvinte/leitor. Além
Grau de
identificação
Menções às personagens do romance Senhora
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24
Máximo
i i i
Intermediário
i i i i i i i
j j j j
k k
Baixo
i i i i i i i i i i i i
Zero
i i
80
disso, esses elementos, quando usados para preencher uma casa fórica, podem informar
quanto ao gênero e ao número, e, no caso, eles remetem a uma personagem feminina: Aurélia
Camargo.
As referências por sintagma nominal cujo determinante é um pronome possessivo
(como: sua ascensão, na linha 2; seu fulgor, na linha 11; sua companhia, na linha 17; sua
casa, na linha 23; suas ações, na linha 24; sua vontade, na linha 27; suas inclinações e seu
capricho, na linha 29), configura-se um tipo de referência bipessoal (NEVES, 2011) em que
estão relacionadas duas pessoas: no caso aqui analisado, duas terceiras pessoas. Além da
relação de posse, são os pronomes possessivos que compõem esses sintagmas, que retomam a
personagem (o possuidor), enquanto os substantivos indicam o possuído.
Quanto às outras personagens, mesmo sendo referidas poucas vezes em relação a
Aurélia, por conta de suas funções secundárias, elas têm algumas de suas características
reveladas no texto, e isso por conta de serem mencionadas apenas no grau intermediário. D.
Firmina Mascarenhas é uma mulher velha, que é parente da protagonista, informações
possíveis de serem reconhecidas no sintagma nominal uma velha parente, que introduz, na
linha 17, a personagem: ―e tinha em sua companhia uma velha parenta‖. Essas informações
se repetem nos sintagmas nominais essa parenta (no qual o determinante demonstrativo, que
em termos de interação corresponde a segunda pessoa, faz referência anafórica à personagem)
e a velha parenta. Além dessas informações, o leitor tem, na linha 22, a informação de que
ela é viúva: ―Guardando com a viúva as deferências devidas à idade...‖.
O tutor é introduzido na linha 25 por sintagma nominal composto por artigo indefinido
e substantivo comum: ―Constava também que Aurélia tinha um tutor‖. O uso do artigo
indefinido traz à existência a personagem (NEVES, 2011), enquanto o substantivo comum
traz a informação de que a personagem é tutor. Quando o tutor é retomado pelo sintagma
nominal essa entidade desconhecida (―... mas essa entidade desconhecida, a julgar pelo
caráter da pupila, não devia exercer maior influência em sua vontade‖), em que o pronome
demonstrativo essa se refere a ele, o núcleo traz outra informação referente à personagem:
possivelmente ele não é íntimo de Aurélia, de quem é tutor, e tão pouco das outras pessoas
com as quais ela convive.
2ª) O excerto a seguir, que inicia a primeiro capítulo do romance O seminarista, de
Bernardo Guimarães, é uma mescla de descrição e narração (embora não seja essencialmente
narrativo, serve aos propósitos de análise aqui propostos: verificar o grau de identificação das
81
personagens). Nele são introduzidas duas personagens: Eugênio e Margarida. As casas
fóricas em que Eugênio é referido recebem o índice (i) e as casas fóricas em que Margarida é
referida recebem o índice (j).
01) A uma légua, pouco mais ou menos, da antiga vila de Tamanduá, na
02) província de Minas Gerais, e a pouca distância da estrada que vai para a
03) vizinha vila da Formiga, via-se, há de haver quarenta anos, uma pequena e
04) pobre casa, mas alva, risonha e nova. Uma porta e duas janelinhas formavam
05) toda a sua frente.
06) Um estreito caminho, partindo da porta da casa, cortava o vargedo e ia
07) atravessar o capão e o córrego, por uma pontezinha de madeira, fechada do
08) outro lado por uma tronqueira de varas. Junto à ponte, de um lado e outro do
09) caminho, viam-se duas corpulentas paineiras, cujos galhos, entrelaçando-se no
10) ar, formavam uma arcada de verdura, à entrada do campo onde pastava o
11) gado.
12) Era uma bela tarde de janeiro. Dois meninosij brincavam à sombra das
13) paineiras: um rapazinho de doze a treze anosi e uma meninaj, que parecia
14) ser pouco mais nova do que elei
15) A menina j era morena; de olhos grandes, negros e cheios de vivacidade, de
16) corpo esbelto e flexível como o pendão da imbaúba.
17) O rapazi era alvo, de cabelos castanhos, de olhar meigo e plácido e em sua
18) fisionomia como em todo o seu ser transluziam indícios de uma índole pacata,
19) doce e branda.
20) A meninaj, sentada sobre a relva, despencava um molho de flores silvestres
21) de que estava fabricando um ramalhete, enquanto seuj companheiroi,
22) atracando-se como um macaco aos galhos das paineiras, balouçava-se no ar,
23) fazia mil passes e piruetas para diverti-laj.
24) Perto delesij, espalhados no vargedo, umas três ou quatro vacas e mais
25) algumas reses estavam tosando tranquilamente o fresco e viçoso capim.
26) O sol, que já não se via no céu, tocava com uma luz de ouro os topes
27) abaulados dos altos espigões; uma aragem quase imperceptível mal
28) rumorejava pelas abas do capão e esvoaçava por aquelas baixadas cheias de
29) sombra.
30) Vamos, Eugênio. São horas... vamos apartar os bezerros e tocar as vacas para
31) a outra banda. Dizendo isto, a meninaj levanta-se da relva, e, atirando para
32) trás dos ombros os negros e compridos cabelos, sacudiu do regaço uma nuvem
33) de flores despencadas.
34) Pois vamos lá com isso, Margarida, exclamou Eugênioi, vindo ao chão de
35) um salto, e ambos foram ajuntar as poucas vacas que ali andavam pastando.
(1990: 9)
Pode-se observar que ambas as personagens são introduzidas (na linha 12) pelo
sintagma nominal dois meninos, elemento catafórico que remete aos sintagmas indefinidos
um rapazinho de doze a treze anos e uma menina (na linha 13). Na organização da cadeia
referencial, Eugênioi é retomado pelo nome próprio (na linha 34), pelo sintagma nominal o
rapaz (na linha 17), além de ser retomado pelo núcleo do sintagma nominal seu
82
companheiro (na linha 21) e pelo pronome pessoal ele (na linha 14), enquanto Margaridaj é
retomada pelo sintagma nominal a menina (nas linhas 15, 20 e 31), pelos pronomes la (na
linha 23) e o pelo determinante possessivo seu, que compõe o sintagma nominal seu
companheiro (na linha 21). Nota-se, ainda, que ambos são retomados (na linha 24) pelo
pronome pessoal eles.
No quadro a seguir estão quantificados os elementos fóricos usados para referir
(introduzir ou manter) essas personagens:
Quadro 4 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e manutenção das personagens do romance O seminarista
No quadro abaixo, especificam-se os tipos fóricos usados no texto, de acordo com as
referências feitas às personagens:
Quadro 5 - Menção / tipo fórico – romance O seminarista (N - nome próprio; S - sintagma nominal; P - pronome
pessoal; Pp - (determinante) pronome possessivo; - zero)
Uma vez conhecidos os elementos fóricos usados para introduzir ou retomar cada
personagem, apresenta-se no quadro abaixo o grau de identificação correspondente aos
respectivos preenchimentos fóricos.
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
Eugênio 1 4 0 2 0
Margarida 0 5 1 2 0
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª
Eugênio S S P S S P N
Margarida S S S S Pp P P S
83
Quadro 6 – Romance O seminarista - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção
Personagens: i Eugênio
j Margarida
O excerto selecionado para análise inicia-se com uma descrição que constitui um pano
de fundo para a introdução da narrativa. Cria-se uma espécie de cenário no qual a narrativa irá
se desenrolar (Neves, 2007). A transição da descrição para a narração ocorre na frase ―Era
uma bela tarde de janeiro‖, que encerra a descrição e, ao mesmo tempo, inicia a narração
(primeiro plano). Essa só ganha relevância por conta da moldura que se criou nos primeiros
parágrafos.
A narrativa é entremeada por uma nova descrição que não mais contempla o espaço,
mas, sim, a caracterização das personagens, que são introduzidas pelo sintagma nominal dois
meninos. O substantivo comum que compõe o núcleo desse sintagma vem no gênero
masculino, mas, tão logo surgem as personagens anunciadas pela catáfora, sabe-se que, na
verdade, os dois meninos são um rapazinho e uma menina: ―Dois meninos brincavam à
sombra das paineiras: um rapazinho de doze a treze anos e uma menina, que parecia ser
pouco mais nova que ele‖.
Embora uma menina e um rapazinho sejam retomados respectivamente pelos
sintagmas nominais definidos a menina (linha 15) e o rapaz (linha 17), eles não perdem o
sentido genérico, representando toda uma classe de pessoas ou coisas (NEVES, 2011: 395).
Tanto o rapaz quanto a menina recebem (nessas linhas) uma série de qualificações,
que não só fornecem dados que ajudam a constituir a descrição de ambos como também
contribuem para especificá-los: a menina ―morena; de olhos grandes, negros e cheios de
vivacidade, de corpo esbelto e flexível como o pendão da imbaúba‖; e o rapaz ―alvo, de
cabelos castanhos, de olhar meigo e plácido e em sua fisionomia como em todo o seu ser
transluziam indícios de uma índole pacata, doce e branda‖.
Quando a expressão o rapaz é recategorizada pelo substantivo companheiro, núcleo
do sintagma seu companheiro, surge uma comparação (―enquanto seu companheiro,
Grau de
identificação
Menções às personagens do romance O seminarista
1 2 3 4 5 6 7 8
Máximo i
Intermediário i i i i
j j j j j
Baixo i i
j j j
Zero
84
atracando-se como um macaco aos galhos das paineiras, balouçava-se no ar‖) que revela
outra característica do rapaz: a faceirice e a agilidade comum a um rapaz que tem entre doze e
treze anos. Tratando-se de uma comparação, o sintagma nominal um macaco não introduz
novo referente no texto. A referência é indireta, estabelecendo-se por semelhança
(HALLIDAY; HASAN, 1976).
Finalmente, a identidade plena do rapaz surge (na linha 34) quando ele é retomado
pelo nome próprio (grau máximo de identificação): ―Pois vamos lá com isso, Margarida,
exclamou Eugênio‖.
No caso da personagem feminina, que é retomada a maior parte da narrativa por
repetição lexical, a quantidade de informações é bastante restrita. Obtém-se a informação de
que o rapaz é amigo e companheiro dela na relação de posse que se estabelece entre o
determinante pronome possessivo seu, que a retoma (na linha 21), e o núcleo do sintagma, o
substantivo companheiro, que retoma o rapaz: ―enquanto seu companheiro, atracando-se
como um macaco aos galhos das paineiras, balouçava-se no ar‖.
Por fim, o nome da personagem, que chega ao leitor apenas na linha 34, não vem
apresentado referencialmente, mas sim como vocativo, no diálogo estabelecido entre o rapaz e
a menina: ― – Pois vamos lá com isso, Margarida, exclamou Eugênio‖.
Excluindo-se as qualificações atribuídas à personagem e o vocativo Margarida, os
elementos fóricos que preenchem as casas referenciais em que a personagem é referida trazem
basicamente duas informações: a de que se trata de uma personagem jovem e a de que ela
pertence ao gênero feminino.
Ela é retomada junto com Eugênio por um elemento não formalmente possessivo
(dele: de + pronome pessoal de 3ª pessoa, ele), mas que expressa o sentido de posse (NEVES,
2011): ―Perto deles, espalhados no vargedo, umas três ou quatro vacas e mais algumas reses
estavam tosando tranquilamente o fresco e viçoso capim‖. O advérbio perto que acompanha o
pronome deles faz uma indicação espacial, permitindo ao leitor visualizar mentalmente o
cenário em que as personagens estão inseridas.
Observando-se os percursos das duas personagens, percebe-se que, embora Eugênio e
Margarida tenham trajetórias parecidas, ele tem uma presença referencial maior do que a dela.
85
3ª) O próximo excerto constitui o início do primeiro capítulo do romance A carne26
.
Nesse trecho são introduzidas quatro personagens que integram a trama: Lopes Matoso,
Helena, a esposa e o coronel Barbosa27
. As casas fóricas referentes a essas personagens
estão marcadas, na transcrição do texto, com os seguintes índices subscritos: (i) para as casas
referentes a Lopes Matoso; (j) para as casas referentes a Helena; (k) para as casas referentes à
esposa e (l) para as casas referentes ao coronel Barbosa.
01) O doutor Lopes Matosoi não foi precisamente o que se pode chamar de
02) um homem feliz.
03) Aos dezoito anos de suai vida, quando apenas tinha completado o seui
04) curso de preparatórios, i perdeu pai e mãe com poucos meses de
05) intervalo.
06) Ficou-lhei como tutor um amigo da famílial, o coronel Barbosa, que oi
07) fez continuar com os estudos e formar-se em Direito.
08) No dia seguinte ao da formatura, o honesto tutorl passou-lhei a
09) gerência da avultada fortuna que lhei coubera, dizendo:
10) – Está rico, menino, está formado, tem um bonito futuro diante de si.
11) Agora é tratar de casar, de ter filhos, de galgar posição. Se eu tivesse
12) filha você já tinha noiva; não tenho, procure-a você mesmo.
13) Lopes Matosoi não gastou muito tempo em procurar: casou- se logo
14) com uma primak de quem i sempre gostara, e junto à qual i viveu
15) felicíssimo por espaço de dois anos.
16) Ao começar o terceiro, morreu a esposak i, de parto, deixando-lhei
17) uma filhinhaj.
18) Lopes Matosoi vergou à força do golpe, mas, como homem forte que
19) era, i não se deixou abater de vez: reergueu-se e aceitou a nova ordem
20) de coisas que lhei era imposta pela imparcialidade brutal da natureza.
21) i Arranjou de modo seguro seusi negócios, mudou- se para uma
22) chácara que possuía perto da cidade, segregou-se dos amigos, e passou a
23) repartir o tempo entre o manusear de bons livros e o cuidar da filhaj.
24) Esta, graças às qualidades da ama que lhej foi dada, cresceu sadia e
25) robusta, tornando-se desde logo a vida, a nota alegre do eremitério que
26) se constituíra Lopes Matosoi.
27) Visitas de amigos raras tinha elei, porque mesmo i não as acoroçoava:
28) convivência de famílias i não tinha nenhuma.
29) Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia,
30) história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música, em
31) tudo isso Lopes Matosoi exercitou a filhaj porque em tudo i era
32) perito: com elaj i leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros
33) de melhor nota, e tudo quanto havia de mais seleto na literatura do
34) tempo.
35) Aos quatorze anos Helena ou Lenitaj, como aj chamavam, era uma
36) rapariga desenvolvida, forte, de caráter formado e instrução acima do
37) vulgar. (1996: 21)
26
Consta dessa sequência uma fala, a do coronel Barbosa, que não foi considerada na análise. 27
Há, nesta sequência textual, referência a uma personagem que não foi incluída na análise, por se tratar de um
referente de menção única, a ama que cuidou da filha de Lopes Matoso – ―graças às qualidades da ama que lhe
foi dada, cresceu sadia e robusta‖.
86
Quanto à introdução e à manutenção das personagens, Lopes Matosoi é introduzido
pelo sintagma nominal o doutor Lopes Matoso (na linha 1) e retomado: por nome próprio
(nas linhas 13, 18, 26 e 31); pelos pronomes possessivos que atuam como determinantes do
sintagmas nominais sua vida (na linha 3), seu curso de preparatórios (nas linhas 3-4) e seus
negócios (na linha 21); pelos pronomes pessoais lhe (nas linhas 6, 8, 9, 16 e 20), o (na linha
6) e ele (na linha 27); por zero (nas linhas 4, 14, duas vezes, 16, 19, 21, 27, 28, 31 e 32).
Lenitaj é introduzida pelo sintagma nominal indefinido uma filhinha (na linha 17) e
retomada: por nome próprio (na linha 35); pelo sintagma nominal a filha (nas linhas 23 e 31);
pelos pronomes pessoais lhe (na linha 24), ela (na linha 32) e a (na linha 35).
A esposak é introduzida pelo sintagma nominal uma prima (na linha 14) e retomada
pelo sintagma nominal a esposa (na linha 16).
O coronel Barbosal é introduzido pelo sintagma nominal indefinido um amigo da
família (na linha 6) e retomado pelo sintagma nominal o honesto tutor (na linha 8).
As personagens principais desse excerto narrativo são Lopes Matoso e Helena. A
esposa e o coronel Barbosa atuam como personagens coadjuvantes.
Quantificam-se no quadro abaixo os tipos de preenchimentos fóricos adotados para
referência a cada uma delas.
Quadro 7 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na manutenção das personagens do romance A carne
Os elementos fóricos quantificados no quadro acima estão especificados a seguir, de
acordo com as referências feitas às personagens:
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
Lopes Matoso 4 1 3 7 10
Helena 1 3 0 3 0
Esposa 0 2 0 0 0
Coronel Barbosa 0 2 0 0 0
87
Quadro 8 - Menção / tipo fórico – romance A carne (N - nome próprio; S - sintagma nominal; P - pronome pessoal; Pp -
(determinante) pronome possessivo; - zero)
O grau de identificação que correspondente ao tipo de preenchimento fórico usado
para referência às personagens a cada vez que elas são mencionadas pode ser observado no
quadro que segue:
Quadro 9 - Romance A carne - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção
Personagens: i Lopes Matoso
j Helena
k Esposa
l Barbosa
Lopes Matoso é introduzido, na linha 1, no grau intermediário de identificação; trata-se
de uma referenciação bastante especificada, pois no mesmo sintagma, o doutor Lopes
Matoso, há uma descrição profissional e uma identificação no grau máximo, a de nome
próprio. Essa personagem transita na maior parte do percurso narrativo entre os graus baixo e
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª 11ª 12ª 13ª 14ª 15ª 16ª 17ª 18ª 19ª 20ª 21ª 22ª 23ª 24ª 25ª
Lopes
Matoso S Pp Pp P P P P N P N Pp P N P N
Helena S S P S P N P
Esposa S S
Barbosa S S
Grau de
identificação
Menções às personagens do romance A carne
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25
Máximo
j i i i i
Intermediário
i
j j j
k k
l l
Baixo
i i i i i i i i i i
j j j
Zero
i i i i i i i i i i
88
zero de identificação, e, embora seja retomada três vezes no grau intermediário, (linhas 3, 4 e
21), há poucas informações referentes à personagem. O que se sabe sobre Lopes Matoso, além
da informação de que é doutor, é que fez um curso preparatório (―quando apenas tinha
completado o seu curso de preparatórios‖) e que tinha alguns negócios (―Arranjou de modo
seguro seus negócios...‖). Nesses dois casos, o pronome possessivo, que funciona como
determinante, retoma a personagem, enquanto o núcleo do sintagma traz a informação
referente a ela.
Embora a personagem Helena seja referida três vezes no grau intermediário de
identificação, a informação que o leitor tem sobre ela é apenas uma: a de que é filha de Lopes
Matoso, pois todos os sintagmas nominais usados para mencioná-la trazem essa informação
(linha 17: uma filhinha; linha 23: a filha; linha 31, novamente: a filha). No entanto, do ponto
de vista referencial, a retomada pelo sintagma nominal a filha incorpora uma alteração
significativa (que chega a tocar o estatuto de recategorização), por deixar de ser diminutivo
(ela já não é mais a criança que foi introduzida pelo sintagma uma filhinha). No final do
excerto, ela é identificada no grau máximo de identificação: o leitor passa a conhecer o seu
nome, Helena, a que se acrescenta seu apelido, Lenita (―Helena ou Lenita, como a
chamavam‖), mas continua sem novas informações que a caracterizem.
A maior parte das informações referentes a Lopes Matoso e a Helena não está nos
elementos referenciais usados para introduzi-los ou recuperá-los, mas, sim, nas qualificações
usadas na organização da narrativa, as quais atribuem características a eles. Observando a
construção da narrativa, o leitor pode notar que Lopes Matoso: estudou Direito; herdou uma
avultada fortuna; é um homem forte, que não se deixa abater facilmente; tem uma chácara;
manuseia bons livros; constituíra-se, com o passar do tempo, em um eremitério; e, além disso,
cuidou da filha e a exercitou em diferentes habilidades. Do mesmo modo que ocorre nesse
caso, são os predicativos implicados na narrativa que trazem informações referentes a Helena,
tais como as de que ela é órfã de mãe, teve uma ama, bem como é sadia, robusta, instruída, de
caráter formado e, sobretudo, a de que ela é o motivo de alegria do pai, que a educou. Essas
qualificações não são responsáveis por introduzir ou recuperar as personagens, mas são
responsáveis por informar o leitor sobre características que o ajudam a construir a identidade
de cada uma.
As outras duas personagens, a esposa e o coronel Barbosa, são mencionadas somente
no grau intermediário de identificação, portanto, por elementos fóricos que trazem
informações relacionadas a elas. Sabe-se que ela é prima e esposa de Lopes Matoso em:
―Lopes Matoso não gastou muito tempo em procurar: casou-se logo com uma prima de quem
89
sempre gostara‖. A informação de que a prima se tornou esposa de Lopes Matoso se repete
com o uso do sintagma nominal a esposa: ―Ao começar o terceiro, morreu a esposa, de parto,
deixando-lhe uma filhinha‖. Quanto ao coronel Barbosa, sabe-se que ele é amigo da família
de Lopes Matoso, de quem é tutor: ―Ficou-lhe como tutor um amigo da família, o coronel
Barbosa‖. Nessa frase, o leitor tem acesso também à identidade e à profissão dele,
informações expressas no aposto presente na organização textual. Além dessas informações,
sabe-se ainda que ele é uma pessoa honesta: ―No dia seguinte ao da formatura, o honesto
tutor passou-lhe a gerência da avultada fortuna que lhe coubera‖.
4ª) Analisa-se a seguir o início do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo. Nesta
sequência são apresentadas cinco personagens, duas protagonistas, João Romão e Bertoleza,
e três coadjuvantes: o patrão de João Romão, o senhor de Bertoleza e o amante de
Bertoleza. As casas fóricas referentes a essas personagens receberam, na transcrição do texto,
os seguintes índices subscritos: (i) para as casas referentes a João Romão; (j) para as casas
referentes a Bertoleza; (k) para as casas referentes ao patrão de João Romão; (l) para as casas
referentes ao dono de Bertoleza; (m) para as casas referentes ao amante de Bertoleza.
01) João Romãoi foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de
02) um vendeirok que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e
03) obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e i tanto economizou
04) do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrãok
05) para a terra, lhei deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a
06) venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em
07) dinheiro.
08) Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapazi atirou-se à labutação ainda
09) com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que i afrontava
10) resignado as mais duras privações. i Dormia sobre o balcão da própria
11) venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa
12) cheio de palha. A comida arranjava-lhei, mediante quatrocentos réis por dia,
13) uma quitandeiraj sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de
14) um velho cego residente em Juiz de Foral e amigada com um portuguêsm
15) que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.
16) Bertolezaj também trabalhava forte; a suaj quitanda era a mais bem
17) afreguesada do bairro. De manhã j vendia angu, e à noite peixe frito e
18) iscas de fígado; j pagava de jornal a seuj donol vinte mil-réis por mês, e,
19) apesar disso, j tinha de parte quase que o necessário para a alforria.Um dia,
20) porém, o seuj homemm, depois de correr meia légua, puxando uma carga
21) superior às suasm forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado
22) como uma besta.
23) João Romãoi [...] fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinhaj
24) [...], que a boa mulherj oi escolheu para confidente das suasj desventuras.
90
25) Abriu-se com elei, j contou-lhej a suaj vida de amofinações e dificuldades.
26) ―Seuj senhorl comia-lhej a pele do corpo! Não era brinquedo para
27) uma pobre mulherj ter de escarrar pr‘ali, todos os meses, vinte mil-réis em
28) dinheiro!‖ E j segredou-lhei então o que já tinha junto para a suaj liberdade
29) e acabou pedindo ao vendeiroi que lhej guardasse as economias, porque já
30) de certa vez j fora roubada por gatunos que lhej entraram na quitanda pelos
31) fundos.
32) Daí em diante, João Romãoi tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro
33) da crioulaj. No fim de pouco tempo era elei quem tomava conta de tudo que
34) elaj produzia, e era i também quem punha e dispunha dos seusj pecúlios,
35) e quem se encarregava de remeter ao senhorl os vinte mil-réis mensais.
(1988: 13)
Observando-se os elementos usados para introduzir e manter as personagens, nota-se
que, como já foi apontado, João Romãoi é introduzido por nome próprio (na linha 1) e
retomado: por nome próprio (nas linhas 23 e 32); pelos sintagmas nominais o rapaz (na linha
8) e o vendeiro (na linha 29); pelos pronomes lhe (nas linhas 5, 12, 25 e 28), o (na linha 24),
ele (nas linhas 25 e 33) ; por zero (nas linhas 3, 9, 10 e 34).
A personagem Bertolezaj é introduzida pelo sintagma nominal indefinido uma
quitandeira (na linha 13) e retomada: por nome próprio (na linha 16); pelos sintagmas
nominais a vizinha (na linha 23), a boa mulher (na linha 24), uma pobre mulher (na linha
27) e a crioula (na linha 33); pelos possessivos que compõem os sintagmas nominais a sua
quitanda (na linha 16), seu dono (na linha 18), o seu homem (na linha 20), as suas
desventuras (na linha 24), a sua vida de amofinações e dificuldades (na linha 25), seu
senhor (na linha 26), a sua liberdade (na linha 28), e os seus pecúlios (na linha 34); pelos
pronomes pessoais lhe (nas linhas 26, 29 e 30) e ela (na linha 34); por zero (nas linhas 17,
18, 19, 25, 28 e 30).
Quanto às personagens secundárias: o patrãok de João Romão é introduzido pelo
sintagma nominal indefinido um vendeiro (na linha 2) e retomado pelo sintagma nominal o
patrão (na linha 4); o senhorl de Bertoleza é introduzido pelo sintagma nominal indefinido
um velho cego residente em Juiz de Fora (na linha 14) e retomado pelos núcleos dos
sintagmas nominais seu dono (na linha 18), seu senhor (na linha 26) e pelo sintagma o
senhor (na linha 35); o amantem de Bertoleza é introduzido pelo sintagma nominal indefinido
um português (na linha 14) e retomado pelo núcleo do sintagma nominal seu homem (na
linha 20) e pelo pronome possessivo suas, que compõe o sintagma nominal suas forças (na
linha 21).
91
Quantificam-se, no quadro que segue, os elementos fóricos usados para referir cada
personagem do excerto acima:
Quadro 10 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na manutenção das personagens do romance O cortiço
No quadro abaixo, especificam-se os tipos fóricos usados a cada referência feita às
personagens:
Quadro 11 - Menção / tipo fórico – romance O cortiço (N - nome próprio; S - sintagma nominal; P - pronome pessoal;
Pp - (determinante) pronome possessivo; - zero)
Observando-se as menções e os elementos fóricos que representam essas personagens
do romance O cortiço, pode-se verificar o grau de identificação correspondente aos
respectivos preenchimentos fóricos.
