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O guardião de homens e de almas

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Julian Joseph Valeriano é um homem aceito pela natureza, mas rejeitado pelos homens; pelas amas e matronas de leite, nas quais não desperta qualquer instinto maternal. Infelizmente, foi criado pela vida após o parto de uma mãe que morreu louca, sem direito a uma infância feliz e bela como deveria ser para todos nessa vida. Sobrevivendo e enfrentando acidentes e doenças, Julian se torna adulto, preso a um corpo deformado. Quando descobre ser dotado de uma imensa sensibilidade olfativa, uma aguçada visão, um paladar exacerbado, uma audição superior a dos animais; tudo isso combinado a uma inteligência nunca imaginada, parte em busca da cura de todos os males do corpo e da alma dos seres humanos, para atingir o que mais almeja: ser um homem amado. Mas, para isso, seria preciso usurpar toda essência de vida da natureza e dos homens até atingir a essência perfeita do perfume que o fará completo.

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O LIVRO E O INÍCIO DE UMA PAIXÃO

De longe podia avistar o grande casarão, de construção moderna, à moda italiana. Duas escadarias davam direto para a entrada do palácio, que surgia no meio de um extenso prado, onde pastavam muitas ovelhas e muito gado. O local era rodeado por carvalhos e canteiros cheios de arbustos. Após atravessar a ponte sobre um pequeno riacho, de pura água cristalina, sentia o cheiro agradável da natureza ao redor. Você gostaria de estar ali com alguém que deixasse seu coração em paz pelo resto da vida. O tempo corria devagar, a harmonia da Alma vivia sobre um silêncio que falava por si só. Atrás de arvoredos e laranjais, podia observar as cocheiras e cavalariças. Em uma das janelas, por detrás de uma cortina branca, surgiu uma jovem que provavel-mente acabara de acordar, pois tinha os cabelos desarrumados e os olhos funestos. Seus passos cessaram, e ela ficou a observar tudo debruçada no beiral ao lado de violetas. Esse rosto feminino de Deus parecia-se com Nossa Senhora Aparecida. Uma mulher normal como todas, mas virgem e pura como a cruz que segurou Jesus Cristo. Ela, uma menina frágil, manifestava--se perfeita para o pensamento de quem ama uma gruta nunca pisada.

O sol alumiava o gramado, que estalava brandamente com as pisadas dos criados. O pátio já não estava mais cheio de carruagens dos duques, barões e viscondes que estiveram nessa casa na noite passada. A festa fora até altas horas, mas Albertine preferira ouvir o cantarolar dos cocheiros, o chocalhar das cabras e o ruído das cascatas. Gostava do pôr do sol e de sen-tir o perfume dos limoeiros nesse início de primavera. Não sabia explicar o mal-estar que sentia ao ver tantas botas e chapéus de veludo preto. Para ela, a noite passada fora enfadonha, cercada de mediocridade, em que homens

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de todas as idades riam, mudavam suas bengalas de lugar e falavam de negó-cios e delírios os mais diversos. Ela tinha elegância nos hábitos, mesmo aos catorze anos, e delicadeza nos sentimentos, e não suportava aqueles bur-guesinhos imbecis, se é que me permitem. Amava a igreja e seus preceitos, a música e as flores, e sentia-se pálida diante de tantos corações medíocres. Quando ia confessar-se, inventava pecadinhos para ouvir o cochichar do padre. Os sermões a respeito de um esposo ideal arrancavam do íntimo de sua Alma inesperadas doçuras.

Ela queria conhecer mais da vida, ser menos infantil. A vida da fazenda lhe ensinara a ouvir seu coração, mas Albertine tinha a intenção de desabro-char seus instintos e ter ao menos um amigo querido.

A música e os convidados a enfastiavam; ela preferira ter ido conversar com as criadas. Em consideração a seu pai, o Visconde George Beltran, conteve-se com certo pudor.

Olhou para a estrada na expectativa de que seu pai tivesse voltado de Paris, mas não viu carruagem alguma. Apenas um vento arredio levantava nuvens de pó. Ouviu ao longe o ladrar de dois cães e sentiu o cheiro dos campos que floriam nessa época do ano. O cenário começava a se transfor-mar e as pereiras amanheceram floridas. Aspirou o ar fresco da manhã para se acalmar.

