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Autor de Cinco dias em Londres e 0 duelo: Hiller x Churchill O FIM DE I UMA ERA- < I | Jorge ZAHAR Editor

o Fim de Uma Era, John Lukacs

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Autor de Cinco dias em Londres e 0 duelo: Hiller x Churchill

O F IM DE I

UMA ERA-< I

|

Jorge ZAHAR Editor

o próprio pensar", diz John Lukacs neste ensaio radical sobre a natureza dos conhecimentos históricos e cien­tíficos nos últimos quinhentos anos. E diagnostica: estamos no fim de uma era, na qual o projeto iluminista de predomínio da razão correspondeu, na verdade, à busca de determinações materiais, e portanto inumanas, do mundo real.

Sem desmerecer as contribuições de grandes pensadores da era moderna — como Darwin, Marx e Einstein — para a definição do continuum histó­rico que fundamenta o pensamento ocidental, Lukacs propõe aqui uma nova epistemologia, iluminada pe­lo princípio da incerteza, do físico Heisenberg: a própria observação, no processo de conhecimento, interfere e modifica o observado. Assim, no cen­tro de atenção da nova era que se inicia, deve estar a mente humana, produtora tanto dos conceitos de que nos valemos para interpretar a reali­dade quanto dessa própria realidade - historicamente construída e portan­to cambiante.

!% Não há ciência separada do cientista, J^T não há saber livre da imaginação hu­

mana. Essa afirmação — que, a seu modo, se encontra em todos os livros

tamente com o apagar das t a rápida aproximação das [

: escrevi este livro.

Imentos

vez menos amigos, e eles se >assar dos anos. Philip Bell, iw Myers: sobrecarreguei-os terminado capítulo das pri->eus comentários foram de le um outro velho amigo, o )epois, a íntegra do manus-minha mulher, Stephanie,

críticas e lembretes pacien­tam essenciais, heedlove, bibliotecário de lade La Salle, que, de um ros e artigos de origens e lo­tos; e à Dra. Helen Hayes, le uma cópia limpa de um so e rabiscado.

1999-2001

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U M

O fim de uma era

"Uma civilização desaparece com o tipo de homem,

o tipo de humanidade que proveio dela."

Georges Bernanos

Convicções: uma mensagem pessoal • A evolução do "moderno" • Principais aspectos da Era Moderna •

Dualidades contraditórias • "Pós-modemo" • A necessidade de repensar a ideia atual de "Progresso"

Há muito convenci-me de que nós, do Ocidente, estamos viven­do perto do fim de toda uma era, a era que teve início há cerca de quinhentos anos. Isto é um preconceito (no sentido literal da pa­lavra: um pré-conceito), não uma preocupação' — razão por que devo resumir, da maneira mais breve possível, sua evolução.

Eu sabia, quando jovem, que "o Ocidente" era melhor do que "o Oriente" — em especial, melhor do que a Rússia e o co­munismo. Tinha lido Spengler, mas acreditava que a vitória an-glo-americana sobre o Terceiro Reich (e o Japão) era, ao menos em alguns aspectos, uma refutação da categórica proposição ale­mã do inevitável e iminente Declínio do Ocidente. No entanto... a vitória de Churchill e Roosevelt teve de ser compartilhada com Stálin. O resultado, depois de 1945, foi minha decisão precoce de fugir de uma Hungria ainda não totalmente sovietizada para os Estados Unidos, aos 22 anos de idade. E, vinte e poucos anos depois, aos 45, estava convencido de que toda a Era Moderna es­tava desmoronando rapidamente. O resultado foi um livrinho in-

' O preconceito é uma iluminação mental (não necessariamente vantajosa); a preocupação é um fardo mental. (Segundo Tocqueville: "Ir contra uma opi­nião comum, por acreditarmos que é falsa, é nobre e virtuoso; mas desprezar um preconceito, apenas por ele nos ser inconveniente, é quase tão perigoso para a moral quanto abandonar um princípio verdadeiro pela mesma razão.")

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titulado The Passing of the Modem Age, publicado em 1970. Durante os trinta anos seguintes, afirmações sobre o fim de uma era se revelaram em muitas das dezenas de livros e outros ensaios e artigos que escrevi sobre temas um tanto diversos. Algo me im­pelia a fazer essas afirmações. Agora percebo que elas surgiam quase sempre em parágrafos situados no final ou muito próximo ao final de meus diferentes livros.

Mas há uma dualidade em toda vida humana, em todo cará-ter humano. Não sou um cínico nem um pessimista categórico. Em minha auto-história (não se trata realmente de uma autobio­grafia), doze anos atrás, escrevi — e, vejo agora, de novo na últi­ma página: "Graças à bondade de Deus, levei uma vida infeliz feliz, o que é preferível a uma vida feliz infeliz." Escrevi também: "Portanto, viver durante o declínio do Ocidente — e ter plena consciência disso — não é assim tão desesperançado e terrível." Nos dez anos que se seguiram, escrevi mais livros; e, desde o co­lapso do comunismo (que eu havia pressentido décadas antes), tive a inesperada experiência de ver meus livros, um após outro, serem traduzidos, publicados e comprados por muitos leitores de meu país natal. Todavia, nos últimos dez anos (não de fin-de-siècle, mas de fin d'une ère), minha convicção se firmou ainda mais, tornando-se uma crença incontestável em que não só a era inteira e a civilização a que pertenci estavam desaparecendo, mas em que estamos vivendo — se é que já não o ultrapassamos — seu próprio fim.

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Escrevo sobre a chamada Era Moderna, expressão familiar que, não obstante, é muito inexata.2 Para começar, a divisão cronoló-

2 Na Inglaterra, durante muito tempo, "história moderna" significou "não-an-tiga". Na Alemanha, a Era Moderna não tem esse adjetivo: é "Neuzeit", literal­mente, "Novo Tempo". Isso também ocorre em algumas outras línguas.

U hm de uma era 13

gica em Antigo-Medieval-Moderno não é aplicável a países e ci­vilizações fora do mundo ocidental. Era incorrera ao surgir ^ originalmente na consciência e no uso de nossos ancestrais e, des- ^jf^ ^ de então, tornou-se cada vez menos precisa. A palavra "moderno" ( Ar apareceu pela primeira vez na língua inglesa há uns quatrocentos ( , J

anos, por volta de 1580. Ã princípio, seu sentido era próximo do modemus original do latim: "de hoje", "atual"^ (Shakespeare ' usou-a algumas vezes, com a acepção de "o que é comum agora".) Aos poucos, a importância de seu sentido avançou um pouco, pas­sando a incluir o significado de "novo", ou seja, algo diferente do "antigo". No fim do século XVII, no inglês, bem como em algu­mas outras línguas da Europa Ocidental, outro sentido correlato tornou-se Corrente entre as pessoas cultas, um conceito que foi um dos resultados do surgimento da consciência histórica. Tratou-se do reconhecimento de que tinha havido três eras históricas: a Anti­ga, a Média e, agora, a Moderna — daí a "medieval" como aquela que esteve no meio, entre a Antiga e a Moderna.

Nesse ponto houve outra mudança de consciência — a ri­gor, de pensamento —, a percepção de que essa era moderna po­deria durar muito tempo; talvez para sempre, na verdade. Isso raramente se expressava com clareza, mas estava presente; existia (como existe ainda hoje) na impossibilidade ou, quem sabe, na má vontade de se contemplar a ideia de que, como outras eras da ,0-' humanidade, também a Era Moderna poderia chegar ou chega- ( ria ao fim. Existia (como existe ainda hoje) na mente daqueles w t/1 ç que, de modo geral, equiparavam a Era Moderna a uma era de ^ Razão crescente — em contraste com a Idade das Trevas e/ou » Idade Média, Eras da Fé. Um exemplo clássico desse otimismo ^

> r x & / (não insensato, na época) encontra-se numa passagem de Gib- ^ bon, que, numa digressão imponente3 de seu majestoso tema, o

'Sheridan sobre Gibbon: "Luminoso? Eu quis dizer volumoso." [O trocadilho fica mais evidente entre os termos ingleses, luminom e voluminous. (N.T.)]

Declínio e queda do Império Romano, escreveu, por volta de 1776: "Pode-se presumir com segurança que nenhum povo, a menos que a face da natureza se modifique, recairá em seu bar­barismo original. ... Portanto, podemos aquiescer na agradável conclusão de que cada era do mundo aumentou e continua a au­mentar a verdadeira riqueza, a felicidade, o conhecimento e, tal­vez, a virtude da raça humana."

