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O IRREDENTISMO NO NORDESTE DEMONSTRADO NO CHAPÉU DO CANGACEIRO André Lucas Silva Santos 1 RESUMO A proposta deste trabalho é analisar o movimento cangaceiro como um movimento irredentista que visava manter a todo custo o seu padrão de existência e reagir diante do coronelismo vigente no sertão nordestino e da concentração de terras. O cangaço é um movimento importante e tipicamente nordestino e um dos principais responsáveis pela identidade regional, tendo como principal personagem Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, chefe do bando que não pode ser considerado, nem heróio nem bandido, mas um resistente. O objetivo é destacar o chapéu do cangaceiro como elemento mais referenciado e icônico, impregnado de um simbolismo marcado de significados, atitudes e valores religiosos. Palavras-chave: irredentismo, cangaço, nordeste, chapéu de couro, patrimônio. IRREDENTISMO BRASILEIRO Para Mingst (2009, p. 316) irredentismo “é a reivindicação de grupos nacionalistas étnicos que desejam assumir o controle político do território que tem relação histórica e étnica com eles, separando-se do Estado original ou tomando territórios de outros Estados”. No Brasil, vários movimentos irredentistas se desenvolveram, como os levantes indígenas, pelos quilombos, além das revoluções liberais, tais movimentos podem ser explicados pelo próprio processo de colonização, já que desde chegada dos portugueses ao Brasil, certos grupos sociais ficaram a margem desse processo. Os primeiros a serem escravizados foram os índios, a partir da constatação dos europeus da inicência e passividade de uma gente que vivia sem lei nem rei, até os movimentos nos quais há uma ruptura da ordem como a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul em 1893, a própria Revolta da Armada, no Rio de Janeiro nesse mesmo ano, além do epísodio do Belo Monte, de Antônio Conselheiro, nos sertões da Bahia em 1897. Segundo Gilberto Freire “raro aquele dos nossos movimentos políticos e cívicos em que não se tenha ocorrido explosões desse furor recalcado ou comprimido em tempos normais” 1 Bacharel em Direito pela Faculdade de Administração e Negócios de Sergipe FANESE e aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe UFS.

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O IRREDENTISMO NO NORDESTE DEMONSTRADO NO CHAPÉU DO

CANGACEIRO

André Lucas Silva Santos1

RESUMO

A proposta deste trabalho é analisar o movimento cangaceiro como um movimento

irredentista que visava manter a todo custo o seu padrão de existência e reagir diante do

coronelismo vigente no sertão nordestino e da concentração de terras. O cangaço é um

movimento importante e tipicamente nordestino e um dos principais responsáveis pela

identidade regional, tendo como principal personagem Virgulino Ferreira da Silva, o

Lampião, chefe do bando que não pode ser considerado, nem heróio nem bandido, mas um

resistente. O objetivo é destacar o chapéu do cangaceiro como elemento mais referenciado e

icônico, impregnado de um simbolismo marcado de significados, atitudes e valores religiosos.

Palavras-chave: irredentismo, cangaço, nordeste, chapéu de couro, patrimônio.

IRREDENTISMO BRASILEIRO

Para Mingst (2009, p. 316) irredentismo “é a reivindicação de grupos nacionalistas

étnicos que desejam assumir o controle político do território que tem relação histórica e étnica

com eles, separando-se do Estado original ou tomando territórios de outros Estados”.

No Brasil, vários movimentos irredentistas se desenvolveram, como os levantes

indígenas, pelos quilombos, além das revoluções liberais, tais movimentos podem ser

explicados pelo próprio processo de colonização, já que desde chegada dos portugueses ao

Brasil, certos grupos sociais ficaram a margem desse processo.

Os primeiros a serem escravizados foram os índios, a partir da constatação dos

europeus da inicência e passividade de uma gente que vivia sem lei nem rei, até os

movimentos nos quais há uma ruptura da ordem como a Revolução Federalista no Rio Grande

do Sul em 1893, a própria Revolta da Armada, no Rio de Janeiro nesse mesmo ano, além do

epísodio do Belo Monte, de Antônio Conselheiro, nos sertões da Bahia em 1897.

