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XV CISO Encontro Norte e Nordeste de Ciências Sociais Pré Alas Brasil 04 a 07 de setembro de 2012 UFPI TERESINA (PI) GT 10 Relações entre gênero e entre gerações O impacto das aposentadorias rurais nas relações geracionais e de gênero no interior do Nordeste Andréa Monteiro da Costa Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Campus de Campina Grande (PB) [email protected] Edmilson Lopes Júnior Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) [email protected]

O impacto das aposentadorias rurais nas relações ... · de as trabalhadoras rurais passarem a ter direito à aposentadoria por idade, a partir dos 55 anos de idade, mesmo que o

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XV CISO Encontro Norte e Nordeste de Ciências Sociais – Pré Alas Brasil 04 a 07 de setembro de 2012

UFPI – TERESINA (PI)

GT 10 – Relações entre gênero e entre gerações

O impacto das aposentadorias rurais nas relações

geracionais e de gênero no interior do Nordeste

Andréa Monteiro da Costa Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – Campus de Campina

Grande (PB) [email protected]

Edmilson Lopes Júnior

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

[email protected]

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INTRODUÇÃO

As leis 8.212 (Plano de Custeio) e 8.213 (Plano de Benefícios), de 1991,

complementações à Constituição de 1988, efetivaram o acesso de idosos e

inválidos de ambos os sexos ligados às atividades rurais à previdência, em

regime especial, no valor de 1 (hum) salário mínimo. Além de a idade da

aposentadoria dos homens ter sido reduzida de 65 para 60, as mulheres

trabalhadoras rurais, independente de o cônjuge ser beneficiário ou não,

passaram a ter direito a essa aposentadoria. Essa redefinição positiva do

sistema previdenciário brasileiro, no início dos anos noventa, implicou em

mudanças substanciais na vida econômica de municípios de regiões que

historicamente apresentam baixos indicadores econômicos e sociais. Realce-

se que já se dispõe, sobre esse tópico, de algumas pesquisas, especialmente

estudos de caso, que procuram dar conta dos significados da expansão rural

do sistema previdenciário brasileiro. Tais estudos ainda são, no geral, restritos

ao universo disciplinar da economia. Esse o caso do instigante estudo

desenvolvido por Schwarzer (2000).

A análise da redefinição das relações sociais, destacando-se aí tanto

novas prováveis “geometrias do poder” (TAHER, 2001) entre os gêneros e

gerações, quanto novas práticas culturais, tem ficado ao largo nos estudos

sobre essa questão. No que diz respeito à dimensão de gênero, por exemplo,

os poucos trabalhos que intentam perscrutá-la o têm feito sob uma ótica

narrativa macroestrutural, a qual inviabiliza a apreensão dos mecanismos de

funcionamento dos novos fenômenos impulsionados por essa nova realidade

previdenciária. Mais precisamente, os “motivos e razões dos agentes para o

que fazem.” (GIDDENS, 2003, p. 213).

O presente trabalho, resultado parcial de uma pesquisa ainda em

desenvolvimento, busca incidir sobre a realidade da previdência social rural no

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interior do Nordeste objetivando apreender tanto as redefinições das relações

entre as gerações quanto as relações de gênero. Mais concretamente, busca-

se responder à seguinte questão: Quais as mudanças na geometria do poder,

no que diz respeito às relações entre gerações e de gênero, impulsionadas

pelas novas paisagens da previdência social rural no semiárido nordestino?

A nossa pesquisa procura indicar pistas que nos levam senão a uma

resposta, pelo menos a repostas possíveis para a questão acima formulada.

Para uma melhor compreensão de nosso exercício analítico, faz-se

necessário indicar, mesmo que de forma panorâmica alguns elementos

constitutivos da expansão da previdência social rural no Nordeste do Brasil. É

o que faremos logo após a apresentação, abaixo, do itinerário metodológico

de nossa empreitada de investigação sociológica. Mais adiante, os achados

iniciais e os apontamentos para a sua compreensão.

