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1 Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI 24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR O fotojornalismo bélico como instrumento de análise do contexto social e do processo de ensino-aprendizagem cidadão 1 Valéria Bussola Martins 2 Alexandre Huady Torres Guimarães 3 Resumo: A fotografia possui uma estrutura que, analisada conscientemente, possibilita ao leitor diversidades de compreensão, uma vez que, mesmo dentro de uma única linguagem visual, não há a certeza de se encontrar um mesmo caminho para o desenvolvimento de sua análise. Essa linguagem encontra-se muito próxima ao universo discente, fator que auxilia sua introdução em sala de aula como instrumento didático-metodológico. Por meio da fotografia, pode-se instrumentalizar o alunado à análise do texto visual para que o mesmo desenvolva suas várias possibilidades de leitura, tornando-se ativo no processo de interpretação e construção do cotidiano. Este artigo objetiva descrever e analisar uma atividade desenvolvida com alunos do Ensino Fundamental II por meio da fotografia de Peter Lewbing, o Vopo, marco da Guerra Fria, publicada no Jornal do Brasil, em 17/08/1961, a partir da qual se desenvolveu a leitura crítica do texto fotojornalístico e investigou-se a imagem como expressão da memória histórica, da conscientização do presente e da formação da cidadania. Palavras-Chave: Fotojornalismo; Guerra Fria; Ensino-aprendizagem. Abstract: The photograph have a structure that, analyzed consciously, enables to the readers some diversities of comprehension, once, even inside of one visual language, there’s no certainty to even find a way to develop their analyzes. This language is closer to the student universe, factor that assists its introduction in the classroom as a didactic- methodological tool. Through the photograph, we can equip the students to the analysis of the visual to develop their numerous possibilities of reading, becoming active in the process of the interpretation and of the everyday construction. This paper aims to describe and analyze an activity developed in the Elementary School through the photograph of Peter Lewbing, the Vopo, landmark of the Cold War, published in Jornal do Brasil, in August 17 th , 1961, from which developed a critical reading of the photojournalistic text and investigated the image as an expression of the historical memory, of the awareness of the present and the formation of citizenship. Keywords: Photojournalism; Cold War; Teaching-learning. 1 Trabalho apresentado no GT 7- Fotografia, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem ENCOI. 2 Doutora e Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Professora dos Cursos de Letras e de Publicidade e Propaganda da Universidade Presbiteriana Mackenzie - [email protected] 3 Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie - [email protected]

O fotojornalismo bélico como instrumento de análise do ... FOTOJORNALISMO... · Todavia, assim como o texto escrito não é um amontoado de palavras e de frases, o texto imagético,

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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

O fotojornalismo bélico como instrumento de análise do contexto social e do

processo de ensino-aprendizagem cidadão1

Valéria Bussola Martins2

Alexandre Huady Torres Guimarães3

Resumo: A fotografia possui uma estrutura que, analisada conscientemente, possibilita

ao leitor diversidades de compreensão, uma vez que, mesmo dentro de uma única

linguagem visual, não há a certeza de se encontrar um mesmo caminho para o

desenvolvimento de sua análise. Essa linguagem encontra-se muito próxima ao

universo discente, fator que auxilia sua introdução em sala de aula como instrumento

didático-metodológico. Por meio da fotografia, pode-se instrumentalizar o alunado à

análise do texto visual para que o mesmo desenvolva suas várias possibilidades de

leitura, tornando-se ativo no processo de interpretação e construção do cotidiano. Este

artigo objetiva descrever e analisar uma atividade desenvolvida com alunos do Ensino

Fundamental II por meio da fotografia de Peter Lewbing, o Vopo, marco da Guerra Fria,

publicada no Jornal do Brasil, em 17/08/1961, a partir da qual se desenvolveu a leitura

crítica do texto fotojornalístico e investigou-se a imagem como expressão da memória

histórica, da conscientização do presente e da formação da cidadania.

Palavras-Chave: Fotojornalismo; Guerra Fria; Ensino-aprendizagem.