Segundo Gilberto Freire “raro aquele dos nossos movimentos políticos e cívicos em

que não se tenha ocorrido explosões desse furor recalcado ou comprimido em tempos

normais”

1 Bacharel em Direito pela Faculdade de Administração e Negócios de Sergipe – FANESE e aluno especial do

Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe – UFS.

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E acrescenta: “tais movimentos resultam de choque cultural desiguais ou antagônicos.

Também são frequentes, entre nós, os relapsos no furor selvagem, ou primitivo, de destruição,

manifestando-se em assassinatos, saques, invasões de fazendas por cangaceiros…”

Em suma, o irredentismo “é um conflito territorial externo, que se delineia porta afora

e não porta adentro” (FONT; RUFÍ, 2006, p. 214). No entanto, esse tema remete a uma

questão complicada de identidades territoriais e da identificação da população com um

território. Trata-se de uma transferência do sentimento de identidade do grupo para o

território.

Assim, comprovou-se a partir da antropologia que atualmente e até em outras épocas

históricas em muitos lugares, o principal elemento de identidade das pesoas era pertencer a

um grupo, a um clã, ou seja, as pessoas se definiam, em relação ao grupo social em que

nasciam, sendo que este grupo social imprimia caráter ao seu território (Nora, 1984).

No entanto, acerca dessa temática Pierre Nora em sua obra, levanta o conceito de

lugares de memória, como mais um evidenciador de toda a simbologia que envolve a

memória e seus respectivos campos de atuação, sendo o patrimônio mais um destes campos:

São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional,

simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência

puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a

imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional,

como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes,

só entra na categoria se for objeto de um ritual. (1984, p. 21)

Dessa forma, compreende-se que o nordestino utiliza-se da memória coletiva de um

povo como tática para confirmar sua identidade regional. Segundo Michel de Certeau

(1990), tais estratégias “são movimentos dos dominados que tem por objetivo oferecer uma

resistência silenciosa ao poder central, revelando a astúcia de se proteger contra as imposições

do sistema”.

O sociólogo Alípio de Sousa Filho entende que:

Sabedoria, táticas, artes de fazer, maneiras de utilizar o sistema e suas imposições

dogmáticas, constituindo resistências ou ao menos “manobras” entre forças

desiguais. Estratagemas dos dominados (...). Maneiras de jogar e fazer de conta

jogar o jogo do outro (do sistema). Não se trata aqui da celebração do fim do

contrato social, do cinismo, mas apontar como, na vida cotidiana, os mais fracos

empreendem seus combates silenciosos e sem propósitos políticos bem aceitos para

virar as regras de um contrato coercitivo favorável apenas aos fortes. (2002, p. 134).

Nesse contexto, o nordestino arroga-se de estratégias para se proteger da dominação

imposta pelo sistema, se utilizando do discursso regional como principal triunfo dando início

ao movimento conhecido por Cangaço.

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CANGAÇO COMO MOVIMENTO IRREDENTISTA

Para compreender como o cangaço, movimento social considerado bem cultural, se

constituiu no nordeste brasileiro é necessário fazer um apanhado histórico.

O Brasil passava por um período de transição, a chamada Revolução de 1930,

movimento das oligarquias que não se beneficiavam da política do café-com-leite.

Posteriormente, em 1935, houve o levante comunista, que tinha como líder Carlos Prestes,

que visava retirar Getúlio Vargas do poder e implantar um governo comunista no Brasil, no

entanto a revolta foi reprimida por Vargas que com receio da ameaça comunista implementou

o Estado Novo em 1937, efetivando a Ditadura Varguista, concentrando todo o poder nas

mãos do presidente.

Foi nesse cenário histórico que surge o movimento cangaceiro que teve repercussão

regional e nacional, já que o banditismo social, chegou a ameaçar a ditadura varguista.

Segundo Dias:

O presidente Getúlio Vargas aumentou o reforço no combate ao cangaço. O

número de volantes crescia, alguns coiteiros foram comprados, outros rastejadores

alugados, investigadores e interventores especializados dedicavam integral

dedicação à erradicação do problema que era considerado um atraso da Pátria. A

ordem do mais alto escalão consistia em eliminar qualquer vestígio relacionado ao

fenômeno, pois que desafiava a honra e o prestígio da Nova República. (DIAS,

2005, p. 29-30).