Gibbon morreu cinco anos depois da Revolução Francesa, em 1794, o ano do Terror. Não foi poupado da visão do barbaris­mo despontando em meio à civilização da Europa Ocidental, proveniente de seu interior. E não teceu comentários a respei­to, coisa por que não podemos censurá-lo; mas, neste ponto, convém considerarmos um pouco as palavras — ou os significa­dos — de bárbaro/barbarismo, primitivo/primitivismo, civiliza­ção/cultura. O significado da primeira remonta aos gregos, mas as duas últimas são produtos da Era Moderna. Para os gregos, "bárbaras" eram, de modo geral, as pessoas não-gregas — ou seja, as que estavam fora e a lém de sua civilização. Mas o nosso uso de "bárbaro" ou "barbarismo" dirige-se também — senão quase sempre — a pessoas, comportamentos e atos que se dão entre nós, a pessoas "incivilizadas". Esse significado provém não ape­nas da experiência, mas da consciência histórica que surgiu no começo da Era Moderna, da qual um primeiro exemplo é o signi­ficado de "primitivo". Esse termo, manifestado no inglês por vol­ta de 1540, sugeria, inicialmente, pessoas que ainda estavam "atrás" de nós, isto é, atrás e não à frente, atrás de nós no tempo, e não no espaço: em outras palavras, "atrasadas". Esse foi outro exemplo do sentido então cambiante de Progresso (palavra que, cerca de cem anos antes, significara apenas avanço no espaço, ou seja, um mover-se adiante). Depois de 1600, "civilização" ha-via-se transformado em antônimo de "barbarismo" e "primitivis­mo" (do Dicionário Oxford, de 1601, "civilizar: retirar da rudeza, educar para a civilidade" — mais um emprego de um novo signi­ficado de "progresso"). Muito tempo depois, durante a segunda

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metade do século XIX e no século XX, surgiu um novo sentido de "cultura" (ao contrário de "civil", o sentido atual de "cultura" era desconhecido dos gregos e romanos); "civilizado" e "culto" co­meçaram a se superpor e, vez por outra, a se confundir. Alguns pensadores (principalmente os alemães e, mais tarde, sobretudo os intelectuais norte-americanos) garantiriam que a Cultura é de uma ordem superior, mais importante do que a Civil ização — o ^ que é uma afirmação muito questionável, a esta altura. (V^^AA

Durante o século XIX, o emprego de "moderno" foi menos P ^ corrente, ao contrário da imagem otimista de uma Era Moderna çjjò ^tiÀ em crescimento que, possivelmente, duraria para sempre. O que çjty houve foi que a concepção e a ideia de Progresso tornaram-se ([fi" mais fortes do que a concepção e a ideia de uma Idade da Razão. Evidentemente, isso ocorreu sobretudo graças à constante proli­feração das invenções e produções da ciência aplicada. Por con­seguinte, devemos reconhecer que o aparecimento da teoria evolutiva da humanidade era previsível por volta de 1860. Dar­win não foi um pensador muito original, mas, antes, um homem de sua época. Uma das consequências de sua teoria foi, é claro, fazer recuar extensamente a origem da humanidade até centenas de milhares (e, já hoje, a mais de um milhão) de anos atrás, até uma era "pré-histórica". Essa tendência, talvez de modo não muito consciente, coadunou-se com uma visão que se estendia para um futuro perene ou talvez eterno da humanidade e, indire-tamente, para uma Era Moderna perene, talvez eterna.

No fim do século XIX e começo do século XX, aumentou o número de pensadores que, direta ou indiretamente, começa­ram a questionar esse tipo de otimismo progressista. Eles tinham tido precursores, como o napolitano Vico, dois séculos antes, mas agora tratava-se de escritores diferentes, como Nietzsche, Va-léry ou Spengler, que tentaram, cada qual à sua maneira, lem­brar a seus leitores os sintomas do declínio e da falibilidade última da civilização ocidental — de cuja história a Era Moder-

na fazia parte, é claro. Finalmente, durante o século XX, o atrati-vo do culto da Razão, dos empregos do Progresso e do próprio uso de "moderno" começou a diminuir, não só entre os intelec­tuais, mas entre um número cada vez maior de pessoas. No fim do século surgiu a palavra "pós-moderno", principalmente nas esferas abstratas da crítica literária e artística. (Terei de voltar a uma breve discussão dessa designação atrasada, confusa e impre­cisa, no fim deste capítulo.)

Enquanto isso, há sintomas significativos da evolução de uma consciência histórica sem precedentes. Graças às realiza­ções de grandes historiadores, adquirimos um belo conhecimen­to do que aconteceu — e, o que talvez seja mais importante, de como se vivia e pensava — durante o declínio da Antiguidade e da Idade Média. Ao se aproximar o fim do Império Romano ou durante o declínio da Idade Média, as pessoas sabiam que havia coisas inusitadas acontecendo com elas; muitas conheciam e compreendiam a diferença muitas vezes preocupante de sua si­tuação, quando comparada à vida de seus pais ou outros antepas­sados, mas raramente pensavam sob o aspecto do fim de toda uma era. Todavia, dizer que parecemos estar vivendo perto ou no fim de uma era já não é algo que gere uma reação, necessaria­mente, de incompreensão, nem é como se se tratasse de algo inesperado. Pessoas comuns, com pouco conhecimento da histó­ria, entendem instantaneamente quando alguém diz, referin-do-se a determinado indício de podridão moral: "É como nos derradeiros tempos do Império Romano." Esse tipo de consciên­cia da história, surpreendentemente difundido (embora, é claro, amiúde impreciso e vago), é um sintoma significativo. Entretan­to, todos esses tipos de reconhecimento histórico geral têm de ser aguçados pela compreensão do término de uma era muito parti­cular: a que teve início há cerca de quinhentos anos.

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Assim, devo agora passar da evolução^ (e invqlução) da palavra "moderno" para a da própria Era Moderna. Quais foram seus tra­ços principais?

Antes de mais nada, ela foi a Era Europeia. Há três conjuntos de razões para isso: geográficas, etimológicas e históricas. Até uns quinhentos anos atrás, o palco principal da história era o Mediter­râneo e os atores principais eram as pessoas que viviam em suas regiões costeiras ou perto delas, com poucas exceções importan­tes. Com a descoberta das Américas, das índias Orientais e da for­ma do próprio globo, tudo isso mudou. Começou a Era Europeia da história mundial.

No entanto, o próprio adjetivo e designação "europeu" foi algo inteiramente novo nessa época, há cinco séculos. Fazia mui­to tempo que existia o substantivo "Europa", embora não fosse usado com frequência. Mas "europeu", designando o habitante de um certo continente, era novo. (Ao que parece, um dos pri­meiros a inventá-lo e usá-lo foi Pio I I , Enea Silvio Piccolomini, um papa renascentista, por volta de 1470.) Seja como for, até uns quinhentos anos atrás, "cristão", "europeu" e "branco" eram qua­se sinónimos, quase coextensivos. Poucos eram os habitantes do continente que negavam ser cristãos. (As exceções eram os turcos dos Bálcãs e uma pequena parcela dispersa de judeus.) Fora da Europa havia pouquíssimos cristãos e poucos povos de raça bran­ca, ao mesmo tempo que raros eram os habitantes não-brancos do continente.

Depois de 1492, a "Europa" expandiu-se de diversas manei­ras. Continentes inteiros, recém-descobertos (as Américas, a Aus­trália), assim como a extremidade meridional da Africa, foram colonizados por brancos e cristianizados. As terras conquistadas ou colonizadas pelos colonos logo se tornaram parte dos im­périos das metrópoles; postos e colónias das nações europeias sur­giram no mundo inteiro. Por fim, as instituições, costumes, indústrias, leis, invenções e construções da Europa espalha-

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ram-se por quase todo o globo, abarcando também povos não-conquistados pelos europeus. Entretanto, depois das duas guer­ras mundiais do século XX, durante as quais os povos da Europa agrediram intensamente uns aos outros e a si mesmos, quase tudo isso chegou ao fim. Não houve mais novos povoamentos por europeus (e brancos) em outros continentes. Ao contrário: os eu­ropeus desistiram de seus impérios coloniais e seus colonos saí­ram de suas pátrias asiáticas ou africanas. (Ainda em 1914, todo o continente africano — com exceção de dois Estados, a Libéria e a Abissínia — pertencia ou era governado por um império colo­nial europeu. Oitenta anos depois, não havia um único Estado europeu, ou governado por brancos, em todo o continente.) To­davia, as igrejas cristãs da África, da Ásia e da Oceania parecem ter resistido ao refluxo dos brancos, ao menos em muitos lugares. O que também resistiu — a rigor, disseminou-se pelo globo afora — foram a imitação e a adaptação de instituições, indústrias, cos­tumes, formas de arte e expressão e leis que eram originalmente europeus. Mas a Era Europeia tinha chegado ao fim.