Antes de fechar a janela e vestir uma roupa leve, derramou nos braços e no busto metade do frasco de água-de-colônia. Depois, mandaria fazer um prato só para ela e ficaria no quarto até o cair da noite para jantar com seu pai.

Beltran saíra bem cedo em direção a Paris em sua carruagem negra, puxada por dois cavalos brancos de crinas longas. Fora ao subúrbio, pas-sando por quatro vielas e atravessando cinco quarteirões. E lá estava a casa de madame Juliete. Entrou sem bater. Uma jovem por volta dos seus vinte anos lhe deu bom-dia e pediu que subisse. O local era limpo e bem deco-rado, sem extravagâncias. Do lado direito do grande salão de entrada havia um piano rodeado de bancos e cadeiras de couro muito macias, onde os convidados passavam grande parte da noite aos desfrutes com mulheres perdidas. A escadaria de cinquenta e quatro degraus era confortável. Ao alcançar seu topo, dirigiu-se para o quarto de sua amante. Precisava de um pouco de carinho e de algumas horas de prazer para se esquecer da morte

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de sua amada, que morrera de um mau, de um torpor – face pálida, sem nenhuma gota de sangue no corpo. Morte indeterminada, ou seria a peste negra. O perfume de seu corpo jovem se transformou em um aroma volátil, num blefe. Queria manter-se na ilusão da vida eterna, algo que poderia ser realmente grandioso, se não fosse o pecado de Eva contra os milagres do mundo.

Esse pobre homem amou tanto essa mulher como uma criança que não consegue entender o significado do amor. Mas uma das melhores coisas da vida tinha ido embora com a morte, e a falta de inocência fechara o coração de Beltran. Fora um homem completamente apaixonado, porém o mundo havia dado muitas voltas desde a morte dela. Gostaria de voltar a ser criança, quando todos os sonhos são possíveis, para se embriagar naquele corpo até não aguentar mais.

A dor confunde a cabeça dos homens de bem que se contentam em esconder suas Almas atrás de portões enferrujados. Bem-aventurados os que não cometem suicídio contra sua Alma. Não percamos o contato com a vida, não deixemos que ela tenha medo, pois, com o tempo, a vida solta suas rédeas em nossas mãos.

Amou muito sua mulher e, na maioria das vezes, disfarçava suas angús-tias com sorrisos. A única recordação que restou de sua querida amada fora um velho retrato pintado pelo italiano Gian Lorenzo Bernini. Nele, a jovem trajava um belo vestido, guarnecido de flores e duas carreiras de botões de ouro.

Não tinha mais parentes nem amigos que considerasse, apenas um primo de infância e um velho carroceiro da propriedade que herdara de seu pai. Apesar de rude, o homem sabia ler e escrever e sempre proferia uma palavra de apoio nas horas mais vagas da vida do Visconde.

Colocou seu paletó, arranjou o colete e, após observar os peitinhos que abaulavam-se como couraças por detrás de uma camisa de seda, enfiou a mão no bolso da calça, deu um sorriso a Luccie e partiu.

Passaria perto do teatro para certificar-se de que neste fim de semana teria algo agradável com que se divertir. Após apostar em alguma rinha de galo, voltaria para sua propriedade, pois Albertine já deveria estar preocupada.

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A jovem ainda encontrava-se deitada em sua cama, tendo as mãos um livro de romance; acima de sua cabeça, uma representação de Apolo de Belvedere (símbolo de beleza). Às vezes, fechava os olhos e pensava em seu futuro longe de seu pai, quando uma lágrima caía. O abandono a assustava. Resolveu se levantar e esperar por ele na cozinha, junto às crianças das cria-das que brincavam e corriam com pedaços de torrões de açúcar nas mãos.

Nesse momento, os cães de guarda começaram a ladrar em direção à ponte que separava a propriedade da estrada. Enquanto seu pai se dirigia ao celeiro, os lampiões e os candelabros foram acesos, iluminando o ambiente do palácio e da entrada. Apeou algumas sacas de trigo e um pouco de fumo e, após dar boa-noite a seu amigo, partiu para os fundos do casarão, entrando direto pela cozinha. Abraçou sua filha na presença de todos enquanto sentia o cheiro agra-dável do jantar. O fogão a lenha estalava a madeira úmida misturada aos tições da noite anterior, enquanto uma chaleira esquentava o chá. A criada serviu dois patos assados após George tomar dois goles de vinho. Pelo menos nessa noite estava sem aborrecimentos e se sentia feliz ao lado de sua filha querida. Com as pálpebras meio cerradas de sono, dirigiu-se a outro ambiente e ficou ali, sen-tado por duas horas, à beira da lareira e sem dizer uma só palavra.