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
João Romão 3 2 0 7 4
Bertoleza 1 5 8 4 6
Patrão de João Romão 0 2 0 0 0
Senhor de Bertoleza 0 4 0 0 0
Amante de Bertoleza 0 2 1 0 0
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª 11ª 12ª 13ª 14ª 15ª 16ª 17ª 18ª 19ª 20ª 21ª 22ª 23ª 24ª
João Romão N P S P N P P P P S N P
Bertoleza S N Pp Pp Pp S S Pp Pp Pp P S Pp P P S P Pp
Patrão de
João Romão S S
Senhor de
Bertoleza S S S S
Amante de
Bertoleza S S Pp
92
Quadro 12 - Romance O cortiço - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção
Personagens: i João Romão
j Bertoleza k Patrão de João Romão
l Senhor de Bertoleza
m Amante de Bertoleza
Quanto ao grau de identificação das personagens introduzidas nessa sequência do
romance O cortiço, nota-se que João Romão, um dos protagonistas, é introduzido pelo nome e
sobrenome no primeiro parágrafo (―João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos,
empregado de um vendeiro‖) e, embora seja retomado outras duas vezes pelo nome próprio,
ele é mencionado, na maioria das vezes, entre os graus baixo e zero de identificação (pronome
ou zero), escolhas fóricas que não trazem informações novas à personagem, mas permitem
uma retomada claramente anafórica do referente (NEVES, 2007).
Quando João Romão é referido por sintagma nominal, surgem descrições que
contribuem para a composição da personagem. Dessa forma, torna-se possível identificá-lo
como uma pessoa jovem (―o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor‖), cuja
profissão é a mesma do patrão, vendeiro (―acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as
economias‖). Além dessas descrições, há a informação, expressa no pronome possessivo que
compõe o sintagma sua vizinha, que vem em aposto (―uma quitandeira sua vizinha,
Bertoleza‖), de que ele vivia próximo a Bertoleza.
Bertoleza, assim como João Romão, surge, na maior parte da narrativa, referida nos
graus baixo e zero. Introduzida pelo sintagma nominal indefinido uma quitandeira (―uma
quitandeira sua vizinha, Bertoleza‖), a composição da personagem, antes mesmo de ela ser
Grau de
identificação
Menções às personagens do romance O cortiço
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24
Máximo
i i i
j
Intermediário
i i
j j j j j
k k
l l l l
m m
Baixo
i i i i i i i
j j j j j j j j j j j j
m
Zero
i i i i
j j j j j j
93
retomada referencialmente, vai perdendo a genericidade referencial (NEVES, 2011), pois na
frase em que ela é introduzida (―uma quitandeira sua vizinha, Bertoleza‖) há duas
informações, colocadas em aposto, que a especificam: a primeira especifica essa mulher, que
é uma quitandeira, como aquela que é a vizinha de João Romão, e a segunda traz o nome dela,
Bertoleza.
Nessa retomada referencial por sintagmas nominais definidos ou por pronomes
possessivos que atuam como determinantes dos sintagmas surgem outras informações que
ajudam a compor o perfil de Bertoleza: embora ela seja boa mulher (―a boa mulher o
escolheu para confidente das suas desventuras‖), dona de uma quitanda (―a sua quitanda era a
mais bem afreguesada do bairro‖), e, inclusive, possua pecúlios (―e era também quem
dispunha de seus pecúlios‖), Bertoleza tem uma vida de amofinações e dificuldades, cheias
desventuras (―Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades”), o
que provavelmente seja decorrente do fato de ela ser escrava. Esta última informação surge
pela primeira vez em uma qualificação atribuída a ela: ―a Bertoleza, crioula trintona, escrava
de um velho cego residente em Juiz de Fora‖. Posteriormente, confirma-se essa informação
quando ela é retomada em duas casas fóricas pelo pronome possessivo seu, respectivamente
em: ―pagava de jornal a seu dono‖ e ―seu senhor comia-lhe a pele do corpo‖.
As três personagens secundárias, assim como Bertoleza, são introduzidas por
sintagmas nominais indefinidos. Elas são introduzidas de forma genérica, mas são
especificadas nas qualificações atribuídas a outras personagens, especificações essas que se
confirmam quando as personagens são retomadas por sintagmas definidos.
O patrão de João Romão é introduzido pelo sintagma nominal indefinido um
vendeiro. Nesse caso, tanto o sintagma que introduz a personagem como a informação de que
ele é patrão do protagonista vem no predicativo que qualifica João Romão como empregado:
―João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro‖. A
informação é confirmada quando a personagem é retomada pelo sintagma nominal o patrão:
―ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos‖. Essa
retomada não se configura como uma recategorização, pois já se sabe, embora não por uma
indicação referencial, que ele é o patrão de João Romão.
Caso semelhante ocorre com o senhor de Bertoleza, que é introduzido, dentro de uma
qualificação atribuída a ela, pelo sintagma indefinido um velho cego. Na mesma qualificação
há o predicativo escrava, associado a Bertoleza, que contribui para identificar que se trata do
seu senhor: ―Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de
Fora‖. Essa informação se confirma quando a personagem é retomada pelo núcleo do
94
sintagma nominal seu dono (―Pagava de jornal a seu dono vinte mil réis por mês‖), sintagma
em que o possessivo seu remete a Bertoleza, enquanto o núcleo (dono) remete ao velho. A
exemplo do que ocorre com o patrão de João Romão, a retomada pelo sintagma o senhor (―e
quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais‖) não configura uma
recategorização da expressão referencial um velho, pois o leitor já tem conhecimento de que
ele é o senhor de Bertoleza.
O amante de Bertoleza é introduzido pelo sintagma nominal indefinido um português,
que, assim como nos dois casos já explicitados, vem em uma qualificação que indica que esse
português é amante dela (―Bertoleza, crioula trintona [...], amigada com um português que
tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade‖). A informação se confirma quando a
personagem é retomada pelo sintagma o seu homem, em que o possessivo se refere a
Bertoleza, indicando a relação de posse entre as duas pessoas do discurso, e o núcleo retoma o
português. O que diferencia essa forma de retomar a personagem das duas formas anteriores é
que ela se configura como uma recategorização da expressão referencial um português: ―Um
dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua‖.
5ª) O quinto excerto analisado constitui o primeiro capítulo do romance Amar, verbo
intransitivo28
. No excerto são introduzidas duas personagens, Souza Costa e Elza. As casas
fóricas correspondentes a Souza Costa estão marcadas, na transcrição do texto, com o índice
subscrito (i) e as que correspondem a Elza estão marcadas com o índice subscrito (j).
01) A porta do quarto se abriu e elesij saíram no corredor. Calçando as luvas
02) Sousa Costai largou por despedida:
03) – Está frio.
04) Elaj muito correta e simples:
05) – Estes fins de inverno são perigosos em São Paulo.
06) j Lembrando mais uma coisa reteve a mão de adeus que o outro lhej
07) estendia.
08) – E, senhor... sua esposa? Está avisada?
09) – Não! A senhorita compreende... Ela é mãe. Esta nossa educação
10) brasileira... Além do mais com três meninas em casa!...
11) – Peço-lhe que avise sua esposa, senhor. Não posso compreender tantos
12) mistérios. Se é para o bem do rapaz.
13) – Mas senhorita...
14) – Desculpe insistir. É preciso avisá-la. Não me agradaria ser tomada
28
Conforme assentado no projeto, os diálogos presentes na organização textual desta sequência narrativa não
serão analisados.
95
15) por aventureira sou séria. E tenho 35 anos, senhor. Certamente não irei
16) se sua esposa não souber o que vou fazer lá. Tenho a profissão que uma
17) fraqueza me permitiu exercer, nada mais nada menos. É uma profissão.
18) j Falava com a voz mais natural desse mundo mesmo com certo
19) orgulho que Sousa Costai percebeu sem compreender. i Olhou pra elaj
20) admirado e, jurando não falar nada à mulher, i prometeu.
21) Elzaj viu elei29 abrir a porta da pensão. Pâam... j Entrou de novo no
22) quartinho ainda agitado pela presença do estranhoi. j Lhe30
deu, um
23) olhar de confiança. Tudo foi sossegando pouco a pouco. (2008: 19)
Nesta sequência, as duas personagens, Souza Costa e Elza são introduzidas pelo
pronome pessoal eles (na linha 1). Souza Costai é retomado: por nome próprio (nas linhas 2 e
19); pelo sintagma nominal o estranho (na linha 22); pelo pronome pessoal ele (na linha 21);
por zero (nas linhas 19 e 20). Elzaj é retomada pelo nome próprio (na linha 21); pelos
pronomes pessoais ela (nas linhas 4 e 19) e lhe (na linha 6); por zero (nas linhas 6, 18, 21 e
22).
Os tipos fóricos usados para mencionar as personagens dessa sequência estão
quantificados no quadro abaixo.
Quadro 13 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e manutenção das personagens do romance Amar, verbo intransitivo
No quadro 14, especificam-se os tipos fóricos usados no texto, de acordo com as
referências feitas às personagens:
29
Essa construção não é abonada pela Gramática Tradicional. Pela norma, são os pronomes pessoais oblíquos
átonos que se usam na função de complemento (objeto direto). 30
Não entra em questão o fato de que, pela norma culta, pronome oblíquo não inicia uma sentença.
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
Souza Costa 2 1 0 2 2
Elza 1 0 0 4 4
96
Quadro 14 - Menção / tipo fórico – romance Amar, verbo intransitivo (N - nome próprio; S - sintagma nominal;
P - pronome pessoal; Pp - (determinante) pronome possessivo; - zero)
O grau de identificação, correspondente ao tipo fórico usado no percurso narrativo
para mencionar as personagens, está explicitado na quadro a seguir:
Quadro 15 - Romance Amar, verbo intransitivo - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção
Personagens: i Souza Costa
j Elza
A primeira observação se refere ao fato de que as duas personagens são introduzidas,
na linha 1, pelo pronome pessoal eles, o que corresponde ao grau baixo de identificação: ―A
porta do quarto se abriu e eles saíram no corredor‖. O pronome pessoal de terceira pessoa, em
geral, tem a função de retomar elementos do texto, mas, neste caso, esse pronome surge na
primeira linha do parágrafo que abre o romance. Trata-se da primeira referência feita às
personagens, pois não se havia falado nada delas anteriormente. Nessa introdução, o leitor não
tem nenhuma descrição referente às personagens, tem apenas a informação de que há mais de
uma personagem em cena. A partir daí, elas seguem diferentes percursos de identificação.
Embora Elza seja mencionada mais vezes que Souza Costa, ela tem grau de
identificação menor que ele, pois não é mencionada nenhuma vez por sintagma nominal com
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª
Souza Costa P N N P S
Elza P P P P N
Grau de
identificação
Menções às personagens do romance Amar, verbo intransitivo
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Máximo
i i
j
Intermediário
i
Baixo
i i
j j j j
Zero
i i
j j j j
97
núcleo representado por substantivo comum, que traga alguma descrição referente a ela. A
personagem oscila, durante o percurso narrativo, entre os graus baixo e zero de identificação.
Depois de ser introduzida pelo pronome eles, ela é retomada, na linha 4, pelo pronome ela,
preenchimento fórico que permite ao leitor apenas identificá-la como uma personagem
feminina. As referências a ela que se seguem no decorrer da narrativa são todas efetuadas por
meio de pronome ou zero. Essas escolhas fóricas não acrescentam informações descritivas
que ajudem o leitor a compor o perfil físico e psicológico da personagem, mas permitem que
ele a identifique (internamente à trama do texto), pois a personagem é mantida no foco da
narração (RONCARATI, 2010).
No último parágrafo (linha 21), revela-se a identidade da personagem (―Elza viu ele
abrir a porta da pensão‖), pois ocorre o grau máximo de identificação, embora haja zero de
descrição, já que o nome próprio permite que ela seja identificada como pessoa única no
discurso, mas não evidencia nenhum traço que a caracterize (NEVES, 2011). Embora os
elementos fóricos usados na construção textual não contribuam para caracterizar a
personagem, eles permitem identificá-la dentro do universo discursivo.
Souza Costa, diferentemente do que ocorre com a personagem feminina, é identificado
no primeiro parágrafo (linha 2), no grau máximo de identificação, com nome e sobrenome:
―Calçando as luvas Souza Costa largou por despedida‖. Ele também oscila entre os graus
baixo e zero de identificação, mas, ao contrário de Elza, finaliza o percurso narrativo (linha
22) no grau intermediário de identificação: ―Entrou de novo no quartinho ainda agitado pela
presença do estranho‖. Nessa retomada, o leitor pode identificar uma informação referente à
personagem: Souza Costa não faz parte do convívio pessoal de Elza.
6ª) A sequência que vem a seguir inicia o romance Alma, de Oswald de Andrade. Nela
são introduzidas quatro personagens humanas31
, o avô, Alma, que tem o mesmo nome do
título do romance, Mauro e João do Carmo, e uma personagem do reino animal, o cão. As
casas fóricas que essas personagens são referidas estão marcadas, na transcrição do texto, com
os seguintes índices subscritos: as casas referentes ao avô recebem o índice (i); as casas
31 São introduzidas, ainda, outras personagens que não foram quantificadas e analisadas, pois atuam, no excerto
selecionado, como referentes de menção única e, portanto, não constituem uma cadeia referencial: os vizinhos,
Odete, Jorge e uma mulher de branco.
98
referentes ao cão recebem o índice (j); as casas referentes a Alma recebem o índice (k); casas
referentes a Mauro, índice (l); casas referentes a João do Carmo, índice (m).
01) O velhoi e o cãozinhoj foram andando na sombra enjoada da tarde. ij
02) Tinham passeado muito. ij Dobraram a esquina da Rua dos Clérigos. Os
03) vizinhos saudavam-nosij. ij Eram ambos antigos no bairro e na cidade.
04) Almak havia regressado naquele instante. k Retirou a blusa, mostrando
05) ao espelho do seuk quarto guindado os alvos seios manchados de apertos.
06) k Pensava: por que será que quando uma porta me machuca, me faz
07) sofrer; quando bato a cabeça numa janela, choro de dor; e elel pode me
08) cortar a navalha, não dói: é delicioso!
09) Mas lembrou-se da Odete, que estivera com Maurol no teatro, elel
10) contara. E k ficou dizendo sufocadamente no quarto:
11) – Canalha! Bandido! Miserável! Miserável!
12) Transformava-se numa desencantada revelação. Elak fora apenas, até ali,
13) a criança fulva de olhos glaucos, pondo a silhueta destacada e a longa
14) sombra nas corcovas áridas de Oblivion, ao sol, com Jorge, o primo de
15) sorrisos sisudos; e depois da casa de louças fechada, a adolescente
16) imprecisa, a netinha que preparava o banho morno do velhoi e fazia
17) comer no melhor prato, na cozinha de terra, o cachorroj peludo e
18) antigo. k Era agora, nos músculos de Mauro a extravasante mulher,
19) deflagrada num embate de complicações e de rodeios.
20) Chegou-se à janela. Seriam cinco horas da tarde; o velhoi e o cãoj
21) passeavam ainda. k Olhou a rua e k descobriu, parado à esquina,
22) contrito sob o chapéu de palha, o telegrafista pálidom que ak amava.
23) m Não ak vira decerto entrar. Se m soubesse onde elak andara, o que
24) k fizera... Almak teve um arrepio incontido. Se m contasse ao avôi ...
25) Mas não: João do Carmom era um rapaz direito, incapaz dessas torpezas.
26) Elem já ak percebera, decerto, no balcão. Pusera-se a caminhar, num
27) passo medido. m Cumprimentou-ak. Foi-se. m Queria casar-se com
28) elak, mas nunca n ousara falar-lhek.
29) Pela rua, ia longe uma mulher de branco. Uma carroça passou,
30) tilintando. A tarde descorava.
31) E lá vinha elem de novo! Um súbito nojo invencível tomou conta de
32) Almak. k Teve ímpeto de gritar-lhen do balcão que passasse uma só
33) vez, que lhek deixasse ao menos a vontade de vê-lom.
34) k Fechou num repelão a janela toda. E, no escuro, uma pancada
35) fulminou-ak: Maurol!
36) k Caiu no leito. (1978: 5-6)
Quanto aos elementos fóricos usados para introduzir e manter as personagens,
observa-se que o avôi de Alma é introduzido (na linha 1) pelo sintagma nominal o velho e
retomado: pelos sintagmas nominais o velho (nas linhas 16 e 20) e o avô (na linha 24); pelo
pronome pessoal nos (na linha 3); por zero (nas linhas 1, 2 e 3).
99
O cãoj, companheiro do avô, é introduzido pelo sintagma nominal o cãozinho (na
linha 1) e retomado: pelos sintagmas nominais o cachorro (na linha 17) e o cão (na linha 20);
pelo pronome pessoal nos (na linha 3); zero (nas linhas 1, 2 e 3).
Almak, a personagem principal do excerto, é introduzida pelo nome próprio (na linha
4) e retomada: pelo nome próprio (nas linhas 24 e 32); pelo determinante possessivo que
compõem o sintagma o seu quarto guindado (na linha 5); pelos pronomes pessoais ela (nas
linhas 12, 23 e 28), a (nas linhas 22, 23, 26, 27 e 35) e lhe (nas linhas 28 e 33); por zero
(nas linhas 4, 6, 10, 18, 21, duas vezes, 24, 32, 34 e 36).
Maurol é introduzido pelo pronome pessoal ele (na linha 7) e retomado: pelo nome
próprio (nas linhas 9 e 35); pelo pronome pessoal ele (na linha 9).
João do Carmom é introduzido pelo sintagma nominal o telegrafista pálido (na linha
22) e retomado: pelo nome próprio (na linha 25); pelos pronomes pessoais ele (nas linhas 26 e
31), lhe (na linha 32), e lo (na linha 33); por zero (nas linhas 23, duas vezes, 24, 27, duas
vezes, e 28).
Quantificam-se, no quadro abaixo, os tipos fóricos usados para mencionar cada
personagem:
Quadro 16 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na manutenção das personagens do romance Alma
Os elementos fóricos quantificados no quadro acima estão especificados a seguir, de
acordo com as referências feitas às personagens:
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
avô 0 4 0 1 3
cão 0 3 0 1 3
Alma 3 0 1 10 10
Mauro 2 0 0 2 0
João do Carmo 1 1 0 4 6
100
Quadro 17 - Menção / tipo fórico – romance Alma (N - nome próprio; S - sintagma nominal; P - pronome pessoal;
Pp - (determinante) pronome possessivo; - zero)
Uma vez conhecidos os elementos fóricos usados para introduzir ou retomar cada
personagem, apresenta-se no quadro abaixo o grau de identificação correspondente aos
respectivos preenchimentos fóricos.
Quadro 18 - Romance Alma - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção
Personagens: i avô j cão
k Alma l Mauro
m João do Carmo
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª 11ª 12ª 13ª 14ª 15ª 16ª 17ª 18ª 19ª 20ª 21ª 22ª 23ª 24ª
avô S P S S S
cão S P S S
Alma N Pp P P P P N P P P P N P P
Mauro P N P N
João do
Carmo S N P P P P
Grau de
identificação
Menções às personagens do romance Alma
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24
Máximo
k k k
l l
m
Intermediário
i i i i
j i i
m
Baixo
i
j
k k k k k k k k k k k
l l
m m m m
Zero
i i i
j j j
k k k k k k k k k k
m m m m m m
101
As duas primeiras personagens introduzidas no romance são o velho e o cãozinho,
ambas introduzidas, na mesma frase, por sintagma nominal definido: ―O velho e o cãozinho
foram andando na sombra enjoada da tarde‖. Essas personagens são referenciadas
seguidamente em conjunto, no primeiro parágrafo, por zero e por pronominalização: ―
Tinham passeado muito. Dobraram a esquina da Rua dos Clérigos. Os vizinhos saudavam-
nos. Eram ambos antigos no bairro e na cidade‖. Nesses tipos referenciais (pronome e zero)
não há descrições que ajudem na composição do velho ou do cãozinho
No decorrer do texto, o velho é retomado mais duas vezes por repetição lexical (nas
linhas 16 e 20). Somente quando é recategorizado (na linha 24) surge a descrição de que ele é
o avô de Alma: ―Alma teve um arrepio incontido. Se Ø contasse ao avô ...‖.
O cãozinho, depois de ter sido introduzido e retomado no primeiro parágrafo, é
retomado mais duas vezes: primeiro pelo sintagma nominal o cachorro (―... fazia comer no
melhor prato, na cozinha de terra, o cachorro peludo e antigo‖) e, depois, pelo sintagma o cão
(―o velho e o cão passeavam ainda‖). Essas duas últimas referências podem ser consideradas
recategorizações, quanto à aquisição de uma neutralidade de modo de ver, que leva a
genericidade: perde-se a afetividade inicial com que o animal era referido, quando foi
introduzido (na linha 1) pelo sintagma o cãozinho, e ele passa a ser referido apenas como
animal.
Algumas informações referentes ao cão podem ser acessadas nas qualificações
atribuídas a ele (nas linhas 17 e 18), tais como antigo e peludo. Aliás, o predicativo antigo
surge primeiramente na linha 3, atribuído ao cão e ao velho: ―eram ambos antigos no bairro
e na cidade‖. Pode-se interpretar por essa qualificação não só que eles moram há muito
tempo naquele lugar, mas que o cão, assim como o velho, também não é jovem.
A personagem Alma é introduzida pelo nome próprio (―Alma havia regressado
naquele instante‖), elemento fórico pelo qual é retomada outras duas vezes, primeiro em
―Alma teve um arrepio incontido‖ e, depois, em ―Um súbito nojo invencível tomou conta de
Alma‖. Esse tipo de referência não traz nenhuma descrição que ajude a compô-la. Na maior
parte da narrativa, Alma é retomada nos graus baixo e zero de identificação. Embora os
pronomes e as elipses do sujeito, que preenchem essas casas fóricas, não tragam descrições,
eles mantêm a personagem em ativação continua (RONCARATI, 2010).
Quando a personagem é retomada pelo pronome possessivo seu (― Retirou a blusa,
mostrando ao espelho do seu quarto guindado os alvos seios manchados de apertos‖),
pronome que compõe o sintagma nominal o seu quarto, surge uma relação de posse entre
102
Alma e o quarto, mas também não há nenhuma descrição que possa contribuir para o quadro
de informações referentes à personagem.
Assim como já se mostrou em análises anteriores, há, no decorrer do texto, a
incorporação de uma série de predicativos atribuídos a Alma, que não só contribuem para
mantê-la no foco como também trazem informações que ajudam a construir a personagem:
Ela fora apenas, até ali, a criança fulva de olhos glaucos, pondo a silhueta
destacada e a longa sombra nas corcovas áridas de Oblivion, ao sol, com
Jorge, o primo de sorrisos sisudos; e depois da casa de louças fechada, a
adolescente imprecisa, a netinha que preparava o banho morno do velho e
fazia comer no melhor prato, na cozinha de terra, o cachorro peludo e antigo.
Era agora, nos músculos de Mauro a extravasante mulher, deflagrada
num embate de complicações e de rodeios.
Nessa passagem do texto é possível acessar informações que caracterizam Alma em
suas diferentes fases: a criança fulva de olhos glaucos, silhueta destacada e longa sombra; a
adolescente imprecisa, mas que se dedicava a cuidar do avô e do cachorro; e, por fim, a
mulher extravasante, deflagrada num embate de complicações e de rodeios.
Da mesma forma que se verificou na análise de Amar, verbo intransitivo, em que as
personagens são introduzidas por pronome pessoal, neste excerto também há uma personagem
instituída como objeto de discurso por meio do pronome pessoal ele (na linha 7), o que não é
a introdução canônica: ―Pensava: por que será que quando uma porta me machuca, me faz
sofrer; quando bato a cabeça numa janela, choro de dor; e ele pode me cortar a navalha, não
dói: é delicioso!‖.
Na linha 9, o leitor tem acesso à identidade dessa personagem, que é retomada pelo
nome próprio Mauro: ―Mas lembrou-se da Odete, que estivera com Mauro no teatro, ele
contara‖. Na mesma frase, Mauro é retomado por pronominalização (ele), e, no decorrer do
excerto, novamente pelo nome próprio. É possível compreender pelo cotexto, que Mauro tem
algum tipo de relação com Alma. Embora essa informação não fique claramente especificada
no texto, ela pode ser reconhecida quando se diz que Alma ―era agora, nos músculos de
Mauro a extravasante mulher‖ ou que ―uma pancada fulminou-a: Mauro‖. Neste último
caso, uma pancada é um sintagma nominal catafórico que remete a Mauro.
Quanto a João do Carmo, a personagem é introduzida pelo sintagma nominal definido
o telegrafista pálido (―Olhou a rua e descobriu, parado à esquina, contrito sob o chapéu de
palha, o telegrafista pálido que a amava‖), que faz a referenciação segundo a profissão dele.
103
A identidade plena pode ser observada pelo leitor quando a personagem é retomada pelo
nome próprio: ―Mas não: João do Carmo era um rapaz direito, incapaz dessas torpezas‖.
A exemplo do que ocorre com Alma, João do Carmo também é retomado na maioria
das vezes por pronominalização ou referenciação textual zero. Igualmente, são os predicativos
atribuídos a João do Carmo – que não fazem parte da cadeia referencial – que contribuem
para constituição da referenciação que se faz a ele (por exemplo, a de que ele é um rapaz
direito e, além disso, mesmo que saiba alguma coisa que desabone Alma, seria incapaz de
contar algo ao avô dela, ou seja, a de que não se trata de um homem torpe). Esta última
qualificação é encapsulada pelo sintagma dessas torpezas, que representa o conjunto das
informações precedentes (RONCARATI, 2010): ―Se soubesse onde ela andara, o que fizera...
Alma teve um arrepio incontido. Se contasse ao avô... Mas não: João do Carmo era um rapaz
direito, incapaz dessas torpezas‖. Esse tipo de recuperação se beneficia da força coesiva
anafórica do determinante demonstrativo essas (ligado à segunda pessoa) que compõe o
sintagma nominal dessas torpezas.
7ª) Nesta sequência, que inicia o romance O filho eterno, de Cristovão Tezza, são
introduzidas três personagens: o homem, a mulher e o filho. O casal protagoniza a cena, já o
filho, personagem fundamental do romance, neste excerto é apenas mencionado pelo pai. As
casas fóricas em que as personagens são referidas estão marcadas com os seguintes índices
subscritos: (i) para as casas referentes à mulher, (j) para as casas referentes ao homem e (k)
para as casas referentes ao filho.
01) – Acho que é hoje – elai disse. – Agora – i completou, com a voz
02) mais forte, tocando-lhej o braço, porque elej é um homem distraído.
03) Sim, distraído, quem sabe? Alguém provisório, talvez; alguém que,
04) aos 28 anos, ainda não começou a viver. A rigor, exceto por um
05) leque de ansiedades felizes, elej não tem nada, e j não é ainda
06) exatamente nada. E essa magreza semoventej de uma alegria
07) agressiva, às vezes ofensiva, viu- se diante da mulher grávidai quase
08) como se só agora j entendesse a extensão do fato: um filhok. Um
09) dia elek chega, elej riu, expansivo. Vamos lá!