Esse fim chegara, no máximo, em 1945 (se é que isso já não havia acontecido em 1917), quando as duas superpotências mun­diais (reunindo-se no centro da Europa conquistada) eram os Estados Unidos e a Rússia. Não restava nenhuma potência euro­peia que lhes fosse comparável, nem mesmo a Grã-Bretanha. Isso levanta uma questão terminológica: eram (são) os Estados

N, Unidos europeus? Sim e não. Sim, no sentido de que sua origem, j \ suas leis e suas instituições — e, durante aproximadamente cem

/\, a maioria de seus habitantes — eram de procedência an-^ glo-saxônico-céltica. Não, uma vez que sua população vem-se

AIP ( tornando cada vez menos europeia. E também os Estados Uni--x dos são abalados pelo desmoronamento das instituições e das ^ ideias da Era Moderna que geraram o país em seus primórdios —

V de fato, provavelmente mais afetados do que muitos dos Estados e povos da Europa. A composição do povo norte-americano vem

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sofrendo mudanças rápidas e drásticas, donde é previsível que, mais cedo ou mais tarde, os brancos na América venham a ser £ uma minoria. Mais importante ainda é a situação de os Estados Unidos da América terem sido fruto da Era Moderna, nascidos '/y^^ no meio dela — em seu ponto alto, na verdade —, e de suas t r ^ j ideias e instituições haverem resultado predominantemente {em-rzofltfA/A bora não completamente) do Iluminismo setecentista.

Arrolar os indícios do fim da Era Moderna preencheria um livro enorme. Aqui, devo tentar resumir — ou melhor, sugerir — al­guns deles.

A disseminação progressiva da democracia marcou a história da humanidade, por certo nos últimos duzentos anos, porém, em muitos aspectos, ao longo de toda a Era Moderna. Esse progresso foi em geral gradativo, às vezes revolucionário, e nem sempre cla­ramente visível nos acontecimentos mundiais. Quanto tempo durará essa era democrática, ninguém sabe dizer. O que real­mente significa "democracia" é outra pergunta difícil. Mas há uma reflexão mais ampla. Estamos atravessando uma das maio-res mudanças em toda a história da humanidade, pois, até época ;ç{Ài<^ ^ relativamente recente, a história era basicamente (embora nunca exclusivamente) "feita" por minorias, ao passo que agora vem ^ sendo mais e mais "feita" por maiorias. (Na realidade, não é pro- ' priamente feita pelas maiorias, mas em nome delas.) Como quer ^ 1

que seja, esta se tornou a era da soberania popular (ao menos du- fGÍ~f , r rante algum tempo). A história passou da era aristocrática para a^fiS^ era democrática — uma transição ocorrida sobretudo durante a Era Moderna e que pode transcender até mesmo o grande esque­ma (ocidental) reconhecido, de idade Antiga, Média e Moderna.

Essa disseminação da democracia foi a visão de Aléxis de Tocqueville; encontra-se em todos os seus escritos, mais clara­mente no segundo volume de A democracia na América, onde

U tim de uma era

seu próprio método de descrição consistiu em justapor e contras­tar sumariamente o modo como a sociedade, a política, a arte e, mais até, os costumes e a conduta formaram-se de maneiras dife­rentes nas eras aristocráticas, antes do surgimento dos tempos democráticos. E, nessa visão muito ampla, havia uma visão histo­ricamente mais limitada — o reconhecimento de Tocqueville, há mais de um século, de que esse tinha sido e continuava a ser um processo gradual: com o declínio da aristocracia e a ascensão da democracia, ainda era necessária a existência de algum tipo de ordem aristocrática, para manter algumas das liberdades de sociedades cada vez mais democráticas. (Essa era a principal ra­zão de seu respeito — não ilimitado, é claro — pela Inglaterra

^ívitoriana, ou mesmo de sua admiração pelos advogados norte-^americanos, a quem certa vez descreveu como uma espécie de

1 " ,~ aristocracia norte-americana.) Decorridos quase 175 anos, no •í 3 | fim da Era Moderna, quase tudo isso passou. Mesmo assim, a Era

/,\/' ^jP Moderna foi marcada pela coexistência entre aristocracia e de-, ; v mocracia, coisa que agora acabou.

,A!'" A "aristocracia" não deve ser categoricamente definida rt/ ; °

(j como a dominação por reis e/ou nobres. "Democracia" também significa algo mais do que governo do "povo", mais, aliás, do que a mera soberania popular. Especialmente na Europa, entretanto, entre as classes mais altas e mais baixas (ou entre dominantes e dominados), houve uma outra classe bastante particular, situada no meio: a chamada classe ou classes burguesas, cuja origem e influências iniciais remontam a muito antes do início da Era Mo­derna, e cuja ascensão marcou grande parte desta, bem como de suas realizações. Não vamos aqui discorrer sobre a origem ou o significado dos termos "burguês" e "burguesia", exceto para dizer que, talvez na maioria das línguas europeias, eles estiveram vin­culados à ascensão e à importância das cidades. Este também não é o lugar para nos estendermos longamente sobre a diferen­ça, amiúde obscura, entre "burguesia" e "classe média". Há de

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ser suficiente assinalar que, no fim do século XX, a própria ex­pressão "classe média" havia perdido muito de seu sentido (se não todo), em virtude de seu enorme crescimento inflacionário, talvez principalmente nos Estados Unidos, mas também em ou­tras nações em que uma classe alta governante, quer na política, quer na sociedade, praticamente deixou de existir. Tal como "moderno", "classe média" já não é uma categoria razoavelmen­te exata.4 Ao mesmo tempo, em retrospectiva, "burguês" conti­nua a ser uma realidade histórica. A existência de uma burguesia, especialmente na Europa Ocidental e nos países de língua ingle­sa, não foi apenas um fenómeno sociológico (ou um fenómeno simples, já que os burgueses imitaram e se misturaram de muitas maneiras com as aristocracias remanescentes). Foi marcada por formas reconhecíveis de comportamento e de ideias. Devemos honrar suas realizações — não só o governo constitucional e suas tentativas de equilibrar igualdade e liberdade, mas o fato de que a maioria das grandes ideias e as maiores criações artísticas dos últi­mos quinhentos anos foram fruto de pessoas de origem burguesa e status burguês. Razão por que é pelo menos possível e, a meu £'* ver, sensato, dar à Era Moderna (ou, no mínimo, a seus doissécu- ,A ? ? l Í E ^ g r i o r e s a i 9 ~Í 4 ) u m qualificador ou adjetivo eloquente: a ^ Era Burguesa. gf<- (/

^ 7

A Era Burguesa foi a Era do Estado, a Era do Dinheiro, a Era da ~ Indústria, a Éra das Cidades, a Era da Privacidade, a Era da Famí- ^ lia, a Era da Educação, a Era do Livro, a Era da Representação, a vj\k

4 Na outra ponta da escala social, em especial nos Estados Unidos, a categoria de uma "classe trabalhadora" distinta da "classe média" praticamente também deixou de existir. O que não deixou de existir é uma espécie de proletariado — muitas vezes, um proletariado predominantemente desempregado. (Como dis­se Jesus: "Os pobres sempre estarão entre vós.") E agora temos os Novos Pobres.

u rim de uma era

Era da Ciência e a era da evolução de uma consciência histórica. Com exceção das duas últimas, todas essas primazias estão enfra­quecendo e decaindo rapidamente.