Abstract: The photograph have a structure that, analyzed consciously, enables to the

readers some diversities of comprehension, once, even inside of one visual language,

there’s no certainty to even find a way to develop their analyzes. This language is closer

to the student universe, factor that assists its introduction in the classroom as a didactic-

methodological tool. Through the photograph, we can equip the students to the analysis

of the visual to develop their numerous possibilities of reading, becoming active in the

process of the interpretation and of the everyday construction. This paper aims to

describe and analyze an activity developed in the Elementary School through the

photograph of Peter Lewbing, the Vopo, landmark of the Cold War, published in Jornal

do Brasil, in August 17th

, 1961, from which developed a critical reading of the

photojournalistic text and investigated the image as an expression of the historical

memory, of the awareness of the present and the formation of citizenship.

Keywords: Photojournalism; Cold War; Teaching-learning.

1 Trabalho apresentado no GT 7- Fotografia, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e

Imagem – ENCOI. 2 Doutora e Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Professora dos Cursos de

Letras e de Publicidade e Propaganda da Universidade Presbiteriana Mackenzie -

[email protected] 3 Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade

Presbiteriana Mackenzie, Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da

Universidade Presbiteriana Mackenzie - [email protected]

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Introdução

Das paredes das cavernas aos ícones virtuais, o homem manteve uma

relação muito próxima à imagem, assim, pela análise do texto imagético,

pode-se depreender os hábitos, a aparência, os costumes, as leis e inúmeras

características do passado humano em diferentes épocas.

Todavia, assim como o texto escrito não é um amontoado de palavras e

de frases, o texto imagético, ou linguagem não-verbal, também possui uma combinação

interna, ou seja, uma sintaxe, uma morfologia e um léxico que obedecem a mecanismos

de organização (SAVIOLI; FIORIN, 1997) e que devem ser analisados com o intuito de

se aprofundar o aprendizado tanto da linguagem imagética quanto das suas

possibilidades de ensino.

Por sintaxe, podemos entender, por meio da etimologia observada em

Antenor Nascente: “SINTAXE - Do gr. Sýntaxis, ordem, arranjo, disposição, pelo lat.

Syntaxe” (1932, p. 736).

À maneira etimológica de Silveira Bueno (1963, p. 3769):

Sintaxe - s. f. Parte da gramática que trata da disposição das palavras na

frase, das frases no período. Compreende a sintaxe de colocação (ordem das

palavras), de regência (palavra regente e regida), de concordância em gênero,

número e pessoa. Lat. Syntaxis com igual forma em grego, de syntasso, eu

ponho em ordem, organizo, disponho. Derv.: sintático, adj.

E na versão do latinista Torrinha (s. d., p. 1018): “sintaxe, f. Construção

das palavras e das frases segundo as regras da gramática: constructio, f. Prisc.”.

Depreende-se, por mediação de autores dos Ensinos Fundamental,

Médio, Universitário e pelos dicionaristas postos, que a sintaxe exprime a disposição, a

relação, a construção, o arranjo, a ordem, a combinação das partes de um texto com o

seu todo.

Quanto à imagem, sabe-se que esta forma-se em nossas retinas a partir da

luz, e Neiva Jr. (1986, p. 15) explica esse processo afirmando que:

A luz agrupa-se em representações bidimensionais. Conhecemos o mundo

através da sua tradução em sólidos, luzes e cores que ocupam uma superfície.

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As extensões, as superfícies se dão por meio de um processo que se apresenta

como estritamente natural. Cada extensão é o que é; pelo menos, é o que

acreditamos. A imagem nos parece pura e evidente, mesmo que, de fato, as

luzes e as sombras sejam o que determina a aparência dos objetos. Para que

uma imagem seja visível, é preciso que três etapas sejam cumpridas:

a luz espalha-se diferentemente pelas superfícies a serem percebidas;

a luz é transmitida para o olho;

a luz constitui-se num foco, formando-se, então, a imagem. O mundo é uma

imagem.