O movimento cangaceiro teve início por volta de 1870 e seu fim apenas na década de

40. Tal movimento, formado por bandos que se uniam com o objetivo de combater injustiças

sociais. A palavra cangaço, vem de canga uma peça de madeira que prende os bois ao arado,

simbolizando o fato do canagaceiro esta submetido ao dono das terras.

Entre os cangaceiros mais famoso e temido era Virgulino Ferreira da Silva, conhecido

como Lampião extremamente respeitado pelos outros cangaceiros e por toca a população

nordestina.

Nesse período o sertão nordestino se tornou palco de violência, jagunços, a volante e

cangaceiros formaram grupos independentes cada um com usas características. Frexinho

explica:

Não é de se estranhar que aquele complexo quadro de fatores e circunstâncias

gerasse nas populações pobres e marginalizadas dos ser- tões do Nordeste

inquietude e insatisfação generalizadas. A princípio dissimuladas e reprimidas,

em face de falta de perspectivas individuais para situar-se na sociedade rural em

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que o sertanejo deveria integrar- se. No fundo, um verdadeiro bloqueio às

iniciativas criativas, bloqueio que o sertanejo buscou romper por meio de dois

caminhos: a aliena- ção por meio do radicalismo religioso; ou a violência

liderada por che- fes carismáticos [terrorismo de clã] ( 2003, p. 27).

Mello (2010, p. 44), explica:

O cangaço, em raiz de insurgência nômade, grupal e autônoma – é dizer, de chefia

situada dentro do próprio bando – mostra-se tão velho quanto a própria colonização

brasileira, as suas desordens remontando ao período das capitanias, fenômeno de

origem litorânea que é, sem que dispusesse, nesses primórdios junto ao mar, do

nome por que ficaria conhecido e que só viria a receber no sertão, quando para ali

vai sendo enxotado pelo sucesso da colonizaçõ na faixa verde.

Segundo Albuquerque (2011, p. 143-144):

O cangaço vai marcar o Nordeste e o nordestino com o estereótipo da ‘macheza’, da

violência, da valentia, ‘do instituto animal’, do assassino em potencial. Motivo de

orgulho e de vaidade para os setores tradicionais, notadamente para os camponeses

da região, o elogio do cangaço servirá para estigmatizar o homem pobre e vindo do

meio rural do Nordeste, especialmente quando chega nas grandes cidades do Sul.

Estereotipá-los como homens primitivos, bárbaros, alheios à civilização e à

civilidade, que, embora fossem homens comuns, escondiam uma fera pronta a se

revelar, ‘às vezes nem pareciam gente’. O Nordeste seria a terra do sangue, das

arbitrariedades, região da morte gratuita, o reino da bala, do Parabelum e da faca

peixeira.

No entanto, esse movimento possui interpretações antagônicas, já que para os grandes

latifundiários os cangaceiros não passavam de criminosos, contudo a população aplaudia a

atuação do bando, sendo considerados heróis, justiceiros e vingadores, já que tiravam dos

ricos para dar aos pobres. Segundo Mello (2010, p.44) […] “o cangaço sumaria aos olhos dos

brasileiros de hoje, a franja de todos os irredentismos, sua saga confundindo-se com a própria

ideia de resistência contra poderosos. É processo em curso avançado de robinhoodização do

nosso cangaceiro.

Segundo Clóvis Britto (2016, p. 55) “independentemente dos múltiplos conflitantes

discursos que apresentem os cangaceiros heróis ou bandidos, é evidente que o cangaço

consiste em um “evento crítico”, visto que é construído sob o signo da violência, da opressão,

da insegurança, da seca, da morte”.

Hobsbawn (1976) explica que o movimento cangaceiro se difere de qualquer outro

movimento criminoso, o que enseja essa interpretação dicotômica, pois o bandido social atua

como um tipo de líder para as minorias em uma tentativa de defesa contra o sistema:

O ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais,

encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer

parte da sociedade camponesa, e são considerados por sua gente como heróis, como

campeões, vingadores, paladinos da justiça, talvez até mesmo como líderes da

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libertação e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e apoiados. (p.

11).