< ^ \ ^ O Estado moderno foi fruto da Era Moderna. Sua criação DO ocorreu junto com a do ideal de civilização: um avanço em rela­

ção ao barbarismo. Foi uma resposta aos conflitos de diversas aris­tocracias, durante o século XV, e às guerras religiosas ainda mais lesivàs^dõTéculo XVI, ou um resultado de todos eles. A conse­quência foi o Estado forte, centralizado e soberano na maior par­te da Europa Ocidental e na Inglaterra, criado por monarcas absolutistas ou quase absolutistas cujo governo era apreciado es­pecialmente pelas classes burguesas, uma vez que assegurava sua relativa segurança. Assim, o absolutismo monárquico e centrali­zado, sobretudo em seus primórdios, foi um fenómeno antiaristo-crático e antifeudal — até certo ponto, até democrático. Aos poucos, o componente democrático — nesse caso, a burguesia — voltou-se contra o poder da realeza e da aristocracia: na Ingla­terra, no século XVII ; na França, na segunda metade do século XVIII . Entrementes, como Tocqueville foi o primeiro a assinalar, o poder e a autoridade do Estado soberano e centralizado conti­nuaram a se fortalecer, independentemente de sua soberania ser representada por um monarca ou por um governo burguês. E, graças à democracia em crescimento, a autoridade do Estado aumentou ainda mais no século XX, pretendendo garantir o bem-estar material da maior parte de seus habitantes. A existên­cia de ditaduras "totalitaristas" no século XX obscureceu essa questão. Seus adversários temeram, justificadamente, o poder i l i­mitado e amiúde brutal do Estado Totalitário. No entanto, Hitler e Mussolini não depararam com a oposição da grande maioria de seus súditos: em suma, foram representantes da soberania popu­lar. O próprio Hitler disse que o conceito de Estado estava ultra­passado: ele era líder de um povo, de um Volk, o qual, em suas palavras, tinha primazia sobre o Estado.

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Na segunda metade do século XX, o princípio quase univer­sal de governo era o da soberania popular, e não do Estado; na verdade, o poder e a autoridade do Estado, assim como o respeito por ele, entraram em declínio. O exemplo mais evidente disso é a Rússia, onde, depois da queda da União Soviética, o problema não foi mais o poder esmagador do Estado, mas, ao contrário, sua fraqueza. Também em outros lugares teve início a desintegração de Estados inteiros, da qual a "privatização" de algumas antigas funções e serviços estatais, ou a formação de instituições suprana­cionais como a União Europeia, são apenas aspectos superficiais — talvez até transitórios —, bem como o visível enfraquecimento da autoridade do Estado. O ressentimento popular contra o "go­verno" só faz mascarar a essência desse fenómeno, do qual os Estados Unidos não estão isentos, de modo algum. Exemplo disso é o aumento da criminalidade, alguns de cujos sintomas su­gerem um novo tipo de feudalismo. Outro exemplo mais expres­sivo é que, embora os adversários do "governo forte" sejam as próprias pessoas que apoiam todos os gastos com a "defesa" e a sua criação (como se as forças armadas não fizessem parte do "go­verno"), sucessivas administrações dos Estados Unidos têm-se mostrado sem capacidade e disposição de proteger as próprias fronteiras do Estado norte-americano, pelas.quais entram mi- (] > lhões de imigrantes ilegais aos borbotões. fáj^ .nyJ

O dinheiro, sob uma forma ou outra, sempre existiu, e ele o i ^ tem sua história, como tudo o mais. A Era Moderna tem sido a era do dinheiro — de um modo crescente, que talvez tenha atin­gido seu auge por volta de 1900. Durante a Idade Média, havia alguns bens materiais, muitas vezes terras, que o dinheiro não po­dia comprar; em 1900, porém, não havia praticamente nada de material que o dinheiro não pudesse adquirir, enquanto o pa-pel-moeda podia ser trocado por seu equivalente em prata ou ouro. Durante o século XX, no entanto, o valor do dinheiro dimi­nuiu rapidamente. Um dos sintomas (e causas) disso foi a infla-

I 10' O Fim de u m a era

^ b Ç^°- Quando há uma quantidade cada vez maior de algo, seu jj l7y ^ valor torna-se cada vez menor; e a democracia, provavelmente, é

^ , 1 ^ , inseparável da inflação. Por isso, a ascensão e queda cíclicas do \r do dinheiro praticamente deixaram de existir. O fato de a

inflação das palavras levar à inflação monetária é um fenómeno importante, pois o valor de qualquer coisa material é não apenas condicionado (como alguns economistas viram-se finalmente forçados a admitir), mas inteiramente determinado pelo que as pessoas pensam que ele é; e as pessoas pensam com palavras. A inflação monetária acompanhou o ritmo da ascensão de uma prosperidade geral e sem precedentes históricos, mas essa prospe-ridade pouco teve a ver com o que ainda é chamado de "capitalis­mo", significando este a conservação e a poupança do dinheiro, em vez de seu dispêndio.

No fim do século XX, a inflação de ações e outros instru-jjft mentos financeiros tornou-se ainda mais rápida do que a inflação

çO' monetária — fenómeno em cuja base encontra-se um outro, que é a natureza cada vez mais abstraía do dinheiro, decorrente, em

Ç1- ft» parte, da crescente dependência de transações inteiramente ele-A\\s e de seus registros. Os cartões de crédito são apenas um

exemplo superficial, embora espantosamente difundido, desse ^ tato novo, num mundo em que a renda é mais importante do que

'" jjs. çd o capital, o lucro rápido, mais do que a acumulação de bens, e a (Vb^v>.l' ^('^potencialidade, mais do que a efetividade — ou seja, o crédito é 0 0 ^mais importante do que a posse real. O que vem acontecendo

/JD1 , I^SL com o dinheiro, é claro, é apenas parte integrante de um fenóme­no muito mais profundo: a intromissão cada vez maior da mente na matéria. O fato de isso vir ocorrendo numa época em que as fi­losofias do materialismo ainda são predominantes só faz refletir a confusão mental de nossa época. Seja como for, o fim da Era

^ v Moderna é também o fim da Era do Dinheiro — pelo menos, tal 1 ,i como nossos antepassados o conheceram.

A Era Moderna foi marcada, de um modo geral, por um au­mento do número de pessoas e por um aumento da produção de

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bens e de sua disponibilidade. Isso resultou, é claro, do progresso na indústria e na agricultura.5 Vivemos hoje numa era mecaniza­da, mas devemos reconhecer que a Era da Indústria teve uma vida singularmente curta. Foi há menos de 130 anos (em 1874) que a maioria das pessoas da Inglaterra estava empregada no tra- / balho industrial, e não na produção agrícola. Nos Estados Uni—' dos as pessoas acompanharam esse padrão. Mas, em 1956, a f O ^ . maioria da população norte-americana já não se ocupava com

— r r"—% — r - 1 " " r A nenhum tipo de produção material, fosse ela industrial ou agrí- s

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cola. Estava empregada no governo e no setor de serviços. Essa AA/&0

proporção vem crescendo com rapidez desde então, e isso ocmxç.^ff0

em todos os Estados "avançados" do mundo. (Pode-se dizer que a era da democracia involuiu, na realidade, para a era da burocra cia, e não apenas no "governo", mas também em toda sorte das N ^ a ^ 0

chamadas instituições "privadas".) E claro que, no mundo intei-ro, a indústria pode hoje produzir mais e mais bens (com atribu­tos variáveis de durabilidade), empregando um número cada vez menor de pessoas em sua produção em massa. Considere-se tam­bém que a propaganda e o transporte desses bens têm hoje um custo mais alto (e envolvem mais pessoas) do que sua produção, ou que existem países inteiros (e alguns estados da federação nor­te-americana) cuja principal "indústria" é a atração e a prestação de serviços a turistas. Pode-se dizer que a produção do consumo j^q tornou-se mais importante que a de bens.6 Enquanto, no passa

•r li

do , um industrial respeitável era a lguém que lograva êxito em ge-

5 E do comércio, evidentemente. Foi o comércio que levou a uma outra carac­terística da Era Moderna: a predominância do poderio naval. O motor de com­bustão interna modificou tudo isso; durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a importância decisiva do poderio terrestre retornou, pelo menos no teatro de guerra europeu.

6 Disse Evelyn Waugh: "Numa democracia, os homens não buscam a autorida­de para poderem impor uma política. Buscam uma política para poderem im­por a autoridade."