A imagem é, pois, uma síntese que oferta “traços, cores e outros

elementos visuais em simultaneidade. Após contemplar a síntese, é possível explorá-la

aos poucos; só então emerge novamente a totalidade da imagem.” (NEIVA JR., 1986, p.

05).

Quando o autor afirma “explorá-la aos poucos”, faz a relação entre as

partes e sua significação com o todo, ou seja, não desassocia a forma do conteúdo, fator

que fica claro quando o mesmo autor recorre, em seu livro A Imagem, às palavras de

Erwin Panofsky, em La perspective comme forme symbolique et autres essais, o qual

explica que “numa forma de arte não se pode divorciar forma de conteúdo”.

Não havendo o desligando da forma e conteúdo, o estudo da estrutura, da

ordem, da disposição, da forma faz-se necessário para a compreensão do conteúdo e,

nesse caminho, muitas vezes, ocorre a aproximação entre as linguagens verbal e

imagética.

A relação pode ser feita, contudo não há a possibilidade de um caminho

similar, visto que as terminologias não se amoldam e, também, pelo fato dos processos e

instrumentos de confecção serem díspares.

O material, o processo e as técnicas de uma película cinematográfica são

diversos das de uma pintura a óleo, que, por sua vez, não são os mesmos da fotografia.

Leve-se em conta, então, que as nomenclaturas não podem tornar-se estanques e que os

processos de análise facultam a variar entre as modalidades visuais, até mesmo, no

interior de uma única manifestação imagética:

O alfabetismo visual jamais poderá ser um sistema tão lógico e preciso

quanto a linguagem. As linguagens são sistemas inventados pelo homem para

codificar, armazenar e decodificar informações. Sua estrutura, portanto, tem

uma lógica que o alfabetismo visual é incapaz de alcançar. (DONDIS, 1999,

p. 18-20).

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Na linguagem visual, no caso específico, a fotográfica, sabe-se que o

leitor capta de maneira imediata todos os seus elementos, porém, sua compreensão mais

profunda está diretamente ligada à contextualização e à decomposição de seus

elementos para, assim, relacionar as estruturas que a alicerçam à inferência do que se dá

na superfície.

O processo de decomposição fotográfico leva, portanto, o leitor ao

interior do fotograma, a partir do qual poderá captar as relações entre as partes e o todo,

relacionando-as ao contexto e observando o discurso existente na imagem. Lembre-se

que “a sintaxe é a parte da Gramática que se dedica ao estudo das relações que as

palavras estabelecem entre si quando organizadas em orações. Também estuda as

relações que as orações estabelecem entre si quando formam períodos” (NICOLA;

INFANTE, 1998, p. 242).

Entretanto, ao longo do tempo, a imagem tem sido tomada como um

testemunho da verdade do fato ou dos fatos (KOSSOY, 1999). Ao apertar o obturador, o

fotógrafo já definiu seus elementos estruturais, ou seja, seu foco, sua profundidade de

campo através da abertura do diafragma, o grau de congelamento da imagem por meio

da velocidade de obturação e o enquadramento desejado. Todos esses elementos,

somados à granulação, ao sistema de zonas, ao jogo de sombras, entre tantos outros

existentes, alicerçam o leitor, a “andar para ver como é o bosque e descobrir por que

algumas trilhas são acessíveis e outras não” (ECO, 1994, p. 33).

O Vopo

No dia 17 de agosto de 1961, o Jornal do Brasil publicou na posição

direita inferior da primeira página, do primeiro caderno, o seguinte conjunto de

fotografia e texto:

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Figura 1:

O direito de escolher

Um soldado da Alemanha comunista, encarregado de impedir, junto das

barricadas de arame farpado, a fuga de berlineses daquele setor para o lado

Ocidental, aproveitou um descuido dos colegas da guarda para gozar,

pessoalmente, da liberdade de escolha que lhe cabia impedir. O flagrante foi

colhido providencialmente, nesse exato momento por um fotógrafo da

A2.