A noite já tinha caído e os cavalos escoiceavam, empinavam-se em suas baias. Estavam assustados com o vento forte e úmido que batia contra a porta do celeiro. Um ruído – um esvoaçar de uma velha e gorda coruja fez que se acalmassem.

Albertine sentou-se ao piano e tocou algumas sonatas. Ao perceber que seu pai já dormia em sono profundo, subiu as escadas após dar-lhe um beijo na face e deitou-se na cama com seu romance nas mãos. Olhou para a secretá-ria enfeitada com margaridas colhidas ao entardecer e, com os braços e pés nus como uma criança que anda pela casa à procura de libertinagem, tentou desvendar o segredo da felicidade e o propósito da paixão. Era jovem e bela e ainda teria muito tempo para satisfazer sua curiosidade. Levantou-se por alguns instantes, ajeitou seus cabelos encaracolados, lavou o rosto numa pequena bacia de cobre e adormeceu sentada em sua poltrona de descanso.

Um barulho! George acordou. Era um de seus cães de estimação que se espreguiçava bem debaixo de seus pés. Beirava a meia-noite e ele resolveu

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sair da propriedade e dar algumas cachimbadas. Não era a primeira vez que se encontrava pensando em colocar sua filha em algum convento. Talvez fosse melhor levá-la para a Espanha, mais propriamente a Barcelona, onde tinha alguns conhecidos do clero. Seu medo era de que sofresse nas mãos de algum oportunista; caso isso ocorresse, teria de matá-lo, e sua fé o impedia. Comeu algumas amêndoas, fumou um charuto e por volta das duas da madrugada desistiu dos pensamentos, pois sabia que não poderia viver sem a companhia de Albertine.

Era hora de subir para seu quarto. Observou duas estrelas que aparece-ram com o fim da chuva e deu de ombros. No topo da escada, dirigiu-se ao quarto de Albertine e abriu com cuidado a porta. Ao ver sua criança despro-tegida do frio, jogou um cobertor de lã sobre seu corpo e saiu.

Dentro de seu aposento, tomou um cálice de licor de amora, ajeitou a claridade dos dois lampiões em direção à sua cama e resolveu tomar um livro da prateleira e folhear dele algumas páginas. Pensou no seu desejo de residir em Paris, pelo menos no inverno, mas, infelizmente, tinha muitos compromissos no campo. Em silêncio, olhava para o infinito arrastando-se em modulações que terminavam quase sempre em suspiros. Mesmo insen-sível, abriu o livro que dizia:

Cuidado com o que vai ler e beber após revirar minhas notórias páginas. Ao mundo e à humanidade, com apreço, apresento: Médico de homens e

de Almas, 1158 – Michel Vitório Del Santo – Viena – Áustria.

Coçou a barba cerrada e macia, revirou o livro tentando entender algu-mas de suas fórmulas, leu alguns trechos com murmúrios e, com o olhar afogado em tédio, riu dos homens que acreditam em fórmulas mirabolantes para amenizar seus males. Desviou seu pensamento para as colheitas. Tinha de levantar cedo. Após acender a lareira, arrumou dois travesseiros feitos de paina (algo que lembra algodão) debaixo de sua cabeça e, miseravelmente cansado, deixou que o livro caísse entre o tapete e a porta de entrada.

O futuro da imensa propriedade dependia desse homem jovem e vistoso, que caminhava a passos lentos e sempre se dirigia a quem quer que fosse com benevolência e humildade. Coisa incompreensível para um nobre dessa

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época. Esse era o Visconde Beltran, homem de poucas palavras, que desafiava os costumes dessa sociedade hipócrita e ignorava as grandes fortunas. Fazia festas em prol dos necessitados, apesar de ninguém saber de suas intimidades.

Quando o galo cantasse, já estaria de pé junto à criadagem para tomar o café da manhã.