26 O fim de uma era

j Cr rar produção, hoje ele é alguém que gera consumo.7 Ainda mais ^ çjijr revelador é que, em muitos casos, a ideia do uso e o uso — tem-. \o — dos bens torna-se mais importante do que sua posse

efetiva. rtí

A Era Moderna foi a era da cidade. A palavra "burguês" está & Js, ligada ao vocábulo que designa "cidade" em quase todas as lín-

, guas europeias (donde deriva a palavra "cidadão" — de uma for-ma incorreta, uma vez que esta úit ima categoriza a relação de um indivíduo não com uma cidade, mas com um Estado). A civi­lização burguesa foi predominantemente urbana, ainda que não em caráter exclusivo. Os adjetivos "urbano" e "refinado"* adqui­riram sentidos adicionais durante a Era Moderna. Depois disso deu-se a grande ascensão das cidades europeias e norte-ame-ricanas. Em 1850, Londres e Paris tinham populações de mais de um milhão de habitantes; em 1900, havia mais dessas cidades na Europa e três nos Estados Unidos. Em parte, isso foi resultado da industrialização, em função da qual milhões de homens e mu­lheres deixaram o campo buscando uma nova vida e um novo trabalho (ainda que, muitas vezes, terrivelmente severo e miserá­vel) nas cidades. Porém, houve mais: a civilização, a cultura e as amenidades da vida urbana atraíram homens e mulheres de muitos tipos. Depois de 1950, teve início o declínio das cidades. Quase todas as grandes cidades europeias e norte-americanas co­meçaram a perder população. Em poucas décadas, cerca de 35

'Talvez isso corresponda à evolução (ou involução) da democracia republica­na. A palavra "democracia" não apareceu na Declaração de Independência nem na Constituição dos Estados Unidos. Entretanto, em 1828, as eleições já se haviam transformado em concursos de popularidade. Não era isso que muitos Fundadores haviam desejado, rnas aconteceu. Por outro lado, menos de cem anos depois, veio uma fase muito mais /anie/irávei: a degeneração dos concursos de popularidade em concursos de publicidade.

"Também "cosmopolita", "polido", "cortês", "civilizado" e similares, termos correspondentes ao urbane da língua inglesa. ( N T . )

O fim de uma era 27

cidades da Ásia, da Africa e da América do Sul, ou mais, ultrapas- u ( o x

saram-nas em tamanho e em número de habitantes. As popula-ções antes cosmopolitas começaram a se mudar das cidades para , fy) os jmbúrbios. Estes, originalmente planejados para funcionar como pontes entre a vida urbana e a rural, passaram a se espalhar e a devorar a cidade e_o campo. Uma das razões disso foi a ubiqui­dade do automóvel particular. Outra foi o surgimento de novas populações, para as quais a vizinhança civilizada e as ofertas cul­turais das cidades significavam pouco ou nada. No fim do século XX, desapareceu a associação entre urbanidade e vida citadina: a presença de uma classe média refinada nas cidades perdeu in­fluência e importância.

Á E ^ a J ^ d ^ r n a descobriu as virtudes — e prazeres — da pri- ^ 7! A

vacidade. A vida na Idade Média, dentro e fora dos domicílios das pessoas, era pública em vários aspectos. A privacidade não era um ideal, não era valorizada. Logo depois do início da Era Mo­derna, houve uma mudança. Seu indício material mais notável foi o novo ideal da casa ou "apartamento" burguês (este segundo termo é revelador: significou a separação entre os locais públicos e de trabalho e os aposentos privados, fosse nos palácios reais, fos- ,

se nas residências dos burgueses). A própria palavra "lar" adqui- > .. //vjO riu um novo sentido. Entre outras coisas, o respeito à privacidade ^ ^ distinguiu a sociedade civilizada dos povos bárbaros ou pr imit i -^ vos. Esse reconhecimento da interioridade afetou nosso próprio linguajar (e nosso pensamento), num reconhecimento crescente da imaginação (vinda de dentro) em vez da "inspiração" (vinda •/!/ p de fora). A partir daí, a ênfase cada vez maior nos direitos políti- ^ õ^^op cos e legais do "indivíduo" pareceu afirmar os direitos à priva- 1 cidade, ao menos implicitamente. Mas a ideia do "indivíduo" ^ privado — e, portanto, autónomo — era uma ficção. Numa so­ciedade democrática de massa (talvez sobretudo nos Estados Unidos), o desejo de privacidade era muito menos acentuado que o desejo de respeitabilidade, em geral numa comunidade es-

2S O fim de uma era

pecífica. Comparado ao desejo de reconhecimento público, o desenvolvimento da conduta privada, das aparências privadas ou das opiniões particulares continuou confuso, ocasional e débil. A expressão "pressão dos pares", ultimamente aplicada a jovens in­disciplinados, tem existido entre pessoas que já passaram há mui­to de sua juventude, pois a fraqueza do ideal de privacidade é quase sempre um sinal de maturidade insuficiente.

O culto moderno da privacidade teve, à primeira vista, uma base comum com o culto do que ainda é chamado de "individua­

is lismo" (termo questionável); porém, examinando mais de perto, tf [\/^ essa é uma ligação enganosa. A privacidade teve mais a ver com o /i o desenvolvimento do culto burguês da família. Durante a Idade

Média, as crianças eram mandadas para o trabalho, muitas vezes a serviço de terceiros. No início da Era Moderna, elas retornaram à família (ou, para ser mais exato, passaram a ser mantidas na fa­mília por mais tempo). Houve muitas exceções a essa regra, espe­cialmente em algumas aristocracias, nas quais era frequente os filhos serem expulsos da família, num costume que prosseguiu até o século XVIII . Mas a tendência a proteger c educar as crian­ças (note-se o significado original de "educar": criar, orientar) foi mais um novo hábito burguês, que acabou por se espalhar para cima e para baixo, chegando tanto à nobreza quanto às classes trabalhadoras. As crianças deixaram de ser tratadas como peque­nos adultos ou caricaturas de adultos; em vez disso, surgiu o culto burguês da criança — um culto inseparável do culto do lar, do aconchego, da interioridade e da privacidade.

Com o correr do século XIX, esses ideais burgueses relativos à proteção e à educação dos filhos foram adotados por diversos governos. Mais importante: no que concerne à vida familiar, ao final desse século, pela primeira vez, um grande número de mu­lheres casadas, inclusive mães, não teve mais de trabalhar no campo nem nas fábricas, graças ao salário e aos empregos indus­triais de seus maridos. O trabalhador podia arcar com um aparta-

O fim de uma era 29

mento, um chalé ou até uma casa pequena para sua família, onde sua mulher se encarregava das tarefas domésticas e do cui­dado com os filhos; ela já não precisava levantar-se ao alvorecer , para trabalhar em outro lugar durante o dia. Como toda a Era y ^ Industrial, esse fenómeno foi de curta duração. Durante o século XX ocorreram jnuitas transformações, inclusive a possibilidade do divórcio e do aborto. Em muitos níveis, porém, estes mais fo­ram consequências do que causas. Como acontece antes ou per­to do fim de uma grande era, as mudanças nas instituições, nas sociedades, nos costumes e na conduta implicaram a própria re­lação entre os sexos. O ideal da mulher de família, esposa, mãe e dona de casa, começou a desaparecer. Muitas mulheres, cercea­das durante muito tempo por certos costumes e hábitos sociais, passaram a ansiar por comprovar suas habilidades^rmyários tipos de trabalho, o que era^uma aspiração justificável. No entanto — especialmente nos Estados Unidos —, o desejo da mulher de se empregar em algum lugar do chamado "mercado" resultou, muitas vezes, não da necessidade financeira, mas de um novo tipo de impulso: a vida da dona de casa — principalmente nos su­búrbios residenciais — mqstrava-se solitária e entediante. As mu­lheres achavam (ou melhor, estavam convencidas disso) que estavam reagindo a categorias e alegações antiquíssimas e amiú­de absurdas da autoridade masculina, mas sua insatisfação surgia, com frequência, não em virtude da força opressiva dos homens, mas da fraqueza deles.