Na imagem de Peter Leibing, tem-se evidentemente um conteúdo

histórico, porém, se tomada apenas sob esse prisma, ela enfraquece, uma vez que

A fotografia tem uma realidade própria que não corresponde

necessariamente à realidade que envolveu o assunto, objeto de registro, no

contexto da vida passada. Trata-se da realidade do documento, da

representação: uma segunda realidade, construída, codificada, sedutora em

sua montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua, inocente, mas que

é, todavia, o elo material do tempo e espaço representado, pista para

desvendarmos o passado (KOSSOY, 1999, p. 23).

Assim, “decifrar a realidade interior das representações fotográficas, seus

significados ocultos, sua tramas, realidades e ficções, as finalidades para as quais foram

produzidas é a tarefa fundamental a ser empreendida” (KOSSOY, 1999, p. 25-26).

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No caso de O Vopo, tem-se um espaço e um tempo determinados. O

espaço é a cidade de Berlim, exatamente na cerca que se alastra, dividindo a cidade em

duas. O tempo é o mês de agosto de 1961, época da formação do Muro de Berlim e da

intensificação da Guerra Fria.

É por trás dessas coordenadas de espaço e tempo que se dá a ação do

fotógrafo e do soldado fotografado. Sem dúvida, polissêmica que é a fotografia, várias

realidades podem ser observadas por meio dela. Essas possibilidades compreensivas

estão relacionadas a uma interpretação baseada na memória de cada espectador.

Aqui se observará uma perspectiva metodológica da busca da sintaxe que

comprova a violência no fotograma apresentado.

Percebe-se que não é muito boa a qualidade de impressão da fotografia,

mas se o olhar fixar-se, alguns elementos ficam evidentes:

Figura 2:

Ao lado esquerdo, encontra-se o primeiro dos seis planos dessa imagem.

Tem-se o braço direito de uma pessoa, o qual acaba servindo, justamente, para destacar

o segundo plano no que se refere à distância.

O segundo plano é formado por dois elementos: o soldado pulando e a

cerca que divide o território.

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No terceiro plano, ao lado direito da fotografia, observa-se uma

construção que faz parte da cidade, uma casa com um cartaz afixado.

O quarto plano é constituído por moradores da parte Comunista que, ao

centro, conversam e concedem, também, um destaque ao soldado Conrad Schumann,

justamente pela opção de Peter Leibing em valorizar a velocidade em relação ao

diafragma, conseguindo o congelamento da cena e pouquíssima profundidade de campo.

O quinto plano marca prédios ao fundo direito e esquerdo, criando quase

que um corredor, um caminho para o salto, enquanto, no sexto plano, tem-se a parede de

outra construção, praticamente invisível pelo desfoque, que fecha o horizonte

fotográfico.

Todavia, para se adentrar à violência, deve-se observar justamente os

principais elementos, ou aqueles que a explicitam, estando os dois no segundo plano.

O primeiro é a cerca de arame farpado.

Observe-se:

Figura 3:

Nota-se que a cerca de arame cobre quase a totalidade da base da imagem

ao tomar o fotograma de ponta a ponta, contudo, à esquerda, ela desaparece atrás do

homem que ocupa o primeiro plano.

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Percebe-se o seu desenho irregular, composto por linhas curvas que dão a

sensação de desconforto. Se observado o significado de irregular no dicionário, acha-se

para sua definição a ideia de contrário à regra, à justiça e à lei.

Nesse ponto, fica evidente a violência, pois o ato do cercear a livre

passagem, obstruída pelo cerca de arame farpado, início da construção do Muro de

Berlim é, não só simbolicamente, um real símbolo de rompimento da liberdade, de

imposição, de injustiça e de quebra das regras e das leis.

Esse prisma, essa visão, é decorrente do lado Ocidental de Berlim, mas

os conhecedores da história não se postariam no outro paradigma, e, por essa mesma

razão, em agosto de 1961, inicia-se mais uma violência decorrente da Guerra Fria.

O segundo elemento é Conrad Schumann, o Vopo, que salta a barreira da

imposição. Deve-se atentar para o fato de ele ser um dos representantes legais da

opressão, da norma que impedia o direito de escolha e liberdade dos cidadãos.

