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O GOVERNO DO ALUNO NA MODERNIDADE * Por Jorge Ramos do Ó Os últimos escritos de Michel Foucault, os três volumes da História da Sexualidade, têm tido grande impacto no modo como setores importantes da investigação atual vêm entendendo e discutindo os processos de expansão das situações educativas no processo de construção da modernidade. Foucault definiu aí um espaço analítico que permite ao investigador cruzar permanentemente os domínios da ética com os da política e determinar-se em estabelecer as bases sobre as quais as modernas práticas da subjectivação vêm sendo construídas. A meu ver, o novo olhar analítico que é lançado sobre a coisa educativa tem-se desenvolvido, no essencial, a partir do tríptico que sequencia todo o projeto de trabalho de Foucault: a análise dos sistemas de conhecimento, as modalidades de poder e as relações do eu consigo próprio. E se para cada um destes domínios viria a utilizar também três formas específicas de análise – designadas por “arqueologia”, genealogiae “ética” – no ano de 1978, num dos seus cursos anuais do Collège de France, Foucault cunhou um termo “governamentalidade” que, aliado à expressão “tecnologias do eu”, surgiriam como um pivô e um ponto de condensação do conjunto das suas reflexões anteriores. É a hipótese deste vaivém permanente que muito tem animado, entre vários outros, historiadores, sociólogos e filósofos da educação. O objetivo das tópicas da governamentalidade e das tecnologias do eu é gerar uma aparelhagem conceitual que possa tornar explícita tanto uma visão micro, tomando o indivíduo no seu próprio universo, quanto uma visão macro do tecido social, revelando uma preocupação de governo da população no seu conjunto. Admite-se assim que as dinâmicas da individualização e da totalização correspondem a um e a um só processo, e os últimos textos de Foucault mobilizam-se para inventariar os mecanismos de poder desenvolvidos, a partir do século XVI e na Europa Ocidental, para administrar e supervisionar as condições de vida dos cidadãos, de todos e de cada um em particular de modo homólogo. Esses textos procuram desvendar a emergência de todo um novo exercício do poder soberano ligado à Razão de Estado. RAMOS DO Ó, J. (2007) “O governo do aluno na modernidade”. Foucault pensa a educação, Segmento, p.36-45. 1

Ó, Jorge Ramos do. O governo do aluno na modernidade

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O GOVERNO DO ALUNO NA MODERNIDADE∗

Por Jorge Ramos do Ó

Os últimos escritos de Michel Foucault, os três volumes da História da

Sexualidade, têm tido grande impacto no modo como setores importantes da

investigação atual vêm entendendo e discutindo os processos de expansão das situações

educativas no processo de construção da modernidade. Foucault definiu aí um espaço

analítico que permite ao investigador cruzar permanentemente os domínios da ética com

os da política e determinar-se em estabelecer as bases sobre as quais as modernas

práticas da subjectivação vêm sendo construídas.

A meu ver, o novo olhar analítico que é lançado sobre a coisa educativa tem-se

desenvolvido, no essencial, a partir do tríptico que sequencia todo o projeto de trabalho

de Foucault: a análise dos sistemas de conhecimento, as modalidades de poder e as

relações do eu consigo próprio. E se para cada um destes domínios viria a utilizar

também três formas específicas de análise – designadas por “arqueologia”, genealogia”

e “ética” – no ano de 1978, num dos seus cursos anuais do Collège de France, Foucault

cunhou um termo “governamentalidade” que, aliado à expressão “tecnologias do eu”,

surgiriam como um pivô e um ponto de condensação do conjunto das suas reflexões

anteriores. É a hipótese deste vaivém permanente que muito tem animado, entre vários

outros, historiadores, sociólogos e filósofos da educação.

O objetivo das tópicas da governamentalidade e das tecnologias do eu é gerar

uma aparelhagem conceitual que possa tornar explícita tanto uma visão micro, tomando

o indivíduo no seu próprio universo, quanto uma visão macro do tecido social,

revelando uma preocupação de governo da população no seu conjunto. Admite-se assim

que as dinâmicas da individualização e da totalização correspondem a um e a um só

processo, e os últimos textos de Foucault mobilizam-se para inventariar os mecanismos

de poder desenvolvidos, a partir do século XVI e na Europa Ocidental, para administrar

e supervisionar as condições de vida dos cidadãos, de todos e de cada um em particular

de modo homólogo. Esses textos procuram desvendar a emergência de todo um novo

exercício do poder soberano ligado à Razão de Estado.

