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O Golpe Fiscal e o Impeachment do Brasil

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carta maior | revista 5 | novembro 2015

o golpe fiscal e o impeachment

do brasil

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As “regras de Serra” e a austeridade permanente Pedro Paulo Zahluth Bastos

Limitações ao endividamento público: Lobo em pele de Cordeiro? Roberto Requião e Lindbergh Farias

Carlos Lessa: Serra e a gosma que nos devora Saul Leblon

A máquina de triturar nações Saul Leblon

Notas sobre o limite para divida publicas Pedro Rossi

As consequências econômicas da“regra de Serra” Guilherme Santos Mello

‘Se o projeto de Serra vigorasse em 2008 teríamos uma depressão’, diz Fernando Ferrari Filho

A inconstitucionalidade do projeto Serra na contramão do desenvolvimento nacional Ceci Juruá

O projeto de Serra para estrangular o Estado J. Carlos de Assis

A austeridade permanente de José Serra e as pedaladas verbais dos economistas tucanos Pedro Paulo Zahluth Bastos

A armadilha do superávit primário Paulo Kliass

O ilusório abismo fiscal dos EUA Michael Hudson

Assim funcionam as cortes de exceção do capital Claire Provost e Matt Kennard

Especialista exibe falhas em estudo que levou a aplicar a austeridade na Europa La Jornada

‘A dívida grega, assim como a brasileira, é odiosa’ Najla Passos

A causa real da crise financeira na Espanha Vicenç Navarro

A Argentina, a crise do capitalismo e o nó górdio Mônica Peralta Ramos

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A gestão da política fiscal, monetária e cambial do país correm um risco desconhecido. O Senador José Serra é responsável por relatar um projeto para definir um teto para a dívida pública da União. Com debate público praticamente nulo, o projeto foi incluído na chamada “Agenda Brasil” de Renan Calheiros e será apreciado pela Comis-são de Assuntos Econômicos do Senado na terça--feira, 03 de novembro.

Contra o projeto de Serra, foi publicado um manifesto assinado por economistas que rejeitam os riscos ao crescimento do emprego e da renda, e apoiado por intelectuais e ativistas que rejei-tam a ameaça à soberania popular que o projeto embute.

Os limites propostos pelo projeto de Serra são tão draconianos que podem exigir cortes que não apenas inibem o crescimento econômico, mas re-querem tesouradas sobre despesas obrigatórias, sobretudo rubricas do gasto social garantidas na Constituição Cidadã e/ou privatizações de patri-mônio público.

Para dar seguimento ao debate público, a Carta Maior solicitou novos artigos e realizou en-trevistas que debatem criticamente o projeto. Além disso, A edição da revista da Carta Maior deste mês de novembro apresentará matérias já publicadas sobre o risco de paralisia do governo nos EUA tra-zido por legislação que o Senador Serra pretende importar, tanto em 2013 quanto em 2011.

***

O Senador José Serra foi à Comissão Econômica do Senado no dia 20 de outubro para defender sua subemenda ao projeto de resolução do Senado Federal (PRS no 84/2007) que institui limites ao endividamento da União.

Embora arrogasse competência técnica,

o Senador mostrou desconhecimento de fatos básicos da história da aplicação de legislação semelhante nos EUA. Ele disse que acompanha o tema desde que voltou de pós-graduação nos EUA, onde a aplicação não teria levado a qualquer problema.

Se de fato acompanha o problema, o déficit de atenção do Senador é abissal: em 2013, vários serviços públicos foram interrompidos nos EUA por causa do teto da dívida pública, levando in-clusive ao medo de default da dívida. Um pouco antes disso, junto com a crise europeia, o blo-queio do Partido Republicano à elevação do teto da dívida pública e a ameaça de shutdown (ou fechamento do Estado) nos EUA em julho de 2011 marcou a segunda fase da crise financeira global, quando o problema fiscal assumiu o centro da agenda política. O impasse levou à redução do rating dos EUA pela Standard & Poor’s, embora a crise tenha até aumentado a demanda por títulos americanos.

A falta de perspectiva histórica do Senador Serra também é surpreendente: drama seme-lhante já ocorrera entre novembro de 1995 e ja-neiro de 1996, quando o Congresso liderado pelo Republicano Newt Gingrich se recusou a elevar o limite da dívida e forçou o governo de Bill Clinton a paralisar serviços para evitar o default da dívi-da. Além desse, já ocorreram outros 16 episódios de shutdown.

A desinformação do Senador se estende a seu próprio projeto: ele sugeriu que o projeto se li-mitaria a estimular a realização de estudos sobre os determinantes da elevação da dívida e exigir a prestação de contas pelo governo.

Nada mais falso: caso o governo não alcance a meta exigida no final do prazo de 15 anos, o projeto prevê nada mais nada menos que a inter-rupção de novas operações de crédito enquanto

As “regras de Serra” e a austeridade permanentePedro Paulo Zahluth Bastos*

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“Art. 3º Ao final de um período de transição, de quinze exercícios financeiros, contados a partir do exercício seguinte ao de publicação desta Resolução:I – a dívida consolidada não poderá exceder a qua-

tro inteiros e quatro décimos vezes a receita corrente líquida; e

II – a dívida consolidada líquida não poderá exceder a duas vezes e dois décimos vezes a receita corrente líquida...

Art. 4º Durante o período de transição a que se refere o art. 3º, serão observados os seguintes limites:I – nos cinco exercícios seguintes ao de publicação

desta Resolução: a) a dívida consolidada não poderá exce-

der a sete inteiros e um décimo vezes a receita corrente líquida; e

b) a dívida consolidada líquida não poderá exceder a três inteiros e oito décimos vezes a receita corrente líquida.

II – do sexto ao décimo quinto exercício financeiro seguintes ao de publicação desta resolução, os limites anuais máximos para a dívida con-solidada e para a dívida consolidada líquida,

durar o excesso de endividamento, resguardada a rolagem da dívida. O projeto não deixa claro se a “rolagem” se restringe ao principal ou se inclui os juros. Se não incluir, o cenário de paralisia de serviços públicos é imediato. Mesmo que inclua, imagine-se a instabilidade política e financeira que tal situação pode gerar no Brasil, com conse-quências muito graves do que em um país, como os EUA, que emite a principal moeda e o título público mais demandado no mundo. Repetindo a imagem de Laura Carvalho, o projeto de Serra erige um muro no fim do túnel.

Austeridade permanente: a regra de Serra é pior que a regra de Delfim Neto Estranhamente, na defesa do projeto na CAE, Ser-ra mostrou-se extremamente incomodado com o valor do esforço fiscal calculado, no manifesto contrário a seu projeto, em 30% do PIB para que a razão dívida consolidada bruta/receita corrente líquida (DC/RCL) chegue à “regra de Serra”.

O incômodo de Serra é no mínimo curioso, porque o cálculo foi feito exatamente segundo a proposta de seu próprio projeto! De fato, nas pá-ginas 16 e 17 do parecer de Serra, lê-se o seguinte:

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como proporção da receita corrente líquida, serão apurados pela seguinte regra:

a) Apura-se a diferença a maior entre o valor observado ao final do exercício anterior e o limite fixado no caput do art. 3º;

b) Divide-se o valor calculado nos termos da alínea a pelo número de anos res-tantes do período de transição.”

Em artigo recente, realizei exatamente o cál-culo que seu projeto exija que se faça, facilitando o entendimento do leitor ao usar valores atuais para os limites admitidos pelo projeto:

“... como estimativas sobre o comportamen-to do PIB, das receitas tributárias, do superávit primário e das taxas de juros nos próximos quin-ze anos são completamente incertas, o leitor pode ter uma noção simples (mas subestimada) do esforço fiscal envolvido se considerarmos a dife-rença dos valores da dívida bruta correspondentes à relação DC/RCL igual a 7,1 ou a 4,4, tomada a RCL no valor dos últimos doze meses em julho... Nes-tes termos, trazer a relação DC/RCL de 7,1 para 4,4 envolve mais de R$ 1,75 trilhão (um pouco mais de um trilhão, setecentos e cinquenta bilhões de reais) ou mais de 31% do PIB.”.

Esse é exatamente o cálculo que o projeto de Serra solicita que seja feito para a dívida bru-ta que, como veremos, é o limite fundamental imposto. Mais estranho do que o incômodo do Senador com as críticas ao impacto contracio-nista do seu projeto, é sua sugestão de que sejam incorporados os efeitos da relação entre a dívida consolidada bruta e a receita corrente líquida ao longo do tempo. É questionável que o Senador tenha feitos os cálculos, pois a avaliação da di-nâmica da razão DC/RCL entre 2020 e 2030 mostra que o esforço fiscal necessário é ainda maior do que parece à primeira vista.

Imaginemos que, em 2020, a razão dívida consolidada bruta/receita corrente líquida (DC/RCL) alcance a estimativa presente no projeto de Serra, 6,9, e que a RCL cresça na mesma taxa de crescimento do PIB, se estabilizando em 11% do PIB. Vamos supor, também, que o PIB real alcance RS 6,1 trilhão em 2020, levando a RCL para R$ 671 bilhões.

Se, em 2030, a razão DC/RCL alcançar a meta de Serra, ou seja, 4,4 (saindo de 6,9 em 2020), o

valor da dívida consolidada bruta, em termos absolutos reais, será menor do que o valor inicial em 2020, a menos que o crescimento do PIB seja superior a 4,6% ao ano (o que é altamente impro-vável). O mesmo acontece para a dívida líquida (com uma taxa de crescimento do PIB e da RCL ligeiramente maior), supondo que a razão dívida consolidada líquida/receita corrente líquida (DCL/RCL) alcance a meta de Serra em 2030, ou seja, 2,2 (saindo de 3,5 em 2020).

Para que a dívida caia em termos reais entre 2020 e 2030, é necessário que o superávit fiscal primário supere a conta de juros. Ou seja, é necessário que haja superávit fiscal nominal, a menos que ocorram mudanças patrimoniais (como venda de empresas estatais). Em outras palavras, a economia de impostos recolhidos, mas não gastos, a cada ano, deve ser maior do que a conta de juros da dívida pública. Nas úl-timas duas décadas, são raríssimos os anos em que a conta de juros foi inferior a 5% do PIB. Se algo assim se repetir (e em 2015 a conta de juros se aproxima de 9% do PIB), é improvável que o superávit primário requerido pela regra de Serra seja inferior a 5% ao ano.

É difícil imaginar que a economia brasileira consiga crescer a taxas razoáveis entre 2020 e 2030, para não falar à taxa média de 4,6% (ne-cessária para atender a regra de Serra sem que a dívida pública se reduza), se o governo precisar gerar superávits primários maiores do que a conta de juros da dívida pública. Se a economia crescer algo mais do que 1% em algum ano (o limite inferior a partir do qual a regra de Serra permite mero adiamento do ajuste fiscal), com altíssima probabilidade o superávit primário necessário para alcançar a regra de Serra será grande o suficiente para relançar a economia na recessão.

A necessidade de superávit nominal da regra de Serra chega a ser mais draconiana do que a proposta de déficit nominal zero, mais uma das ideias “geniais” da lavra de Antônio Delfim Neto. Assim como no final de 2014 (com os resultados desastrosos conhecidos), Delfim Neto apoiou e propôs cortes a Joaquim Levy que, em 2005, pro-vavelmente fariam a economia brasileira perder o vigor que, a despeito dos juros astronômicos,

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permitiu reduzir a relação dívida pública/PIB gra-ças ao crescimento do PIB. Delfim Neto, pelo me-nos, fez a proposta rudimentar em 2005, quando a economia mundial passava por um boom de forte impacto positivo sobre as exportações brasileiras.

Imagine-se os efeitos desastrosos de algo ainda mais draconiano a partir de 2020. Em 2030, a economia não bateria no muro do fim do túnel, pois provavelmente não teria forças para chegar nele.

É importante que os cálculos que embasa-ram o projeto de Serra sejam de domínio público, para que saibamos qual a combinação suposta entre superávit primário e “ajustes” patrimoniais. E também porque, como veremos, o próprio Te-souro Nacional questiona o entendimento con-ceitual que embasa o projeto de Serra. Chega de cortina de fumaça sobre os cálculos.

A denúncia (agora silenciada) de crime de res-ponsabilidade do Banco Central No fim do túnel, em 2030, a perspectiva de insta-bilidade política e financeira é tanto maior porque o projeto de Serra ataca, explicitamente, a gestão da política monetária e cambial do BC, alegando que “a fixação de um teto para a dívida consoli-dada forçará o Tesouro a escolher entre colocar títulos em mercado ou na carteira da Autoridade Monetária” (p. 9).

O alvo são as operações compromissadas através da quais o BC realiza a política monetária, emitindo títulos públicos, em mercado aberto, para assegurar a convergência dos juros SELIC para a meta definida pelo Comitê de Política Mo-netária, o COPOM. Quando os juros estão abaixo da meta, o BC lança títulos para enxugar a liqui-dez até alcançar a meta. A liquidez gerada pela compra de reservas cambiais também resulta em operações compromissadas, de modo que estas foram e são centrais para a condução das polí-ticas monetária e cambial. As compromissadas podem ser criticadas (como fiz no artigo anterior), mas as críticas feitas pelo projeto de Serra são equivocadas e perigosas.

Um argumento de Serra para defender o projeto é que a exigência de limite de dívida e a punição por descumprimento são feitas para Estados e Municípios na Lei de Responsabilida-

de Fiscal, e não para a União, o que significaria injustiça.

Isso, no máximo, exigiria definir um limite para a dívida líquida da União, mas não para a dívida bruta. É exatamente o que propõe o projeto original que Serra relata. Outro projeto de lei de 2000, o PL n° 3.431, define um limite para a dívida pública bruta (na verdade, para a dívida mobi-liária federal, que tem quase o mesmo valor), mas ele é 6,5 vezes maior que a receita corrente líquida.

Para Serra, não adianta contra-argumentar que apenas a União realiza política monetária e cambial (o que exige a emissão de títulos públi-cos), pois o Senador crê que as operações com-promissadas por meio das quais o BC realiza as políticas monetária e cambial são mecanismos disfarçados de “financiamento inflacionário do Tesouro” (p. 9).

A proposta inicial de Serra exigia definir um limite para as operações compromissadas do BC. Sob pressão generalizada, a limitação direta foi retirada do projeto. No entanto, como as opera-ções compromissadas e as reservas cambiais são os motivos fundamentais da diferença entre a dívida pública bruta e líquida, a definição de limi-te para a dívida bruta preserva indiretamente o objetivo de limitar as operações compromissadas.

De fato, o projeto de Serra alega que a defini-ção de um limite global para a dívida bruta e o ob-jetivo de forçar o Tesouro “a escolher entre colocar títulos em mercado ou na carteira da Autoridade Monetária” representa “...apenas uma trava par-cial e indireta no mecanismo de ‘terceirização’ da rolagem da dívida do Tesouro para o Banco Central... Buscarei alterar a legislação ordinária que trata da relação financeira entre o Tesouro e o Banco Central, com vistas fechar brechas ao financiamento inflacionário do Tesouro” (p.9).

Na defesa do projeto na CAE, Serra é explí-cito ao alegar que seu projeto estabilizaria as operações compromissadas em um valor pouco superior ao que assumem hoje.

É espantoso, mas nem Serra nem seus assessores entendem a relação entre política monetária, cambial e fiscal. Vamos repetir, tor-cendo para que dessa vez o Senador Serra e seus assessores entendam: primeiro, o BC não financia

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o Tesouro ao realizar a política monetária com operações compromissadas. Segundo, o Tesouro não tem por função realizar política monetária, ou seja, enxugar o excesso de liquidez no sistema bancário.

Com todas as letras, o projeto de Serra acusa o BC e o Tesouro de crime. O BCB financiaria o Tesouro caso pagasse pelos títulos que o Tesouro transfere para que realize a política monetária. Isso ocorre no país? Não há qualquer dado que fundamente a acusação, que é extremamente grave.

O BCB tampouco transfere para o Tesouro os recursos do lançamento de operações compro-missadas com títulos públicos, ou seja, o governo não toca nos recursos que o BCB enxuga com o lançamento das compromissadas.

Se tais acusações não forem substanciadas, a justificativa do projeto de Serra para, na prática, eleger a dívida bruta como limite para o endivi-damento, visando criar uma “uma trava parcial e indireta no mecanismo de ‘terceirização’ da ro-lagem da dívida do Tesouro para o Banco Central”

e começar a “fechar brechas ao financiamento inflacionário do Tesouro” é apenas uma irrespon-sabilidade política e técnica com consequências desastrosas.

As pedaladas verbais dos economistas tucanos A acusação irresponsável vem sendo feita há algum tempo por economistas tucanos, sem que ninguém exigisse comprovação ou retratação pú-blica, chegando ao ponto absurdo de sustentar o projeto de Serra.

Nas palavras de Gustavo Franco, em 28 de maio de 2013: “ O Tesouro não tem conseguido rolar as quantias que gostaria nas condições que deseja e, por conta disso, amortiza seus títulos que vão vencendo e gerando ‘liquidez excessiva’ que o BCB ‘enxuga’ através das chamadas operações compromissa-das. Os valores acumulados nessas operações já andam pela casa de 10 unidades. E para números assim tão altos é inequívoca a percepção de que o BCB está substituindo o Tesouro na rolagem da

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dívida, o que pode ser interpretado como finan-ciamento ao Tesouro, conduta vedada pelo artigo 164 da Constituição.”.

Nas palavras de Yoshiaki Nakano, em 11 de se-tembro de 2015:“Na nossa configuração institucional, o Executi-vo pode ter déficits públicos ilimitados já que o Banco Central acabará financiando, com moeda indexada, isto é, no overnight, como já vem acon-tecendo crescentemente”.

O que é mais grave é que essa acusação, que tem efeitos deletérios sobre a confiança sobre a política monetária e a gestão da dívida pública, continuou sendo feita depois de que o próprio Banco Central lançou nota de esclarecimento sobre a questão. O esclarecimento do BCB refutou cabalmente as acusações feitas em reportagem e editorial do jornal O Estado de São Paulo que teve por base uma pesquisa da Tendências Consultoria divulgada em 2013.

Aliás, o responsável pela pesquisa da Ten-dências Consultoria é hoje assessor parlamentar do Senador José Serra, o economista Felipe Salto. Se a acusação estivesse correta, os responsáveis pelo BCB estariam cometendo crime de responsa-bilidade desde 2002, quando o prazo definido pela Lei de Responsabilidade Fiscal para o lançamento de títulos se esgotou, e o BCB passou a usar títulos do Tesouro Nacional em operações de mercado aberto para regular a liquidez do mercado e asse-gurar a convergência das taxas de juros interban-cárias para a meta SELIC, com amplo e crescente uso de operações compromissadas.

Ou o senador José Serra tem informações privilegiadas ou, a ele, seus assessores e outros economistas do PSDB, faltou estudar a questão. Se tiverem informações privilegiadas que com-provem a acusação de que o BC financia inflacio-nariamente o “déficit público”, é importante que levem adiante a denúncia com a apresentação pública das provas. Caso contrário, deveriam se retratar e retirar o projeto de limitação da dívida bruta.

A relação entre o Banco Central e o Tesouro, na gestão das operações compromissadas, não é pouco transparente. Pouco transparente e confuso

é, sim, tanto o entendimento quanto a acusação dos economistas tucanos de que existe algo de errado. Onde estão as provas? Por que não fazem uma acusação formal nas instâncias relevantes?

Estranhamente, na sua defesa do projeto na CAE, o Senador simplesmente silenciou sobre a acusação ao BC que consta de seu projeto. Por que? Terá lido as críticas do manifesto contrário a seu projeto? Terá lido melhor o próprio projeto que acusou Maria da Conceição Tavares e Carlos Lessa de não terem lido? Terá percebido enfim o absurdo de sua justificativa técnica para, na prática, substituir a dívida líquida (tal como no projeto original que Serra relata) pela dívida bruta como objeto de limitação da política fiscal, ao acusar sem fundamentos o Banco Central de realizar pedaladas fiscais?

Sim, a dívida bruta substitui a dívida líquida como limite efetivo no projeto de Serra

Na sua defesa do projeto na CAE, Serra afirmou que seu projeto não propõe substituir a dívida bruta pela dívida líquida. Isso é uma meia-verdade, pois se formalmente a proposta de substituição não é feita, para todos os efeitos práticos ela é feita. Com efeito, a dívida líquida deixa de ser relevante na proposta de Serra, e o limite verdadeiro é a dívida bruta. Por que?

O primeiro motivo é que os fatores que au-mentam a dívida líquida também aumentam a dívida bruta, mas enquanto a relação dívida consolidada líquida/receita corrente líquida (DCL/RCL) verificada hoje está muito próxima da meta proposta por Serra (provavelmente 2,22 no final de 2015, contra 2,20 no projeto, ou uma diferença de R$ 10 bilhões), a relação dívida consolidada bruta/receita corrente líquida (DC/RCL) verificada hoje está muito distante da meta proposta por Serra (provavelmente 5,8 no final de 2015, contra 4,4 no projeto, ou uma diferença de quase R$ 1

“Ou o senador José Serra tem informações privilegiadas ou, a ele, seus assessores e outros economistas do PSDB, faltou estudar a questão”

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trilhão). Só um perfeito idiota matemático teria dificuldade para entender que, dado mesmo de-nominador (RCL), quando a relação DC/RCL fosse trazida para a meta, a relação DCL/RCL já estaria na meta muito antes.

Invertendo o argumento, a relação DCL/RCL pode ser trazida para a meta proposta muito an-tes da relação DC/RCL, de modo que esta última se torna o limite relevante e substitui, na prática, o indicador determinado na proposta original de 2007, ou seja, substitui a razão que tem a dívida lí-quida no numerador (DCL/RCL) pela razão que tem a dívida bruta no numerador (DC/DCL). Para usar uma imagem imperfeita que facilita o entendi-mento dos que não são versados em matemática, um banhista de 1,8 metros que não saiba nadar dificilmente se afogaria ao entrar em uma piscina com profundidade de 1,2 metro, mas pode se afogar em uma piscina várias vezes mais profunda.

O segundo motivo é que os outros fatores que determinam a elevação da dívida bruta não elevam a dívida líquida: a acumulação de reservas cambiais, empréstimos do Tesouro para os bancos públicos (como o BNDES) e as operações compro-missadas do BC. A dívida bruta só não aumentaria mais do que proporcionalmente (supondo a mes-ma taxa de juros sobre o estoque) do que a dívida líquida caso ocorresse uma combinação adequada entre venda de reservas cambiais e pagamento dos empréstimos dos bancos públicos ao Tesouro.

Embora não explicite, parecem ser exa-tamente essas a suposição e a disciplina que o projeto de Serra quer impor, pois supõe que, em-bora a dívida bruta cresça em termos absolutos mais do que a dívida líquida até 2020, cresceria menos em termos proporcionais. Isso pode ser demonstrado matematicamente, pois o projeto de Serra prevê que a relação DC/RCL suba de 5,6 até 6,9 e que a relação DCL/RCL cresça de 2,2 até 3,5. A consequência econômica e política é que, para que a projeção se verifique, a dívida bruta é o limite que disciplinaria a política econômica desde logo, ou seja, antes do período de transição a partir do qual, em 2021, tanto a dívida bruta quanto a líquida deveriam cair.

A confusão entre gestão do endividamento pú-blico e política monetária

O problema da pressão que Serra quer impor sobre o Banco Central na gestão das operações compromissadas é, segundo o documento da Secretaria do Tesouro que critica o projeto de Ser-ra, este comete o “equívoco conceitual”, ou seja, não entende que, se o Banco Central deixasse de lançar compromissadas, e o Tesouro passasse a enxugar a liquidez com lançamento de novos títulos, a dívida bruta aumentaria. Isso ocorreria, segundo o Tesouro, porque os títulos transferidos para a carteira do BC continuariam em sua car-teira sem que pudessem ser usados para enxugar a liquidez, enquanto o Tesouro teria que lançar títulos acima da necessidade de financiamento apenas para enxugar a liquidez.

Ou seja, para todos os efeitos práticos, além de mirar a dívida bruta como limite, o projeto de Serra implicitamente sugere que a tarefa de controle da liquidez seja transferida para o Te-souro. É por isso que, no projeto, Serra acusa o Tesouro de não atender às necessidades de liqui-dez do mercado financeiro na gestão da dívida pública. É por isso que, na defesa na CAE, Serra alega que seu projeto estabilizaria as operações compromissadas em um valor pouco superior ao que assumem hoje.

Podemos chamar a transferência da gestão da liquidez para títulos emitidos pelo Tesouro de “se-gunda regra de Serra”, sendo o limite sobre a dívida bruta a “primeira regra de Serra”. A segunda regra teria duas consequências. Primeiro, o aumento da dívida bruta resultante da transferência da tarefa de enxugar a liquidez para o Tesouro aumentaria ainda mais a dificuldade para trazer a dívida bruta para o limite da primeira regra de Serra.

Segundo, a gestão do endividamento público e a política monetária ficariam ainda mais con-fusos. Afinal, o Tesouro precisaria lançar mais títulos do que os necessários para rolar a dívida pública, apenas para enxugar a liquidez do merca-do interbancário. Os recursos líquidos obtidos pelo lançamento de títulos seriam então depositados na Conta Única do Tesouro junto ao BC, onde não seriam nem remunerados pelo Banco Central nem protegidos da inflação ou da depreciação cambial (como as reservas cambiais são).

Ao fim e ao cabo, os recursos líquidos enxu-gados, assim como nas operações compromissa-

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das, continuariam no Banco Central, ainda que este perdesse a capacidade de cumprir a tarefa de controlar a liquidez diretamente. A dívida pública bruta, porém, aumentaria, sem qualquer finan-ciamento líquido de novos gastos, contrapondo diretamente a execução da política monetária aos demais gastos executados pelo Tesouro.

Nesse regime institucional sui generis, a política monetária se chocaria com a política fiscal, aliás, exatamente como quer o projeto de Serra ao alegar que “a fixação de um teto para a dívida consolidada forçará o Tesouro a escolher entre colocar títulos em mercado ou na carteira da Autoridade Monetária” (p. 9).

Mais do que alega o projeto de Serra, a fi-xação do teto forçará o Tesouro a escolher entre lançar títulos para enxugar a liquidez (aumentan-do os recursos ociosos na Conta Única) ou lançar títulos para necessidades de financiamento do Estado!

Ou seja, os limites sobre a dívida bruta e gestão do Banco Central propostos pelas duas

regras de Serra trariam um dilema: ou bem constrangeriam desnecessariamente a política fiscal, forçando o corte de gasto público sempre que necessário pela tarefa de contrair a liquidez, ou bem restringiriam o uso de títulos de dívida pública para enxugar a liquidez, sem propor nada em troca (como o recurso a recolhimentos compulsórios).

Mais do que aumentar a transparência entre a política fiscal e o Banco Central, o novo regime aumentaria a confusão, a opacidade e as contradições entre a gestão do endividamento e a política monetária.

A “segunda regra de Serra” concorre com a “primeira regra de Serra”, com grandes chances, ao prêmio de pior ideia econômica do século XXI. Ela mostra que, pior do que o economista tucano convocado pela presidente Dilma para gerir o Ministério da Fazenda hoje, apenas o economista tucano que quer dirigir o país amanhã.