O dia amanhecera elegante. Antes mesmo que pudesse pegar uma peça de roupa no armário, tomou o livro nas mãos e ajeitou suas folhas para depositá-lo na cabeceira da cama. Em uma folha de papel escorregou a caneta-tinteiro em mal traçadas linhas direcionando todo seu amor à sua filha. Nesta manhã não iria acordá-la. Sua criança precisaria dormir mais um pouco para se recuperar do cansaço. Permaneceu de pé em frente à janela do quarto que dava para o pomar, colocou o chapéu com elegância e desceu pela cozinha, onde pegou uma fatia de queijo. Sempre usava botas bem fortes. Partiu a lenha e acendeu o fogo com um pouco do carvão que restara do dia anterior. Foi até a cocheira, conversou um pouco com Alfred, alisou um potro vindo da Inglaterra e, distraidamente, jogou algumas miga-lhas de pão aos pavões de sua propriedade. Tinha orgulho em ver tudo no seu devido lugar e estava feliz consigo mesmo.

Deu algumas ordens, insuflou as narinas para sentir melhor o perfume do limoeiro cheio de orvalho da madrugada e voltou à cozinha fazendo confidências a si mesmo. A carruagem o esperava, mas, hoje, não veria sua amante; iria ter-se com seu primo, Jérôme Nicolas, num aconchegante café no centro de Paris. O pobre acabara de voltar da África após uma longa viagem de navio, na qual fizera fortuna e muitos amigos, apesar de ter adquirido um mal-estar, uma doença que lhe deixara abatido e sem forças. Deveria estar cansado e só George sabia de sua convalescência. Ficou pálido enquanto apreciava o pão de centeio bem quentinho saído do forno a lenha, pensando que seu melhor amigo de infância poderia morrer em sua pro-priedade ainda tão jovem. Mas isso não iria acontecer; logo os dois estariam caçando raposas e veados.

Enfastiou-se dessa ideia e, com tristeza no coração e rugas na testa, virou uma xícara de chá ainda virgem. Quase confessando seus dissabores pela vida, disse um até breve a seis criados e partiu.

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Enquanto sua carruagem era guiada por dois cavalos a trotes longos, em pensamento apreciava a ingenuidade de sua filha Albertine. Como queria que ela fosse feliz e mantivesse seus sentimentos simples como seu vestido branco suspenso por um cinto de couro claro. Teria de manter o “doente” longe dela, mesmo que derramasse algumas lágrimas. Tinha medo que fosse algo contagioso.

Albertine se espreguiçou, rolou para o lado, manteve-se imóvel com os pezinhos bem aconchegados embaixo do cobertor, mas teve de se levantar porque um raio de sol adentrou no quarto ofuscando seus olhos. Ainda era bem cedo, talvez encontrasse seu pai deitado.

Deslizou seu corpo de donzela pelos corredores do casarão e bateu à porta; duas vezes e nada... Resolveu entrar. O abajur ainda se encontrava aceso e um dos lampiões irradiava uma luz fraca. Cama arrumada, janelas semiabertas. Certamente, seu pai já estaria percorrendo a propriedade após ter tomado café junto aos criados. Com seus grandes olhos azul-claros, caminhou até a poltrona que um dia fora de sua mãe. Com as mãos trêmulas começou a ler:

Querida filha, não quis acordá-la ainda bem cedo, pois um parente me

espera ansioso em Paris.

Já devo ter-lhe falado a respeito do primo em outra ocasião. É um jovem

belo, culto e ainda cheio de vida, mas veio descansar sua ansiedade e se recu-

perar de uma moléstia adquirida nas profundezas do continente africano

quando fazia fortuna.

Peço que lhe trate com apreço, mas que fique longe de seus galanteios.

Seu nome é Jérôme Nicolas.

Ficará conosco até o final da primavera no segundo andar, onde a sau-

dade e as músicas tocadas por sua mãe ao piano repousam em paz.

Faltaram-me palavras, ocasião e coragem para lhe comunicar dessa visita

imprevista.

Não me tenha como um suspeito, é que eu mesmo estou com um nó na

garganta. Quero que saiba que nossa viagem aos chalés suíços está de pé, já

comprei seus trajes de inverno.

Um abraço de seu pai amoroso. À filha mais adorada do mundo!

