29
O futuro de uma ilusão Sigmund Freud (1927)

O Futuro de uma Ilusão - fabiobelo.com.br · I – O futuro da Kultur De onde viemos? Como construímos nossa civilização? Por que temos instituições como a religião? Essas

Embed Size (px)

Citation preview

O futuro de uma ilusãoSigmund Freud (1927)

I – O futuro da KulturDe onde viemos? Como construímos nossa civilização? Por que temos instituições como a religião? Essas perguntas podem ser tidas como o mote deste livro de Freud. O autor começa seu livro explicitando que não só há incessante busca de respostas para aquelas indagações, como também “quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro.” (p. 15). Se perguntamo-nos sobre o passado, a questão “qual o futuro da civilização?” nos parece inevitável.

1

3

A cultura e o sujeito

Qual a relação do indivíduo com a cultura? Se por um lado, precisamos da civilização – para nos proteger, por exemplo – por outro, ela nos exige em demasiado. Segundo Freud, toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia à pulsão; sequer parece certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para empreender o trabalho necessário à aquisição de novas riquezas.

O que é Kultur (civilização/cultura)? Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível. (p.16).

4

Por que é necessária a coerção? Pelo fato de estarem presentes em todos os homens tendên-cias destrutivas e, portanto, anti-sociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendên-cias são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana. A lei, portanto, desde suas for-mas mais primitivas eviden-ciadas no totem e nos ta-bus, até as mais comple`-xas, como o moderno código penal, tem a função de controlar o pulsional em cada sujeito. Em Êxodo 20:3-17, podemos ter acesso aos mandamentos revelados a Moisés. A violência, por exemplo, é coibida com a lei “não matarás”,

assim como a cobiça, em “não furtarás”. A lei parece evidenciar não só a existência de um sujeito pulsional – avesso por-tanto, às formas de com-trole – mas também, duas características hu-manas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civi-lização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente aman-tes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas pai-xões. (cf. p.18).

5

II - As vantagens da civilização

Quais as vantagens da civilização? Imediatamente pensamos nos bens culturais tais como os remédios, a televisão, os meios de transporte e ainda as ferramentas e armas que nos ajudam a lidar com a natureza. Se pensarmos mais cautelosamente, porém, veremos que esses bens culturais não nos trazem necessariamente mais qualidade de vida. Os remédios e seus efeitos colaterais, a poluição, a guerra são só alguns exemplos do que esses produtos civilizados causam ao indivíduo. Frente a assertiva de que toda civilização repousa numa compulsão a trabalhar e numa renúncia à pulsão, perguntar qual a sua vantagem parece desalentador. Afinal, vários desejos são proibidos. O que acontece é assim descrito por Freud: “’frustração’ é o fato de uma pulsão não poder ser satisfeita, como ‘proibição’ o regulamento pelo qual essa frustração é estabelecida, e como ‘privação’ a condição produzida pela proibição” (p.21). A proibição de três desejos pulsionais em especial parece estar na base constitucional do processo civilizatório. A proibição incide sobre: O canibalismo; O incesto; A ânsia de matar;

6

Proibição internaSe, no começo do processo civilizatório, a coerção precisava ser externa, via lei e tabus, por exemplo, depois, essa coerção passa a ser internalizada. A criança vai aos poucos tornando-se um ser moral e social, na medida em que um núcleo psíquico que Freud denominou Superego (Über-ichÜber-ich) vai se formando. O superego tem como função a manutenção dos nossos valores e ideais de tal forma a coibir desejos incompatíveis com a cultura. A internalização da lei parece funcionar bem com a maior parte da população. Há, todavia, aqueles que continuam insociáveis, por diversos motivos. E ainda há outras “incontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou seus desejos sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes (...)”. (p. 23). Fica claro que a internalização da norma não é algo uniforme e que dependerá tanto da constituição do indivíduo, quanto de seu meio. Vemos que algumas transgressões da lei podem ser cometidas e às vezes são até legais (pena de morte, por exemplo). Diante de tantas regras ficamos tentados a imaginar que a maior parte da população, cuja vida é limitada aos panis et circensis mais comuns, cedo ou tarde, se oporá à minoria que a oprime e exigirá sua parte nos bens qualitativos que ela mesma ajudou a produzir. Triste, no entanto, é a visão das massas caladas, que estão muito longe de organizar uma revolução. Preferem as diversas ilusões pacificadoras que a cultura oferece: as drogas, a televisão, o futebol e a religião, para citar alguns poucos exemplos.