A onda crescente de divórcios e abortos, a aceitação da liber­dade sexual, inclusive dos hábitos pré-conjugais (e, às vezes, pós-conjugais) de copulação frequente e outras formas de coabita-

A ção, o número cada vez maior de mulheres descasadas e mães ^ ' J l A i

solteiras, a queda da taxa de natalidade — e portanto, o declínio f A ^ ' ^ da chamada família "nuclear" —, tudo isso, especialmente d e - • pois de 1955, foram sintomas graves, que sugeriam imensas mu­danças sociais. Entre eles se incluiu a tendência de muitas moças

$0 O fim de uma era

— raras vezes totalmente consciente, porém cada vez mais fla­grante — a desejar qualquer tipo de companhia masculina, mes­mo de natureza forte e brutal, ao preço, se necessário, de seu auto-respeito. Em suma, o reconhecimento profissional e a pro-

» teção jurídica das mulheres aumentaram, mas o respeito por elas •fO * diminuiu. Parte disso deveu-se ao culto da juventude no século

r í ^ XX, particularmente difundido na América, durante a última fase de seu período urbano e burguês. Entretanto, não é difícil

A perceber que por trás do culto da juventude espreita o medo da morte, e até o de crescer: o medo de ter que assumir as responsa-bilidades da maturidade. As crescentes "liberdades" concedidas aos jovens do século XX representaram, de certa maneira, um re­torno à prática anterior à Era Moderna, ao tratamento (ou não-

0 tratamento) das crianças como se elas fossem versões menores y\j dos adultos. A educação (no sentido original da palavra) dos fi-

*\fift° // lhos para a maturidade foi mais um ideal burguês a desaparecer • ^ ) r ^ ' J paulatinamente. ^ - fQ^ ,p A era da escolarização institucional foi mais um aspecto da

jffiV Era Moderna. Havia universidades na Idade Média, mas poucas 1 ^ escolas deformação geral (ou nenhuma). No século XVII , a es­

colarização passou a se estender a pessoas cada vez mais jovens, acabando por incluir os filhos dos pobres. No século XIX, o ideal da educação generalizada e pública, implicando mais e mais a responsabilidade dos governos, tornou-se sacrossanto. Mesmo as­sim, grande parte da formação e da verdadeira educação dos fi­lhos continuou a ser responsabilidade dos pais, em casa. Durante o século XX, isso mudou. Como muitas outras coisas, o papel das escolas foi ampliado e estendido, reduzindo as antigas responsa­bilidades anteriores dos pais.

Nos Estados Unidos, a função primordial e prática das esco­las adquiriu, muitas vezes, um caráter tutelar (sobretudo quando ambos os pais trabalhavam fora), embora isso raramente fosse re­conhecido. Depois de 1960, pelo menos um quarto da popula­

ça fim de uma era 31

ção norte-americana veio a passar mais de um quarto de toda a ^ Jv\ sua vida em escolas, dos dois aos 22 anos. Como em tantos outros ^^jv Á níveisje aspectos da democracia de massa, a inflação se instalou,-^ 'J^mY reduzindo drãshcamente o teor e a qualidade do ensmo: aumen- f^<(Jr tava o número de jovens, que após vinte anos nas escolas, não sa- r bia ler nem escrever sem dificuldade. As instituições de ensino ficaram abarrotadas, inclusive as faculdades e universidades.

; . . n r t H

Nesse mundo cada vez mais burocratizado, poucas coisas passa- ^ ram a ter mais importância do que a posse de vários diplomas. Como o ingresso em certas escolas — maisfio que a obtenção de diplomas, que era uma consequência quase automática — de­pendia de exames mais e mais competitivos, cunhou-sé a palavra "meritocracia", com o significado de que a ascensão e as posições conquistadas na sociedade dependeriam da categoria do grau e da faculdade ou universidade em que a pessoa se formasse. Na realidade, o termo "meritocracia" foi enganoso. Como ocorre em muitas outras esferas da vida, as normas que regem as práticas &^^j&ú eXuncões das escolas e universidades são mais burocráticas dó ^VQCA^

que meritocráticas. E a burocracia, não a meritocracia, que cate- ^ goriza o emprego das pessoas por seus graus académicos. O nú­mero e a variedade dos diplomas conferidos pelas instituições de Lí^ ensino superior cresceram numa medida fantástica e absurda. ^ ' f ^ y U . Além de ser tutelar, a educação institucional passou a ter o ob- ^ • jetivo de conceder diplomas capazes de proporcionar emprego fvJt^ ' instantâneo. e^^^ '

A inflação da "educação" teve muito a ver com o declínio da , ^ftoo^ leitura (e de sua decrescente exigência nos currículos escolares). _ rgffc/lA Esse foi outro sinal do fim da Era Moderna, que toi tambenTã Era do Livro. A invenção da imprensa coincidiu com o início ^ " ^ Q ° da Era Moderna, tendo sido consequência e causa de muitas de 1 4

suas conquistas. De início, foi mais a disponibilidade de livros - ^ que a de escolas que levou a uma ampliação dos leitores — até que, +

no século XIX, os homens e mulheres que não sabiam ler torna--' ^ , • + .rvjfVT

v um cie uma era

ram-se uma pequena minoria nas populações do mundo ociden-tal. Aproximadamente na mesma época, a enxurrada de fontes de leitura, inclusive jornais, aumentou ainda mais que a inundação sempre crescente de livros: com a ascensão da alfabetização uni-

jjfy versai (decorrente da extensão da escolaridade), passou a haver y. VK : l f ' um novo reservatório de leitores potenciais a ser explorado. Mas,

^ K como seria inevitável, a inflação do material impresso reduziu I sua qualidade, e outras influências estavam prestes a surgir. A re-

produção de um número cada vez maior de fotografias em pcV jornais, revistas e livros, oadvento do cinema e, por fim, da televi-

f jCy ^ s ã o ' t u < ^ ° lSS° ^ e v o u a um~ gítuação em que — mais uma vez, de modo não diferente da Idade Méd ia — a imaginação regular

,j»pS v ^ de grandes massas de pessoas tornou-se mais pictórica do que ver-çj^ bal. Junto com a ampliação do público leitor, a influência dos l i ­

vros começou a se reduzir — acompanhando também o declínio ç do alcance da atenção das pessoas ou de sua capacidade de con-

( , centraçãò, ou até de^ s^ t ã rTCõnfa propagação cádã vez maior ' Y .1/^ da "EFoTmaçãõ" e da "comunicação", os hábitos de leitura de-

cresceram ainda mais. Chego agora à mais difícil dessas sínteses da involução, ne­

cessariamente generalizadas e inexatas: a da arte, que, na Era ModernaTíõílnseparável dos ideais não só de beleza, más de re­presentação. Boa parte da arte da Idade Média era simbólica e idealizada. O Renascimento, é claro, descobr luõnumanismo, a beleza do corpo e a complexidade da natureza humana, e come­çou por uma imitação da arte greco-romana que Foi marcada pela "mimese", ou, para usar outra palavra, pela "re-apresentação". No fim do século XVIII , veio então uma profunda mudança de consciência que afetou a arte, a começar pela poesia e pela pintu­ra. Tratou-se do reconhecimento consciente da imaginação, ul­trapassando a antiga ideia da inspiração (num reconhecimento primitivo da inseparabilidade entre observador e observado). Du­rante o século XIX, a literatura e a arquitetura foram progressiva­mente influenciadas pela historicidade, se não de todo inspiradas

O fim de uma era 33

e formadas por ela. Enquanto isso, o realismo e o naturalismo na poesia e na pintura foram mais e mais influenciados pela com­preensão do artista acerca das limitações da "objetividade" — ou seja, da completa separação entre o observador (e o artista, é claro) e seu tema. O "impressionismo", portanto, foi tão pouco resultante da invenção da fotografia quanto a musica impressio-nista resultou da invenção do fonógrafo.

