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Fórum Especial REPROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA E REFORMA DAS INSTITUIÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO Brasília, 1 o . de setembro de 2005 [Publicado em J. P. Reis Velloso e R. C. Albuquerque (coords.), Crise Política e Reforma das Instituições do Estado Brasileiro , Rio de Janeiro, José Olympio Editora/Fórum Nacional, 2006] O JOIO E O JOIO Democracia, corrupção e reformas Fábio Wanderley Reis 1 A contribuição que cabe esperar de um profissional da ciência política ou da sociologia política para um debate como este consiste, a meu ver, no esforço de apreender com acuidade analítica as condições gerais em que se dão os problemas que a crise evidencia, na expectativa de eventualmente  propiciar um substrato adequado à consideração das questões normativas que ela suscita e da tradução institucional de tais questões. A perspectiva que reclamo envolve, de maneira central, a questão do realismo na análise e da apreensão do lugar e dos limites do realismo na próp ria pol ítica como objeto de análise. É talvez útil começar por contrastar essa perspectiva com o modo de encarar as questões da política a ser encontrado em alguns meios distintos (que se podem superpor parcialmente). Em pr imei ro lu ga r, o na tural “n or mati vi smo” dos juristas. Ele  produziu recentemente, por exemplo, a interpretação do TSE que impôs a absurda “verticalização” das eleições, buscando criar num passe de mágica as supostas vi rtu des da “polí ti ca ideológica”. Mas o emp enho reg ula do r se   Quero registrar meus agradecimentos a Eustáquio Reis, Eliana Cardoso e Antônio Octávio Cintra  pelos comentários a uma versão preliminar deste texto. 1

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Fórum EspecialREPROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA E REFORMA DASINSTITUIÇÕES DO ESTADO BRASILEIROBrasília, 1o. de setembro de 2005

[Publicado em J. P. Reis Velloso e R. C. Albuquerque (coords.), Crise Políticae Reforma das Instituições do Estado Brasileiro, Rio de Janeiro, José OlympioEditora/Fórum Nacional, 2006]

O JOIO E O JOIODemocracia, corrupção e reformas

Fábio Wanderley Reis∗

1

A contribuição que cabe esperar de um profissional da ciência políticaou da sociologia política para um debate como este consiste, a meu ver, noesforço de apreender com acuidade analítica as condições gerais em que se

dão os problemas que a crise evidencia, na expectativa de eventualmente propiciar um substrato adequado à consideração das questões normativas queela suscita e da tradução institucional de tais questões. A perspectiva quereclamo envolve, de maneira central, a questão do realismo na análise e daapreensão do lugar e dos limites do realismo na própria política como objetode análise. É talvez útil começar por contrastar essa perspectiva com o modode encarar as questões da política a ser encontrado em alguns meios distintos(que se podem superpor parcialmente).

Em primeiro lugar, há o natural “normativismo” dos juristas. Ele produziu recentemente, por exemplo, a interpretação do TSE que impôs aabsurda “verticalização” das eleições, buscando criar num passe de mágica assupostas virtudes da “política ideológica”. Mas o empenho regulador se

  Quero registrar meus agradecimentos a Eustáquio Reis, Eliana Cardoso e Antônio Octávio Cintra pelos comentários a uma versão preliminar deste texto.

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mostra aí desatento para vários aspectos relevantes da realidade do país (ofederalismo, a diversidade de condições regionais e as imposições que daídecorrem para a atuação política em nível nacional) ou da própria políticacomo tal (por exemplo, a complicada relação entre os interesses e as normas – 

ou mesmo as “ideologias”, em sentido nobre – e suas consequências para acristalização das normas numa cultura de vigência real).

Temos, em segundo lugar, os economistas. Sendo os reis do realismoem sua seara própria, na qual se postula com naturalidade que os interesses e oegoísmo são fatos da vida em que as análises deverão inevitavelmente estar assentadas, a visão dos economistas sobre os problemas da política costumaenvolver idealizações nas quais se supõe que o espaço da política seja em

 princípio o espaço da abnegação e da virtude (ou também da nobreza da“ideologia”, remetendo a “valores”, por contraste com os interesses, que aquise tornam vis1). Como tal visão idealizada não pode senão frustrar-se, oresultado é com frequência uma curiosa inversão, em que a política passa a ser objeto de denúncias e surge antes como o espaço da corrupção e do vício. Daíque economistas intelectualmente sofisticados costumem fazer coro com adesqualificação sarcástica da política que popularmente se encontra.2 Cumprereconhecer, contra isso, que os interesses, entendidos como objetivos  próprios

de qualquer natureza, são parte inevitável e em princípio legítima da política,remetendo, em última análise, ao valor da autonomia pessoal e grupal; e que,ainda que a virtude seja bem-vinda onde quer que ocorra, a construçãoinstitucional bem-sucedida não será aquela que dependa da virtude comoinsumo, mas antes a que resulte em instituições capazes de processar por meiode formalismos legais o conflito dos interesses que permeia a sociedade eassim mitigá-lo – ou, quem sabe, extrair dele o interesse  público.

1 Naturalmente, esse uso de “ideologia” tende a omitir que as ideologias políticas são tambémsinônimo de parcialidade e, justamente, interesse.2 Exemplo revelador se tem em artigo de grande repercussão (“O Risco de Optar pelo Atraso”) publicado há muitos anos por ninguém menos que Mário Henrique Simonsen na revista Veja, no.997, 14/10/1987. Comento o artigo em “Simonsen, Ideologia e Pragmatismo”, incluído em FábioW. Reis, Tempo Presente: Do MDB a FHC , Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. Naturalmente, ofato de que essa maneira de lidar com a política ocorra “vulgarmente” entre os economistas nãoimpede que o realismo da ênfase nos interesses e no egoísmo seja trazido à análise da própria política como postulado central pelos economistas que se têm ocupado profissionalmente dela (osadeptos da public choice ou da rational choice, que se transformou mesmo em orientação dominantena ciência política internacional).

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  Naturalmente, o desafio de eficiência contido no esforço de construçãoinstitucional assim entendido requer ele próprio, como ocorre ocasionalmentecom muitos outros aspectos da atividade política, que se possa dispor delíderes dotados de lucidez e grandeza moral.

Finalmente, a busca de acuidade e realismo quanto aos problemas quenos interessam pode contrapor-se a outra idealização, que ocorre sobretudo emmeios “de esquerda” e se refere à sabedoria e às virtudes do “povo” ou doeleitorado em geral. Esta idealização costuma fazer-se acompanhar de certovoluntarismo militante, para o qual o resgate do país para o desenvolvimentoeconômico e a democracia plena não exigiria senão a mobilização dasenergias populares por lideranças bem intencionadas (donde uma espécie de

avesso caudilhesco e bonapartista do voluntarismo idealista).3

Dela decorreque as avaliações e os diagnósticos tendam muitas vezes a ignorar um aspectodecisivo dos nossos problemas políticos, que se liga ao pesado impacto denossa herança de desigualdade sobre as relações do eleitorado popular 

  brasileiro com o mundo da política. Evoquemos de passagem um dadorelevante e eloqüente: como mostrou o Latinobarômetro em pesquisasrealizadas no ano de 2002, o Brasil surge como o campeão destacado, noâmbito latinoamericano, quanto à proporção de eleitores (nada menos de 63

  por cento em nosso caso) que declaram não saber ou simplesmente semostram incapazes de responder à pergunta sobre o que é a democracia.4

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Em 2001, apresentei ao Fórum Nacional um texto em que examinava ocenário mundial e nacional do ponto de vista da democracia e suas

 perspectivas.5 A análise partia da idéia de tipos diversos de crise de“ingovernabilidade”: a ingovernabilidade de “sobrecarga”, que caracterizaria

3 Roberto Mangabeira Unger é provavelmente o exemplo mais claro, em tempos recentes, dessevoluntarismo idealista. Uma tentativa precária de caracterizar o eleitorado brasileiro em geral como“ideológico” se tem com André Singer,  Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro, São Paulo,Edusp, 2000.4 Dados de informes divulgados pelo Latinobarômetro e publicados na imprensa internacional.5 Fábio W. Reis, “Brasil ao Quadrado? Democracia, Subversão e Reformas”, em João Paulo dosReis Velloso (coord.), Como Vão o Desenvolvimento e a Democracia no Brasil?, Rio de Janeiro,Fórum Nacional/José Olympio Editora, 2001.