*Professor Associado (Livre Docente) da UNICAMP

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Com muita satisfação vimos nos últimos tem-pos que nosso colega, o Senador José Serra, como grande economista que é, tem feito críticas bem fundamentadas contra os juros elevados e os excessos das operações de swaps cambiais. O Senador mais uma vez inova ao popularizar e tor-nar conhecido para nós políticos o termo “domi-nância fiscal”, nos ajudando, assim, a entender o imbróglio em que irresponsavelmente nos meteu o Banco Central nos últimos dois anos, em razão de um aumento exagerado dos juros e excesso de operações de swap cambial.

Essas críticas estão bem colocadas no relató-rio que ele fez na Comissão de Assuntos Econômi-cos do Senado Federal sobre uma emenda de sua autoria que visa limitar o endividamento público.

Infelizmente, a ótima qualidade das críticas não pôde ser transmitida para o texto norma-tivo. O projeto, que propõe estabelecer limites muito específicos e estreitos ao endividamento público, não tem uma conexão muito precisa com os argumentos válidos do relatório. Com pesar, temos que admitir que o discurso sensato e inteligente do Senador José Serra não conse-guiu se consolidar na proposta legislativa, ape-sar da alta qualidade técnica do relatório e dos cuidados republicanos para dar flexibilidade aos limites propostos. Pretendemos, humildemente, mostrar abaixo o porquê não concordamos com a proposição.

Resumidamente, podemos dizer que o proje-to propõe um limite muito estreito para a dívida pública bruta e para a dívida pública líquida, res-

Limitações ao endividamento público: Lobo em pele de Cordeiro?roberto requião e Lindbergh Farias1

pectivamente, de 4,4 e 2,2 vezes a Receita Corrente Líquida da União. Hoje esses patamares estão em 5,6 e 2,2 vezes a Receita Corrente Líquida.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que o projeto não tem a seu favor nenhum exemplo internacional bem-sucedido entre as grandes nações. Isso não é bom, porque, em um tema que pode afetar a vida de milhões de pessoas, precisa-mos ser muito cuidadosos e usar o máximo dos exemplos históricos para evitarmos erros.

Em segundo lugar, devemos lembrar que, quase certamente nenhuma das grandes po-tências do mundo hoje se enquadrariam a esses limites. Nos termos da proposta, elas teriam sua política fiscal, monetária e cambial paralisadas ou fortemente constrangidas em razão desses limites. Em termos práticos, esses países seriam obrigados a sofrer grave recessão ou inflação por muitos anos para poderem adequar as demandas democráticas de governabilidade e legitimidade a limites de endividamento como esse. Qual seria o grande benefício desse projeto que compensaria tal desastre?

Acredito que o autor da proposta também tem essa preocupação. Por isso ele colocou no relatório uma ressalva que poderia ser reescrita, em nossas palavras, da seguinte forma para o caso internacional: “ok, voltar ao limite, uma vez ultrapassado é custoso, mas se o limite ao endi-vidamento que propomos já existisse antes, esses países não teriam chegado a dívidas tão altas”. Pode ser, mas, se esse limite existisse antes, os países não poderiam ter feito as políticas fiscais e

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monetárias necessárias para salvar o mundo da crise de 2008. Essa teria sido muito pior do que a Depressão dos anos 30 e a economia mundial teria caído mais de 50%. A importância dos mer-cados financeiros globalizados para a economia mundial era em 2008 muito maior do que em 1929 e as bolhas muito maiores. Se hoje já ficamos preocupados com as guerras, terrorismo, pobreza, genocídios, migração em massa, não sabemos o que restaria da civilização se o PIB global caísse mais de 50% em poucos anos. Não acreditamos que esse seja um bom preço a pagar para cumprir uma meta contábil-legal. Se não é bom para as grandes potências, pode ser bom para o Brasil?

Acreditamos que o Senador Serra concorda conosco. Por isso, ele fez várias regras para flexi-bilizar o torniquete da restrição de endividamento e ainda fez a ressalva que pode ser resumida na seguinte proposição: se o governo no futuro achar o limite estreito, poderá pedir ao Congresso para ampliá-lo. Em outras palavras, diz: ao menos assim o governo seria obrigado a se explicar ao congresso o porquê do aumento do endivida-mento. Daí perguntamos: qual a razoabilidade científica de um torniquete que, quando atinge seu limite, tem que ser flexibilizado ou porque há crise econômica ou porque o governo tem boas razões para pedir ao congresso? Ora, quando a situação econômica é de pujança as receitas pú-blicas crescem rapidamente, os juros são baixos e por isso a dívida pública não ultrapassa o limite. Ele é atingindo exatamente na crise, onde, sabe-mos e o Senador Serra também sabe, que o limite precisa ser flexibilizado para que não ocorra um mal maior. Então para que serve o limite?

Outro ponto controverso é a escolha arbi-trária do limite. Cabe perguntar por que o autor escolheu o número 4,4 e não 3,3 ou 5,5, 6,6 ou 9,9? Faltou a explicação científica para ter escolhido esse número. Sabemos apenas que 4,4 é bem abai-xo dos atuais 5,6. Ou seja, a lei entraria em vigor já com o Estado brasileiro em descumprimento da meta.

Não existe número ideal ou base científica que pudesse dar uma explicação razoável para nenhum dos muitos limites de endividamento que os economistas conservadores tentam sugerir para o endividamento público.

A experiência Grega nos tem mostrado que limites de endividamento dados externamente ao poder público democraticamente eleito responsá-vel pela política econômica têm se transformado em importante instrumento de chantagem sobre esse poder democraticamente eleito.

Mas não precisa de um poder internacional para que os limites de endividamento sejam uma restrição e chantagem ao poder democrático, basta um modelo institucional mal desenhado. No modelo institucional do presidencialismo de coalizão brasileiro, os congressistas unidos em torno de suas lideranças têm bastante poder so-bre o que o Executivo pode ou não realizar. Porém, ao contrário do parlamentarismo verdadeiro, eles não têm responsabilidade individual sobre o que acontece no país, se ele está em crise ou não.

Pelo contrário, involuntariamente, se bene-ficiam das crises de governabilidade. O executivo é diretamente e facilmente responsabilizado por todos os problemas do país. Se estamos em crise, o governo sofre com a baixa popularidade e não elege sucessor. Pior, como existem os carboná-rios, pode até sofrer impedimento em caso de popularidade muito baixa. Já os mandatos dos congressistas, na grande maioria, pouco sofrem individualmente em termos materiais em caso de crises políticas ou econômicas. No presiden-

“(...) ele fez várias regras para flexibilizar o torniquete da restrição de endividamento e ainda fez a ressalva que pode ser resumida na seguinte proposição: se o governo no futuro achar o limite estreito, poderá pedir ao Congresso para ampliá-lo. Em outras palavras, diz: ao menos assim o governo seria obrigado a se explicar ao congresso o porquê do aumento do endividamento.”

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cialismo não existe uma penalidade ou responsa-bilização objetiva para os parlamentares em caso de grave crise econômica ou política.

O chefe do Poder Executivo no parlamenta-rismo verdadeiro pode convocar novas eleições caso o Congresso não lhe dê apoio. Isso é uma forma de responsabilizar o Congresso em situa-ções de crise. Aqui no Brasil é o contrário, quanto pior a crise, quanto mais fragilizado é o Poder Executivo, mais ganham (involuntariamente) os congressistas individualmente, mais poder de barganha eles têm para conseguir aprovar projetos de lei contrários ao Poder Executivo ou mesmo à maioria da sociedade, mais cargos e benesses podem exigir do governo e das empresas

e grupos de interesse em geral em troca do seu poder de voto. Em relação ao Poder Judiciário, em especial suas casas mais políticas o STF, o TSE e o MPF, temos uma lógica parecida, quando falta poder de liderança no Executivo. Dessa forma, o modelo de organização do Estado no Brasil tende para a instabilidade e para a dependência involuntária de um poder moderador externo ao Estado, que, no caso brasileiro, é a grande mídia e que nem sempre aposta na estabilidade e na governabilidade.

Na situação atual, onde o Poder Executivo ainda tem três anos pela frente e já está asfixiado por uma governabilidade restrita, uma baixa po-pularidade, conflitos internos e crise econômica,

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mais uma restrição ao endividamento público - ainda que tenha um longo horizonte de ajuste - é mais uma forma de constranger o único poder no Brasil que possui responsabilidade de manter a estabilidade política em favorecimento a poderes cujos membros não podem ser responsabilizados pela instabilidade.

Sabemos que o Senador Serra é um pro-fissional e um intelectual responsável e jamais teria esse tipo de intenção. Porém, nos preocupa a avalanche de prerrogativas que o Congresso tem criado para impor constrangimentos ao Poder Executivo neste momento de fraqueza da Presidenta Dilma, alguns dos quais apoiados pelo Deputado Eduardo Cunha e pela oposição na Câ-

“Aqui no Brasil é o contrário, quanto pior a crise, quanto mais fragilizado é o Poder Executivo, mais ganham (involuntariamente) os congressistas individualmente”

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mara dos Deputados.No modelo de Presidencialismo de coalizão

brasileiro, esse tipo de constrangimento ao exe-cutivo pode funcionar, à revelia das intenções dos autores, como o velho método do patrimonialis-mo: criar dificuldades para vender facilidades. Os custos das dificuldades recairão mais pesa-damente sobre o executivo e apenas difusamente sobre a instituição do Congresso Nacional. Sobre os parlamentares individuais, que podem apro-veitar oportunisticamente desse tipo de iniciativa, pouco recai. E no caso, não adianta que o ideali-zador do constrangimento tenha as melhores das intenções, cada parlamentar que pode usar seu voto como “meio de chantagem” poderá distorcer os princípios da democracia e agravar a crise eco-nômica e de governabilidade. Praticamente sem custos pessoais.

Sem negar a culpa da Presidenta pelos pró-prios erros, desde que Eduardo Cunha foi eleito Presidente da Câmara dos Deputados, por coin-cidência, tem desabado sobre a presidente Dilma um monte de proposições legislativas, judiciais ou fiscalizatórias que tem colocado ela sempre em posição de ter que barganhar sobrevida e governabilidade, cabendo pouco espaço para pro-postas e debates construtivos. Esse não é o papel do Congresso Nacional nem do Judiciário, mas é

uma tendência inexorável em caso de um Poder Executivo sem capacidade de liderança e com a legitimidade abalada. O enfraquecimento político da Presidenta Dilma abriu margem a toda sorte de constrangimentos legais que, se continuarem sendo criados, em breve o Brasil estará ingover-nável e, nesse caso, há o risco de crises muitos mais graves, soluções autoritárias e até guerra civil.

Ao falar isso, não estamos eximindo a Presi-denta da responsabilidade que teve de destruir a própria popularidade em decorrência da rejeição do seu próprio programa de governo em favor do programa do adversário e da crise econômica criada depois da troca do seu Ministro da Fazen-da. Mas acreditamos que restrições adicionais à gestão de política econômica expansionista só tornam o governo mais refém de um Congresso, cujos membros, por falta de prerrogativa cons-titucional, não tem como ser responsabilizados pela crise econômica e política e que, portanto, são tentados a aproveitar, se forem oportunistas, as crises para tentar aumentar seu próprio poder de barganha e conquistar de uma vez suas ambi-ções políticas em cima do desmoronamento da economia do país, da política social e dos serviços públicos.

Dessa forma, se concordássemos com o mérito do projeto, sugeriríamos que este não seria um bom momento para avançar esse tipo de iniciativa.

Mas acreditamos que esse projeto possui problemas que nos obrigariam a votar contraria-mente mesmo se não estivéssemos no meio de uma grave crise política e econômica. Aparente-mente, as flexibilizações de prazo e circunstância previstas no projeto amenizariam as restrições econômicas que o atual e o próximo governo teriam em razão dos limites de endividamento. Mas há uma restrição menos visível que o projeto não pode mudar. Sabemos pela experiência inter-nacional que os países podem ter dívidas públicas muito maiores do que a brasileira sem nenhu-ma dificuldade de emitir dívida e sem qualquer constrangimento econômico relevante. Porém, na presença de dispositivos legais, como o proposto no projeto, que tenham como penalidade a proi-bição de “novas operações de crédito”, o cenário é

“(...) acreditamos que restrições adicionais à gestão de política econômica expansionista só tornam o governo mais refém de um Congresso, cujos membros, por falta de prerrogativa constitucional, não tem como ser responsabilizados pela crise econômica e política e que, portanto, são tentados a aproveitar (...) as crises para tentar aumentar seu próprio poder de barganha”

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outro. Como os títulos de dívidas possuem prazos longos, na perspectiva de que exista uma restri-ção legal a novas operações de crédito, o risco de inadimplência da dívida pública aumenta muito, ao contrário do que o projeto sugere. É um tiro pela culatra.

Um exemplo óbvio são os EUA. Quando o Congresso dos EUA entrou em uma discussão de duas semanas para decidir se aumentava o limite de endividamento do país, a empresa de rating Standard and Poors decidiu pela primeira vez rebaixar o crédito dos EUA. O incrível é que isso aconteceu depois que o limite já havia sido aumentado e sem que tenha havido qualquer mudança econômica. A simples possibilidade de limitação parlamentar de novas operações de crédito foi capaz de rebaixar o rating dos EUA. Pois é óbvio que o impedimento legal a novas opera-ções de crédito torna o risco de inadimplência da dívida pública altíssimo, pois é óbvio que é muito mais importante manter funcionando a máquina pública do que pagar a dívida. Sem a máquina pública a sociedade moderna entraria no caos completo.

Se existe um dispositivo legal que cria a pos-sibilidade de proibir novas operações de crédito, ainda que seja daqui a 15 anos, você simplesmen-te leva às alturas o risco de inadimplência dos títulos com prazos superiores a 15 anos. E com isso gera um efeito em cadeia sobre toda estrutu-ra da dívida pública, tornando-a mais cara desde já. Qual seria o benefício disso?

Até agora já vimos que o projeto pode impe-dir um país de sair de uma crise econômica gra-

ve, pode prejudicar no Brasil a governabilidade do poder democrático responsável, em prol de agen-tes oportunistas que ganham com a instabilidade política, e gera um efeito imediato de redução do prazo e aumento do custo da dívida pública.

Mas os problemas não se limitam a isso. A experiência internacional mostra que existe uma enorme variedade de patamares de relação dívi-da/PIB, que em alguns casos é superior a 200% do PIB, como no Japão, sem que isso leve a qualquer problema ou limitação para as políticas monetá-ria, cambial e fiscal.

Por aqui, tentam dizer que uma dívida bruta de 67% ou líquida de 37% sejam catastróficas. Em razão de quê? Dizem os “sábios” analistas con-sultados pelos jornais que é em razão dos juros elevados. Ora, mas esses mesmos catastrofistas dizem que os juros são altos porque a dívida é alta. Sim, é o cachorro correndo atrás do rabo, um pensamento sofista circular: “a dívida é insus-tentável porque os juros são altíssimos, e os juros são altíssimos porque a dívida é insustentável”.

Ao ser confrontada com tal proposição, qualquer criança que seja informada que há pa-íses com dívidas que são 200% maiores do que a nossa e que lá os juros são de 0% ao ano, dirá que a solução para nosso dilema é reduzir os juros, pois, ao serem reduzidos, a “dívida pequena que é insustentável por causa dos juros muito elevados” deixa de ser “insustentável”. Isso não levaria a aumento da inflação, especialmente se o governo usasse os vários instrumentos de que dispõe para segurar a taxa de câmbio.

Segundo o economista Pedro Rossi, “o úni-co consenso entre os economistas é que não há consenso quanto ao patamar ótimo da dívida pú-blica”. Já entre os “sábios” analistas de bancos que falam nos jornais, há total consenso que a dívida pública deve ser a menor possível, desde que seja no Brasil. Nos EUA e no Japão, pode ser muito maior do que o PIB sem problema. Se o Presidente no mandato for FHC também não tem problema. Ele conseguiu multiplicar nossa dívida pública de forma irresponsável, mesmo vendendo a maior parte do patrimônio nacional com a justificativa de reduzir essa mesma dívida. Algo inacreditável. Mas ele pode. Dilma não pode. Mesmo que a dívi-da líquida do setor público no governo Dilma seja

“Quando o Congresso dos EUA entrou em uma discussão de duas semanas para decidir se aumentava o limite de endividamento do país, a empresa de rating Standard and Poors decidiu pela primeira vez rebaixar o crédito dos EUA”

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metade do que era no governo FHC.Não entendemos a razão dessas diferenças.

Cientificamente falando, é claro. Politicamente, entendemos que Dilma virou a Geni da direita, não em razão dos seus erros, que aumentaram exponencialmente depois da troca de Ministro da Fazenda, mas em razão dos seus acertos.

Todas as críticas que fizemos até agora são válidas para as tentativas de impor limites arbitrários sobre a dívida líquida. Impor limites arbitrários sobre a dívida bruta, como pretende o projeto, é muito pior. Primeiro porque a dívida bruta é um péssimo indicador para a dívida real do Estado, pois essa dívida pode ter sido criada para construir patrimônio público, não afetando assim o patrimônio líquido do Estado. Inclusive esse patrimônio público criado juntamente com a dívida pode ter uma qualidade em termos de liquidez, segurança financeira e até rentabilidade superior à dívida.

Esse é o caso da maior parte da dívida bruta brasileira, que é apenas uma contrapartida do aumento do patrimônio público basicamente em reservas cambiais e também em empréstimos de bancos públicos, para viabilizar a manutenção dos investimentos produtivos que fez com que a economia brasileira e a arrecadação de impostos resistissem à grande crise de 2009 e à guerra eco-nômica globlal que se seguiu. Funcionou muito bem até final de 2012. O governo começou a recuar em 2013 em razão da pressão política e da perda de convicções, mas ainda funcionou com rela-tivo sucesso até dezembro de 2014. Quando Levy começou a implantar suas políticas de destrui-ção do arcabouço de defesa da crise e da guerra econômica global, tudo desabou, da economia à governabilidade.

O crescimento da dívida bruta foi um fenô-meno comum a todos os países depois da crise de 2008. O caso brasileiro foi um dos mais saudáveis. O país foi um dos poucos do mundo que pratica-mente não aumentou a dívida líquida. Aumentou a dívida bruta para compensar crescimento do patrimônio do Estado em reservas cambiais e em empréstimos ao setor produtivo para realização de investimentos produtivos.

Se o país tem um grande saldo comercial ou de investimentos no balanço de pagamentos,

ele acumula riqueza internacional, que precisa ser guardada em ativos denominados em moeda internacional, dólar. Porém, ao acumular essa riqueza no Banco Central através da compra de dólares, esse é obrigado a emitir dívida pública em montantes parecidos com esse acúmulo de riqueza internacional. Isso acontece porque o exportador que vendeu seu produto no exterior precisa pagar em reais os trabalhadores, impos-tos e fornecedores e mesmo ele prefere guardar seu dinheiro em reais. Ao oferecer seus dólares no mercado cambial para comprar reais, ele faz o dólar se desvalorizar frente ao real. Dessa forma, obriga o Banco Central a comprar dólares para manter o real competitivo. Assim, aumenta a oferta de reais no mercado interno. Esses reais a mais na mão do exportador, dos seus funcio-nários e fornecedores são aplicados nos bancos, que acabam comprando dívida pública, o que tende a reduzir a taxa de juros. Para que isso não aconteça, o BC lança novas dívidas para elevar a taxa de juros até que essa alcance novamente a meta SELIC.

Ou seja, o aumento de nossa riqueza inter-nacional no Banco Central leva a um aumento equivalente em nossa dívida pública. Mas isso não é ruim, pelo contrário, é muito bom. A China é uma potência mundial respeitada em grande parte por causa do elevado valor de suas reservas

“Como o mercado não é bobo, desde a aprovação do projeto, as taxas de juros sobre os títulos de longo prazo sofreriam grande aumento. O governo seria desde já obrigado a reduzir o prazo médio da dívida pública e aumentar o custo médio dessa dívida. Ou seja, ela teria um efeito imediato e direto inverso ao que se propõe.”

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cambiais. O Brasil também, só passou a ser um país realmente respeitado quando se viu imune a crises internacionais em razão do elevado volu-me de reservas cambiais acumulado no segundo mandato do governo Lula. Foi naquele momento que o Brasil virou moda no mundo todo. Desde então, o país não depende mais dos humores do mercado internacional, do FMI, para lhe dizer o que fazer. As reservas internacionais nos dão so-berania econômica. Parte significativa da dívida bruta decorre da necessidade soberana termos reservas cambiais substantivas. O projeto, ao limitar o tamanho da dívida bruta, está de fato limitando nossa soberania econômica ao limitar o tamanho de nossas reservas. A recessão deste ano de 2015 não decorre de nossa dependência financeira real em relação aos mercados inter-nacionais, mas da recessão criada internamente pelo dogmatismo cego do Ministro da Fazenda e do Banco Central. Nesse sentido, levando em conta que quase metade da nossa dívida bruta é uma contrapartida para o aumento da nossa riqueza internacional no Banco Central, o pro-jeto é também um atentado a nossa soberania econômica.

O que importa é a dívida líquida e esta é pequena no Brasil em razão do elevado estoque de reservas cambiais. Todavia, por causa dos ju-ros incompreensivelmente elevados, os mesmos neoliberais que defendem esses juros absurdos, dizem que nossas reservas são caras, pois rende-riam apenas juros internacionais, que são civili-zados. Mesmo desconsiderando a hipocrisia desse argumento, não podemos deixar de lembrar que ele também é falso.

Desde o início do primeiro mandato da Dil-ma, quando as reservas se aproximaram do ponto máximo, o rendimento médio dessas reservas tem sido significativamente superior ao rendi-mento da Selic, mais precisamente, as reservas cambiais renderam entre 1º de janeiro de 2011 e 31 de outubro de 2015 44% a mais do que a Selic acumulada. Considerando a taxa de juros média das reservas cambiais brasileiras, as reservas renderam quase 50% mais do que a Selic. Um investimento espetacular para o povo brasileiro, que não seria possível se vigorasse o projeto.

Se vigorasse tal projeto também não seria

possível usar os bancos públicos para suprir a falta de crédito e manter o investimento em momentos de crise financeira. Mas mesmo na ausência de crise financeira o projeto é recessivo. Segundo o Professor Pedro Paulo Zaluth[2], em teoria, o Serra exige austeridade instituciona-lizada apenas depois dos primeiros cinco anos. Porém, depois desse período, superávit primário requerido a partir de 2020, dependendo da taxa de juros, tende a ser maior do que 5%, provavelmen-te maior do que 6%. Seria um ajuste catastrófico a la grega. Considerando que o mercado terá que antecipar essa situação e seus riscos políticos embutidos, o governo será obrigado a começar desde já ao esforço de ajuste. Aliás, já estamos nele! Assim, teríamos provavelmente 15 anos de recessão.

Cabe lembrar que esses juros não seriam menores em razão do projeto, pelo contrário, tendem a ser maiores, pois o risco do governo não conseguir fazer o ajuste prolongado de 15 anos do projeto não seria pequeno e isso implicaria segundo o próprio projeto em proibição de novas operações de crédito pelo governo. Ora, em uma circunstância como essa, o governo certamente será obrigado a deixar de pagar sua dívida pú-blica para poder manter em funcionamento a máquina pública e os serviços públicos básicos. Como o mercado não é bobo, desde a aprovação do projeto, as taxas de juros sobre os títulos de longo prazo sofreriam grande aumento. O gover-no seria desde já obrigado a reduzir o prazo médio da dívida pública e aumentar o custo médio dessa dívida. Ou seja, ela teria um efeito imediato e di-reto inverso ao que se propõe.

Levando em consideração todas essas refle-xões, propomos a rejeição do projeto e pedimos que nossos colegas estudem a fundo as possíveis consequências, que podem ser muito mais graves do que aparentam à primeira vista.

1 Respectivamente Senadores pelo Paraná e pelo Rio de Janeiro.2 http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Econo-mia/As-regras-de-Serra-e-a-austeridade-perma-nente/7/34870

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cisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa, ou Carlos Lessa, como é conhecido e respeitado o economista em quem, mesmo adversários de ideias, reconhe-cem uma das inteligências mais provocantes do país, ademais de um frasista demolidor.

Lessa está angustiado, aflito com o Brasil. ’Eu e as torcidas de todos os brasões da nação’, começa.

Signatário de um manifesto encampado por

O que faz um intelectual apaixonado pelo Brasil que aos 80 anos, financeiramente resolvidos, convence-se de que seu caso de amor mergulhou em ‘uma gosma’, como ele classifica a situação atual do país?

Talvez jogasse a toalha para desfrutar o con-forto privado e merecido.

Talvez, se o seu nome não fosse Carlos Fran-

Carlos Lessa: Serra e a gosma que nos devora

‘Se existe um déficit você tem que equacioná-lo buscando recursos onde há superávit. Quem tem sobra, as famílias assalariadas ou os bancos e rentistas?’

Saul Leblon

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do economista, é a panaceia do ‘corte’. ‘Cortar é tudo o que o discurso pantanoso tem

a dizer sobre o nosso futuro, que assim deixa de existir’, desacorçoa.

Serra propõe 15 anos de retalhamentos. ‘O mais risível’, detona, ‘é que a esperteza quer

sempre cortar do outro, nunca de si mesmo. Che-gamos a essa situação pegajosa, na qual a nação chafurda e pode se perder’.

Cortar o quê, de quem, como e para quê? Carlos Lessa cobra coerência nas respostas

que não enxerga em nenhuma das tesouras mo-bilizadas para esquartejar e salgar as chances do desenvolvimento brasileiro.

‘Claro que eu também quero equilíbrio fiscal’, fustiga em direção a Serra. ‘Ninguém quer ver o Bra-sil caminhar para o encilhamento. Mas o que falta a Serra, e outros, é coragem para admitir o óbvio’, observa agora de forma pausada e pedagógica.

‘Se existe um déficit você terá que equacioná-lo buscando recursos onde há superávit. Estou certo?’, pede ajuda antes de uma pausa para respirar.

Em seguida metralha sem piedade: ‘Quem, afinal, é superavitário hoje no Brasil; quem?’, esgri-me a pergunta com repetidas estocadas. ‘Diga-me quem?’

Por certo não é a família assalariada, responde o economista agora de forma compassiva. ‘Tam-pouco o investimento, que há anos sequer resvala a mínima necessária ao crescimento sustentável, uma taxa da ordem de 20% do PIB, pelo menos’.

Depois de descartar o arrocho sobre a dívida pública – ‘uma ferramenta necessária, mas que no Brasil só cresce para pagar juro, ‘não para investir’, Lessa chega ao ponto do qual acusa Serra e outros

alguns dos principais intelectuais brasileiros con-trários ao projeto do senador José Serra, de engessa-mento fiscal do Estado, Lessa, a exemplo de Maria da Conceição Tavares, foi tratado com desdém pelo tucano.

Entre outros vitupérios, o ex-governador de São Paulo, classificou seus críticos de ‘desinforma-dos e pseudo-marxistas’.

‘Mas foram seus professores’, protestou inu-tilmente o senador petista Lindberg Farias, no dia 20/10, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado --que voltará a examinar o assunto dia 3 de novembro, em sessão decisiva e ainda mais tensa.

‘Serra não precisava se diminuir tanto’, fuzi-la o professor emérito da UFRJ e ex-presidente do BNDES.

’Ofender pessoas com as quais ele teve re-conhecida proximidade intelectual no passado, é ofender a si próprio. Lamento que tenha chegado a isso’.

No exílio chileno, nos anos 70, Serra conviveu intimamente com a família Lessa. A residência do economista, agora fustigado por ele, era um espaço da rotina do tucano, que então atribuía ao dono da casa seu aprendizado em economia.