RAMOS DO Ó, J. (2007) “O governo do aluno na modernidade”. Foucault pensa a educação, Segmento, p.36-45.

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A governamentalidade corresponderia, assim, ao desencadear de toda uma arte

caracterizada pela heterogeneidade de autoridades e agências, empregando igualmente

uma desmesurada variedade de técnicas e formas de conhecimento científico destinadas

a avaliar e a melhorar a riqueza, a saúde, a educação, os costumes e os hábitos da

população. Este modelo biopolítico terá conhecido uma enorme aceleração a partir do

século XVIII. Com efeito, o Estado moderno foi-se afirmando através de formas de

notação, coleção, representação, acumulação, quantificação, sistematização e transporte

de informação, alimentando-se ainda do propósito de reinventar permanentemente

novas modalidades de divisão do espaço e do tempo social. Estas operações de poder-

saber terão paulatinamente configurado um dispositivo ágil para o governo da nação no

seu conjunto e disponibilizaram, da mesma maneira, critérios para o aperfeiçoamento

ético. A verdade do Estado passou a ser a verdade produzida pela ciência e, assim, tudo

o que esta enuncia remete diretamente para relações de poder.

Quando falava em tecnologias do eu, Foucault referia-se a um conjunto de

técnicas performativas de poder que incitaram o sujeito a agir e a operar modificações

sobre a sua alma e corpo, pensamento e conduta, procurando vinculá-lo a uma

actividade de constante vigilância e de adequação permanente aos princípios morais em

circulação na sua época. A subjetivação, tal como nos é apresentada por ele, envolve

exercícios de inibição do eu, ligados às dinâmicas políticas de governo e ao

desenvolvimento de formas de conhecimento científico. A sociedade moderna terá se

transformado, por essa via, numa sociedade essencialmente disciplinar. É exatamente

esta preocupação geral que anima a investigação foucaultiana dos últimos anos: analisar

a formação do homem moderno através dos mecanismos por meio dos quais cada um

passa a se relacionar consigo mesmo e a desenvolver toda uma autêntica arte de

existência destinada a reconhecer-se a si como um determinado tipo de sujeito. E um

sujeito cuja verdade pode e deve ser conhecida. Compreende-se assim como, para ele, a

ética torna-se inteligível somente como um domínio da prática.

Muitos investigadores entendem que este posicionamento intelectual traz

agregado um conjunto de ferramentas que permitem compreender as racionalidades, as

técnicas e as práticas que têm envolvido o cálculo e a formatação das capacidades

humanas. Por exemplo, o modelo de aluno autônomo – tão nosso conhecido e que a

escola tem promovido e sob tradições político-culturais as mais diversas – explica-se

por inteiro na tecnologia de governo discutida por Michel Foucault.

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De criança a aluno, ou o governo de si mesmo

Importa, desde logo, constatar que o processo de afirmação e consolidação

histórica da chamada escola de massas, a partir de finais do século XIX, nos faz ver que

as crianças e os jovens passaram a ser definidos, desde então e antes de qualquer outro,

pelo rótulo de escolares. A reflexão teórica do chamado último Foucault é um convite a

que o investigador educacional centre a sua atenção nos processos pelos quais a

subjetividade dos alunos se viu produzida. E veja o leitor aqui uma importantíssima

inversão. É como se, a partir de agora, passássemos a entender que toda a paisagem

escolar moderna tenha sido construída não tanto sobre o saber – sobre as competências

intelectuais do aluno – mas, essencialmente, sobre o ser, isto é, sobre o modelo de

cidadão que importava construir para as várias autoridades, fossem elas quais fossem.