Para Mello (2010, p. 1) define:

O cangaço em seu sentido profundo, é a expressão de irredentismo que falta

agregar à historiografia brasileira dos cinco séculos de colonização. Uma

historiografia de longa data, sensível às recorrências irmãs desse irredentismo de

chapéu de couro, representadas pela intermitência plural do levante indígena, de

que é exemplo maior a chamada “Guerra dos Bárbaros”; do quilombo

predominantemente negro, à frente Palmares, e da revolta social branca ou mestiça,

encabeçada por Canudos.

Nesse contexto, o movimento cangaceiro é compreendido como bem cultural

intangível da região nordeste, podendo ser considerado como um dos principais responsáveis

pela identidade regional, tendo em vista que trata-se de uma movimento tipicamente

nordestino.

O movimento cangaceiro pode ser considerado um bem cultural, já que a Constituição

Federal de 1988 prevê que o conjunto de bens passíveis de ser tombados é considerado

patrimônio cultural brasileiro. Segundo Fonseca (2003, p. 65) “a representatividade dos bens,

em termos de diversidade social e cultural do país, é essencial para que a função de

patrimônio se realize, no sentido que de grupos sociais possam se reconhecer nesse

repertório”.

o registro corresponde à identificação e à produção de conhecimento sobre o bem

cultural de natureza imaterial e equivale a documentar, pelos meios técnicos mais

adequados, o passado e o presente dessas manifestações em suas diferentes versões,

tornando tais informações amplamente acessíveis ao público. O objetivo é manter o

registro da memória desses bens culturais e de sua trajetória no tempo, porque só

assim se pode “preservá-los”. Como processos culturais dinâmicos, as referidas

manifestações implicam uma concepção de preservação diversa daquela prática

ocidental, não podendo ser fundada em seus conceitos de permanência e

autenticidade. Os bens culturais de natureza imaterial são dotados de uma dinâmica

de desenvolvimento e transformação que não cabe nesses conceitos, sendo mais

importante, nesses casos, registro e documentação do que intervenção, restauração e

conservação. (Sant’Anna, 2003)

Outra peculiaridade que chamava atenção no movimento cangaceiro era o alto grau de

novidade dos vestes dos seus membros que servia muitas vezes de convite para os jovens

entrarem no movimento, tendo em vista a beleza das roupas.

A aparência do cangaceiro reunia uma quantidade de elementos gráficos e simbólicos.

Segundo Mello:

“Havia uma estética rica que conferia uma ‘blindagem mística’ ao cangaceiro,

satisfeito com a sua beleza e ainda seguro em meio a uma suposta inviolabilidade.”

[…] “O contágio inelutável dá a força dessa estética e evidencia a existência de

outra luta, travada em paralelo, no plano da representação simbólica. A vingança

estética do cangaço contra a eliminação militar se dá quando o ícone principal de sua

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simbologia se transforma na marca do Nordeste: a meia-lua com estrela do chapéu

de Lampião.”

Para Clarival Valadares citado por Pernambucano de Mello (2010, p.49), ao invés de

procurar a camuflagem, o disfarce, como os modernos combatentes dos exércitos da

contemporaneidade, o cangaceiro enfeita-se com espelhos, moedas, metais, botões e recortes

multicores, tornando-se um alvo de fácil visibilidade até na escuridão.

Segundo Silva (2014) os artefatos, chapéu de couro e punhal eram enriquecidos por

outros como embornais, cartucheiras, coldres, perneiras, cantis, luvas e alpercatas impõem-

se como imagens de uma arte de síntese que refletem o orgulho de ser sertanejo, isto é,

habitante dos sertões. As cartucheiras carregavam a munição, os coldres permitiam levar as

pistolas a tiracolo, os cantis garantiam a água para a sobrevivência, os embornais levavam

víveres, remédios, ferramentas; quanto às luvas, perneiras e alpercatas protegiam o corpo dos

espinhos e garantiam a sobrevivência na caatinga.

Dessa forma, verifica-se que a estética das indumentárias cangaceira é concebida não

só como uma maneira de se vestir e sim um modo de ser, viver e agir, já que além dos enfeites

todas as peças eram confeccionadas de modo a dar condições aos cangaceiros proteção à

aridez do sertão e a violência dos combates.