‘Elogio em boca própria é vitupério’, desconver-sa o autor de ‘Quinze anos de política econômica’ (a industrialização do pós-guerra aos anos 60)’, obra apontada como uma continuação proposital de outro clássico –‘Formação Econômica do Brasil’, de Celso Furtado.

‘Mas desmerecer Conceição?’, indigna-se Lessa.

Uma das principais referências dos economis-tas heterodoxos, ‘Conceição’ deu a Serra, inclusive --lembra Lessa-- a parceria em um texto famoso. ‘Além da estagnação’, obra de 1972, tornou-se um clássico, ao decifrar a perversidade intrínseca à acu-mulação capitalista no Brasil, harmoniosamente integrada à concentração de renda, contratada em 1964 à ditadura militar pelas elites golpistas de então.

‘Desfazer de Conceição?’, escande Lessa, como se dissesse: ‘quanta indignidade’.

‘Ver o destino do país jogado nessa goma da qual o projeto de Serra é um espessante, me aflige’, diz a voz grave.

O denominador comum da ‘gosma’, na visão

“(...) é que a esperteza quer sempre cortar do outro, nunca de si mesmo. Chegamos a essa situação pegajosa, na qual a nação chafurda e pode se perder”

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de se afastarem covardemente.‘Quem é superavitário nesta sociedade hoje,

e há muito, são os bancos e os rentistas. Essa gen-te precisa ter brio e admitir um pacto, na forma de uma taxa, para ajustar as contas fiscais, sem esmagar o emprego, o investimento público e os direitos sociais. Ou então afundaremos na gosma’, arremata o conferencista experiente, cujas frases hipnotizaram centenas de plateias acadêmicas e não acadêmicas por todo o Brasil.

Nascido em uma família da elite carioca, mas num tempo em que o futebol de rua conectava o berço rico à infância pobre da favela, Carlos Lessa não se dispensa do que cobra dos endinheirados institucionais.

‘Eu também acho que devo ter meus investi-mentos cortados para que se possa baixar a despesa do Estado com juros; hoje elas só servem para en-gordar a minoria e esmagar a capacidade fiscal do país’, sentencia sem concessão à hipocrisia.

O professor emérito da UFRJ, porém, não é ingênuo.

Lessa sabe que a repactuação política para a retomada do desenvolvimento não virá da genero-sidade dos detentores da riqueza financeira.

‘Falta bom senso para o Brasil sair da gosma. A legião do ajuste, na verdade, não se interessa pelo Brasil’, desfere para em seguida adotar um tom grave: ‘Dilma sabe onde está o problema. Já demonstrou isso. O que lhe falta é coragem. Um presidente precisa saber tomar paulada e persistir: existem condições para cortar os juros. Mas é for-çoso ir além da esfera técnica’, observa agora em um tom de confidência: ’Um presidente precisa abraçar a discussão política do problema, e assim abrir espaço ao protagonismo da sociedade’.

O professor Carlos Lessa discorda dos que en-xergam no mercado mundial uma atalho para o Brasil voltar a crescer, à margem dos seus interditos e impasses domésticos.

‘A globalização jaz em estado pantanoso’, avalia. Disputas e pendências históricas, no seu entender, estão sendo acirradas pela crise mundial. As tensões geopolíticas se avolumam. ‘O que vejo é a antessala de acirramentos bélicos, em uma palavra: guerra’, pontua com palpável angústia na voz.

O economista enxerga dois blocos em rota conflitiva: de um lado, os EUA e seus acordos

transpacífico e transatlântico; de outro a China e sua diáspora de desembarques estratégicos em diferentes pontos do planeta. ‘A recuperação norte--americana fraqueja e a Europa definha’, acrescenta Lessa agregando peças ao seu painel de formações em marcha conflitiva pelo globo. ‘A Rússia está viva e quer ser o elo entre a eurásia e a Europa. Há um cheiro de pólvora no ar. Imigrantes são cerceados nas fronteiras; a extrema direita acaba de vencer na Polônia, a sexta economia da Europa... O Brasil pode se dar ao luxo de desperdiçar o mercado interno para se ancorar nessa areia movediça traiçoeira e carregada de minas?’, argui com gravidade.

A voz grave evidencia cansaço; a conversa pre-cisa acabar. Não, porém, antes que esse brasileiro apaixonado pelo seu país, possa sinalizar linhas de passagem que, no seu entender, ainda resgatariam a economia da gosma espessada por ideias como as de Serra. ‘Nosso padrão de consumo melhorou inequivocamente’, pondera, ‘mas a qualidade de vida se deteriora. O país tem condições de escapar da gosma sufocante erguendo casas dignas para milhões de famílias, civilizando uma urbanização que concentrou 50% da população em 11 regiões metropolitanas conflagradas, erradicando de vez a fome na vida de nossa gente’, lista com realismo para fincar a estaca de esperança no meio da pasta disforme que desfigura seu sonho de Brasil: ‘Nada disso pressiona as contas externas. Estou falando de melhorar a qualidade de vida, gerar empregos e renda, mobilizando a única indústria realmente nacional que restou: a da construção. É isso ou a gosma; eu prefiro apostar nas possibilidades na-cionais’, conclui e se despede agradecido, como se tivesse cumprido um dever: ’Obrigado’.

“‘A globalização jaz em estado pantanoso’, avalia. Disputas e pendências históricas, no seu entender, estão sendo acirradas pela crise mundial”

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A máquina de triturar nações

O arrocho fiscal tem agora, em um projeto de José Serra, a capacidade de promover um longo ciclo de recessão no país.

Saul Leblon

A ideia de que sem o Estado a sociedade funciona melhor está arraigada na efervescência golpista que ronda o país à procura de um pretexto para se consumar.

Não é um simples cacoete conservador.O calibre superlativo de interesses abrigados

sob esse guarda-chuva ideológico explica porque o ruidoso apodrecimento de Eduardo Cunha não basta para devolver o chão firme ao governo Dilma.

É preciso enfrentar a agenda por trás do abusado operador.

A intuição do ex-presidente Lula estava certa ao advertir os mais entusiasmados, na semana passada: o inimigo continua intacto, disse Lula.

O PSDB é a âncora local da ideia-força, que na verdade deixou o campo imaterial desde os anos setenta para se tornar a lógica ubíqua do poder na globalização.

Entre outras determinações, ela estabeleceu uma devastadora desconexão entre desenvol-vimento e soberania democrática, jogando as nações em um pântano estratégico do qual estão longe de se livrar.

Assentada na supremacia do capital rentis-ta, a globalização financeira instalou no interior dos Estados nacionais uma contradição nos seus próprios termos.

Governos eleitos para desobstruir canais de crescimento e prover direitos a populações his-

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toricamente excluídas, descobrem-se capturados por uma malha de interditos e chantagens.

Um poder inefável e sem rosto exerce a vigilância asfixiante nos principais circuitos de decisão local e supranacional.

Basta uma tecla para desencadear ordens de compra e venda que podem esfarelar o mandato de um Presidente.

Ou reduzir nações a uma montanha desor-denada de impossibilidades.

A soberania dos povos, em certa medida, foi sequestrada pelo diuturno escrutínio dos pregões ao redor do planeta.

A abertura e o fechamento dos mercados de câmbio atualiza essa servidão, emitindo pronun-ciamentos diários em cadeia mundial.

Tudo se passa como se uma junta militar editasse sentenças de vida ou morte sobre o des-tino das nações e a sorte de seu desenvolvimento.

Nunca como hoje a luta pela sociedade dig-na remeteu tão diretamente à necessidade de se deter o controle do poder de Estado.

E nunca o Estado esteve tão engessado por um poder prevalecente, quase integralmente subordinado a normas e agendas que o reduzem a pouco mais que uma anexo dos desígnios dos mercados.

A política fiscal –ou seja, a ferramenta que dá ao Estado o poder de induzir e ordenar o inves-timento público e privado-- é o canal estruturante através do qual se exerce o sequestro da agenda do desenvolvimento soberano em nosso tempo.

Não por acaso ela é o alvo central da vigi-lância das agências de risco, das consultorias infatigáveis, dos departamentos econômicos dos bancos, do anexo acadêmico do rentismo e do jornalismo a serviço dessa maquinaria.

A caçada diuturna visa manter o azeite num eixo de ação que assegura todos os demais interditos.

Urdida na impossibilidade de taxar a rique-za, a camisa de força fiscal leva a sucessivas es-pirais de endividamento público até, finalmente, enjaular o governante num regime destrutivo de juros altos e investimentos medíocres.

É o ardil dentro do qual o Brasil se debate nesse momento, entre o golpe paraguaio e a pa-ralisia governamental que o lubrifica.

A bonança recente do ciclo de commodities ofereceu ao Brasil uma década trufada por exce-dentes que ampliaram a margem de manobra do governo e amorteceram a percepção dessa polaridade extrema.

Três gestões petistas sucessivas souberam aproveitar esse atalho para reduzir a perversão social acumulada em 500 anos de capitalismo perverso.

Dobraram a aposta nessa via de resistência durante a crise deflagrada pela desordem neoli-beral em 2008.

Os resultados são conhecidos e documenta-dos como um dos estirões mais robustos na luta conta a pobreza e a fome em nosso tempo.

Um dado resume todos os demais: o mer-cado de massa criado nesse processo acoplou à economia brasileira um outro país, com peso e medida para credenciar-se ao G-20.

Embora o dever de ofício midiático se esme-re em negá-lo, o fato é que todo o vapor da caldei-ra conservadora hoje se concentra em desmontar o avanço da justiça social que seus porta-vozes desmentem ter ocorrido.

Dê-se a isso o nome técnico que for.O que se mira é a regressão das conquistas

sociais, salariais e políticas dos últimos doze anos.

A melhor forma de proceder ao desmonte é no atacado da coleira fiscal.

Ou seja, subordinando o aparelho de Estado ao garrote de um labirinto de cortes e arrocho que reduz a função do governante à de um contador kafkiano.

Coagido a prestar contas de metas irreais, em prazos impossíveis, ele deve ao mesmo tem-po saciar a intolerância tributária das elites e a voracidade usurária dos rentistas --sem recorrer a pedaladas, nem hesitar em proceder a cortes drásticos, gerar desemprego, redução do poder de compra das famílias assalariadas e escalpo de direitos para cumprir as metas de superávit fiscal.

Esse tornique de muitas voltas poderá ga-nhar agora o arremate de um ajuste draconiano, capaz de jogar a pá de cal, por década e meia, na esperança de retomada do desenvolvimento no país.

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O senador José Serra é o responsável pela emenda a um projeto de resolução em curso no Senado, que redefine limites para a dívida pública da União.

A contribuição do tucano, se consumada, erguerá uma espécie de linha de Tordesilhas na geografia fiscal do Estado brasileiro.

O ex-governador de São Paulo, de sensibili-dade social conhecida, quer tornar impositivos superávits em torno de 3% do PIB até meados de 2030.

O potencial recessivo inerente a esse arro-cho -- ainda mais profundo do que o verificado atualmente-- motivou intelectuais, lideranças e economistas, de Maria da Conceição Tavares a Celso Amorin, de Guilherme Boulos a Alfredo Bosi, entre dezenas de outros, a lançarem um chamado de alerta e urgência à nação (leia a íntegra do documento).

Por mais que se dissimule essa truculência em afirmação de responsabilidade fiscal, o fato é que a eventual implantação da ‘mecânica Serra’ só fará aprofundar a anemia do investimento público; por conseguinte aprofundará a rosca da recessão em marcha na economia brasileira.

Pior que isso.Um longo ciclo de aperto fiscal como o

preconizado pelo tucano –que coerentemente se dispõe a entregar o pre-sal às petroleiras interna-cionais-- privará a sociedade dos investimentos necessários ao salto de infraestrutura e de produ-tividade que devem caracterizar o passo seguinte do crescimento nacional..

Sem salto de produtividade, o que sobra para se agregar competitividade a uma economia?

Sobra forçar a queda real do salário direto e indireto -- via supressão de ganhos de poder de compra no salários mínimos e com a liquidação de direitos trabalhistas.

Essa dimensão sistêmica embutida na ‘mecânica Serra’ atende à agenda antissocial ad-vogada pelos paladinos da contração expansiva. Qual seja, a dilapidação das estacas civilizatórias de contenção da barbárie capitalista que propi-ciaria o impulso ao florescimento das inversões privadas.

A Europa em carne viva de estagnação, de-semprego e pobreza que enreda 122 milhões de

cidadãos é a vitrine mais vistosa dessa receita ali praticada desde o colapso de 2008.

São esses os desdobramentos embutidos na convicção conservadora de que ter menos Estado redundará em uma melhor sociedade.

Redundará, na verdade, em um horizonte, em que o empobrecimento passará a ser o re-quisito da competitividade, o arrocho fiscal uma vacina de classe à reforma tributária que faça o rentista pagar imposto, e a liquidação da sobera-nia, a salvaguarda preventiva a qualquer ameaça de controle de capital, que devolva à sociedade o comando do seu destino.

Cabe advertir, porém: nem Cunha, nem Ser-ra lavram no deserto.

A margem de manobra de que desfrutam deriva em grande parte do flanco – e dos impas-ses que irradia — aberto pela política econômica equivocada adotada no segundo governo Dilma.

Ao associar recessão, portanto, queda de receita, e juros siderais, ela reforça as grades de um cativeiro fiscal que literalmente empurra a sociedade para um regime de pura servidão à ganância rentista.

A disjuntiva política intrínseca a uma encru-zilhada de empobrecimento e paralisia é o golpe ou a repactuação democrática do futuro.

O curso do enredo golpista tem em Cunha e Serra dois personagens ilustrativos e comple-mentares –um na esfera institucional, o outro no arremate macroeconômico do arrocho.

Resta a alternativa de uma repactuação de-mocrática do desenvolvimento.

Para que seja sólida –e inclusive capaz de re-verter a trajetória da dívida pública a confortáveis 60% do PIB—requer um protagonista dotado de força e consentimento, capaz de livrar a socieda-de da prostração e docorporativismo em que se encontra, para compartilhar metas, salvaguar-das, concessões e avanços que ergam as linhas de passagem a um novo ciclo de construção da democracia social brasileira.

Seu nome é frente popular. Sua viabilidade objetiva está dada. Seu peso efetivo nos aconte-cimentos em curso depende do discernimento político das lideranças e movimentos sociais para escolher entre o sectarismo ou a grandeza histórica.

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Notas sobre o limite paradívida públicaPedro rossi

Não existe um numero ideal, nem explicação técnica razoável que defina um patamar ótimo para a dívida pública. A análise da experiência internacional mostra variados patamares de relação divida/PIB e atitudes dispares quanto ao tratamento dado ao problema. O Japão tem dívida bruta superior à 200% do PIB e isso não parece ser um problema, já no Brasil, uma dívida próxima a 70% é alarmada por muitos com catastrófica e insustentável. O trabalho de Reinhart e Rogoff tentou propor um limite para a relação dívida/PIB acima do qual a economia passa a ter dificulda-des, mas o mesmo perdeu crédito depois que um estudante americano descobriu que graves erros técnicos invalidam sua análise empírica. Sobre o tema, o único consenso entre os economistas é que não há consenso quanto ao patamar ótimo da dívida pública.

No Brasil, essa excessiva preocupação com o patamar da dívida pública é carregada por pre-conceitos ideológicos e por uma visão estreita so-bre a relação entre Estado, moeda estatal e dívida pública. Por vezes, o debate político parece ignorar que um Estado soberano não quebra por conta de dívidas na sua própria moeda, que o mesmo se diferencia dos agentes privados e não incorre nas mesmas restrições para gasto e endividamento.

Nesse contexto, a proposta de limitar o nível da dívida do Estado é extremamente controver-sa. Além de carecer de justificativas teóricas, técnicas, estatísticas, essa medida engessaria o Estado em diversas frentes de atuação. Por exem-plo, diante de uma crise financeira internacional, como a de 2008, o governo brasileiro não pode-ria usar um banco público como o BNDES para reagir à contração do crédito privado, pois essa intervenção implica em uso de recursos do tesou-ro e aumento da dívida bruta. Da mesma forma, o governo perderia espaço para uma política

cambial de acumulação de reservas cambiais, uma vez que a essa acumulação implica no au-mento de passivos em reais, pelo mecanismo de esterilização da base monetária doméstica. Vale lembrar que, nesse caso, o aumento da dívida bruta não piora a situação de solvência do Estado, uma vez que o aumento dos passivos tem como contrapartida um aumento de ativos em moeda forte.

Por fim, e muito importante, a implementa-ção de um teto para dívida pública pode dificultar a atuação anticíclica da politica fiscal. Ou seja, a politica fiscal tem a importante tarefa de contra-por os movimentos acentuados do ritmo de ativi-dade e deve ser guiada pelo objetivo de sustentar o crescimento econômico de forma a permitir o avanço das transformações estruturais ineren-tes ao processo de desenvolvimento. E, para a sustentação do crescimento, a orientação do gasto público é estratégica pois se trata de uma fonte autônoma de demanda agregada. O pressuposto implícito nesta tarefa é que o modo de produção capitalista tem mecanismos cíclicos endógenos e tende a gerar crises periódicas. Essas crises são da natureza do sistema capitalista, cujas decisões de produção são feitas sob incerteza e a realização da produção pode esbarrar na insuficiência de demanda. Tornar o regime fiscal mais rígido, com limites para a dívida, é negar essa concepção de capitalismo e de política fiscal.

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As consequências econômicas da “regra de Serra”Guilherme Santos Mello

Sabemos que, para viver em sociedade, é fun-damental a existência de uma série de regras que ajudam a reger o comportamento dos indi-víduos. Algumas destas regras são apreendidas culturalmente, de maneira implícita, como por exemplo a forma de se comportar socialmente à mesa, enquanto outras assumem uma forma muito mais explicita, adquirindo o caráter de leis e regulamentos.

É fato sobejamente conhecido por qualquer cidadão que nem sempre as regras se mostram

positivas para o objetivo a que se destinam, isso quando não provocam exatamente o contrário do inicialmente planejado. Ou seja, nem toda nova regra é necessariamente “boa” para o conjunto da sociedade, apesar de poder se mostrar positiva para uma pequena parte dela.

No campo da economia, o debate acerca de “regras” que ordenem e limitem a atuação dos agentes econômicos ganhou força em diversos momentos da história. Em um exemplo recente, o estabelecimento de regras sobre a atuação discri-

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cionária do Estado ganhou grande força a partir da década de 1970, com a ascensão do moneta-rismo friedmaniano (e posteriormente a escola novo clássica) ao posto de orientador da política econômica do período. Nesta visão, a atuação do Estado promove uma série de desequilíbrios que precisam ser contidos pela adoção de “regras” que limitem o poder discricionário da política fiscal e monetária, aumentando não apenas sua pre-visibilidade, como sua eficácia. Ainda se admita a possibilidade de que políticas discricionárias tenham impactos positivos no curto prazo, elas seriam incapazes de promover o crescimento eco-nômico no longo prazo, além de invariavelmente criarem instabilidade e inflação no caminho.

Tal ideologia foi apenas reforçada pela es-cola das expectativas racionais, que ampliou a acusação de impotência das políticas macroeco-nômicas discricionárias de incentivarem o cres-cimento tanto no curto quanto no longo prazo, já que os agentes teriam a capacidade de antecipar os efeitos de tal política no momento exato de seu anúncio, comportando-se de forma a anular seus efeitos.

Curiosamente, tais ideologias livre-merca-distas tem muito pouco a dizer acerca do esta-belecimento de regras de atuação para os outros agentes econômicos, em particular o setor finan-ceiro. Quando dizem algo, em geral é em defesa da ausência de regras. Não é à toa a enxurrada de crises financeiras que podemos observar após a década de 1970, com o avanço da liberalização dos fluxos de capitais urbi et orbi, testemunha do fracasso destas políticas de “regras” seletivas e unilaterais sobre o processo de acumulação de

capital, com impactos danosos sobre o crescimen-to de vários países.

Após a grave crise financeira de 2008, pro-vocada em grande medida pela incapacidade do Estado de estabelecer “regras” e controles sobre a atuação dos grandes players financeiros, o debate acerca da regulação dos fluxos de capitais foi re-tomado, encontrando no FMI de Oliver Blanchard um de seus grandes defensores. Evidentemente tal orientação não foi bem digerida pelos moder-nos discípulos de Friedman, muito menos pelos economistas típicos do mercado financeiro, sem-pre ávidos a regular a atuação do Estado, mas tímidos e/ou ferozmente resistentes a regular a atuação do sistema financeiro. Apesar disso, a tendência a garantir maior flexibilidade para a atuação do Estado (seja na política fiscal, mone-tária ou cambial) e mais controles para a atua-ção dos agentes financeiros certamente é uma realidade nos debates recentes do mainstream econômico internacional, que infelizmente não deu o ar da graça no atrasado debate brasileiro.

No caso da recente proposta do Senador José Serra, que visa estabelecer um limite para o en-dividamento público consolidado, a experiência internacional recente não depõe a favor das aspi-rações políticas do congressista. Um dos raríssi-mos países a assumir tal regra, os EUA se viram diante de diversos dilemas políticos e econômicos uma vez que tiveram que se valer do orçamento público para reverter os efeitos da crise gerada pelos especuladores financeiros. Diante do “teto” do endividamento público, Obama se viu obrigado a “fechar” (shut down) o governo por vários dias mandando vários funcionários públicos para casa e descontinuando programas sociais rele-vantes, ou sendo obrigado a cortar importantes programas de recuperação econômica que teriam sido cruciais para uma retomada mais rápida e robusta da economia americana. O próprio banco central americano, o FED, declarou recentemente que a recuperação econômica do país foi prejudi-cada pelos bloqueios legais e ideológicos impostos à adoção de uma política fiscal mais ativa. A nota de risco do país foi rebaixada à época pelo imbró-glio político causado pela existência da exótica regra.

Se o objetivo do Senador é limitar a atuação

“No caso da recente proposta do Senador José Serra, que visa estabelecer um limite para o endividamento público consolidado, a experiência internacional recente não depõe a favor das aspirações políticas do congressista”

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da política fiscal do Estado, obrigando-o a anu-almente reduzir o endividamento público, seria o caso de se questionar quais seriam os efeitos da adoção de tal regra sobre a dinâmica da eco-nomia nacional. Em primeiro lugar, apesar do prazo para adaptação aos novos limites de endi-vidamento parecerem longos (quinze anos, com possibilidade de prorrogação em casos de anos com crescimento inferior a 1%), resta a certeza de que todo ano em que o país apresentar uma taxa de crescimento mínima, ele será obrigado a pro-mover um forte esforço fiscal para se adequar as exigências da regulamentação. Em um país como Brasil, onde o Estado sempre teve um papel im-portante de garantidor, promotor e incentivador do investimento privado, parece pouco razoável adotar em uma estratégia que impeça a política fiscal de exercer um papel de coordenação do de-senvolvimento econômico, apostando todas as fichas no avanço do investimento privado frente à redução do gasto público, em uma espécie de “contração fiscal expansionista” de longa duração.

Além do mais, o projeto do senador Serra re-tira a importante função anticíclica do orçamento fiscal, uma vez que mesmo que com crescimen-tos pequenos (acima de 1%), o governo se veria obrigado a promover novos cortes orçamentários. Imaginemos, por exemplo, que o país tenha saído de uma recessão em 2020. Se crescesse 1,5% em 2021, com a regra em ação, o governo se veria obrigado a promover um pesado ajuste fiscal, cor-tando gastos públicos para reduzir o nível de en-

dividamento e jogando o país de volta a recessão de que mal saíra. Em um caso contrário, quando o país estiver crescendo a taxas mais elevadas, mas enfrente uma desaceleração cíclica, a “regra de Serra” criará uma situação em que a política fis-cal atuará como elemento pró-cíclico, obrigando um ajuste ainda maior da economia dado a queda da receita pública derivada da desaceleração. Ou seja, se institucionalizaria a função pró-cíclica da política fiscal brasileira, criando na melhor das hipóteses recorrentes momentos de stop-and-go e, na pior, o aprofundamento de desacelerações cíclicas. A regra só se mostraria viável nos mo-mentos de crescimento prolongado da economia, onde a receita pública cresce acima do produto e a relação dívida/receita cai, como ocorreu entre 2003 e 2008 no Brasil. Nestes casos, porém, a regra parece desnecessária, uma vez que se converge “naturalmente” para as metas estabelecidas.

Caso o objetivo nobre do senador com a pro-posta atual seja, como afirmou na CAE do Senado, promover a transparência e o debate acerca da trajetória, composição, prazos e detentores da dívida pública brasileira, talvez o congressista deveria se somar ao debate sobre o projeto que pede a “auditoria cidadã” da dívida pública, não em sua dimensão de revogação do pagamento da dívida, mas em seu objetivo explícito de promover o esclarecimento acerca destes fatos. Ao menos, nesta proposta, não sofreríamos os efeitos cola-terais negativos do estabelecimento de uma regra arbitrária e internacionalmente mal sucedida de limitação do endividamento público.

Ao obrigar o Estado brasileiro a promover re-correntes “ajustes fiscais” ao longo das próximas décadas, a “regra de Serra” abandona qualquer vinculação com os campos progressistas da eco-nomia (mesmo os situados no mainstream) e as-sume o discurso de quem exige duras regras para a atuação do Estado, limitando sua capacidade de atuação, em particular nos momentos em que se exige uma política fiscal anti-cíclica. Mesmo que aparentemente conte com boas intenções (transparência sempre é algo positivo), a “regra de Serra” na forma que se encontra é danosa para o conjunto da sociedade, não merecendo assumir o status legal.

“(...) quando o país estiver crescendo a taxas mais elevadas, mas enfrente uma desaceleração cíclica, a “regra de Serra” criará uma situação em que a política fiscal atuará como elemento pró-cíclico, obrigando um ajuste ainda maior da economia”

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‘Se o projeto de Serra vigorasse em 2008 teríamos uma depressão’, diz Fernando Ferrari FilhoO Brasil, como o resto do planeta, apostou que o colapso da ordem neoliberal seria sucedido de um novo ciclo de crescimento. Não foi o que ocorreu.

O economista Fernando Ferrari Filho – presidente do Conselho Regional de Economia do RS (Corecon-RS) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), --tem um diagnóstico duro em relação à ênfase no consu-mo, desprovida de uma política consistente de investimento, que vigorou no país por um tempo excessivamente longo, em sua opinião, após o colapso mundial de 2008.

O governo não errou ao adotar incentivos contracíclicos para afrontar a recessão, enfatiza esse intelectual de extração keynesiana, mas abriu a guarda no timming, diz ele, ao não aten-tar para as pressões que essa resistência alongada acarretaria.

Na verdade, Brasília, como o resto do pla-neta, apostou que o colapso da ordem neoliberal seria sucedido de um novo ciclo de crescimento, que propiciaria uma reacomodação saneadora dos desequilíbrios da etapa de resistência.

Não foi o que ocorreu. Não é ainda o que ocorre na grande desordem do capitalismo mundial.

Em meio à pasmaceira, a economia brasilei-ra tem que ser reordenada, a um custo superior ao imaginado. É nesse cenário delicado que emer-ge a proposta do senador José Serra de engessar a

gestão fiscal impondo ao país 15 anos de arrocho compulsório.

Ferrari considera o projeto uma temeridade. Repita-se, o professor da Ufrgs não desdenha da parcimônia na condução da equação fiscal. Ao contrário da panaceia de arrocho do tucano, po-rém, ele defende que essa gestão seja desdobrada em dois comandos, sendo um deles o da conta do investimento público --modulado de forma a atenuar os ciclos de pico e declínio da atividade econômica. E sem se deixar contaminar pelo co-medimento na ponta dos gastos correntes.