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as democracias dos países avançados que a expansão do estado de bem-estar ea crise fiscal submetiam, a partir da década de 70, a demandas excessivas; aingovernabilidade “pretoriana”, própria dos países da periferia do capitalismomundial às voltas com o desafio de, num quadro de instituições frágeis e de

vale-tudo que estimulava o protagonismo militar, solucionar o problema“constitucional” da adequada incorporação econômico-social e política dasmassas populares e da estabilização da democracia; e a ingovernabilidade“hobbesiana”, relativa à intensificação da violência e da insegurança nummundo exposto aos aspectos socialmente negativos da nova dinâmicaeconômica.6

 No que se refere ao nosso país, a análise destacava – não obstante os

traços “hobbesianos” de um Brasil em que as mudanças decorrentes daexpansão industrial e urbana do século 20 se compõem com os aspectossocialmente perversos do mundo globalizado – os riscos de retomada daturbulência pretoriana trazidos pela possibilidade da vitória de Lula na eleição

 presidencial de 2002, que tendia a surgir como “ameaça” aos olhos da eliteeconômico-financeira. Lula e o PT representariam a face nova da velha“subversão” esquerdista dos anos da Guerra Fria, que culminaram nos eventosde 1964 e na longa ditadura militar que se seguiu. Nas novas condições daeconomia mundial, a percepção de uma ameaça esquerdista teve clarasconsequências, já durante a campanha de 2002, na fuga de capitais e noconjunto de indícios de que o país marchava para uma crise de proporções

  possivelmente catastróficas – talvez justificando a fórmula a que algunsrecorreram, segundo a qual no mundo globalizado o “golpe de mercado” tornasupérfluo o velho golpe de estado.

Seja como for, o mundo em que o PT acabou alcançando a Presidênciada República é certamente distinto daquele em que o partido nasceu, com suas

 propostas socializantes e mesmo revolucionárias. Por um lado, a dinâmicaeconômico-tecnológica atual impõe por si mesma severas restrições quanto às

6 Os créditos quanto às idéias de “pretorianismo” e de ingovernabilidade de “sobrecarga” sãodevidos especialmente a Samuel Huntington. Vejam-se Samuel P. Huntington,  Political Order in

Changing Societies, New Haven, Yale University Press, 1968, e, por exemplo, Samuel P.Huntington, “The Democratic Distemper”, em Nathan Glazer e Irving Kristol (eds.), The American

Commonwealth, Nova York, Basic Books, 1976.

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opções administrativas disponíveis, o que é corroborado fortemente pelacapitulação “neoliberal”, em maior ou menor medida, a que se viramcompelidos sucessivos governos de origem na esquerda: Mitterrand na França,González na Espanha, os trabalhistas no Reino Unido, Schröder na Alemanha

 – lista que talvez possa mesmo incluir, no Brasil, o governo de FernandoHenrique Cardoso, afinal um homem longamente inserido no campo dasidéias e orientações identificadas com a esquerda e que chegou à Presidênciada República ainda marcado pela imagem correspondente. Por outro lado,tivemos o colapso do socialismo no plano mundial, eliminando o respaldointernacional para iniciativas que pretendessem orientar-se nessa direção e naverdade comprometendo, além da viabilidade, a própria desejabilidade dosocialismo como meta aos olhos de muitos de seus antigos adeptos.

 Nessa perspectiva, não é de admirar que Lula e o PT tenham feitorápido aprendizado de realismo e moderação. Realismo, para começar, nacampanha eleitoral, que se viu despojada do tom de ruptura e enfrentamento ena qual se buscou com êxito a aproximação com a elite empresarial brasileira.Realismo, em seguida, na política econômica executada pelo governo, atentaàs imposições da inserção do país na nova dinâmica econômica mundial.Favorecido pela conjuntura internacional propícia, esse realismo levou aavanços econômicos importantes, e em alguns aspectos até a êxitosretumbantes. Daí que a “subversão” desaparecesse como motivo de

 preocupação real das elites econômicas, não obstante ocasionais denúncias daoposição remeterem de novo ao tema. E, apesar da insustentável teoria do“golpe branco” que Wanderley Guilherme dos Santos propôs há pouco naimprensa, não há dúvida de que cabe ao PT e ao próprio governo – de umaforma ou de outra, por ação ou omissão – a responsabilidade principal pelacrise que agora experimentamos.

Era justamente a “subversão” que se destacava já no próprio subtítulode meu texto de 2001. Quanto à corrupção, componente crucial da crise domomento, não era objeto senão de menção passageira nele, embora se falassedo risco do governo controlado por celerados e se apontasse o caráter recorrente da corrupção no país. Contudo, a evidência da importância dacorrupção na presente crise não é razão para que se deixe de indagar sobre

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seus vínculos com aspectos que dizem respeito aos motivos para o própriotemor da subversão. Por certo, as denúncias e investigações atuais apontam aocorrência de corrupção em suas formas mais rombudas e banais, com

 parlamentares, agentes partidários e “operadores” privados se valendo do

acesso ao governo para obter ganhos pessoais ilícitos. Mas o traço decisivo doque observamos, ou seja, o esquema envolvente de financiamento e compra deapoios estabelecido em torno do PT, pode provavelmente ligar-se comcaracterísticas que singularizam o partido na história dos partidos brasileirosque chegaram a contar com efetiva viabilidade eleitoral: sua origem ideológicae os desdobramentos de sectarismo e arrogância produzidos por ela.

Já no período anterior à campanha eleitoral de 2002 tivemos denúncias

candentes, e algo paranóicas na forma específica em que então se enunciavam,dos riscos de “totalitarismo” a que o país supostamente se expunha com o PT.Eu próprio registrei por escrito, em mais de uma ocasião, a preocupação deque o sectarismo remanescente do partido, associado à inexperiência, ajudassea produzir turbulências e eventualmente a colocar em risco certas promessasinstitucionais positivas que o acesso do PT à Presidência parecia conter.7 Deminha parte, porém, não imaginava que o sectarismo sobrevivesse junto ao

 próprio comando partidário, que se vinha mostrando realista na campanha e semostraria realista na administração econômica, e viesse a ter forte presença aténos níveis mais altos do governo. Mas os fatos que as investigações vêmdesvendando quanto ao esquema mencionado sugerem que a disposição demontá-lo seja vista como uma espécie de contraface “maquiavélica” dosectarismo. Como formulou ironicamente (e em desaprovação) um deputadodo próprio PT citado sem identificação na imprensa, o partido, virtuoso eguiado por objetivos generosos, estaria autorizado, na visão dos mentores doesquema, a lidar de modo instrumental e pragmático com os aliados burguesese presumivelmente corruptos de cujo apoio se via levado pelas circunstâncias

a necessitar: “o melhor é comprá-los logo”.

7 Veja-se, por exemplo, Fábio W. Reis, “O Brasil de Hoje: A Política e a Agenda Social”, textoapresentado ao Seminário Brasil-Argentina – A Visão do Outro, Buenos Aires, 13 e 14 denovembro de 2003, posteriormente publicado em  El Debate Político: Revista Iberoamericana de

 Análisis Político, ano 1, no. 2, dezembro de 2004.