10) A mulheri que, em todos os sentidos, oj sustentava já havia quatro
11) anos, agora era sustentada por elej enquanto aguardavam o
12) elevador, à meia noite. Elai está pálida. As contrações. A bolsa elai
13) disse – algo assim. Elej não pensava em nada – em matéria de
14) novidade, amanhã elej seria tão novo quanto o filhok. Era preciso
15) brincar, entretanto. Antes de sair lembrou-se de uma garrafinha
16) caubói de uísque, que j colocou no outro bolso; no primeiro
17) estavam os cigarros. (2010: 9)
104
Quanto à introdução e a manutenção das personagens, nota-se que a mulheri é
introduzida pelo pronome pessoal ela (na linha 1) e retomada: pelos sintagmas nominais a
mulher grávida (na linha 7) e a mulher (na linha 10); pelo pronome pessoal ela (na linha 12,
duas vezes ); por zero (na linha 1).
O homemj é introduzido pelo pronome pessoal lhe (na linha 2) e retomado: pelo
sintagma nominal essa magreza semovente (na linha 6); pelos pronomes pessoais ele (nas
linhas 2, 5, 9, 11, 13 e 14) e o (na linha 10); por zero (nas linhas 5, 8 e 16).
O filhok é introduzido pelo sintagma nominal indefinido um filho (na linha 8) e
retomado: pelo sintagma nominal o filho (na linha 14); pelo pronome pessoal ele (na linha 9).
Quantificam-se no quadro 19, os tipos de preenchimentos fóricos usados para referir
as personagens.
Quadro 19 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na manutenção das personagens do romance O filho
eterno.
Os elementos fóricos que foram quantificados acima estão especificados, de acordo
com as referências feitas às personagens, no quadro que segue:
Quadro 20 - Menção / tipo fórico - romance O filho eterno (N - nome próprio; S - sintagma nominal; P - pronome pessoal;
Pp - (determinante) pronome possessivo; - zero)
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
Mulher 0 2 0 3 1
Homem 0 1 0 8 3
Filho 0 2 0 1 0
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª 11ª 12ª
Mulher P S S P P
Homem P P P S P P P P P
Filho S P S
105
Traça-se agora, como se fez nas sequências anteriores, o grau de identificação
correspondente aos respectivos preenchimentos fóricos usados para referir as personagens.
Quadro 21 - Romance O filho eterno - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção
Personagens: i Mulher j Homem
k Filho
Nota-se, ao observar a cadeia referencial na qual as personagens estão organizadas,
que nenhuma personagem é referida no grau máximo de identificação (nome próprio),
portanto, não é possível ao leitor conhecer a identidade de nenhuma delas.
As duas personagens protagonistas, a mulher e o homem, são instituídas como objetos
de discurso por pronome pessoal. Isso é possível por se tratar de referência a personagens da
narrativa.
A mulher é introduzida (na linha 1) pelo pronome pessoal ela, escolha fórica que
permite ao leitor, a exemplo do que aconteceu com a personagem Elza, de Amar, verbo
intransitivo, analisada anteriormente, identificar que se trata de uma personagem feminina. A
personagem é retomada duas vezes, na linha 12, pelo mesmo pronome (ela), e uma vez (na
linha 1), por zero, tipos de preenchimentos fóricos que não trazem novas informações sobre a
personagem. Obtém-se uma informação adicional quando a personagem é retomada pelo
sintagma nominal a mulher grávida: ―viu-se diante da mulher grávida‖. Sabe-se, enfim,
que a personagem, além de ser feminina, está grávida.
Quanto ao outro protagonista, somente na segunda menção o leitor consegue
identificar que se trata de uma personagem masculina, pois a primeira referência a ele é feita
pelo pronome oblíquo lhe, que vale tanto para o gênero masculino como para o gênero
feminino: ―completou, com a voz ainda mais forte, tocando-lhe o braço, porque ele é um
Grau de identificação Menções às personagens do romance O filho eterno
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Máximo
Intermediário
i i
j
k k
Baixo
i i i
j j j j j j j j
k
Zero
i
j j j
106
homem distraído‖. É o uso do pronome pessoal ele, na mesma frase, que permite identificá-lo
como masculino. Como a personagem oscila, durante quase a totalidade do percurso
narrativo, entre os graus baixo e zero de identificação, o nível de informação referente a ele
não se altera. A única referência por sintagma nominal, essa magreza semovente (linha 6),
exige do leitor atenção à frase anterior para compreender que a expressão nominal encapsula
parte das informações relacionadas à personagem (KOCH; ELIAS, 2012)32
. Assim como se
mostrou na análise anterior (do romance Alma), o elemento que governa a retomada é o
pronome demonstrativo essa, que muito frequentemente é usado nessa função anafórica.
O filho é introduzido por sintagma nominal com artigo indefinido (―como se só agora
entendesse a extensão do fato: um filho‖), o qual traz à existência o referente (NEVES,
2011). O sintagma nominal indefinido constitui uma generalização (referindo-se a todos os
elementos da espécie), mas, no texto, o leitor pode identificar, pelo núcleo do sintagma, o
substantivo comum filho, que se refere a uma criança do gênero masculino (um menino), a
qual será filho do casal protagonista. Os preenchimentos fóricos usados para retomá-lo – o
pronome pessoal ele (―Um dia ele chega...‖), e o sintagma nominal definido o filho (―em
matéria de novidade, amanhã ele seria tão novo quanto o filho‖) – apenas confirmam a
informação que já pôde ser reconhecida quando da introdução da personagem na linha 8: a de
que ele é filho do casal que protagoniza a cena.
8ª) Nesta sequência do romance Vozes do Deserto, de Nélida Piñon, são introduzidas
quatro personagens: Scherezade, o Califa, o Vizir , e Dinazarda. As casas fóricas em que
essas personagens são inseridas recebem, na transcrição do texto, índices subscritos, conforme
se indica a seguir: as casas referentes à protagonista Scherezade receberam o índice (i); as
casas referentes ao Califa receberam o índice (j); referentes ao Vizir receberam o índice (k) e
as casas referentes a Dinazarda receberam o índice (l).
32
O trecho a ser considerado é o seguinte: ―Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não
começou a viver. A rigor, exceto por um leque de ansiedades felizes, ele não tem nada, e não é ainda exatamente
nada. E essa magreza semovente de uma alegria agressiva, às vezes ofensiva, viu-se diante da mulher grávida
quase como se só agora entendesse a extensão do fato: um filho‖.
107
01) Scherezadei não teme a morte. i Não acredita que o poder do mundo
02) representado pelo Califaj, a quem o paik serve, decrete por meio de suai
03) morte o extermínio da suai imaginação.
04) i Tenta convencer o paik de ser a única capaz de interromper a sequência
05) das mortes dadas às donzelas do reino. i Não suporta ver o triunfo do mal
06) que se estampa no rosto do Califaj. i Quer opor-se à desdita que atinge
07) os lares de Bagdá e arredores, oferecendo-se ao soberanoj em sedicioso
08) holocausto.
09) O paik reage ao ouvir suai proposta. k Suplica que i desista, sem
10) alterar a decisão da filhai. kVolta a insistir, desta vez, golpeando a
11) pureza da língua árabe, k pede emprestadas as imprecações, as palavras
12) espúrias, bastardas, escatológicas, que os beduínos usavam
13) indistintamente em meio à ira e aos folguedos. Sem envergonhar-se, k
14) lança mão de todos os recursos para convencê-lai. Afinal a filhai lhek
15) devia, além da vida, o luxo, a nobreza, a educação refinada. k Pusera-
16) lhei à disposição mestres em medicina, filosofia, história, arte e religião,
17) que despertaram a atenção de Scherezadei para aspectos sagrados e
18) profanos do cotidiano que jamais i teria aprendido, não fora a ingerência
19) do paik. k Oferecera-lhei ainda Fátima, a ama que, após a morte
20) prematura da mãe, ensinara-lhei a contar histórias.
21) Apesar dos protestos do Vizirk, sob a ameaça de perder a filha amada,
22) Scherezadei insistira em uma decisão que envolvia os familiares no drama.
23) Cada membro do clã do Vizirk avaliando, em silêncio, o significado
24) deste castigo, os efeitos daquela morte em suas vidas.
25) Também Dinazardal, a irmã mais velha, tentara dissuadi-lai. l Previa-ai
26) incapaz de dobrar a vontade do soberanoj. Sendo assim, por que
27) acompanhá-lai ao palácio imperial, como i lhel havia pedido, e
28) participar de um ato que ora lhel extraía lágrimas, manifestações de luto
29) prévio?
30) O debate deixara os limites dos aposentos, das dependências dos
31) serviçais, para circular pelo submundo de Bagdá, constituído de mendigos,
32) encantadores de serpente, charlatães, mentirosos, que no bazar adotavam
33) formas obscenas e jocosas enquanto propagavam a notícia da filhai do
34) Vizir, a mais brilhante princesa da corte, que, tendo em mira salvar
35) as jovens das garras do Califaj, decidira casar-se com elej. (2006: 7-8)
Observa-se que Scherezadei é introduzida por nome próprio (na linha 1) e retomada:
por nome próprio (nas linhas 17 e 22); pelos sintagmas nominais a filha (nas linhas 10 e 14) e
a filha do Vizir (na linha 33-34); pelos possessivos que compõem os sintagmas sua morte
(na linha 2-3), sua imaginação (na linha 3) e sua proposta (na linha 9); pelos pronomes
pessoais la (nas linhas 14, 25 e 27), lhe (nas linhas 16, 19 e 20) e a (na linha 25); por zero
(nas linhas 1, 4, 5, 6, 9, 18 e 27).
108
O Califaj é introduzido por nome próprio33
(na linha 2) e retomado: por nome próprio
(nas linhas 6 e 35); pelo sintagma nominal o soberano (nas linhas 7 e 26); pelo pronome
pessoal ele (na linha 35).
O Vizirk é introduzido pelo sintagma nominal o pai (na linha 2) e retomado: pelo
nome próprio que vem no sintagma nominal o Vizir,34
(nas linhas 21 e 23); pelos sintagmas
nominais o pai (nas linhas 4, 9 e 19); pelo pronome pessoal lhe (na linha 14); por zero (nas
linhas 9, 10, 11, 13, 15 e 19).
Dinazardal é introduzida por nome próprio (na linha 25) e retomada: pelo pronome
pessoal lhe (nas linhas 27 e 28); por zero (na linha 25).
A partir dessas observações, podem-se quantificar, no quadro 22, os elementos fóricos
usados para referir (introduzir ou manter) essas personagens:
Quadro 22 - Tipos de preenchimentos fóricos usados na introdução e na manutenção das personagens do romance Vozes do
deserto.
No quadro abaixo, especificam-se os tipos de preenchimentos fóricos usados no texto,
de acordo com as referências feitas às personagens:
33
O sintagma nominal o Califa foi considerado, nesta análise, como nome próprio. Trata-se originariamente de
um nome comum que vem como próprio na designação da personagem como chefe de Estado. 34
O sintagma nominal o Vizir foi considerado, nesta análise, como nome próprio. Trata-se originariamente de
um nome comum que vem como próprio na designação da personagem como funcionário do Estado.
Personagens
Menção por:
Sintagma nominal Pronome
pessoal Zero
Núcleo
nome
próprio
Núcleo
nome
comum
Det.
Pronome
possessivo
- -
Scherezade 3 3 3 7 7
Califa 3 2 0 1 0
Vizir 2 4 0 1 6
Dinazarda 1 0 0 2 1
109
Quadro 23 - Menção / tipo fórico – romance Vozes do deserto (N - nome próprio; S - sintagma nominal;
P - pronome pessoal; Pp - (determinante) pronome possessivo; - zero)
Observando-se os elementos fóricos que representam as personagens, a cada vez que
elas são referidas, pode-se verificar, no quadro a seguir, o grau de identificação
correspondente aos respectivos preenchimentos fóricos.
Quadro 24 - Romance Vozes do deserto - Grau de identificação correspondente ao tipo fórico adotado em cada menção
Personagens: i Scherezade
j Califa k Vizir
l Dinazarda
A personagem principal é introduzida na linha 1 pelo nome próprio: ―Scherezade não
teme a morte‖. Ela é retomada duas vezes pelo mesmo elemento referencial, nas linhas 17 e
22. Como o nome próprio não traz informações sobre o referente, e, como Scherezade transita
a maior parte da narrativa entre os graus baixo (referida pelos pronomes la, lhe e a) e zero, o
Personagens Tipo fórico correspondente a cada menção
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª 11ª 12ª 13ª 14ª 15ª 16ª 17ª 18ª 19ª 20ª 21ª 22ª 23ª
Scherezade N Pp Pp Pp S P S P N P P N P P P S
Califa N N S S N P
Vizir S S S P S N N
Dinazarda N P P
Grau de
identificação
Menções às personagens do romance Vozes do deserto
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23
Máximo
i i i
j j j
k k
l
Intermediário
i i i
j j
k k k k
Baixo
i i i i i i i i i i
j
k
l l
Zero
i i i i i i i
k k k k k k
l
110
nível de descrição, nesse excerto, é bastante pequeno. Quando a personagem é retomada pelo
sintagma nominal a filha, o leitor tem uma informação: Scherezade é filha da personagem
introduzida pelo sintagma o pai: ―O pai reage ao ouvir sua proposta. Suplica que desista, sem
alterar a decisão da filha‖.
A sequência em análise não é uma narrativa canônica, pois nasce de uma exposição no
tempo presente, e é na exposição que surgem os elementos que caracterizam Scherezade em
alguns aspectos, como: ―Scherezade não teme a morte. Não acredita que o poder do mundo
representado pelo Califa...‖. A partir desse ponto entra uma narrativa e o que caracteriza essa
narrativa são as predicações, que vem com verbos de ação. A narrativa vem entremeada por
certas frases de exposição, com elipse do sujeito (referenciação textual zero), como, por
exemplo, em: ― Tenta convencer o pai [...]. Não suporta ver o triunfo do mal [...]. Quer
opor-se à desdita que atinge os lares de Bagdá e arredores [...]‖. Nessa passagem, o verbo
tentar indica uma ação (o que ela faz), enquanto os verbos suportar, ver e querer indicam
processos, na exposição sobre ela.
Essa organização narrativa explica o fato de a personagem ser introduzida por nome
próprio e depois ser recuperada inúmeras vezes por zero ( ), sem sair do foco
(RONCARATI, 2010).
Outra personagem que é introduzida (na linha 2) pelo nome próprio vem em um
sintagma nominal: o Califa (―Não acredita que o poder do mundo representado pelo
Califa a quem o pai serve‖). A personagem é retomada, duas vezes na cadeia referencial, pelo
sintagma nominal o soberano, primeiro em ―oferecendo-se ao soberano em sedicioso
holocausto‖, e, depois, em ―previa-a incapaz de dobrar a vontade do soberano‖. Trata-se de
uma retomada que reitera a categorização da personagem como chefe de Estado.
No final do excerto, a personagem é retomada por pronominalização (―... tendo em
mira salvar as jovens das garras do Califa, decidira casar-se com ele‖), mas a essa altura a
única informação que um pronome pode oferecer (o gênero ao qual pertence a personagem),
já é conhecida do leitor. O número de informações referentes a ele também é restrito, no
entanto, pode-se dizer que a insistência nos substantivos Califa e soberano, em certa medida,
refletem características como autoritário, inatingível, etc.
O Vizir é introduzido e retomado nas linhas 4, 9 e 19 pelo mesmo sintagma nominal: o
pai. Essa personagem também é referida, na linha 21, por um nome próprio que vem em um
sintagma nominal, o Vizir. No caso das duas personagens, o Califa e o Vizir, o conhecimento
do contexto de cultura e do contexto de situação (HALLIDAY, 1964; 1973; 1978; 1989; e
111
HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) permite caracterizar o primeiro como um chefe de
Estado de país mulçumano, e o segundo como um funcionário do Estado (funcionário do
Califa).
Além das repetições lexicais dos sintagmas o pai e o Vizir, a personagem é retomada
uma vez por pronominalização (―Afinal a filha lhe devia, além da vida, o luxo, a nobreza, a
educação refinada‖), e em todas as outras vezes que é referida surge como sujeito zero,
portanto sem informações que ajudem a complementar o seu perfil.
Diferentemente do que ocorre com Scherezade, o pai vem em uma sequência
totalmente narrativa, mas mantém-se o tempo presente: ―O pai reage ao ouvir sua proposta.
Suplica que desista, sem alterar a decisão da filha. Volta a insistir, desta vez,
golpeando a pureza da língua árabe, pede emprestadas as imprecações‖. Assim como
ocorre com a filha, ele é representado mais de uma vez por referenciação zero. Esse modo de
referenciação, que mantém as personagens no foco da consciência do leitor, confere agilidade
à frase. Isso ocorre pela ausência de repetições da categorização da personagem, ou de
recategorizações.
Na linha 25, outra personagem é introduzida por nome próprio: Dinazarda. Nessa
primeira referência, o leitor já conhece a identidade da personagem. Depois de ser
introduzida, ela é retomada duas vezes pelo pronome pessoal lhe (―Sendo assim, por que
acompanhá-la ao palácio imperial, como lhe havia pedido, e participar de um ato que ora lhe
extraía lágrimas, manifestações de luto prévio?‖), que, assim como o nome próprio, não faz
nenhuma descrição que contribua para compor a personagem. A única informação que se tem
dela não está na cadeia referencial, mas no aposto explicativo a irmã mais velha: ―Também
Dinazarda, a irmã mais velha, tentara dissuadi-la‖. Nessa frase, o pronome la retoma
Scherezade, e, assim sendo, o aposto permite ao leitor reconhecer que Dinazarda, além de ser
irmã de Scherezade, é mais velha do que ela.
Nesse excerto todas as personagens, com exceção do Califa, são referidas,
predominantemente, nos graus baixo ou zero de identificação. Por essa razão, a caracterização
delas é muito restrita, mas nem por isso elas deixam de ser identificadas e retomadas
facilmente no texto.
112
5.1.2 A referenciação e o grau de identificação das personagens em sequências
narrativas
Em cada uma das sequências analisadas foram detalhados e especificados os
elementos fóricos usados para introduzir e manter as personagens. Esse exercício, a princípio
repetitivo, foi absolutamente necessário para que se pudesse, a partir de uma grande
quantidade de ocorrências, ter a possibilidade de chegar a resultados confiáveis.
Embora não se tenha estabelecido como propósito apontar diferenças entre as escolas
literárias, não se pode deixar de observar que as sequências textuais narrativas apresentaram
diferentes modos de introduzir, caracterizar ou identificar uma personagem (diferentes usos
da língua). Isso implica diferentes escolhas de expressão fórica que, em alguns casos,
apresentam funções textuais-discursivas semelhantes, seja a de introduzir, a de identificar ou a
de caracterizar uma personagem.
Tomem-se como exemplo de diferentes elementos fóricos com função semelhante,
alguns casos analisados nos romances Senhora e Amar, verbo intransitivo. No primeiro, a
personagem principal é introduzida por sintagma nominal (uma nova estrela), enquanto, no
segundo, as personagens principais são introduzidas por pronome pessoal (eles). Caso
parecido ocorre nos romances A carne e O filho eterno: na obra de Júlio Ribeiro, um dos
protagonistas é introduzido por sintagma nominal que inclui o nome da personagem (o
doutor Lopes Matoso), enquanto na obra de Tezza, do mesmo modo que em Amar, verbo
intransitivo, as personagens são introduzidas por pronomes pessoais, e, além disso, não são
mencionadas nenhuma vez no grau máximo de identificação.
Por outro lado, em O seminarista, as personagens principais, Eugênio e Margarida são
introduzidas no mesmo sintagma nominal (dois meninos), enquanto, em Vozes do deserto,
três das quatro personagens que integram o excerto analisado são introduzidas por nome
próprio (Scherezade, O Califa e Dinazarda). A única personagem que não é introduzida por
nome próprio é depois retomada por esse elemento fórico (o Vizir). No caso deste último
romance, verifica-se ainda que duas dessas personagens (o Califa e o Vizir) têm o nome
próprio colocado como núcleo de sintagma nominal.
As personagens dos romances O cortiço e Alma são em sua maioria introduzidas por
sintagma nominal, embora também haja, nos excertos das duas obras, personagens
introduzidas por nome próprio: Alma e João Romão, respectivamente.
Coincidência ou não, os dois romances românticos (Senhora e O seminarista) e os
romances realistas (A carne e O cortiço) apresentam uma organização estrutural muito
113
próxima, não só pela maneira de introduzir as personagens, mas também por um recurso
presente nas construções das respectivas sequências narrativas: há uma série de qualificações
que contribuem sobremaneira para a constituição da identidade das personagens. Nos
romances modernos e contemporâneos esse recurso não aparece com a mesma frequência,
sobretudo em Amar, verbo intransitivo, O filho eterno e Vozes do deserto. O romance Alma é
exceção, pois nele há uma frequência maior de qualificações.
Dentre os tipos de preenchimentos fóricos verificados nas análises, nota-se que, nas
construções em que são usados muitos sintagmas nominais com núcleo representado por
substantivo comum – diferentemente de construções como a de Amar, verbo intransitivo, em
que há apenas uma referência por sintagma nominal (feita a Souza Costa) –, o número de
informações que caracterizam as personagens é muito maior, o que ocorre inclusive com as
personagens secundárias, como D. Firmina e o tutor, de Senhora, a esposa de Lopes Matoso e
o coronel Barbosa, de A carne, e com o senhor e o amante de Bertoleza, de O cortiço. Daí se
pode compreender que um texto em que as personagens transitam pelo grau intermediário de
identificação (sintagma nominal) facilita ao leitor construir uma imagem dos participantes da
narrativa, mas o mesmo não ocorre quando as personagens transitam pelos graus baixo
(pronome) ou zero (elipse) de identificação, em que o nível de informação é menor. Há casos
em que as personagens são referidas mais de uma vez por sintagma nominal, mas o nível de
descrição se mantém baixo, o que ocorre por conta da existência de repetições lexicais:
Margarida, de O seminarista, o avô e cão, de Alma, e o Califa e o Vizir, de Vozes do deserto.
As sequências de Amar, verbo intransitivo e de O filho eterno são exemplos de trechos
em que os elementos fóricos usados para referir as personagens transitam em sua maioria
entre os graus baixo e zero de identificação, elementos fóricos em que é nula ou quase nula a
existência de informações referentes às personagens. Nessas sequências, os pronomes
pessoais de terceira pessoa (eles, ele e ela) – que frequentemente exercem a função de retomar
um elemento do texto, ao introduzirem as personagens – já dão ao leitor alguma descrição
sobre elas, referente ao gênero e ao número delas. Lembre-se que o traço definidor do
pronome pessoal é a ―sua capacidade de identificar de forma pura a pessoa gramatical‖
(NEVES, 2011: 450). A exemplo do que ocorre nesses dois romances, em Alma também há
uma personagem (Mauro) introduzida pelo pronome pessoal (ele).
Quanto aos pronomes possessivos, observa-se o uso abundante deles em Senhora e em
O cortiço. Nos dois casos, os determinantes possessivos que compõem os sintagmas fazem
referência a uma 3ª pessoa, tanto quanto o núcleo substantivo, mas, no excerto do primeiro
romance, a 3ª pessoa representada pelo nome (núcleo do sintagma) é sempre uma entidade
114
abstrata (sua ascensão, sua companhia, seu capricho, dentre outros), enquanto no segundo
romance, em alguns sintagmas a 3ª pessoa representada pelo nome é uma pessoa (seu dono,
seu senhor seu homem), o que estabelece relações entre as personagens.
As ocorrências com os determinantes demonstrativos são pouco frequentes. Em
função anafórica de manter referentes, por exemplo, eles ocorrem duas vezes no excerto do
romance Senhora: primeiro ligado a D. Firmina (―mas essa parenta não passava de mãe de
encomenda‖) e, depois, ligado ao tutor (―mas essa entidade desconhecida a julgar pelo caráter
da pupila‖). Na função anafórica de sumarizar informações precedentes, eles ocorrem nos
romances Alma (―mas não: João do Carmo era um rapaz direito, incapaz dessas torpezas‖) e
O filho eterno (―e essa magreza semovente de uma alegria agressiva‖).
Observa-se ainda uma diferença entre o sintagma nominal indefinido que introduz o
tutor (um tutor), do romance Senhora, e o sintagma nominal indefinido que introduz o filho
(um filho), do romance O filho eterno. Ambos os sintagmas trazem à existência as
personagens, mas, no primeiro caso, o contexto em que o tutor é introduzido contribui para
manter a genericidade (―Constava também que Aurélia tinha um tutor; mas essa entidade
desconhecida, a julgar pelo caráter da pupila não devia exercer maior influência em sua
vontade...‖), entendendo-se que a referência se faz a toda e qualquer pessoa que possa ser um
tutor. No segundo caso, por outro lado, pode-se verificar uma especificação para o núcleo
nominal ao qual o artigo indefinido se liga, e essa especificação se dá por uma associação
entre as indicações referenciais, que foram feitas: pelos sintagmas nominais um filho e a
mulher grávida; e pelo preenchimento ―zero‖ da casa referencial, que retoma a personagem
ele (o pai), na seguinte passagem: ―viu-se diante da mulher grávida quase como se só agora
entendesse a extensão do fato: um filho‖. Aqui é possível especificar o referente um filho
como o filho do casal que protagoniza a cena. Isso quer dizer que, embora neste último caso o
referente seja introduzido por um sintagma indefinido, o leitor, mesmo não tendo nenhuma
descrição da personagem, consegue obter a informação de quem são os pais do bebê, ou seja,
de que este bebê não é uma entidade qualquer no universo discursivo, mas é o filho do casal
protagonista.
Verifica-se um caso semelhante ao dessa personagem de O filho eterno, em O cortiço:
a personagem Bertoleza é introduzida pelo sintagma nominal indefinido uma quitandeira
(―A comida arranjava-lhe, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha,
a Bertoleza‖), mas perde a genericidade por conta do aposto sua vizinha, que vem na mesma
frase e a especifica como a vizinha de João Romão.
115
Em suma, o que se revela é que o ponto principal, no tocante ao grau de identificação,
é a presença do nome comum como núcleo do sintagma nominal (grau intermediário de
identificação). Afinal, mesmo nas menções em que a personagem é identificada com nome
próprio (grau máximo de identificação), como nos romances Senhora, A carne, O cortiço,
Alma e Vozes do deserto – em que as personagens, em sua maioria, são referidas pelo nome e,
em alguns casos, pelo nome e sobrenome –, não é possível caracterizá-la se não houver, na
construção do texto, a presença do sintagma nominal com substantivo comum, pois não se
tem nenhuma descrição referente à personagem.
5.1.2.1 Um exercício de análise da referenciação ligada ao conjunto dos objetos de
discurso em geral em sequências narrativas
O mesmo excerto, do romance Amar, verbo intransitivo, analisado para verificar o
grau de identificação das personagens foi retomado como amostra para verificar como se dá a
introdução e a manutenção dos referentes textuais, considerando-se não só as personagens,
como também os outros referentes textuais que compõem a cadeia referencial do texto.
Nessa sequência do romance de Mário de Andrade constam diálogos, diferentemente
do que ocorre nos outros excertos, cuja seleção seguiu a diretriz de não incorporar a
conversação, para não multiplicar variáveis. Entretanto, esta amostra de análise constituiu um
teste que permitiu pôr em consideração o papel dessa presença enunciativa das personagens
no estabelecimento da rede referencial no texto.
A porta do quarto se abriu e eles saíram no corredor. Calçando as luvas
Sousa Costa largou por despedida:
- Está frio.
Ela muito correta e simples:
- Estes fins de inverno são perigosos em São Paulo.
Lembrando mais uma coisa reteve a mão de adeus que o outro lhe estendia.
- E, senhor... sua esposa? Está avisada?