Nada mas distante disso do que a visão ru-dimentar que orienta o facão de Serra. ‘Políticas fiscais expansionistas e endividamento público ocorrem porque as crises de demanda efetiva surgem’, ensina Ferrari ao tucano, para em se-guida arguir: ‘O que seria do mundo e do Brasil se, com a crise do subprime, em 2008, tivéssemos (no mundo) limitações de expansão fiscal e, por conseguinte, de endividamento público (como quer o projeto de Serra)?’. E fuzila de morte o de-vaneio ortodoxo do ex-governador de São Paulo na resposta: ‘ Teríamos tido não uma “grande recessão”, mas outra “grande depressão mundial’. Leia a seguir a entrevista de Fernando Ferrari Filho à Carta Maior:

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Carta Maior – Se a crise mundial tivesse sido superada, com crescimento firme do comércio internacional, mesmo com a Lava Jato, o Brasil viveria uma encruzilhada tão dramática?

Fernando Ferrari Filho – Em meu ponto de vista, a atual crise é ética, política e econômica. É éti-ca não somente pela questão da Lava Jato, das “pedaladas” fiscais etc., mas, principalmente, porque, em geral, a conduta e o posicionamento da sociedade brasileira acerca tanto de questões cotidianas quanto de questões centrais do País vão na linha da “lei de Gerson”. Estamos perdendo a noção do que são nossos direitos e deveres. É política porque nosso regime presidencialista exige governabilidade a qualquer custo; ou seja, alianças espúrias e não programáticas são recor-rentes. Por fim, é econômica por fatores endóge-nos e exógenos. Os exógenos estão relacionados à instabilidade da economia mundial, que continua apresentando uma situação de lenta e assimétri-ca recuperação econômica. Ademais, a desacele-ração da China contribui para que este cenário se prolongue. Em relação aos fatores endógenos, eles dizem respeito aos erros de política econômica implementados entre 2011 e 2014. Vejamos: cres-cimento alicerçado essencialmente em consumo privado (a taxa média de crescimento anual do consumo foi da ordem de 3,1%, ao passo que a taxa média de crescimento do investimento foi ao redor de 1,8% ao ano); volatilidade da política

monetária e cambial (por exemplo, ora os juros – Selic – foram reduzidos por voluntarismo, ora eles se elevaram para 11% ao ano em dezembro de 2014); intervenção equivocada nos setores de energia e combustível; e erros de condução da política fiscal (essencialmente expansionista ao longo dos últimos quatro anos). Eu diria que os fatores exógenos e endógenos representam, res-pectivamente, 20% e 80% dos atuais problemas da economia brasileira. Enfim, a questão externa corrobora para o quadro de encruzilhada da eco-nomia brasileira, mas, sem dúvida, o componen-te endógeno foi fundamental para chegarmos a ele.

CM – O ajuste atual aprofunda o desequilíbrio; de um lado, ao corroer a receita pela queda do nível de atividade; de outro, ao pressionar a despesa pelo lado do juro. Não é contraditório?

FFF – A política fiscal contracíclica, bem como a monetária, implementada em 2009 foi fun-damental para evitarmos uma recessão maior em 2009 (o PIB caiu 0,2%) e para crescermos em 2010, 7,6%. A maioria dos países, desenvolvidos ou emergentes, adotou políticas macroeconômicas contracíclicas. Portanto, desequilíbrios fiscais e crescimento de dívidas públicas são consequên-cias naturais de tais políticas. Por que no Brasil os desequilíbrios fiscais perduraram e recrudes-ceram e a dívida pública se elevou? Porque, por

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um lado, a política fiscal, entre 2011 e 2014, foi somente expansionista (os resultados primários caíram, ano após ano, de 3,1% do PIB, em 2011, para - 0,6% do PIB em 2014) e a taxa média de juros (Selic) foi da ordem de 9,9% ao ano. Se, ao final do ano passado, chegamos a um déficit no-minal/PIB da ordem de 6,7%, ao longo de 2015 esta relação se deteriora ainda mais, pois as receitas fiscais têm caído devido à recessão e a Selic se elevou para 14,25%. Dados recentes mostram que o déficit nominal/PIB se encontra, atualmente, em quase 8,5%. Ajuste fiscal, ou melhor, austeri-dade fiscal, com juros estratosféricos é contradi-tório e somente recrudesce nossa “encruzilhada dramática”.

CM – Nesse quadro, o senador Serra preten-de impor ao país um ajuste de 15 anos, com superávit de 3% ao ano para reduzir a dívida bruta. Não vai engessar ainda mais o manejo da política econômica num mundo em que as perspectivas se dividem entre longa estagnação, possível deflação ou, na melhor das hipóteses, uma recuperação medíocre?

FFF – Tudo leva a crer que sim. Exemplificando, tanto em 2011, quanto em 2013 foram criados impasses pelo Congresso Norte-Americano para a expansão da dívida pública dos Estados Unidos e, como se sabe, as consequências foram o rebai-xamento do rating dos títulos da dívida pública norte-americana e o contingenciamento de gas-tos alocados para programas sociais. A limitação do endividamento público prejudica a condução da política econômica, principalmente a fiscal, sob a ótica de programas sociais, investimentos públicos complementares ao investimento pri-vado, etc. Políticas fiscais expansionistas e endi-vidamento público ocorrem porque as crises de demanda efetiva surgem. O que seria do mundo e do Brasil se, com a crise do subprime, tivéssemos limitações de expansão fiscal e, por conseguinte, endividamento público? Teríamos tido não uma “grande recessão”, mas outra “grande depressão”.

CM – O Canadá acaba de eleger um governo que, diante da incerteza mundial, da contração do comércio e da queda nos preços das commodi-

tes, pretende deliberadamente fazer três anos de déficit fiscal para promover investimentos públicos de US$ 60 bi. Está errado?

FFF – A política fiscal e o endividamento públi-co, visando expandir os programas sociais e de transferência de renda e os investimentos públi-cos necessários à melhoria da infraestrutura e complementares aos investimentos privados, têm que ser articulados de forma responsável. Flexibi-lização da política fiscal não é incompatível com as condições de sustentabilidade da dívida públi-ca no longo prazo. Nesse sentido, não é demais resgatar a ideia de Keynes que propunha que o orçamento público fosse operacionalizado em duas contas: orçamento ordinário, relacionado às despesas correntes; e orçamento de capital, vin-culado aos gastos com investimento público. Se-gundo Keynes, o primeiro orçamento deveria ser equilibrado ou, preferencialmente, superavitário, ao passo que o orçamento de capital poderia, pro-visoriamente, ser desequilibrado: atuaria como o estabilizador automático do ciclo econômico. Em meu ponto de vista, a referida proposição é, o que costumo chamar, responsabilidade fiscal e não austeridade fiscal, esse “samba de uma nota só”, para parafrasear Tom Jobim. Em geral, eu diria que políticas keynesianas, desde que implemen-tadas de forma responsável e programática, são importantes para mitigar as falhas de mercado, as crises econômicas etc.

CM – O arrocho interno está impedindo uma revitalização industrial e produtiva que a des-valorização cambial ocorrida poderia ensejar?

FFF – O overshooting cambial é dramático em 2015: o câmbio saiu de R$ 2,65, ao final de dezem-bro, para os atuais R$ 3,93 (em 22/10); portanto, uma desvalorização de 48,3%. Consequências imediatas desta desvalorização? Por um lado, um canal transmissor de câmbio para preços (inflação) da ordem de 2,5% a 3,0% e, por outro lado, a recuperação do saldo comercial. Todavia, a recuperação da balança comercial se deve muito mais à queda das importações do que ao aumento das exportações. Continuamos exportando com-

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modities, agrícolas e minerais, e dependentes da demanda chinesa. A desindustrialização brasilei-ra não é somente devido a câmbio e, portanto, a atual taxa de câmbio, supostamente mais compe-titiva, não resolve os problemas da indústria. Os custos de produção são elevados, os juros são es-tratosféricos, as tentativas de políticas industriais fracassaram e o câmbio apreciado, durante muito tempo, foi prejudicial. Portanto, ou articulamos uma estratégia consistente para a recuperação do setor industrial, ou estaremos fadados a exportar commodities e “produzir” serviços.

CM – O mercado interno patina e a recuperação via exortações enfrenta a anêmica evolução do comercio mundial que deve crescer abaixo de 3% este ano. O que sobra?

FFF – A recuperação da economia brasileira passa, em meu ponto de vista, tanto pela expansão do mercado doméstico, quanto pelo equilíbrio das contas externas (entre 2009 e 2014 acumulamos um déficit em transações correntes da ordem de US$ 351,0 bilhões). Inclusão social e distribuição de renda e não depender de “poupança externa” foram fundamentais para o nosso último ciclo de prosperidade econômica, ocorrido entre 2004 e 2008. É óbvio que a atual situação econômica do País e as incertezas em relação à economia da zona do Euro, ao ajuste monetário do FED e à desaceleração da China limitam o equilíbrio das contas externas. Mas, com certeza, a limitação maior é a condução da atual política econômica.

CM – Não seria o caso de favorecer de alguma forma o consumo para permitir que a indús-tria local atenda a demanda devolvida ao País pela taxa de câmbio e ajude inclusive a equação fiscal?

FFF – Se centrarmos a dinâmica do crescimento somente no consumo, como foi feito nos úl-timos anos, não iremos longe. O que sustenta crescimento de demanda e dinamiza o produto potencial é investimento. Para tanto, responsa-bilidade fiscal (conforme explicitado acima), taxa de juros neutra, câmbio competitivo e reformas estrutural-institucionais (tais como tributária,

previdenciária e financeira) são fundamentais para a criação de um ambiente institucional favorável à tomada de decisão de investimentos por parte dos empresários.

CM-- Um dos maiores ativos do país são as re-servas cambiais, equivalentes a 30% do PIB. Por que a insistência em não descontá-las da dívida bruta, que cairia de 70% do PIB para algo como 40% a 50% dele?

FFF-- As atuais reservas cambiais são, hoje, um colchão contra qualquer possibilidade de ataque especulativo e crise cambial? Sem dúvida! O pro-blema dela é que o custo de carregamento delas é elevado. Poderíamos, parcialmente, solucionar este problema se levássemos em consideração o nível apropriado (ótimo) de reservas de um país. No caso brasileiro, alguns economistas calculam ao redor de US$ 270,0 bilhões. Independentemente de se adotar um nível apropriado (ótimo) de re-servas e de se incluir as reservas internacionais no cálculo da dívida pública, contribuindo, assim, para a redução do estoque da dívida pública, o ponto central é que os economistas do mainstre-am e o mercado sempre encontrarão uma expli-cação ad hoc para se adotar critérios e conceitos de contas públicas que mostrem a ineficiência do Estado e o descontrole fiscal.

CM-- É correto falar em pedalada fiscal quando se sabe que, o Tesouro é superavitário em cerca de 10% a 12% do PIB? Essa discussão não estaria ideologizada?

FFF-- Há estimativas de economistas que en-tendem tecnicamente da operacionalização das contas públicas de que o déficit primário fiscal, por conta das “pedaladas” fiscais, teria fechado 2014 em 2,5% do PIB. São estimativas verossímeis? Arrisco dizer que sim. Todavia, não deixa de haver uma discussão ideologizada da questão fiscal, até porque ela, a partir da decisão do TCU, sinaliza a possibilidade de impeachment de Dilma Rousseff.

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A inconstitucionalidade do projeto Serra na contramão do desenvolvimento nacionalCeci Juruá

A Emenda de Serra é inconstitucional. Qualquer projeto de imposição de limites ao endividamento da União deve partir de proposta da própria União.

O Senado deverá apreciar nos próximos dias emenda do Senador José Serra ao projeto de regu-lamentação da cláusula da LRF/ Lei de Responsa-bilidade Fiscal (art. 30) que determina a fi xação de limites para a dívida pública da União. O projeto é de 2007, sendo relator o Senador Romero Jucá. Ali fi cou estabelecido que o limite da Dívida Con-solidada Liquida (DCL) seria de 3,5 vezes a Receita Corrente Líquida (RCL).

Desde então este teto vem sendo respeitado pelo Governo. Tem sido igualmente acatado nas normas que orientam os orçamentos governa-mentais, como a LDO-Lei de Diretrizes Orçamen-tárias, e nos relatórios apresentados aos órgãos de auditoria externa e interna, caso do Relatório de Gestão Fiscal, que é encaminhado regularmen-te ao Congresso Nacional e ao Tribunal de Contas da União.

No último Relatório encaminhado, relativo ao período janeiro/ agosto de 2015, a relação DCL/RCL foi de 2,2, bastante inferior ao teto acordado com o Senado Federal, de 3,5. Tais resultados são uma demonstração inequívoca do zelo gover-namental no sentido de limitar a expansão do endividamento público e de respeito às cláusulas

da Lei de Responsabilidade Fiscal.A própria Comissão Parlamentar de Inqué-

rito, de 2010-2011, reconheceu que as auditorias realizadas regularmente pelos órgãos de controle interno e externo das Contas da União eram satis-fatórias e recomendou a aprovação, pelo Senado Federal, do projeto de Resolução 84/2007, que ha-via fi xado como limite para a Divida Consolidada Líquida o teto de 3,5 vezes a Receita Corrente Lí-quida. Mas, sabe-se lá por quais razões, o projeto não saiu das gavetas da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado e não foi aprovado até hoje. Mas é a regra que vem sendo observada há mais de sete anos.

O sucesso dos governos do PT na gestão da dívida pública fi ca evidenciado quando se faz a comparação com o período anterior, governo FHC do qual o Senador Serra foi ministro. No período 1995 a 2002, o superávit primário total realizado foi de 16% do Produto Interno Bruto-PIB, mas a dívida líquida foi duplicada passando de 29,5% a 60,4% do PIB. Nos doze anos de governo PT, 2003/2014, o superávit total realizado fi cou em torno de 36% do PIB, com média anual de 3% ao ano, superior à média dos governos tucanos (2%

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ao ano), enquanto a dívida líquida foi conside-ravelmente reduzida, de 59,9% para 36,7%. (cf. Vinte Anos de Economia Brasileira. Centro de Altos Estudos século XXI: Brasilia, 2015)

Nunca é demais relembrar que o superendi-vidamento público, de certa forma irresponsável, do período 1995/2002, foi contraído em paralelo, ao mesmo tempo em que se processou, de for-ma também pouco responsável, a liquidação do patrimônio nacional representado pelos ativos materiais e intangíveis das empresas estatais. Estas empresas confi guravam os setores estraté-gicos da economia nacional, pilares do desenvol-vimento durante o meio século em que o Brasil transitou da situação de “grande fazenda” para o de nação industrial, sob o governo trabalhista de Getúlio Vargas e a orientação nacionalista do governo Geisel.

O mais provável, como motivação para a emenda apresentada pelo Senador Serra1, é a

hipótese que o sucesso de Lula e Dilma na con-tenção do endividamento público tenha incomo-dado o ninho tucano. Afi nal de contas, dívidas são o instrumento preferido de dominação por parte das fi nanças internacionais, são elas que viabilizam rendas permanentes, a vida ociosa dos bilionários, e os juros extorsivos da agiotagem engravatada. Assim tem sido por séculos, assim foi nas décadas de 1980 e 1990 e, para que a domi-nação se perpetue sobre o Brasil e os brasileiros, assim deverá ser por muitas décadas !

Serra propõe, na sua emenda ao projeto de Resolução 84/2007, do Senado Federal, que se troque o indicador utilizado para limite superior do endividamento público. Em lugar da relação Dívida Consolidada Líquida/Receita Corrente Lí-quida, o Senador propõe que no numerador conste Dívida Consolidada, em lugar de DCL. Como se houvesse equivalência entre as duas! Impossível aceitar. Nas melhores escolas do país, qualquer

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aluno de 4º ou 5º ano sabe que mudanças no numerador, permanecendo fi xo o denominador, geram uma fração qualitativamente distinta da anterior.

No Brasil, esta modifi cação seria equivalente a nocautear o Estado, amarrá-lo da cabeça aos pés, à espera da execução final, que pode ser a troca da moeda nacional, o Real, pelo dólar norte-americano2.

Além de seus efeitos deletérios, sobre as possibilidades de utilização do crédito nacional por entidades públicas e pelo próprio Governo, a emenda Serra poderia impor a necessidade, inadiável, de restringir a livre circulação de ca-pitais estrangeiros no espaço econômico nacional e, provavelmente, o retorno imediato da lei de limitação da remessa de lucros. Afi nal de contas, as operações compromissadas do Banco Central, um elemento da dívida pública que o Senador gostaria de limitar, entre outros, são o reverso, a

outra face, da brutal invasão do Brasil por capitais estrangeiros em vôo livre à procura de campos onde se possam multiplicar prazeirosamente.

Esta Emenda não passará. Estamos confi an-tes que o Senado da República não permitirá mais este atentado ao desenvolvimento e à própria soberania nacional, por parte de representantes dos derrotados nas urnas em outubro de 2014.

Além de tudo, a Emenda de Serra é inconsti-tucional. Qualquer projeto de imposição de limi-tes ao endividamento da União deverá partir de proposta da própria União, assim o determina a Constituição da República. Ao mudar o indica-dor, o Senador alterou radicalmente a proposta encaminhada pela União.

Não se pode supor que o Senador queira en-ganar a opinião pública e seus pares. Supomos, ao contrário, que se tratou de um equívoco, de um ato impensado ou, talvez, de uma tentativa de adequar os instrumentos de gestão e de controle vigentes no Brasil a padrões internacionais. Mas por caminhos errados, é o ponto-de-vista aqui exposto e defendido.

Economista, doutora em políticas públicas, membro do Conselho Consultivo da CNTU e da

diretoria do IBEP.

1 Ceci JURUA. A Dívida Pública na linha de tiro. Artigo publicado em CARTA MAIOR. 2 Gustavo FRANCO. Entrevista Uma breve histó-ria do Plano Real, aos seus 18 anos. Por Leandro Roque, 30 de junho de 2012. Instituto Ludwig Von Mises.

“O mais provável, como motivação para a emenda apresentada pelo Senador Serra, é a hipótese que o sucesso de Lula e Dilma na contenção do endividamento público tenha incomodado o ninho tucano”

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O projeto de Serra para estrangular o Estado

Os fundamentos de Serra para justificar seu projeto refletem o mantra do neoliberalismo segundo o qual a dívida pública sempre é algo negativo.

J. Carlos de Assis*

Entre as patacoadas fiscalistas com que costu-ma brindar o país, o senador José Serra acaba de incluir uma joia do pensamento econômico conservador norte-americano, tese central do Tea Party, a saber, a criação de um teto máximo para a dívida pública. Amigos meus estão apreensivos com essa iniciativa já que, tendo em vista a situa-ção caótica do Congresso Nacional, é possível que dê passagem às besteiras mais irresponsáveis em função de intrigas partidárias ou das manobras defensivas de um presidente da Câmara próximo da cassação.

Gostaria de contribuir para tranquilizar as pessoas de boa fé que estão assinando um ma-nifesto contra o projeto. Eu também o assinei, mais por educação do que por preocupação. O projeto Serra, quando for percebido pelas classes dominantes, vai reunir contra si a fina flor dos banqueiros e financistas brasileiros pela razão óbvia de que, se for implementado, colocará em risco não só o orçamento social do Estado mas o pagamento do serviço da dívida pública. Ou seja, é um roteiro direto para o calote financeiro.

Por que Serra inventou um projeto tão idio-ta? Claro, ele segue a cartilha dos conservadores do Partido Republicano dos Estados Unidos, em especial os radicais do Tea Party. Estes, por razões estritamente políticas e nada técnicas, tentaram empurrar um teto goela abaixo de Obama em 2011, deixando em pânico Wall Street. Na hora H, o projeto foi derrotado sob pressão dos financistas, com medo de que, sob o teto da dívida, o Governo norte-americano acabaria por ter de dar o calote em sua dívida pública.

Não é que não haja um teto periodicamente renovado pelo Congresso para a dívida pública dos Estados Unidos. Existe sim, mas é meramente formal. Sempre que, em razão do déficit público anual, a dívida pública chega próxima do teto, o Congresso aprova sua elevação de forma quase automática. Nem mesmo a loucura política avas-saladora que se manifesta nos conflitos entre Par-tido Republicano e Partido Democrata é capaz de desembocar em algo tão contrário aos interesses das classes dominantes como a possibilidade de um calote na dívida.

De fato, entre os anos 40 e esta década, o Congresso norte-americano autorizou nada menos do que cerca de cem vezes o aumento do teto. Toda vez que a situação orçamentária exigia um déficit expressivo, rompendo o teto, o Con-gresso aprovou. Isso significa que o teto é uma mera convenção. O importante é a formulação e a execução do orçamento. Em determinadas circunstâncias do ciclo econômico, o déficit não é apenas necessário mas fundamental para es-timular a retomada do crescimento econômico e do emprego.

Por que o teto da dívida norte-americana teve que ser elevada? É que, no esforço de fazer a economia retomar depois do início da crise em 2008, o Governo Obama teve de recorrer a déficit de 1,413 trilhão de dólares em 2009; 1,294 trilhão em 2010; 1,1 trilhão em 2011; 680 bilhões de dólares em 2012; 492 bilhões em 2013. No ano passado, ficou na faixa de 2013. Sem aumentar o teto da dívida, a economia do país teria afundado pois a eficácia da política monetária, mantida a zero

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por cento, tem sido praticamente nula. Os fundamentos de Serra para justificar seu

projeto são toscos. Reflete o mantra do neolibe-ralismo segundo o qual a dívida pública, sempre, é algo economicamente negativo. Esquece o fato elementar, aparentemente desconhecido por ele, de que dívida pública é um instrumento funda-mental de política econômica desde os primór-dios do capitalismo. Entre outras coisas, é uma forma de cobrir gastos públicos sem aumentar impostos, sendo seu custo coberto pela ampliação do próprio aumento de circulação do dinheiro (senhoriagem).

A raiva da classe dominante financeira em relação ao aumento da dívida pública é justa-mente a perda da receita de senhoriagem para o Estado. Se a atividade econômica se eleva de 100 para 200, a economia exige que se dobre o dinheiro em circulação. Quem se apropria desse dinheiro? Se a dívida aumenta, o aumento será apropriado pelo Governo sem custos. Se a dívida se mantém no mesmo nível, ou se cai, confor-me quer Serra, o sistema bancário se apropria da receita de senhoriagem e a divide com outros financistas.

Entretanto, nem todo aumento da dívida pública é virtuoso. Se é apenas para rolar a dí-vida velha, como acontece quando temos déficit

nominal acima do superávit primário – e quando o serviço pago da dívida velha não retorna como gastos reais à economia mas continua no giro es-peculativo do over -, estamos diante de um círculo vicioso infernal, que neste ano resultará numa contração da economia de cerca de 5% (o FMI já fala em 3%). Nesse contexto, porém, segurar o teto da dívida nos níveis propostos por Serra seria ainda mais recessivo.

Para uma avaliação dessas consequências, basta imaginar situação na qual o teto da dívi-da seja estourado em razão da repercussão da inflação e dos juros na execução orçamentária até outubro. Daí em diante, o Governo teria que escolher as despesas que deveria pagar: saúde, educação, segurança, juros da dívida pública. Es-colham! Uma vez escolhida uma dessas rubricas, por favor, peça ao senador Serra e ao Congresso que comuniquem aos setores atingidos sua con-tribuição ao equilíbrio fiscal. E que se arranjem, por favor, num entendimento com os credores da dívida pública!

*Economista, professor, doutor pela Coppe/UFRJ, autor, entre outros livros de economia política,

de “Os Sete Mandamentos do Jornalismo Investi-gativo”, Ed. Textonovo, SP.

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A austeridade permanente de José Serra e as pedaladas verbais dos economistas tucanosPedro Paulo Zahluth Bastos*

O projeto de Serra engessaria a política fiscal e levaria a uma austeridade permanente. Ao contrário de conter os juros altos, tende a agravá-los.

Agora virou moda entre políticos e economistas do PSDB afirmarem que qualquer mecanismo complexo de política econômica, que não seja auto-evidente, representa uma “pedalada”. A ânsia de acusar o governo Dilma de “falta de transparência” chega à beira da irresponsabili-dade ao atacar o Banco Central (BC) e as operações compromissadas com títulos da dívida pública.

O pior é quando acusações gravíssimas são feitas de modo mal fundamentado tecnicamente e com o objetivo de engessar a gestão fiscal por vários anos, forçando a geração de superávits fiscais primários enormes que, provavelmente, também prejudicariam a retomada do crescimen-to econômico, do investimento e do gasto social da União.

Esse é o caso do projeto de resolução do Se-nado Federal (PRS no 84/2007), objeto de subemen-da de responsabilidade do Senador José Serra, que pretende definir limite máximo para a dívida pú-blica da União. Com debate público praticamente nulo, o projeto foi incluído na chamada “Agenda Brasil” de Renan Calheiros e será apreciado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado na terça-feira, 20 de outubro.

O que quer José Serra?O PRS no 84/2007 determinaria limites globais para o montante da dívida consolidada da União em atendimento à Mensagem nº 154, de 3 de agos-to de 2000, encaminhada ao Senado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2007, a proposta fixava limite para a Dívida Consoli-dada Líquida da União em valor equivalente a 3,5 vezes a Receita Corrente Líquida. Hoje, essa relação está em torno de 2,2, ou seja, dentro da faixa autorizada.

Essa proposta não foi votada em 2007, tendo sido ressuscitada pelo senador José Serra esse ano. No entanto, a proposta de Serra é substituir a dívida consolidada líquida pela dívida consoli-dada (bruta) como objeto de limitação, e definir o limite em um valor muito inferior ao que é verificado atualmente.

A relação Dívida Consolidada/Receita Corren-te Líquida (DC/RCL) estava, em julho de 2015, em cerca de 5,6 vezes. O objetivo inicial se Serra seria reduzir essa relação para 4 vezes. A diferença en-volveria um esforço fiscal de R$ 1,05 trilhão (um pouco mais de um trilhão e cinquenta bilhões de reais) ou 18% do PIB!

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Depois de pareceres fortemente contrários da Secretaria do Tesouro Nacional, Serra mu-dou a proposta: o projeto passou a admitir que a recessão atual, parcialmente provocada pela austeridade fiscal inoportuna, vai elevar a razão DC/RCL para 7,1 nos próximos cinco anos. A partir de 2021, o projeto propõe que seja reduzida a 4,4 até 2030, prevendo-se um décimo do esforço por ano. Isto é, ao invés de diluir o esforço de redução da relação entre 5,6 e 4 em quinze anos, propõe reduzi-la entre 7,1 e 4,4 em apenas dez anos.

Como estimativas sobre o comportamento do PIB, das receitas tributárias, do superávit pri-mário e das taxas de juros nos próximos quinze anos são completamente incertas, o leitor pode ter uma noção simples (mas subestimada) do esforço fiscal envolvido se considerarmos a dife-rença dos valores da dívida bruta correspondentes à relação DC/RCL igual a 7,1 ou a 4,4, tomada a RCL no valor dos últimos doze meses em julho (embora a RCL esteja caindo hoje e a taxa de juros dos títulos públicos seja muito maior que a taxa

de crescimento do PIB!). Nestes termos, trazer a relação DC/RCL de 7,1 para 4,4 envolve mais de R$ 1,75 trilhão (um pouco mais de um trilhão, setecentos e cinquenta bilhões de reais) ou mais de 31% do PIB!