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Há qualificações importantes a serem tidas em conta. Assim, asinvestigações mostram, quanto ao financiamento de campanhas, a existênciade esquema análogo (e envolvendo os mesmos “operadores”) emfuncionamento junto ao PSDB mineiro e seus aliados já nas eleições de 1998

 – sem falar de que também o PFL é alcançado por elas, e que a imprensa temdivulgado informações aparentemente consistentes sobre operaçõesimpróprias e “caixa 2” também na campanha de reeleição de FernandoHenrique Cardoso. Como não caberia falar de “sectarismo”, no mesmosentido, a propósito de PSDB e PFL, isso faz surgir a possibilidade de que selesse o que se passou depois com o governo petista, no âmbito federal, comomeramente a expansão e a execução inepta e mal escondida dos desmandosanteriores de outros partidos. Por outro lado, uma leitura mais crua do jogo de

 poder dentro do PT e do governo Lula, que talvez venha a ter alguns de seusaspectos sombrios trazidos à luz pelas investigações em andamento, sugereque a disposição duramente pragmática ao “aparelhamento” e à busca derecursos por quaisquer meios poderia interpretar-se como consequência dadisputa pelo comando do partido e pela eventual candidatura petista à

  presidência em seguida ao segundo mandato de Lula, tido como certo – interpretação esta que, naturalmente, nos afastaria da órbita em queconsiderações ideológicas e seus desdobramentos sectários seriam relevantes.8

É difícil, porém, pretender descartar com base em considerações comoessas a peculiaridade do esquema que a crise atual evidencia, bem como oacoplamento dessa peculiaridade com a peculiaridade do próprio PT. Não hádúvida quanto ao caráter inepto da operação do esquema: ele é evidente na

 própria irrupção de denúncias que se multiplicam, ocorrendo desde cedo no próprio governo Lula, com o episódio Waldomiro Diniz, levando o governo à

8 De passagem, uma ponderação parece oportuna a propósito da idéia de “aparelhamento” e dealgumas ramificações dela. Não obstante o que há de justificado na preocupação quanto a coisas

como o aumento dos cargos a serem preenchidos sem concurso, o predomínio de critériosideológicos e de lealdade partidária sobre critérios de competência técnica e a maneira como isso semescla com a nomeação de figuras egressas do meio sindical para cargos de importância nogoverno, é preciso introduzir reservas quanto ao pronto recurso a rótulos como o de “repúblicasindicalista”. Afinal, ninguém se lembra de rotular, por exemplo, de “república de financistas”, oualgo semelhante, os governos sucessivos que se valem da intensa colaboração de banqueiros ou, emgeral, gente ligada ao mundo das finanças. Talvez se queira presumir que sindicalistas, de origenssociais em geral mais humildes, são mais propensos, por efeito do tão falado “deslumbramento”, ase deixarem corromper. Será?

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 postura defensiva e à atuação política desastrada que culmina na eleição deSeverino Cavalcanti para a Presidência da Câmara dos Deputados edesaguando, em seguida, na crise atual. Mas essa inépcia mesma, assim comoas dimensões do esquema armado e seu desabamento dramático, não tem

como explicar-se em termos da mera matreirice de agentes supostamente pragmáticos ou “espertos” e movidos por objetivos marcados por egoísmoestreito. Para fazer sentido dessa esperteza, que se nega como tal e se revelainepta, parece necessário vê-la antes como condicionada e cercada por ilusõesideológicas e sectárias (provavelmente compostas com ilusões todo-poderosasadvindas do acesso inédito ao controle da máquina do governo federal), e oque aparentemente temos por detrás é uma espécie de maquiavelismo tosco,em que as ilusões comprometem a busca de eficiência quanto aos fins de mais

longo prazo que presumidamente justificaria a colocação em prática de meios pouco virtuosos. Além disso, a ênfase excessiva na disputa pelo controle dasucessão em 2010 sugere um presidente Lula largamente à margem do

 processo de que brota a crise. Se isso corresponde à linha de defesa que o  próprio presidente vem adotando, essa linha é de plausibilidade muitoreduzida, além de se chocar, em particular, com as conhecidas disposiçõesrealistas manifestadas por Lula e exigidas por ele do partido como condição

 para envolver-se na disputa de 2002.

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De qualquer modo, a avaliação adequada do significado da crise queagora experimentamos exige, a meu ver, o reconhecimento de que elarepresenta, em perspectiva realista e atenta para as limitações da realidadesocial brasileira, claro retrocesso institucional. Não se trata de sugerir comisso que ela venha forçosamente a assumir a feição de crise institucional nosentido mais negativo, em que as instituições se revelassem incapazes de

 processar por seus próprios meios os eventos e os conflitos de interesses nelesenvolvidos. Mas vários aspectos do processo que vínhamos vivendo no

 período recente devem ser vistos como representando avanços institucionais potencialmente importantes, que são agora comprometidos pela crise. Destacotrês deles.

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Temos, em primeiro lugar, o significado positivo da simples superaçãotanto do “complexo de sublevação” que marcou longamente a psicologia

  política da elite brasileira quanto da “subversão” como tema políticorelevante, superação esta que as circunstâncias da chegada de Lula ao poder e

aspectos importantes da administração realizada autorizam esperar. Por certo, para que se pudesse falar plenamente dessa superação seria necessário que ogoverno petista viesse a encerrar-se em condições de normalidadeinstitucional, o que não se acha de todo assegurado. Mas, na suposição de quecertos impulsos mais radicais e institucional ou legalmente pouco atentos por 

  parte do governo e da oposição possam ser contidos, o fato mesmo daresponsabilidade do PT pela crise, que os próprios petistas admitem, favoreceaquele desenlace.

Em segundo lugar, o PT e Lula representaram novidades de clarosaspectos positivos na cena política brasileira. Naturalmente, as característicasdo eleitorado popular em nosso país transformam em ilusão a pretensão de ver na vitória eleitoral de Lula o respaldo popular para um governo que seorientasse pelas idéias socialistas e radicais defendidas pelo partido em suasorigens. Na verdade, o êxito eleitoral do PT tem muito em comum com ocrescimento anterior do PTB associado a Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, ecom o êxito do MDB de 1974, que a percepção popular passou a identificar como o “partido dos pobres”, como mostraram as pesquisas.9 Descontadascertas “vanguardas” de maior informação e envolvimento políticos, o apoiotrazido a um “partido dos trabalhadores” certamente se deve, em larga medida,às próprias deficiências do eleitorado popular de que se nutre há muito o

  populismo, incluindo como componente crucial a percepção do universo político-partidário em termos que independem da informação sobre questõesespecíficas de qualquer natureza e envolvem apenas a contraposição singelaentre uma categoria popular e outra de elite, “os pobres” e “os ricos”,

acompanhada da tendência à identificação com o lado popular – lado este que  pode, nessas condições, assumir feições diversas e eventualmentesurpreendentes do ponto de vista da contraposição entre “esquerda” e “direita”

9 Veja-se, por exemplo, Fábio W. Reis, “As Eleições em Minas Gerais”, em B. Lamounier e F. H.Cardoso (orgs.), Os Partidos e as Eleições no Brasil , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.

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feita em termos convencionais.10 Tudo somado, os eleitores de Lula e os deum Collor, por exemplo, são, em grande parte, os mesmos.

Isso não impede, porém, que se destaquem as peculiaridades da

experiência que vinha ocorrendo em torno do PT.11 Tivemos com ele, paracomeçar, um esforço que, apesar da importância da figura de Lula e outraslideranças, se orientou desde o início não em bases personalistas, mas antes

 pelo empenho de construção de uma instituição partidária sólida, em que odebate interno e o incentivo à militância não impedissem a disciplina e aatuação eficaz, além de articular-se com forças sindicais e movimentossociais. Por outro lado, os traços que conformaram o partido resultaram nacombinação de fatores “populistas” de atração eleitoral (incluindo com

destaque a figura de Lula e seu carisma pessoal, sem embargo do que temLula de peculiar, por sua origem mais autenticamente popular, diante da posição social privilegiada das lideranças populistas típicas) com maior apegoa idéias e princípios – o que é, naturalmente, a face positiva do caráter ideológico do partido em seu nascimento, não obstante a incontestávelnecessidade do aprendizado de realismo e moderação, em particular nas novascondições mundiais. Tais traços justificariam a expectativa de que o êxitoeleitoral viesse a ocorrer com preservação mais adequada da consistênciainstitucional e do compromisso popular do que em outros casos na história dos

 partidos políticos no país, bem como de que o partido chegasse a representar um instrumento de canalização da participação político-eleitoral das massas

 populares em termos mais sadios do que os do populismo tradicional. Surgia,assim, a possibilidade de que viéssemos a repetir, por aspectos relevantes, atrajetória seguida pela socialdemocracia em diversos países europeus, mesmo

10 Uma apresentação compacta do que mostram os dados pertinentes pode encontrar-se em Fábio W.Reis, “Institucionalização Política (Comentário Crítico)”, em Sergio Miceli (org.), O Que ler nas

Ciências Sociais Brasileiras (1970-1995), São Paulo, Editorial Sumaré/Anpocs, 1999. Veja-setambém Fábio W. Reis e Mônica M. M. de Castro, “Regiões, Classe e Ideologia no ProcessoEleitoral Brasileiro”, incluído em Fábio W. Reis,  Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade

 Brasileira, São Paulo, Edusp, 2000.11 O que se diz em seguida se refere, naturalmente, ao PT tal como se dava a conhecer antes da criseatual, pondo de lado a indagação, que alguns poderiam pretender responder afirmativamente, de sea crise não teria revelado o “verdadeiro” PT. Não parece razoável sustentar que essa resposta faça justiça à maioria dos membros, adeptos e eleitores que compuseram o partido ou se ligaram a ele aolongo de sua trajetória.