Depois do início do século XIX, o artista não mais foi visto como um artesão, no sentido de artífice, mas sim como uma pes­soa de sensibilidade inusitada e até superior.-No começo do sécu­lo XX — antes mesmo da catástrofe da Primeira Guerra Mundial —, o que foi curiosa e tardiamente chamado de "arte moderna" representou um desvio drástico e abrupto das tradições e realiza­ções da Era Moderna. Este não é o lugar para nos estendermos ou sequer para ilustrarmos esse argumento reacionário; em vez disso, apenas citarei as palavras do poeta inglês Philip Larkin: "Parece-me inegável que, até este século, a literatura usava a lin-guagem como todos a utilizamos, a pintura representava o que vê qualquer um que Jenha a visão normal, e a música era uma ques­tão de sons aprazíveis, não de ruídos desagradáveis. A inovação do 'modernismo' nas artes consistiu em fazer o inverso. Não sei por quê, não sou historiador. E preciso distinguir entre coisas que pareciam estranhas quando novas, mas que são hoje muito fami-liares i como Ibsen ou Wagner, e coisas que pareceram loucas quando novas e parecem loucas hoje, como Finnegans Wake, Pound e Picasso." "Loucas"... e feias, porque o firndos ideais de representação também foi marcado por uma tendência crescen-te, nas letras, na arquitetura, na música, na pintura e na poesia, para a feiúra"

m

Esta queixa tem suas ressalvas e limitações. Uma delas concerne à distinção entre a morte da Era Moderna e o Declínio do Oci-

34 O fim de uma era

dente. É claro que quase todos os sintomas do fim da Era Moder­na (ou Europeia, ou Burguesa) foram mais visíveis no chamado mundo ocidental. Mas, dada a influência contínua dos hábitos, instituições e práticas ocidentais em todo o globo, um bom nú­mero de diferenças entre os costumes do mundo ocidental e do não-ocidental está hoje transformado, vez por outra, em pouco mais do que diferenças de sincronia. O contraste entre um Oci­dente não-sanguinário e a força dos povos mais primitivos do glo­bo (para não falar da antítese de Spengler entre a Europa e a Rússia) pode ou não estar-se acentuando. Naturalmente, esta­mos apenas no início da primeira civilização "global" — e ape­nas em alguns níveis transitórios e superficiais. De qualquer modo, o futuro próximo, o começo de uma era que sucederá a Era Moderna, exibe muitos sinais de uma difusão mais ampla do que o mundo ocidental.

Outra limitação é ainda mais evidente. Essa é uma limitação cronológica de minha queixa, que devo defender, ao menos até certo ponto. Em quase todas as esferas da vida mencionadas aci­ma, a dissolução rápida e o mau funcionamento das instituições e ideais da Era Moderna ganharam velocidade no século XX, es­pecialmente em sua segunda metade. Não será esta uma visão míope demais? Suas fontes, primórdios e sintomas já haviam apa-

p recido antes; mas, afinal, não é sobre eles que estou escrevendo. i , Dificilmente se poderia questionar que nesse, como em muitos

outros aspectos, o século XX foi um século de transição (como os y cem anos do fim da Idade Média entre cerca de 1450 e 1550): em

todos os sentidos, o século XX foi t ambém um século curto, que durou 75 anos, de 1914 a 1989. Depois disso, o colapso do comu­nismo (e do império russo) não levou a uma reação conservado­ra: os sintomas da dissolução continuaram — a rigor, muitos ganharam velocidade durante a última dé cada do século XX cro­nológico (sem fin-de-siècle, portanto). Não, a história não é um relógio mecânico: o pêndulo nunca volta. Mas os eventos e o

O fim de uma era 35

pensamento humanos se modificam, ainda que devagar; algo di­ferente, algo novo está começando.

Uma terceira l imitação consiste na situação de que a mu­dança das características, das instituições e dos hábitos é particu­larmente visível (embora não em caráter exclusivo) nos Estados Unidos e nos países mais "avançados", em termos industriais ou técnicos, do mundo ocidental. Isso não deve surpreender: afinal, a desvantagem histórica norte-americana (assim como a vanta­gem norte-americana em tempos passados) deveu-se ao fato de as instituições dos Estados Unidos haverem nascido bem no meio da Era Moderna, no século do chamado Iluminismo, com o que a população norte-americana ficou menos imune às deficiências da modernidade do que outros povos cuja composição psíquica e física traz lembranças vivas de outras eras, de um passado mais antigo e diferente.8 Depois de 1989, surgiu uma situação sem precedentes: os Estados Unidos tornaram-se a única superpotên­cia do mundo. Será que isso sugere o Apogeu da Era Moderna (a era que deu origem aos Estados Unidos da América)? De modo algum.

E há também o cristianismo. Suas igrejas vêm-se esvazian­do. No entanto, algo semelhante aconteceu antes, e com fre­quência. (Um exemplo: nos dois mil anos da Santa Sé, talvez nenhum papa tenha sido tão desprovido de prestígio e poder quanto foi Pio V I , há duzentos anos, em 1799.) Estará o cristia- -nismo desaparecendo? Não creio. ^ * ^

m c U ^

8 Mas consideremos também as influências recíprocas das instituições e do ca­ráter. Este, ao contrário das visões aceitas, influencia tanto ou mais as institui­ções do que o inverso, e o caráter da maioria da população norte-americana, duzentos anos atrás, ainda era predominantemente influenciado pela ascen­dência anglo-celta, ou seja, pelo menos em certa medida, pré-iluminista.

36 O fim de uma era

E agora, a contrajeremiada. Uma lista das realizações duradouras da Era Moderna. Duradouras e permanentes, e das questões ain­da em andamento. Somos mais saudáveis do que nunca. (Para ser mais exato, menos afetados pela dor e pelas doenças contagio­sas.) A mortalidade infantil tornou-se ínfima. Nossa longevidade está cada vez maior. (Também nesse caso, a maior parte desse progresso ocorreu nos últimos 130 anos.) Grandes massas de pes­soas podem hoje viver em condições de conforto que só eram acessíveis aos mais ricos ou mais poderosos dentre nossos bisavós. Grandes massas de pessoas dirigem seus próprios carros. Grandes massas podem viajar para continentes e lugares distantes em questão de horas, com dinheiro suficiente para gastar. A escravi­dão institucionalizada praticamente deixou de existir. Quase to­das as nações se proclamam democracias e tentam proporcionar um mínimo de bem-estar a todos os seus habitantes. Os homens foram impulsionados até a Lua e voltaram; já pousaram nela duas vezes.

Não há como fazermos nossa vida retroceder. Devemos tam­bém estar cientes de que não houve (nem há) Eras de Ouro na história. Os indícios de decadência à nossa volta não significam que tenha havido um período ideal em alguma época da Era Mo­derna. Em certos campos da vida, da arte e do pensamento, tal­vez. Noutros, certamente não. Sim, seria um prazer conhecer Rembrandt, Bach, Montesquieu ou Washington, ou, quem sabe, até viver na época de Eduardo V I I , mas só dispondo de muito di­nheiro e com uma saúde quase perfeita, pelo menos. Tudo isso são ilusões, em meio à realidade então existente de dor, incómo­do, doença e outros dissabores menos tangíveis, mas decerto pre­valecentes.

Além disso, a história e a vida consistem numa coexistência de continuidade e mudança. Nada desaparece por completo. As instituições, as normas, os costumes, os hábitos e as inclinações intelectuais da Era Moderna ainda existem à nossa volta. O mes-

O fim de uma era 37

mo se dá com o respeito a muitas de suas realizações criativas — políticas e sociais, porém sobretudo artísticas. (Uma delas é a música polifônica, que foi uma criação europeia singular, em al­gum ponto do início da era.) O respeito por coisas mais antigas adquiriu agora um toque de nostalgia — o que é parte integrante, quase com certeza, do mal-estar com o "Progresso". Durante os últimos quarenta anos, o sentido dos termos "velho" e "à moda antiga" — especialmente nos Estados Unidos — passou de "ob­soleto" ou "ultrapassado" para coisas confiáveis, sólidas, dura­douras e desejáveis. Isso pouco tem a ver conv-"conservadorismo" ou "tradicionalismo". Os "conservadores", sobretudo nos Es­tados Unidos, são alguns dos defensores mais estridentes do "Progresso"; suas visões sobre o presente e o futuro não são mera­mente míopes, mas carregadas de um otimismo espalhafatoso, que é mais imbecil do que ingénuo. O respeito pelas coisas anti­gas também não é simplesmente tradicionalista, já que a obe­diência cega aos costumes tradicionais marca a mentalidade e os hábitos dos povos mais primitivos da humanidade.