Por que o projeto engessa a política fiscal e o crescimento econômico?Suponhamos que, em 2020, a economia tenha se recuperado da austeridade e voltado a crescer, talvez puxada pela demanda externa. O início do esforço fiscal necessário para baixar a relação DC/RCL de 7,1 para 4,4 em dez anos provavelmente jogaria a economia novamente na recessão. Se a economia crescesse menos do que 1%, o esforço fiscal anual poderia ser adiado, mas seria redo-brado assim que a economia voltasse a crescer mais do que isso.

Nesse cenário, os agentes econômicos sabe-riam que o governo voltaria a realizar novo ajuste recessivo sempre que a economia ameaçasse ultrapassar o limiar de baixo crescimento de 1%,

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prevendo nova contração da demanda agregada que perpetuaria um cenário de baixo crescimen-to, roubando dos empresários o estímulo para investir.

A aprovação do PRS no 84/2007 signifi caria, na prática, determinar a política fi scal e as metas de superávit fi scal primário da União por cima das leis orçamentárias futuras, inutilizando o debate democrático sobre o valor dos recursos que devem ser transferidos dos impostos dos brasileiros para os portadores da dívida pública. Tais credores assegurariam, por pelo menos os próximos quinze anos, uma política econômica caracterizada por uma austeridade ainda mais profunda do que a realizada em 2015. O espaço para políticas anticíclicas seria simplesmente eliminado.

O pior é que, como no resto do mundo, a ex-periência brasileira em 2015 confi rma os estudos acadêmicos que refutam a hipótese de austerida-de fi scal expansionista. Ao invés de restaurar o crescimento econômico e ajustar contas públicas, a austeridade pode provocar uma contração do crescimento que prejudica as receitas tributárias e frustra o próprio ajuste fiscal. A redução da relação DC/RCL só é possível em cenário de alto crescimento que, no entanto, a própria emenda

de Serra inviabilizaria. No mundo inteiro, a defi -nição de metas fi scais draconianas é, no fundo, um meio de blindar o neoliberalismo, como ar-gumentei em um texto para discussão acadêmica que analisa da crise geral do projeto neoliberal.

Como os limites do projeto de Serra são dra-conianos, alcançar suas metas exigiria cortes de despesas obrigatórias que, por sua vez, forçariam mudança completa do quadro legal que regula o dispêndio público segundo prioridades defi nidas pelos representantes do povo no Congresso Nacio-nal, provavelmente até na Constituição Federal. É admissível que isso se produza como efeito da regulamentação de uma lei pelo Senado Federal, sem amplo debate público, sem passar pela Câ-mara dos Deputados ou pela possibilidade de veto presidencial?

A pedalada verbal: a acusação que o Banco Cen-tral fi nancia o défi cit público!Para agravar a tragédia anunciada, a justifi cativa técnica para substituir a dívida pública líquida pela dívida bruta é completamente equivocada, partindo da acusação de que as operações com-promissadas do Banco Central representam um financiamento ao Tesouro Nacional. A dívida bruta é muito maior do que a dívida líquida por-

Reservas vs operações compromissadas (bilhões de reais)

Fonte: Banco Safra (Dinâmica da Dívida Bruta, 2015).

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“Como os limites do projeto de Serra são draconianos, alcançar suas metas exigiria cortes de despesas obrigatórias que, por sua vez, forçariam mudança completa do quadro legal que regula o dispêndio público segundo prioridades definidas pelos representantes do povo no Congresso Nacional”

que desconta ativos do Tesouro, como as reservas cambiais, os créditos a receber do BNDES e os tí-tulos públicos transferidos para a carteira do BC para realizar operações compromissadas.

As operações compromissadas são operações com títulos públicos feitas pelo Banco Central, em mercado aberto, para assegurar a convergência dos juros SELIC para a meta definida pelo Comitê de Política Monetária, o COPOM. Quando os juros estão abaixo da meta, o BC lança títulos para en-xugar a liquidez até alcançar a meta.

Os motivos para aumento da liquidez são vários: 1) acumulação de reservas cambiais; 2) redução dos depósitos compulsórios; 3) decisão da instituição bancária de não ofertar crédito e reter recursos em caixa, por exemplo por causa do medo do risco de crédito; 4) resgate de títulos do Tesouro Nacional; 5) opção dos agentes financei-ros de não renovarem dívida pública ou privada a vencer.

O motivo fundamental é, sem dúvida, a acumulação de reservas cambiais, pelo menos até que a recessão levasse os bancos a contrair o crédito livre. O gráfico do Banco Safra mostra a correlação entre operações compromissadas e acumulação de reservas cambiais, arbitrando a taxa de câmbio de R$2/US$ (dois Reais por dólar) para facilitar a visualização.

A análise técnica que instrui a proposta do senador Serra confunde a política monetária que usa operações de mercado aberto (compro-missadas) com uma política de financiamento do Tesouro. É verdade que as operações com-promissadas com títulos públicos têm um custo fiscal grande, uma vez que os títulos oferecidos pelo BCB pagam juros. No entanto, esses títulos usados nas operações compromissadas não tem como contrapartida qualquer financiamento do BCB ao Tesouro, nem antes (pois o BC não paga pelos títulos que o Tesouro transfere), nem depois (pois o BC não transfere os recursos que enxuga para o caixa único do Tesouro).

O BCB financiaria o Tesouro caso pagasse pelos títulos que o Tesouro transfere para que rea-lize a política monetária. Isso ocorre no país? Não há qualquer dado que fundamente a acusação, que é muito grave. Uma pedalada verbal.

O BCB tampouco transfere para o Tesouro os

recursos do lançamento de operações compro-missadas com títulos públicos, ou seja, o governo não toca nos recursos que o BCB esteriliza com o lançamento das compromissadas.

O Tesouro, por sua vez, não faz política monetária. Ou seja, não tem a obrigação que o projeto de Serra lhe exige de enxugar a liquidez do mercado financeiro e garantir a preferência pela liquidez dos agentes financeiros. O Tesouro só tem a obrigação de gerir lançamentos e resgate de títulos públicos em função de atender às ne-cessidades de financiamento do setor público, de acordo com um planejamento do endividamento marcado por grande transparência.

Ou seja, o Tesouro tem compromisso com a rolagem da dívida e não com o enxugamento da liquidez do sistema bancário. Por sua vez, o BC tem compromisso com o enxugamento da li-quidez do sistema bancário e não com a rolagem da dívida.

Alguns economistas tucanos, como Gustavo Franco [link para http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,guia-pratico-para-o-adulterio--fiscal-imp-,1035715], Yoshiaki Nakano [link para http://www.valor.com.br/opiniao/4218796/deterioracao-conjuntural] e Felipe Salto [link para https://blogdosalto.wordpress.com/category/ope-racoes-compromissadas/], já haviam feito acusa-ção infundada de que o BC financia diretamente o Tesouro através das operações compromissadas.

O que é mais grave é que essa acusação, que

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tem efeitos deletérios sobre a confiança sobre a política monetária e a gestão da dívida pública, continuou sendo feita depois de que o próprio Banco Central lançou nota de esclarecimento sobre a questão. Assim como os pareceres do Te-souro contra o projeto de Serra, o esclarecimento do BCB refutou cabalmente as acusações feitas em reportagem e editorial do jornal O Estado de São Paulo que teve por base uma pesquisa equivocada da Tendências Consultoria divulgada em 2013.

Aliás, o responsável pela pesquisa da Ten-dências Consultoria é hoje assessor parlamentar do Senador José Serra, o economista Felipe Salto. Se a acusação estivesse correta, os responsáveis pelo BCB estariam cometendo crime de responsa-bilidade desde 2002, quando o prazo definido pela Lei de Responsabilidade Fiscal para o lançamento de títulos se esgotou, e o BCB passou a usar títulos do Tesouro Nacional em operações de mercado aberto para regular a liquidez do mercado e asse-gurar a convergência das taxas de juros interban-cárias para a meta SELIC, com amplo e crescente uso de operações compromissadas.

Se a justificativa técnica envolve uma de-núncia de crime de responsabilidade, ela não de-veria estar melhor fundamentada tecnicamente e envolver amplas audiências públicas sobre o tema?

Por que o projeto engessa a política cambial?É com base nessa acusação não fundamentada que o projeto de Serra propõe substituir a dívida líquida pela dívida bruta como alvo para a defi-nição do limite máximo para o endividamento público.

As consequências disso para a política cambial e monetária seriam muito restritivas, para dizer o mínimo. A política de acumulação de reservas cambiais é, provavelmente, o motivo principal porque o Brasil não é levado hoje a pe-dir empréstimos compensatórios junto ao Fundo Monetário Internacional em situações de stress financeiro global. Funciona como um escudo de proteção que preserva a confiança na rolagem dos compromissos externos da economia.

Ademais, a acumulação de reservas cam-biais tem um impacto favorável sobre a própria dinâmica da dívida pública líquida quando um

stress financeiro ocorre e provoca uma deprecia-ção cambial que compensa, total ou parcialmen-te, o impacto da recessão sobre a dívida pública.

Um ajuste recessivo prejudica a dinâmica da dívida pública porque reduz a taxa de crescimento da receita tributária e, inclusive, pode reduzi-la em termos reais, como ocorreu em 2014 e deve se repetir em 2015. Quando conjugada a uma taxa de juros elevada, isso tende a elevar a dívida líquida e, sobretudo, as relações DC/RCL e DCL/RCL.

No entanto, a acumulação de reservas cam-biais pode evitar o crescimento da dívida líquida em momentos de desvalorização cambial e stress no sistema financeiro internacional, como hoje. Por exemplo, apesar do impacto da política de juros elevados sobre a rolagem da dívida pública e a despeito da queda da arrecadação tributária trazida pelo ajuste recessivo, a dívida pública líquida caiu em relação ao PIB em agosto de 2015, exatamente por causa do aumento do valor em moeda nacional dos ativos em moeda externa acumulados pelo Banco Central do Brasil.

A regra proposta por Serra propõe substituir a dívida líquida pela dívida bruta na definição de limites para o endividamento e, assim, vai contra a política de acumulação de reservas cambiais. No entanto, forçar a venda de reservas cambiais, de maneira a reduzir a dívida bruta, pode ter um efeito contraproducente sobre a própria dinâmica da dívida líquida, ao tornar o país mais vulnerá-vel a episódios de depreciação cambial.

Se a dívida bruta pode elevar-se porque o Tesouro tem créditos a receber, sobretudo aqueles vinculados à acumulação de reservas cambiais, o projeto de Serra propõe, no fundo, interromper

“Se a justificativa técnica envolve uma denúncia de crime de responsabilidade, ela não deveria estar melhor fundamentada tecnicamente e envolver amplas audiências públicas sobre o tema?”

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e reverter a política de acumulação de reservas cambiais.

Por que o projeto engessa a política monetária?A mesma restrição se colocaria sobre a execução da política monetária. O próprio projeto de Serra admite que “a limitação rígida do tamanho da carteira de títulos do Banco Central pode, em determinados momentos, deixar a Autoridade Monetária sem títulos suficientes para as in-tervenções de política monetária necessárias ao cumprimento da meta de inflação. Nesse caso, o limite de endividamento estaria interferindo na execução da política monetária.”

O problema é que o limite proposto por Serra é tão rígido que tem por efeito exatamente for-çar o Banco Central a monetizar um volume de operações compromissadas que chegaram a 15% do PIB em agosto de 2015, independentemente de seus efeitos sobre a política monetária.

Forçado a monetizar as operações compro-missadas, o BC simplesmente devolveria um volume enorme de liquidez ao mercado, jogando os juros interbancários em direção a zero. Não é essa a melhor maneira de reduzir taxas de juros.

Se o problema é o de evitar o custo fiscal das operações compromissadas e alongar a dí-vida pública, o remédio correto não é definir um limite para a totalidade da dívida pública bruta, nem forçar o BC à monetização das operações compromissadas.

O problema fiscal decorre de que a dívida pública é contaminada pelas variações da política monetária a curto prazo, seja pela existência de títulos públicos pós-fixados (LFTs) que acompa-nham a meta de juros SELIC e inflam, por essa via, a dívida pública quando os juros aumentam, seja pela rolagem das operações compromissa-das. Isso também aumenta a riqueza líquida dos portadores de títulos da dívida pública, contradi-zendo os próprios objetivos expressos da política de juros altos.

Se for para diminuir o custo fiscal da política monetária, é preciso criar condições para a queda das taxas de juros e para a redução da demanda da indústria de fundos financeiros por títulos públicos de curto prazo.

Dizer que a queda da taxa de juros depende

de grandes superávits primários que reduzam o peso da dívida pública é desconsiderar, primeiro, o fato de que é a própria taxa de juros elevada que é o principal determinante da elevação da dívida pública: sucessivos superávits primários não re-duziram a dívida líquida tanto quando poderiam por causa dos juros elevados. A dívida não cresce por causa de déficits primários, mas apesar dos superávits primários.

Parte da elevação de juros é explicada pelo próprio conservadorismo militante dos diretores do BC. Parte importante é explicada por uma segunda causa usualmente desconsiderada: a dependência da política monetária em relação ao ciclo financeiro global centrado na política monetária dos EUA e seu impacto nas variações da taxa de câmbio de todas as moedas periféricas, inclusive o Real.

A dominância do ciclo de liquidez internacional sobre a política monetáriaDe fato, as oscilações da taxa de câmbio não são determinadas desde dentro, mas dependem das oscilações cíclicas da liquidez internacional. Quando há liquidez internacional abundante, a taxa de juros pode cair enquanto o Real sofre apreciação cambial. Quando a liquidez se contrai mundialmente, o Real (como outras moedas pe-riféricas) sofre pressão para desvalorização cam-bial. Nesse momento, a taxa de juros precisa subir para conter o ritmo de depreciação e os impactos secundários da mesma sobre a inflação interna.

Estamos nesse momento, em razão da in-certeza a respeito do comportamento das taxas de juros nos EUA. A política do BCB de juros elevados serve hoje, no fundo, para criar um diferencial de rentabilidade financeira para compensar a elevação do prêmio de risco de ativos denomina-dos em Reais quando os juros nos EUA tendem a subir. Sempre que isso ocorre, o BCB busca atrair ou evitar a fuga de capitais e evitar excessiva

“Parte da elevação de juros é explicada pelo próprio conservadorismo militante dos diretores do BC”

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depreciação cambial, que tem impacto inflacio-nário. Afora isso, a justificativa de que os juros altos impedem a fuga da riqueza financeira para ativos reais e evitam a inflação serve apenas para criar um clima alarmista que justifica a própria elevação das taxas de juros.

De fato, os bancos estão banhados em li-quidez excessiva que não procura ativos reais e força, isso sim, uma queda da taxa de juros in-terbancária para bem abaixo da meta SELIC. Ou seja, o mercado financeiro está jogando as taxas de juros fortemente para baixo e quem não dei-xa que caiam é o BC, que enxuga o excesso para subir a taxa até a meta SELIC. O crédito livre está caindo fortemente ao longo de 2015, refletindo e acentuando o aumento da inadimplência trazido pela recessão e pressionando o preço de ativos reais (imóveis, automóveis usados) para baixo, a despeito da inflação de preços administrados e cotados em dólar.

Quando o dólar se aprecia continuamente, chega-se a um ponto em que a convenção altista

tende a se esgotar, sobretudo se o BCB tem re-servas cambiais. A necessidade de juros altos diminui. A cada ciclo financeiro internacional, contudo, a pressão para aumentar juros retorna depois que a entrada de capitais leva a uma apre-ciação cambial do Real que provoca vulnerabili-dade externa, sobretudo quando a taxa de juros nos EUA tem tendência de alta.

Assim, só é possível reduzir taxas de juros de modo sustentado controlando a vulnerabilidade externa. Sem isso, de nada adianta abater a dí-vida pública com superávits primários enormes: eles apenas enxugariam gelo.

Uma maneira de evitar o aprofundamento da vulnerabilidade externa é, primeiro, acumular reservas cambiais nos momentos de ampla liqui-dez internacional e juros baixos ou estáveis nos mercados financeiros internacionais. Como isso tem custos fiscais, contudo, o ideal seria recorrer a controles da entrada dos capitais que aprovei-tam diferencial de juros, provocam apreciação cambial e/ou induzem operações compromissa-

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das para enxugar a liquidez gerada pela compra de reservas cambiais.

Deixar a taxa de câmbio apreciar não é remédio, pois o ajuste danoso virá depois com pressões futuras de depreciação cambial (1997, 1999, 2002, 2008, 2013, 2015) sempre que o ciclo financeiro internacional mudar depois de roda-das de elevação de taxas de juros nos centros do sistema.

Por que não regular o curto-prazismo dos fun-dos bancários?Além da redução de juros, reduzir o custo fiscal das operações compromissadas exigiria não só atacar as fontes do excesso de liquidez do sistema bancário, mas fazê-lo de outra maneira. Ao invés das operações de mercado aberto, seria desejável maior recurso à boa e velha política de controles quantitativos para regular a liquidez bancária, com uso de depósitos compulsórios.

De modo mais estrutural, a demanda por títulos públicos a curto prazo resulta do fato de que a indústria de fundos financeiros no Brasil se financia com aplicações a curto prazo. Como os fundos tem passivos a curto prazo, a possibilidade de retiradas de aplicações em momentos de stress leva os fundos buscarem operações líquidas. Não é tarefa do Tesouro atender a essa demanda, mas o BCB acaba atendendo com o lançamento de compromissadas.

O remédio contra o curto-prazismo não é determinar um limite total sobre a dívida bruta, como quer José Serra. O alongamento do prazo dos títulos públicos só pode ocorrer caso novas re-gras institucionais, negociadas consensualmente, modifiquem a operação da indústria de fundos no Brasil, no sentido de alongar também o passivo dos gestores de carteiras.

O Banco Central pode ser acusado de exa-gerar na dose dos juros elevados e de acumular reservas cambiais que tem grande custo fiscal. No entanto, não pode ser acusado, salvo denúncia tecnicamente bem fundamentada, de descum-prir a Lei de Responsabilidade Fiscal e financiar o Tesouro. E muito menos ser forçado a vender reservas cambiais e resgatar os títulos públicos com emissão de moeda, com base nos equívocos da justificativa técnica do projeto do senador José Serra. Não é com pedaladas verbais que o proble-ma pode ser resolvido.

A quem interessa?A pretexto de criticar o custo fiscal da política monetária e cambial do BC, o projeto de Serra nada faz para atacar suas causas. Ao contrário de conter os juros altos e a depreciação cambial, tende a agravá-los, ao forçar a venda de reservas cambiais e enfraquecer os mecanismos de defesa diante dos ciclos financeiros internacionais.

Na prática, o projeto de Serra propõe enxugar gelo: fazer o superávit primário que seja neces-sário para compensar o custo brutal das políticas monetária e cambial do Banco Central. Não creio que os portadores de títulos da dívida pública fi-quem insatisfeitos com tal projeto.

É pouco provável que os demais interes-sados nas políticas públicas gostem do projeto. Além de levar a um regime de baixo crescimento econômico, sua aprovação levaria a uma batalha duradoura quanto a quem sofreria os custos do corte de programas que limitaria a dívida pública bruta.

O pior é que isso se faça com métodos pouco democráticos e transparentes. O projeto de Serra engessaria a política fiscal e levaria a uma auste-ridade permanente. Em um regime democrático, tal perspectiva deve ser colocada sob o crivo do debate público e não enxertada em um projeto de resolução do Senado com baixíssima publicidade.

*Professor Associado (Livre Docente) da UNICAMP.

“De fato, os bancos estão banhados em liquidez excessiva que não procura ativos reais e força, isso sim, uma queda da taxa de juros interbancária para bem abaixo da meta SELIC”

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A armadilha do superávit primárioPaulo Kliass*

Com o intuito de salvaguardar os interesses da banca global, o FMI e o Banco Mundial impuseram aos governos a obtenção de um excedente nas contas fiscais

O imobilismo do governo federal tem contribuído de forma significativa para o Brasil penetrar pe-rigosamente no pântano da recessão econômica. Essa trajetória, que carrega consigo as marcas do triste e do trágico, encontra sua explicação na submissão que acometeu a Presidente Dilma frente às conversas sedutoras proporcionadas pela turma do financismo.

Afinal, para quem acompanhou os debates e as polêmicas travadas ao longo do mês de ou-tubro do ano passado, imaginava-se que a vitória da candidata de coração valente significaria a retomada segura do projeto desenvolvimentista e a busca de caminhos para dar continuidade ao processo de superação das desigualdades e de

consolidação de um país efetivamente justo e democrático.

No entanto, a surpresa teve início logo após o anúncio dos resultados oficiais, com a confir-mação de sua recondução ao Palácio do Planalto. Em busca de pacificação com os setores mais conservadores de nossa sociedade, a Presidenta fez muito mais do que a nomeação de adversá-rios históricos do povo e dos trabalhadores para a composição de seu ministério, a exemplo de Katia Motosserra Abreu, Gilberto Kassab, Guilherme Afif Domingues, Armando Monteiro, entre outros.

A submissão ao conservadorismo.O aspecto mais surpreendente foi a conversão

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da mandatária ao diagnóstico apresentado pe-los donos das finanças a respeito da situação econômica e que pressupunha um conjunto de políticas para a economia que representavam uma negação de tudo aquilo que fora prometido na campanha e nos palanques. O coroamento de todo esse transformismo deu-se com a efetivação do candidato indicado pelo presidente do Brades-co para ocupar a pasta da Fazenda.

No mês de novembro, um documento arti-culado por importantes representantes do pensa-mento econômico progressista já alertava:

“A campanha eleitoral robusteceu a demo-cracia brasileira através do debate franco sobre os rumos da Nação. Dois projetos disputaram o segundo turno da eleição presidencial. Venceu a proposta que uniu partidos e movimentos sociais favoráveis ao desenvolvimento econômico com redistribuição de renda e inclusão social. A maio-ria da população brasileira rejeitou o retrocesso às políticas que afetam negativamente a vida dos trabalhadores e seus direitos sociais.”

Junto com Levy e sua equipe, instalou-se no interior do núcleo duro do governo uma aborda-gem conservadora da conjuntura econômica e a solução que passou a ser vocalizada se resumia ao tema da situação fiscal, alardeada aos quatro ventos como sendo catastrófica. Os meios de comunicação se encarregavam de amplificar, de forma articulada e disciplinada, essa voz única do já surrado discurso de que “não existem alter-nativas”. Em pouco tempo foram desenhados os primeiros rascunhos do austericídio. O governo preparava o terreno para ampliar os efeitos dos primeiros sinais da recessão das atividades eco-nômicas, das falências e do desemprego. Aliás, acelerava na contramão de todos os avisos lan-çados por economistas como Maria Conceição Ta-vares, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcio Pochmann e outros:

“Subscrevemos que este tipo de austerida-de é inócuo para retomar o crescimento e para combater a inflação em uma economia que sofre a ameaça de recessão prolongada e não a expec-tativa de sobreaquecimento.

O reforço da austeridade fiscal e monetária deprimiria o consumo das famílias e os investi-mentos privados, levando a um círculo vicioso

de desaceleração ou mesmo queda na arrecada-ção tributária, menor crescimento econômico e maior carga da dívida pública líquida na renda nacional.”

Para além dessa verdadeira arapuca repre-sentada pela insistência em focar apenas na necessidade de rigor na condução da política fis-cal, mantinha-se um outro conceito igualmente sensível para a implementação do conjunto das medidas de política econômica. Refiro-me ao ar-tifício do “superávit primário” como meta a ser perseguida pelo governo, em uma reverência ex-plícita aos desejos e necessidades do financismo.

As origens do superávit primário.Ora, não existe nenhuma regra legal que obrigue o governo brasileiro a operar com essa metodo-logia muito malandra de cálculo da performance no tratamento das contas públicas de nosso país. Afinal, não imaginamos que exista algum espe-cialista em finanças governamentais que não considere a necessidade de se buscar, a todo e qualquer instante, algum tipo de equilíbrio entre receitas e despesas na condução estratégica de uma nação. O debate todo se dá na discussão a respeito de como se deve proceder para alcançar tal objetivo.

Essa inovação na forma de apuração do re-sultado fiscal vem da década de 1980, quando tem início uma série de processos de renegociação de dívidas dos países do chamado Terceiro Mundo junto aos grandes credores internacionais. Com o intuito de salvaguardar os interesses da banca global, o FMI e o Banco Mundial impuseram aos governos a obrigação de balizar a política econô-

“(...) instalou-se no interior do núcleo duro do governo uma abordagem conservadora da conjuntura econômica e a solução que passou a ser vocalizada se resumia ao tema da situação fiscal, alardeada aos quatro ventos como sendo catastrófica”

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mica de seus países tendo por meta a obtenção de um excedente nas contas fiscais, de forma a garantir o pagamento de juros e serviços das dívidas que estavam sendo negociadas.

A essa nova metodologia de cálculo confe-rem a alcunha de “superávit primário”. Assim, a preocupação passa a não ser mais simplesmente buscar um equilíbrio na dinâmica entre receitas e despesas públicas. De acordo com essa nova esperteza patrocinada pelo financismo, as des-pesas de natureza financeira ficam de fora do procedimento. Com isso, o pagamento de juros e serviços da dívida pública não deve ser objeto de análise quando se fala em contenção de despesas. Pelo contrário! Todo o esforço deve ser realizado no chamado lado real da economia pública, para assegurar um saldo superavitário que será gen-tilmente oferecido aos detentores dos títulos da dívida estatal.

A tarefa que se impõe, portanto, para as for-ças progressistas é romper com essa armadilha da lógica do superávit primário. Se a intenção é demonstrar eficiência na condução da política fiscal, então que sejam levadas em conta todas as rubricas pelo lado das despesas e das receitas. Assim, saímos do debate que se restringe à ne-cessidade de cortar, cortar e cortar nas contas de saúde, educação, previdência, assistência social, direitos trabalhistas, funcionalismo, infraestru-tura, investimentos e as demais que sempre são listadas na melodia monocórdica do austericídio de uma nota só.

Cortar as despesas financeirasOs “especialistas em finanças” sempre ouvidos pela imprensa quando o assunto vem à tona não se cansam de repisar que o governo precisa atacar as contas mais deficitárias, para que seja alcan-çado o equilíbrio orçamentário. E dá-lhe deitar falação, por exemplo, a respeito dos supostos “rombos” nas contas do regime previdenciário. Com a aura da farsa da “neutralidade técnica”, seu discurso quase nunca é contraditado por vi-sões alternativas do fenômeno. Ora, se o governo quer mesmo ser eficaz nessa tarefa de buscar o ajuste, então que sejam enfrentadas as contas de maior déficit estrutural e que podem oferecer melhores contribuições para o equilíbrio fiscal.

É o caso da conta que apresenta o maior dé-ficit estrutural: a rubrica de pagamento de juros. De acordo com os últimos dados oferecidos pelo Banco Central, entre setembro de 2014 e agosto de 2015 foram gastos mais de R$ 484 bilhões do orçamento federal para esse fim. Além disso, podemos agregar as despesas de natureza finan-ceira que foram realizadas para assegurar que os agentes do mercado de câmbio e demais especu-ladores do sistema financeiro não incorressem em perdas com a variação da taxa de câmbio. Pois bem, ao longo dos últimos 12 meses essa conta dos chamados swaps cambiais apresenta um déficit estrutural de R$ 112 bilhões. Ou seja, esta-mos diante de quase R$ 600 bi que se oferecem a ser tesourados em nome da boa prática do ajuste fiscal. Mas contra eles ninguém arrisca um “ai” e eles se mantêm bilionariamente intocáveis.