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diante das diferenças entre nosso eleitor popular típico e um eleitor socialdemocrata europeu presumidamente sofisticado.

Finalmente, parte importante do processo de “eleitoralização” realista

do PT nos últimos anos se deu em circunstâncias em que o protagonismo eradividido com o PSDB e nas quais os dois partidos se enfrentaramrepetidamente em várias das eleições mais importantes. Idealmente, caberiadesejar que PSDB e PT se aproximassem ou mesmo se fundissem, o que

 poderia permitir superar o traço mais perverso do nosso “presidencialismo decoalizão” (Sérgio Abranches) em tempos recentes, em que o enfrentamentoentre eles e a fragilidade do apoio parlamentar dos presidentes da Repúblicatem levado à necessidade de “governar com o atraso”, na expressão de

Fernando Henrique Cardoso, com o estabelecimento de coalizões em que oExecutivo se torna refém de partidos excessivamente pragmáticos ou“fisiológicos”. Mas, na impossibilidade circunstancial (mesmo se longa) dessaaproximação, menos mal que as disputas eleitorais de maior impacto setenham vindo travando entre PSDB e PT, ou entre figuras como FernandoHenrique e Lula. Além do avanço representado pela afirmação gradual dahegemonia de partidos de maior consistência, seu protagonismo continuadotinha uma consequência de grande importância potencial nas condições de

  precária informação e deficiência “ideológica” do eleitorado popular  brasileiro: em contraste com a fluidez que tem marcado a vida partidária do país nos trambolhões e idas e vindas entre autoritarismo e democracia dasúltimas décadas, que resulta em confusão para o eleitor quanto a aonde dirigir suas identificações e lealdades, o protagonismo PSDB-PT tendia a levar àidentificação mais estável dos eleitores com os dois partidos. Poderíamosesperar ter nele, assim, um fator “natural” e forte de simplificação do sistema

 partidário e um obstáculo às irrupções de um populismo de tipo personalista eaventureiro. Tenho lembrado, a respeito, o fato de que o troca-troca de

 políticos entre partidos que se observa com tanta intensidade no momentosimplesmente não existiu de forma sequer remotamente comparável no

 período 1945-64: provavelmente em consequência da presença marcante dafigura de Getúlio Vargas na cena política de então e da confrontação dos

 partidos em torno dela, era impensável, sob pena de sanção eleitoral, que políticos ligados ao PSD (ou PTB) e à UDN se dispusessem a transitar sem

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mais de um partido a outro – e isso, note-se, cerca de meio século atrás, nummomento com respeito ao qual não caberia contar com que o eleitorado

 popular estivesse politicamente mais atento e “consciente”.

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Certos setores de esquerda, no PT e fora dele, têm vinculado o fato deque o partido enfrenta agora um escândalo de corrupção à política econômica“conservadora” ou “neoliberal” posta em prática pelo governo. Isso justificaque tomemos a questão da política econômica e suas relações com a políticasocial no esforço de colocar a crise em perspectiva, especialmente tendo emvista que essa questão se desdobra na das ambições maiores de um governo

“de esquerda” e suas dificuldades no mundo atual. Mencionei acima algunsexemplos importantes, no plano internacional, de “capitulação” de governosde esquerda que fornecem indícios claros de perplexidade diante da novadinâmica econômica.12 Talvez o exemplo mais instrutivo, por ganhar ares deideologia mais elaborada, seja a “Terceira Via” de Tony Blair e seu mentor Anthony Giddens: de maneira obscura, ela não só expressa o estreitamento docampo ideológico e das opções, tendo de esgueirar-se entre o liberalismo e a“velha” socialdemocracia transformada em extremo a ser evitado, mastambém defende esquizofrenicamente uma socialdemocracia que se supõenova mas cuja novidade não se vê em que consiste.

Provavelmente o tema substantivo de maior consistência que os debatesinternacionais correntes envolvem diz respeito à questão de uma "democraciade proprietários” como possível alternativa às políticas socialdemocráticasclássicas. Pode-se apontar o caso especial de um Hernando de Soto, cujasrecomendações no sentido da regularização legal das precárias formas de

 propriedade dos setores econômicos informais em diferentes países, com a

transformação dessa propriedade em capital passível de ser investido e osefeitos dinamizadores que supostamente caberia esperar, têm recebido

12 Perplexidade não só da “esquerda”, por certo. A esta altura, as crises “sistêmicas” já impuseram adiluição do “consenso de Washington”, e não é de todo surpreendente a retórica em que atéinstituições como o FMI e o Banco Mundial destacam a importância da agenda “social”, apesar deque tal retórica se mostre inconsequente no plano das recomendações práticas.

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acolhida entusiástica em meios conservadores.13 De qualquer modo, densosestudos acadêmicos sobre a socialdemocracia européia, como os de Fritz W.Scharpf, destacam a ênfase que aí se teve na questão dos salários e na busca deintervenção social por parte do governo, em vez da ênfase possível na

redistribuição da propriedade e da riqueza.14 Sustentando que o deslocamento para a economia da oferta (em vez das políticas orientadas para a demandacaracterísticas do keynesianismo tradicional) não teria significadodeslocamento do favorecimento do trabalho para o favorecimento do capital seos socialdemocratas tivessem lutado pela redistribuição da propriedade e por um capitalismo popular, Scharpf traz o exemplo da Alemanha Federal: em1973, 1 por cento das unidades domésticas daquele país controlavam 53,8 por cento do capital produtivo, enquanto 52 por cento delas controlavam apenas

2,4 por cento, distribuição esta que se tornou mais desigual em seguida.15

Emesmo um autor como Carles Boix, que se empenha em salientar asdiferenças a serem encontradas entre as políticas abertamente conservadorasao estilo de Margaret Thatcher e as políticas de orientação em princípiosocialista de um Felipe González, não pode evitar a caracterização destasúltimas como guiadas também pela oferta, ou como tendo a ver com o esforçode condicionar os fatores de produção: atrair capitais e qualificar ourequalificar a força de trabalho.16 

 Nesse quadro de restrições e dificuldades, soam até mesmo desfrutáveisas críticas, em alguns casos notavelmente apressadas, dirigidas pela esquerda à

  política econômica do governo – sem falar da clara impropriedade davinculação acima referida entre a política econômica e o escândalo de agora.Sem dúvida, há bases legítimas para divergências técnicas com respeito aos

 problemas especificamente econômicos. O reconhecimento disso não vai ao ponto de tornar admissível uma posição em que se visse o problema comosendo apenas o de engambelar os investidores internacionais durante algum

tempo e depois fazer “a revolução”; ainda assim, cabe indagar, por exemplo,

13 Veja-se, por exemplo, Hernando de Soto, The Mystery of Capital , Nova York, Basic Books, 2000.14 Fritz W. Scharpf, Crisis and Choice in European Social Democracy, Ithaca, N.Y., CornellUniversity Press, 1991.15 Scharpf, Crisis and Choice, p. 271.16 Carles Boix,  Political Parties, Growth and Equality, Nova York, Cambridge University Press,1998.