Ele opõe-se, naquele momento, à quebra da liberdade individual imposta

pelo regime da Alemanha Oriental, ou seja, ele contrapõe-se à falta de consciência

pedida pelo uniforme, portanto, vai contra a postura esperada como padrão. Liberta-se

do modelo repressor, lutando contra o mesmo enquanto indivíduo consciente. Adorno

(1999, p. 129-30) analisa essa manipulação de conduta:

Se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador

- o que talvez seja equivocado embora útil à compreensão - eu o denominaria

de o tipo da consciência coisificada. No começo, as pessoas desse tipo se

tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o

conseguem, tornam os outros iguais a coisas.

Atente-se ao salto:

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Figura 4:

Conrad Schumann quebra com a possibilidade de coisificar-se. Vai,

portanto, encontrar seu próprio interesse, vai em busca de uma possibilidade de vida

diferente.

Peter Leibing, por sua vez, executa seu trabalho de fotojornalista e,

segundo seu colega de profissão, Custódio Coimbra:

[...] revela outro momento histórico desse século, ela simboliza a Guerra Fria,

e o fotógrafo teve uma presença de espírito muito grande, e eu acho que esse

momento mágico, representado pela ação, pelo flagrante, é o que pra mim

tem mais importância dentro do fotojornalismo, né, quer dizer, ele ficou

esperando quase duas horas pra fazer essa foto e ela não é nem antes, nem

depois, ela é o clímax (O Vopo em As 100 fotos do século, 1999).

Analisa-se pelo destaque dos elementos internos, o discurso da violência,

uma vez que a cerca de arame farpado impede inúmeros direitos das pessoas, já

normatizados em 1948, na Declaração dos Direitos Humanos, e, também, a velocidade

com que Conrad Schumann desfaz-se do papel de soldado fronteiriço, Vopo, para

tornar-se indivíduo, deixando o papel de repressor e assumindo o de reprimido,

arriscando sua vida em busca do direito à liberdade.

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Figura 5:

Com a imagem completa, mais os elementos que caracterizam a presença

da violência, foca-se novamente a fotografia como um todo e, com a possibilidade de

vinculá-la ao contexto, tem-se evidente a presença de um discurso, consequente da

Guerra Fria, que demonstrava, à época, e ainda hoje, a violência do regime da República

Democrática Alemã, o qual, só iniciou sua derrocada em 1989.

O Vopo em sala de aula

No terceiro bimestre do ano 2012, mais exatamente no mês de setembro,

foram apresentadas aos alunos do 9o. ano do Ensino Fundamental II de uma escola

particular, situada na região da Grande São Paulo, as seguintes informações no projetor

multimídia:

Jornal do Brasil

17 de agosto de 1961

1º Caderno/Capa

O direito de escolher

Um soldado da Alemanha comunista, encarregado de impedir, junto das

barricadas de arame farpado, a fuga de berlineses daquele setor para o lado

Ocidental, aproveitou um descuido dos colegas da guarda para gozar,

pessoalmente, da liberdade de escolha que lhe cabia impedir. O flagrante foi

colhido providencialmente, nesse exato momento por um fotógrafo da A2.

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Após uma primeira leitura, proporcionou-se uma discussão mais

abrangente, visando à compreensão das informações e discursos contidos no texto

jornalístico.

Questões como a Guerra Fria, a divisão da Alemanha e a queda do muro

de Berlim foram abordadas, entretanto, nesse momento, nenhum aluno chamou atenção

para a contradição da atitude do soldado.

A seguir, professor e alunos levantaram as informações mais importantes,

aquelas que garantiam a coerência do texto.

O passo seguinte foi a confecção de um texto dissertativo sobre os temas

amplamente debatidos, tendo como base a matéria do Jornal do Brasil.

Passados sete dias, as aulas de redação eram duplas e semanais. Antes de

os alunos receberem suas produções corrigidas e comentadas, foi-lhes apresentada a

fotografia, assim, foram os alunos notificados de que a mesma pertencia ao Jornal do

Brasil do dia 17 de agosto de 1961, e que ela fora tirada por Peter Leibing, fotógrafo da

A2.