Com efeito, no espaço da modernidade, toda a relação educativa pareceu

alimentar-se do princípio de que se deveria estabelecer um nexo causal entre o

conhecimento particularizado das tendências, hábitos, desejos ou emoções dos alunos e

a moldagem da sua sensibilidade moral. A meu ver, foi exatamente a tentativa de

viabilizar esta tecnologia disciplinar-normalizadora que esteve na origem da

descoberta do aluno e do seu tratamento diferenciado a partir do último quartel do

século XIX. Se, nessa conjuntura histórica, a personalidade individual havia se tornado

o elemento central da cultura intelectual, era natural que o educador passasse, também

ele, a ter em conta o germe de individualidade que se escondia no interior de cada

criança. Para tanto, logo se consolidaria o princípio segundo o qual bastaria um

conhecimento efetivo das leis psicológicas de cada escolar para modificar, de alto a

baixo, a instituição escolar. De fato, foi a defesa desta tese que levou a declarar-se

cientificamente a falência da pedagogia tradicional, autoritária, uniformizadora, o velho

ensino tradicional que havia esquecido a livre iniciativa e a inventividade própria do

aluno, no apelo constante que fazia ao exercício estereotipado e à memorização

estupidificante. Em vez de tratar a população escolar de forma uniforme e invariável, o

educador que quisesse receber o epíteto de moderno deveria, ao contrário, variar as suas

metodologias de ensino de acordo com a estrutura de cada inteligência e o

temperamento individual. O propósito de ajustar as práticas educativas à diversidade de

casos particulares – ou o ensino por medida – iria se transformar, assim, na máxima

pedagógica por excelência da modernidade.

Esta nova dinâmica de enquadramento das populações infanto-juvenis

universalizou, igualmente, um modelo de integração moral inteiramente diverso do

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anterior. A incorporação de princípios éticos, mediante uma prática cada vez mais

definida como da autonomia funcional e da liberdade, viria a impor-se como a marca

socializadora mais distintiva e consensual do modelo educação que se espalhou pelos

quatro cantos do mundo ao longo do século XX e que nos atinge inteiramente no

presente. No também designado “século da criança”, a disciplina passou, de fato, a ser

um exercício cada vez mais solitário e associado à autonomia e iniciativa pessoal do

aluno. No contexto de afirmação e expansão da escola de massas, liberdade e autoridade

passaram sempre a ser descritas como realidades justapostas senão mesmo simbióticas.

O discurso pedagógico moderno projetou um e um só um ideal-tipo moral, o do

estudante independente-responsável. Aquele que, medindo muito bem tanto os seus atos

e formas de comportamento, saberia sempre encontrar a melhor forma de se adaptar

espontaneamente à vida escolar. Todo um programa de poder se vulgarizou, portanto,

explicando que a verdadeira aprendizagem consistia em levar o aluno a descobrir por si

mesmo a forma de instituir um lugar social no espaço que ele próprio ocupava.

Não há dúvida de que a grande bandeira dos renovadores educacionais tem sido

sempre a de valorizar a identidade sobre o conhecimento: a conduta passaria a constituir

o problema pedagógico maior e a cultura de si a ocupação mais importante da criança e

do jovem. O essencial do seu esforço foi no sentido de mostrar como a matéria ética

deveria ser indissociável do postulado segundo o qual a escola fabricaria um tipo de ator

que devia, ele mesmo, ser sujeito da sua própria educação. O conhecimento

psicopedagógico procurou disponibilizar repertórios discursivos reclamando a

normalização social como um trabalho sobre o eu.

Numa palavra, os sistemas estatais de ensino foram, portanto, sendo constituídos

de acordo com a regra da governamentalidade: o treino moral da população jovem fez-

se tendo em vista o objetivo mais geral do aumento da força e prosperidade do Estado,

mas teve pressuposta a reivindicação do bem-estar de cada um dos cidadãos.

Um pouco de teoria: poder e discurso em Foucault

Esta intencionalidade programática tem obrigado, pelo menos, à definição de

dois grandes problemas teóricos. Atentemos às suas linhas gerais.

O primeiro tem que ver com o entendimento e a utilização do conceito poder.

Para Foucault ele não deve mais ser trabalhado como uma propriedade, qualquer coisa

que se detenha, mas como uma composição. Quando falarmos de poder deveremos

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valorizar a circulação, a difusão, as redes, o consumo e, jamais, a posse. Foucault

convida-nos a olhar e verificar que até mesmo nas sociedades do Antigo Regime se

representavam já como politicamente plurais, dotadas de uma série de pólos políticos,

cada um no seu âmbito de forma autônoma, e adotando interesses particulares, que

deviam ser compatibilizados em função do bem comum, e nunca podiam ser

sacrificados a um interesse público absolutamente hegemônico. Nesta linha, os

investigadores educacionais que reclamam a herança intelectual foucaultiana procuram

tentar perceber como, numa profusão de locais e sem uma ordem única, se foram

codificando e postos a circular modelos de condução da conduta que a instituição

escolar foi tomando como seus e foi sucessivamente desenvolvendo até atingir o

coração dos alunos.