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qual o nível apropriado da taxa de juros, ou como relacionar política fiscal e política monetária, ou se haverá a possibilidade de algum tipo de controle dosfluxos de capital que não comprometa de modo significativo as chances do

 país na captação de investimentos externos. Mas, diante da chegada ao poder 

  presidencial de um partido como o PT, a grande indagação, naturalmente,refere-se a como se haverão de acoplar a política econômica e a política socialde maneira que possa pretender fidelidade ao ideário convencional daesquerda e ao seu forte compromisso social – e como lidar com a questãoassim posta no mundo novo que assomou à medida que o partido crescia e seviabilizava eleitoralmente. As críticas de esquerda mencionadas, prescindindode sugestões ou propostas concretas nesse nível mais profundo e complicado,deixam claro que os meios petistas e o governo não conhecem o truque ou a

fórmula requerida, que falta a todos pelo mundo afora, e evidenciam a perplexidade que prevalece também no plano doméstico ou nacional.17

A questão geral acaba consistindo em que é que se deve entender por “governo de esquerda” nas circunstâncias da atualidade, ou em até que pontoseria efetivamente possível, nessas circunstâncias, governar “à esquerda”. Se

 pensamos em termos de metas a serem buscadas e excluímos a opção pelosocialismo autoritário, resta, não obstante Scharpf e de Soto e a ênfase

 possível na redistribuição da propriedade, o caráter certamente positivo daexperiência da socialdemocracia, conciliando capitalismo e mercado com umestado capaz de sensibilidade social e preocupação igualitária. Está longe deser evidente que as dificuldades agora enfrentadas pela opçãosocialdemocrática em todo o mundo respaldem a disposição de ver amultiplicidade de experiências recobertas por aquele rótulo como nada maisque um modelo ultrapassado. A conciliação entre mercado e igualitarismosolidário que tais experiências trataram de realizar não se justifica apenas em17 José Luís Fiori, em entrevista à  Folha de S. Paulo (9 de maio de 2004, p. A10), fornece boa

ilustração da perplexidade doméstica. A crítica por ele dirigida ao governo destaca a “invenção” dowelfare state que supostamente teria ocorrido na Suécia em condições pouco propícias; mas não háqualquer menção aos reajustes e acomodações pelos quais o modelo socialdemocrático vem tendode passar na própria Suécia, e a crítica não se faz acompanhar senão da mera exortação àinventividade governamental. Outra ilustração se tem em artigos de Roberto Mangabeira Unger emsua colaboração semanal no mesmo jornal. Quando nada, Unger tem em seu favor o fato deocasionalmente admitir explicitamente a perplexidade, ainda que se empenhe, embora de maneirafantasiosa e voluntarista, em indicar caminhos em que a mobilização popular permitisseeventualmente superá-la.

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nome do realismo (em contraste com um voluntarismo revolucionário), mastambém em nome da necessidade de equilibrar os valores envolvidos eadministrar a inevitável tensão entre eles: temos, de um lado, o valor daautonomia na busca dos interesses ou objetivos pessoais de qualquer natureza

(incluindo aqueles que se podem alcançar com a iniciativa pessoal no planoeconômico, ou seja, no mercado), valor este que se destaca na dimensão“civil” e liberal do ideal contemporâneo de cidadania; e temos, de outro lado,o valor da solidariedade e da responsabilidade coletiva, correspondente àdimensão “cívica” daquele mesmo ideal.18 Talvez seja preciso reconhecer,com Scharpf, que a derrota ao menos parcial dos socialdemocratas em sua lutadistributiva é, no momento, irreversível por toda parte, e que sua hora só

 poderá ressurgir se e quando, depois de um período mais ou menos longo de

 prosperidade, a política vier a ter de novo como foco a distribuição dos ganhosdo crescimento capitalista que a economia da oferta e o “darwinismo demercado” tornaram impossível reclamar mais plenamente agora.19 Mas, alémdo fato simples da continuidade do difundido apego popular ao welfare state

(descrito na literatura pertinente como “immovable object”, não obstante anecessidade de “austeridade permanente” e as “pressões irresistíveis” paracontê-lo ou reduzi-lo20), impõe-se também o reconhecimento de que não háalternativa visível ao esforço na direção da restauração do equilíbriosocialdemocrático e da riqueza das experiências institucionais que lhecorrespondem. O estado adequadamente complexo e afirmativo é parte crucialdesse equilíbrio – afinal, mesmo que uma nova política distributiva devatomar, em algum grau, a forma de redistribuição da propriedade, como quer 18 Para a distinção entre as dimensões “civil” e “cívica” da cidadania, veja-se George ArmstrongKelly, "Who Needs a Theory of Citizenship?",  Daedalus, Outono de 1979. Eu próprio discuto adistinção e suas implicações em “Cidadania Democrática, Corporativismo e Política Social noBrasil”, incluído em Reis, Mercado e Utopia.19 Scharpf, Crisis and Choice, pp. 274 e 275. Aliás, há mesmo quem exagere e pretenda queestaríamos vivendo uma fase definitivamente nova em que a própria idéia do “estado-nação”deveria ser substituída pela do “estado de mercado” (market-state), ou a idéia do “estado de bem-

estar” pela da “sociedade de risco”. Vejam-se Philip Bobbitt, The Shield of Achilles: War, Peace and the Course of History, Londres, Allen Lane, 2002, e Ulrich Beck, Risk Society, Londres, Sage, 1992.Vejam-se também Roland Axtmann, “The State of the State: The Model of the Modern State and itsContemporary Transformation”, International Political Science Review, vol. 25, no. 3, 2004, e SvenBislev, “Globalization, State Transformation, and Public Policy”,  International Political Science

 Review, vol. 25, no. 3, 2004.20 Veja-se Paul Pierson, “Coping with Permanent Austerity: Welfare State Restructuring in AffluentSocieties”, em Paul Pierson (ed.), The New Politics of the Welfare State, Oxford, Oxford UniversityPress, 2001.

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Scharpf, não se vê de que modo ela poderia realizar-se sem a decisiva participação do estado (e cabe notar, de passagem, que, apesar de estímulos produzidos, no Peru de Hernando de Soto, por alterações legais quanto à propriedade informal e sua regularização, não se vê em andamento naquele

 país nenhuma transformação substancial das condições gerais). Além disso,em vez das ilusões recentes em que os atores supostamente altruístas e cívicosde um benigno “terceiro setor” viriam a substituir o estado em ampla medida,o estado apropriadamente construído é antes imprescindível para que se contecom a possibilidade de afirmação rica e diversificada da sociedade civilmesma e para que se possa extrair dela o melhor. Pois a dinâmica dasociedade civil é necessariamente afim à dinâmica autonomista e dispersa quecaracteriza o próprio mercado e que, se sem dúvida expressa valores reais, não

 pode funcionar de modo propício, e afim também aos valores solidários, sem ofator de regulação e convergência representado pelo estado.21

Mas, além das dificuldades enfrentadas pela opção socialdemocráticaem todo o mundo, não há como negar que a caminhada sustentada erelativamente acelerada rumo a uma socialdemocracia efetiva envolveobstáculos especiais em condições como as brasileiras. Nossa aparelhagem

21 Essa linha de idéias permite colocar a questão (presumivelmente crucial para um partido como oPT, mesmo e talvez especialmente diante da crise atual) da possibilidade de redefinir a utopiasocialista em termos mais compatíveis não apenas com as novas realidades econômicas egeopolíticas, mas também com a preservação ou afirmação de valores democráticos que seassociam à autonomia tanto individual quanto, em geral, dos agentes da sociedade civil – valoresque remetem, em última análise, à inspiração humanista e democrática do movimento socialistacomo tal. Pessoalmente, creio que a forma aceitável da utopia seria a do “socialismo de mercado”, aadesão à qual, contudo, teria por força de se fazer acompanhar do reconhecimento de que, no futurovisível, trata-se fatalmente de administrar o capitalismo, e de que não há como fugir a algumamodalidade de socialdemocracia para fazê-lo. Ricas discussões internacionais recentes se têmocupado do socialismo de mercado, procurando contrapô-lo às dificuldades e ao colapso final do“socialismo real”. Cabe assinalar como exemplo o volume de John Roemer,  A Future for Socialism

(Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1994), que inclui entre as idéias centrais a de um

socialismo em que empresas regidas por formas flexíveis de propriedade, mas baseadas nadistribuição e permanente redistribuição pelo estado de títulos que não poderiam ser herdados,seriam geridas de maneira competitiva por administradores contratados, assim como ocorre presentemente com as grandes corporações privadas do capitalismo. Apesar da consistente análiseteórica empreendida por Roemer e do interesse de suas sugestões como exploração de  possibilidades, o irrealismo de seus supostos com respeito aos caminhos concretos a serem percorridos fica bem evidente no fato de que o Brasil é visto (p. 129) como exemplo de país emque, justamente com a vitória eleitoral do PT, seria possível esperar a colocação em prática de um programa de socialismo de mercado...

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estatal cevada nos vícios de uma tradição elitista e clientelista é um aspectosaliente dessas condições, e tal tradição se articula ela própria com a estruturade castas herdada de nossa prolongada experiência escravista e preservada naenorme desigualdade que ainda perdura. Modificar significativamente esse

estado de coisas exigiria, de forma destacada, pesados investimentos emeducação, de maturação fatalmente demorada.