II. PERCURSOS E RECURSOS METODOLÓGICOS

Realizamos entrevistas abertas e semiestruturadas com trabalhadores e

trabalhadoras rurais aposentadas, familiares de aposentados, pequenos

comerciantes, dirigentes sindicais e trabalhadores sociais de municípios

situados em duas regiões distintas, mas encravadas ambas no semiárido do

Rio Grande do Norte: “Sertão Central” e “Alto Oeste” (ou “Tromba do

Elefante”, como a região é mais popularmente conhecida). Na primeira, as

entrevistas foram feitas nos municípios de Lages, Angicos, Florânia e Tenente

Laurentino; na segunda, em Pau dos Ferros e São Miguel. No total, foram

realizadas, até o momento, 52 entrevistas distribuídas da seguinte forma: 30

de aposentados e aposentadas rurais, 13 de familiares (filhos, filhas e netos),

06 de pequenos comerciantes, 04 de gestores públicos, 02 com assistentes

sociais e 01 psicóloga.

Reconstituímos, com dois de nossos informantes (aposentados rurais

de ambos os sexos), histórias de vida de trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Esse recurso metodológico foi mobilizado com o objetivo de aportar elementos

que nos levassem a dimensionar o significado da ampliação da previdência

social rural na vida das pessoas do semiárido.

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De forma complementar, com alguns de nossos entrevistados, aqueles

e aquelas com os quais conseguimos estabelecer laços mais fortes,

realizamos uma bateria de questionamentos específicos sobre as redes de

relações nas quais estão imersos. Esses dados, em verdade, ainda estão

sendo lapidados. Para seguir essa trilha metodológica, estamos mobilizando

dois softwares de análises de redes: o EGONET e o UCINET.

Concomitante a essas atividades, efetuamos um trabalho de

observação sistemática de feiras e pequenos mercadinhos em distritos e

sedes dos municípios nos quais desenvolvemos a pesquisa. Esse trabalho

nos forneceu importantes chaves de entendimento das transações de

mercado nas quais os aposentados e aposentadas rurais se encontram

inseridos no interior do Nordeste.

A interpretação dos dados (que ainda não foi completada) não foi

uniforme. As entrevistas foram analisadas de duas formas: individualmente,

cotejando os discursos emitidos com as posições sociais dos agentes

emissores; e, tomando-as como um corpo único, um corpus. Essa escolha

possibilitou uma melhor apreensão dos elementos recorrentes nas falas dos

agentes.

Para uma interpretação mais ágil desse corpus, servimo-nos do

software Atlas.ti. Trata-se de um CAQDAS (Computer-aided qualitative data

analysis software), uma ferramenta importante para o desenvolvimento de

análises qualitativas. É um instrumento especialmente indicado para trabalhos

interpretativos que assumam o desafio de construir uma interpretação dos

sentidos atribuídos pelos agentes aos processos sociais nos quais se

encontram inseridos. Obviamente, esse recurso potencializa a análise, mas

também implica em perdas, o que se pode depreender da observação abaixo:

Segundo Barry (1998), o uso de programas para análise de dados qualitativos apresenta dois aspectos dicotômicos: por um lado, temos as vantagens que se expressam através da economia de tempo e de custos, a possibilidade de explorar de forma acurada o relacionamento entre os dados e, por outro, as vantagens em termos de uma estrutura formal que auxilia na construção conceitual e teórica dos dados. Entretanto, são apontadas algumas dificuldades em relação ao uso desses programas. Ocorreria um distanciamento entre pesquisadores e dados; dados qualitativos passariam a ser analisados de forma quantitativa e, por fim, ocasionariam uma homogeneidade entre os métodos de análise de dados, inibindo a criatividade do pesquisador. (TEIXEIRA & BEKER, 2001,on line).

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A parte isso, vale a pena ressaltar que a mobilização do Atlas.ti

possibilitou-nos uma leitura mais geral dos processos sociais potencializados

pela ampliação da previdência social rural no interior do Nordeste. Para dar

sentido ao nosso trabalho, identificamos no corpus o que denominamos de

“categorias intuitivas de análise”. Essas categorias possibilitaram uma primeira

aproximação com o rico universo de significados contidos no corpus. Em um

segundo momento, essas categorias, reavaliadas a luz de nosso referencial

teórico, foram reagrupas nas categorias analíticas centrais de nosso trabalho.