7

A cultura e seus predicados psíquicosO valor de uma civilização não se mede somente pela passividade da maioria. A cultura apresenta atributos próprios que podemos chamar de ideais. Esses ideais dizem respeito às estimativas das pessoas a respeito de que realizações são mais elevadas e em relação às quais se devem fazer esforços por atingir. A satisfação que o ideal A satisfação que o ideal oferece aos participantes da cultura é de natureza narcísicaoferece aos participantes da cultura é de natureza narcísica. (p.24).Podemos exemplificar o que foi dito acima, dizendo que um dos ideais de nossa civilização é que trabalhemos muito. Quando não conseguimos emprego, por exemplo, sentimo-nos culpados. Quando trabalhamos, por mais que soframos, há um ganho narcísico de tal forma intenso que corrobora a manutenção do trabalho. É como se ouvíssemos: “muito bem, olha como você é um bom trabalhador! Continue assim, você está cansado, mas isso é natural! Não seja preguiçoso! O que seu vizinho dirá se você estiver jogando bola, no bar todo o dia?” Dentre os ideais culturais, a arte se destaca enquanto fornecedora de um tipo especial de satisfação a uma pequena parte dos participantes da civilização. Segundo Freud, “a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização.” (p. 25).Se a arte está restrita a poucos, a religião não. Ao contrário, dentre os itens do inventário psíquico de uma civilização, a religião constiui-se numa das mais importantes ilusões.

8

Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça que nos reunimos e criamos a civilização, a qual também, entre outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a principal missão da civilização, sua raison d’être, é nos defender contra a natureza. (p. 26) Os diversos perigos como os terre-motos, doenças e a morte, por exem-plo, são as forças que a natureza ergue contra nós. Tudo isso só evidencia nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.

O perigo como causa da civilização

Edvard Munch (1893), O grito.

9

III. Como se defender do Destino?Contra os males da civilização, a resistência e a hostilidade servem como processos de defesa, mas contra a força da Natureza essas estratégias parecem não funcionar.Freud indica que um processo de defesa começou a se instalar quando os homens tornaram a natureza antropomórfica. A chuva era as lágrimas de algum deus e o trovão seu brado. Enfim, aos poucos a idéia de Destino foi se formando e tornando formato semelhante a esse que vivemos na sociedade. Não podemos nada contra a tempestade ou a morte, mas se imaginarmos que a tempestade é um castigo de um ser poderoso e a morte uma passagem para uma vida melhor, o terror perante elas diminuirá. Esse ser poderoso poderá ser apaziguado, subornado e influenciado a renunciar parte de seu poder. Sendo assim, usamos métodos idênticos aos que praticamos quotidianamente com nossos semelhantes para lidar com o que nos aterroriza.Freud vai aos poucos abrindo caminho até o ponto onde quer chegar: a função da religião é apaziguar o homem diante do terror da morte, do nada, da falta de sentido da vida. A explicação de que o sentido da vida é simplesmente o aprimoramento da mesma para a humanidade não é suficiente para o homem comum. O que ele precisa é saber por quê está no mundo, o que ele deve ou não fazer, enfim, pra onde irá depois que morrer. O que está sendo construído por Freud não é simplesmente uma arqueologia da religião, mas, propriamente, uma nova concepção do sujeito humano. Não mais acalentado por forças divinas e poderes sobrenaturais, mas sim um ser desamparado frente ao mundo que tem poucas saídas para encontrar o mínimo de satisfação.