Visconde George Beltran

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Diante de tal notícia, Albertine sorriu de satisfação. Iria conhecer um primo seu, mesmo que fosse de segundo grau. Além de seu pai, não tinha mais ninguém na vida e tinha medo de perdê-lo. A inteligência humana nessa época era pequena e a aristocracia teria satisfação em tomar-lhe tudo caso seu pai morresse. Ficou um pouco angustiada, aflita, cheia de pensa-mentos impossíveis. Ela era bela e graciosa, mas como será que esse parente a veria? Não era mais uma criança como seu pai a tratava. Não que tivesse vergonha disso, mas queria ser vista e desejada como uma mulher. Dentro de um ou dois anos, estaria pronta para se casar e viver longe desse lugar que tanto amava. Hoje não sairia de seu quarto para se aprontar. De volta aos seus aposentos, jogou seus vestidos em cima da cama, tomou seu melhor chapéu e em duas horas todo seu traje estava preparado.

Alguém bateu à porta...– Sinhá, as horas se passaram e a senhorita não comeu nada até agora.

Desse jeito, vai ficar tísica. Se quiser, posso trazer o almoço.– Obrigada, Joana. Foi bom que se lembrou de mim, minha barriga já

está roncando! Se não for incômodo, traga-me um bocado daquele suco de amora e algumas tortinhas de centeio.

– Perfeitamente, minha criança. Só um minuto.Albertine herdara da mãe preciosos dotes físicos, mas estes ainda tinham

de ser lapidados. Arranjou os cabelos louros e ondulados, lavou os olhos com pétalas de rosas e pensou nas mulheres elegantes que frequentavam sua casa nos dias de festa. Mesmo tendo antipatia por muitas, tinha de se parecer com elas – mesmo que fosse só hoje. Estava surpresa consigo mesma, pois era capaz de beber, conversar e se divertir como todos os presentes. Isto era apenas uma parte dos sonhos maus que temos na vida, e logo iria passar. Seu Universo era outro.

A criada entrou com uma grande bandeja de prata nas mãos, cheia de frutas, bolos, o tal suco de amora e as tortinhas de centeio.

– Pode deixar em cima da mesa de estudos, minha adorada. Estou um pouco indisposta hoje e passarei o dia lendo algum romance.

– Tudo bem, Sinhá, mas não se demore no vestíbulo. Coma também um pouco do arroz com faisão, está divino.

Suas mãos suavam e ofereciam resistência para terminar de escolher seus sapatos. Estava graciosa como nunca e não precisava se preocupar. Tentou

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ler algo, tentou dormir um pouco, e nada. A tarde já caía enquanto seu pai brincava com uma bengala cravejada de diamantes na presença de Jérôme. O rapaz era inteligente e gentil; tinha olhos negros e sorriso doce, apesar da tosse que acompanhava. Uma garrafa de vinho Bordeaux e algumas amostras de espiritualidade faziam daquele encontro uma esperança para quem estava um pouco abatido. Paris, apesar de toda sua insalubridade nessa época (final do século XVII), era um consolo aos desesperados – e, claro, um nobre e rico rapaz não faria parte desse abismo.

Uma jovem bonita e elegante adentrou o café, conhecida por Camile San Ruan, cujo nome fora repetido por todos que estavam presentes. Jérôme nem se importou com tamanha beldade e permaneceu em seu interior terminando o último gole de vinho. Ele era diferente, e um ver-dadeiro cavalheiro!

– Sinto que está com o corpo em pedaços, meu caro primo – disse George. O rapaz retirou um relógio liso do bolso, olhou para as horas como um homem que está atrasado para um encontro e se levantou. – Podemos ir, se for de sua vontade!

Tirou um lenço manchado de sangue do bolso sem deixar transparecer que estava angustiado, deslizou-o com cuidado pelos lábios e lá se foram direto para a mansão do Visconde.

A carruagem levaria ao encontro de Albertine uma surpresa da qual ela nunca mais esqueceria.

A criadagem esperava na porta do palácio enquanto Jérôme Nicolas ajeitava o colete e a gravata-borboleta. Todos estavam diante de um homem cuja elegância e distinção faziam que se parecesse com um príncipe.

Enquanto sua bagagem era descida, Nicolas cumprimentava um a um os criados. Sabia que neste mundo as pequenas coisas tornam-se grandes: um gesto e um bom tom de voz fazem muitos amigos. Tinha passado por maus caminhos até conseguir sua fortuna, mas queria esquecer-se desse tempo em que teve de enfrentar muitos homens com violência.