III. A AMPLIAÇÃO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL RURAL: ELEMENTOS PARA A SUA COMPREENSÃO

A incorporação seletiva de categorias de trabalhadores no universo dos

direitos trabalhistas foi um dos resultados do que poderíamos denominar, com

muita generosidade, de “estado de bem-estar social brasileiro”. Como é

sabido, e abordado em vasta literatura histórica e sociológica, o “pacto social”

subjacente a essa incorporação dos trabalhadores, realizado sob os auspícios

da ditadura do “Estado Novo”, na segunda metade da década de 1930,

implicava no reconhecimento de direitos trabalhistas (e de organização

sindical corporativa) apenas para os trabalhadores urbanos. Os trabalhadores

rurais, até o início da década de 1950, socialmente identificados como os

“homens do campo” ou “rurícolas” não foram reconhecidos como sujeitos de

direitos e, menos ainda, como sujeitos políticos.

Esses trabalhadores, em que pesem as inúmeras revoltas cuja base

social que tivemos na nossa história terem tido sempre uma forte base

camponesa, somente adentram a cena político nacional como sujeitos nas

décadas de 1950 e 1960. Não por acaso, a organização sindical dos

trabalhadores rurais emerge quase concomitantemente com as “ligas

camponesas”. No agenciamento desses trabalhadores, a Igreja Católica (ou,

para sermos mais precisos, parte desta) e o Partido Comunista Brasileiro.

Nesse agenciamento, a ampliação da previdência social para os

trabalhadores rurais é tematizada, dado que essa era uma bandeira de luta

com grande apoio. Paradoxalmente, não será uma revolução, mas, sim, uma

“contra-revolução”, no caso o Golpe de 1964, que, através do “Estatuto do

Trabalhador Rural”, abrirá a possibilidade de alguma seguridade social para

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os trabalhadores do campo. Possibilidade, não efetividade, pois, quando

implementada, em 1971, a aposentadoria do trabalhador rural, excluída o

percentual estatisticamente residual daqueles que conquistavam o direito pela

contribuição (realidade que continua até os dias atuais), apenas os

trabalhadores (do sexo masculino, fique claro!) com mais de 70 anos de idade

ou aqueles que conseguiam o reconhecimento médico oficial de sua invalidez

tinham direito a proventos mensais de ½ salário mínimo.

Será apenas na Constituição de 1988, desdobrada nas leis citadas na

abertura do presente trabalho, que os trabalhadores rurais, de ambos os

sexos, adentrarão no mundo dos sujeitos de direito previdenciário.

Inegavelmente, tratou-se de um grande avanço. Basta lembrarmos que, além

de as trabalhadoras rurais passarem a ter direito à aposentadoria por idade, a

partir dos 55 anos de idade, mesmo que o cônjuge já receba aposentadoria e

já recebam auxílio previdenciário em consequência de morte do companheiro.

A redução da idade da aposentadoria dos homens para 60 anos foi outra

mudança significativa introduzida por essa legislação.

No que diz respeito ao seu significado político, essa legislação tem

como substrato uma concepção ampliada de cidadania. Brumer (2002) captou

essa mudança:

A legislação de 1988 continua o processo iniciado com a criação do PRORURAL, em 1971, de adoção da noção de cidadania em termos amplos (contrapondo-se à ideia de cidadania regulada, expressão proposta por Santos, 1979), através da qual todos têm direitos, independentemente de contribuição. Neste sentido, pode-se falar em seguridade social e não apenas em previdência social. (BRUMER, 2002, p. 58)

Os números traduzem essa redefinição da paisagem da previdência

social provocada pela Constituição de 1988:

Os aposentados com residência na zona rural passaram de 3.339.122 em 1992 para 5.032.034 em 1999 (acréscimo de 50,7% nestes sete anos), segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). E o maior crescimento foi de aposentados que receberam um salário mínimo de rendimento de aposentadoria. Eles aumentaram de 1.463.854 em 1992 para 4.741.830 em 1999, com aumento de 223,9% nestes mesmos sete anos. (KRETER & BACHA, 2006, pp. 474-475).