O CHAPÉU DE SEUS SIGNIFICADOS

Na cabeça, grande, alto, vistoso chapéu de couro, ainda novo, bem talhado, a imitar

os antigos chapéus de dois bicos, com as pontas para os lados, tendo as largas abas

da frente e de trás erguidas e enfeitadas. Uma estreita tira de couro, ornada, o prende

a testa; uma outra, à nuca, e uma terceira, o barbicacho, aos queixos. Esse chapéu

fica, assim, bem seguro e, apesar da altura, não deve cair com facilidade (PASSOS

apud BARRETO, 1929, P.140).

Sem dúvida o elemento mais representativo e icônico do cangaço é o chapéu, que

reúne símbolos mágicos e místicos do movimento. Segundo Millan (2014) O chapéu meia-lua

de couro, com uma estrela no meio, lançado por Virgulino, hoje é o símbolo do nordeste

brasileiro. O chapéu, que tem a aba virada naturalmente para cima quando se cavalga, durante

o período do cangaço, serviu de suporte de arte, já que eram colocados alguns enfeites,e

também de alerta, pois nenhum cangaceiro poderia correr o risco de ser surpreendido em uma

emboscada, por isso não poderia andar com a aba abaixada escondendo os olhos.

Burton assinalava que:

Do chapéu de couro à alpercata de rachino, o taje do cangaceiro é todo imponência

[…] quando pudera ver nos sertões do São Francisco, no tocante à primeira de tais

peças, que “os elegantes levantam um pedaço da larga aba e, prendendo-o com um

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grande botão metálico, transformam o chapéu num tricórnio”. E confirmava: “Esses

chapéus são feitos de couro de cabra, carneiro ou veado; os últimos são melhores,

mas qualquer um serve (1867,p. 200).

Todos os chapéus eram enfeitados com medalhas e moedas, a base e as correias do

chapéu de Lampião estavam carregadas, que mais parecia uma numismática. Trazia no

chapelão de couro 7 moedas e 25 medalhas de ouro de lei e outros adornos. Completavam a

fachada um monograma de ouro de lei, onde se lima letras CL, significando Capitão Lampião

(Jasmim, 2011).

Figura 1 - Chapéu de Couro com Abas Virada Para o Alto, no Centro 4 Medalhas de Ouro e Prata...e 2 Símbolos

de Flores de Lirio, Para Mal Olhados, Testeiras em Medalhas de Ouro, Barbicahos em Couro Ornamentados com

Cravos de Prata.

Fonte: Mello (2012, p.79)

Para ter êxito nas batalhas não bastava apenas a força física, patriotismo, tenacidade e

estratégia, mas também um traje que reunisse características necessárias para os confrontos.

Mello (2010, p. 73) explica:

O chapéu é o ponto de concentração dos acrescentamentos simbólicos que

caracterizam o traje do cangaceiro. A fachada ainda mais ostensiva de uma

indumentária ostensiva por inteiro. Nas missões silenciosas, caminhassem o bando

por lugar aberto, sujeito a ser avistado de longe, ou entrasse em canoa para

atravessar o São Francisco, o chefe riscava com a advertência infalível: tirar o

chapéu! E como que apeavam momentaneamente da condição de cangaceiros, ao

simples desatar do laço simbólico de maior expressão no conjunto do traje.

Estrategicamente. O mesmo motivo que levou Lampião a despir o chapéu de couro e

a se meter em chapéu de feltro bem-comportado, nada de aba quebrada em desafio,

no momento em que se pôs, com o bando, a serviço do Governo Federal para

repressão aos revoltosos da Coluna Prestes, sob as bênçãos do padre Cícero em

1916.

E acrescenta:

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Como expressão de arte, o chapéu tem vida própria, podendo ser lido, em seus

aspectos estéticos e místcos, com ou sem geral da vestimenta, ao modo da carranca

do São Francisco em face do barco que isolava. Sintetizando elementos que não

valem artisticamente por si, tomados isoladamente, de couro tecido, metais nobres,

ou apenas vistosos, ilhoses e circunstancialmente fitas, há de ser apreciado no

conjunto que encerra à decomposição.

Figura 2 - Lampião, em traje e chapéu típicos, representativos do Cangaço.

Fonte: MILAN, 2014.