- Não! A senhorita compreende... Ela é mãe. Esta nossa educação
brasileira... Além do mais com três meninas em casa!...
- Peço-lhe que avise sua esposa, senhor. Não posso compreender tantos
mistérios. Se é para o bem do rapaz.
- Mas senhorita...
- Desculpe insistir. É preciso avisá-la. Não me agradaria ser tomada por
aventureira sou séria. E tenho 35 anos, senhor. Certamente não irei se sua
116
esposa não souber o que vou fazer lá. Tenho a profissão que uma fraqueza
me permitiu exercer, nada mais nada menos. É uma profissão.
Falava com a voz mais natural desse mundo mesmo com certo orgulho que
Sousa Costa percebeu sem compreender. Olhou pra ela admirado e, jurando
não falar nada à mulher, prometeu.
Elza viu ele abrir a porta da pensão. Pâam... Entrou de novo no quartinho
ainda agitado pela presença do estranho. Lhe deu, um olhar de confiança.
Tudo foi sossegando pouco a pouco. (2008: 19)
O primeiro sintagma referencial do romance, a porta do quarto (―a porta do quarto
se abriu e eles saíram no corredor‖), faz identificação locativa, ou seja, identificação do lugar
em que se passa a cena. O núcleo desse sintagma é acompanhado por artigo definido, o que
propicia a identificação do espaço. É uma identificação que ocorre por sugestão de relações
internas do próprio texto, de seu gênero (romance) e de seu tipo textual (narrativa): trata-se da
porta do quarto onde o leitor identifica que essa cena do romance que ele começa a ler se
desenvolverá. Normalmente um artigo definido não faz a introdução de referente como é o
caso desta sequência, mas frequentemente ele retoma o referente, por remissão.
Na formação dessa primeira predicação (―a porta do quarto se abriu‖) cria-se uma
organização espacial definida. A predicação que segue (―e eles saíram no corredor‖)
introduz um novo referente textual locativo, o corredor. Por conta dessas predicações,
configura-se uma organização espacial dinâmica, em que eles (as personagens anunciadas por
esse pronome pessoal) se locomovem de um espaço a outro avançando a sequência narrativa.
Observa-se que o ato de abrir a porta é retomado no último parágrafo (―Elza viu ele
abrir a porta da pensão‖), em que, mais uma vez, na formação da predicação é introduzido
um referente que indica espaço. Neste último caso, o referente textual a porta da pensão traz
a informação de que o quarto do início da cena está localizado em uma pensão. Essa
informação especifica ainda mais o espaço da narração. É uma relação que se configura do
específico para o geral:
a porta o quarto o corredor a porta
o quartinho
Quando o quarto é correferenciado (―entrou de novo no quartinho ...‖), o leitor, além
de identificar anaforicamente o referente, pode construir uma imagem mental de que o quarto
da pensão não é espaçoso.
pensão
117
Nessa sequência narrativa, cria-se primeiro o espaço em que a cena se desenvolverá e
em seguida surgem as personagens, que no primeiro período são introduzidos pelo pronome
pessoal plural eles (―A porta do quarto se abriu e eles saíram no corredor‖). Trata-se de uma
introdução diferente (um uso catafórico), pois normalmente a introdução de um referente
textual é realizada por sintagma nominal, enquanto o pronome de terceira pessoa em geral é
anafórico, recuperando referentes.
No caso da sequência em análise, o pronome faz uma referenciação pessoal que traz as
personagens do discurso, mas, além da informação (expressa na desinência de masculino
plural) de que há mais de uma personagem que participa da cena, e de que um deles é
masculino, não é possível identificar o número de personagens ou o gênero de cada uma
delas. Não há uma identificação específica, mas uma identificação subordinada à dinâmica do
texto: eles são identificáveis como as personagens do romance.
Embora já se tenha tratado da introdução e da manutenção das personagens que
compõem essa sequência, não se pode deixar de dizer que no segundo período há a introdução
da primeira personagem como uma especificação dentro do eles. Essa personagem é nomeada
por um nome próprio, Souza Costa (―calçando as luvas Souza Costa largou por despedida‖).
Trata-se de uma criação especial de referente, já que o nome próprio, como já visto, não faz
nenhuma descrição da personagem, a qual é mantida, até a metade do último parágrafo, por
referenciações que também não trazem informações específicas sobre ela, como a expressão
referencial comparativa geral, nos termos de Halliday e Hasan (1976) o outro (“Lembrando
mais uma coisa reteve a mão de adeus que o outro lhe estendia‖), a referenciação textual zero
(― olhou pra ela admirado...‖), ou o próprio pronome pessoal (―Elza viu ele abrir a porta da
pensão‖). No último parágrafo, com a recategorização por meio da substantivação do adjetivo
estranho, surge a informação de que as personagens não são íntimas: (―... Entrou de novo no
quartinho ainda agitado pela presença do estranho‖).
A segunda personagem, diferentemente da primeira, não vem com uma especificação
nominal, vem referida por pronome (―ela muito correta e simples‖). O pronome ela não dá
uma identificação descritiva, ele não rotula, como faz o sintagma nominal (FRANCIS, 2003),
e também não traz nenhuma descrição. A única identificação possível é de gênero, feminino,
e, assim sendo, ela é identificada apenas como a outra personagem (personagem feminina) da
narração.
O modo de manutenção dessa personagem, no decorrer da narração, por referenciação
textual zero e por pronominalização (em ―lembrando mais uma coisa reteve a mão de adeus
118
que o outro lhe estendia‖, e, em ― falava com a voz mais natural desse mundo‖), além da
repetição pronominal (em ―olhou pra ela admirado‖), também não traz nenhuma descrição. A
identificação plena surge apenas no último parágrafo (―Elza viu ele abrir a porta da pensão‖),
mas, mesmo assim, o leitor continua sem descrições referentes à personagem.
Na construção da cadeia referencial que se monta, a personagem masculina Souza
Costa é nomeada na introdução do referente, e no último parágrafo é retomada por
pronominalização. Com a personagem feminina Elza ocorre o contrário, ela é introduzida por
pronome e nomeada somente no último parágrafo, na manutenção do referente. Esse recurso
produz um efeito de sentido que envolve a personagem Elza em um clima de mistério, clima
este que acompanhará a personagem no desenrolar do romance.
Como se explicou na metodologia, que consta da parte final da introdução, embora
não se esteja analisando a referenciação presente nos diálogos, é preciso passar por eles para
montar a cadeia referencial, pois existem neles algumas descrições espaciais ou de pessoa,
que ajudam a compor a identificação do lugar e das personagens. No caso da locação, o leitor
consegue identificar, na fala de Elza, que a história se passa em São Paulo (―Estes fins de
inverno são perigosos em São Paulo‖). As informações relacionadas a Souza Costa
progridem na construção dos diálogos: primeiro se sabe que ele é casado (―E, senhor... sua
esposa? Está avisada?‖), e, depois, que ele tem filhos (―... Além do mais com três meninas
em casa‖).
Com relação a Elza, sabe-se, por sua fala, que ela tem 35 anos e uma profissão, não
especificada, que uma fraqueza lhe permitiu exercer, (―E tenho 35 anos, senhor. (...). Tenho a
profissão que uma fraqueza me permitiu exercer‖). Esta última informação permite ao leitor,
nesse início do romance, pressupor que ela exerce uma profissão que não é convencional.
Na verificação da cadeia referencial, observam-se alguns referentes que estão no
primeiro plano da narrativa, como as personagens principais, e outros, também de
significativo valor semântico e informativo, que estão apenas associados aos atores da história
e contribuem para que haja o avanço narrativo. Um exemplo dessa referência é o sintagma
referencial as luvas (―calçando as luvas Souza Costa largou por despedida‖). Quando a
personagem calça as luvas provavelmente irá sair, ação que mantém o dinamismo da cena.
Na época em que se passa o romance, costumava-se vestir luvas antes de sair, essa é uma
informação acessível no contexto de situação e no contexto de cultura da época (HALLIDAY,
1964; 1973; 1978; 1989; e HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).
Na interpretação desse exercício de análise, pode-se dizer que identificar cada um dos
elementos que compõem a cadeia referencial do enunciado é identificar não só uma
119
organização lógica, para construção do sentido mas também o acionamento da gramática na
criação da rede referencial, e especialmente a flexibilidade das regras gramaticais, geralmente
impostas como estanques. Como diz Neves (2007), a reflexão sobre as várias possibilidades
de uso da língua no processo de interação verbal é um dos desideratos dos exames de linha
funcionalista.
A sequência observada é altamente favorável a uma análise que não perca de vista essa
noção, porque sua organização destrói algumas falsas noções, por exemplo, a de que a
identificação feita pelo artigo definido é invariavelmente anafórica, bem como a de que o
modo de introdução de um referente tem uma fórmula pronta, ou, ainda, a de que a descrição
de uma personagem tem lugar certo para surgir no texto. Afinal, as personagens do romance
surgiram sem nenhuma descrição e foram configuradas nos diálogos que ajudaram a compor a
narração.
5.2 As sequências descritivas
5.2.1 A análise das sequências descritivas
Apresentam-se a seguir as análises das sequências descritivas. Há sequências em que
predomina a descrição, e outras em que há uma mescla de tipos textuais. Em ambos os casos
será verificada a introdução e manutenção dos elementos fóricos que contribuem para
construção espacial das cenas, um campo que se destaca dentre as sequências descritivas dos
romances.
1ª) A primeira sequência analisada inicia o capítulo V do romance Senhora.
Havia à Rua do Hospício, próximo ao campo, uma casa que desapareceu
com as últimas reconstruções.
Tinha três janelas de peitoril na frente; duas pertenciam à sala de visitas; a
outra a um gabinete contíguo.
O aspecto da casa revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação.
A mobília da sala consistia em sofá, seis cadeiras e dois consolos de
jacarandá, que já não conservavam o menor vestígio de verniz. O papel da
parede de branco passara a amarelo e percebia-se que em alguns pontos já
havia sofrido hábeis remendos.
O gabinete oferecia a mesma aparência. O papel que fora primitivamente
azul tomara a cor de folha seca.
120
Havia no aposento uma cômoda de cedro que também servia de toucador,
um armário de vinhático, uma mesa de escrever, e finalmente a marquesa, de
ferro, como o lavatório, e vestida de mosquiteiro verde.
Tudo isto, se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era como
aqueles cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso
asseio. Não se via uma teia de aranha na parede, nem sinal de poeira nos
trastes. O soalho mostrava aqui e ali fendas na madeira; mas uma nódoa
sequer não manchava as tábuas areadas.
Outra singularidade apresentava essa parte da habitação: era o frisante
contraste que faziam com a pobreza carrança dos dois aposentos certos
objetos, aí colocados, e de uso do morador.
Assim, no recosto de uma das velhas cadeiras de jacarandá via-se neste
momento uma casaca preta, que pela fazenda superior, mas sobretudo pelo
corte elegante e esmero do trabalho, conhecia-se ter o chique da casa do
Raunier, que já era naquele tempo o alfaiate da moda.
Ao lado da casaca estava o resto de um trajo de baile, que todo ele saíra
daquela mesma tesoura em voga; finíssimo chapéu claque do melhor
fabricante de Paris; luvas de Jouvin cor de palha; e um par de botinas como o
Campas só fazia para os seus fregueses prediletos.
Sobre um dos aparadores tinham posto uma caixa de charutos de Havana,
da marca mais estimada que então havia no mercado. Eram regalias como
talvez só saboreavam nesse tempo os dez mais puros fumistas do império.
No velho sofá de palha escura, havia uma almofada de cetim azul bordada
a froco e ouro. A mais suntuosa das salas do Rio de Janeiro não se arreava
por certo com uma obra de tapeçaria, nem mais delicada, nem mais mimosa
do que essa, trabalhada por mãos aristocráticas.
(1985: 29-30)
Como se observa, o excerto é predominante descritivo, no entanto inicia com um
parágrafo narrativo que introduz a descrição. Assim como este, no decorrer do excerto há
outros trechos narrativos a serviço da descrição. No primeiro parágrafo há não só uma
importante informação espacial, como também a introdução do referente que é tema da
descrição: uma casa.
O sintagma referencial a Rua do Hospício indica a localidade na qual está situado o
objeto da descrição. Esta localidade fica mais especificada com a introdução da expressão
referencial ao campo, que complementa o advérbio de lugar próximo: ―Havia à Rua do
Hospício, próximo ao campo, uma casa que desapareceu com as últimas reconstruções‖.
Embora haja a localização espacial, não há a determinação do objeto da descrição, pois
o referente textual uma casa, introduzido por sintagma nominal indefinido, mantém a
genericidade, podendo aplicar-se a todo e qualquer membro da classe, dentro do que propõe
Neves (2011).
A descrição da casa começa com a introdução das expressões referenciais que ajudam
a compor sua estrutura: a sala de visitas, um gabinete contíguo e três janelas de peitoril na
121
frente. Dessas janelas, duas estão associadas à sala de visitas e a outra está associada ao
gabinete (―Tinha três janelas de peitoril na frente; duas pertenciam à sala de visitas; a
outra a um gabinete contíguo‖).
Na reconstrução descritiva da casa surge uma comparação referencial entre o lado
externo e o lado interno da habitação: um é tão pobre quanto o outro (―O aspecto da casa
revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação‖). Não se fala explicitamente em
lado externo da casa, ele é recuperado por inferência, a partir do cotexto (KOCH, 2011), em
anáfora indireta.
O elemento dessa comparação referencial é a expressão nominal a pobreza da
habitação, que está associada às duas expressões referenciais da comparação: o aspecto da
casa, que se subentende ser o lado externo, e seu interior, em que o pronome possessivo seu
retoma a casa. Esta, ao ser recategorizada como a habitação (parte do sintagma a pobreza da
habitação), traz uma informação nova: a de que, possivelmente, nessa casa havia
morador(es).
Em uma sequência descritiva, a disposição dos elementos que compõem o ambiente
surge como uma lista (SCHIFFRIN, 1994) de expressões referenciais cujas introduções
contribuem para compor o espaço descrito. Assim, associados à sala35
estão o sofá, seis
cadeiras, dois consolos de jacarandá e o papel de parede. Na teia referencial que se monta,
outros referentes se associam aos já introduzidos para configurar o cenário, tais como o
menor vestígio de verniz, que está associado aos consolos, e as expressões referenciais
alguns pontos e hábeis remendos, que estão associados ao papel da parede.
A expressão referencial a mesma aparência serve a uma comparação referencial entre
o gabinete e a sala: ―O gabinete oferecia a mesma aparência. O papel que fora
primitivamente azul tomara a cor de folha seca‖. Indica-se o estado de deterioração da casa,
que tanto em um ambiente (sala) como em outro (gabinete) tem o papel da parede desbotado.
Os elementos que compõem o gabinete surgem depois de este ser recategorizado pelo
sintagma nominal o aposento36
. São eles: uma cômoda de cedro, um armário de vinhático,
35
―A mobília da sala consistia em sofá, seis cadeiras e dois consolos de jacarandá, que já não conservavam o
menor vestígio de verniz. O papel da parede de branco passara a amarelo e percebia-se que em alguns pontos já
havia sofrido hábeis remendos‖. 36
O gabinete oferecia a mesma aparência. O papel que fora primitivamente azul tomara a cor de folha seca. /
Havia no aposento uma cômoda de cedro que também servia de toucador, um armário de vinhático, uma
mesa de escrever, e finalmente a marquesa, de ferro, como o lavatório, e vestida de mosquiteiro verde.
122
uma mesa de escrever, a marquesa. Este último referente é comparado a outro referente que
compõe o espaço: o lavatório. Nessa comparação ambos recebem dois predicativos: são de
ferro e vestida de mosqueteiro verde.
O pronome demonstrativo isto sumariza (RONCARATI, 2010) a sequência em que
são descritos os objetos que compõem o gabinete. Esses objetos são duplamente comparados
aos móveis da sala: ―Tudo isto, se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era como
aqueles cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso asseio‖. Na
primeira comparação, os móveis do gabinete são tão velhos quanto os da sala. Na segunda
comparação, todos os móveis são como aqueles (o demonstrativo retoma os móveis da sala),
que são cuidadosamente limpos e espanejado, respirando o mais escrupuloso asseio. As
comparações mostram que o aspecto geral dos cômodos e dos móveis que os compõem é
muito parecido, dando a impressão de ambientes velhos e monótonos, porém limpos.
A introdução dos sintagmas nominais uma teia de aranha na parede, sinal de poeira
nos trastes (trastes recategorizando móveis), uma nódoa sequer e as tábuas areadas
evidencia, por negação da sujeira e do abandono, essa ideia de limpeza atual: ―Não se via
uma teia de aranha na parede, nem sinal de poeira nos trastes. O soalho mostrava aqui e
ali fendas na madeira; mas uma nódoa sequer não manchava as tábuas areadas‖.
Outro aspecto da casa pode ser identificado com o uso dos dêiticos aqui e ali, que
espacializam a enunciação, dando a ideia de que, além de o espaço se caracterizar pelo que já
se descreveu, há fendas por diferentes partes do soalho: ―O soalho mostrava aqui e ali fendas
na madeira‖.
Na organização descritiva fica clara uma singularidade: embora a casa e os móveis
tenham aspectos de velhice, eles são absolutamente limpos, e, mais do que isso, essa limpeza
tem uma manutenção, pois se assim não fosse, o ar de limpeza não se manteria. Tome-se
como exemplo o soalho da casa – cujo tipo de piso é especificado pelas expressões
referenciais fendas na madeira e as tábuas areadas, que recategoriza madeira –, que,
embora tenha fendas, não tem uma nódoa sequer, pelo contrário ele é até areado, aspecto que
só poderia ser mantido se houvesse alguém para cuidar dele.
A expressão referencial outra singularidade traz outro contraponto: o contraste entre
a pobreza e os objetos pertencentes ao morador da casa (―Outra singularidade apresentava
essa parte da habitação: era o frisante contraste que faziam com a pobreza carrança dos dois
aposentos e certos objetos, aí colocados, e de uso do morador‖). Subentende-se que os
objetos ostentam alguma riqueza que os diferencia da pobreza local.
123
Ao tratar dessa singularidade, a sala e o gabinete são recategorizados, primeiro pelo
sintagma nominal essa parte da habitação, e depois pelo sintagma os dois aposentos.
Exatamente no momento em que a personagem que participa da cena descritiva é introduzida,
a casa é novamente referida pela expressão a habitação. Isso mostra que, de fato, não se trata
de uma casa abandonada, mas sim de um habitat em que reside pelo menos uma pessoa, ―o
morador‖.
Essa personagem é introduzida pelo sintagma nominal o morador, que, embora seja
definido, tem sentido genérico (NEVES, 2007), pois a única informação expressa pelo
substantivo que é núcleo do sintagma é a de que a pessoa que reside na casa é um homem.
Posteriormente, a personagem é incluída, dentre os fregueses do Campas (―e um par de
botinas como o Campas só fazia para os seus fregueses prediletos‖), os dez mais puros
fumistas do império (―Eram regalias como talvez só saboreavam nesse tempo os dez mais
puros fumistas do império‖), e os cavalheiros mais ricos e francos da corte (―a roupa e
objetos de representação anunciavam um trato de sociedade, como só tinham cavalheiros dos
mais ricos e francos da Corte‖). Essas associações e as informações contidas nelas, bem
como as qualificações presentes na organização da descrição, conduzem o leitor a concluir
que, embora o morador resida em uma casa de aspecto velho, trata-se de uma pessoa que tem
ou teve posses.
O que já se supunha ser um contraste entre a pobreza e a riqueza se confirma ao serem
introduzidos os elementos que estão associados ao sintagma certos objetos, tais como: uma
casaca preta, o resto de um traje de baile, chapéu claque, luvas de Jouvin, um par de botinas,
uma caixa de charutos de Havana, e almofada de cetim azul. Na verdade, são as qualificações
atribuídas a esses elementos que contribuem para que se compreenda o contraste que há entre
o ambiente e os objetos que nele estão37
.
Compreender algumas dessas qualificações implica conhecimento de mundo, do
contexto de cultura e do contexto de situação da época (HALLIDAY, 1964; 1973; 1978;
1989; e HALLIDAY; MATTHIESEN, 2004). Esse conhecimento permite ao leitor associar
os nomes Raunier e Campas, bem como as luvas de Jouvin e o chapéu de claque à
importância desses nomes e desses objetos à época em que se passa o romance.
37
Por exemplo: uma casaca preta (a fazenda superior, corte elegante, esmero do trabalho, o chique da casa
Raunier); luvas de Jouvin (cor de palha); o traje de baile, que é retomado pelo pronome ele, também é uma
produção da casa Raunier, referida, nesta passagem, pela anáfora associativa daquela mesma tesoura; chapéu
claque (do melhor fabricante de Paris); par de botinas (do Campas); uma caixa de charutos (de Havana, da
marca mais estimada, regalia, que poucos podiam provar); e almofada de cetim azul (bordada a froco e ouro).
124
Além do contraste entre a riqueza dos objetos e a pobreza da casa, um dos objetos que
pertence ao morador, a almofada de cetim38
, é protagonista de outro contraponto: embora a
casa tenha aspecto e mobília que remetem à pobreza, alguns dos objetos, como a almofada,
ostentam uma riqueza que não há nem mesmo na sala mais suntuosa do Rio de Janeiro. Para
imprimir o valor desse objeto, a almofada, ao ser recategorizada, é elevada a uma obra de
tapeçaria, que recebe predicativos como delicada, mimosa e trabalhada por mãos
aristocráticas, o que eleva o seu valor e, por conseguinte, o ar de ostentação.
A introdução do sintagma nominal o Rio de Janeiro, que surge nesse contraponto,
traz uma informação que especifica ainda mais a localização da casa. No primeiro parágrafo
do excerto, o leitor tem a informação de que a casa fica na Rua do Hospício, próximo ao
campo, e, nesse ponto da descrição, tem conhecimento de que essa rua está localizada no Rio
de Janeiro.
Uma série de comparações e associações compõe o espaço desta descrição. Tanto na
localização espacial da casa como na composição interna dela, nota-se uma especificação de
elementos, sobretudo no interior da casa, no qual a descrição é cada vez mais particularizada:
parte-se do aspecto geral do ambiente para os objetos de composição (a mobília) e, depois,
especificam-se elementos associados a esses objetos, como, por exemplo, em ―assim, no
recosto de uma das velhas cadeiras de jacarandá via-se neste momento uma casaca
preta‖. O excesso de detalhes dá sentido de realismo para o espaço descrito, além de uma
proximidade maior do leitor com o ambiente.
2ª) Nesta sequência, que é parte do capítulo IV do romance O seminarista, é descrito o
ambiente que abriga o seminário, estabelecido na cidade de Ouro Preto, para o qual os pais de
Eugênio o mandaram para estudar: ―Em vista de tudo isto os pais entenderam que o menino
tinha nascido para padre, e que não deviam desprezar tão bela vocação. Assentaram, pois, de
mandá-lo estudar e destiná-lo ao estado clerical‖.
38
―havia uma almofada de cetim azul bordada a froco e ouro. A mais suntuosa das salas do Rio de Janeiro
não se arreava por certo com uma obra de tapeçaria, nem mais delicada, nem mais mimosa do que essa,
trabalhada por mãos aristocráticas‖.
125
O seminário, que nada tem de muito notável, é um grande edifício de
sobrado, cuja frente se atravessa a pouca distância por detrás da igreja, tendo
nos fundos mais um extenso lance, um pátio e uma vasta quinta. Das janelas
do edifício se descortina o arraial, e a vista se derrama por um não muito
largo, porém formoso horizonte.
Colinas bastantemente acidentadas, cobertas de sempre verdes pastagens e
marchetadas aqui e acolá de alguns capões verdes-escuros formam o aspecto
geral do país. Por entre elas estendem-se profundos vales, e deslizam
torrentes de águas puras e frescas à sombra de moitas de verdura e bosquetes
matizados de uma infinidade de lindas flores silvestres.
Em torno e mais ao longo um cinto de montanhas verdes, ante colinas mais
elevadas, cobertas de selvas e pastagens, parecem envolver com amoroso
abraço aquele solo santo em que, segundo a lenda, o Bom Jesus revelou por
evidentes e repetidos milagres queria que ali se erguessem seu templo e seus
altares.
Da frente da capela por uma extensa e íngreme ladeira, desce uma rua
extremamente irregular e tortuosa, que vai terminar à margem do pequeno
rio Maranhão, que divide o arraial em dois, comunicando-se por uma ponte
de madeira.
Na parte superior dessa rua, que forma um espaçoso largo vêem-se
algumas cúpulas ou pequenas rotundas de pedra, dentro das quais se acham
figurados os passos da paixão de Cristo em imagens de tamanho natural, e
são especial objeto da veneração e curiosidade de quantos visitam aquela
localidade.
(1990: 23-24)
O referente textual introduzido pelo sintagma nominal o seminário recebe, na
primeira frase, atribuições (predicativos do sujeito) que o configuram como ―um grande
edifício de sobrado‖, mas ―que nada tem de muito notável‖. São qualificações que
representam características divergentes atribuídas ao mesmo local (o seminário), pois um
grande edifício de sobrado normalmente remete a uma edificação de pompa, mas, neste caso,
isso não ocorre, porque embora o edifício seja grande, o fato de ele não ter nada de notável
informa que não se trata de um imóvel que chame a atenção.
A localização do edifício é facilitada pela introdução da expressão a frente, que indica
que a fachada do seminário fica a pouca distancia detrás da igreja: ―cuja frente se atravessa a
pouca distância por detrás da igreja‖. A constituição de outras partes desse edifício é
observada na introdução do referente os fundos e as expressões referenciais associadas a ele:
um extenso lance, uma vasta quinta e as janelas. Isso significa que, além de ser um grande
edifício, a propriedade tem uma área externa considerável.
As janelas, associadas ao edifício, são os instrumentos por meio dos quais o ambiente
externo, constituído pelo arraial e pelo horizonte, é apresentado: ―das janelas do edifício se
descortina o arraial, e a vista se derrama por um não muito largo, porém formoso
horizonte‖.
126
Na rede referencial que se cria para dar forma a esse ambiente externo, as expressões
referenciais moitas de verdura, os profundos vales, bosquetes matizados e um cinto de
montanhas verdes associam-se às colinas, enquanto as torrentes de águas puras e frescas
associam-se aos vales e uma infinidade de lindas flores silvestres associa-se aos bosquetes.
À medida que esses elementos se vão incorporando uns aos outros, eles vão dando vida ao
espaço descrito.
As qualificações atribuídas às colinas – que são bastantemente acidentadas, cobertas
de verdes pastagens, marchetadas de alguns capões verdes-escuros – constituem a paisagem
geral do país. O conhecimento de mundo do leitor (KOCH, 2011) contribui para a
compreensão dessa informação, pois lhe permite associar essa paisagem ao cerrado que é a
vegetação predominante no país em que se passa o romance, o Brasil.
A expressão referencial aquele solo santo retoma o espaço descrito anteriormente e,
ao mesmo tempo, traz uma informação nova: a de que aquele lugar que abriga um seminário,
uma igreja e uma bela paisagem é também uma terra santa. Essa informação é confirmada na
narrativa que vem no pretérito, entremeando a descrição que está no tempo presente:
―segundo a lenda, o Bom Jesus revelou por evidentes e repetidos milagres queria que ali se
erguessem seu templo e seus altares‖. O pronome adverbial ali funciona como uma marca
linguística que contribui para a indicação de que é naquele lugar (que estava sendo descrito)
que o Bom Jesus queria que fossem erguidos o seu templo e os seus altares.