Números não oficiais indicam que o total de aposentados rurais em

2012 seja da ordem dos 8,5 milhões, dado que indica um crescimento de mais

de 100% de beneficiários em uma década. Vale a pena destacar, para realçar

o alcance dos impactos dessas aposentadorias, que os benefícios

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previdenciários rurais tendem, no que diz respeito ao gênero, serem mais

igualitários do que os urbanos, conforme aponta um documento oficial:

O valor médio dos benefícios urbanos concedidos a pessoas do sexo masculino (R$ 947,27) é 25,05% maior que o do sexo feminino (R$ 757,73). Na clientela rural esta situação se mostrou mais equilibrada, uma vez que a diferença foi de apenas

0,07% (R$ 510,25 e R$ 509,90). (ANUÁRIO ESTATÍSTICO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL 2010, p. 20).

O diferencial no que diz respeito ao gênero é acentuado quando

levamos em conta o conjunto dos benefícios concedidos (o que inclui pensões

por invalidez ou morte ou acidentes de cônjuges). É o que fica explicitado no

gráfico abaixo, reproduzido do ANUÁRIO mais acima mencionado, a respeito

da distribuição dos benefícios previdenciários concedidos por faixa etária em

2010.

Gráfico 01: Distribuição de benefícios por clientela e faixa etária em 2010.

Fonte: Anuário Estatístico da Previdência Social 2010.

Mais acima apontamos o fato de que as aposentadorias rurais brasileiras expressam,

no que diz respeito aos rendimentos, um equilíbrio de gênero. O gráfico 01 traz um conjunto

de dados significativos e que merece ser ressalvado, levando-se em conta os nossos objetivos

no presente trabalho: a) no total, em 2010, as trabalhadoras rurais receberam mais benefícios

previdenciários do que os trabalhadores; b) embora o número de beneficiárias rurais seja

significativamente menor do que aquele das urbanas, as trabalhadoras rurais recebem os seus

benefícios em faixas de idades mais baixas; e c) embora nas duas clientelas o perfil da

distribuição demográfico do país se traduza (com o predomínio, quando a idade avança, das

mulheres), o desequilíbrio entre os rurais é ligeiramente menor do que entre os urbanos.

Os elementos acima destacados são potencializados caso os cruzemos com a variável

regional. Ainda tomando como referência a distribuição de benefícios de 2010, quando os

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dados são regionalmente desagregados encontramos mais pontos que reforçam a importância

dos impactos nas relações entre gêneros e gerações das novas paisagens da previdência social

rural no Nordeste do Brasil. É o que transparece nos quadros seguintes, como o anterior,

reproduzidos de um documento oficial.

Gráfico 03: Benefícios para trabalhadores urbanos segundo a região (2010)

Fonte: Anuário Estatístico da Previdência Social 2010.

Gráfico 04: Benefícios distribuídos para trabalhadores rurais segundo a região (2010).

Fonte: Anuário Estatístico da Previdência Social 2010.

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Os gráficos acima, referentes à distribuição de benefícios durante um

ano, expressam a configuração sócio-espacial da previdência social no país. É

significativo que quase 50% dos benefícios destinados a trabalhadores rurais

ocorram no Nordeste. Dado a configuração de gênero desses benefícios (maior

equidade no valor distribuído), esse é um dado de realidade merecedor de

atenção para quem pretenda prospectar os novos processos sociais que se

desdobram no universo dos pequenos municípios desse vasto território social

denominado precariamente de “interior do Nordeste”.

IV. PREVIDÊNCIA SOCIAL RURAL: IMPACTOS NAS RELAÇÕES ENTRE GERAÇÕES E DE GÊNERO

Como apontamos anteriormente, o Atlas.ti possibilitou-nos construir uma

análise mais detalhada das entrevistas que realizamos. Para operacionalizar a

análise, criamos um corpus analítico constituído pelos discursos dos

informantes. Os conjuntos das entrevistas transcritas formaram “documentos

primários” (primaries documents). Esse material foi a base de nossa “unidade

hermenêutica”1, a qual foi abordada através de um conjunto de categorias

(codes), identificadas no quadro abaixo. Essas categorias codificaram os

documentos, demarcando citações (quotations). Na maioria das vezes, cada

citação era demarcada por mais de uma categoria (“intuitiva”), o que nos

possibilitou identificar as redes de significados subjacentes aos discursos.