Após vários comentários e impressões postas entre o diálogo do texto

escrito e do visual, foi pedido para que os mesmos redigissem uma carta, na qual quem

ocuparia o papel de remetente seria o próprio soldado que pulara o arame farpado e os

destinatários, seus pais que continuavam no lado Ocidental de Berlim.

Delas constam trechos inalterados abaixo comentados.

Durante todos esses anos, presenciei coisas terríveis; atos de total

desumanidade que nunca imaginei que pudessem existir. Meu serviço era

ficar na fronteira das Alemanhas, incumbido do direito de proibir seres

humanos de ir e vir. Foi por não aguentar tal situação que resolvi tentar

encontrar a minha própria liberdade. Pensei na possibilidade de fugir, afinal

de contas, eu fazia parte da barreira humana que tomava conta da fronteira

para a Alemanha Ocidental. Foi aí que aproveitei o descuido de outros

soldados, ultrapassei o limite de desigualdades. O momento foi único; senti o

poder da liberdade pairando sobre mim.

Alguns elementos da carta, dessa dupla de alunos, trazem à tona

elementos da presença da violência.

Pode-se notar a indignação do não poder imaginar atos que não devem

ser tomados como humanos. E é em virtude deles que o soldado abandona o seu posto

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de proibição, justamente por não suportar a realidade, requerendo assim a sua própria

liberdade através do salto.

Alguns termos e expressões encontram-se claramente carregados de

indignação em relação à violência imposta. São elas:

atos de total desumanidade que nunca imaginei que pudessem existir

incumbido do direito de proibir seres humanos de ir e vir

por não aguentar tal situação que resolvi tentar encontrar a minha própria liberdade

eu fazia parte da barreira humana que tomava conta da fronteira

ultrapassei o limite de desigualdades

senti o poder da liberdade pairando sobre mim

Por meio de outra produção textual discente, foi possível ler:

[...] lutei, e depois de tantas tristezas, finalmente por vontade própria gozei da

minha felicidade de estar livre, aproveitando do descuido de meus colegas,

corri desesperadamente com os olhos fixos na trincheira de arame farpado

que era a ultima barreira para a liberdade.

Nesta vê-se a presença da ação do soldado através do verbo lutar.

Percebe-se que a luta dá-se entre ele e a condição imposta. Dessa forma, ele pula, com

desespero, a barreira em busca da sua liberdade.

Importante notar que, mesmo desesperado, ele observa e vale-se do

descuido de seus colegas.

Os termos carregados de violência são:

lutei

aproveitando do descuido de meus colegas

corri desesperadamente com os olhos fixos na trincheira de arame farpado

ultima barreira para a liberdade

Outro trecho, por sua vez, traz o elemento esperança:

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Aqui, apesar de não ter onde morar e estar longe de vocês, vivo com mais

esperança.

A esperança sempre conduziu e conduz os homens. Diz o senso comum

que ela faz parte de uma criação judaico-cristã, porém, fazendo parte ou não,

permanecendo ou não como um lugar comum, ela continua movendo os mais variados

corações.

A separação da família é sentida, entretanto a possibilidade de se

vislumbrar o dia seguinte, sob o prisma da liberdade, mesmo não tendo um lugar fixo de

moradia, carrega o soldado adiante.

Dois trechos trazem à tona a violência:

apesar de não ter onde morar e estar longe de vocês

vivo com mais esperança

Da mesma forma, o sentimento sofrimento também era recorrente:

Devido ao sofrimento, a agressão psicológica e física cometerei um ato, que

talvez para os outros seja sinônimo de covardia, mas que para mim significa

coragem, podendo mudar radicalmente meu cotidiano.

A carta trabalha com um tempo anterior ao ato, o qual tem como

justificativa o sofrimento proveniente da agressão que se dá tanto no plano físico quanto

no psíquico.