Seja como for, temos toda razão para crer que o respeito (e até a imitação e adaptação ocasionais) por algumas criações da Era Moderna (e decerto por suas realizações na arte) continuará e aumentará. Chegará o momento (se é que já não chegou) em que as pessoas olharão para trás e admirarão (talvez com um sus­piro, mas não vem ao caso) — reconhecerão, melhor dizendo — os últimos quinhentos anos como uma das duas maiores eras da história da humanidade, sendo a outra a era "clássica" da Grécia e de Roma. Mas há uma diferença, e uma diferença significativa. A última vez que aconteceu algo parecido foi há quinhentos ou seiscentos anos, implicando apenas uma pequena minoria de pessoas, o que não corresponde ao que vem acontecendo agora. Naquela ocasião, os homens começaram a voltar os olhos para as realizações, as letras e as artes da Grécia e de Roma, idealizan-do-as e imitando-as. (Toda arte começa pela imitação.) Isso foi o Renascimento, um re-nascimento — a palavra é reveladora. Ele

38 O fim de uma era

marcou o início da moderna consciência histórica, ainda que esta fosse imperfeita e incompleta, por sua idealização quase ir­restrita da Era Clássica ou dos antigos. Seus admiradores descar­taram toda.a Idade Média, seu passado, então ainda presente, e seu passado recente (muito embora a ideia e a expressão "Idade Média" ainda não existissem). Eles buscaram inspiração a duas eras de distância, recuando mais no tempo. Não é o que aconte­ce agora. Ocorre uma outra coisa: é nosso respeito e admiração pela era que hoje é passada, mas que existiu imediatamente antes de nossa época e que, de muitas maneiras, ainda está perto de nós e presente em nós. E isso é um sintoma da evolução de nossa consciência histórica, que talvez esteja adquirindo novas formas, e que não vem enfraquecendo.

Há outras consequências dessa coexistência entre continuidade e mudança, não-planejadas e imprevistas. Trata-se das consequên­cias inesperadas de mudanças na natureza das instituições e na das ideias aceitas — nas quais podemos detectar o surgimento de dualidades, amiúde paradoxais.

Mais uma vez, foi Tocqueville quem escreveu sobre a falibi­lidade inevitável de todas as instituições humanas: quando as pessoas tendem a esticar ou levar a extremos suas características originais e particulares, estas se tornam o oposto diametral de suas intenções originais.

Vejamos alguns exemplos.

No fim da Era Moderna, as constituições e os tribunais estende­ram a legalidade a toda sorte de atos privados (às vezes, a ponto de chegar à obscenidade), nurna época em que cada vez menos pes­soas valorizam ou são capazes de cultivar a privacidade.

Grandes massas de pessoas conseguem adquirir residências que legalmente são sua "propriedade", quando, na realidade, elas

O fim de uma era 39

meramente as alugam (uma vez que quase nunca pagam a totali­

dade de seu preço, nem têm a expectativa de permanecer nelas

por mais de alguns anos). A residência permanente, que é uma das

bases da civilização, já não constitui u m ideal. Muitos fatores, i n ­

clusive a tributação, atuam contra ele.

A ideia igualitária de democracia, com o significado de redu­

ção das diferenças de classe, existe concomitantemente ao descon­

forto de muitas pessoas com uma sociedade sem classes, na qual

não conseguem se identificar e na qual dependem de associações

insignificantes e temporárias.

As distinções jurídicas e até sociais entre as raças estão dimi­

nuindo, e os direitos e privilégios de raças antes cerceadas vão sendo

institucionalizados e ampliados — ao mesmo tempo que o medo e a

hostilidade raciais entre as pessoas talvez estejam aumentando.

Já vimos que as somas gastas na educação tornaram-se imen­

sas e que o período que os jovens passam na escola corresponde a

vinte anos ou mais — ao mesmo tempo que seu conhecimento do

mundo é deficiente, assim como sua capacidade de ler, escrever e

se expressar bem.

Os "liberais", que, em época anterior da Era Moderna, defen­

diam a limitação dos poderes do Estado, advogaram, durante todo

o século XX, a intervenção governamental em muitas áreas, inclusive

na garantia de muitos tipos de assistência estatal. Os "conservadores",

que antes se erguiam em defesa das tradições, tornaram-se os princi­

pais defensores da tecnologia, da militarização e até do populismo,

tudo em nome do "Progresso".

O poder e a função do governo, suas intervenções e normas

em esferas cada vez mais numerosas da vida, ampliaram-se — ao

mesmo tempo que a indignação seletiva das pessoas com esses pro­

longamentos do "governo" acompanha o declínio da autoridade

do Estado e do respeito por ele.

As aplicações progressivas da medicina, da cirurgia e da tera­

pia são espantosas — ao mesmo tempo que mais e mais pessoas de-

40 O fim de uma era

pendem da medic ina e de medicamentos por toda a sua vida

adulta. Essa é uma das mudanças maiores, e talvez mais profundas,

ao findar a Era Moderna. Antigamente, a maior parte das doenças

humanas vinha de fora: de lesões ou muitos tipos de infecções. N o

século XX, à maioria das doenças passou a vir do interior do ser h u ­

mano. Podemos conhecer sua patogênese (seus sintomas e sua

evolução), mas raramente conhecemos sua etiologia (sua origem).

Isso significa que muitos de nossos males, pelo menos em certa

medida, são psicossomáticos (assim como todas as nossas percep­

ções, ao menos até certo ponto, são extra-sensoriais) — outra ilus­

tração da crescente intromissão da mente na matéria.

A tão esperada igualdade das mulheres foi legalizada, estabe­

lecida e, em muitos aspectos, garantida — ao mesmo tempo que as

relações entre homens e mulheres, inclusive as mais íntimas, tor­

naram-se complexas e até brutalizadas. Muitas mulheres conquis-

taram sua "independência" à custa de u m aumento da solidão.

-4) ^ O incrível acesso às "informações", também no f i m da Era

i/o V A N - \s "informações" é inútil, e muitos de seus fornecedores tor-

Modema, obscurece o fato de que, simultaneamente, grande parte

\ nam-nas dependentes do "entretenimento" ou , pior ainda, subor­

dinadas a ele. A capacidade de as grandes massas vereme visitarem

regiões distantes do globo teve u m aumento exponencial, não só

através de "comunicações" pictóricas e de outra ordem, mas tam­

bém pela ampliação e barateamento das oportunidades de viagem

— ao mesmo tempo que o conhecimento das pessoas sobre outros

povos é menos substancial e mais superficial do que antes.

O fantástico desenvolvimento das comunicações, no f i m da

Era Moderna, permite que quase todos vejam ou falem n u m instan­

te com pessoas do outro lado do mundo, enquanto as comunicações

verdadeiras, no sentido de as pessoas falarem e ouvirem umas às ou­

tras — incluindo pais e filhos, maridos e mulheres, e até casais ena­

morados — tornam-se cada vez mais raras: em suma, ao mesmo

tempo que as comunicações pessoais estão-se desintegrando.

O fim de uma era 41

No fim da Era Moderna, a posição e o poder dos Estados Uni­dos são singulares; trata-se da única superpotência do mundo, que atingiu esse status através de muita boa vontade e, é claro, sorte — ao passo que diminuiu o respeito de muitas pessoas (inclusive mui­tos norte-americanos) pelos padrões atuais da civilização e da "cul­tura" popular norte-americanas.

Essa lista de dualidades paradoxais talvez seja interminável. Ago­ra, porém, chegamos à maior e mais grave delas — na verdade, ao maior e mais grave problema que avulta diante de nós no fim da Era Moderna.

Lembremos a frase de Gibbon de mais de duzentos anos atrás: o barbarismo e suas catástrofes são agora inconcebíveis, "a menos que a face da natureza se modifique". Agora, pela primei­ra vez na história da humanidade, os perigos e catástrofes naturais constituem uma ameaça potencial (na verdade, real, em um ou outro caso) à natureza e à humanidade, juntas. Esses perigos são criados pelo homem. Incluem não somente armas atómicas e biológicas terrivelmente destrutivas, mas também muitos efeitos sobre a natureza e a atmosfera, através da presença e intromissão cada vez maiores dos resultados da ciência aplicada. Assim, no fim da Era Moderna, o controle, a limitação e até a proibição de certas aplicabilidades da ciência — inclusive a engenharia gené­tica — tornam-se um imperativo, às vezes global. Ao mesmo tem­po, não existe uma autoridade internacional ou supranacional (e, na maioria dos casos, nem mesmo nacional) capaz de impor es­sas medidas.

Em vista dessa perspectiva, surgem a confusão e a clivagem psíquica características de quando se está no fim ou perto do fim de uma era. A maioria dos "conservadores", adeptos do que ainda é erroneamente chamado de "capitalismo" e do progresso técni­co, nega a necessidade de preservar ou conservar. A maioria dos