Quadro 01: Categorias intuitivas de análise

Categorias Nº de citações

Alimentação 05

Aposentadoria 12

Aprisionamento do cartão 05

Autoestima feminina 04

Comércio 05

Compra 05

Conflito 06

Diferenças de gênero 15

Diferenças na aquisição de produtos

10

Dinheiro 08

Diversão e festa 03

Dominação masculina 05

Economia local 07

1 No Atlas.ti, a “unidade hermenêutica” é um conjunto formado por documentos primários e os seus desdobramentos analíticos (códigos, comentários, citações e redes).

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Empréstimos 17

Endividamento 15

Exploração familiar 24

Mudança social positiva 02

Política social 01

Prostituição 01

Relação entre gerações 20

Religião 01

Respeito 03

Roubos e assaltos 03

Sexualidade 02

Vida familiar 07

Violência 04

A partir desse painel amplo, reagrupamos as “categorias intuitivas”

acima identificadas em categorias analíticas que condensam os contraditórios

processos sociais relacionados à ampliação das aposentadorias rurais. Essas

categorias são: “família”, “financeirização”, “quebra dos laços comunitários”,

“relações de gênero”, “relação entre gêneros”, “transação de mercado” e

“violência”.

Feito tais apresentações, adentremos na interpretação. Nas entrevistas,

assim como nas conversas informais nas feiras dos municípios nos quais

desenvolvemos a pesquisa, as questões relacionadas a relações entre

gerações e de gênero emergiram fortemente. As redefinições positivas da

previdência social rural produzem leituras sociais ambíguas por parte dos

moradores das pequenas e médias cidades do interior do Nordeste. A elevação

da aposentadoria rural ao valor do salário-mínimo e a extensão desse direito às

trabalhadoras rurais, além da diminuição da idade mínima, são aspectos

sempre realçados como positivos pelos nossos informantes. Igualmente

ressaltado é o aumento gradativo do salário-mínimo na última década. Esses

elementos, obviamente apreendidos como positivos, são contrabalançados por

elementos, não diretamente relacionados à redefinição das aposentadorias

rurais, como a erosão da vida familiar tradicional, a monetização das trocas, a

financeirização da economia e a quebra dos laços comunitários.

A apreciação positiva remete às possibilidades de entrada no mercado e

de conquista de um lugar social de destaque na vida familiar. É o que sobressai

tanto nos discursos dos aposentados e das aposentadas quanto naqueles

emitidos por trabalhadores sociais e gestores públicos.

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Antigamente, eu não tinha nada. E hoje? Olha, quando eu recebo meu dinheiro, eu vou resolver meus problemas, comprar algumas coisas... Vou pagar uma conta que devo. De dois meses pra cá, eu nem tenho gastado muito, gasto apenas com doença, vou para o hospital fazer exames, fazer tudo. Terça-feira passada, eu fui para Ceará-Mirim, que tem uma filha que mora lá, pra fazer um exame e quando cheguei lá, me colocaram para fazer uma coleta de sangue e me furaram toda, só em um braço foi furado quatro vezes. Cheguei lá bem cedo e quando sai era meio dia. E tudo foi pago, viu? Se eu não tivesse aposentadoria? Ainda estava esperando que o pessoal lá marcasse a minha consulta. Não, minha filha, com a aposentadoria, posso dizer: eu sou gente!. J.M.S, 56 anos, aposentada rural residente na sede do município de Lajes.

Se não existisse a aposentadoria seria um caos total. A gente que trabalha com famílias em estado de vulnerabilidade social, sabe quanto a pobreza gera conflitos. Essa questão de honrar pai e mãe, aquela ideia de que eu devo ser responsável pela geração que me criou não existe mais... Como não existe mais esse vinculo afetivo familiar, eu acho que o idoso, sem essa renda da aposentadoria, hoje, seria muito mais negligenciado. J.R, trabalhadora social em um dos municípios do Sertão Central.

Os pequenos comerciantes dos municípios pesquisados apontam também a

importância das aposentadorias rurais na dinâmica econômica local:

É a base de toda a economia daqui, viu? As aposentadorias rurais... Virgem Maria! O que dá lucro, pra gente, é a aposentadoria... Os aposentados fazem feira, compram roupas... Se não fosse esse negócio dos empréstimos, a coisa ia bem. F.Z, 43 anos, pequeno comerciante no município de Florânia.