– Entre, primo. Antes que suba ao seu quarto, quero que conheça Albertine, de quem tanto lhe falei. Você está aí, minha princesa! Esse é nosso primo Jérôme, homem de negócios, um jovem rapaz que vai impor à socie-dade de Paris por sua fortuna.

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O rapaz ficou singularmente mortificado com tamanha beleza. Sua aten-ção, agora, dedicava-se inteiramente a desvendar seu objeto de curiosidade.

O coração de Albertine palpitou quando seu primo lhe pegou a mão pela ponta dos dedos e beijou-a com carinho.

– Encantado, senhorita!Os lábios da jovem foram tomados por um sorriso ao ouvir o gracejo,

enquanto ela deslizava seu corpo um pouco para frente, ajeitando os cabe-los. As mãos se entrelaçaram, os olhos se desviaram por dois segundos para depois se encontrarem. A jovem continha-se para não correr, enquanto Nicolas conservava-se de pé, mordendo os lábios discretamente. Os olhares insaciáveis; era o começo de uma paixão avassaladora. Teriam de conviver juntos por algum tempo, e tudo estava perdido.

Esse era um momento tão bom na vida de uma adolescente. Ao longo de nosso caminho, perdemos a capacidade de nos admirarmos com as coi-sas belas do mundo. Com isso, perdemos algo essencial, que nos diz que a vida é um grande enigma maravilhoso e que vale a pena ser vivido. E já experimentamos isso muito antes de aprendermos a pensar. Viver as paixões intensamente é amadurecer nossa Alma.

Um criado acendeu um lampião enquanto Joana colocava os castiçais sobre a mesa.

O cavalheiro estendeu o braço e Albertine agradeceu com uma leve incli-nação de cabeça, enquanto ambos caminhavam para o jantar. Conversaram um pouco sobre a África, suas andanças pelo mundo e suas oportunidades; nenhum amor, nenhuma paixão secreta. Ele baixou o olhar para ela; ela ergueu o olhar para ele, cheia de languidez, até que parou. O Visconde, percebendo o que estava acontecendo entre os dois, arrebatou-a, um pouco ofegante, tentando conduzi-la a seu quarto. Conversaram ainda por algum tempo e despediram-se com um forte abraço. Esse Anjo de Luz mudaria sua vida para sempre.

Como somos felizes ao lado de seres iluminados. Às vezes ficamos tris-tes, um pouco eufóricos, mas sem eles não vivemos.

George pôs um xadrez para terminar a noite, mas seu primo preferiu apoiar-se no corrimão da escada e, com suspiros, subir até seu quarto. Estava cansado, cheio de planos para o futuro, e sentiu um alívio logo que sentou

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na cama e descalçou as botas. Refrescou as pálpebras com um lenço molhado enquanto todos os habitantes do palácio já estavam dormindo. Tinha che-gado às alturas com seus sentimentos, e dormira pensando em Albertine.

Perto da metade da noite acordou em silêncio, olhos fixos na lonjura do infinito. Avançou com dificuldade, arrastando-se sobre os joelhos até o quarto de sua prima. Acomodou-se o melhor que pôde ao lado da cama e atravessou as próximas horas da madrugada examinando aquela mulher que mexera com sua Alma. Antes que pudesse tocar seus cabelos, a jovem acor-dou, assim que o primeiro raio de sol clareou a manhã. Um grito...

– Psiu... Não quero machucá-la, minha doce criatura, apenas estou velando seu sono. Você estava dormindo tão tranquila que perdi a hora sentado ao seu lado.

Em silêncio, Albertine observava o jovem rapaz apertando sua mão.– Você não deveria estar descansando?– Tenho muito tempo para descansar... toda a eternidade. Gastei anos

da minha vida para lhe encontrar, e agora ninguém me tirará do seu lado. – Mas você deve descansar!– Vejo que se interessa por minha saúde, mas fico melhor ao seu lado. Uma leve tosse... O coração saltava de alegria no peito de Jérôme. O

jovem estava parado, inerte, sem nem prestar atenção no mundo ao seu redor. Observava com imensa satisfação um mundo muito mais real: o seu próprio, onde a paixão e o início de um grande amor espalhavam-se pela aura de sua Alma. Mesmo doente, sentia-se remoçado em vários anos. Por algum tempo ficou sentado, em devoto silêncio, observando em profundas inspirações o ar impregnado pelo perfume da donzela. Cheiro miserável de bom tinha essa mulher!