10

O Desamparo (HilflosigkeitHilflosigkeit)Sentir-se desamparado diante do mundo não é privilégio dos adultos que se perguntam pelo sentido da vida. Ao contrário, esse desamparo encontra seu protótipo na infância, período no qual temíamos e desejávamos nossos pais (em especial o pai); sabendo, contudo, de que eles nos protegiam dos perigos que conhecíamos. Na formação de mitos e religiões, o desamparo do homem permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantém sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza; reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensar os homens pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs. (p. 29)Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Dentre essas idéias, a de que todo bem é recompensado e todo o mal, punido, é comum por exemplo, na religião cristã. As idéias religiosas são prezadas como o mais preciso bem da civilização, como a coisa mais precisa que ela tem a oferecer a seus participantes. Resta, então, questionar: o que são essas idéias à luza da psicologia? De onde derivam a estima em que são tidas? Qual o seu valor real?

11

IV. A origem de DeusFreud acredita que o pensamento não é só a expressão de uma curiosidade desinteres-sada. O que pensamos e sentimos tem motivos práticos e são construídos subjetiva-mente. Dizer que as idéias religiosas podem ser encontradas na natureza parece ser absurdo para Freud. A religião é transmitida culturalmente. Se antes, na religião totêmica, adorávamos animais e pedíamos a eles proteção e força, hoje em dia, adoramos deuses humanizados (Cristo, Buda, por exemplo). Essa substituição se deu graças e sob inspiração da primeira forma de amar que conhecemos: a escolha anaclítica do objeto de amor. Isto é, o amor

vem sempre apoiado em uma função orgânica. Amamos a mãe porque ela nos amamenta. Impor-tante salientar, porém, que a amamentação não é a causa do nosso amor, mas é condição de possibilidade.

O nascimento de Vênus - Botticelli

12

A importância da função paternaA relação da criança com o pai é matizada por uma ambivalência característica. Ele é ao mesmo tempo objeto de amor e de temor. Tememos o pai porque ele mesmo constitui um perigo para nós, afinal, amamos nossas mães, objeto do pai. “Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia em sua própria proteção.” (p.36) Ao que tudo indica, a idéia religiosa tem seu protótipo na infância, especialmente, na relação da criança com seu pai. Importante salientar que a função paterna pode ser exercida por qualquer pessoa. Ela está dada na cultura em forma de lei, portanto, o sujeito terá acesso a ela, mesmo não tendo um pai familiar. Para Freud, a relação de amor/terror, de fascínio e servidão que mantemos com o pai é prototípica para a idéia de Deus. Deus, no entanto, não é propriamente o interesse de Freud. O objetivo do Futuro é esclarecer quais as bases psicológicas para a instauração das crenças religiosas. Por que acreditamos em Deus, em espíritos, em vida após a morte? Qual a significação psicológica das idéias religiosas?

13

V. Por que cremos?Todos admitem que a religião é o campo da fé. Acreditamos porque devemos acreditar. Pedir uma prova empírica da existência de Deus parece-nos absurdo. O cientista, podem argumentar os religiosos, é como São Tomé. É possível que isso seja verdade, pois o que Freud faz é privilegiar o uso da razão para sustentarmos nossas crenças. Todo ensinamento, diz Freud, exige uma crença em seu conteúdo, mas não sem produzir fundamentos para sua reivindicação. Se aprendo que o mundo é redondo, que sou composto de células, etc., quero provas que sustentem essas crenças. Quando, todavia, exigimos tais constatações do homem religioso encontramos três argumentos: os ensinamentos religiosos merecem ser acreditados porque já o eram por nossos primitivos antepassados; possuímos provas que nos foram transmitidas desde esses mesmos tempos primevos; é totalmente proibido levantar a questão de sua autenticidade. Ora, esses argumentos não se sustentam. Nada garante que os antepassados tinham provas de seu conhecimento religioso. Essas “provas” (a Bíblia, o Alcorão, por exemplo) foram escritos por homens comuns. O argumento da ‘revelação’ não é suficiente, pois essa asserção é, ela própria, uma das doutrinas cuja autenticidade está em exame, e nenhuma proposição pode ser prova de si mesma.