Os “empréstimos”, mencionado pelo entrevistado acima, são os

consignados, realizados pelos aposentados ou seus representantes em

instituições bancárias, através da consignação dos seus benefícios. Essa

modalidade de crédito bancário, aberta pelo Governo Federal na primeira

metade da década passada, implicou, no universo do interior do Nordeste, o

enredamento dos aposentados rurais em um círculo vicioso de endividamento.

Não por acaso, nas entrevistas, conforme podemos perceber no quadro 01,

mais acima, esse é um dos tópicos mais ressaltados.

Os empréstimos consignados e o endividamento de aposentados e

aposentadas se traduzem em dramas individuais e expressam uma nova

fronteira dos conflitos entre as gerações no semiárido nordestino. Isso porque,

conforme podemos apreender nas figuras abaixo, que condensam citações

centrais das entrevistas que nos foram concedidas, essas formas de

financeirização da economia estão interligadas a práticas como a utilização dos

cartões dos aposentados por familiares (ou o aprisionamento desses mesmos

cartões por pequenos comerciantes e agiotas locais), as quais são apreendidas

na “categoria nativa” de exploração familiar.

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O endividamento acelerado dos aposentados rurais é uma realidade que

afeta diversas esferas da vida social do semiárido nordestino. Não apenas

aqueles diretamente envolvidos pagam o preço da violenta incorporação dos

beneficiários da previdência social rural no universo dos créditos consignados.

As economias locais de muitos municípios, constituídas em torno do pequeno

comércio e das feiras, começa a ser negativamente impactada por esse

endividamento. A esse respeito é ilustrativa a avaliação de um pequeno

comerciante de São Miguel, município situado na região Oeste do Rio Grande

do Norte, na chamada “Tromba do Elefante”:

A minha opinião é a de que antes desses empréstimos dos bancos era muito bom: os aposentados compravam mais. Depois desses empréstimos, o dinheiro deles só da para pagar a comida. Para nós do comercio, esta cada vez mais difícil... J. S., 43 anos, pequeno comerciante em São Miguel.

As figuras abaixo apresentam duas das categorias de análises nas quais

condensamos as “categorias intuitivas” com as quais mercamos as citações

destacadas nas entrevistas. Tais categorias expressam redes de significados

que procuram apreender aos contraditórios processos relacionados à absorção

da população rural do interior do Nordeste ao universo das práticas de mercado

Figura 01: Dimensões e processos sociais relacionados à financeirização.

Fonte: Elaboração própria.

CF:Financeirização

Dinheiro {8-0}

Compra {5-0}Endividamento

{15-0}

Exploração familiar

{24-0}

Empréstimos {17-0}

13

Figura 02: Dimensões e processos sociais relacionados à quebra dos laços comunitários

As figuras acima apontam para uma dimensão pouco tematizada

quando se aborda a ampliação da previdência social rural: a sua contribuição

indireta, como efeito não-intencional, para a aceleração da expansão da lógica

da economia de mercado. Uma análise sociológica que rejeite os trejeitos do

politicamente correto, seguindo a trilha aberta por Florestan Fernandes, não

teme estabelecer relações que, a primeira e superficial vista pareceria

contrapor-se conservadoramente à necessária ampliação dos direitos sociais

no Nordeste. Nesse sentido, podemos relacionar a expansão do crédito para os

aposentados rurais como um dos elementos que provoca um curto circuito em

um espaço social onde os laços familiares e comunitários já se encontravam

fortemente abalados no final da década de 1990.

A análise de Bourdieu a respeito do rápido processo de “conversão” dos

camponeses argelinos da Cabília à economia de mercado (Bourdieu, 2004),

acelerado pelos dramas e dilemas sociais relacionados à Guerra da

Independência, é uma referência para se fazer uma analogia com a realidade

que buscamos compreender. Tal como os camponeses da Cabília, os

aposentados e aposentadas rurais do interior do Nordeste viram os seus

ganhos com as aposentadorias crescerem no momento mesmo em que os

seus capitais simbólicos (traduzidos na “honra” e no “respeito” comunitário,

além do afeto dos parentes mais jovens) serem significativamente reduzidos.