Há também uma outra duplicidade: a covardia e a coragem. O soldado

demonstra um pré-julgamento daqueles que observarão ou terão conhecimento de seu

salto para a mudança, acreditando que o interpretarão como covardia. Todavia, o

soldado o justifica como a coragem de enfrentar a barreira, o perigo da morte, o

abandono das funções, a sobrevida para alcançar o bem maior, a vida vivida dia a dia.

Os termos pertencentes ao léxico que aqui forma o contexto da violência

são:

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sofrimento, a agressão psicológica e física

para os outros seja sinônimo de covardia

para mim significa coragem, podendo mudar radicalmente meu cotidiano

Da mesma forma, destaque foi dado por alguns discentes à liberdade:

No dia 15 eu planejei uma fuga, para simplesmente tentar a liberdade, e

nunca mais pisar em sangue e pegar em uma arma.

Tem-se uma passagem que acaba por descrever a trágica cena da qual

participa o soldado. A linha que separa vontade e possibilidade, ir e vir, solidariedade e

agressão.

A busca de liberdade traz dentro de si o desejo de abandonar para sempre

a qualidade de soldado que utiliza a arma para banhar seu solo de sangue. A liberdade

surge, assim, como algo simples, portanto, singelo, natural, espontâneo, modesto e, por

assim dizer, normal, oposto à ordem imposta.

Quanto às indicações do texto:

simplesmente tentar a liberdade

nunca mais pisar em sangue e pegar em uma arma

Por fim, destaca-se que outros discentes trouxeram, ainda, a temática do

juramento a que os soldados eram expostos:

[...] fui soldado na Alemanha Oriental e me sentia completamente

descontente por não ter a minha liberdade e impedir o direito de outras

pessoas, passei a planejar a minha fuga, mesmo traindo qualquer juramento,

eu não podia mais continuar.

O juramento quebra-se pela oposição desejo x função. Seu desejo

contrasta com suas atitudes. Mesmo representante de uma situação, ele não se enquadra

nas normas impostas para alguém com sua função, assim, quebra a regra em busca da

sua sincera verdade.

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São manifestações de violência:

descontente por não ter a minha liberdade e impedir o direito de outras pessoas

planejar a minha fuga, mesmo traindo qualquer juramento

não podia mais continuar

Conclusão

Percebe-se que há nos três textos uma correlação estabelecida pela

presença da violência. Assim, no texto fotográfico, no texto jornalístico (aqui não

analisado) e no texto discente encontra-se um pronunciamento de proporção maior.

No momento em que os textos são percorridos com o intuito de se buscar

o discurso que neles jaz, as suas partes internas, estruturais, ganham um novo

significado, principalmente quando alicerçadas pelo contexto.

A posição depreendida pelos procedimentos argumentativos em todos os

textos é a de relutância para com a violência, pois em todos os produtores textuais esta

postura fica clara.

Observa-se, também, que os textos entrecruzam-se com a finalidade de

reafirmar o sentido da violência e não com o intuito de polemizarem entre si.

Portanto, acredita-se que a busca da análise sintática, estrutural da

fotografia de Peter Leibing e sua aplicabilidade em sala de aula demonstram, por meio

dos textos discentes, que o embate contra a violência é válido e ainda capaz de surtir

efeitos positivos.

A sala de aula deve, portanto, abrir as portas para o texto fotográfico, a

fim de permitir que o aluno veja, perceba, sinta as possibilidades do texto imagético que

tanto o incita no cotidiano, no mais das vezes persuasivamente, visto que muito pouco

ainda se oferta do alfabetismo visual ao alunado brasileiro.

Ao instrumentalizar o aluno sintaticamente pela fotografia, seu repertório

amplia-se, fator que o possibilita a uma leitura reflexiva, quer da escrita pela luz, quer

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das outras formas visuais, desenvolvendo assim “sua expressão criadora, ou sua

capacidade de criar, inventar, relacionar, comparar, escolher, optar, devolver” (GÓES,

1996, p. 17).

Referências

O direito de escolher. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 ago. 1961. p. 1, c. 1.

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

CAPA PRODUCTION/ARTE. O Vopo. In: As 100 fotos do século, 1999.

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