14

Credo quia absurdumCredo quia absurdumOs espiritualistas não conseguem refutar o fato de que as supostas mensagens ‘psicografadas’ não são nada mais que um produto de seu próprio psiquismo.Duas saídas são então arquitetadas pelos religiosos. (1) Credo quia absurdum - essa doutrina diz que devemos crer e não questionar, pois a religiosidade está fora da jurisdição da razão - acima dela. Ora, “acima da razão não há tribunal a que apelar” (p.40). Assim sendo, “se determinado homem obteve uma convicção inabalável a respeito da verdadeira realidade das doutrinas religiosas, a partir de um estado de êxtase que os comoveu profundamente, que significação isso tem para os outros?” (p.41) (2) A segunda tentativa de refutar o uso da razão aplicado às idéias religiosas é a filosofia do “como se”. Os partidários dessa filosofia dizem que não temos metáforas suficientes para explicar o divino e o sobrenatural, assim sendo, criamos seres divinos, mitos como o Éden e assim sucessivamente. Esse argumento também desmorona sob o olhar da razão: não há porque acreditarmos que as metáforas religiosas (se as aceitarmos como tal) são melhores que outras hipóteses, como por exemplo, a do Big Ben.O que mais chama atenção de Freud é exatamente a falta de racionalidade nessas idéias religiosas. Como o homem, supostamente, um ser racional, deixa-se influenciar tão fortemente por idéias que se distanciam tanto do racional? Onde reside as forças das doutrinas religiosas?

15

VI. Do desamparo à ilusãoPara Freud, as idéias religiosas não constituem precipitados de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade.

Que desejos são esses? Tudo o que está ligado à necessidade de proteção através do amor. Podemos dizer que a antiga sensação de desamparo torna a demanda amorosa a mais importante tarefa a ser realizada pelo sujeito na sua vida adulta. Se, enquanto crianças, exigíamos amor e proteção dos nossos pais, como adultos dirigimos essa demanda a Deus. Demandar amor dos deuses é uma ilusão. O que é uma ilusão? Ilusão nem sempre é um erro. Uma característica das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. Elas se aproximam dos delírios, mas se apartam deles pois aquelas não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Por exemplo, uma moça pode acreditar que um príncipe aparecerá e se casará com ela. Acreditar em espíritos, vida após a morte e outras idéias que não se prestam ao escrutínio da razão, é uma atitude que nos distancia da realidade. Diz Freud: ““Os enigmas do universo só lentamente se revelam à nossa investigação; existem Os enigmas do universo só lentamente se revelam à nossa investigação; existem muitas questões a que a ciência atualmente não pode dar resposta. Mas o muitas questões a que a ciência atualmente não pode dar resposta. Mas o trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos.”conhecimento da realidade externa a nós mesmos.” (p. 45)

16

Privilégio da ciênciaO primazia do discurso científico é evidente em Freud. Outras descrições do mundo que não sejam as da ciência tem pouco valor ou tem outra função que não seja a de explicar porquê o mundo é como é. De qualquer forma, poder-se-ia dizer: “Ora, Freud, deixa-me crer em Deus, que mal há nisso? Se eu estiver errado, eu assumo minha ilusão!”. Freud não aceita esse tipo de argumento porque não podemos construir conhecimento sem o uso do processo racional. Cedo ou tarde, as hipóteses que surgem a partir da ignorância sucumbem perante os teste da realidade e da razão. “Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo por ser derivado dela.” (p.45) Religioso não é aquele que acredita na sua insignificância perante o Universo, que não sabe ao certo de onde veio, nem para onde vai. Essa sensação não é o que constitui a atitude religiosa, mas um passo seguinte, isto é, a reação que busca um remédio para ela. “O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.” (p.46)

O que Freud sugere é paremos um minuto e pensemos: quais das minhas crenças são fruto do meu desejo? Quais delas me ajudam a viver e a suportar o mal-estar? Por que acredito no que não posso ter certeza? Preciso mesmo dessas crenças? Como seria minha vida sem Deus, espíritos e reencarnação? Deixe aos poetas ver nas estrelas mais do que corpos flutuando no vazio!