Sem dúvida, o caráter renitente do enorme fosso social brasileiro, nãoobstante o singular crescimento do país desde fins do século 19, mostra o errode se pretender (como alguns sustentam que seria o caso do governo FHC,apesar de iniciativas certamente positivas por ele adotadas no plano social)que política social seja questão de política econômica e que não caiba senão

contar com que o dinamismo econômico, por si mesmo, acabe um dia por levar os benefícios do crescimento às camadas mais pobres. Admita-se o quehá de complicado, analítica e normativamente, nas relações entre o progressosocial e a busca propriamente de igualdade, e que certo estímulo àdesigualdade, como pretende John Rawls, possa redundar em contribuição

 positiva para a promoção social dos menos favorecidos, e assim pretender  justificar-se.22 Dadas as proporções do fosso social brasileiro, porém, não hádúvida de que o próprio objetivo de um dia assegurar para todos o acesso àautonomia autêntica impõe o recurso mais ou menos prolongado a uma doseimportante de paternalismo estatal sob a forma de políticas de conteúdoespecificamente social que tragam certa capacitação mínima.

Ao contrário de perspectivas em que se valorizam somente asconquistas de uma suposta “cidadania ativa”, não vejo qualquer problema comtal componente paternalista do ponto de vista de um ideal democráticoambicioso ou exigente, pois o estado democrático não pode ser apenas aqueleque responda, sem mais, à capacidade diferencial de pressão, em qualquer 

momento dado, de cada categoria ou foco de interesses. Contudo, se nãoqueremos cair no outro extremo e reduzir a política social a meroassistencialismo, é preciso reconhecer também que a boa política social não

 poderá deixar de articular-se com a boa política econômica, vale dizer, aquela

22 John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1971.

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que saiba extrair os melhores resultados econômicos da avaliação acurada erealista do ambiente em que se executa.23

Surge de tudo isso um desdobramento inevitável e com certeza sombrio.

Ele diz respeito ao fato de que as graves deficiências resultantes de nossaexperiência escravista e do legado de desigualdade não vão ser superadas nomero espaço de alguns anos, por melhores que venham a ser as políticaseconômico-sociais. Mas reconhecer que as melhorias sociais efetivasinevitavelmente demoram a chegar é reconhecer que o problema“constitucional” da plena incorporação social seguirá sem solução cabal nofuturo imediato ou visível, e que persistirão os fatores sociais de instabilidade(ainda que, nas novas condições mundiais e nacionais, seja pouco provável

que essa instabilidade venha a assumir a forma do golpe militar clássico). Naverdade, apesar da perda de dramaticidade da dimensão “marxista” do nosso problema constitucional não resolvido, ou resolvido insatisfatoriamente, cabefalar de um agravamento desse problema por referência à sua dimensão

23 O problema se ramifica, na verdade, de maneira a suscitar importantes questões mesmo no planoinstitucional. Um aspecto óbvio, que figura com destaque na agenda brasileira do momento, é o daautonomia do Banco Central. Por um lado, a pretensão de assegurar tal autonomia pode ser vistacomo expressão de um liberalismo econômico desatento para princípios democráticos de maior alcance e contraposta à idéia do que tem sido chamado de “republicanização” do Banco Central,que o tornasse mais capaz de regular de maneira efetiva um sistema financeiro privado decaracterísticas oligopolísticas (veja-se, por exemplo, Juarez Guimarães, “Há Chances Ainda para aEsperança?”, Departamento de Ciência Política da UFMG, manuscrito). Por outro lado, comoassinala Marc F. Plattner em análise recente (“From Liberalism to Liberal Democracy”, em LarryDiamond e Marc F. Plattner [eds.], The Global Divergence of Democracies, Baltimore, The JohnsHopkins University Press, 2001, p. 88.), a outorga de autonomia a instituições e agências variadas,com o objetivo explícito de liberá-las do controle pelos setores politicamente sensíveis do governo(ademais de bancos centrais, os exemplos incluem comissões eleitorais e de direitos humanos,agentes anticorrupção, a figura do “ombudsman” etc.), corresponde a certa tendência “liberal” quesim se vincula a uma concepção ambiciosa de democracia. Afinal, lembra Plattner, até a idéia darevisão judicial foi vista por muito tempo como instituição “antidemocrática”, ao dar poder a juízesnão eleitos (tema que se acha de novo posto, de maneira candente, nos EUA de George W. Bush). Aquestão acaba levando ao contraste entre um modelo de democracia direta, empenhado em traduzir 

mais imediatamente o sentimento popular em políticas públicas, e outro de naturezaconstitucionalista, atento ao império da lei e à garantia dos direitos civis (que a Atenas clássica, por exemplo, desconhecia), aos mecanismos de “freios e contrapesos” e à responsabilidadegovernamental. Tudo isso sem falar do problema de como assegurar eficiência, em perspectiva detempo mais longa, na busca de objetivos coletivos supostamente compartilhados e consensuais (queé o aspecto destacado mais diretamente na contraposição feita no texto entre política econômica e política social): se aqui se acha envolvido o perigo de um tecnocratismo insensível à urgência decertas demandas sociais, sua substituição por um mero populismo míope seguramente não é aresposta adequada às dificuldades.

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“hobbesiana” e aos fatores novos de ingovernabilidade – a intensificação dacriminalidade e da violência – que se vinculam a ela e que podem ter ramificações importantes na esfera político-eleitoral. Lembremos um par deobservações que as pesquisas permitem há tempos. Por um lado, o difundido

desapreço da população pelos direitos civis, que com certeza não é irrelevantedo ponto de vista da corrupção e seus correlatos: não obstante tratar-se decomponente essencial da idéia de uma democracia em operação, o desapreço

 por eles – além de suas conexões com a tradição elitista e o bloqueio quesegue produzindo à vigência real da idéia de que todos são cidadãos autênticose plenos portadores de direitos – provavelmente se liga com a percepção deque afirmar os direitos civis redundaria em “proteger bandidos”. Por outrolado, a insegurança “hobbesiana” e o anseio correlato por um poder 

autoritário e “forte” talvez ajudem a explicar as enormes proporções de apoioa hipotéticas lideranças pessoais que pudessem unificar e guiar a nação demaneira antiinstitucional e alheia aos partidos.24 

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O que se disse acima quanto à “eleitoralização” do PT e quanto àsquestões relacionadas à política econômica do governo Lula adere a uma

 perspectiva que se pretende realista e se mostra pronta a festejar o realismo do partido e do governo. O que se revela na crise atual, porém, é o destempero dorealismo. O capital simbólico que singularizava o PT, e que pode ser referidoa suas origens ideológicas, envolve uma dimensão de compromisso social eoutra (que aos poucos ganhou saliência nos embates político-eleitorais) decompromisso ético, ou de conduta supostamente orientada por forte apego a

  princípios éticos. Se a primeira dimensão está exposta a indagações e  perplexidades “técnicas” como algumas das examinadas acima, as quais podem pretender justificar o abandono de velhas posições que se mostrem

iludidas ou ingênuas, não há espaço para tais perplexidades quanto a questõesde natureza ética.25 Denúncias já antigas, retomadas agora com vigor por 

24 Veja-se Fábio W. Reis e Mônica Mata Machado de Castro, “Democracia, Civismo e Cinismo:Um Estudo Empírico sobre Normas e Racionalidade”,  Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.16, no. 45, fevereiro de 2001.25 Sem dúvida, os que acontecem exercer o governo costumam invocar (com a ajuda de Max Weber,em quem se pode encontrar autêntica mixórdia conceitual a respeito) uma “ética da

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velhos dirigentes e membros do PT, colocam em xeque o compromisso éticoem certas experiências de administração local e mesmo nas relações internasdo partido como tal. No que se refere ao próprio governo Lula, como seindicou, a grande encruzilhada quanto ao aspecto ético certamente se tem com

o episódio Waldomiro Diniz, em que a tergiversação do governo redundou emabrir mão de mostrar a diferença, ou de fazer aquilo que com frequência secobrou de Fernando Henrique como presidente: socar a mesa, dispor-se aogesto por meio do qual se marcam os limites do realismo e se afirma oureafirma a dimensão simbólica e exemplar da liderança – condição, como a

 presente derrocada deixa de novo claro, da eficácia autêntica do líder, emcontraste com espertezas miúdas e míopes.