Esta compreensão dos jogos de poder obriga a verificar que nas sociedades

modernas o domínio da moralidade foi remetendo cada vez menos para sistemas

universais de injunção e proibição e mais para um quadro de liberdade regulada. Cada

singularidade passou a ser vista como um ponto de passagem objetivada de princípios e

forças de poder. A modernidade será, assim, caracterizada pelo permanente desígnio de

governar sem governar, de ampliar o poder até aos limites mais distantes, ou seja, às

escolhas de sujeitos autônomos nas suas escolhas. De acordo com esta perspectiva, é

possível enquadrar a coisa educativa e as próprias práticas de socialização das crianças e

dos jovens à luz da dinâmica maior da liberdade. As estratégias que temos desenvolvido

a partir de finais do século XIX, ou seja, desde que se constituiu o campo das ciências

da educação, parecem poder de fato explicar-se como fazendo coincidir a direcção e a

condução de sujeitos livres com os objectivos de governo da população. Os padrões e

respectivos incentivos à reflexão-ação do aluno configuraram um modelo em que a

autonomia e o autocontrole surgiam como as marcas da identidade e da relação inter-

pessoal. Mas veja-se que não se está dizendo que a escola tenha sido alguma vez um

espaço onde os seus habitantes circulassem livremente, sem ordem nem regras. Muito

longe disso. O que se defende, na linha de Foucault, é que todos os mecanismos de

submissão ética desenvolvidos, ao menos de um século até agora, têm suposto sempre

que ele possa tomar as suas próprias decisões. Na escola, de há muito que a palavra

moral se traduz por vontade e governo de si.

Um segundo problema relaciona-se com o discurso, ou seja, com os regimes de

inteligibilidade. Governar passa a ser entendido como agir de acordo com uma certa

descrição. De fato, na modernidade as zonas de governo vêem-se confundindo cada vez

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mais com operações intelectuais e com a circulação de discursos científicos suscetíveis

de refletir toda uma massa de fenômenos. A população no seu conjunto passou a ser

objeto de conhecimento, reclamando a presença de novos especialistas. O Estado viu-se

a produzir e a sofisticar a legislação, as estatísticas, os índices etc., com o fim de

simultaneamente explicar e conformar o funcionamento da economia e a sociedade.

Estou, portanto, falando de todo um regime de enunciação que, em nome de um

conhecimento racional, permitiu a diferentes autoridades, públicas e privadas, reclamar

a possibilidade do seu governo dos homens e das coisas. Neste quadro, a pedagogia foi

também ela, em grande medida, construída sob as categorias e divisões definidas pela

ciência e absorvidas pelos sistemas de ensino estatais. Toda a relação educativa

moderna tem uma raiz psi, o que significa que tornou-se dependente dos diagnósticos,

orientações teóricas, divisões e formas de explicação que a psicologia concebeu para

indexar e reelaborar os imperativos éticos. Pode então falar-se de uma regulação

psicológica do eu, como derivando daquela ciência da alma em franca expansão há mais

de um século. Apontando para as capacidades e as aptidões, a saúde e as doenças, as

virtudes e as perversões, a normalidade e as patologias do escolar, a psicologia está na

base, de fato, de todas as técnicas e dispositivos discursivos relativos à identidade e à

conduta. O arco psicológico não configurou mais que uma problematização sequenciada

da forma como as crianças e jovens foram eles mesmos constituídos historicamente

também como um problema.

Uma visão da escola disciplinar

Os velhos mecanismos da direção e da confissão, para Foucault, passaram a ser

misturados, no interior da escola, a fim de que todos os aspectos relacionados com a

intimidade dos alunos fossem seguidos até às ramificações mais delicadas. Neste tipo de

organização que vimos historicamente construindo, há uma mecânica de governo que

faz com que a criança e o adolescente trabalhem a memória, o entendimento, a vontade

e o desejo numa mesma sequência lógica. De fato, espírito e corpo passaram a ser

simultaneamente apresentados pelos experts e pelas autoridades escolares como

realidades plásticas e moldáveis – espécie de página em branco onde a instituição pode

inscrever livremente tudo –, e, ao mesmo tempo, realidades plenamente constituídas, em

que cada sujeito está incumbido da missão de descobrir a raiz, as ramificações e as

deslocações dos seus pensamentos e fantasias súbitas.