Assim, vivem as fraturas oriundas do desajustamento entre o que

poderíamos denominar de “habitus tradicional” e os pré-requisitos necessários

CF:Quebra dos

laços comunitários

Dinheiro {8-0}

Respeito {3-0}

Violência {4-0}

Roubos e assaltos

{3-0}

Economia local

{7-0}

Endividamento

{15-0}

Compra {5-0}

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para a navegação no universo inidividualista da ordem competitiva da

economia de mercado. Os parentes mais jovens, geralmente filhos e netos, que

incorporaram mais cedo e mais fortemente os elementos constitutivos do

habitus do agente econômico que navega no mercado tornam-se a encarnação

de “adversários”. Não é por acaso que, tanto uns quanto outros, ao

verbalizarem esse conflito, que é, em verdade, de “esquemas de percepção do

mundo”, recorram com frequência à categoria de “exploração familiar”.

A afirmação precedente não implica em minimizar os casos de

exploração dos aposentados e aposentadas pelos familiares mais jovens. Essa

é uma apreensão da realidade corroborada por tantos dados empíricos que é

impossível negar a sua importância enquanto elemento impulsionador de

alguns dos mais dramáticos processos sociais que estão a ocorrer no vasto

território do semiárido nordestino. Entretanto, do ponto de vista sociológico, é

significativo que as transações tradutoras da expansão da financeirização no

universo social pesquisado tenham sido frequentemente abordadas ou

relacionadas à “exploração familiar”. A figura abaixo, que retrata uma rede de

categorias intuitivas de análise com as quais tipificamos uma citação, é

reveladora dessa articulação por parte dos entrevistados.

Figura 03: A “exploração familiar” em uma rede de categorias intuitivas de

análise

Fonte: Elaboração própria.

A percepção de uma estreita articulação entre “relação entre gerações” e

“exploração familiar” indica-nos o quanto essa categoria, que é primeiramente uma

Dinheiro {8-0} Endividamento

{15-0}

Exploração familiar

{24-0}

Relação

intergeracional

{20-0}

3:8

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categoria classificatória se encontra enraizada nesse universo social. E são múltiplos

os seus significados. Estes rementem tanto a diminuição da solidariedade intrafamiliar

quanto a uma avaliação comparativa saudosista com um passado não tão distante,

quanto com uma forma de ler os novos arranjos familiares que a destradicionalização

da vida social está produzindo na região.

Obviamente, essa percepção social das relações entre gerações como sendo

modeladas pela exploração familiar não deixa de contar com referentes que a

autorizem. Quando perguntamos a um de nossos entrevistados, pai de quatro filhos e

duas filhas, todos com mais de 25 anos de idade, sendo que uma filha e um filho

residiam consigo juntamente com os filhos destes (netos do entrevistado), “quem

ajudava quem na família”, tivemos como resposta um quadro no qual os avós

(aposentados) figuravam como centrais na rede familiar. A figura abaixo traduz essa

rede:

Figura 04: Rede de ajuda familiar

No que diz respeito às relações de gênero, o dado mais relevante que

sobressai das entrevistas diz respeito à expressão de um “dinheiro” marcado

pelo gênero. Referimo-nos aí ao que Zelizer (2009) denomina de “circuitos

econômicos específicos” ou “moedas singulares”. Com esses termos a autora

se refere ao englobamento das transações de mercado por vieses como o de

gênero. No universo pesquisado, essa situação se traduz, nas casas em que o

casal é formado por aposentados, em duas “moedas” distintas: aquela,

masculina, do provimento da “casa” (algo que diz reafirma o lugar masculina do

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“cabeça” e está relacionada a aquisição de alimentos e a reformas estruturais

da residência) e outra, feminina, que é “o dinheirinho dela” para “ajudar as

meninas” e trazer algumas “coisinhas para casa”. Essa oposição, eufemismo

sob o qual se expressa a oposição binária na qual se assenta a “dominação

masculina” (Bourdieu, 1999) no semiárido nordestino, necessita ser melhor

esmiuçada. Essa é uma tarefa que iremos aprofundar na próxima etapa de

nossa aventura sociológica.

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Paulo: Martins Fontes, 2003.

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