Seja como for, o destempero e a “tragédia do PT”, como a designaramalguns dos seus próprios dirigentes, resultam em comprometer, de modotalvez definitivo, o governo, a liderança de Lula e o partido. É difícil imaginar que o governo possa vir, no quadro presente, a exercer a administração do paísde maneira afirmativa ou com capacidade de iniciativa e eficácia real. Quantoa Lula, depois do amplo desgaste junto à opinião pública (tomada comocorrespondendo aos setores mais informados e atentos do eleitorado), começaagora, a julgar pelos dados de pesquisas que têm sido divulgados, a ser derrotado também na batalha junto ao eleitorado popular, e as chances dereeleger-se, ou mesmo de se preservar como referência importante no quadro

  político brasileiro, parecem reduzir-se rapidamente, ainda que se excluamhipóteses mais dramáticas como a do impeachment  ou a da renúncia àreeleição ou mesmo ao governo. O PT, finalmente, com o comprometimento

responsabilidade” que, em contraste com a “ética das convicções”, supostamente mais rígida, seriaatenta para as consequências das ações e envolveria, assim, um aspecto de avaliação cognitiva efactual que talvez se pudesse descrever como “técnico”. Contudo, se se pretende que a ética daresponsabilidade seja de fato uma ética (ou algo que envolva, de qualquer modo, consideraçõesmorais), o aspecto crucial para caracterizá-la como tal não pode ser o aspecto cognitivo, em si

mesmo, da atenção para as consequências. A eventual tomada de posição guiada por ela esupostamente resultante daquele traço cognitivo só merecerá a caracterização de “ética” ou “moral”se as consequências forem, elas próprias, apreciadas do ponto de vista das convicções morais,mostrando-se adequadas ou inaceitáveis desse ponto de vista. Nesse sentido, a chamada ética daresponsabilidade não é, naquilo que a define como ética, distinta da ética de fins últimos ou dasconvicções, e as ações “realistas” que pretendam justificar-se por ela correm o risco de transformar-se em mero oportunismo se não afirmarem com clareza seus limites em termos propriamente éticos.Sobre as confusões de Weber a respeito, veja-se Fábio W. Reis, “Weber e a Política”, Teoria e

Sociedade, no. 12.2, julho-dezembro de 2004.

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do capital simbólico e da liderança de Lula, as dificuldades criadas nasrelações deste com o partido, o enfrentamento entre alas ou setores e a

 provável fragmentação, não parece ter, mesmo se a própria legenda não vier adesaparecer, perspectivas alvissareiras no futuro que se pode divisar. E num

futuro mais longínquo as apostas no partido, nas novas condições criadas, não parecem muito melhores do que as que se poderiam fazer em torno de outros partidos de esquerda mais ou menos nanicos que existem atualmente.

Mas os desafios que se abrem com a crise vão bem além do destino deLula e do PT. A questão crucial é, naturalmente, a de se saberemos definir ecolocar em prática as reformas necessárias para eliminar as causas dosdesmandos e vícios que agora se tornaram dramaticamente evidentes.

Um aspecto saliente da questão tem a ver com algo a que se aludiu noinício, ou seja, o possível substrato cultural da crise e o problema de como searticularão iniciativas relativas à implantação mais ou menos “artificial” dedispositivos ou mecanismos legais e a eventual alteração da própria “cultura”relevante. Claro indício de que estamos diante de nova manifestação de umaautêntica cultura politicamente negativa se tem na “candura” (ou, se se

  preferir, a “cara-de-pau”, como a chamou o ministro Carlos Velloso ementrevista na televisão, referindo-se a parlamentares) com que liderançasdiversas manifestaram de público a adesão, de uma forma ou de outra, à visãosegundo a qual o crime eleitoral (o “caixa 2”) na verdade não importa. Essavisão redunda em tentar separar o “trigo”, que vem a ser o “meu” crime,supostamente sem importância, do “joio”, o crime dos outros, este sim, crimeautêntico e grave. Houve críticas indignadas – e justas – quando o presidenteLula, em entrevista dada na França, procurou minimizar a importância dosdesmandos petistas como algo (sem dúvida o “caixa 2”) que seria praticado

 por todos no país; mas em seguida, além de corresponder à linha de defesa

adotada por acusados nas CPIs, a minimização do crime eleitoral surgiuigualmente em manifestações públicas de lideranças do porte do ex-presidenteFernando Henrique Cardoso, do mais importante candidato “peessedebista” àPresidência da República e prefeito de São Paulo, José Serra, do ex-governador de Minas e presidente do PSDB, Eduardo Azeredo...

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  Na óptica orientada pelo empenho de reforma, a ligeireza dessadisposição de estabelecer gradações e ver com naturalidade ações contrárias àlei, e portanto criminosas, é inaceitável. Ela é afim ao ânimo leve – ou mesmoo sentimento positivo de se estar agindo de forma apropriadamente “esperta” – 

com que meios empresariais, de profissionais de classe média em diferentessetores, funcionários públicos, professores universitários ou os cidadãos emgeral se dispõem a sonegar impostos, cobrar diárias indevidas, transferir para a“viúva” pequenas despesas (ou nem tão pequenas) sempre que possível, gozar na praia as férias que se “vendem” e pelas quais se recebe o pagamentointegral, ou simplesmente ignorar as regras de trânsito sempre que ascondições permitam safar-se sem observá-las. É difícil avaliar com segurançaaté que ponto será peculiarmente brasileiro o caráter banal dessa difusa

desatenção para com as normas. Mas com certeza não é irrelevante lembrar, arespeito, constatações reiteradas de pesquisas como as do World ValuesSurveys, executadas em escala mundial e incluindo dezenas de países de grausdiversos de desenvolvimento econômico e tradições culturais e religiosasdiferenciadas, em que o Brasil aparece como nada menos que o de pior 

 posição entre todos no que se refere à proporção da população que revelaacreditar que se pode, em geral, confiar nas pessoas: esquálidos 3 por centodos brasileiros respondem afirmativamente!26 

Essa aparente cultura anômica e corrupta pode claramente ser ligada àsgrandes “maracutaias” a que a classe média reage, curiosamente, comindignação, e talvez tenha até algo a ver com a violência nos meios popularese nas populações periféricas que a explosão urbana, agora ajudada pelonarcotráfico, multiplica em condições de grandes carências. Mas ela é tambémrelevante quanto à instabilidade no plano das próprias instituições políticas, ouquanto ao fato de se terem mostrado por tanto tempo precárias entre nós asnormas que deveriam enquadrar institucionalmente os decisivos conflitos de

interesses envolvidos no desafio de incorporação social – vale dizer, a soluçãoefetiva e estável do que se designou acima como o nosso problema“constitucional”. A indagação que parece justificar-se é a que se refere à

26 Veja-se, por exemplo, Ronald Inglehart,   Modernization and Postmodernization: Cultural,

 Economic, and Political Change in 43 Societies, Princeton, Princeton University Press, 1997, fig.6.2, p. 174. A fonte dos dados aí examinados é a rodada 1990-93 do World Values Surveys.

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complexidade das relações causais envolvidas no problema: se cabe presumir que dificilmente criaremos uma sociedade genuinamente democrática, cívica einfensa à corrupção com a preservação do legado de desigualdade e elitismo,será razoável esperar que possamos superar esse legado sem agir com

determinação no sentido de criar “artificialmente” os mecanismos legais einstitucionais que possam pretender eficácia em barrar a corrupção e ajudar aimplantar uma cultura nova e politicamente mais propícia?

Seria certamente uma ilusão contar com que a manipulação demecanismos como os envolvidos nas regras que se têm discutido entre nós a

 propósito da reforma política permitisse, por si só, a solução cabal dos nossos problemas. Mas é impossível pretender retirar do reconhecimento disso a

razão para abdicar do esforço de construção institucional, que fatalmenteenvolve certo artificialismo legislativo posto em prática nas constrições daconjuntura, ainda que referido ao futuro e visando à impregnação do própriocontexto mais duradouro que enquadra e condiciona as ações do dia-a-dia. Setomamos, por exemplo, algo que surge como possibilidade relevante naconjuntura atual, o impedimento do presidente, e examinamos os dispositivoslegais pertinentes em sua relação com a estabilidade do processo políticocomo desiderato, é possível confrontar a respeito as normas parlamentaristas,que possibilitam o processamento institucionalmente sereno da substituição dachefia do governo em diferentes circunstâncias, com a “cintura dura” quealguns apontam no presidencialismo, no qual, fora dos momentos eleitorais

 prefixados, só se remove um chefe de governo mediante traumático processocriminal. Como quer que se avaliem os méritos gerais de um e outro sistemade diversos pontos de vista, isso obviamente fornece argumentos, por umaspecto importante, para o esforço de reforma que vise à implantação do

 parlamentarismo.