Nessa narrativa, o sintagma referencial seu templo, dentro do qual o pronome
possessivo (seu) retoma o Bom Jesus, enquanto o núcleo (templo) recategoriza a igreja,
configura uma retomada referencial que eleva a igreja à categoria de templo. Com a nova
recategorização pela expressão referencial a capela (―Da frente da capela por uma extensa e
íngreme ladeira [...]‖), perde-se esse sentido, pois o templo é rebaixado à categoria de capela.
Associados à capela são introduzidos novos elementos que complementam o espaço próximo
à igreja, tais como: uma extensa e íngreme ladeira, uma rua extremamente irregular e
tortuosa, o pequeno rio Maranhão, uma ponte de madeira, um espaçoso largo e algumas
cúpulas ou pequenas rotundas de pedra.
A religiosidade que domina o local se concretiza com a introdução do sintagma
nominal os passos da paixão de Cristo, associado aos sintagmas referenciais cúpulas ou
pequenas rotundas de pedra (―algumas cúpulas ou pequenas rotundas de pedra, dentro
das quais se acham figurados os passos da paixão de Cristo em imagens de tamanho
natural‖), que expressa a importância da lenda do Bom Jesus para o espaço no qual o
seminário está situado.
127
A descrição do espaço, nesta sequência, parte de um ambiente mais restrito (o aspecto
externo do edifício do seminário) para um ambiente mais geral (o ambiente que circunda o
edifício), mas sempre permitindo construir-se, pela leitura, apenas o espaço exterior, enquanto
o lado interno só pode ser construído mentalmente. São as informações introduzidas no texto
e o conhecimento de mundo do interlocutor que irão contribuir para que se faça essa
reconstrução.
3ª) A sequência descritiva a seguir, que é parte do segundo capítulo do romance A
carne, constitui outro exemplo em que a descrição parte do restrito para o geral,
contemplando-se o lado externo.
Lenita, por vezes, passava horas e horas à janela, contemplando as
dependências da fazenda.
Estava esta a meia encosta de um outeiro a cuja fralda corria um ribeirão.
Em frente estendia-se o grande pasto. A monotonia de verdura clara era
quebrada aqui e ali pelo sombrio da folhagem basta de alguns paus-d‘alho
deixados propositalmente para sombra, e pelo amarelo sujo das reboleiras de
sapé. Ao fundo, de um lado, em corte brusco, a mata virgem, escura,
acentuada, maciça quase, confundindo em um só tom mil cores
diversíssimas; de outro em colinas suaves, o verde-claro alegre e uniforme
dos canaviais agitados sempre pelo vento; mais além, os cafezais alinhados,
regulares, contínuos, como um tapete crespo, verde-negro, estendido pelo
dorso da morraria. Em um ou outro ponto, a terra roxa de pedra-de-ferro,
desnudada, punha uma nota estrídula de vermelho-escuro, de sangue
coagulado.
E sobre tudo isso, azul, diáfano, puro, cetinoso, recurvava-se o céu em uma
festa de luz branca, vivificante, mordente...
Quando se embruscava o tempo a paisagem mudava: o céu pardacento,
carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixava, como que queria
afogar a terra. O revestimento verde perdia o brilho, empanava-se, amortecia
em um desfalecimento úmido. (1996: 25-26)
Na frase narrativa em que é introduzido o lugar que será objeto da descrição, a
personagem Lenita39
está posicionada em um local (a janela) que permite a ela visualizar o
espaço externo (as dependências da fazenda): ―Lenita, por vezes, passava horas e horas à
janela, contemplando as dependências da fazenda‖. Essa introdução dá ao leitor a
oportunidade de colocar-se no lugar da personagem, para contemplar a vista.
39
A personagem foi introduzida na sequência narrativa em que se analisou o grau de identificação das
personagens. Verificar a 3ª análise do subitem 5.1.1.
128
A expressão a meia encosta de um outeiro, à qual estão associadas as expressões
referenciais a fralda e um ribeirão (―Estava esta a meia encosta de um outeiro a cuja
fralda corria um ribeirão‖), contribui para a localização espacial da fazenda, que foi
introduzida na primeira frase e, depois, referida pelo pronome esta (―Estava esta a meia
encosta...‖).
Tão logo é apresentado o local em que a fazenda está situada, retoma-se o foco
descritivo: o ambiente que se pode contemplar pela janela. Esse ambiente se configura em
dois espaços diferentes:
1) Ao espaço em frente está associado o grande pasto: ―em frente estendia-se o
grande pasto‖. Esse local é constituído pela monotonia de verdura clara, com a qual estão
associadas as qualificações o sombrio da folhagem basta de alguns paus-d’alho e o
amarelo sujo das reboleiras de sapé: ―a monotonia de verdura clara era quebrada aqui e
ali pelo sombrio da folhagem basta de alguns paus-d’alho [...] e pelo amarelo sujo das
reboleiras de sapé‖. O uso dos advérbios aqui e ali indicam o espaço do discurso, dando a
ideia de que os elementos que quebram a monotonia de verdura do pasto estão espalhados
tanto próximo como distante do ponto de observação da personagem.
2) O espaço ao fundo é constituído por dois lados que se contrastam: de um lado, a
mata virgem, e do outro, os canaviais. O cenário referente à mata virgem é construído por
meio de qualificações que lhe são atribuídas, tais como: escura, acentuada, maciça quase, e
em um só tom mil cores diversíssimas. Isso tudo contrasta com o cenário do lado oposto (os
canaviais): ―o verde-claro alegre e uniforme dos canaviais agitados sempre pelo vento‖.
O referente textual introduzido pelo sintagma nominal os cafezais é incorporado ao
ambiente em comparação a um tapete crespo (―mais além, os cafezais alinhados, regulares,
contínuos, como um tapete crespo, verde-negro, estendido pelo dorso da morraria‖): afinal,
eles são alinhados, regulares e contínuos, o que produz o efeito de um tapete, enquanto os
cafés produzem o efeito de crespidão. Essa comparação contribui para manter a ideia de
uniformidade da vegetação que compõe o dorso da morraria. Esse efeito de uniformidade é
quebrado ―em um ou outro ponto‖, com a introdução da expressão referencial a terra roxa de
pedra-de-ferro (―em um ou outro ponto, a terra roxa de pedra-de-ferro, desnudada, punha
uma nota estrídula de vermelho-escuro, de sangue coagulado‖), com a qual está associada a
expressão uma nota estrídula de vermelho-escuro, que evidenciam outros aspectos do
ambiente.
Essa descrição espacial é sumarizada pelo pronome isso, que exerce simultaneamente
função anafórica e dêitica (RONCARATI, 2010), pois, ao mesmo tempo, que sumariza ou
129
encapsula todas as informações dadas anteriormente, ele dá a impressão de estar apontando
para elas, o que confere uma impressão de realidade à cena.
A descrição se completa com a introdução do sintagma nominal o céu, ao qual são
atribuídos os seguintes predicados: azul, diáfano, puro e cetinoso: ―e sobre tudo isso, azul,
diáfano, puro, cetinoso, recurvava-se o céu em uma festa de luz branca, vivificante,
mordente...‖. As qualificações se encerram com um ponto de reticências (...), que permite ao
leitor atribuir ao céu tantas características quantas vierem à sua imaginação.
Como contraponto a essa paisagem, vem apresentada a paisagem do que seria um dia
nublado: ―Quando se embruscava o tempo a paisagem mudava‖. Nesse cenário nublado, o
modificador pardacento é incorporado ao sintagma nominal o céu. Além disso, o que na
outra paisagem era ―uma festa de luz branca, vivificante, mordente‖, torna-se, nesta paisagem
embruscada, nuvens plúmbeas (―o céu pardacento, carregado de nuvens plúmbeas, como
que se abaixava, como que queria afogar a terra‖), fortalecendo-se a ideia de escuridão,
vermelhidão, muito provavelmente um tempo de chuva.
Dessa forma, toda a multiplicidade de cores que se entrelaça no início da descrição
espacial, remetendo a um ambiente colorido e alegre, apaga-se, ou seja, o cenário final perde
o viço: ―O revestimento verde perdia o brilho, empanava-se, amortecia em um desfalecimento
úmido‖.
Nessa descrição, além dos elementos que compõem o espaço, são introduzidas e
mantidas expressões referenciais que, como se pôde verificar, configuram as diferentes
paisagens do mesmo ambiente. Isso contribui para que o leitor conheça uma extensão maior
do lugar no qual a história se desenrola.
4ª) O excerto a seguir, que integra a parte final do primeiro capítulo do romance O
cortiço, é um exemplo de sequência predominantemente narrativa, com um trecho descritivo
que é constituído por elementos que contribuem para construção do espaço.
―Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras‖.
[...]
Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte,
e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a
roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de
todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal
vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um
colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los.
130
E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta,
com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus
jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres
por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras
barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os
gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem
lagos de metal branco.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa,
começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva,
uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e
multiplicar-se como larvas no esterco. (1988: 21)
Trata-se de uma sequência narrativa que introduz em primeiro plano (NEVES, 2007) a
descrição do ambiente em que se constitui a lavanderia do cortiço. Nessa sequência são
introduzidos alguns elementos que contribuem para composição do ambiente, e, além disso, a
localização espacial em que se constrói essa lavanderia vem indicada pelo pronome adverbial
lá (―Graças à abundância da água que lá havia‖), que faz referência à estalagem de São
Romão. Esse espaço surge na frase que inicia o excerto em análise (―Estalagem de São
Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras‖), frase esta, que consta da placa que foi
pendurada no cortiço para chamar novos moradores ou novas lavadeiras.
Logo no início da composição espacial surge uma comparação (―Graças à abundância
da água que lá havia, como em nenhuma outra parte‖) que eleva a lavanderia à categoria de
melhor do bairro, isso por conta da quantidade maior de água que ela oferece.
As expressões referenciais uma das casinhas, um quarto, um canto e um colchão
(expressão associada a um canto), que são retomadas pelo pronome los (―surgia uma nuvem
de pretendentes a disputá-los‖), estão associadas ao cortiço, indicando partes dessa
construção. Trata-se de uma ativação por processos cognitivos (RONCARATI, 2010), ou seja,
na progressão do texto o leitor pode associar ao cortiço as partes que o constituem. Essa
associação permite visualizar-se um espaço que parte do geral para o específico: o cortiço —
uma das casinhas um quarto um canto um colchão.
O pronome demonstrativo aquilo aponta para esse espaço que foi descrito no primeiro
parágrafo, retomando-o, enquanto a locução verbal composta pelo pretérito perfeito +
gerúndio (foi constituindo) expressa a transformação que ocorreu naquele lugar: a cada vaga
disponível no cortiço, aumentava o número de lavadeiras. Pressupõe-se que foi isso que
concorreu para o surgimento de uma grande lavanderia, que representa efetivamente uma
parte do cortiço (―E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e
barulhenta‖).
131
Como ocorre normalmente em uma sequência descritiva, surge uma série de
elementos, que, associados à lavanderia, funcionam como componentes de composição do
ambiente. Esses elementos são expressos por sintagmas nominais cujos determinantes são
representados por pronomes possessivos, evidenciando uma relação de posse: ―com as suas
cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos‖.
Na caracterização do espaço surgem mais duas comparações. No primeiro caso,
comparam-se os jardinzinhos com manchas alegres: ―os seus jardinzinhos de três e quatro
palmos, que apareciam como manchas alegres‖. O uso do diminutivo já indica que os
jardins são pequenos, entretanto, ao serem eles comparados a manchas, compreende-se que,
na verdade, são mínimos. O adjetivo alegre, que acompanha o substantivo manchas, dá a
entender que, embora pequenos, os jardinzinhos funcionam como sopros de vida naquele
ambiente tumultuado da lavanderia. No segundo caso, comparam-se os gotejantes jiraus com
lagos de metal branco: ―e os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol,
que nem lagos de metal branco‖. Essa metáfora remete ao brilho característico emitido
pelos jiraus, e tem a mesma funcionalidade da comparação anterior: dar um traço de leveza ao
ambiente.
À medida que aumenta o número de usuários da lavandeira, ela vai-se transformando.
Uma das evidências dessa transformação pode ser observada na expressão referencial a
negrura das limosas tinas transbordantes que retoma, no segundo parágrafo, um dos
elementos que compõem esse ambiente: as tinas. O efeito da mudança se configura no
modificador que caracteriza as tinas, o adjetivo limosas, que indica a pouca higiene na
manutenção delas.
No último parágrafo, a lavanderia é recategorizada três vezes: primeiro pela expressão
referencial naquela terra encharcada e fumegante, depois, por naquela umidade quente e
lodosa e, por último, pela expressão daquele lameiro. Nos sintagmas nominais que fazem as
recategorizações, o pronome demonstrativo aquele(a) aponta para a lavanderia, enquanto os
núcleos desses sintagmas (respectivamente, terra, umidade e lameiro) operam uma
recategorização do ambiente (APOTHÉLOZ; CHANET, 1997), que é, ainda, retomado no
mesmo parágrafo, pelo pronome adverbial ali: ―que parecia brotar espontânea, ali mesmo‖.
Essas retomadas configuram o aspecto em que se constituíra aquele local.
Nesse mesmo parágrafo, o verbo começar e seus complementos (minhocar,
esfervilhar e crescer) confirmam a transformação e o crescimento rápido que foi descrito no
decorrer do texto. O sujeito desse verbo não é mais o ambiente, mas, sim, uma
recategorização das lavadeiras e das pessoas que habitam aquele espaço: ―naquela umidade
132
quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa
viva, uma geração‖. Essas lavadeiras são comparadas a larvas no esterco (―e multiplicar-se
como larvas no esterco‖), uma comparação que demonstra a fusão das pessoas com o espaço,
que é recategorizado pela expressão referencial o esterco, definindo o ambiente como
pejorativo.
Nessa sequência, assim como na sequência descritiva do romance Senhora, a teia
referencial construída pelo falante/autor permite ao leitor construir o espaço em que se
desenrola a cena, incluindo as personagens, que são representadas pelas lavadeiras.
5ª) O excerto a seguir corresponde ao primeiro parágrafo do terceiro capítulo do
romance Amar, verbo intransitivo. Trata-se de uma sequência descritiva40
, que, embora seja
pequena, possibilita observar que a relação entre os elementos fóricos não pode ser tida como
padronizada, linear e sempre previsível. Alguns elementos deste trecho, como se poderá
verificar na análise, retomam elementos de uma sequência que finaliza o primeiro capítulo. O
trecho em análise está entre colchetes (o restante figura na transcrição para fornecer o
contexto):
[Bem diferente dos quartinhos de pensão... Alegre, espaçoso. Pelas duas
janelas escancaradas entrava a serenidade rica dos jardins. O olhar torcendo
para a esquerda seguia a disciplinada carreira das árvores na avenida.] Em
Higienópolis os bondes passam com bulha quase grave soberbosa,
macaqueando o bem-estar dos autos particulares. É o mimetismo arisco e
irônico das coisas ditas inanimadas. São bondes que nem badalam.
Procedem como o rico-de-repente que no chá da senhora Tal, família
campineira de sangue, adquire na epiderme do fraque a macieza dos
tradicionais e cruza as mãos nas costas — que importância! — pra que a
gente não repare na grossura dos dedos, no quadrado das unhas chatas. Neto
de Borbas me secunda desdenhoso que badalo e mãos ásperas nem por isso
deixam de existir, ora! O badalo pode não tocar e mãos se enluvam. (2008: 20)
No final do último parágrafo do primeiro capítulo surge uma sequência descritiva do
quarto da personagem Elza41
, personagem que foi introduzida na primeira página desse
capítulo:
40
Essa sequência vem seguida de uma dissertação que será analisada no item 5.3.1. 41 Verificar a 5ª análise do subitem 5.1.1 (grau de identificação das personagens).
133
Elza viu ele abrir a porta da pensão. Pâam... Entrou de novo no quartinho
ainda agitado pela presença do estranho. Lhe deu um olhar de confiança.
Tudo foi sossegando pouco a pouco. Penca de livros sobre a escrivaninha,
um piano. O retrato de Wagner. O retrato de Bismarck. (p.19)
No segundo capítulo, não há a continuidade descritiva desse ambiente, o capítulo é
dedicado à chegada de Elza à casa de Souza Costa. O terceiro capítulo inicia se com um
contraponto a esse ambiente: ―Bem diferente dos quartinhos de pensão... Alegre, espaçoso‖.
Não é uma sequência que se configure propriamente como uma descrição do quarto
ocupado por Elza, mas faz-se um paralelo que permite ao leitor criar mentalmente o ambiente
anterior e o ambiente atual.
A estrutura inicial ―bem diferente dos quartinhos de pensão... Alegre, espaçoso‖ e o
primeiro sintagma referencial, os quartinhos de pensão, introduzido por artigo definido,
ajudam não só a recuperar (uma das funções do artigo definido) o quarto do primeiro capítulo
como também a pressupor o novo ambiente.
O sintagma nominal os quartinhos de pensão tem valor genérico, refere-se a todos
os membros da classe (NEVES, 2011: 128), o que faz pressupor ainda que todos os quartos de
pensão tenham o mesmo ambiente, e que todos são diferentes do novo quarto ―alegre‖ e
―espaçoso‖ de Elza. A personagem, por sua vez, é mencionada em referenciação textual zero:
―O olhar torcendo para a esquerda...‖.
As expressões referenciais duas janelas escancaradas e a serenidade rica dos
jardins, do trecho ―pelas duas janelas escancaradas entrava a serenidade rica dos
jardins‖, contribuem para a construção do ambiente e reforçam a ideia do contraponto entre o
quarto que ela ocupava e o quarto que ela passará a ocupar na casa de Souza Costa. A ideia
que se pode fazer do quarto atual é a de um ambiente amplo, arejado e tranquilo.
Quando a oposição entre os ambientes já está firmada, a introdução do referente o
olhar funciona como meio para desviar o foco de um espaço a outro, e a expressão referencial
a esquerda indica a direção para qual o olhar se desviou, no caso, a avenida: ―o olhar
torcendo para a esquerda seguia a disciplinada carreira das árvores na avenida‖. Nesse novo
cenário, a ideia de ambiente harmônico se concretiza na expressão referencial a disciplinada
carreira das árvores, afinal, disciplina pressupõe serenidade.
A descrição dos dois ambientes não vem ordenada formalmente, pois se trata do final
do primeiro capítulo e do começo do terceiro capítulo. Entretanto, a disposição dos elementos
que compõem os espaços é apresentada de forma tal que torna possível ao leitor construir o
contraponto, podendo comparar os dois espaços habitados pela personagem Elza.
134
6ª) Analisa-se a seguir uma sequência do romance Alma, na qual se configura a
descrição de dois espaços, sem que se tenha o contraponto constituído na sequência anterior.
O telegrafista morava sem ninguém, num quarto de sobrado antigo, na
Avenida Tiradentes. Para entrar, subia com degraus, atravessava um
cubículo que atulhavam imensas malas etiquetadas de um vizinho. O quarto
tinha a cama estreita, a mesa, livros e cadeiras e uma só janela, clareando o
papel desbotado das paredes.
Sobre o leito, pendia uma gravura destacada de livro. Era Charles
Baudelaire. Tinha um velho retrato da mãe morta, sobre a mesa desordenada.
(1978: 12)
Como tem ocorrido nas sequências descritivas analisadas, também neste caso, uma
frase narrativa traz o pano de fundo para introduzir a descrição (NEVES, 2007). Nessa frase é
apresentado o objeto da descrição (um quarto de sobrado antigo), bem como sua localização
(a Avenida Tiradentes): ―o telegrafista morava sem ninguém, num quarto de sobrado
antigo, na Avenida Tiradentes‖. Embora não se faça uma identificação do quarto, a presença
do artigo definido antes do endereço especifica a localização em que ele se encontra.
Além disso, é introduzido um elemento que constitui instrumento para conduzir o
telegrafista42
do ambiente externo (a avenida) ao ambiente interno (o quarto): os degraus
(―para entrar, subia com degraus‖). Associam-se aos degraus e ao quarto dois elementos
referenciais, um cubículo e imensas malas etiquetadas de um vizinho, que contribuem para
compor o ambiente externo a ele: ―atravessava um cubículo que atulhavam imensas malas
etiquetadas de um vizinho‖.
O interior do quarto é caracterizado com a introdução das expressões referenciais a
cama estreita, a mesa, livros, cadeiras, uma só janela, o papel desbotado das paredes,
uma gravura destacada de livro e um velho retrato da mãe morta. O conjunto dos itens
descritos traz uma informação para o leitor: a de que se trata de uma moradia modesta.
Alguns desses elementos contribuem para configurar o espaço interno como pequeno
(a cama estreita e uma só janela) e antigo (papel desbotado das paredes). Embora o sobrado
seja antigo, informação que vem na primeira frase, o quarto poderia não ter o mesmo aspecto,
no entanto, o papel desbotado das paredes deixa claro que um aspecto não difere do outro.
A gravura do livro não é de um livro qualquer é de uma obra de Charles Baudelaire.
Trata-se de informação que implica o conhecimento de mundo, bem como o conhecimento do
contexto (HALLIDAY 1964; 1973; 1978; 1989; e HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004).
42
Personagem introduzida na primeira página do romance. Verificar a 6ª análise do subitem 5.1.1 (grau de
identificação das personagens).
135
Assim, o leitor identifica Baudelaire como um dos mais importantes autores da literatura
francesa, e, além disso, consegue relacioná-lo à influência cultural da França em relação ao
Brasil na época em que se passa o romance, década de 20. Nota-se que essa influência não era
apenas sobre os ricos, pois o telegrafista, pelo que se pode perceber de sua moradia, era uma
pessoa modesta, e, no entanto, cultuava o famoso autor.
Configura-se nessa descrição a localização espacial do sobrado, bem como a descrição
dos lados externo e interno. Esse tipo de descrição se aproxima da constituição da sequência
descritiva do romance Senhora, não propriamente no que diz respeito à estrutura, mas sim ao
de fato de ambas trazerem não só elementos que compõem o ambiente, como também a
localização desse ambiente.
7ª) Nesta passagem do romance O filho eterno, uma das personagens principais,
referida como ele43
, e assim tratado no decorrer da história, e um amigo brasileiro vão parar
em um alojamento de operários na cidade de Frankfurt, Alemanha. Nesse alojamento, os
amigos conhecem, dentre outras pessoas que moram no local, um imigrante venezuelano.
Este, religioso fervoroso e que sempre conseguia trabalho para os dois amigos, convidou-os
para visitar a igreja que frequentava. É justamente a descrição dessa igreja, destacada entre
colchetes, que será analisada a seguir (o restante figura na transcrição para fornecer o
contexto).
O trabalho embrutece. Do hospital de Frankfurt, foram parar num pequeno
alojamento de operários em uma pequena cidade -satélite – não lembra mais
o caminho e o nome. Lembra de um imigrante venezuelano, que, segundo a
lenda, teria ganho uma fortuna na loteria alemã e doara tudo à Igreja,
prosseguindo seu trabalho purificador de limpar escadas e corredores, com
esfregões, panos e detergentes generosos e uma interminável fala edificante
sobre as vantagens de Jesus Cristo (...).
Pelos seus bons contatos, o homem sempre tinha um trabalho na manga
para oferecer, e em troca os dois brasileiros exerceram a tolerância religiosa
a ponto de comparecer a um dos cultos da tal igreja milagrosa, o comunista e
o ateu. É melhor aceitar o convite, ponderaram, pensando no conforto
daquele alojamento e as indicações de trabalho, praticamente todos os dias.
[Ele se impressionou com a riqueza discreta, mas real, dos detalhes do
templo – por exemplo, num mezanino ao fundo, havia não um órgão ou um
coro de crianças, mas um espaço protegido a vidro para mães com bebês
43
Personagem introduzida na primeira página do romance. Verificar a 7ª análise do subitem 5.1.1 (grau de
identificação das personagens).
136
chorões. No mais, a secura protestante, o falso gótico das janelas e o cheiro
de tinta fresca – e uma fala em alemão com uma entonação que lhe lembrava
os padres da infância em Santa Catarina. Mas era de fato uma igreja alemã,
pelas caras, todas Alfa Mais – os únicos bugres ali, ele ponderou, eram eles].
(2010: 125-126)
O objeto da descrição, a Igreja (―teria ganho uma fortuna na loteria alemã e doara tudo
à Igreja‖) é introduzido no trecho narrativo que inicia o excerto. Nesse trecho narrativo, o
sintagma nominal a Igreja é retomado pelo sintagma a tal igreja milagrosa, que é parte
integrante do sintagma indefinido um dos cultos da tal igreja milagrosa. Trata-se de uma
retomada que traz três características:
1º - A generalização conferida pelo artigo indefinido (NEVES, 2011) é restringida pelo adjunto adnominal que compõe o sintagma; ou seja, pode tratar-se de qualquer um dos
cultos que ocorrem na igreja, mas será necessariamente um culto daquela igreja: a tal igreja
milagrosa.
2º - O elemento tal funciona como um dêitico, apontando para a Igreja que foi
referida no início do excerto (―teria ganho uma fortuna na loteria alemã e doara tudo à
Igreja‖).
3º - A qualificação milagrosa atribuída à igreja frequentada pelo venezuelano a
diferencia das outras igrejas, pois essa é uma igreja que promove milagres.
Os elementos que compõem o espaço – um mezanino ao fundo, um espaço protegido a
vidro para mães com bebês chorões, a secura protestante, o falso gótico das janelas e o cheiro
de tinta fresca – estão associados, ao mesmo tempo, à riqueza, aos detalhes e ao templo (este
último configura uma recategorização de a igreja), e, além disso, esses elementos estão
indiretamente associados ao culto (MARCUSCHI, 2001; KOCH, 2011) que ocorre nesse
ambiente.
Nessa descrição, além dos elementos que compõem o espaço, são introduzidas, por
sintagma nominal indefinido, dois referentes que não fazem parte do cenário: um órgão e um
coro de crianças (―havia não um órgão ou um coro de crianças‖). A introdução desses
referentes confere outra diferença à igreja: além de ser milagrosa, ela não é constituída por
elementos que normalmente existem em outras igrejas, tais como o órgão e o coro de crianças.
Por outro lado, um dos elementos associados ao ambiente da igreja, uma fala em
alemão, mais especificamente a entonação dessa fala, remete a personagem (ele) a outro
contexto (Santa Catarina): ―e uma fala em alemão com uma entonação que lhe lembrava os
padres da infância em Santa Catarina‖. O referente textual introduzido pelo sintagma
137
nominal os padres da infância revela que, no ambiente em que a personagem vivia quando
era criança, havia igreja e padres. A lembrança desse lugar revela ainda que, provavelmente,
ele frequentava o local.
Nessa sequência descritiva, o leitor pode, por meio dos elementos associados ao
espaço, ir a outro contexto, e, da mesma maneira voltar ao cenário da igreja alemã. O que
mostra o retorno ao ambiente da igreja é a introdução do sintagma nominal as caras e a
qualificação atribuída a elas: Alfa mais. Assim, o leitor viaja de um espaço a outro,
reconstruindo cada um deles a partir dos elementos referenciais que foram introduzidos no
texto.