À medida que o governo permanece refém dessa armadilha imposta pelo superávit primário, essas alternativas de redução das despesas não são levadas em conta. E os pacotes de maldades são periodicamente renovados, introduzindo novas surpresas na retirada de direitos sociais e comprometimento de investimento público es-tratégico, sempre em nome da responsabilidade fiscal. Um verdadeiro absurdo! Na verdade, tal conduta simboliza uma opção política marcada pela redução irresponsável de conquistas histó-ricas do povo brasileiro e que reflete um descom-promisso com a construção de uma sociedade que seja marcada pela inclusão, pela justiça e pela igualdade.

Para escapar da lógica de captura do finan-cismo é essencial que seja rompida a armadilha do superávit primário. As despesas das rubricas financeiras não podem continuar a ser ignoradas quando se trata de redução dos gastos públicos federais.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políti-cas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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O ilusório abismo fiscal dos EUAmichael Hudson*

Quando em agosto de 1914 teve início a Primeira Guerra Mundial, economistas de ambos os la-dos do front previram que as hostilidades não poderiam durar mais de seis meses. As guerras tornavam-se caras o bastante para que governos ficassem sem dinheiro rapidamente. Parecia que, se a Alemanha não derrotasse a França na prima-vera, tanto os Aliados quanto os Impérios Centrais ficariam sem salvaguarda e alcançariam o que hoje se chama de abismo fiscal, sendo assim forçados a negociar um acordo de paz.

Mas a Grande Guerra estendeu-se por quatro anos. Governos europeus fizeram o que os Esta-dos Unidos haviam feito depois de começada a Guerra Civil em 1861, quando o Tesouro decidiu por imprimir dinheiro. Eles pagaram pela batalha simplesmente imprimindo mais do próprio dólar. Suas economias adquiriram firmeza e não houve mais inflação, o que aconteceria apenas depois de terminada a guerra, como resultado da tenta-tiva alemã de pagar pelas reparações em moeda estrangeira. Foi essa a causa da queda da taxa de câmbio, que aumentou o preço da importação e dos produtos domésticos. O culpado não foi o gasto com a guerra (muito menos qualquer gasto com programas sociais).

Mas a história é escrita pelos vencedores. E as últimas gerações viram os bancos e o setor financeiro vencendo. Mantendo os 99% de baixo endividados, o 1% de cima atualmente subsidia uma teoria econômica enganadora que persuade eleitores a preferirem políticos que beneficiam o setor financeiro em detrimento do setor produtivo e da democracia.

Os lobistas de Wall Street culpam o desempre-go e a perda de competividade industrial decorren-tes dos gastos públicos e do déficit orçamentário – principalmente os que envolvem programas so-ciais. O mito (talvez nós devamos chamá-lo de junk

economics) diz que (1) governos não deveriam exe-cutar déficits (não por imprimir a própria moeda, pelo menos) porque (2) a criação de dinheiro público e impostos altos aumentam preços. A cura para o mal-estar econômico (que a própria junk economics causou) é diminuir gastos públicos e impostos sobre ricos, que se autoproclamam “criadores de empre-gos”. Ao requisitarem o excedente orçamentário, os lobistas dos bancos prometem que a economia terá poder de consumo suficiente para crescer. E, se isso resulta em mais crise, eles insistem que um pouco mais do dinheiro público deve ser usado para pagar as dívidas do setor privado.

A verdade é que quando os bancos enchem a economia de dívidas, faz-se com que menos seja gasto em bens domésticos e serviços. Enquanto isso, sobe o preço da moradia (e do custo de vida) com crédito excessivo e termos de empréstimo mais folgados. E os lobistas dos bancos pedem deflação fiscal. O efeito é a ainda maior redução da demanda ao setor privado, o afundamento do mer-cado de trabalho e o crescimento do desemprego. Os governos caem em desespero e são advertidos a vender recursos naturais, empresas públicas e ou-tros bens. Isso torna o mercado lucrativo para que empréstimos bancários financiem a privatização a crédito. Assim se explica o apoio dos lobistas do mercado financeiro ao direito de aumentar preços de necessidades básicas, direito que acaba por criar uma frente pela extração de renda. O efeito é o enriquecimento do 1% dono do setor financeiro às custas do endividamento de indivíduos, negócios e do próprio governo.

Essa política foi exposta como destrutiva no final dos anos 1920 quando John Maynard Key-nes, Harold Moulton e alguns outros rebateram as afirmações de Jacques Rueff e Bertil Ohlin. Segundo estes, dívidas de qualquer magnitude poderiam ser pagas se governos impusessem

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austeridade suficientemente profunda. Essa é a doutrina adotada pelo Fundo Monetário Interna-cional e pelos neoliberais europeus. O primeiro impõe seus princípios sobre os caloteiros do Ter-ceiro Mundo desde 1960, os últimos sobre Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal.

Dada a opção de imprimir dinheiro em vez de aumentar impostos, por que políticos só criam novo poder de consumo para bancar guerras? Por que os governos devem taxar aposentadorias, não Wall Street? Por que o governo norte-americano não imprime dinheiro para pagar a Segurança Social e o Medicare assim como criou novas dívi-das em virtude dos $13 trilhões (eu voltarei a esta questão mais tarde)?.

A resposta a essas questões tem pouco a ver com mercados ou com teoria monetária. Ban-queiros dizem que, se tiverem que pagar mais seguros de depósito para salvar o Tesouro ou o contribuinte, terão que cobrar mais dos clientes, apesar dos correntes recordes lucrativos. Quando se trata de taxar o trabalho, porém, eles apoiam outra modalidade fiscal.

Colocar as taxas sobre os ombros dos tra-balhadores e da indústria é alcançado por cortar gastos com o 99%. Essa é a raiz das discussões de dezembro de 2012 sobre se se deve ou não impor as políticas anti-déficit propostas pela comissão Bowles-Simpson, nomeada pelo presidente Obama em 2010. Derramando lágrimas de crocodilo em razão da incapacidade do governo em equilibrar o orçamento, os bancos insistem que 15,3% do impos-to que financia a Medicare e a Segurança Social seja estorvado – como se isso não aumentasse o custo de vida e diminuísse o poder de compra dos con-sumidores. Empregadores e sua força de trabalho são advertidos a guardar dinheiro para a Segurança Social ou outros programas públicos. Esse é um imposto disfarçado sobre os 99%, cujos rendimen-tos são usados para reduzir o déficit orçamentário para que impostos possam ser cortados do mercado financeiro e do 1%. Parafraseando Leona Helmsley quando disse que “só as pessoinhas pagam impos-tos”, o mote pós-2008 é que só os 99% devem perder.

Não é mais necessário guardar dinheiro para a Segurança Social do que é para financiar a guerra. Vender títulos do Tesouro para pagar apo-sentados tem efeitos monetários e fiscais idênticos

a vender novos valores imobiliários. É uma chara-da para transferir a carga tributária para o setor produtivo. Governos precisam prover a economia com dinheiro e crédito para expandir mercados e empregos. E eles o fazem por executar déficits orçamentários, o que também pode ser feito por criar dinheiro. A isso é que bancos opõem-se, di-zendo que tal medida conduz a economia mais à hiperinflação do que ao crescimento.

A lógica por trás dessa acusação errônea não são senão os interesses dos próprios banqueiros. Banqueiros sempre lutaram para impedir que o governo criasse seu próprio dinheiro – ao menos em tempos de paz. Por muitos séculos, títulos do governo eram os maiores e mais seguros investi-mentos para as elites financeiras. Investidores e corretores monopolizavam as finanças públicas. O mercado de ações e títulos de corporações era prenhe de fraudes e dominado por informantes das grandes trustes que Wall Street organizava, além dos corretores britânicos e franceses.

No entanto, havia pouca alternativa para que governos criassem seu próprio dinheiro quando os custos da guerra excediam de longe o volume de economias nacionais ou receitas tributárias disponíveis. Essa necessidade óbvia silenciou a costumeira oposição montada por banqueiros para limitar a opção da moeda pública, o que mostra que governos podem fazer mais em estado de emergência do que em condições normais. E a crise financeira de setembro de 2008 proporcionou uma oportunidade para que os governos norte--americano e europeus criassem novas dívidas em função do resgate aos bancos, tão caro quanto uma guerra. Com efeito, era uma guerra financeira. Os bancos já haviam capturado as agências regu-latórias para que empreendessem empréstimos irrefletidos e uma onda de fraudes e corrupção não vista desde a década de 1920.

A primeira vitória dos banqueiros foi incapa-citar o Tesouro, a Reserva Federal e a Controladoria da Moeda de regular o setor financeiro. Gigantes de Wall Street têm poder de veto na nomeação de administradores dessas agências. Eles usaram esse ponto de apoio para eliminar qualquer candidato que não os favorecesse, preferindo adeptos da des-regulamentação do naipe de Alan Greenspan e Tim Geithner. Como sentenciou John Kenneth Galbraith,

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uma pré-condição para a obtenção de um cargo num banco central é visão de túnel quando se trata de entender que governos podem criar crédito tão prontamente quanto bancos. É necessário que a lealdade política do candidato esteja com os bancos.

Após a ruína financeira de 2008, bastou al-guns comandos de computador para que o governo norte-americano criasse $13 trilhões em dívidas para salvar os bancos de danos pelos temerários empréstimos ao mercado imobiliário, apostas ar-bitrárias e fraudes descaradas. Os $800 bilhões do Programa de Alívio a Ativos Problemáticos (Tarp) mais os $2 trilhões da Reserva Federal permitiram aos bancos que continuassem pagando absurdos para executivos e possuidores de títulos sem quais-quer obstruções enquanto o rendimento dos outros 99% da população estadunidense submergia.

Um novo termo, capitalismo-cassino, foi cunhado para descrever a transformação pela qual passou o capitalismo financeiro após a des-regulamentação dos anos 1980, abridora das por-teiras para que bancos fizessem o que governos faziam em tempos de guerra: criar dinheiro e no-vas dívidas públicas por simplesmente ”imprimir” (utilizando teclados de computador, neste caso).

Tomar para as contas públicas as falidas agên-cias de hipoteca Fannie Mae e Freddie Mac custou $5.2 trilhões, mais de um terço dos $13 bilhões usados no resgate. Isso salvou os possuidores de títulos de sofrerem perdas em virtude das avalia-ções fraudulentas sobre hipotecas com as quais o Countrywide, o Bank of America, o Citibank e outros bancos “grandes demais para falir” se meteram. Esse enorme crescimento de dívidas foi produzido sem aumento de impostos. Com efeito, os cortes fei-tos na administração Bush proporcionaram maio-res reduções para os mais ricos, também maiores contribuintes da campanha republicana. Privilégios fiscais foram oferecidos a bancos. A Reserva Fede-ral apresentou linha livre de crédito (flexibilização quantitativa) para o sistema bancário por somente 0,25% de juros anuais até 2011 – isto é, um quarto de um por cento, sem questionamento da validade das hipotecas e de seus bens colaterais.

A criação dos $13 trilhões em dívidas para o salvamento dos bancos não foi acusada de ameaçadora à estabilidade econômica. Ela per-mitiu aos bancos prosseguirem pagando seus

salários exorbitantes, bônus e dividendos, além das contrapartes de suas apostas arbitrárias. Es-ses pagamentos ajudaram o 1% a receber 93% do rendimento de 2008. O resgate, assim, polarizou a economia, dando ao setor financeiro mais poder sobre o setor produtivo, os consumidores e o go-verno do que era o caso desde o século XIX, após a Guerra de Secessão.

Tudo isso torna a atual guerra financeira parecidíssima com as consequências da Primeira Guerra Mundial. O efeito é o empobrecimento dos perdedores, a apropriação de ativos públicos pelos vencedores e a imposição de dívidas e impostos como nos tempos da cobrança de tributos. “A crise financeira tem sido tão devastadora economica-mente quanto uma guerra mundial e talvez seja um fardo a ser carregado até por nossos netos”, observou recentemente Andrew Haldane, oficial do Banco da Inglaterra. “Em termos de perda de rendimento e produção, a crise foi tão ruim quanto uma guerra mundial”, disse. O aumento da dívida pública sempre incitou a convocação de austeridade econômica. “Seria surpreendente se as pessoas não estivessem se perguntando sobre o que deu errado com as finanças”.

Mas, enquanto o setor financeiro estiver ven-cendo a batalha contra a economia, ele preferirá que todo mundo pense que não há alternativas. Tendo tomado para si tanto o domínio da eco-nomia quanto das políticas econômicas, o setor financeiro busca manter estudantes, eleitores e a mídia longe de perguntarem-se o motivo pelo qual a organização deve se dar desta maneira. Uma vez que busquem tal questionamento, as pessoas podem se dar conta de que os sistemas bancário, de segurança social e de financiamento da dívida pública não necessariamente devem organizar--se assim. Há melhores alternativas para o atual caminho de austeridade e escravidão econômicas.

*Michael Hudson é presidente do Instituto de Estudos de Tendências Econômicas, um analista

financeiro de Wall Street e professor de economia da Universidade de Missouri. Mantém um site

com escritos sobre finanças e o setor imobiliário. http://michael-hudson.com/

Tradução de André Cristi

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Assim funcionam as cortes de exceção do capital

Reportagem investiga ponto cego da globalização: os tribunais em que corporações processam Estados quando estes ousam questionar lógica do lucro máximo.

Claire Provost e matt Kennard - Outras Palavras

Cinquenta anos atrás, um sistema legal inter-nacional foi criado para proteger os direitos de investidores estrangeiros. Hoje, conforme com-panhias ganham bilhões de dólares em danos, os iniciados dizem que isso tornou-se perigosamente fora de controle

O escritório de Luis Parada fica a apenas quatro quarteirões da Casa Branca, no coração da Rua K, onde está instalada a longa fila de es-critórios de lobistas de Washington – um trecho de edifícios de aço e vidro certa vez apelidado de “caminho para os ricos” (road to riches), quando o tráfico de influência começou a crescer nos Es-tados Unidos. Parada, um homem de El Salvador com 55 anos e fala mansa, é um entre o punhado de advogados globais que se especializou em de-fender Estados soberanos contra ações judiciais apresentadas por corporações multinacionais. Ele é advogado de defesa num campo obscuro mas cada vez mais poderoso do direito internacional, por meio do qual investidores estrangeiros podem processar governos em bilhões de dólares, numa rede de tribunais.

Quinze anos atrás, o serviço de Parada era um nicho desimportante até mesmo dentro da advocacia. Mas desde 2000, centenas de investi-dores estrangeiros processaram mais de metade dos países do mundo, reclamando danos supos-tamente causados por um amplo leque de ações governamentais, que eles dizem ter ameaçado seus lucros. Em 2006, o Equador cancelou um

contrato de exploração de petróleo com a Occiden-tal Petroleum, sediada em Houston (Texas, EUA); em 2012, depois que a Occidental entrou com uma ação diante de um tribunal internacional de in-vestimentos, o Equador recebeu ordem de pagar o valor recorde de US $ 1,8 bilhão — mais ou menos igual ao orçamento de saúde do país por um ano. (Quito apresentou um pedido para que a decisão seja anulada.)

O primeiro caso de Parada foi defender a Argentina no final dos anos 1990 contra o con-glomerado francês Vivendi, que processou a província argentina de Tucumán depois que ela a tomou iniciativa de limitar o preço que cobrava de pessoas para os serviços de água e esgoto. A certa altura, a Argentina perdeu e foi condena-da a pagar à empresa mais de US$ 100 milhões. Agora, em seu maior caso desde então, Parada faz parte da equipe que defende El Salvador de um processo de milhões de dólares apresentado por uma empresa de mineração multinacional após o pequeno país da América Central recusar-se a permitir que ele escavasse ouro.

O processo foi aberto em 2009 por uma empresa canadense, Pacific Rim — mais tar-de comprada por uma empresa de mineração australiana, OceanaGold — que disse ter sido encorajada pelo governo de El Salvador a gastar “dezenas de milhões de dólares para iniciar ati-vidades de exploração mineral”. Mas a empresa alegou que, quando foram descobertos depósitos

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valiosos de ouro e prata, o governo, por razões políticas, reteve as licenças necessárias para co-meçar a escavação. A indenização reivindicada pela companhia, que em certo ponto ultrapassou 300 milhões de dólares, foi depois reduzida para 284 milhões — ainda assim mais que o montante da ajuda externa que El Salvador recebeu no ano passado. El Salvador argumentou que a empre-sa não só carecia de licenças ambientais, como também não conseguiu provar que tinha obtido os direitos para escavação na maioria das terras abrangidas pelo seu pedido: muitos agricultores da região norte de Cabañas, onde a empresa que-ria cavar, haviam se recusado a vender sua terra.

Todo ano, no dia 15 de setembro, milhares de salvadorenhos celebram a data em que a América Central conquistou a independência da Espanha. Estouram-se fogos de artifício e bandas desfilam pelas vilas em todo o país. Mas, ano passado, na cidade de San Isidro, em Cabañas, as festividades tiveram um tom marcadamente diferente. Cente-nas de pessoas reuniram-se para protestar contra a mina. Minas de ouro costumam usar cianureto para separar o ouro do minério, e uma preocupa-ção generalizada sobre a contaminação da água, já grave em El Salvador, ajudou a alimentar um forte movimento, que propõe manter os minerais

do país no solo. Na praça central, foram pendura-das bandeiras coloridas convidando a OceanaGold a desistir do caso contra o país e deixar a área. Muitos carregavam o slogan “Não à Mineração, Sim à vida”.

No mesmo dia, em Washington DC, Para-da reuniu suas notas e foi para um conjunto de salas de reunião no Prédio J do Banco Mundial, em frente à sua sede principal, na Pennsylvania Avenue. Este é o Centro Internacional para a Re-solução de Disputas sobre Investimentos (ICSID, na sigla em inglês) – a principal instituição para lidar com casos de empresas contra Estados sobe-ranos. (O ICSID não é o único local para tais casos, há fóruns semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e Haia, entre outros.) O dia da audiência não foi uma coincidência, disse Parada. O caso foi visto, em El Salvador, como um teste sobre a so-berania do país no século 21, e o advogado sugeriu que deveria ser ouvido no Dia da Independência. “A questão fundamental neste caso”, disse ele, “é saber se um investidor estrangeiro pode forçar um governo a mudar suas leis para agradar o investidor, ao invés do investidor cumprir as leis existentes no país.”

A maioria dos tratados internacionais so-bre investimento e acordos de livre comércio

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garante a investidores estrangeiros o direito a ativar esse sistema, conhecido como Solução de Controvérsias entre Investidor e Estado (Investor--State Dispute Settlemente, ou ISDS, em inglês), se querem contestar decisões que afetam seus investimentos. Na Europa, o sistema tornou-se um ponto de discórdia nas negociações sobre o controverso Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês), proposto entre a União Europeia e os EUA. Tanto a França como a Alemanha disseram que querem ter acesso à resolução de litígios entre investidores e Estados, ítem removido do tratado TTIP atualmente em discussão.

Os investidores têm usado esse sistema não apenas para entrar com ações judiciais por inde-nizações, diante de alegada expropriação de terra e fábricas, mas também com relação a um amplo leque de medidas governamentais, inclusive regu-lações ambiental e social, que ele dizem infringir seus direitos. Multinacionais entraram com ação para recuperar dinheiro que já tinham investido, mas também por alegados lucros perdidos e pela “expectativa de lucros futuros”. O número de ações contra países no ICSID está agora em torno de 500 – e esse número está crescendo à média de um caso por semana. As quantias concedidas em danos são tão grandes que os fundos de inves-timento têm tomado conhecimento: reivindica-ções das corporações contra os Estados são agora vistas como ativos para investimentos ou para servir como garantia para garantir empréstimos multimilionários. Cada vez mais, as empresas estão usando a ameaça de uma ação judicial no ICSID para exercer pressão sobre os governos.

“Não tinha absolutamente ideia de que isso aconteceria”, disse Parada. Sentado numa sala de reuniões com paredes de vidro em seu escritório de advocacia Foley Hoag, ele fez uma pausa, procurando a palavra certa para descrever o que aconteceu na sua área. “Desonesto”, decidiu, finalmente. “Acho que o sistema de arbitragem investidor-Estado foi criado com boas inten-ções, mas na prática tornou-se completamente desonesto.”

***

A calma cidade de Moorburg, na Alemanha, encontra-se logo do outro lado do rio, a partir de Hamburgo. Passando a igreja do século XVI e prados cobertos de flores silvestres, duas cha-minés enormes vomitam um fluxo constante de fumaça cinza e espessa no céu. Trata-se da Kraftwerk Moorburg, uma nova usina de energia movida a carvão – o controverso vizinho de porta da aldeia. Em 2009, ela foi objeto de uma ação investidor-Estado no valor de 1,4 bilhão de euros pela Vattenfall, a gigante energética sueca, contra a República Federal da Alemanha. É um exemplo original de como esse poderoso sistema legal in-ternacional, pensado para proteger investidores estrangeiros em países em desenvolvimento, está agora sendo usado também para desafiar ações de governos europeus.

Desde os anos 1980, investidores alemães processaram dezenas de países, inclusive Gana, Ucrânia e Filipinas, na corte do Banco Mundial em Washington. Mas, com o caso Vattenfall, a Alemanha viu-se no banco dos réus pela primeira vez. A ironia não passou despercebida àqueles que consideravam a Alemanha a avó da arbitragem investidor-Estado: foi um grupo de empresários alemães, no final dos anos 1950, quem primeiro concebeu uma maneira de proteger os seus inves-timentos no exterior, à medida em que uma série de países em desenvolvimento conquistava a in-dependência das potências coloniais europeias. Liderados pelo presidente do Deutsche Bank, Hermann Abs, chamaram a sua proposta de uma “carta magna internacional” para os investidores privados.

Nos anos 1960, a ideia foi assumida pelo Banco Mundial, para o qual esse sistema poderia ajudar os países mais pobres do mundo a atrair capital estrangeiro. “Estou convencido”, disse à época o presidente do Banco Mundial, George Woods, “de que aqueles …. que adotarem como política nacional um [ambiente] amigável para o investimento internacional – e isso significa, para não mudar nenhuma palavra, dar aos inves-tidores estrangeiros uma oportunidade justa de obter lucros atraentes – vão atingir seus objetivos de desenvolvimento mais rapidamente do que aqueles que não o fizerem”.

No encontro anual do Banco Mundial em

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Tóquio, em 1964, aprovou-se uma resolução para montar um mecanismo para lidar com casos de investidores contra o Estado. A primeira linha do preâmbulo da Convenção do ICSID define seu objetivo como de “cooperação internacional para desenvolvimento econômico”. Havia oposição acirrada a esse sistema desde o começo, com um bloco de países em desenvolvimento alertando que poderia sabotar sua soberania. Um grupo de 21 países – quase todas as nações latino-america-nas, mais Iraque e Filipinas – votou contra a pro-posta em Tóquio. Mas, a despeito disso, o Banco Mundial seguiu adiante. Andreas Lowenfeld, um acadêmico de direito norte-americano que esteve envolvido em algumas dessas primeiras discus-sões, afirmou mais tarde: “Acredito que essa foi a primeira vez que uma grande resolução do Banco Mundial foi forçada, apesar de tanta oposição.”

Desenvolvimento global continua a ser a meta afirmada pelo ICSID. “A ideia”, disse a atual secretária-geral da instituição, Meg Kinnear, “é que, quando os investidores sentem que há um mecanismo justo e imparcial, eles nunca entram em disputa – então, terão muito mais confian-ça, o que ajudará a promover investimento … e quando você investe numa país obviamente leva emprego, renda, tecnologia e assim por diante.”

Mas agora os governos estão descobrindo, muito tarde, o verdadeiro preço dessa confian-ça. A instalação da Kraftwerk Moorburg foi polêmica muito antes de o caso ser arquivado. Durante anos, os moradores locais e os grupos ambientalistas se opuseram à sua construção, em meio à crescente preocupação com as mudanças climáticas e o impacto que o projeto teria sobre o rio Elba. Em 2008, a Vattenfall recebeu garantia de uso de água para seu projeto de Moorburg. Mas, em resposta à pressão local, as autoridades impu-seram condições ambientais estritas para limitar o uso da água e seu impacto sobre os peixes.

A Vattenfall processou Hamburgo na corte local. Mas, como investor estrangeiro, ela tinha também direito a entrar com o caso no ICSID. Essas medidas ambientais, ela disse, eram tão es-tritas que constituíam uma violação dos direitos garantidos pelo Tratado de Escritura de Energia, um acordo multilateral de investimento assina-do por mais de 50 países, incluindo a Suécia e a

Alemanha. A empresa alegava que as condições ambientais firmadas na permissão eram tão severas que tornaram a usina anti-econômica e constituíram atos de expropriação indireta.

“Foi uma surpresa completa para nós”, disse rindo o líder do Partido Verde local, Jens Kerstan, numa reunião em seu ensolarado escritório em Hamburgo no ano passado. “Tanto quanto eu saiba, havia alguns [tratados] para proteger em-presas alemãs no mundo em desenvolvimento ou em ditaduras — mas que uma companhia europeia possa processar a Alemanha, isso foi uma total surpresa para mim.”

O caso Vattenfall versus Alemanha acabou num acordo em 2011, depois que a empresa ven-ceu o caso num tribunal local e recebeu uma nova permissão de uso de água para suas instalações em Moorburg. Foram rebaixados significativa-mente os padrões ambientais antes impostos, de acordo com especialistas legais, permitindo o uso de mais água do rio e enfraquecendo medidas para proteger os peixes. A Comissão Europeia entrou no caso, levando a Alemanha à Corte de Justiça da UE sob a alegação de que a usina de carvão Moorburg violou as leis ambientais da UE ao não fazer mais exigências para reduzir o risco e proteger as espécies animais, inclusive salmão, que passam perto da usina ao migrar do Mar do Norte.

Um ano depois que o caso Moorburg foi encerrado, a Vattenfall entrou com outra queixa contra a Alemanha, desta vez sobre a decisão do governo federal de eliminar progressivamente o uso da energia nuclear. Este segundo processo – do qual há muito pouca informação disponível de domínio público, a despeito de relatos de que a companhia está tentando tirar 4,7 bilhões de euros dos contribuintes alemães – ainda está correndo. Cerca de um terço de todos os casos encerrados no ICSID são considerados como “acor-dos”, o que – como mostra a disputa do Moor-burg – pode ser muito lucrativo para investidores, embora seus termos sejam raramente revelados.

Há agora milhares de acordos de inves-timento internacional e leis de livre comércio, assinados pelos Estados, que dão a companhias estrangeiras acesso ao sistema de disputas investidor-Estado, no caso de decidirem desafiar

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decisões governamentais. As disputas em geral são resolvidas por painéis de três árbitros. Cada lado seleciona um, e o terceiro é definido em acordo entre as partes. As decisões são tomadas por maioria de votos, e são soberanas e irrecorrí-veis. Não há processo de apelação – apenas uma possibilidade de anulação que pode ser usada em termos muito limitados. Se os estados não pagam após a decisão, os seus ativos ficam sujeitos a apreensão em quase todos os países do mundo (a empresa pode entrar nos tribunais locais com uma ordem de execução). Embora um tribunal não possa forçar um país a mudar suas leis, ou dar autorização a uma empresa, o risco de danos maciços pode, em alguns casos, ser suficiente para persuadir um governo a reconsiderar suas ações. A possibilidade de processos de arbitragem pode ser usada para encorajar os Estados a entrar em negociações para acordos relevantes.