– Não fique envergonhada com minha presença, prometo que saberei respeitar seus limites.

Albertine mostrou-se sensível à conquista. Em seguida, tentou desviar os olhares, pois ficava demasiadamente visível que estava iludida, enamo-rada talvez, com o primo.

– Agora volte para seu quarto, não quero que meu pai o veja aqui. Rindo com uma aparência renovada, Jérôme deu dois passos para trás e

partiu deixando um beijo no ar.

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As belas formas, aquele falar delicado, aquela mulher tão nobre, faziam brotar essa paixão provável e natural nesse jovem e belo rapaz.

Nos dias que se seguiram eles passearam pelos jardins, frequentaram as igrejas de Paris, cavalgaram pelos arredores da propriedade, ordenharam o gado. Com isso, a paixão se tornou mais ardente e ambiciosa e nada conse-guia separá-los mais. As mãos se tocavam levemente desviando-se ao menor sinal de perigo. Sorriam e viravam suas cabeças onde o vento leve e persis-tente da primavera acelerava seus corações.

Ela estava tão embriagada de felicidade. Amar pela primeira vez pare-cia uma loucura, uma náusea que perturbava sua Alma. Experimentaram a carruagem de George entre mil carícias e promessas. Com gestos adorá-veis, Nicolas consolava Albertine desviando de sua mente as lembranças de quando sua mãe era viva. Ele era perfeito; elegante, jovem, rico – e seria para a vida inteira.

De pensamento em pensamento, mesmo durante as refeições, os laços de afeições uniam esses dois, que foram feitos um para o outro. Dizia num sussurro que a amava, que viveriam juntos como marido e mulher, até seus últimos dias, e que jamais a deixaria.

Ela ficou cada vez mais lúcida e saboreava os dias e as noites, escon-dendo-se do sol em suas caminhadas pela manhã ao lado de uma bela som-brinha, luvas brancas nas mãos, cabelos bem escovados e cheios de cachos nas pontas. Estava viva e mais bela do que nunca; seus olhos estavam bri-lhantes, ilustrados de um azul-turquesa. Aceitava Jérôme como nunca pen-sara aceitar alguém em sua vida pacata e escondida da alegria. Não estava mais presa a hesitações honrosas. Mesmo devota dos preceitos religiosos, um diálogo conciso, absoluto e cheio de paixão entre os dois fazia suas mãos tre-merem e oferecia a seu corpo de criança malformada as emoções e os capri-chos de um jovem que só tinha conhecido algumas mulheres perdidas em seu caminho pelo mundo. Essa moça era uma criação encantadora. Vestida de branco e de cabelos emaranhados por rosas, atordoava o mais bruto dos sentimentos.

O amor-próprio do senhor Beltran estava abalado. Precisava visualizar toda essa situação que, para ele, era puro constrangimento, apesar de consi-derar como a um irmão seu primo.

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Não podia ser insensível a essa paixão entre sua filha e o rapaz, mas seu impulso natural de pai julgava digno de desviar o caminho dos dois, pelo menos por enquanto.

George tentava distrair o primo com jogos de cartas e na mesa de bilhar, mas bem cedo o rapaz se dirigia ao quarto e... Estava sendo até impertinente, mas sua precaução era para proteger Albertine dos olhares e dos assédios que a levariam a pecar mortalmente contra a alta sociedade parisiense.

Jérôme Nicolas, ultimamente, andava mais cansado e a febre alta perdu-rava por várias horas do dia. Lavava sua roupa em banhos de rio longe das criadas, e quando vomitava algum raio de sangue na presença de Albertine, dizia estar desgastado pelo vinho. Para ela, jovem e ingênua, era perfeita-mente compreensível não perceber que a saúde de seu amado definhava dia após dia. Involuntariamente, ambos se sentiam atraídos cada vez mais, dese-javam-se mais, e suas fraquezas terminavam num grande amor. Reconheciam entre quatro paredes suas afinidades, suas vidas unidas, os mais puros toques, semblantes vislumbrados pela euforia da paixão. Desesperado, George per-dia-se em suas reflexões, seus olhos atentos a qualquer surpresa. Até que...