17

VII. Apenas mais uma ilusão...Freud se pergunta se não existem outras ilusões que não seja a religião. Imediatamente ele responde que sim, elas vão desde os predicados morais, passando pelas regulamentações políticas, chegando na mais corriqueira das relações amorosas. Pergunta Freud: “E não acontece que, em nossa civilização, as relações entre os sexos sejam perturbadas por uma ilusão erótica ou um certo número dessas ilusões?” (p.47). Parece ser óbvio que as relações amorosas também estão plenas de ilusão. O que significa isso? Vimos que a concepção de sujeito descrita anteriormente é a do sujeito desamparado. Nós criamos nossas relações a partir do nosso desamparo. Seja com as drogas, com as religiões, com as namoradas, e todo o resto, o que queremos é suprimir a falta de amor. O que as torna pior ou melhor? Segundo Freud, a ilusão se torna perigosa quando ela não admite críticas: “só as drogas me dão o prazer que quero sentir”; “só existe uma pessoa no mundo com quem eu posso ser feliz”; “só Buda salva-nos do inferno dos prazeres”... Enfim, os dogmas cotidianos se multiplicam, levando o sujeito a uma situação de rigidez. Tudo parece indicar que esse tipo de rigidez (a cerca de si mesmo e do mundo) está em direta proporção ao sofrimento mental. O que Freud está propondo é: “veja, o mundo racional não te oferece muitas certezas, mas em compensação, você não se iludirá. Não pense de forma fixa sobre si e sobre o outro. Podemos ser redescritos de várias formas... Colocar o mundo numa fôrma, seja ela cristã, muçulmana e até psicanalítica, é perder de vista a variabilidade da experiência humana!”

18

“Deus está morto”, Nietzsche.Um interlocutor imaginário interrompe Freud, dizendo: suponhamos que se ensine às pessoas que não existe “um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, [os homens] se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização.” (p.47) Será mesmo? Será se nosso comportamento ético está necessariamente vinculado à religião ou a crenças como essas? O que Freud quer mostrar é que a ética não está vinculada à crenças especificamente religiosas. Aliás, para Freud “a civilização corre risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos”. (p.48)

A Crucificação – Salvador Dalí

19

WeltanschauungFreud se pergunta num dado momento qual a vantagem de escrever o Futuro de uma Ilusão, já que está certo de que será ineficaz. (p.49) Por quê? Primeiro, um livro, assim como um conselho, não são capazes de mudar um padrão de crenças e desejos tão bem estruturado como a religião. O que pode acontecer, quando um religioso ler o livro de Freud, é dizer que Freud era um ateu, ou que a psicanálise é ‘coisa do demônio’... Dificilmente, uma pes-soa que vive bem religiosamente, trocará suas crenças por outras menos cheias de certeza, só por causa do livro. Assim como, pessoas depressivas dificilmente encontrarão a almejada tranqüi-lidade nos livros de auto-ajuda.

Em segundo lugar, a ineficácia do Futuro se deve ao fato de que a psicanálise não oferece uma Weltanschauung para ser posta no lugar da qual ela tenta demolir - a religião. “Na realidade, a psicanálise constitui um método de pesquisa, um instrumento imparcial”(p.50), imparcial na medida em que critica seus valores e crenças a todo momento.