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Foucault remeteu a realidade escolar para esta técnica de poder que, já no século

XVIII, incitava ao discurso acerca do corpo e da sexualidade. É muito significativo que

tenha apresentado dela uma visão integrada a partir de um trabalho sobre a intimidade.

Vejamos então a descrição que Foucault nos dá dos colégios de ensino da época,

colhida no primeiro volume da sua História da Sexualidade: “O espaço da aula, a forma

das mesas, a disposição dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios (com ou sem

divisórias, com ou sem cortinados), os regulamentos previstos para a vigilância do deitar e do

sono, tudo isso remete de um modo muito prolixo para a sexualidade das crianças. Aquilo a que

se poderia chamar o discurso interno da instituição – aquele que ela profere para si própria e que

circula no meio dos que a fazem funcionar – está em parte importante articulado com a

verificação de que essa sexualidade existe, precoce, ativa, permanente. Mas há mais: o sexo do

colegial tornou-se, no decurso do século XVIII – e de um modo mais especial do que o dos

adolescentes em geral –, um problema público. Os médicos dirigem-se aos diretores de

estabelecimentos e aos professores, mas dão também os seus conselhos às famílias; os

pedagogos fazem projetos que submetem às autoridades; os mestres viram-se para os alunos,

fazem-lhes recomendações e redigem para eles livros de exortação, de exemplos morais ou

médicos. Em torno do colegial e do seu sexo prolifera toda uma literatura de preceitos, de

conselhos, de observações, de conselhos médicos, de casos clínicos, de esquemas de reforma, de

planos para instituições ideais... Seria inexato dizer que a instituição pedagógica impôs

maciçamente o silêncio ao sexo das crianças e dos adolescentes. Pelo contrário, desde o século

XVIII, ela desmultiplicou a seu respeito as formas do discurso”.

As regras da arte de governo foram-se impondo naturalmente na escola. A

palavra-chave não será tanto a aprendizagem mas o exame – e são vários os sentidos

que a palavra pode adquirir –, a que toda a sua população permanece vinculada. Nessa

operação formalizam-se inúmeros códigos da individualidade que permitem transcrever,

e introduzir na série, os traços de cada sujeito. Mais do que em qualquer outra

organização social, a figura do exame é ritualizada pela escola num jogo de

pergunta/resposta/recompensa que reativa os mecanismos de constituição do saber

numa relação de poder específica. Desde logo, o sistema das notas, além de garantir a

passagem desigual dos conhecimentos, força à comparação perpétua de cada aluno com

todos os outros da classe. Depois, a lógica linear e progressiva caracteriza o exercício

propriamente escolar – com a sua complexidade crescente, tarefas a um tempo

repetitivas e diferentes mas apontando sempre para essa figura terminal do exame –,

permite, sem dúvida, que o indivíduo se vá adequando desde o início à regra da relação

tanto com os outros como com um determinado tipo de percurso. Os rituais escolares

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avaliam o aprendizado, disponibilizando-lhe ainda um lugar entre pares num

alinhamento espaciotemporal.

Pouco a pouco, relembra Foucault em sua História da Sexualidade, “o espaço

escolar desdobra-se; a classe torna-se homogênea [...], só se compõe de elementos

individuais que vêm colocar-se uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre. A

ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição

dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios;

colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e a cada prova; colocação que

ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das

classes de idade umas depois das outras; sucessão de assuntos ensinados, das questões

tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente [...] Movimento perpétuo onde os

indivíduos se substituem uns aos outros, num espaço escondido por intervalos

alinhados. A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações

técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que

trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo

confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais tornou possível o

controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia

do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de

ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar”.