– Minha querida criança, o que está acontecendo com você?Ela, imensamente surpresa com a pergunta do pai, sentiu um repentino

abandono, porque julgava inexplicável essa audácia que poderia ser punida pela sociedade. Mas a dor que é amar fazia dela única e quase sorrindo por dentro, sem motivos.

O Visconde ficou desesperado e, com súbita frieza que contrariava sua fina educação, subiu até o quarto de seu primo, prometendo que partiria hoje mesmo.

– Não, pai, não seja tolo. Desculpe-me! Eu o amo e irei protegê-lo se não souber se comportar. Se suprimir essa paixão, estará suprimindo Deus. A paixão que sinto por Jérôme é Deus querendo dizer que está realizado e que não precisa de mais nada.

– Albertine, você está pensando unicamente em seus sentimentos. E quanto a nós e a nossa vida?

– Pai, estou convencida de que irei amá-lo para sempre e em breve ire-mos nos casar! Desde que mamãe partiu nunca fui tão feliz, e não posso ser punida por isso.

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R. P. BERTELLI

– Pense nas consequências, minha querida. – Um cansaço repentino, uma náusea e...

– Pai, o senhor não está se sentindo bem? Olhe para suas mãos. Não vai me dizer que anda bebendo tanto vinho quanto Jérôme.

Tirou o lenço de seda do bolso, limpou com cuidado as mãos e entrou no quarto de seu primo calmamente. Permaneceu ali sentado num canto, absorto, enquanto seus olhos percorriam seu corpo emagrecido, a face pálida e fugaz de Nicolas. Não podia ser, estava perdido. E o que seria de Albertine? Era tarde demais para corrigir esse grande erro, mas sabia que ambos esta-vam condenados à morte pela mesma causa: aquela doença que leva muitos anos de nossas vidas e que nos deixa abandonados, lutando sozinhos. Suas suspeitas se concretizavam, e George entrou em desespero. Passaria o resto dos seus dias ali, trancado, até que...

– Filha, de início, todos acharão estranho a minha ausência. Quero que diga que estou doente, mas que muito em breve voltarei de Londres.

– Mas, pai, o que está acontecendo?– Confie em mim, querida, tudo vai dar certo!– Se o senhor deixar nossa casa, será minha desgraça!Uma tontura, um tremor...Fique tranquila, Carlos zelará por sua segurança. – Esse homem, de olhar

severo e de poucas palavras, era um bom capataz e guardaria Albertine com sua própria vida. – Antes que eu e seu primo partamos, quero que fique com o livro que se encontra em meu quarto. Se algo de ruim lhe acontecer, leve-o, pois um dia alguém poderá ajudá-la. No fundo do guarda-roupa você encon-trará bastante dinheiro e algumas joias que lhe darão um sustento confortável por cerca de três anos. Agora vá e nos deixe sozinhos, precisamos conversar.

Albertine refugiou-se em seu quarto. Passou o resto do dia triste e quase sem vida sobre sua cama.

De madrugada, após algumas ordens do Visconde à criadagem, George e Jérôme fugiram no lombo de dois cavalos temendo que sua presença naquele local causasse futuramente a morte de Albertine e dos outros. A tísica era uma doença incurável na época e atingia desde qualquer miserável até o mais nobre dos homens. Infelizmente, nem milhares de francos tra-riam a vida dos dois, que se esvanecia um dia após o outro.

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O Guardião de Homens e de Almas

Morreriam sem remorso, à beira de algum rio ou lago, de frio e fome – ou, quem sabe, tivessem sorte e encontrassem um local digno para descansar seus miseráveis corpos até que o dia de sua morte chegasse. Do fundo de suas misérias, o que restou foi o brilho das estrelas, um último olhar para aquela propriedade que fora tão brilhante em suas vidas na infância. E, como uma criança, pediram perdão a Deus e clemência por suas Almas, sem saber se teriam forças para fazê-lo em poucas horas. Após um latido do cão de guarda, lágrimas no momento da partida e adeus aos ruídos bons e festivos que sempre chegaram a seus ouvidos.

Essa é a última lembrança do passado que esses dois nobres experimen-taram antes de rolarem em algum local próximo ao céu.

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