20

Da teologia à éticaA psicanálise é um método de implodir ligações amorosas que geram sofrimentoA psicanálise é um método de implodir ligações amorosas que geram sofrimento. Sejam ligações com Deus, com o bem material ou com o namorado! O trabalho do analista é exatamente questionar nossos vínculos amorosos para que possamos reavaliá-los. Quem sou eu nessa ou naquela relação? O que eu desejo? O que o outro deseja? Como Deus entra na minha vida? Eu preciso Dele? Ele precisa de mim?Para Freud, “se a aplicação do método psicanalítico torna possível encontrar um novo argumento contra as verdades da religião, tant pis para a religião, mas os defensores desta, com o mesmo direito, poderão fazer uso da psicanálise para dar valor integral à significação emocional das doutrinas religiosas”. (p.50) Não há dúvidas de que o papel da religião para a humanidade foi fundamental. Refreou os instintos mais diversos e colocou em ordem o que tendia ao caos - o desejo. Mas vemos que seu papel não é tão eficaz nos dias de hoje. Com o advento da ciência, o homem deixou de acreditar nos poderes divinos. Baseado nisso, Freud diz: “se as realizações da religião com respeito à felicidade do homem, susceptibilidade à cultura e controle moral não são melhores que isso (sua teologia), não pode deixar de surgir a questão de saber se não estamos superestimando sua necessidade para a humanidade e se fazemos bem em basearmos nela nossas exigências culturais”. (p.51) O que Freud está mostrando é que devemos passar do padrão teológico-moral para o plano ético, sentido lato. Por exemplo, não se mata o próximo por quê? Não mais porque Deus não quer ou porque vou para o inferno. Não o mato porque esta é uma regra mínima de convivência entre meus iguais... (A discussão ética é longa nesse aspecto.)

21

VIII. Por que a lei? Freud termina o último capítulo sugerindo que se a idéia de Deus for eliminada da civilização, então teremos duas conseqüências possíveis: Ou as massas terão de ser muito severamente submetidas e com todo cuidado mantidas afastadas de qualquer possibilidade de despertar o intelectual; Ou então o relacionamento entre civilização e religião terá de sofrer uma revisão fundamental. Que revisão seria essa? Será mesmo que as massas não saberiam se controlar sem o terror de Deus? Será que as leis são postuladas realmente por Deus?Freud acredita que as leis são fruto da insegurança da vida, “que constitui perigo igual para todos, une hoje os homens numa sociedade que proíbe ao indivíduo matar, e reserva para si o direito à morte comunal de quem quer que viole a proibição. Aqui, então, temos justiça e castigo.” (p.54).

O pragmatismo freudiano chega a ser irônico quando ele diz que nem todas as leis tem essa “auréola” divina. De fato! Imaginemos a lei que proíbe a circulação de carroças na Av. Antônio Carlos, ou ainda, a lei que limita a velocidade... Tudo isso perde a força daquelas leis ouvidas por Moisés no Monte Sinai...

22

A lei é a lei dos HomensDevemos abandonar a crença de que Deus criou as leis e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. “Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas pelo contrário, para servir a seus elaborados, não tanto para dominá-las, mas pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com ele e, em vez de interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com ele e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria. Isso constituiria um visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria. Isso constituiria um importante avanço no caminho que leva à reconciliação com o fardo da importante avanço no caminho que leva à reconciliação com o fardo da civilizaçãocivilização.” (p.55)

Freud desenvolveu, em Totem e Tabu, uma hipótese sobre a origem da lei não matarás. Para nosso objetivo aqui basta lembrar que a lei tem um motivo histórico. Ela é feita para garantir a segurança de todos os componentes do clã. Além dessas importantes reminiscências históricas, o cabedal de idéias religiosas, como vimos, inclui também importantes realizações de desejos, especialmente aquelas vinculadas à minimização do desamparo.