Mas outros temas em debate quanto à reforma política tocam maisdiretamente a questão da corrupção do que o tema complicado do sistema degoverno. Na crise que agora presenciamos, é evidente a contribuição negativae corruptora trazida por um sistema político-partidário e eleitoral que leva aextremos a fluidez dos vínculos entre os partidos e seus supostos membros,incentivando a prevalência, a cada momento, do cálculo orientado por 

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estreitos interesses individuais sobre considerações referidas ao partido ou arazões de lealdade partidária, em que os interesses supostamente se agregam eestruturam de maneira favorável ao bom andamento do processo político. Um

 princípio realista não torna aceitável que o necessário equilíbrio se rompa e a

 presença dos interesses se destempere na simples compra e venda de “passes”e apoios. E, ainda que o fundamento decisivo da consistência dos partidosdevesse vir, em última análise, de eleitores que se tornassem capazes deenvolvimento sofisticado e atento com o processo político e das identificações

 partidárias que nascessem daí (ideal que estamos longe de alcançar), não hárazão para renunciar a experimentar com legislação favorável à fidelidade

 partidária, ou com cláusulas de barreira, regras sobre coligações, adequadacombinação de princípios majoritários e proporcionais, listas partidárias

fechadas ou “flexíveis”... E, muito especialmente, com formas apropriadas definanciamento público das campanhas, seja qual for a dificuldade de encontrá-las e colocá-las em prática. Além do aspecto normativo de que, ao contráriodo direito de voto, o direito de ser votado está longe de ser asseguradoigualitariamente dada a enorme desigualdade no controle de recursos privados,é bem claro que os recursos para o financiamento da atividade político-

 partidária, em geral, e das campanhas eleitorais, em particular, são o pontocrucial do jogo de compra e venda e da articulação escusa entre o público e o

 privado.

A crise atual traz estímulos talvez inéditos a que se aja no sentido demudar o próprio substrato cultural da política brasileira. Se não se abre mão de

 postulados realistas, não cabe esperar que a eficácia da ação orientada por esseobjetivo seja o resultado de esforços edificantes e da aposta numa espécie de“conversão” dos agentes da política, que tem estado por certo subjacente àdifundida e perene exortação a que nossa vida política adquira conteúdo“ideológico”. Diferentemente, a eficácia virá de que as alterações nos

mecanismos institucional-legais sejam feitas de modo a mudar a percepção pelos agentes dos incentivos – e desestímulos – oferecidos aos seus interesses pelo contexto em que atuam. Se as percepções e expectativas – isto é, oscomponentes cognitivos das atitudes, ou das disposições a agir desta oudaquela forma – se modificam, então se poderá esperar que se cumpra o

 preceito sociológico segundo o qual expectativas que se reiteram tendem a

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transformar-se em  prescrições, com a eventual mudança real dos próprioscomponentes normativos e, assim, da cultura que os contém.27

Mas o que a crise encerra de oportunidade estará comprometido,

acredito, caso prevaleçam as filigranas do tipo “o trigo e o joio”, que não podem senão tornar mais árdua a pretensão, já de si problemática, de colocar,em alguma medida, a construção institucional de vistas mais largas à parte damiopia que acomete, naturalmente, além dos interesses individuais maisegoístas e estreitos, também o jogo dos interesses político-partidários. Tem-seapontado o “ovo da serpente”, a propósito dos traços mais feios dos fatosdesvendados na crise atual, em aspectos da história pregressa do PT. Cabe

 ponderar, contudo, que o ovo da serpente pode ser visto com mais propriedade

 justamente na disposição geral de aceitar com ligeireza ou leviandade que olimite da legalidade seja transposto: uma vez dado esse passo, não há comoimpedir a turvação em que cada novo passo rumo a coisas mais sinistras setornará possível e será provavelmente estimulado. Assim, se há indícios deque o assassinato de Celso Daniel seja justamente um desdobramento sinistrode práticas escusas de financiamento partidário e “caixa 2”, é bom lembrar que indícios análogos não deixam de surgir no caso de Cristiana Ferreira, amodelo mineira assassinada alguns anos atrás.

  Não parece haver como escapar a que o encaminhamento dado àsolução da crise, em seus aspectos mais imediatos, sirva de alicerce, de maior ou menor precariedade ou solidez, à eventual reforma política mais ambiciosae à construção institucional que ela pode representar. Isso talvez suscite aindagação sobre até que ponto será necessário, já nesse encaminhamento maisimediato, agir com realismo e buscar alguma acomodação, de maneira a evitar 

27 Dados brasileiros de pesquisa executada por equipe do Departamento de Ciência Política daUFMG, sob a coordenação do autor, mostram a importância dramática que podem assumir asrelações entre normas e expectativas no condicionamento do comportamento referido à política.Eles indicam com grande clareza, por exemplo, que, no caso de expectativas desfavoráveisresultantes da percepção do provável comportamento dos demais (justamente o que se destaca nasverificações negativas recém-mencionadas do World Values Surveys sobre o Brasil, que colocamcada qual diante do risco de “bancar o otário”), mesmo as normas a que efetivamente se adere setornam irrelevantes para as decisões sobre como agir. Veja-se Reis e Castro, “Democracia, Civismoe Cinismo”.

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os riscos, talvez grandes, que decorrem da possibilidade de derrocada geral dosistema político-partidário.

Mas, de um ponto de vista mais ambicioso, estaremos mal,

naturalmente, quanto mais essa acomodação ganhar a forma do “acordão” e ocheiro de “pizza” – ou quanto mais ela redundar em encobrir ou coonestar condutas impróprias de quem quer que seja. Pois isso não virá senãocorroborar as expectativas mais negativas, concorrendo para exacerbar adesmoralização geral da atividade política que há tanto tempo ocorre entre nóse que a crise atual intensificou.28 Se há leis que se mostram letra morta paratodos os agentes cujo comportamento procuram regular, que haja a necessáriamudança institucional, quer no que ditam as leis, quer na aparelhagem

destinada à fiscalização e à garantia de sua observância (com a reforma,quanto ao que aqui importa mais diretamente, em particular da JustiçaEleitoral, como parte da necessária reforma do Judiciário em geral). Mas que amudança não seja acompanhada (ou precedida) pelo simples cancelamento davigência ou relevância das leis em questão ou por evitar sua aplicação, sob

 pena de que as novas leis que as substituam já nasçam elas próprias, naexpectativa de todos, como provável letra morta. Isso é talvez especialmenterelevante diante da percepção generalizada, reforçada pelo cinismo dos líderesquanto ao “pequeno” crime do “caixa 2”, de que a crise tem amplo lastro em

 práticas que comprometem a todos, não obstante a cara mais feia por elasassumida no governo petista. E a advertência quanto a que não se evite aaplicação das leis vale, a meu ver, mesmo para a hipótese do impedimento do

 presidente da República. Supondo que as investigações, realizadas com todosos recursos legais, evidenciassem a responsabilidade do presidente nosdesmandos ocorridos, não seria a execução do impeachment  que permitiriafalar de golpe contra as instituições, mas sim a barreira oposta a ele peloscálculos político-eleitorais ou os interesses de um grupo ou outro e por 

eventuais conluios oportunistas e regras ad   hoc. O mesmo se aplica,naturalmente, quanto a propostas no sentido de que investigações relativas ao

28 Essa intensificação provavelmene inclui entre as suas causas as frustrações produzidas por duaslideranças sucessivas de natureza e estatura aparentemente especiais e pela promessa explícita ouimplícita de “refundação” política do país que trouxeram consigo.

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governo anterior, cujos protagonistas continuam a ter atuação destacada no processo político em curso, sejam deixadas a cargo de historiadores futuros.

O realismo a orientar o esforço de construção de instituições

duradouras, como se disse, tem de contar não com a virtude, mas com osinteresses, mesmo em sua feição mais vil, e até com o crime. É indefensável,

  porém, pretender que o realismo resulte justamente em que se deixe deenxergar o crime porventura existente. Tanto mais em nome do objetivo de

 produzir a sociedade em que o crime e os efeitos nefastos da eventual vilezados interesses sejam contidos.