8ª) No romance Vozes do deserto, a princesa Scherezade solta a imaginação para
narrar todos o dias diferentes histórias ao Califa, com a intenção de persuadi-lo. Com isso, ela
espera manter-se viva até conseguir uma solução para se livrar desse soberano. Nesta
sequência, que integra o capítulo 17, as histórias da princesa reportam a escrava Jasmine para
o seu ambiente familiar. É a constituição desse espaço que será observado nesta análise.
Por onde caminha, as vozes do povo de Scherezade perseguem Jasmine.
[...] por força da imaginação da princesa, volta a ouvir os brados das cabras,
dos beduínos, nômades como ela. Vê-se de novo na tenda familiar, cujos
detalhes lhe recompõe na memória. No interior da tenda, acompanhada de
pastores suados, que arfam e gemem em conjunto, Jasmine contempla o teto
de lona, atraída pelo equilíbrio delicado da armação. Um trabalho feito de
tiras finas tecidas com lã e pêlos de animal e costuradas de uma borda a
outra. O toldo que, pelo seu peso, apóia-se sobre o cavalete amparado por
correias esticadas e largas, fixas com cordas a piquetes, e que resistem ao
vento.
Lembra-se da brevidade dos dias, da vida que se desarmava, e logo iam
pelo deserto montando a casa volante segundo suas necessidades. A tenda
familiar refletia pobreza, ao contrário daquelas das tribos ricas, de coxins
esplêndidos, cujas bolas douradas, espalhadas em torno, simbolizavam
autoridade e poder do chefe. As lamparinas de azeite, mal iluminando o
rosto enrugado da mãe, não escondiam os tapetes puídos que, amontoados
sobre o cavalete, separavam os membros da tribo por sexo. (2006: 98-99)
Nesta sequência, a narração coloca em primeiro plano elementos descritivos que
contribuem para a progressão textual. No excerto são apresentados descritivamente dois
espaços: um referente à tenda familiar, na qual a personagem Jasmine viveu, e outro referente
ao cenário das tendas das tribos ricas.
138
A imaginação da princesa, sintagma nominal que vem em aposto, funciona como
uma válvula que ativa os pensamentos de Jasmine, reportando-a ao ambiente familiar: ―por
força da imaginação da princesa, Ø volta a ouvir os brados das cabras, dos beduínos, nômades
como ela‖. Nessa frase, Jasmine, que é retomada por referenciação textual zero e pelo
pronome ela, recebe o mesmo predicativo atribuído às cabras e aos beduínos: nômade.
O ambiente familiar, expresso pelo sintagma a tenda familiar, é recomposto apenas
na memória da personagem: ―vê-se de novo na tenda familiar, cujos detalhes lhe recompõe na
memória‖. Os primeiros elementos que compõem o interior desse espaço são as personagens
que o dividiam com Jasmine: pastores suados (―No interior da tenda, acompanhada de
pastores suados, que arfam e gemem em conjunto‖).
No espaço recomposto por Jasmine há um detalhe associado ao teto de lona, parte
constitutiva da tenda familiar, que atrai a atenção dela: o equilíbrio delicado da armação
(―Jasmine contempla o teto de lona, atraída pelo equilíbrio delicado da armação‖). Os
elementos que constituem o equilíbrio dessa armação vêm explicitados cataforicamente na
frase: ―um trabalho feito de tiras finas tecidas com lã e pêlos de animal e costuradas de uma
borda a outra‖. Outros elementos associados ao teto de lona são expressos pelos sintagmas
nominais o toldo, o cavalete, correias esticadas e largas e cordas a piquetes. Este último
elemento não é enunciado referencialmente, mas em uma informação apositiva. Além disso,
há um elemento que não faz parte da constituição do teto, mas que pode influir nele, o objeto
de discurso o vento: ―O toldo que, pelo seu peso, apoia-se sobre o cavalete amparado por
correias esticadas e largas, fixas com cordas a piquetes, e que resistem ao vento‖.
No trecho narrativo ―e logo iam pelo deserto montando a casa volante segundo suas
necessidades‖, a expressão a casa volante recategoriza a tenda familiar. Nesse trecho, o verbo
ir, o adjunto adverbial de lugar pelo deserto, o objeto de discurso a casa volante e o
sintagma suas necessidades (em que o determinante possessivo retoma o povo de Jasmine)
confirmam a condição de nomadismo expressa no início do excerto pelo predicativo
nômades: ―volta a ouvir os brados das cabras, dos beduínos, nômades como ela‖.
A tenda familiar é comparada às tendas das tribos ricas, referente introduzido pelo
sintagma nominal daquelas das tribos ricas (―a tenda familiar refletia pobreza, ao contrário
daquelas das tribos ricas‖). Os elementos que delimitam a diferença entre a pobreza daquela
e a riqueza destas vêm representados pelos sintagmas coxins esplêndidos e as bolas
douradas (―de coxins esplêndidos, cujas bolas douradas, espalhadas em torno, simbolizavam
autoridade e poder do chefe‖). Esses elementos estão associados à autoridade e ao poder do
chefe de cada uma das tribos ricas. Como essas tribos refletem o contrário da tribo de
139
Jasmine, pode-se inferir, por informações ancoradas no cotexto anterior (MARCUSCHI,
2001), que na tribo familiar não há um chefe que mantenha a autoridade e o poder em suas
mãos.
A introdução do referente as lamparinas de azeite indica que os pensamentos de
Jasmine (que por um instante ―viajou‖ a outras tribos) estão de volta ao cenário interior da
tenda familiar. Nesse ponto da descrição que se mistura à narração, surge mais uma
personagem que faz parte desse ambiente (a mãe, referida na parte periférica do sintagma
nominal o rosto enrugado da mãe), bem como outros elementos que o compõem (os tapetes
puídos e o cavalete): ―as lamparinas de azeite, mal iluminando o rosto enrugado da mãe, não
escondiam os tapetes puídos que, amontoados sobre o cavalete, separavam os membros da
tribo por sexo‖. O referente os tapetes puídos exerce o importante papel de dividir os
membros da tribo por sexo.
Na sequência analisada, pôde-se notar que a constituição do espaço em que a cena
ocorre se deu muito mais pela narração do que propriamente pela descrição. Essa mescla de
tipos textuais contribui para o andamento da cena e para a compreensão do enunciado. Assim,
além dos elementos estáticos de composição do ambiente, é possível observar as ações dos
componentes que o compõem.
5.2.2 A referenciação e a construção espacial de cenas
Do que se observou nas sequências descritivas, pode-se dizer que elas são compostas
muito mais por referentes de menção única, associados a outro(s) elemento(s) (que
contribuem ora para a construção do espaço das cenas, ora para constituição de elementos que
compõem esse espaço), do que por referentes que, introduzidos, são recuperados no texto.
Quando ocorre a retomada, na maioria das vezes é por recategorização. As sequências dos
romances Senhora, O seminarista e A carne são exemplos de textos cuja proporção de
referentes introduzidos e mantidos no texto é bem pequena se comparada aos referentes de
menção única.
Pode-se pensar que isso ocorra pela grande quantidade de detalhes, ligados aos
espaços descritos nessas obras, ou pelo fato de essas sequências serem mais extensas que
outras analisadas. No entanto, em sequências menores como as dos romances O cortiço,
Amar, verbo intransitivo, Alma, O filho eterno e Vozes do deserto também é relevante o
número de casos de introdução de elementos que não são retomados – embora em proporção
140
menor, dada a extensão dos excertos –, mas que contribuem sobremaneira para a construção
dos espaços.
Aliás, nos romances modernos e contemporâneos, verificou-se uma constituição
descritiva diferente da que se observou nos romances românticos e realistas, em primeiro
lugar pelo fato de não haver nessas sequências um grande número de elementos que são
introduzidos na composição do ambiente. Seguindo-se Marcuschi (2001), pode-se entender
que, a composição dos espaços se dá muito mais por estímulos cognitivos do leitor do que por
elementos evidentes no texto. Em Amar, verbo intransitivo, por exemplo, a primeira frase do
terceiro capítulo – com apenas alguns elementos descritivos do atual quarto de Elza – remete
o leitor a um trecho do final do primeiro capítulo – com alguns elementos descritivos
referente ao antigo quarto da personagem –, permitindo a ele criar mentalmente o ambiente
anterior e o ambiente atual.
Seguindo essa linha estrutural, em O filho eterno, assim como em Vozes do deserto, o
número de elementos fóricos que constituem os espaços é mínimo, mas são elementos
suficientes para que se construa cognitivamente não só o espaço descrito como também outros
ambientes relacionados ao espaço descrito, ou até mesmo algumas personagens que
componham esses ambientes. Exemplos disso podem ser observados em duas passagens. Na
primeira obra, veja-se o trecho: ―num mezanino ao fundo, havia não um órgão ou um coro de
crianças, mas um espaço protegido a vidro para mães com bebês chorões‖, em que se pode
criar tanto o espaço que não tem um órgão e um coro de crianças, quanto aquele que os tem.
Na segunda obra, veja-se o trecho: ―a tenda familiar refletia pobreza, ao contrário daquelas
das tribos ricas, de coxins esplêndidos, cujas bolas douradas, espalhadas em torno,
simbolizavam autoridade e poder do chefe‖, em que, mesmo sem um número grande de
elementos que ajudem a compor a tenda familiar, pode-se não só criar os espaços referentes a
ela e às tribos ricas, como também incluir nesse último ambiente uma personagem, o chefe.
Embora não se tenha feito a quantificação dos elementos fóricos usados no
estabelecimento da cadeia referencial das sequências descritivas, pôde-se notar uma
predominância dos sintagmas nominais, enquanto a referenciação pronominal e a
referenciação zero ocorrem com menor frequência. Com relação aos pronomes, observou-se
ainda que: o número dos pessoais é inexpressivo, enquanto os demonstrativos, os possessivos
e os pronomes adverbiais aparecem com maior frequência. Isso talvez se deva ao fato de que
o que está em análise é a composição dos espaços que compõem as cenas.
Assim como nas sequências narrativas, as qualificações que são atribuídas aos objetos
que compõem os espaços ou que são atribuídas aos próprios espaços, embora não sejam
141
elementos referenciais, ajudam a constituí-los. À medida que os predicados vão sendo
incorporados a um objeto ou a um ambiente, caracterizando-os, o que é descrito ganha forma
e efeito de real.
No geral, o recurso ao uso das qualificações se mostrou presente em todas as
sequências descritivas, mas com maior relevância nos excertos dos romances Senhora, O
seminarista, A carne e O Cortiço, obras pertencentes ao Romantismo ou ao Realismo.
Quanto às estratégias de referenciação (processo de introdução e manutenção dos
objetos de discurso), destaca-se, em todas as obras, o uso das anáforas associativas, que
relacionam os novos referentes ao(s) espaço(s) ou aos objetos já conhecidos do leitor. Esse
tipo de referenciação mostrou-se bastante importante na construção do ambiente, pois dá ao
leitor uma ideia mais concreta do conjunto espacial no qual a cena se desenvolve, mesmo
quando não há um número grande de referentes novos. Além das anáforas associativas, nos
romances Senhora e O cortiço há também uma relevância do uso de comparações.
A anáfora indireta, embora não surja com a mesma frequência das anáforas
associativas, contribui sobremaneira para a criação de sentido, como, por exemplo, neste
trecho da obra de Azevedo, em que há uma retomada meronímica (retomada de partes do
referente textual introduzido pelo sintagma nominal o cortiço): ―E, mal vagava uma das
casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de
pretendentes a disputá-los‖.
Pode-se dizer ainda que nas sequências descritivas há possibilidade de o leitor
construir uma espécie de contraponto entre o ambiente e os objetos que o compõem – o que
acontece no romance Senhora, em que se pode opor a riqueza dos objetos à simplicidade da
habitação –, bem como um contraponto entre ambientes diferentes – casos observados em
Amar, verbo intransitivo, O filho eterno e Vozes do deserto –, ou, ainda, um contraponto entre
o cenário de um dia claro e ensolarado e o cenário de um dia nublado, caso do romance A
carne.
Em algumas sequências a construção espacial partiu do geral para o específico, como
ocorreu nas sequências extraídas de Alencar e Azevedo, sendo a descrição em Senhora
bastante particularizada – detendo-se a detalhes mínimos da cena – em relação à descrição em
O cortiço. As sequências de Alma e Vozes do deserto também se enquadram nesse tipo de
construção, que parte do geral para o específico, mas, assim como ocorre em O cortiço, não
são tão particularizadas quanto Senhora.
O caminho inverso, ou seja, partir do específico para o geral, foi observado nas
sequências dos romances O seminarista e A carne, nas quais não houve a descrição do
142
ambiente interno. As sequências de Amar, verbo intransitivo e de O filho eterno também se
enquadram nesse tipo de construção, embora, como já se apontou, nelas não seja introduzido
um grande número de referentes que componham o ambiente, diferentemente do que ocorre
nas sequências dos dois primeiros romances.
Pode-se dizer que, no geral, a disposição dos elementos que compõem a cadeia
referencial de um excerto descritivo sugere uma ―lista‖ (SCHIFFRIN, 1994), ou seja, um
conjunto de similares, ao qual são adicionados novos elementos que, em conjunto, dão
realismo àquilo que está sendo descrito, do mesmo modo que se dá com as qualificações.
5.3 As sequências dissertativas
5.3.1 A análise das sequências dissertativas
Esta análise está fixada em excertos dissertativos que tenham no mínimo cinco linhas.
Nesses trechos serão verificados os elementos fóricos usados na construção do ponto de vista
do falante/autor.
1ª) A primeira sequência em análise pertence ao V capítulo da segunda parte do
romance Senhora. Nele, Seixas decide que não pode se casar com Aurélia, dada a sua
condição de pobreza, pois isso seria renunciar à vida elegante. Nesse contexto, selecionou-se
a sequência que segue, na qual se analisa o trecho dissertativo, que está entre colchetes.
Quando Seixas convenceu-se que não podia casar com Aurélia, revoltou-se
contra si próprio. Não se perdoava a imprudência de apaixonar-se por uma
moça pobre e quase órfã, imprudência a que pusera remate o pedido do
casamento. O rompimento deste enlace irrefletido era para ele uma cousa
irremediável, fatal; mas o seu procedimento o indignava.
[Havia nessa contradição da consciência de Seixas com a sua vontade uma
anomalia psicológica, da qual não são raros os exemplos na sociedade atual.
O falseamento de certos princípios da moral, dissimulado pela educação e
conveniências sociais, vai criando esses aleijões de homens de bem.
Quem não conhece o livro em que Otávio Feuillet glorificou sob o título de
honra, as últimas hesitações de uma alma profundamente corrompida?
Seixas estava muito longe de ser um Camors; mas já nele começava o
embotamento do senso moral, que o influxo de uma civilização adiantada, e
no seio de uma sociedade corroída como a de Paris, acaba por abortar
aqueles monstros.
143
Para o leão fluminense, mentir a uma senhora, insinuar-lhe uma esperança
de casamento, trair um amigo, seduzir-lhe a mulher, eram passes de um jogo
social, permitidos pelo código da vida elegante].
(1985: 83)
No trecho narrativo que introduz a dissertação, o sintagma nessa contradição da
consciência de Seixas com a sua vontade sumariza as informações expressas no parágrafo
anterior. Nesse mesmo trecho, a expressão referencial uma anomalia psicológica, associa-se
tanto a essa contradição da consciência com a sua vontade, como aos exemplos na
sociedade atual (as muitas pessoas que constituem a sociedade e que apresentam a
contradição entre a consciência e a vontade). Explica-se cataforicamente o que é essa
anomalia psicológica: ―o falseamento de certos princípios da moral, dissimulado pela
educação e conveniências sociais, vai criando esses aleijões de homens de bem‖. O demonstrativo
esses recupera os homens que têm esse tipo de anomalia e cujos exemplos na sociedade atual não são
raros, dentre eles, Seixas. A anomalia que a personagem apresenta pode ser percebida na
contradição entre o gostar de Aurélia, mas não querer casar-se com ela, por razões
econômicas.
A expressão referencial o livro, e as expressões associadas a ela, o título de honra e
as últimas hesitações de uma alma profundamente corrompida, remetem o leitor a outro
contexto, o contexto descrito em um livro que vem referido como o livro de Otávio Feuillet:
―Quem não conhece o livro em que Otávio Feuillet glorificou sob o título de honra, as
últimas hesitações de uma alma profundamente corrompida?‖. O artigo definido e a
interrogação que finaliza a frase indicam que esse outro contexto já é conhecido pelo leitor. O
uso do artigo definido normalmente codifica uma informação como dada (Givón, 1984), e o
modo de formulação da pergunta faz entender que não só o leitor, mas todas as pessoas
conhecem o livro referido. Assim, ele pode reportar-se a outro contexto e relacionar a situação
descrita nele com a situação descrita no contexto atual. Pode-se estabelecer por meio da
expressão referencial uma alma profundamente corrompida, uma comparação implícita
dessa alma (descrita em Feuillet) com a alma de Seixas (que tem a alma corrompida por uma
anomalia psicológica).
Seixas é comparado a Camors, personagem da obra de Feuillet, (―Seixas estava muito
longe de ser um Camors‖), num grau de inferioridade que se confirma, posteriormente, com
a introdução do sintagma nominal o embotamento do senso moral, que apenas ―começava‖
em Seixas e que, portanto, o distanciava de Camors: ―mas já nele começava o embotamento
do senso moral‖.
144
Quando Seixas é recategorizado como o leão fluminense, são atribuídas a ele as ações
de ―mentir a uma senhora‖, ―insinuar-lhe uma esperança de casamento‖, ―trair um amigo‖ e
―seduzir-lhe a mulher‖, ações que são resumidas na qualificação passes de um jogo social.
Essa qualificação – permitida ―pelo código da vida elegante‖ – mostra que essas ações são
comuns em uma determinada camada da sociedade daquela época, uma camada de pessoas
que viviam condicionadas aos códigos sociais.
A disposição dos elementos referenciais contribui para que o leitor possa construir a
personalidade de Seixas, implicando, inclusive, juízo de valor. Nesse sentido, o
estabelecimento de uma relação dele com uma personagem (Camors) de outra obra constitui
uma comparação que acrescenta traços descritivos à personalidade de Seixas.
2ª) Esta sequência dissertativa inicia o capítulo IX do romance O seminarista. No
capítulo anterior, Eugênio visita a família depois de quatro anos internado no seminário no
qual estava sendo preparado para tornar-se padre. As reações da personagem em contato com
os familiares e amigos são bastante intrigantes. Segue a elas o excerto a seguir, que sugere um
ponto de vista do autor.
A educação claustral é triste em si e em suas consequências: o regime
monacal, que se observa nos seminários, é mais próprio para formar ursos do
que homens sociais. Dir-se-ia que o devotismo austero, a que vivem sujeitos
os educandos, abafa e comprime com suas asas lôbregas e geladas naquelas
almas tenras todas as manifestações espontâneas do espírito, todos os vôos
da imaginação, todas as expansões afetuosas do coração.
O rapaz que sai de um seminário depois de ter estado ali alguns anos, faz na
sociedade a figura de um idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais
inteligente e instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e
discrição, e muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é
tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para
sempre. (1990: 47)
A educação claustral recebe, na primeira frase, uma qualificação (―educação claustral
é triste em si e em suas consequências‖) que se estende não só ao ato em si de educar, como
às atitudes subsequentes a ele (atitudes realizadas pelos educandos que sofrem os reflexos
desse tipo de educação). Apresentam-se cataforicamente o porquê da educação ser triste, bem
como o local onde ela é executada, que são os seminários: ―o regime monacal, que se
observa nos seminários, é mais próprio para formar ursos do que homens sociais‖.
145
O referente introduzido pelo sintagma nominal a educação claustral é retomado pela
expressão o regime monacal. Nessa recategorização há um acréscimo semântico, pois o
regime é muito mais arbitrário do que a educação claustral. A rigidez desse tipo de educação
pode ser entendida a partir do conhecimento do contexto no qual a situação discursiva se
realiza, que remete à importância da igreja e a sua influência na sociedade brasileira do século
XIX. Quanto ao local em que se realiza esse tipo de educação, embora esteja expresso pelo
sintagma definido os seminários, ele tem sentido de genericidade (não se refere a um
seminário especifico, mas a todos os elementos da espécie).
Na frase ―o regime monacal, que se observa nos seminários, é mais próprio para
formar ursos do que homens sociais‖ ocorre uma comparação que iguala os alunos
submetidos ao regime monacal (homens sociais) aos ursos. Nesse caso, a associação entre
homens sociais, o regime monacal e os seminários permite retomar, por anáfora indireta
(MARCUSCHI, 2001), aqueles que são submetidos a esse sistema educacional.
Posteriormente, esses que são submetidos a esse sistema vêm referidos pelo sintagma
nominal os educandos, e recategorizados pelo sintagma naquelas almas tenras: ―dir-se-ia
que o devotismo austero, a que vivem sujeitos os educandos, abafa e comprime com suas
asas lôbregas e geladas naquelas almas tenras‖. O uso do modificador adjetivo tenra,
presente no sintagma nominal (em que o pronome aquelas aponta para os educandos,
enquanto o núcleo almas os recategoriza) contribui para que se compreenda um dos motivos
que facilita a influência da educação claustral sobre os educandos: o fato de eles serem
jovens, inexperientes e, provavelmente, portadores de uma possível inocência, o que os
transforma em ―presas potenciais‖ dos educadores. Isso inclui ―o devotismo austero‖ ao qual
estão sujeitos e cujas ações (abafar e comprimir) anulam qualquer forma de expressões
individual dos educandos: ―abafa e comprime com suas asas lôbregas e geladas naquelas
almas tenras todas as manifestações espontâneas do espírito, todos os vôos da imaginação,
todas as expansões afetuosas do coração‖.
O objeto de discurso o rapaz, embora seja referido como informação dada, configura-
se em uma informação nova, associada aos educandos. Esse rapaz não é um sujeito específico,
ele pode representar qualquer indivíduo da espécie (qualquer rapaz que sai do seminário), e
como qualquer um deles fará na sociedade ―a figura de um idiota‖. As qualificações atribuídas
a essa figura (desazado, tolhido, desconfiado) expressam como é negativo o efeito (que o
autor busca apresentar desde o início) da educação claustral sobre os educandos, conseguindo,
inclusive, anular aqueles que são inteligentes e instruídos, tornando-os incapazes de ―dizer
duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça e afabilidade‖.
146
Acrescente-se a isso o predicativo do sujeito tímido, atribuído ao moço (sintagma
nominal que recategoriza o sintagma o rapaz), que deixa evidente que aqueles que possuem
essa qualificação sofrem ainda mais as consequências desse regime: ―e se acaso o moço é
tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre‖.
No ponto de vista instituído nessa sequência, nota-se uma crítica explicita referente à
educação oferecida nos seminários: que ao invés de desenvolver homens de bem, tamanha
rigidez adotada, acaba por criar homens inseguros e incapazes até de pensar e agir
naturalmente.
3ª) Esta sequência faz parte do capítulo 14 do romance A carne.
O amor é filho da necessidade tirânica, fatal, que tem todo o organismo de
se reproduzir, de pagar a dívida do antepassado, segundo a fórmula
bramática. A palavra amor é um eufemismo para abrandar um pouco a
verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente, verdadeiramente, amor e
cio vêm a ser uma coisa só. O início primordial do amor está, como dizem os
biólogos, na afinidade eletiva de duas células diferentes, ou melhor, de duas
células diferentemente eletrizadas. A complexidade assombrosa do
organismo humano converte essa afinidade primitiva, que deveria ter sempre
como resultado uma criança, em uma batalha de nervos que, contrariada ou
mal dirigida, produz a cólera de Aquiles, os desmandos de Messalina, os
êxtases de Santa Teresa. Não há recalcitrar contra o amor, força é ceder. À
natureza não se resiste e o amor é natureza. Os antigos tiveram uma intuição
clara da verdade quando simbolizaram em uma deusa formosíssima e
implacavelmente vingativa, na Vênus Afrodite, o laço que prende os seres, a
alma que lhes dá vida. (1996: 112-113)
O ponto de vista que se constrói nessa sequência institui como tema o amor, referente
textual introduzido por sintagma nominal definido: ―O amor é filho da necessidade tirânica‖.
O sentido da primeira qualificação atribuída ao amor, filho da necessidade tirânica,
desdobra-se no decorrer do excerto, a começar pelo uso de expressões referenciais associadas
a essa qualificação, que são a dívida do antepassado e a fórmula bramática, cujos
significados estão diretamente relacionados à necessidade tirânica.
O amor abstrato (o sentimento), tal como foi introduzido no início do excerto, é
retomado, por metalinguagem, em a palavra amor, e neste caso, também recebe uma
qualificação (―a palavra amor é um eufemismo para abrandar um pouco a verdade ferina
da palavra cio‖), na qual o amor é comparado ao cio. Essa comparação fica ainda mais
147
evidente na coordenação que está em: ―Fisiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm a
ser uma coisa só‖.
A localização do que seria o início primordial do amor pode ser observada no referente
expresso pelo sintagma a afinidade eletiva de duas células diferentes, também referidas
como duas células diferentemente eletrizadas: ―O início primordial do amor está, como dizem
os biólogos, na afinidade eletiva de duas células diferentes, ou melhor, de duas células
diferentemente eletrizadas‖.
O que transforma essa afinidade primitiva, expressão referencial que sumariza as
informações precedentes (que vão desde o início primordial do amor até duas células
diferentemente eletrizadas) em uma batalha de nervos é a complexidade assombrosa do
organismo humano: ―A complexidade assombrosa do organismo humano converte essa
afinidade primitiva (...) em uma batalha de nervos‖.
As expressões a cólera de Aquiles, os desmandos de Messalina e os êxtases de
Santa Teresa, associadas à expressão uma batalha de nervos, contribuem para que se
compreenda qual é o resultado quando essa batalha é contrariada (―uma batalha de nervos
que, contrariada ou mal dirigida, produz a cólera de Aquiles, os desmandos de Messalina, os
êxtases de Santa Teresa‖). Para compreender a associação dessas personagens com o ato
amoroso, o leitor precisa do conhecimento de mundo no qual irá buscar informações
relacionadas a cada uma delas.
A ideia apresentada inicialmente de que o amor é filho da necessidade tirânica é
reafirmada em ―não há recalcitrar contra o amor, força é ceder‖, pois com ela (a necessidade
tirânica), assim como com o amor, não há como recalcitrar, acaba-se por ceder. Além disso,
em ―à natureza não se resiste e o amor é natureza‖ mantém-se a mesma semântica.
O que parece ser uma mudança de tópico, com a introdução do referente textual os
antigos, na verdade, fecha o ciclo expositivo sobre o amor: ―Os antigos tiveram uma intuição
clara da verdade quando simbolizaram em uma deusa formosíssima e implacavelmente
vingativa, na Vênus Afrodite, o laço que prende os seres, a alma que lhes dá vida.‖. Nessa
frase, a expressão uma intuição clara da verdade faz referência a tudo que se disse
anteriormente sobre amor. Depois de ter sido muitas vezes referido pelo mesmo sintagma, o
amor, é recategorizado no final do texto pelos sintagmas o laço e a alma, ambos associados à
expressão uma deusa formosíssima e implacavelmente vingativa. Essa personagem,
introduzida por sintagma indefinido, é especificada, por uma informação apositiva, como a
Vênus Afrodite. Mais uma vez o conhecimento de mundo faz saber que se trata da deusa do
amor: o amor ―que prende os seres‖ e ―que lhes dá vida‖.