Mas este trabalho de diferenciação é ainda mais profundo. Por meio de uma

intervenção de tipo clínico constrói-se o que Foucault define como microfísica ou

anatomia política do detalhe. Nas escolas não se examinam apenas conhecimentos, mas

também os comportamentos e as aptidões que cada um dos escolares apresenta de

forma natural. Quando se mede uma realidade a partir duma tabela universal, está se

utilizando unicamente uma técnica de hierarquização – correlacionando elementos,

organizando campos comparativos, formando categorias –, que estabelece médias e

infere normas do comportamento populacional. Ora são exatamente essas escalas

orgânicas e combinatórias, como as dos testes de inteligência ou personalidade, que dão,

de forma paradoxal, visibilidade aos indivíduos. É, pois, todo um poder que

individualiza justamente na medida em que obriga à homogeneidade. A figura lata do

exame parece assim fixar a singularidade como uma aposição, o que indica bem o

aparecimento de uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status a

sua própria individualidade, e onde está estatutariamente ligado aos traços, às notas que

o caracterizam e fazem dele, de qualquer modo, um caso

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É claro que todo este gigante aparelho de anotação e registo das aptidões,

capacidades e do percurso biográfico de cada estudante é determinado pela lógica de

funcionamento do que Foucault denomina de campo científico-disciplinar. A medicina,

mas também a psicologia e a pedagogia, entre outras ciências positivas do indivíduo que

aparecem no fim do século XVIII, não cessam de investigar tendo como referência

única um padrão de normalidade. Os processos individuais mostram uma fiscalização

multilinear e uma variação constante das situações em que o corpo, a mente e a

performance escolar são observados. O insucesso, a delinquência ou a loucura secreta

ficam nas franjas de qualquer estatística populacional-escolar, determinada sempre pela

vitória de uma maioria assaz produtiva e saudável, mas nenhum sujeito terá de si a visão

reconfortante da instituição em que se insere. As variáveis quantitativas e qualitativas

em que é medido, comparado, e que traduzem a sua existência singular como aluno, só

deixam registradas as situações de desvio ou os planos inclinados que levam

diretamente a ele. Numa palavra: a individualização objetiva-se pela dimensão da

distância em relação ao padrão médio da escola. É esta a regra sobre a qual se

estabelecem todas as diferenças individuais. O efeito unificador não desaparece após a

descoberta e consequente classificação destes indivíduos; continua a operar mas no

interior deles, e no momento em que diferenciadamente passam ter de referenciar a sua

identidade a esses rótulos e esferas desviantes que o poder/saber lhes disponibiliza. As

fronteiras identitárias dos alunos tendem a adequar-se, colando-se-lhes ou negando-as

veementemente, às categorias em que se acham referenciados. Será porventura ocioso

sequer lembrar que a realidade do normal não é descrita, tão pouco enunciada, apesar

desta arte de governo não visar outro objetivo que não o do seu pleno enraizamento. A

normalização é um processo, espécie de meta unificadora, todavia jamais franqueada

por qualquer sujeito. As tabelas primeiramente ensaiadas nos espaços que tratam da

deficiência ou da marginalidade vão transformar-se, na época contemporânea e em

grande parte graças à ação da escola, em verdadeiras tecnologias políticas do eu. É

muito importante reconhecer que esta integração, pela via de uma racionalidade de tipo

marginalista, e fundamentalmente a partir do século XIX, amplia o tipo de relação entre

o social e o individual.

Pensar contra o presente

Parece-me que um dos grandes desafios da investigação social que hoje

procuramos fazer está em mostrar que o conhecimento das relações pedagógicas

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instauradas em relação às crianças e aos jovens – transformando-os sempre, isto é,

crescentemente a partir do século XIX, em alunos – se aprofunda a partir das

perspectivas abertas pela governamentalidade e das tecnologias do eu. Talvez por essa

via consigamos pensar, com outro distanciamento, aquela que é a instituição social que

nos é mais familiar. E talvez ainda passar a ter dela uma imagem menos ingênua ou

idealizada em face das suas multímodas forças e dinâmicas disciplinares sobre a qual se

foi paulatinamente construindo. É esse o desafio que Foucault nos propõe: estudar de

forma cuidadosa especificidades e formas de funcionamento que desnaturalizem as

nossas evidências menos questionadas. Pensar contra o presente. Pensar diferente.

Jorge Ramos do Ó é doutor em Historia da Educação pela faculdade de Psicologia e de

Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, onde é professor. Publicou O Lugar de

Salazar:Estudo e Antologia (Alfa, 1990), Os Anos de Ferro: O Dispositivo Cultural nos Anos

da Política do Espírito – 1933-1949 (Estampa, 1999) e O Governo de Si Mesmo (Educa, 2003).

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