Na literatura, há inúmeras referências ao poder de proteção da estrela de oito pontas,

que “simboliza os mil raios da macambira, essa bromélia temível, com espinhos de ida e volta

nas hastes longas de ouriço, uma aliada imemorial contra todo invasor” (SILVA, 2014).

Os símbolos mágicos no chapéu tinham uma função estética, mas também dariam

proteção ao cangaceiro, ou seja, funcionava como uma blindagem mística. Por isso o símbolo

de Salomão, estrela de oito pontas, cruz de malta e flor de lis, por exemplo.

Através dos signos os cangaceiros criaram símbolos que atingiram a eficácia ao

serem, não apenas vistos e reconhecidos, mas também lembrados e reproduzidos,

(DONDIS, 2007). O signo-de-salomão, por exemplo, além de sua característica enigmática,

era símbolo de poder, proteção e devolução às ofensas do ofensor, era usado como talismã

e também representava a humildade, representada pelos opostos (fogo/água), conforme

mostra a Figura 03.

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Figura 3- Signo-de-Salomão e Simbologia

Fonte: Mello (2012, p. 62)

Dessa forma, verifica-se que o movimento cangaceiro se enquadra no chamado

irredentismo brasileiro, definido pela postura daqueles grupos sociais que não aceitaram a

submissão nem a opressão. O cangaço é um exemplo nítido do irredentismo coletivo, armado

e popular, afinal para eles os objetos falam, ou seja através dos objetos é possível penetrar no

mundo dos cangaceiros e seu estilo de vida.

Vale destacar que muitos dos símbolos próprios da movimento canagaceiro ainda

são muito utilizados na região nordeste, o que demostra a força e a irmportancia desse

movimento, além disso a temática do cangaço ainda é utilizada por estilistas em suas

produções em âmbito nacional e internacional contribuindo para a promoção e visibilidade

da cultura territorial nordestina.

IDENTIDADE DE UMA REGIÃO

A realidade sertaneja pode ser representada de várias formas, tais símbolos, tais

símbolos visuais traduzem a existência concreta dessa região, sendo o chapéu de couro não só

a representação do autêntico sertanejo como um artefato que funciona como verdadeiro

distintivo do Nordeste e do nordestino.

Segundo Medeiros (2016) “ talvez não existe um material com um aspecto tão forte

em termos de identidade, tão representativo do nosso sertão do que o belo e tradicional

chapéu de couro”. Tal material serve também para proteger a cabeça dos sertanejos do sol e

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das chuvas temporárias, além de proteger também das ervas espinhosas da vegetação de

caatinga.

Através de entrevistas, foi possível obter algumas informações para melhor

compreender a simbologia do chapéu de couro atualmente:

Não nego que fico muito feliz quando vejo alguém utilizar o bom e velho chapéu de

couro nordestino e principalmente quando é comprado aqui na minha loja. Quando vejo uma

pessoa utilizando este tipo de chapéu, penso que a cultura da minha terra ainda resiste em

meio a tantas mudanças. Eu também tenho os meus chapéus de couro e utilizo com muito

muito orgulho, pois Deus me deu a sorte de ser nordestino. Hoje em dia abasteço meu estoque

com chapéus fabricados em João Pessoa, mas infelizmente os chapéus tem maior saída no

período junino, sendo que quem mais procura são os turistas. (Entrevista com José Freire de

Oliveira, dono de uma loja de artesanatos no Mercado Municipal de Aracaju, 2016)

Infelizmente não são muitos os artesões na região envolvidos no processo de fabrico

do tradicional chapéu de couro. Mas, para a sorte dos que valorizam a autêntica cultura

nordestina, temos verdadeiros mestres produzindo e ensinando a sua arte aos seus filhos e

netos pelo Nordeste afora. Apesar dessa queda na produção desse material o bom e velho

chapéu de couro está firme e forte na cabeça daqueles nordestinos que valorizam a cultura

tradicional de sua terra. Até mesmo como símbolo de resistência cultural (Medeiros, 2016).

Dessa forma verifica-se que mesmo depois de tanto tempo o chapéu é como marca de

sua origem nordestina, considerado uma obra de arte que compõem s tradicionais vestimentas

e acessórios dos vaqueiros. São veerdadeiras obras de arte produzidas de forma primitiva, mas

com maestria.

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