148
De tudo isso é possível depreender-se que o ato amoroso (ou sexual) que, a princípio,
deveria consumar-se com o intuito de procriar (gerar uma criança), ocorre muito mais com o
intuito de satisfazer os instintos do organismo humano (o prazer carnal).
4ª) O excerto dissertativo que vem a seguir é parte do capítulo VII do romance O
cortiço. Alguns dos moradores do cortiço fazem uma roda para cantar e dançar, dentre as
pessoas que participam dessa roda está a amante de Firmo, Rita Baiana, mulata que dançava e
requebrava como ninguém. Enquanto ela dançava, Jerônimo a observava encantado.
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos
enamorados.
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele
recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor
vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das
baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e
esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar
gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre
feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta
viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do
corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras
embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir
dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela
música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas
que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa
fosforescência afrodisíaca. (1988: 57)
O sintagma referencial o grande mistério começa a ser desmembrado na expressão a
síntese das impressões, em comparação com a síntese das impressões que Jerônimo teve
quando chegou ao Brasil, mais especificamente ao Rio de Janeiro, local onde fica o cortiço no
qual se passa a história. Essa localização espacial é referida pelo advérbio aqui: ―Naquela
mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui‖.
A expressão a síntese das impressões remete a uma série de atribuições que revelam a
complexidade da mulata, que é referida, no excerto, pelo sintagma nominal naquela mulata e
é retomada pelo pronome ela e por referenciação textual zero . As primeiras atribuições
indicam uma gradação que vai da luz ardente do meio-dia ao calor vermelho das sestas da
fazenda. Depois, a mulata é, ao mesmo tempo, o aroma quente dos trevos e das baunilhas
e a palmeira virginal e esquiva, ou seja, ao mesmo tempo, quente e virginal. O predicativo
representado por o aroma quente dos trevos e das baunilhas, expressão atribuída à mulata,
149
e associado à expressão matas brasileiras reafirma que as impressões causadas por ela são as
mesmas do lugar onde ela vive: ―era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o
atordoara nas matas brasileiras‖.
Impressões antitéticas continuam compondo a síntese das impressões: o veneno versus
o açúcar (―era o veneno e era o açúcar gostoso) e doce do mel versus o ardido do fogo (―era
o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite
de fogo‖).
Essa complexidade se revela também na gradação descendente: a cobra verde e
traiçoeira > a lagarta viscosa > a muriçoca doida. As ações da menos inofensiva, a
muriçoca, são as que causam as maiores reações em Jerônimo (que é retomado por
pronominalização), tais como: esvoaçar (―que esvoaçava havia muito tempo em torno do
corpo dele‖), assanhar (―assanhando-lhe os desejos‖), acordar (―acordando-lhe as fibras
embambecidas pela saudade da terra‖), picar (―picando-lhe as artérias‖) e cuspir (―para lhe
cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música
feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da
Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca‖). A relação metafórica
configurada em muriçoca doida permite compreender o quanto as impressões causadas por
Rita atingiam Jerônimo.
À medida que as qualificações são introduzidas no texto, elas contribuem para manter
não só a mulata, como também as impressões causadas por ela, no foco da consciência do
leitor, corroborando a evolução do sentido (RONCARATI, 2010).
Em resumo, essas qualificações que se configuram ora em antíteses, ora em gradações
ascendentes e ora em gradações descendentes, revelam toda a complexidade que está não só
na mulata, mas também no país. A mulata (Rita Baiana) sintetiza metaforicamente o que
muitos lugares ou muitas pessoas brasileiras sintetizam: uma mistura de aspectos e
impressões. Essa mistura indefinível resulta em o grande mistério, sintagma nominal
definido, que ocorre no início do excerto e é revelado a cada qualificação.
5ª) Analisa-se a seguir uma sequência do romance Amar, verbo intransitivo, que já
teve seu início analisado quanto à descrição. Como se trata de uma sequência híbrida, nesta
análise será estudado o trecho dissertativo, que esta entre colchetes.
150
Bem diferente dos quartinhos de pensão... Alegre, espaçoso. Pelas duas
janelas escancaradas entrava a serenidade rica dos jardins. O olhar torcendo
para a esquerda seguia a disciplinada carreira das árvores na avenida. [Em
Higienópolis os bondes passam com bulha quase grave soberbosa,
macaqueando o bem-estar dos autos particulares. É o mimetismo arisco e
irônico das coisas ditas inanimadas. São bondes que nem badalam.
Procedem como o rico-de-repente que no chá da senhora Tal, família
campineira de sangue, adquire na epiderme do fraque a macieza dos
tradicionais e cruza as mãos nas costas — que importância! — pra que a
gente não repare na grossura dos dedos, no quadrado das unhas chatas. Neto
de Borbas me secunda desdenhoso que badalo e mãos ásperas nem por isso
deixam de existir, ora! O badalo pode não tocar e mãos se enluvam].
(2008: 20)
Essa sequência dissertativa vem introduzida por uma frase em que se mesclam
narração (no presente) e descrição. Ela inicia pela localização do espaço (Higienópolis) com o
qual estão associados elementos que serão tratados na dissertação, dentre eles, os bondes: ―em
Higienópolis os bondes passam com bulha quase grave soberbosa, macaqueando o bem-
estar dos autos particulares‖.
Os bondes têm o som comparado ao som dos automóveis particulares: ambos passam
belo bairro quase que sem ser percebidos. Nessa comparação, que é feita por meio do verbo
macaquear, resgata-se um diferencial nos bondes da região de Higienópolis, pois os bondes,
na maioria das vezes, são barulhentos, mas isso não acontece com os bondes que passam por
lá. Além disso, o fato de o som dos bondes imitar o som dos autos particulares é ironizado na
qualificação o mimetismo das coisas ditas inanimadas (―é o mimetismo arisco e irônico das
coisas ditas inanimadas‖), uma vez que tanto os bondes quanto os autos se incluem entre as
coisas inanimadas.
O cotejo dos bondes com os autos particulares fica também evidente na qualificação
que vem na frase ―são bondes que nem badalam‖, do que se depreende, que se não fosse pela
―bulha quase grave soberbosa‖ (que é referida no adjunto adverbial que vem em: ―Em
Higienópolis os bondes passam com bulha quase grave soberbosa‖), eles seriam quase
imperceptíveis.
Além da comparação entre os bondes e os autos, há outra comparação na qual os
bondes (retomados por referenciação textual zero) são comparados ao rico-de-repente: ―
procedem como o rico-de-repente‖. Essa comparação faz uma alusão irônica às pessoas que
enriqueceram, na época em que se passa o romance (HALLIDAY, 1964; 1973; 1978; 1989; e
HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004), com o crescimento da produção cafeeira e com a
industrialização.
151
As expressões referenciais associadas a esse rico-de-repente (a epiderme do fraque,
as mãos nas costas, a grossura dos dedos e o quadrado das unhas chatas) constituem uma
cadeia referencial que permite compreender a razão dessa comparação: tanto um (os bondes)
quanto o outro (o rico-de-repente) aparentam ser o que na verdade não são. Essas associações
configuram um modo de mascarar a realidade.
No final do trecho, repetem-se duas vezes as expressões referenciais badalo, associada
aos bondes, e mãos, associada ao rico-de-repente. No primeiro caso, trata-se de uma anáfora
indireta (NEVES, 2007: 107), pois não ocorrera o substantivo badalo, mas se configurara
uma cena em que o processo de ―badalar‖ era referido. Entre a primeira e a segunda vez em
que essas expressões são referidas (―Neto de Borbas me secunda desdenhoso que badalo e
mãos ásperas nem por isso deixam de existir, ora! O badalo pode não tocar e mãos se
enluvam‖), surge o pronome neutro isso, que sumariza (RONCARATI, 2010) todas as
informações anteriores referentes aos bondes e ao rico-de-repente, mantendo-as no foco. O
fato de elas estarem no foco mantém em evidência esta crítica que se faz: mesmo que um ser,
seja esse ser animado ou inanimado, imite outro, mascarando a realidade, ele não perderá a
sua essência.
O tom irônico e crítico que transparece nas comparações, além de remeter o leitor ao cenário
da época em que a história se realiza, permite a ele refletir se de fato vale a pena viver de aparências.
6ª) O romance Alma é disposto em microcapítulos (uns maiores, outros
menores) que não são numerados. Um dos pontos da trama é o relacionamento estabelecido
entre Alma e Mauro44
. Ela acredita que irá viver uma história de amor, no entanto o que
ocorre é que ele passa a explorá-la sexualmente. O excerto a seguir, que constitui o início de
um dos microcapítulos do romance, é decorrente desse fato.
Mauro recolhia todo o dinheiro arranjado em casa de D. Rosaura. Ela não
ficava com coisa nenhuma.
Era uma luta estabelecida, clara, com surtidas e embates, recuos e
rendições, entre o cáften branco e a covardia rica da cidade. Eles iam todos,
os vadios da sociedade chique, os velhos vermelhos do São Paulo Clube, os
arrivistas comerciais, levados na volúpia de possuir num leito rendado de
casa suspeita, a desvirginada do bairro distante, cuja inocência a senilidade
trêmula e ingênua do velho avô garantia. Era um caso raro: uma menina de
família brasileira, educada para as devotações burguesas dos lares obscuros,
e que rolava num esbandalhamento de gritos e surpresas, pela rampa mirífica
das prostituições sensacionais. (1978: 21)
44
Verificar a 6ª análise do item 5.1.1, na qual ambas as personagens foram introduzidas.
152
Nesse excerto, o ponto de vista do autor é construído a partir da coadunação entre
trechos narrativos, descritivos e dissertativos.
Os participantes da luta que surge expressa pela qualificação ―uma luta estabelecida,
clara, com surtidas e embates, recuos e rendições‖ são o cáften branco e a covardia da cidade
(―era uma luta estabelecida [...] entre o cáften branco e a covardia rica da cidade‖). O
sintagma o cáften branco recategoriza Mauro, referido na primeira frase (―Mauro recolhia
todo o dinheiro arranjado em casa de D. Rosaura‖), e o sintagma a covardia rica da cidade
remete às expressões referenciais os vadios da sociedade chique, os velhos vermelhos do
São Paulo Clube, os arrivistas comerciais, referidos inicialmente por pronome pessoal:
―eles iam todos, os vadios da sociedade chique, os velhos vermelhos do São Paulo Clube, os
arrivistas comerciais‖.
A expressão um leito rendado de casa suspeita constitui uma anáfora indireta em
que se pode observar uma relação meronímica – relações parte-todo – (MARCUSCHI, 2001),
pois ―um leito rendado‖ representa uma parte da casa de dona Rosaura (recategorizada nesse
sintagma pelo adjunto adnominal de casa suspeita), que indica o local em que era praticada a
prostituição.
O sujeito da qualificação um caso raro, anunciado cataforicamente, vem referido pelo
sintagma indefinido uma menina de família brasileira (―Era um caso raro: uma menina de
família brasileira, educada para as devotações burguesas dos lares obscuros‖). O núcleo desse
sintagma (o substantivo menina) revela a personagem Alma, referida no início do excerto
pelo pronome pessoal ela (―Ela não ficava com coisa nenhuma‖), e, depois, pelo sintagma a
desvirginada do bairro distante (―levados na volúpia de possuir num leito rendado de casa
suspeita, a desvirginada do bairro distante‖).
O ―caso raro‖ está justamente no fato de que a menina foi educada para integrar uma
família burguesa, mas, no entanto, ela ―rolava num esbandalhamento de gritos e surpresas, na
rampa mirífica das prostituições sensacionais‖.
Estabelece-se ainda uma relação irônica entre a expressão dos lares obscuros (que é
parte do sintagma as devotações burguesas dos lares obscuros), a personagem Alma e as
personagens referidas em ―eles iam todos, os vadios da sociedade chique, os velhos vermelhos
do São Paulo Clube, os arrivistas comerciais‖. O uso do adjetivo obscuros (lares obscuros)
contribui para que se compreenda essa relação: Alma servia como prostituta a mesma
burguesia para a qual havia sido educada para fazer parte, possivelmente como uma dona de
casa burguesa. Os sujeitos que a procuravam para obter os seus serviços eram exatamente os
chefes das casas burguesas, e isso revela o lado obscuro desses lares: a maioria das pessoas
153
que a eles pertenciam mantinham as aparências em meio à sociedade, e por trás dela
revelavam sua verdadeira personalidade.
A construção desse ponto de vista, que ironiza as relações burguesas da sociedade
brasileira do século XX, nasce e progride na integração entre os trechos narrativos, descritivos
e dissertativos que compõem a sequência. Essa mescla de tipos textuais contribui para dar
ritmo e sentido ao enunciado, na medida em que um serve de suporte para que o outro
apareça, e vice-versa.
7ª) No romance O filho eterno, a personagem principal (ele) tem um filho com
síndrome de Down (Felipe). Desde o nascimento da criança, o pai encontra dificuldades em
explicar aos outros o ―problema‖ do filho. É sobre isso que trata a sequência dissertativa
analisada a seguir.
A normalidade. O que dizer aos outros, quando encontra com eles? Sim,
nasceu meu filho. Sim, está tudo bem. Quer dizer, ele é mongoloide. Não –
essa palavra é pesada demais. E em 1980 ninguém sabia o que era ―síndrome
de Down‖. A maneira delicada de dizer é: Sim, um pequeno problema. Ele
tem mongolismo. Mas isso exige uma rede de explicações subsequentes – e
as pessoas nunca sabem o que dizer ou fazer diante daquela coisa esquisita.
(2010: 42)
A sequência se inicia com uma narração que tem a função de introduzir o tema
argumentativo (TRAVAGLIA, 1991). Nela é possível reconhecer que há uma personagem,
mencionada por referenciação textual zero (―O que dizer aos outros, quando encontra com
eles?‖), que vive o conflito de falar para os outros sobre o filho doente (referido pelo pronome
ele): ―Sim, nasceu meu filho. Sim, está tudo bem. Quer dizer, ele é mongoloide‖. Justifica-se
essa dificuldade pelo fato de o filho ser mongoloide.
A conjunção e adiciona ao peso da palavra mongoloide, o fato de naquela época,
ninguém saber o que era a síndrome de Down: ―não – essa palavra é pesada demais. E em
1980 ninguém sabia o que era síndrome de Down‖. Trata-se de uma informação relacionada
ao contexto da época (HALLIDAY, 1964; 1973; 1978; 1989; e HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004) que dá sentido para a aflição do pai, pois, além de não ―aceitar‖ a
doença do filho, ele sabe que para os outros também seria difícil ―aceitá-la‖ ou ―compreendê-
la‖, isso porque a maioria das pessoas que viviam na década de 80 não tinham clareza sobre o
assunto.
154
Na frase ―Mas isso exige uma rede de explicações subsequentes‖, a conjunção
adversativa mas e o pronome possessivo neutro isso, que encapsula (RONCARATI, 2010) a
sequência anterior (―A maneira delicada de dizer é: Sim, um pequeno problema. Ele tem
mongolismo‖), contribuem para que se compreenda o conflito interno vivido pela
personagem: se ele admite que o filho tem mongolismo, ele tem, como que uma obrigação, de
dar explicações relacionadas ao problema do filho.
A primeira vez que se fala na doença é por meio da qualificação mongoloide, que é
atribuída ao filho (―quer dizer, ele é mongoloide‖). Essa qualificação é retomada
referencialmente pelo determinante demonstrativo essa (―essa palavra é pesada‖), e, na
sequência, ganha o estatuto científico de síndrome de Down (―ninguém sabia o que era
síndrome de Down‖). Mas, ao ser recategorizada pela expressão referencial um pequeno
problema (―sim, um pequeno problema‖), a importância da doença diminui, e se minimiza
ainda mais na recategorização aquela coisa esquisita, que encerra o excerto.
Essas idas e voltas para nomear a doença podem estar relacionadas às atitudes da
sociedade naquela época, que, por falta de esclarecimentos, podia mudar de opinião e de
conceitos a todo instante.
Curioso é que a sequência se inicia com a frase ―a normalidade”, e tudo que se diz
depois é o contrário da normalidade. Isso provoca uma reflexão intensa não só sobre a doença,
como também sobre a sociedade, a instabilidade e, sobretudo, as ações do ser humano quando
se depara com esse tipo de situação.
8ª) A sequência dissertativa que segue é parte do capítulo 5 do romance Vozes do
deserto.
Como qualquer muçulmana, as filhas do Vizir não fogem à imposição dos
véus, adotados inicialmente por Fátima, mulher do Profeta, após a revelação
que Alah concedera ao marido. (...)
Transparentes e delicados, os véus, para as irmãs, integraram-se
imediatamente à esfera da imaginação. Persuasivos por natureza, eles
guardavam e exibiam o que estivesse sob o foco da atenção masculina. E,
enquanto cumpriam esta função, preservavam as incertezas dos sentimentos
femininos, o inesperado desequilíbrio da razão, os momentos em que a alma,
tentada pela melancolia, não se contém. Mas, ao mesmo tempo que estes
véus escondiam, permitiam igualmente que qualquer das irmãs, ao resguardo
deles, se refugiasse, mesmo em pensamento, na gruta do pecado, a fim de
regozijar-se com prazeres sigilosos. Na caverna onde o desejo brilha e
umedece os sonhos. (2006: 30-31)
155
Nessa sequência, assim como ocorreu com a sequência do romance Alma, há uma
dissertação a serviço da narração.
O objeto desse excerto dissertativo configura-se no sintagma nominal os véus, que se
refere a um acessório cujo uso é imposto não só às filhas do Vizir, ―como a qualquer
mulçumana‖: ―Como qualquer muçulmana, as filhas do Vizir não fogem à imposição dos
véus‖. A expressão referencial as filhas do Vizir retoma as personagens Scherezade e
Dinazarda45
, referidas também pelo sintagma as irmãs: ―Transparentes e delicados, os véus,
para as irmãs, integraram-se imediatamente à esfera da imaginação‖.
Duas qualificações atribuídas à expressão os véus (transparentes e delicados) são
responsáveis por ativar a imaginação das irmãs. Por outro lado, a outra qualificação
(persuasivos por natureza) em conjunto com as ações (guardar e exibir) que também são
atribuídas a eles são responsáveis por despertar a imaginação dos homens: ―Persuasivos por
natureza, eles guardavam e exibiam o que estivesse sob o foco da atenção masculina‖.
Nesse trecho, o demonstrativo invariável o (= aquilo) faz referência a parte(s) do corpo
feminino, que eventualmente poderia(m) estar ou não à mostra. O sintagma o foco da atenção
masculina contribui para que se chegue a essa referência, uma vez que o corpo feminino
normalmente prende a atenção masculina.
Em ―enquanto cumpriam esta função, preservavam as incertezas dos sentimentos
femininos‖, o determinante esta, presente no sintagma esta função, aponta para a situação
discursiva, em referência às ações presentes nos verbos guardar e exibir, enquanto a ação do
verbo preservar liga-se a outra função dos véus: a de encobrir as emoções das irmãs, ou ―as
incertezas dos sentimentos femininos‖. Esta última expressão, qualificada pelo predicativo o
inesperado desequilíbrio da razão, remete ao trecho: ―os momentos em que a alma, tentada
pela melancolia, não se contém‖, que a explica cataforicamente: ―E, enquanto cumpriam esta
função, preservavam as incertezas dos sentimentos femininos, o inesperado desequilíbrio
da razão, os momentos em que a alma, tentada pela melancolia, não se contém‖.
No início da sequência em análise, o referente os véus introduz um objeto cujo uso é
imposto às mulçumanas, mas, ao contrário do que se espera daquilo que funciona como uma
obrigatoriedade, os primeiros efeitos que se mostram não são negativos, uma vez que seu uso
remete à sensualidade, aguçando a imaginação feminina e a masculina.
O efeito negativo começa a se concretizar no sintagma o resguardo deles (que vem
em aposto), em que deles, composição de + pronome pessoal eles, expressa uma relação
45
Verificar a 8ª análise do item 5.1.1.
156
possessiva na qual o pronome retoma os véus (―Mas, ao mesmo tempo que estes véus
escondiam, permitiam igualmente que qualquer das irmãs, ao resguardo deles, se refugiasse‖),
objeto de discurso referido também, no início da frase por estes véus. Assim, além de
produzir o efeito positivo de sensualidade, esses objetos serviam como uma espécie de refugio
ou de proteção para qualquer uma das irmãs. Essa proteção, no entanto, impedia que elas
vivessem na prática um relacionamento amoroso, deixando esse tipo de emoção fluir nos
pensamentos (―se refugiasse, mesmo em pensamento, na gruta do pecado, a fim de regozijar-
se com prazeres sigilosos. Na caverna onde o desejo brilha e umedece os sonhos‖). Veja-se
que até o local para onde elas ―viajavam em pensamento‖ para viver prazeres sigilosos remete
a um lugar afastado, um esconderijo onde provavelmente ninguém estaria presente: a gruta
do pecado, expressão retomada pelo sintagma a caverna, que mantém a ideia de esconderijo.
Nesse lugar secreto, elas podiam viver intensamente os prazeres do amor. Isso fica
expresso com a introdução dos referentes o desejo e os sonhos (―onde o desejo brilha e
umedece os sonhos‖), ou seja, nesse esconderijo secreto, as irmãs conseguem libertar-se a
ponto de realizar os desejos mais íntimos.
Compreende-se, por uma associação indireta, ancorada na informação anterior
(MARCUSCHI, 2001) de que o uso dos véus é imposto a qualquer mulçumana, que os efeitos
positivos e negativos, causados por eles nas filhas do Vizir, possivelmente também atingem,
se não todas, quase que a totalidade das mulheres mulçumanas, que devem viver, assim como
as duas irmãs do romance, com a imaginação à flor da pele.
5.3.2 A referenciação e a construção de pontos de vista
Nota-se que, nas sequências dissertativas analisadas, assim como nas sequências
narrativas e descritivas, também há uma predominância no uso dos sintagmas nominais.
Neste caso, a razão pode estar no fato de que o autor, na maioria das vezes, coloca seu
ponto de vista a respeito de uma dada situação (TRAVAGLIA, 1991). O sintagma
nominal, por trazer em seu núcleo um substantivo comum, é o elemento fórico que mais
contribui para expressar a opinião do enunciador.
Tomem-se, como exemplo disso, a recategoricação da personagem Seixas, do
romance Senhora, pelo sintagma nominal o leão fluminense, ou a comparação
estabelecida entre os referentes os bondes e os autos particulares, em Amar, verbo
intransitivo, ou ainda a retomada do sintagma os educandos pela expressão referencial
157
naquelas almas tenras, na obra de Guimarães, bem como neste trecho de Vozes do
deserto: ―Como qualquer muçulmana, as filhas do Vizir não fogem à imposição dos véus‖.
Esses são alguns exemplos que ilustram a importância do uso dos sintagmas nominais,
seja para introduzir seja para retomar um elemento do texto, pois, à medida que eles
surgem na cadeia referencial, vão-se configurando (descritivamente) elementos
participantes das explicitações da dissertação.
Embora nesta análise, assim como na das descritivas, também não se tenha feito a
quantificação dos elementos fóricos usados na introdução e manutenção dos referentes
textuais, não se pôde deixar de verificar que, em geral, os pronomes pessoais se
sobressaem numericamente aos possessivos e aos demonstrativos, que quase não usados,
sendo exceção a sequência do romance O seminarista na qual não se observou nenhuma
ocorrência de pronome pessoal.
Ainda com relação a esse elemento fórico (pronome), observou-se desde uma
sequência com ocorrência de apenas um pronome de terceira pessoa nas casas referenciais
(o demonstrativo isso), caso de Amar, verbo intransitivo (―Neto de Borbas me secunda
desdenhoso que badalo e mãos ásperas nem por isso deixam de existir, ora!‖), até uma
sequência com número comparativamente elevado de pronomes pessoais, caso do romance
O cortiço. Isso provavelmente ocorra porque, nesta sequência, o objeto da dissertação é o
efeito que o mistério da mulata Rita Baiana causa em Jerônimo. Curiosamente, algumas
referências feitas a Jerônimo por meio do pronome pessoal lhe expressam uma relação de
posse, como neste trecho: ―a muriçoca doida, que esvoaçava [...] assanhando-lhe os
desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as
artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional‖.
Quanto aos outros elementos fóricos, verifica-se que, no excerto do romance
Senhora, o determinante demonstrativo aparece duas vezes, primeiro em ―Havia nessa
contradição da consciência de Seixas com a sua vontade uma anomalia psicológica‖
sumarizando as informações anteriores sobre a contradição da personagem, e, depois, em
―vai criando esses aleijões de homens de bem‖, retomando os homens que possuem esse
tipo de contradição, dentre eles, Seixas. No romance O filho eterno, o demonstrativo
ocorre em referência anafórica a uma qualificação: mongoloide (―quer dizer, ele é
mongoloide. Não – essa palavra é pesada demais‖).
Nas sequências dissertativas, assim como se observou nos tipos narrativo e
descritivo em geral, há um elemento não referencial importante para a composição do
texto: as qualificações. Elas foram observadas em número menor nos romances, Amar,
158
verbo intransitivo, Alma, O filho eterno e Vozes do deserto, enquanto nos romances O
seminarista, A carne e O cortiço, o número de qualificações é considerável, sobretudo nos
dois últimos.
Além do número menor de qualificações, nos romances modernos e
contemporâneos, sobretudo em Alma e Vozes do deserto, as sequências dissertativas mais
extensas são raras, o que há (como se viu nos excertos aqui analisados, por exemplo) é
uma dissertação que normalmente vem a serviço de outro tipo textual. Essa mescla de
tipos contribui para construção de pontos de vista, na dissertação.
Esses pontos de vista, na maioria das sequências dissertativas analisadas, resultam
de uma mistura entre exposição, ironia, critica. Em alguns casos sobressai um desses
aspectos, por exemplo, a sequência de Amar, verbo intransitivo é mais crítica, enquanto a
sequência de O cortiço é mais expositiva.
No processo de interação verbal que se estabelece entre o autor e o leitor, o
primeiro parece construir o texto com a intenção de despertar uma reação imediata no
segundo. Percebe-se que, independentemente de essa reação ser favorável ou contrária a
opinião do autor, possivelmente ela provocará uma reflexão sobre o assunto apresentado.
Em todas as sequências, justamente por elas tratarem assuntos diversos, o
conhecimento do contexto de cultura e do contexto de situação (HALLIDAY, 1964; 1973;
1978; 1989; e HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) é particularmente relevante para que
o leitor possa construir o sentido do texto.
5.4 Uma recuperação das bases teóricas de direcionamento das análises
A principal diretriz destas análises esteve fixada na verificação dos elementos
fóricos usados na introdução e na manutenção dos referentes textuais – ou objetos de
discurso – que compõem as cadeias referenciais de sequências narrativas, descritivas e
dissertativas, mas o processo de referenciação não poderia ser observado se não fossem
levadas em conta as bases teóricas que fundamentam o trabalho (algumas delas tratadas
com maior profundidade).
A referenciação textual é um processo que nasce da interação verbal (DIK, 1997) e
é na interação que os sujeitos da enunciação se estabelecem em um determinado tempo e
em um determinado espaço. Como se mostrou no item 1 deste trabalho, na interação são
ativadas as metafunções da linguagem desenvolvidas por Halliday (1973; 1978; 1989) e
159
Halliday e Matthiessen (2004), ou, como o autor as considerou, as ―variáveis‖ do contexto
de situação, por meio das quais os interlocutores interagem, expressando seus
conhecimentos e suas intenções.