23

Neurose individual e neurose universalFreud finalmente estabelece sua hipótese final sobre a religião: ela é uma neurose universal da humanidade; “tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai.” (p.57). Assim como na neurose individual, o sintoma surge do recalcamento, a religião ela mesma surge da repressão de diversos desejos do homem – matar o próximo, por exemplo. É bastante evidente que essa essa analogiaanalogia não esgota a natureza essencial da religião não esgota a natureza essencial da religião. Denominando a religião como sendo uma neurose, Freud chama atenção para o fato de que assim como os sintomas, a religião é a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem raízes na história infantil do sujeito e constitui compromissos entre o desejo e a defesa. Desta forma, a aceitação da neurose universal poupa ao indivíduo o trabalho de elaborar uma neurose pessoal. A pretensão de Freud é, tal como acontece num tratamento analítico, de substituir os efeitos da repressão pelos resultados da operação racional do intelecto. Essa analogia neurose individual / neurose universal é mais trabalhada em Atos obsessivos e práticas religiosas. Nesse texto, Freud (1907) demonstra entre a religião e a neurose obsessiva há mais que semelhanças. Diz Freud: “É fácil perceber onde se encontram as semelhanças entre cerimoniais neuróticos e atos sagrados do ritual religioso: nos escrúpulos de consciência que a negligência dos mesmos acarreta, na completa exclusão de todos os outros atos e na extrema consciência com que são executados em todas as minúcias.” (p.123)

24

Destino de ÉdipoO neurótico obedece a uma compulsão, o faz sem compreender-lhe o sentido. O ato obsessivo serve para expressar motivos e idéias inconscientes. Da mesma forma, o ato religioso tem motivos inconscientes para se instaurar. O esquema proposto por Freud é o seguinte: temos um desejo, esse desejo é proibido e por isso será recalcado. O desejo ainda permanece exigindo satisfação, que é conseguida através de uma solução de compromisso. O sujeito é tomado por um sentimento inconsciente de culpa e se vê obrigado a atuar, como um ato de defesa ou de segurança, como uma medida protetora. Por exemplo, o desejo de matar o pai. Desejo intolerável, que aceita ser deslocado para um ritual religioso - “o meu corpo e o meu sangue”... Através desse substituto, reproduz-se uma parcela daquele mesmo prazer que se pretendia evitar, e ele serve ao desejo reprimido, tanto quanto às instâncias que o estão reprimindo. Uma diferença é importante entre a neurose obsessiva e a prática religiosa: “A semelhança fundamental residiria na renúncia implícita à ativação das pulsões constitucionalmente presentes; e a principal diferença residiria na natureza desses instinto, que na neurose são exclusivamente sexuais em sua origem, enquanto na religião procedem de fontes egoístas.” (Freud, 1907, p.130).Enfim, a luta entre pulsão e cultura faz valer o destino do complexo de Édipo: submissão completa à vontade de Deus Pai. O que interessa a Freud é reavaliar essa relação. É necessariamente submissa? O que nos impede de levar adiante nossa própria neurose?

25

IX. Educação para realidadeO crente está ligado aos ensinamentos da religião por certos vínculos afetivos. A psicanálise tem por objetivo fazer com que o sujeito reveja não só esses vínculos, mas todos os outros. De fato, o que Freud propõe é que os seres humanos não têm que ser de uma forma específica. O humano tem que, cada vez mais, saber balancear o desejo e a razão. Não é necessária sempre a repressão, nem sempre será o racionalismo.

Os homens terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o centro da criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma Providência beneficente.

Freud propõe finalmente uma educação não religiosa. Ele sabe, porém, que “o crente não permitirá que sua crença lhe seja arrancada, quer por argumentos, quer por proibições. E mesmo que isso acontecesse com alguns, seria crueldade. Um homem que passou dezenas de anos tomando pílulas soporíferas, evidentemente fica incapaz de dormir se lhe tiram sua pílula.” (p.63).

26

Descrença para liberdadeO que Freud quer demonstrar é que “afastando suas expectativas em relação a um outro mundo e concentrando todas as energias liberadas em sua vida na Terra, provavelmente [os homens] conseguirão alcançar um estado de coisas em que a vida se tornará tolerável para todos e a civilização não mais será opressiva para ninguém”. (p.64) A ilusão das nossas ligações não têm futuro: todas elas serão postas em análise. Desta, os resultados são imprevisíveis. Sabemos porém, como um companheiro de descrença de Freud, que a perda do Céu será inevitável, mas acreditamos que essa perda acarretará maior liberdade. Diremos com Heine:

Den Himmel überlassen wirDen Himmel überlassen wirDen Engeln und den Spatzen.Den Engeln und den Spatzen.