Na Guatemala, documentos internos do governo obtidos por meio da Lei de Liberdade de Informação do país mostram como o risco de um desses casos pesou significativamente numa decisão estatal de não desafiar uma controversa mina de ouro, a despeito de protestos de seus cidadãos e uma recomendação de Comissão In-teramericana de Direitos Humanos para que ela fosse fechada. Tal ação, os documentos alerta-vam, poderia provocar a companhia, propriedade da gigante mineradora canadense Goldcorp, a acionar o ICSID ou invocar cláusulas do Acordo de Livre Comércio Centro-Americano (Cafta) a ganhar “acesso à arbitragem internacional e sub-sequente reivindicação de danos contra o Estado”. A mina teve permissão de continuar aberta.

À medida em que as reivindicações feitas pelas empresas crescem, parece cada vez mais provável que os enormes riscos financeiros asso-ciados com a arbitragem investidor-Estado irão efetivamente garantir a investidores estrangeiros um veto sobre as decisões governamentais.

***

Mesmo quando as empresas fracassam, em suas ações contra Estados, há outras vantagens a ser buscadas. Em 2004, passou a valer, na África do Sul pós-apartheid, a nova Lei de Desenvolvimento

de Recursos Minerais e de Petróleo (MPRDA, na sigla em inglês). Junto com uma nova carta de mineração, a lei procurou corrigir as desigual-dades históricas no setor de mineração, em parte ao obrigar as empresas a fazer parceira com ci-dadãos que sofreram sob o regime do apartheid. O novo sistema rescindiu todos os direitos an-teriormente detidos pela mineração e obrigou as empresas a solicitar uma nova licença, para continuar suas operações. Também instituiu uma participação obrigatória para negros sul--africanos, de 26%, nas ações de empresas de mineração do país. Dois anos depois, um grupo de investidores italianos, que juntos controlam a maioria da indústria sul-africana de granito, entrou com uma queixa no marco de disputas investidor-Estado contra a África do Sul. O novo regime de mineração do país, argumentaram, havia expropriado ilegalmente seus investimen-tos e os tratou injustamente. Demandavam uma indenização de 350 milhões de dólares.

O caso foi apresentado por membros das famílias Foresti e Conti, proeminentes industriais da Toscana, e pela Finstone, uma holding sediada em Luxemburgo. Eles citaram dois tratados bila-terais de investimento, ambos assinados no fim dos anos 1990, durante a presidência de Nelson Mandela. Jason Brickhill, advogado do Centro de Recursos Jurídicos com sede em Johannesburgo, disse que o governo pós-apartheid parecia ver esses acordos “mais como atos de boa vontade di-plomática do que compromissos jurídicos sérios, com consequências econômicas de longo alcance potencialmente graves”.

Durante aquele tempo, funcionários eram convidados para reuniões na Europa, disse ele, “e havia todo tipo de discussão sobre a direção comercial e econômica [da África do Sul]. Parte disso devia-se à expectativa de que se estava ce-lebrando um tratado de investimento – mas os sul-africanos não tinham entendimento real do que estavam convertendo em lei”. Peter Draper, ex-funcionário do Departamento de Comércio e Indústria Sul-Africano, apresenta os fatos mais duramente: “Estávamos essencialmente entre-gando os pontos, sem fazer qualquer pergunta, ou proteger o espaço político crucial.”

O caso da empresa contra a África do Sul

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arrastou-se por quatro anos, antes de terminar abruptamente quando o grupo italiano desistiu de suas reivindicações e o tribunal ordenou que con-tribuíssem com 400 mil euros para as custas da África do Sul. Na época, um comunicado de im-prensa do governo celebrou o ocorrido como “final bem sucedido” – apesar de que a África do Sul ain-da teve 5 milhões de euros de taxas jurídicas não reembolsadas. Mas os investidores clamavam por uma vitória mais significativa: a pressão do caso, disseram, permitiu que fizessem um negócio sem precedentes com o governo da África do Sul. Isso possibilitou a suas empresas transferir apenas 5% da propriedade para sul-africanos negros – ao invés dos 26% determinados pela autoridade estatal de mineração. “Nenhuma outra empresa de mineração na África do Sul foi tratada tão ge-nerosamente desde o advento do [novo regime de mineração]”, gabou-se então Peter Leon, um dos advogados dos investidores.

O governo parece ter concordado com esse acordo, que vai contra o espírito das reparações pós-apartheid na África do Sul, para prevenir uma enchente de outras queixas contra si. “Se o mérito do caso fosse decidido contra o governo, pensaram, ‘não tem jeito, vamos nos afundar’. E penso que é por isso que aceitaram concordar com aquela resolução”, disse Jonathan Veeran, outro advogado da empresa, numa entrevista em seu escritório de Joanesburgo. Seus clientes, disse, “estavam muito felizes com o resultado”.

***

Um pequeno número de países está agora ten-tando desembaraçar-se das amarras do sistema de litígio entre investidores e Estados. Um deles é a Bolívia, onde milhares de pessoas tomaram as ruas da terceira maior cidade do país, Cochabam-ba, em 2000, para protestar contra um aumento dramático nas tarifas de água por uma empresa privada de propriedade da Bechtel — uma cor-poração de engenharia civil dos EUA. Durante as manifestações, o governo boliviano resolveu por fim à concessão dada à companhia. Ela então entrou com uma ação de 50 milhões de dólares contra a Bolívia no ICSID. Em 2006, depois de uma campanha pelo arquivamento do caso, a empresa

concordou em aceitar um pagamento simbólico de menos de um dólar.

Após esse caso, a Bolívia cancelou acordos internacionais que havia assinado com outros Estados, quando davam acesso a esses tribunais para seus investidores. Mas sair do sistema não é coisa fácil. A maioria desses acordos interna-cionais têm cláusulas de caducidade, sob as quais suas disposições permanecem em vigor por mais 10 ou mesmo 20 anos, mesmo que os próprios tratados sejam cancelados.

Em 2010, o presidente boliviano, Evo Morales, nacionalizou o maior fornecedor de energia do país, a Empresa Elétrica Guaracachi. A investidora em energia inglesa Rurelec, que indiretamente detinha 50,001% das ações da com-panhia, levou a Bolívia para a corte permanente de arbitragem em Haia, pedindo 100 milhões de dólares em compensação. Ano passado, foi de-terminado que a Bolívia pagasse 35 milhões de dólares à Rurelec; depois de meses de negocia-ções, os dois lados acordaram num pagamento de pouco mais de 31 milhões de dólares, em maio de 2014. A Rurelec, que recusou-se a comentar o assunto para este artigo, celebrou o prêmio com uma série de press releases em seu site. “Minha única tristeza é que tenha demorado tanto para chegar ao acordo”, disso o CEO do fundo, em uma de suas declarações. “Tudo o que queríamos era uma negociação amigável e um aperto de mão do presidente Morales”.

Até mesmo Estados que inicialmente rejeita-ram a introdução do sistema de disputa investi-dor-Estado na reunião do Banco Mundial em 1964 assinaram, de lá para cá, dezenas de acordos que expandem seu alcance. Com o rápido crescimento desses tratados – há hoje mais de 3 mil em vigor – desenvolveu-se uma indústria de especialistas em aconselhar as empresas sobre como explorar melhor os tratados que dão acesso ao sistema de resolução de disputas, e como estruturar seu negocio para tirar vantagem das diferentes proteções oferecidas. É um setor lucrativo: só os honorários são, em média, de 8 milhões de dólares por caso, mas já chegaram a mais de 30 milhões de dólares em algumas disputas. Os ho-norários de advogados começam em 3 mil dólares por dia, mais despesas. Embora não haja nada

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equivalente a uma ajuda legal para Estados que estão tentando se defender nesses processos, as corporações têm acesso a um crescente grupo de financiadores de terceiros, interessados em ofe-recer recursos para seus casos contra os Estados, geralmente em troca de uma parte de eventual ganho.

Cada vez mais, essas ações estão se tornan-do valiosas mesmo antes que as queixas tenham um resultado. Depois de entrar na justiça contra a Bolívia, a Rurelec levou seu caso ao mercado e ga-rantiu um empréstimo corporativo de milhões de dólares, usando sua disputa com a Bolívia como garantia, expandindo seus negócios. Ao longo dos últimos dez anos, e particularmente desde a crise financeira global, um número crescente de fundos de investimento especializados passou a levantar dinheiro através desses casos, tratando as reclamações multimilionárias das empresas contra os Estados como uma nova “classe de ativos”.

Um dos maiores, entre estes fundos que se especializaram em apoiar as ações de corporações contra governos, a Burford Capital, tem sua sede a apenas alguns quarteirões da estação de trem East Croydon, Londres, no quinto andar de um edifício de tijolo vermelho comum. As empresas raramente informam quando seus casos estão sendo financiados por um desses investidores, mas no caso da Rurelec contra a Bolívia a Burford divulgou um press release triunfante celebrando seu envolvimento “inovador”. Tipicamente, pa-trocinador deste tipo concordam em dar respaldo a queixas das companhias contra Estados em troca de participação em qualquer recompensa eventual. Nesse caso, a Burford deu à Rurelec um empréstimo de 15 milhões de dólares, usando a queixa contra a Bolívia como garantia.

“A Rurelec não precisa de capital para pagar seus advogados. Ao contrário, precisa de capital para ampliar seu negócio”, disse Burford numa declaração. “Essa é uma boa demonstração de que os benefícios de financiar litígio vão bem além de simplesmente ajudar a pagar taxas legais”, acrescentou o executivo-chefe, “e em vários casos podem oferecer um método alternativo efetivo de financiamento para ajudar as empresas a al-cançar suas metas estratégicas”. Foi altamente

gratificante também para a Burford: ela anunciou ter obtido, com a disputa, um lucro líquido de 11 milhões de dólares.

Um porta-voz da Burford explicou depois: “a Burford não financiou a queixa de arbitragem da Rurelec, que já corria havia mais de dois anos, antes do nosso envolvimento com a companhia. Antes, nós fornecemos uma linha de crédito cor-porativo para permitir à Rurelec expandir suas operações na América do Sul, mas nós contamos com o pedido de arbitragem (um ativo contingen-te) para ajudar no pagamento do empréstimo”.

Desde o início, parte da justificativa para o sistema internacional de disputa investidor--Estado foi criar um “forum neutro” para a reso-lução de conflitos, com os investidores desistindo do direito de procurar apoio diplomático em seus países de origem quando apresentam casos como esse. Mas documentos obtidos em resposta a um pedido baseado em leis de acesso à informação revelam que a Rurelec também pôde confiar no governo britânico, que interveio ativamente para apoiar seu caso.

O relatório do caso, de 44 páginas, inclui de-zenas de emails e briefings internos produzidos de maio de 2010 a junho de 2014. Vários destes referem-se explicitamente ao lobby britânico em favor da companhia. Um email ao embaixador britânico da Bolívia, Ross Denny, afirma: “Nosso constante lobby de alto nível, em benefício da Ru-relec, ajudou a demonstrar a seriedade com que cuidamos dos interesses de nossas companhias”. Um outro registra, simplesmente: “A Rurelec ne-cessita da nossa ajuda.”

Parece que a embaixada britânica sabia que o sistema de arbitragem deve ser imparcial. Um email, aparentemente sobre como responder a uma pergunta de uma pessoa do público, estabe-lece: “Se todas as coisas são iguais, nossa linha seria que o governo britânico não se envolvesse em processo judicial, como querem os tratados de investimento que assinamos.” A mensagem con-tinua: “Se o ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth [FCO, Foreign and Com-monwealth Office] teve um diálogo permanente com a empresa sobre este tema, provavelmente seria mais adequado responder com algumas linhas genéricas sobre nós e os benefícios dos

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tratados de investimento.”

***

El Salvador já gastou mais de 12 milhões de dó-lares defendendo-se contra a Pacific Rim, mas apesar de ter derrotado a companhia numa ação de 284 milhões de dólares, nunca se recupera-rá esse valor. Durante anos, grupos de protesto salvadorenhos apelaram ao Banco Mundial para iniciar uma revisão aberta e pública do ICSID. Até agora, tal estudo não começou. Nos últimos anos, uma série de ideias têm sido debatidas para re-formar o sistema internacional de controvérsias investidor-Estado – a adoção de “o perdedor paga os custos”, por exemplo, ou mais transparência. A solução pode estar na criação de um sistema de recursos, de modo que os julgamentos controver-sos possam ser revistos.

No ano passado, David Morales, ouvidor de direitos humanos de El Salvador (um cargo esta-tal criado como parte do processo de paz depois da guerra civil do país, que durou entre 1979 a 1992) colocou um anúncio de página inteira no jornal nacional La Prensa Gráfica,convocando o governo a rever todos os tratados de investimento internacional que assinou, com vistas a renego-ciá-los ou cancelá-los. Luis Parada, representante de El Salvador em sua disputa com a Pacific Rim, concorda que esse seria um passo inteligente: “Eu pessoalmente não penso que, nesses tratados, os países tenha mais vantagens que riscos, ao submeterem-se a arbitragem internacional.”

Outros países já decidiram reduzir suas per-das, e tentam sair desses tratados. Pouco tempo depois de ter resolvido o processo das empresas de mineração estrangeiras contra suas novas regras pós-apartheid, a África do Sul começou a rever muitos de seus próprios acordos de investimento.

“O que era preocupante para nós era que você poderia ter uma arbitragem internacional – três indivíduos tomando uma decisão – com riscos de anular o que era um projeto legislativo na África do Sul, adotado democraticamente. De alguma forma, esse painel de arbitragem podia levantou a questão”, disse Xavier Carim, um ex--deputado que era diretor geral do departamento de Comércio e Indústria da África do Sul. “Estava

muito, muito claro que esses tratados são abertos para amplas interpretações pelos paineis, ou por investidores procurando desafiar qualquer me-dida governamental, com a possibilidade de um pagamento significativo no final”, disse Carim, que é agora representante da África do Sul na Organização Mundial do Comércio. “O fato cru é que esses tratados dão muito poucos benefícios e só trazem riscos.”

Antes de agir para rever seus tratados, o governo sul-africano encomendou um estu-do interno para ajudar a determinar se estes compromissos de fato ajudaram a aumentar os investimentos estrangeiros. “Não havia relação entre assinar tratados e receber investimentos”, explicou Carim. “Tivemos grandes investimentos dos EUA, Japão, Índia e diversos outros países com quem não temos tratados de investimentos. As companhias não investem ou deixa de investir num país porque ele tem ou não tem um tratado bilateral de investimento. Eles investem se há retorno a ser obtido.”

O Brasil nunca assinou nada desse siste-ma1 – não entrou num único tratado que inclua provisões para disputas investidor-Estado – e apesar disso não tem tido problemas para atrair investimento estrangeiro.

Parada disse que é necessário “um amplo consenso de determinados Estados” para rever verdadeiramente nesse sistema. “Os Estados que criaram o sistema são os únicos que podem consertá-lo”, disse. “Não vi, até hoje, um número suficiente de países dispostos a isso… menos ainda, um amplo consenso a favor da mudança. Mas ainda espero que aconteça”.

Tradução: Inês Castilho

1 No entanto, algumas das propostas apresen-tadas ao acordo de “livre” comércio entre Mer-cosul e União Europeia, em fase de negociação, preveem mecanismos de solução de controvérsias entre empresas e Estados semelhantes aos men-cionados neste artigo. Para informações mais completas, leia texto da Rebrip — Rede Brasileira pela Integração entre os Povos. [Nota de “Outras Palavras”]

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Especialista exibe falhas em estudo que levou a aplicar a austeridade na Europa

‘Foi um erro de codificação do Excel o que destruiu as economias do mundo ocidental?’

La Jornada, méxico, 12 de maio de 2013

As políticas de austeridade e redução do endivida-mento público aplicadas como suposta cura para a crise da dívida dos países da Zona Euro – que já se prolonga por três anos e tem trazido estan-camento econômico, crescimento da pobreza e níveis inéditos de desemprego, com mais de 27% da população da Espanha e da Grécia sem traba-lho, enquanto a desocupação juvenil superando os 50% – se basearam na tese de que reduzir o deficit fiscal era condição necessária para crescer.

Essa teoria foi elaborada por Carmen Rei-nhart e Kenneth Rogoff, dois economistas da Uni-versidade de Harvard que, em 2010, publicaram um artigo chamado “Crescimento em tempos de endividamento”, no qual afirmaram que quando a dívida pública supera os 90% do produto interno bruto (PIB) deixa de haver crescimento. A conclu-são foi que a máxima prioridade deve ser a de reduzir o endividamento para poder crescer.

Os economistas de Harvard foram acla-mados no mundo inteiro e reconhecidos entre os simpatizantes da disciplina fiscal, ganhando muita fama a partir da publicação – um ano antes do artigo – de um livro sobre as crises de dívida pública, que analisa o comportamento econômico de dezenas de países, num período de mais de 200 anos. O livro recebeu prêmios e homenagens, e foi tomado como uma obra re-ferente em meio da crise financeira que, apesar

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de ter sua origem no setor privado, enfocou sua análise sobre o endividamento público.

O tal artigo foi publicado depois que Grécia se declarou em crise e solicitou o primeiro resgate financeiro internacional na Zona Euro, e aceitou em troca as estritas condições de austeridade e disciplina fiscal.

Status sagrado de guardiães da responsabi-lidade fiscal

Reinhart e Rogoff alcançaram rapidamente um status quase sagrado entre os autoproclama-dos guardiães da responsabilidade fiscal. “A afir-mação sobre o ponto de inflexão não foi tratada como uma hipótese controvertida, mas como um fato inquestionável”, comentou o economista Paul Krugman num artigo.

O também professor de Princeton e vence-

dor do Prêmio Nobel de 2008 lembrou que um editorial do The Washington Post, do começo de 2013, alertava sobre um possível relaxamento a respeito do deficit, porque estamos perigosamen-te perto da marca de 90%, que os economistas considerariam uma ameaça para o crescimento econômico sustentável. Krugman indicou: “per-cebam a expressão usada, `os economistas´, não `alguns economistas´, pois não chamamos mais de `economistas´ aqueles que contradizem ener-gicamente outros com credenciais igualmente boas”.

O artigo de Krugman (The Excel Depression, publicado no New York Times, em abril de 2013) se refere à análise realizada por Thomas Hern-don, Michael Ash e Robert Pollin, economistas da Universidade de Massachusetts que analisaram o estudo de Reinhart e Rogoff, tratando de repetir o exercício estadístico.

Os economistas de Massachusetts desco-briram que sus colegas de Harvard cometeram erros elementares de estatística, manipulação de dados e falhas no manejo da folha de cálculo do conhecido programa Excel. Ao utilizar a mesma base de dados, encontraram que para os países com endividamento acima do 90% do PIB, a taxa de crescimento é positiva e superior a 2%, não negativa, como afirmaram Reinhart e Rogoff.

“Foi um erro de codificação do Excel o que destruiu as economias do mundo ocidental?”, aponta Krugman, e esclarece: “devemos situar o fiasco de Reinhart e Rogoff no contexto mais amplo da obsessão pela austeridade: o evidente-mente intenso desejo dos legisladores, políticos e especialistas de todo o mundo ocidental de dar as costas aos desempregados e, em troca, usar a crise econômica como desculpa para reduzir drasticamente os programas sociais.

Tradução: Victor Farinelli

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‘A dívida grega, assim como a brasileira, é odiosa’

Para a brasileira que atua na Comissão da Verdade da Dívida Pública da Grécia, a dívida grega é mero veículo de corrupção e expropriação.

Najla Passos

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A brasileira Maria Lúcia Fattorelli recebeu incré-dula a notícia de que o governo grego firmou novo acordo para renegociação da dívida pública do país. Um acordo que, se for aprovado pelo parla-mento, obrigará a Grécia, em troca de um socorro financeiro de cerca de 80 bilhões de euros, a se submeter ao mais severo programa de austerida-de fiscal já proposto na zona do euro.

Auditora aposentada da Receita Federal do Brasil e coordenadora do movimento Auditoria Cidadã, Fattorelli atuou nas auditorias das dívi-das públicas brasileira (2009-2010) e equatoriana (2007) Convidada pelo Syriza, o partido de es-querda grego que venceu as últimas eleições, ela agora integra a chamada Comissão da Verdade da Dívida da Grécia, instituída em abril, para avaliar a legalidade dos acordos que a geraram.

“Esse novo acordo é uma grande burrice. Vai reestruturar uma dívida ilegal, correndo o risco de sacramenta-la e, no futuro, tornar muito mais difícil a sua revisão”, afirmou em entrevista ex-clusiva à Carta Maior, em Brasília, onde passa uma temporada, após a divulgação do relatório preliminar da Comissão da Verdade.

Para a brasileira que conhece de perto as ori-gens e razões da crise econômica e social daquele país, a dívida grega é mero veículo de corrupção e expropriação, é parte de um grande esquema ilegal criado para salvar os bancos privados eu-ropeus. “Para mim, que tive acesso aos contratos, que vi o que ocorreu naquele país e, portanto, tenho a segurança de falar o que estou falando, é muito triste ver que o governo não suspendeu esse pagamento”, lamenta.

Confira a entrevista a entrevista completa:

Carta Maior - As notícias que chegam da Gré-cia, via o relatório preliminar produzido pela Comissão da Verdade da qual você faz parte, revelam que a dívida pública foi imposta ao país como uma operação para salvar os ban-cos privados europeus, e não foi, em nenhuma medida, revertida em benefícios para o povo. Então, essa é uma dívida ilegal?

Maria Lúcia Fattorelli - Exatamente. A dívida grega é o resultado de um grande esquema ide-alizado para o salvamento dos grandes bancos

privados europeus, afetados pela bolha de 2008. A dívida da Grécia começa a ser um problema lá na década de 1980, em função dos juros sobre juros. Na década de 1990, o processo continuou. Depois, vieram as Olimpíadas, com muita corrupção. O gasto previsto com o evento não chegava inicial-mente a 5 bilhões de euros, mas acabou que a dívida já supera 30 bilhões de euros, por causa de aditivos, acréscimos aos contratos, refinan-ciamentos em condições onerosas. De qualquer forma, a parte mais relevante, sem dúvida, foi a destinada ao salvamento dos bancos, que é esta contraída de 2010 para cá.

CM - Qual é a composição da dívida grega, ava-liada hoje em 321 bilhões de euros?

MLF - No nosso relatório, por questões metodo-lógicas, nós consideramos o valor total da dívida de 312 bilhões de euros. Deste total, 131 bilhões de euros foram para a empresa de fachada criada em Luxemburgo, a SFS, para operar o esquema. Outros 53 bilhões de euros foram para o chamado acordo bilateral, em que o dinheiro não chegou na Grécia. Foi aberta uma conta no Banco Central Europeu (ECB) e o dinheiro que os países empres-tavam ia direto para lá, e de lá para os bancos privados que detinham alguma parcela da dívida. O montante destinado ao Fundo Monetário In-ternacional (FMI) - que é um empréstimo stand by, que não é entregue ao país, mas fica ali para socorrer os bancos, caso o país não consiga efe-tuar o pagamento – é de mais 20 bilhões. Além disso, tem a parte do ECB, de mais 20 bilhões de euros, que também está conectado com o salva-mento bancário. Só aí temos mais de 220 bilhões de euros.

A outra parte é dívida interna, inclusive dívi-da interna gerada para pagar os encargos desses empréstimos, que são abusivos. São encargos sobre cada coisa que esses credores fazem, do tipo emitir um documento, emitir um adendo, despesas com advogados, despesas em bolsas, tudo quanto é tipo de taxa que se possa imaginar, é tudo cobrado da Grécia. E esses encargos têm que ser pagos no prazo de cinco dias. Então, a Grécia acaba emitindo dinheiro, aumentando a dívida interna, para gerar liquidez.

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CM - Se a dívida grega recente é ilegal, por que o governo se submeteu à pressão para fechar esta nova renegociação anunciada esta semana? É possível o país se reerguer com um acordo que exija esse nível de sacrifício?

MLF - Não, não é possível. E mais. Esse refinan-ciamento que agora eles estão propondo vai pegar toda essa dívida ilegítima e refinanciá-la. Simplesmente, vai jogar para a frente o proble-ma. Como tem acontecido aqui no Brasil desde a década de 1980.

CM - Mas o governo grego tem apoio popular para não pagar esta dívida, manifesto inclusive por meio do plebiscito do último dia 5. Por que ele cede?

MLF - A pressão é muito grande. Do jeito que foi feito, o euro virou uma camisa de força. O go-verno grego está sob forte pressão da troika, que é formada pelo ECB, FMI e Comissão Europeia, todos eles órgãos dominados por interesses do setor financeiro. O FMI não precisa nem falar, sempre foi um órgão de socorro aos bancos, e não aos países. O ECB é dirigido pelos grandes brancos privados, como é também o banco central dos Estados Unidos. É uma instituição privada, in-dependente. E na Comissão Europeia, o setor que coordena esta parte dos empréstimos, e inclusive tem enorme responsabilidade sobre estes tipos de contratos, está totalmente comprometido com este esquema. Além dessa pressão da troika, a Grécia ainda sofre a pressão dos próprios bancos privados e de alguns países europeus, principal-mente a Alemanha.

CM – Há o risco concreto da Grécia ser expulsa da zona do euro? Isso inviabilizaria uma reto-mada do país?

MLF - A criação da comunidade europeia foi regida pelos princípios da solidariedade, da co-operação, da colaboração. Por isso, não há pre-visão legal para expulsar um país, porque isso está totalmente fora de cogitação dos princípios que regeram a criação da comunidade europeia. Então, a Grécia não tem o que temer. Ela pode

ser convidada a se retirar, ser pressionada. Mas ela sai se quiser. Expulsa, não. Mas a pressão é brutal.

Muitos economistas já dizem que é melhor a Grécia trabalhar com uma moeda alternativa enquanto não se resolve essa situação, que não finaliza a auditoria. Tem até um economista que já foi do Banco Mundial, Peter Koening, que advoga que o próprio Banco Central da Grécia poderia imprimir euro, que as regras do Banco Central Europeu não impede isso. E olha que não é ninguém de esquerda que está dizendo isso. É um cara de mercado que foi da direção do Banco Mundial por 30 anos.

CM – Como se deu esse processo de salvamento dos bancos privados a partir da imposição de uma alta dívida pública a um país?

MLF - Os bancos quebraram em 2008, naquela história da bolha, mas foram considerados gran-des demais para quebrar e os países decidiram salvá-los. Então, esquemas ilegais e fraudulentos foram criados para fazer este salvamento. Um desses esquemas foi a criação de uma empresa em Luxemburgo, a FSF, hoje tida como a maior credora da Grécia. É uma empresa que pode ser considerada de fachada, porque envolve países europeus, o que é um escândalo. E isso não é de-nunciado. Não é dito. E quem dirige de fato esta empresa é a Agência de Dívidas alemã.

CM – O que é exatamente uma agência de dívidas?

MLF - Para nós é um pouco difícil entender o que é uma agência de dívidas, porque quem gerencia a dívida pública aqui é o tesouro nacional, mas lá na Alemanha é uma agência independente, como aqui tem a Anatel, a Aneel etc. Essa agência é que dirige a empresa de Luxemburgo. É uma facha-da e o objetivo dessa empresa é trocar garantias emitidas pelos países. Garantia é igual dívida. Tem outro nome, mas é uma obrigação que você tem que honrar em determinado momento, e que também rende juros. Então, todos os países que compõem esta empresa emitem garantias milionárias. Quando ela foi aberta, eram 440

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bilhões de euros. Depois passou para 779 bilhões de euros. E essa empresa troca as garantias dos países por papéis podres em poder dos bancos, usando o sistema da dívida.