Como o córpus deste trabalho é constituído por diferentes sequências textuais de
romances brasileiros, pode-se dizer, de forma geral, que se trata de um campo ficcional
(função ideacional), divulgado pelo modo escrito (função textual), no qual a relação entre
os interlocutores (função interpessoal) é indireta. Nesse sentido, pode-se dizer que a
função ideacional, nas sequências narrativas, configura-se na construção da identidade das
personagens (com grau maior em alguns casos e menor em outros, como se pôde observar
nas análises); nas descritivas, configura-se na criação dos espaços das cenas, e nas
dissertativas, configura-se na instituição de pontos de vista.
Considerando que a realização da função textual se dá apenas pelo modo escrito, a
―relação‖, ou função interpessoal, entre os interlocutores é indireta, mas nesse jogo
enunciativo-enuncivo nem sempre autor e leitor parecem estar tão distantes. Isso fica
evidente em algumas marcas linguísticas expressas no texto, por exemplo, um ponto de
interrogação ao final de uma frase, como se vê neste exemplo retirado da sequência
narrativa do romance Senhora: ―Quem não se recorda da Aurélia Camargo, que atravessou
o firmamento da corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do
deslumbramento que produzira o seu fulgor?, ou neste outro exemplo retirado da
sequência dissertativa do mesmo romance: ―Quem não conhece o livro em que Otávio
Feuillet glorificou sob o título de honra, as últimas hesitações de uma alma profundamente
corrompida?‖.
Com o uso do ponto de interrogação a distância entre os interlocutores parece
diminuir, como se o autor estivesse em presença do leitor fazendo a pergunta diretamente
a ele, supondo que seu interlocutor saiba a resposta. Essa pontuação sugere, ainda, que
ambos conhecem as pessoas e os fatos que estão sendo tratados.
Nem sempre o uso desse recurso linguístico marca proximidade entre autor e leitor.
Veja-se este exemplo retirado da sequência narrativa do romance Vozes do deserto:
Também Dinazarda a irmã mais velha, tentara dissuadi-la. Previa-a
incapaz de dobrar a vontade do soberano. Sendo assim, por que
acompanhá-la ao palácio imperial, como lhe havia pedido, e participar de
um ato que ora lhe extraía lágrimas, manifestações de luto prévio?
Aqui, diferentemente dos exemplos anteriores, é a personagem, que, em um ato
reflexivo, faz a pergunta a si mesma.
160
Outras marcas linguísticas podem ser observadas no processo enunciativo-
enuncivo. Para compreender melhor esse fato, vale lembrar que, conforme o ponto de
partida fixado para este trabalho, todas as obras que forneceram excertos para análise são
narradas em terceira pessoa, portanto o enunciador (falante/autor) está fora do texto e
institui um interlocutor (ouvinte/leitor) ao qual se dirige para narrar, descrever ou dissertar
sobre um terceiro, a não-pessoa, como postula Benveniste (2005). São marcas referenciais
endofóricas de terceira pessoa o pronome pessoal (que em si determina a pessoa do
discurso), o demonstrativo e os adverbiais (que apontam para as pessoas, o tempo e o
espaço), de que são exemplos os elementos grifados nestes trechos dos romances
Senhora: ―eram regalias como talvez só saboreavam nesse tempo os dez mais
puros fumistas do império‖.
O seminarista: ―A monotonia de verdura clara era quebrada aqui e ali pelo
sombrio da folhagem basta de alguns paus-d‘alho‖.
O cortiço: ―naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que
ele recebeu chegando aqui‖.
O filho eterno: ―A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava já havia quatro
anos, agora era sustentada por ele‖.
Algumas dessas marcas linguísticas parecem trazer o enunciador (que a principio
está fora do texto) para dentro da situação discursiva, como se ele fizesse parte do que está
enunciando, instituindo-se o eu-aqui-agora. Serve de exemplo mais um trecho do romance
Senhora: ―Assim, no recosto de uma das velhas cadeiras de jacarandá via-se neste
momento uma casaca preta‖. No outro exemplo que vem a seguir, fica ainda mais
evidente que os interlocutores são trazidos mais vivamente à cena da enunciação: ―dizia-
se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade, sem os
comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros‖.
Para compreender partes dos enunciados, e a totalidade deles é necessário, além do
recurso aos elementos fóricos que se relacionam entre si mantendo a coesão e o sentido do
enunciado, o recurso ao conhecimento do contexto de cultura e do contexto de situação.
No caso deste trabalho, há que se notar que essa questão tem grande relevância, pois,
afinal, um romance escrito originariamente no século XIX é lido hoje, século XXI,
mantendo, salvo raras exceções, o mesmo texto de origem. É nessa linguagem, expressa
nas páginas do romance, que se revelam os elementos relevantes do contexto de situação
(informações relacionadas às pessoas ou aos objetos da época), que entram na construção
do sentido do texto.
161
Há também casos de obras escritas no século XXI, que contam histórias que se
passaram há séculos atrás, ou de obras contemporâneas que têm em seu enredo
personagens, ações e lugares que fazem parte de outra civilização, como ocorre em Vozes
do deserto, ou de obras em que o protagonista passa por diferentes lugares no decorrer da
história, como ocorre em O filho eterno.
Também na avaliação desses casos, há grande espaço para a consideração de
termos cognitivistas sobre o enunciado e a enunciação. Lembre-se a indicação de Van
Dijk (1999: 74), registrada na seção 1.4 deste trabalho, para quem uma teoria cognitiva do
uso da língua constitui um componente fundamental de uma teoria integrada da interação
comunicativa.
Pelo exposto, conclui-se, seguindo os postulados da linguística textual, que para
compreender o sentido do texto é preciso ir além de uma observação que considere apenas
as palavras e as frases, é preciso, retomando Marcuschi (1983), observar o enunciado
como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas.
162
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A verificação dos mecanismos de introdução e manutenção dos referentes textuais e
do modo de representação das expressões referenciadoras permitiu chegar a algumas
considerações.
Quanto às sequências narrativas, observou-se: a relevância dos sintagmas nominais na
composição descritiva das personagens; o uso não canônico do pronome pessoal que, na
maioria das vezes, funciona como elemento anafórico, mas, nos excertos analisados,
apareceu, mais de uma vez, introduzindo referente; o papel do determinante possessivo, que,
em sua função bipessoal, faz muito particularmente referência entre uma personagem e suas
propriedades, e episodicamente, de uma personagem a outra; o papel do demonstrativo que
atua anaforicamente na retomada de objetos de discurso, propiciando uma relação anafórica
coesiva. Observou-se ainda a perda de genericidade do sintagma nominal indefinido,
introduzindo personagem nos romances O filho eterno e O cortiço.
Quanto às sequências descritivas, pôde-se notar uma proporção muito maior de
elementos fóricos representados por sintagmas nominais e, em contrapartida, um número
pouco significativo de ocorrências do pronome pessoal ou da referenciação textual zero. Além
disso, é comum no estabelecimento da cadeia referencial dessas sequências a introdução de
novos referentes textuais por associação à descrição do espaço, configurando-se o ambiente
de desenvolvimento das cenas.
Quanto às sequências dissertativas, em que, na maioria das vezes, o autor introduz sua
opinião, pôde-se notar que o conhecimento do contexto de cultura e do contexto de situação
(HALLIDAY, 1964; 1973; 1978; 1989; e HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) é o
condicionante da compreensão do texto, além disso, que, nesse tipo textual há predomínio do
elemento fórico representado por sintagma nominal, enquanto a referência por pronome e zero
é reduzida. Nestas sequências, dentre os pronomes usados no estabelecimento da cadeia
referencial, destaca-se o pronome pessoal, que diferentemente, tem frequência bastante
reduzida nas sequências descritivas.
No que se refere à presença funcional na cadeia dos referentes textuais, a
predominância é do sintagma nominal em todos os tipos textuais (observando-se que a
exceção são as sequências narrativas dos romances Amar, verbo intransitivo, Alma e O filho
eterno, nas quais há um número equivalente de referência por sintagma nominal e por
pronome). Outra função presente em quase todas as sequências textuais é a qualificação,
processo não referencial, mas que contribui para a constituição e a interpretação do texto, na
163
medida em que fornece elementos que ajudam na especificação das personagens, dos espaços
ou dos objetos. Isso permite que o referente esteja sempre no foco do leitor.
Embora não se tenha estabelecido como propósito principal apontar diferenças entre as
escolas literárias, ou diferenças temporais, não se pôde deixar de observar diferentes
orientações na organização e na estrutura das sequências analisadas nas quatro fases literárias
estabelecidas para este exame: até o Realismo, elas seguem um padrão semelhante, que já não
é observado a partir do Modernismo.
Nas sequências narrativas românticas e realistas, todas as personagens são
introduzidas ou por nome próprio ou sintagma nominal, o que representa a organização
canônica da cadeia referencial. Além disso, nessas sequências há um número maior de
informações relacionadas às personagens, ainda que essas informações sejam expressas por
qualificações. Nas narrativas modernas e contemporâneas, embora haja qualificações, o
número de informações é menor, e, além disso, nas obras dos Andrades e de Tezza, algumas
personagens são introduzidas por pronome, o que foge dos padrões endofóricos sempre
evocados. O fato de nessas últimas obras não haver um número grande de informações, por
conta da redução no uso do sintagma nominal, não afeta a coesão textual, ao contrário, além
de mantê-la, desperta um elemento novo: a curiosidade do leitor, que naturalmente tem
interesse em descobrir algo mais sobre as personagens.
Nas sequências descritivas que pertencem ao Romantismo e ao Realismo, nota-se uma
grande quantidade de detalhes na descrição do ambiente. Independentemente de a descrição
do espaço partir do geral para o específico ou vice-versa, fica à disposição do leitor quase que
a completude dos elementos que compõem o ambiente. O mesmo não ocorre nas sequências
descritivas observadas a partir do Modernismo (Amar, verbo intransitivo, Alma, O filho
eterno e Vozes do deserto). Para compor os espaços descritos nessas sequências, percebe-se
maior complexidade de acionamentos das estruturas cognitivas.
Nas sequências dissertativas, o que se observou foi o uso expressivo de qualificações
na criação dos pontos de vista dos autores românticos e realistas. Nas sequências modernas e
contemporâneas, embora também se usem predicativos, os elementos usados para configurar a
opinião do autor ocorrem mais pela própria via referencial do que por algum apoio à
referenciação textual. Além disso, a sequência dissertativa moderna e contemporânea, que
vem mesclada a outros tipos textuais, configura-se em uma extensão menor do que nas
sequências que ocorrem no Romantismo e no Realismo. Nesse caso, a compreensão da ideia
central do enunciado, aparentemente exige um esforço sociocognitivo maior.
164
Por tudo isso, pôde-se verificar que, como postula Toole (1996), não é o gênero que
condiciona a escolha dos elementos fóricos que compõem a cadeia referencial de uma
sequência textual, pois, se assim fosse, não ocorreria, por exemplo, o que se verificou nas
sequências narrativas, em que objetos de discurso são introduzidos no texto não apenas por
sintagma nominal ou nome próprio (Romantismo e Realismo), mas também por pronome
pessoal (Modernismo e Contemporaneidade).
Por outro lado, pode-se compreender que as sequências textuais que compõem o
gênero romance condicionam o maior uso de um elemento fórico do que de outro, pois, nos
três tipos analisados (narrativo, descritivo e dissertativo), em geral, há predomínio de
sintagma nominal. Quando observadas separadamente, as narrativas apresentam, além dos
sintagmas nominais, um número considerável de pronome e de zero na cadeia referencial,
enquanto as sequências descritivas e dissertativas têm esses dois últimos elementos fóricos
com número reduzido, em relação às primeiras. Restringindo-se a verificação, nos dois
últimos tipos textuais, ao uso dos pronomes, o que se observou foi que as dissertativas
apresentam um número maior de ocorrências do pronome pessoal em relação às descritivas,
nas quais predominam os pronomes demonstrativos.
Seja qual for o tipo textual, nele há elementos que constituem uma cadeia referencial,
pela qual entram na constituição da coesão e de todo o sentido do texto. O uso de um ou outro
elemento fórico é uma escolha do falante/autor, a partir de suas necessidades comunicativas,
condicionada pelos fatores linguísticos e extralinguísticos do contexto no qual o autor escreve
sua obra, fatores que influenciam direta ou indiretamente suas produções. Aqui cabe bem o
que postula Leite (1999: 29): é por meio da própria língua ―que o homem busca, sob pontos
de vistas e usos diferentes, defender as próprias tradições da língua, entendendo sempre que
há um modo melhor de expressão, mais próprio...‖, ou seja, os textos são produtos da
atividade de linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais (Bronckart,
2003). Diferentes usos da linguagem puderam ser observados, em certa medida, nas
sequências analisadas, mas um estudo mais específico sobre esse assunto é tema para outra
pesquisa.
Por fim, ressalta-se que as sequências analisadas neste trabalho são, como
normalmente ocorre, híbridas, ora com predomínio de um tipo, ora de outro. O estudo desse
tipo de organização textual, na ativação do processo de referenciação, contribui para mostrar
como uma sequência pode servir de pano de fundo para outra, colaborando para a progressão
textual, como, por exemplo, se pôde ver em O seminarista: no exame de uma sequência – que
mescla os tipos textuais narrativo e descritivo, com predomínio descritivo – pôde-se observar
165
a introdução e manutenção das personagens, e verificar que, à medida que elas vão sendo
introduzidas e retomadas narrativamente, a descrição do ambiente vai acontecendo (―A
menina, sentada sobre a relva, despencava um molho de flores silvestres de que estava
fabricando um ramalhete, enquanto seu companheiro, atracando-se como um macaco aos
galhos das paineiras, balouçava-se no ar‖).
Em suma, pôde-se verificar um modo de preenchimento das casas referenciais que
revela grande relativização das indicações correntes, evidentemente fixas e categóricas. Isso
vale especialmente para os casos de introdução de referentes textuais por meio de pronome
pessoal (e não de sintagma nominal), que se mostraram bastante significativos para criação de
sentidos e produção de efeitos.
Essa observação mostra a necessidade de tratar a questão da organização textual
discursiva por via da valiosa indicação funcionalista de consideração da fluidez categorial e
funcional da linguagem.
166
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, A. S. Linguística Cognitiva: uma visão geral e aplicada. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2010.
ADAM, J.-M. Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992.
APOTHÉLOZ, D.; CHANET, C. Definido e demonstrativo nas nomeações. In:
CAVALCANTI, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São
Paulo: Contexto, p. 131-176, 2003.
APOTHÉLOZ, D.; REICHER-BÉGUELIN, M. J. Construction de la référence et stratégies
de designation. TRANEL (Travaux neuchâtelois de linguistique), n. 23, p. 227-271, 1995.
APOTHÉLOZ, D.; CHANET, C. Défini et démonstratif dans les nominalisations. In:
MULDER, W. et al. (eds). Relations anaphoriques et (in)cohérence. Amsterdan: Rodopi, p.
159-186, 1997.
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, [199-].
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. 2º
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. [1953]
BARROS. D. L. P. Estudos do texto e do discurso no Brasil. DELTA, v. 15, nº especial, p.
183-199, 1999.
BASTOS, N. M. O. B. (org.). Língua Portuguesa em caleidoscópio. São Paulo: PUC/EDUC,
2004.
BATISTA, R. O. A palavra e a sentença: estudo introdutório. São Paulo: Parábola Editorial,
2011.
BATISTA, R. O. Introdução à pragmática: a linguagem e seu uso. São Paulo: Editora da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012.
BATISTA, R. O.; GUIMARÃES, A. H. T. Linguagem, comunicação, ação: introdução à
língua portuguesa. São Paulo: Editora Avercamp, 2012.
BEAUGRANDE, R. A.; DRESSLER, W. Introduction to Text Linguistics. Longman
Linguistics Library: London and New York, 1996.
BEAUGRANDE, R. A. New foundations for a science of text and discourse: cognition,
communication and freedom of access to knowledge and society. Tradução Provisória do 1º
capítulo (Para efeito de Estudo e Compreensão - Sujeita a Revisão): Profa. Maria Inez Matoso
Silveira. Norwood, New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1997.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 33ª ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1989.
167
BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. 5ª ed. São Paulo: Pontes, 2005. [1966]
BENVENISTE, E. Estruturalismo e linguística. Problemas de Linguístca geral II. Campinas:
Pontes, 1989. [1974]
BONINI, A. A noção de sequência textual na análise pragmático-textual de Jean-Michel
Adam. In: MEURER, J. L.; BONINI. A.; MOTTA-ROTH, D. (orgs). Gêneros: teorias,
métodos, debates. 2ª reimpressão. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
BRONCKART, J.-P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo
sócio-discursivo. Tradução: Ana Raquel Machado e Péricles Cunha. Reimpressão. São Paulo:
EDUC- PUC/SP, 2003.
BROWN, G.; YULE, G. Discourse Analysis. Cambridge: University Press, 1983.
CÂMARA Jr., J. M. Estrutura da língua portuguesa. 44ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
2011. [1970]
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. 12ª ed.
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009.
CASTILHO, A. T. Nova Gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010.
CAVALCANTE, M. M. Dêiticos discursivos – um caso especial de referência indireta?
Comunicação apresentada no 50º Seminário do GEL. São Paulo: USP, 2002.
CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. 2ª ed. São Paulo:
contexto, 2010.
CHAROLLES, M. Associative anaphora and its interpretation. Journal of Pragmatics, v. 31,
p. 311-326, 1999.
CONTE, M.-E. Encapsulamento anafórico. In: CAVALCANTI, M. M.; RODRIGUES, B. B.;
CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, p. 177-190, 2003.
DIK, S. C. The theory of functional grammar. Ed. by Kees Hengeveld. Berlin; New York:
Mouton de Gruyter, 1997.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita. In:
SCHNEUWLY B. & DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização
Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas/SP: EDUC: Mercado de Letras, 2004.
EGGINS, S. An Introduction to systemic functional linguistics. 2ª ed. London: Continuum
International Publishing Group, 2010.
FARACO, C. E.; MOURA, F. M. Língua e Literatura. 11ª ed. São Paulo: Editora Ática,
1988.
FÁVERO, L. L.; KOCH, I. G. V. Linguística textual: introdução. 10ª ed. São Paulo: Cortez,
2012. [1983]
168
FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª ed. São
Paulo: Ática, 1999.
FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: FIORIN, J. L. (org). Introdução à Linguística I:
objetos teóricos. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2004.
FLORES. V. N. A enunciação e os níveis da análise linguística. PUC- RS. Anuais do SITED
(Seminário Internacional de Texto, Enunciação e Discurso). Rio Grande do Sul, 2010.
FLORES, V. N. et al. Enunciação e gramática. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2011.
FRANCIS, G. Rotulação do discurso: um aspecto da coesão lexical de grupos nominais. In:
CAVALCANTI, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São
Paulo: Contexto, 191-228, 2003.
GIVÓN, T. Syntax: A functional-typological introduction. v. 1. Amsterdam; Philadelphia:
John Benjamins, 1984.
GUIMARÃES, E. A articulação do texto. São Paulo: Ática, 2007.
HALLIDAY, M. A. K. Explorations in the functions of language. London: Edward Arnold,
1973.
HALLIDAY, M. A. K. Language as a social semiotic. The Social Interpretation of Language
and Meaning. London: University Park Press, 1978.
HALLIDAY, M. A. K. Spoken and written language. Oxford: University Press, 1989.
HALLIDAY, M. A. K.; MCINTOSH, A.; STREVENS, P. D. The linguistic sciences and
language teaching. London: Longman, 1964.
HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Cohesion in English. London: Longman, 1976.
HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Language, context, and text: aspects of language in a
social-semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989.
HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An introduction to functional
grammar. 3ª ed. London: Hodder Education an hachette uk company, 2004.
HARWEG, R. Pronomina und Textkonstitution. München: Fink, 1968.
HAWKINS, J. A. Definiteness and Indefiniteness: A Study in Reference and Grammaticality
Prediction. London: Humanities Press, 1978.
JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática,
1994.
KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1992.
KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, L. C. Texto e coerência. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
KOCH, I. G. V. Introdução à Linguística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
169
KOCH, I. G. V. A referenciação como construção sociocognitiva: o caso dos rótulos. Belo
Horizonte: Rev. Est. Ling., v.16, n.1, p. 201-213, 2008a.
KOCH. I. G. V. Como se constroem e reconstroem os objetos-de-discurso. Pernambuco:
Revista Investigações, vol. 21, nº 2, p. 99- 114, 2008b.
KOCH, I. G. V. A coesão textual. 22ª ed. São Paulo: Contexto, 2010. [1989]
KOCH, I. G. V. Desvendando Segredos do Texto. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. [2002]
KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. S. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 3ª ed. 7ª
reimpressão. São Paulo: Contexto, 2012.
KOCH, I. G. V.; MARCUSCHI, L. A. Referenciação. In: JUBRAN, C. C. A. S; KOCH, I. G.
V. (orgs). Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Campinas: Editora da
UNICAMP, p. 381-403, 2006.
LAJOLO, M. Como e por que ler o Romance Brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2008.
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas de la vida cotidiana. Tradução de Carmen González
Marín. 8ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2009.
LEITE, M. Q. Metalinguagem e discurso: a configuração do purismo brasileiro. São Paulo:
Humanitas /FFLCH-USP, 1999.
LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999.
LYONS, J. Introdução à Linguística teórica. Trad. Rosa Virgínia Mattos e Silva e Hélio
Pimentel. Revisão. Prof. Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1979.
MACHADO. I. Gêneros discursivos. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed.
São Paulo: Contexto, p. 151-167, 2007.
MARCUSCHI, L. A. Linguística do texto: o que é como se faz. Recife: UFPE, 1983.
MARCUSCHI, L. A. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. Curitiba: Editora da
UFPR. Revista Letras, n. 56, p. 217-258, 2001.
MARCUSCHI, L. A. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna,
2007.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A. P.;
MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. 4ª ed. São Paulo:
Parábola Editorial, 2010.
170
MARTELOTTA, M. E.; PALOMARES, R. Linguística cognitiva. In: MARTELOTTA, M. E.
(org). Manual de Linguística. 1ª ed, 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.
MILNER, J.-C. Reflexões sobre a referência e a correferência. In: CAVALCANTI, M. M.;
RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, p. 85-130,
2003.
MONDADA, L. Verbalisation de l'espace et fabrication du savoir. Approche linguistique de
la construction des objets de discours. Lausanne. Thèse (Docteur en Lettres) - Université de
Lausanne, Faculté de Lettres, 1994.
MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma
abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTI, M. M.; RODRIGUES, B. B.;
CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, p. 17-52, 2003.
MOTTA-ROTH, D.; HERBELE, V. M. O conceito de ―estrutura potencial do gênero‖ de
Ruqayia Hasan. In: MEURER, J. L.; BONINI. A.; MOTTA-ROTH, D. (orgs). Gêneros:
teorias, métodos, debates. 2ª reimpressão. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
NEVES, M. H. M. Guia de usos do português: confrontando regras e usos. São Paulo: Editora
UNESP, 2003.
NEVES, M. H. M. A gramática funcional. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
NEVES, M. H. M. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2007.
NEVES, M. H. M. Os pronomes. In: ILARI, R.; NEVES, M. H. M. (orgs.). Gramática do
português culto falado no Brasil. Classes de palavras e construção. v. 2. Campinas: Ed. da
UNICAMP, p.507-616, 2008.
NEVES, M. H. M. Ensino de língua e vivência de linguagem: temas em confronto. São Paulo:
Contexto, 2010.
NEVES, M. H. M. Gramática de usos do português. 2ª ed. Atualizada. São Paulo: UNESP,
2011. [1999]
NEVES, M. H. M. A gramática revelada em texto. São Paulo: UNESP. No prelo.
NEVES, M. H. M. Referenciação: identificação e descrição de referentes. Não publicado.
OLIVEIRA, M. R. Linguística textual. In: MARTELOTTA, M. E. (org.). Manual de
Linguística. 1ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.
PAREDES SILVA, V. L. Forma e função nos gêneros de discurso. Revista Alfa, 41(nº
especial), p. 79-98, 1997.
POYNTON, C. Language and Gender: making the difference. Vic Geelong: Deakin
University Press, 1985.
RONCARATI, C. As cadeias do texto: construindo sentido. São Paulo: Parábola, 2010.
171
SALOMÃO, M. M. M. Teorias da linguagem: a perspectiva sociocognitiva. In: MIRANDA,
N. S.; SALOMÃO, M. M. M. (orgs.). Construções do Português do Brasil: da gramática ao
discurso. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.
SCHIFFRIN, D. Approaches to discourse. Cambridge: Blackwell, 1994.
SCHNEUWLY, B. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas,
In: SCHNEUWLY B. & DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e
organização Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas/SP: EDUC: Mercado de Letras,
2004.
SILVA, J. Q. G. Tipologias textuais e a produção de textos na escola. Dissertação (Mestrado
em Educação). Minas Gerais / UFMG, 1995.
TOOLE, J. The effect of genre on referential choice. In: GUNDEL, J. K.; FRETHEIM, T.
Reference, and referent acessibility. Amsterdam/Filadélfia: John Benjamins, 1996.
TRAVAGLIA, L. C. Um estudo textual-discursivo do verbo no português. Tese (Doutorado
em Linguística). Campinas, SP: IEL / UNICAMP, 1991.
TRAVAGLIA, L. C. Tipologia textual e a coesão/coerência no texto oral: transições
tipológicas. Uberlândia: Letras & Letras. , v.8, p.37 - 56, 1992.
TRAVAGLIA, L. C. Tipos, gêneros e subtipos textuais e o ensino de língua materna. In:
BASTOS, N. M. O. B. (org.). Língua Portuguesa: uma visão em mosaico. São Paulo: EDUC /
IP-PUC-SP, p. 201-214, 2002.
TRAVAGLIA, L. C. Comunidades discursivas, gêneros e ensino. In: BASTOS. N. M. O. B.
(org.). Língua Portuguesa: cultura e identidade nacional. São Paulo: EDUC / IP-PUC, p.
147-155, 2010.
VAN DIJK, T. A. Cognição, discurso e interação. In: KOCH, I. G. V. (org.). 2ª ed. 1ª
reimpressão. São Paulo: Contexto, 1999.
VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução de Rodolfo
Ilari. São Paulo: Contexto, 2012.
VASCONCELOS, S. G. T. A Formação do Romance Brasileiro: 1808-1860 (vertentes
inglesas). Site Memória de Leitura Unicamp, www.unicamp.br/ielmemoria, 2002.
172
Córpus de análise
ALENCAR, J. Senhora. 13ª ed. São Paulo: Ática, 1985. [1875]
ANDRADE, M. Amar, verbo intransitivo. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Agir, 2008. [1927]
ANDRADE, O. Alma. In: Os condenados. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira S. A., 1978. [1922]
AZEVEDO, A. O Cortiço. 19ª ed. São Paulo: Ática, 1988. [1890]
GUIMARÃES, B. O seminarista. 15ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1990. [1872]
PIÑON, N. Vozes do deserto. 5º ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
RIBEIRO, J. A carne. 11ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. [1888]
TEZZA, C. O filho eterno. 9ª ed.Rio de Janeiro: Record, 2010.