(Deixemos o Céu Aos Anjos e pardais).

O pássaro de Céu, Magritte

27

X. Utopia freudianaChamando seu interlocutor imaginário, Freud faz sua auto-crítica: “Seus esforços se reduzem a uma tentativa de substituir uma ilusão já provada e emocionalmente valiosa, por outra, que não foi provada e não possui valor emocional.”Freud está ciente que sua utopia racionalista está distante de acontecer. Os homens ainda precisam de muitas ilusões. O que difere porém a ilusão freudiana da ilusão religiosa é que castigo algum será imposto a quem não partilha daquelas, as ilusões de Freud não são, como as religiosas, incapazes de correção. O fato da educação para realidade ser ainda distante, isso não acarreta fortalecimento das crenças religiosas. Freud é incansável na defesa do intelecto, diz ele: “A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue audiência. (...) A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro muito distante, mas provavelmente, não num futuro infinitamente distante.” (p.68) Freud adverte quanto ao seu Deus: “Logos atenderá todos os desejos que a natureza a nós externa permita, mas fa-lo-á de modo muito gradativo, somente num futuro imprevisível e para uma nova geração de homens. Não promete compensação para nós, que sofremos penosamente com a vida.” (p.68)

28

Servidão às crençasCedo ou tarde, acredita Freud, nada resiste à experiência e à razão. O religioso deve defender suas crenças e ilusões com todas as suas forças. Se essas tornarem-se desacreditadas seu mundo desmoronará. Dessa servidão, Freud e quem utiliza a razão está livre. Devemos estar preparados para renunciar a uma boa parte de nossos desejos infantis, podemos suportar que algumas de nossas expectativas mostrem que não passam de ilusões. Não será por causa disso que perderemos nosso interesse no mundo e na vida. Ao contrário, Freud se mostra otimista quanto ao uso da razão. Por mais tortuoso que seja esse caminho, acredita-se que ele nos levará a um mundo melhor, onde Deus não passará de uma lembrança da infância da civilização. Enfim, Freud deposita todas as suas esperanças na ciência: “Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar.” (p.71).

29

Discussão [Millot, Catherine. Freud Antipedagogo.] As idéias religiosas visam restaurar o narcisismo infantil. A superação desse narcisismo corresponde a assunção da castração, isto é, da nossa divisão. A educação para a realidade é um remédio para os malefícios da civilização: encarar a realidade rejeitando a ilusão, assegurar a supremacia da razão sobre as forças pulsionais em detrimento do recalque. Nenhuma harmonia sonhada entre o homem e o mundo aparece no horizonte da reflexão de Freud. Ao contrário o que Freud acentua com insistência é a impossibilidade de o homem satisfazer-se. “O contexto em que se inscrevem as palavras de ordem propostas por Freud é formal - ele descarta que se possas encontrar aí a expressão de um racionalismo confiante nas virtudes da “Aufklärung”. Não é a um positivismo à Augusto Comte que ele adere quando pretende que a humanidade se desfaça da neurose religiosas que ainda a prende à sua infância.” (p. 103) Até que ponto Freud se filia ao Iluminismo de Voltaire, Feuerbach, entre outros? Die Erziehung zur RealitätDie Erziehung zur Realität - Realität, aqui, designa ainda mais que as ameaças que a natureza nos dirige, a “realidade psíquica” que constitui o inconsciente: a discordância entre as pulsões, o Real do sexo e da morte, cujo desconhecimento funda, segundo Freud, a realidade social, Real que a ilusão - e em particular a religiosa - tem como finalidade obliterar. Ganhamos algo com a troca, na substituição da moralidade comum, fundada sobre a ilusão, por uma ética da verdade?