Se o salvamento dos bancos fosse anunciado dessa forma, exatamente com esse nome, seria um escândalo e, talvez, essas medidas não pas-sassem. Então, a Grécia foi colocada como cená-rio. E está sendo colocada como cenário até hoje. Se você pegar o noticiário desde 2010, a Grécia é manchete sempre. Tudo é culpa da dívida da Grécia.

CM - E por quê justamente a Grécia? Por que a dívida pública grega é um problema tão grande para o mundo?

MLF - A questão é que, lá em 2010, estavam em curso todas essas medidas de salvamento bancá-rio. Em 2010, no mesmo dia em que foi endereça-do o plano para a Grécia, foi criada essa empresa de Luxemburgo. O mesmo ato da Comissão Europeia que menciona o socorro para a Grécia, também menciona a criação dessa empresa em Luxemburgo, dando a entender que era tudo para ajudar a Grécia. Neste mesmo dia, o EBC lançou também no mercado um programa de compra de ativos, principalmente títulos públicos de dívidas dos países, que é ilegal. Se você pegar o artigo 123 do Tratado Comum Europeu, vê que é expressamente ilegal fazer isso. E, no entanto, o programa foi lançado e está operando, para ser possível a transferência da bolha do balanço dos bancos para a dos países. Porque, pelos princípios contábeis, qualquer transferência de bem, se não for uma doação, exige uma operação de compra e venda. Mas isso não poderia ser feito. Então, a Eurostat, que é o órgão que cuida de todas as re-gras estatísticas e contábeis da Europa, mudou a norma e permitiu a mera transferência de papéis, sem operação de compra e venda, justificando essa aberração dos princípios contábeis por conta da “turbulência econômica”. Tudo isso ficou es-condido. E, quando eu denunciei em uma artigo, economistas gregos vieram comentar comigo que ainda não tinham visto toda essa relação entre as operações.

CM - E como você concluiu que a Grécia era apenas o cenário deste esquema muito maior?

MLF - Por que eu me fazia a mesma pergunta que você fez: por que a Grécia? Aí eu descobri-que a Comissão Europeia já vinha fazendo um monitoramento das estatísticas e dos dados da Grécia. Como se houvesse um grande problema com esses números e a Grécia tivesse um déficit maior do que estava apresentando. Só que outros países também tinham problemas estatísticos e de déficits. E chegou um momento em que a Co-missão Europeia começou a isolar a Grécia, sem razão aparente. Citaram um grupo de países, que deveriam corrigir seus problemas de uma ma-neira. Apontaram um outro grupo, que deveria corrigir de outra. E isolaram a Grécia, dizendo que a Grécia era diferente. E a Grécia foi colocada na berlinda, tendo que receber esse pacote de ajuste.

A desculpa era que o déficit estava alto de-mais e poderia afetar a economia de toda a re-gião. Então, eu fui pesquisar este déficit e tentar entender porque toda essa narrativa diferenciada com a Grécia. E quando eu comecei a pesquisar, encontrei denúncias públicas de ex-chefes da ElS-tat, o órgão que cuida das estatísticas da Grécia, equivalente ao nosso IBGE, de que, em apenas uma noite, colocaram cerca de 50 bilhões de eu-ros na dívida grega. Primeiro, essas denúncias de falsificação do déficit – que foi a justificativa para a Grécia ser colocada nessa berlinda - foram ignoradas.

Segundo, vários economistas gregos, espe-cialistas, servidores e até o representante da Gré-cia junto ao FMI diziam que o pacote proposto não interessava à Grécia, que era melhor fazer uma reestruturação. E isso tudo foi ignorado porque, naquele momento, o que interessava era fazer essa troca da bolha dos bancos. Eles queriam este esquema. Agora, depois do esquema todo im-plantado, estão falando em reestruturação. Mas, agora, esse acordo vai ser uma grande burrice. Vai reestruturar uma dívida ilegal, correndo o risco de sacramenta-la e, no futuro, tornar muito mais difícil a sua revisão.

CM - A Alemanha é a grande detentora da dívida grega, mas também possui uma dívida histórica

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com a Grécia, em função da ocupação nazista. O valor dessa dívida histórica alemã é, de fato, como dizem, suficiente para cobrir a dívida pública grega?

MLF - O parlamento grego criou a nossa comis-são, para fazer a auditoria, e criou uma outra comissão para verificar esse crédito. Então, essa apuração está em andamento, mas é feita por outro grupo. E é extremamente relevante porque há uma dívida que, se corrigida, é muito superior a esses 321 bilhões da dívida da Grécia. E a própria Alemanha já recebeu uma grande ajuda mundial para se reerguer, quando perdeu a guerra.

CM - Você acaba de chegar de uma temporada de dois meses na Grécia. Qual a situação econô-mica e social do país hoje?

MLF - É uma situação de crise humanitária. A própria presidente do parlamento já repetiu isso várias vezes. E é fato. Quando você olha o enco-lhimento do PIB de 2009 a 2014, de 22%, dá pra estimar o dano. O orçamento caiu 40 bilhões de euros. As privatizações que o país já fez, o patri-mônio que entregou de forma criminosa. Porque quando o FMI entrou lá, junto com a troika, em 2010, ao mesmo tempo em que ele determinou o corte de várias instituições de saúde, educa-ção, assistência, também determinou a criação de duas estruturas caríssimas: um Fundo para Recapitalização de Bancos Privados e um Fundo para Privatizações.

O site desde último fundo é deprimente. É como se você estivesse olhando um catálogo do Shoptime. É o país colocado a venda. Tudo vai passando e você pode escolher: terra, infraestru-tura, água, ilhas, trens, portos, marinas, aeropor-tos... tudo colocado a venda. E na internet. Triste. E o Brasil está assim também. O que a Dilma foi fazer nos Estados Unidos é a mesma coisa: co-locar o país a venda. Já o outro fundo grego, o dos bancos, já deixa claro: “O objetivo é contribuir para a manutenção e estabilidade dos bancos e do sistema bancário”. Então, ao mesmo tempo em que o FMI cortou tudo que era essencial, mandou construir essas duas estruturas caríssimas. Eu es-tudei os relatórios. O Fundo de Privatizações não

tem transparência nenhuma, mas o dos bancos produz relatórios. Daqueles 131 bilhões euros que a Grécia recebeu da empresa de Luxemburgo, 48,8 bilhões de euros entrou direto neste fundo para salvar bancos. É escandaloso.

CM - Aqui no Brasil, a gente escuta a mesma cantilena há anos: se não pagar a dívida, o país fica isolado e quebra. Mas, no Equador, a sus-pensão do pagamento da dívida, da qual você também participou da auditoria, funcionou. Por quê?

MLF – A diferença é que o Equador tinha dinheiro para recomprar a dívida.

CM - Mas o presidente Rafael Correa não reco-nheceu e pagou apenas 30% do total?

MLF - Sim, foi o que ele fez. Mas no nosso rela-tório zerava a dívida e ainda deixava o Equador com crédito. Só que ele fez um cálculo político da corresponsabilidade dos equatorianos, porque os políticos anteriores foram coniventes, que houve uma corresponsabilidade. Por isso, o Rafael Cor-rea anunciou que recompraria os títulos por no máximo 30% e, quem não quisesse vender, que entrasse na Justiça. Os detentores dos títulos da dívida, claro, concordaram, porque sabiam que, se entrassem na justiça, não receberiam nada, por causa do relatório. Na Grécia, a situação é di-ferente, porque o país está quebrado. As reservas já se foram todas.

CM - Como o Equador se beneficiou com a revi-são desta dívida?

MLF - Em 2007, quando o Rafael Correa assumiu, o valor destinado ao pagamento da dívida já deu uma caída. Em 2008, depois que a gente entregou o relatório da auditoria e ele suspendeu o paga-mento dos juros da dívidas, caiu ainda mais. A partir daí, a equação se inverteu e os gastos sociais que eram irrisórios até então, passaram a ser muito maiores, só com o montante dos juros. E em 2009, quando ele recomprou a dívida, os gastos sociais ficam maiores que os gastos com a dívida pela primeira vez na história. Assim, o

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Equador triplicou o salário dos professores. Vol-tou a investir em saúde pública, que tinha sido suspensa desde 2000 por causa do peso da dívida. Quando eu estive no Equador pela primeira vez, em 2001, vi aquelas favelas horizontais enormes, todas elas cercadas, e questionei o que acontecia quando uma pessoa dali adoecia. E me explica-ram que ou ela achava uma alma caridosa para pagar um remédio ou simplesmente morria. Com a revisão da dívida, tudo isso foi revisto. Tudo foi reconstruído. É por isso que o Correa está sendo reeleito, reeleito e reeleito.

CM - Já na Grécia, ocorre o movimento con-trário e, pelo jeito, agora, com a complacência do novo governo de esquerda, eleito para fazer diferente...

MLF - No nosso relatório preliminar, nós tra-zemos uma lista de tudo o que eles perderam. E, além disso, apresentamos as ilegalidades dos acordos com os maiores credores. O Banco Central Europeu não poderia ter o programa que teve. A empresa de Luxemburgo é uma aberra-ção. E este acordo bilateral é um arranjo para reciclar os papéis podres em poder nos bancos. Para mim, que tive acesso aos contratos, que vi o que ocorreu naquele país e, portanto, tenho a segurança de falar o que estou falando, é muito triste ver que o governo optou por não suspendeu esse pagamento.

CM - Há perigo de um giro à direita do governo grego, que alguns já vêm sinalizado desde o pe-dido de demissão do ex-ministro das Finanças, Yanis Varoufakis?

MLF - Eu não tenho como dizer isso. Porque ele também vinha negociando desde janeiro. Agora, ele não tinha esse resultado da auditoria que te-mos agora. E que faz a diferença. Porque aí, coisas que não estavam conhecidas vieram à tona. É ainda um relatório preliminar, claro, mas já con-segue mostrar a ilegalidade da dívida. E que já foi mostrado, na minha opinião, é suficiente para um passo mais firme de repúdio a essa situação. Não há porque continuar com isso aí, refazer esse tipo de acordo, porque é claro que vai dar errado.

CM – Voltando à composição da dívida grega, é verdade que parte dela, aquela parte mais antiga, foi contraída devido à necessidade de gasto em armamento para a entrada do país na OTAN?

MLF - Nesta nossa análise preliminar, nós foca-mos a dívida de 2010 para cá, porque é a vigente, mas na dívida anterior, a maior parte dela é, sim, para comprar armamento. A Grécia é um país da OTAN e nós sabemos que todos os países da OTAN são bases militares dos Estados Unidos, que exigem o cumprimento da cota de armamento. É um problema sério, mas, esta parte, ainda não investigamos. Eu sei tanto quanto você.

CM - Nesta análise da composição dívida an-tiga podem também surgir mais informações relevantes....

MLF – Sim, essa dívida é o que juridicamente chamamos de dívida odiosa. E o termo não tem nada a ver com ódio ou odiar. A dívida odiosa é uma dívida contraída contra o interesse do povo que vai pagá-la. É, por exemplo, como a origem da nossa dívida externa, contratada para financiar a ditadura. Ditadura era algo de interesse do povo? Não, o povo queria democracia. Então, uma dívida contraída para financiar um regime despótico, uma ditadura, ela é contrária ao interesse do povo. O governante ditador vai contrair e ainda vai botar o povo, que é a vítima desse poder, para pagar. Então, a dívida brasileira, assim como a grega, é odiosa.

A Grécia também passou por uma ditadura durante um período, o que é até uma contradição para o país que é o berço da democracia. E o berço da democracia passa agora pela ditadura do capi-tal. Eu havia comemorado o plebiscito do último dia 5, dizendo que, com ele, a Grécia voltava a ser o berço da democracia porque submeteu ao povo uma decisão econômica importante. Mas, agora o governo não está acatando a decisão, eu fico muito triste. Porque o povo votou contra a auste-ridade. Isso é lamentável e só pode ser decorrente da enorme pressão que faz com que o governo não enxergue saída dentro da estrutura criada pela União Europeia.

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A causa real da crise financeira na EspanhaVicenç Navarro

A grande debilidade do argumento neoliberal, que assume que o maior problema da economia espanhola é o déficit e a dívida pública do Estado espanhol, é que os dados, facilmente acessíveis, mostram a sua insustentabilidade. Quando a crise começou em Espanha, o Estado espanhol não tinha déficit. Antes pelo contrário, tinha um superávit, maior certamente que o que tinha o Estado alemão. Em 2007, o superavit do Estado espanhol era equivalente a 1,9% do PIB, mais de seis vezes superior ao alemão, 0,3% do PIB. E algo semelhante acontecia com a dívida pública, que representava em Espanha cerca de 27% do PIB, quase metade da dívida pública alemã, 50% do PIB. Na realidade, a Espanha era um “modelo” e exemplo de referência do pensamento neoliberal dado como exemplo de “ortodoxia” econômica pelos economistas neoliberais.

Ter um superávit muito superior e uma dívi-da pública muito inferior à da Alemanha não nos serviu de nada. Não nos protegeu da crise. Como pode, então, dizer-se agora que a maior causa da crise é o elevado déficit e a dívida excessiva, quando ter déficit zero e dívida pública baixa não evitou que tenhamos a crise que temos, com mais de 23% da força laboral no desemprego? E porque é que esta explicação da crise continua a ser dada quando a evidência existente é tão avassaladora, mostrando o seu erro?

Para responder a esta pergunta temos que ver quais são as vozes mais estridentes em defesa desta explicação da crise. E entre tais vozes aque-les que têm um lugar proeminente são o Banco Central Europeu (BCE) e a banca alemã, e o Banco de Espanha e a banca espanhola, que são precisa-mente quem criou a crise. Na realidade, a banca alemã desempenhou um papel chave na génese da crise e no seu desenvolvimento. Segundo o Banco de Pagamentos Internacionais (The Bank

for International Settlements – BIS) (junho de 2010), a banca alemã emprestou 109.000 milhões de euros à banca espanhola, com os quais esta, em aliança com o setor imobiliário, investiu mas-sivamente não na economia produtiva do país, mas sim na economia mais especulativa possí-vel, criando a bolha imobiliária que, ao explodir, provocou a enorme crise e o enorme problema da dívida privada de Espanha que atingiu dimensões astronómicas (227% do PIB).

A banca alemã conseguiu lucros enormes, lucros que, certamente, não investiu na Alema-nha (como Oskar Lafontaine, então ministro da Economia e das Finanças do governo alemão, e hoje um dos economistas mais clarividentes na Europa, queria que se fizesse e que, ao não ser feito, rompeu com o chanceler Schröder, o presi-dente social-democrata alemão responsável, jun-tamente com a chanceler Merkel, pelas políticas de austeridade a nível alemão e europeu, políticas promovidas pela banca alemã).

Em vez de estimular a procura alemã (e eu-ropeia), a Alemanha utilizou os grandes lucros, que conseguiu com a sua atividade especulativa em Espanha (e noutros países periféricos da Eu-rozona, como Grécia e Portugal), para acumular cada vez mais euros, convertendo-se na maior fonte de euros na Europa. O euro fez muito bem à banca alemã.

Agora, quando a bolha especulativa imobili-ária explodiu, a banca alemã entrou em pânico, pois tinha grande parte do seu capital emprestado à banca espanhola e, em muito menor grau, ao Estado espanhol (cerca de 10% do seu investimen-to bancário). E começou a promover a falsa ideia de que o euro estava em perigo. O seu valor osci-lou, mas não baixou substancialmente de valor em comparação com o dólar.

E daí derivam as políticas de austeridade,

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cujo único objetivo é que se pague aos bancos alemães (e franceses) a dívida tanto privada como pública que detêm. A mal chamada ajuda da União Europeia e do FMI aos países periféricos é ajuda para que se pague aos bancos alemães e franceses, principalmente.

Mas estas políticas de austeridade, com a baixa de salários, a diminuição da proteção social e os cortes do gasto público, estão a criar um problema gravíssimo que se chama Grande Recessão, causada pela enorme queda da procura interna e pela escassez de crédito, e que é a causa da diminuição da atividade econômica e com isso da descida das receitas do Estado (e o consequente aumento do défice da dívida pública). Está aqui o problema oculto que alguns de nós temos estado a denunciar desde o princípio (ver o livro “Hay alternativas”, de Navarro V., Torres J. e Garzón A. em vnavarro.org). A evidência científica que apoia este diagnóstico é avassaladora. As políticas que a banca alemã e francesa (e espanhola) e os seus porta-vozes políticos, incluindo Merkel-Sarkozy e Rajoy, estão impondo são um suicídio econômico.

Em seguida, deverá fazer-se a pergunta: porque continuam a promovê-la? Uma resposta é que os dogmas econômicos são tão irracionais como os dogmas religiosos. O pensamento neoli-beral é um dogma impermeável aos dados e aos fatos. Mas continua a reproduzir-se porque isso

serve determinados interesses, os interesses da banca, com a cumplicidade dos aliados políticos (o ministro da Economia do Estado espanhol, o presidente do BCE, assim como grande número de pessoas responsáveis de levar a cabo e estimular as políticas de austeridade são banqueiros ou pró-ximos da banca), que assumem que os interesses particulares da banca coincidem com os interes-ses gerais do país, o que não é verdade, como bem documentam os estudos rigorosos que mostram que as causas da crise são o comportamento negativo do BCE e do Banco de Espanha, e dos bancos que em teoria supervisionam, mas que na prática lucram em detrimento do interesse geral.

Na realidade, as soluções são fáceis de ver. E consistem na aplicação de políticas de estímulo econômico, com um intervencionismo público que estimule a economia a criar emprego, junta-mente com o estabelecimento de bancos públicos e uma regulação do setor bancário, forçando-o a recuperar a sua função social, a oferta de crédito. Mas, isso não acontece devido à enorme influên-cia da banca e de outras componentes do capital financeiro nas instituições políticas e mediáticas de Espanha e da Europa.

(*) Artigo publicado no jornal “Público” de Espanha, disponível em vnavarro.org. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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A Argentina, a crise do capitalismo e o nó górdio

Os laços do nó górdio que fomenta a instabilidade política e nos condenam a estagnação econômica: a restrição externa, a corrida do câmbio e a inflação.

mônica Peralta ramos*

As crises econômicas são inerentes ao desenvol-vimento do modo de produção capitalista e se ca-racterizam por um duplo movimento: destruição de bens, ativos e forças produtivas por um lado, e do outro uma crescente concentração do capital e da riqueza. A crise financeira de 2008 expôs a enorme concentração da riqueza e a crescente desigualdade social nos países centrais, fomen-tando um incipiente debate intelectual e político sobre os mitos do capitalismo. De outro lado, esta crise global evidenciou a relação que existe entre a estrutura de poder mundial e a que predomina, por exemplo, na Argentina.

Contudo, a desinformação impregna nossa conjuntura política. Esta desinformação flui do relato dos meios de comunicação, um relato que oculta toda informação relativa às relações de po-der e seu impacto sobre nossa realidade imediata. A ausência de um debate intelectual e político

sobre o significado do momento atual também contribui para a desinformação. Sem informação e sem debate não há conhecimento profundo so-bre a realidade. Ao desconhecermos as relações de forças e a importância relativa dos diversos conflitos e alianças possíveis, e se ignoramos de onde viemos e para onde vamos, as tentativas de transformar a realidade ficarão truncadas. A intenção deste artigo é contribuir para o debate sobre o momento no qual vivemos.

A necessidade de produzir constantemente o lucro e de obtê-lo no mercado deu lugar, nos países centrais, a uma acumulação altamente intensiva no capital, uma acumulação que subs-titui continuamente a força de trabalho por bens de capital, causando desemprego, estagnação e queda dos salários, rápida obsolescência tecnoló-gica, acumulação de bens, queda de preços, e um grande aumento da capacidade ociosa existente

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em relação à capacidade potencial existente. Como consequência, os países centrais enfrentam hoje em dia as ameaças de recessão e deflação no contexto da crescente desigualdade social.

A Organização para a Cooperação e o Desen-volvimento Econômico (OECD) estima que até 2030 as taxas de crescimento da produção, do emprego e dos investimentos em capital social destes países serão inferiores as conquistadas nas décadas de 1990 ou de 2000, e o crescimento de sua renda média anual será inferior à taxa média anual de crescimento da renda mundial.

Apesar deste estancamento produtivo, e muito além do papel da China na economia mundial que não podemos tratar agora, os países centrais – e, em particular, os Estados Unidos – controlam a produção a nível global. A acumu-lação altamente intensiva no capital deu lugar a uma expansão do capital para fora das fronteiras através de cadeias de valor.

Um grupo relativamente reduzido de corpora-ções multinacionais domina ligações estratégicas nestas cadeias de valor, controlando assim um processo que desintegra a produção a nível local, ao mesmo tempo em que a integra em nível global. Desta maneira, o capital monopolista/oligopolista determina a maneira em que é produzido o exce-dente econômico a nível mundial. Mesmo assim tem um papel decisivo no comércio internacional.

Em resposta, mais de 80% deste último funciona hoje através de cadeias de valor e pelas redes de produção de empresas multinacionais (filiais, contratantes, fornecedores, licenciadas etc.). Isto restringe muito a possibilidade que os Estados têm em controlar o comércio exterior de seus respectivos países e facilita as atividades especulativas a nível comercial. Neste contexto, as rendas do monopólio adquirem uma impor-tância crucial. São um mecanismo de sucção do excedente econômico e da riqueza acumulada, e impulsionam um processo de acumulação mun-dial baseada na pura e simples desapropriação de vastos setores sociais.

O movimento paradoxal de fragmentação e de concentração que caracteriza a produção capitalista a nível mundial é reproduzida nas finanças internacionais. A manipulação das ta-xas de juros e as operações especulativas de todo

tipo constituem os mecanismos utilizados por diferentes atores em sua luta por apropriar-se de uma maior cota do excedente econômico e da riqueza acumulada.

Neste processo turbulento, as rendas finan-ceiras impulsionam grandes transferências de rendas e a desapropriação de múltiplos e diversos setores sociais. Esta renda deu lugar a uma classe rentista que vive de comissões financeiras fixa-das monopolicamente e transferidas aos preços. A intervenção do Estado no sistema financeiro dos países centrais tem um papel crucial nestes processos e tende a impulsionar a concentração do capital.

A especulação de hipotecas subprime, ou de alto risco, nos os EUA desencadeou a crise de 2008 e colocou o sistema financeiro deste país a beira da quebra . A solução encontrada pela Reserva Federal para evitar o colapso dos grandes bancos, e para outorgar crédito a economia “real”, recaiu em uma política de afrouxamento monetário ou quantitative easing (QE), que consiste, em sua primeira fase, na compra sistemática e massiva de hipotecas “podres” pelos bancos. Isto revalorizou estes ativos e aumen-tou as reservas líquidas dos bancos.

Como contrapartida regularizou-se as ativi-dades destes últimos, a fim de evitar sua conta-minação com investimentos especulativos. Assim foram salvos da quebra os grandes bancos, contu-do não conseguiu-se o objetivo explícito de reavivar a economia. O resultado imediato foi o aumento das reservas dos grandes bancos e o crescimento do crédito de curto prazo ortogado pelo “banco nas sombras” (shadow bank). Constituída pelos hedge funds, fundos de pensão, fundos soberanos, companhias de seguros etc., o sistema bancário paralelo não foi regulado e operou com taxas de juros maiores que as dos bancos.

Por isso os grandes e rápidos lucros especula-tivos deste setor através de um complicado encade-amento de operações com “derivados” financeiros (instrumentos financeiros de diferentes tipos cujo valor deriva do valor de outro ativo subjacente: ações, opções, bônus corporativos, bônus soberanos, swaps de taxas de juros, credito default etc.).

O sistema financeiro paralelo financiou grande parte de suas atividades com o uso e reuso (acordos de recompra) dos depósitos e garantias

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colaterais dos grandes bancos. Deste modo, o sistema bancário formal e o paralelo ficaram cada vez mais interconectados. A magnitude destas operações a curto prazo, sua opacidade ao não figurar na contabilidade dos bancos ou das entidades financeiras e a contaminação dos depósitos dos bancos com investimentos de alto risco fazem das finanças um mundo selvagem, extremamente turbulento e frágil.

Neste cassino de múltiplas apostas abertas, a cláusula do safe harbor em transições com de-rivados parece potenciar tanto a possibilidade de concentração do capital como o risco de implosão financeira. Introduzida na reforma financeira de 2005, esta cláusula isenta os traders de derivativos nesse ínterim (stay) que bloqueia os esforços do credor por cobrar a dívida, concedendo-os assim di-reitos especiais e prioridade na cobrança da dívida.

Isto facilitaria a concentração do capital ao permitir que os credores – e, especialmente os grandes bancos com grandes tendências de deri-vados – exijam o pagamento imediato da dívida e se apropriem dos ativos dos devedores. Os co-lapsos Bear Stearn, Lehman Brothers, AIG e, mais recentemente, o colapso do MF Global, em 2011, haveriam sido detonados pela súbita paralisação das transações com derivados por parte de seus respectivos sócios e o consequente saque destas entidades, aplicando a cláusula do safe harbor.

A possibilidade de uma debandada para liquidar a garantia por parte das instituições financeiras que têm acordos de recompra e derivados com cláusula de safe harbor ameaça-ria assim a estabilidade do sistema financeiro norte-americano.

O descalabro financeiro das economias mais frágeis da Comunidade Europeia mostra como as turbulências financeiras dos Estados Unidos se reproduzem nas finanças internacionais. Nestas turbulências se encontra atrelada a dívida sobe-rana de muitos países.

Neste contexto selvagem, os fundos abu-tres que ameaçam a reestruturação da dívida argentina não são uma anomalia. São uma ex-pressão a mais da luta amarga pela apropriação do excedente econômico, da renda e da riqueza acumulada. Encarnam em nossa realidade as turbulências das finanças internacionais. Nossa

vulnerabilidade frente a esta ofensiva não surge simplesmente do peso de nossa dívida externa. O principal obstáculo para enfrentar os fundos abutres é o nó górdio que nos oprime e que temos analisado anteriormente neste jornal (13/11/2011, 20/1/2014 e 14/3/2014).

A acumulação do capital em condições de dependência tecnológica deu lugar ao controle monopolista/oligopolista de setores chave de nossa economia.

Os laços deste nó górdio: a restrição externa, a corrida do câmbio e a inflação, semeiam o cani-balismo social, fomentam a instabilidade política e nos condenam a estagnação econômica. Estes laços do nó górdio são o principal obstáculo à ges-tão soberana da dívida externa e expõe a relação existente entre a estrutura de poder global e a que existe em nosso país. Neste contexto, a for-mação monopólica dos preços e sua dolarização adquirem uma dimensão nova. Estes processos indicam o campo onde se encarnam e fundem, imediatamente, os principais conflitos sociais.

Daí a importância e a urgência de criar espa-ços institucionais que permitam uma mobilização organizada da cidadania com o fim de controlar a formação de preços ao longo das cadeias de valor, desde a produção até o consumo. Isto irá lançar luz sobre o voo rasante dos abutres internos que, favorecidos pelas limitações para obter divisas com consequências da restrição externa, utilizam as taxas de câmbios e a dolarização de preços para restringir a política oficial e perpetuar em nosso país a estrutura de poder global.

Estes espaços permitirão, além disso, dar eficiência e legitimidade a política de Preços Cui-dadosos. Mais importante ainda, esta experiência de participação coletiva na luta contra um mal que aflige a todos, permitirá articular alianças entre setores com interesses diferentes e irá con-tribuir para limitar o canibalismo social, abrindo o caminho para a inclusão social e integridade nacional.

*Mônica Peralta Ramos é socióloga, autora de “La economía política argentina. Poder y clases

sociales”.

Tradução: Cepat.

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