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Fernando Catroga Análise Social, vol. XXIV (100),1988(1.°),211-273 O laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1911)* A questão religiosa constituiu um dos pontos nodais em que mais acen- tuadamente se concentraram as contradições que estiveram na génese da sociedade portuguesa que emergiu da paulatina destruição do Antigo Regime. Mas, se quisermos perceber o modo como o militantismo laicista das últimas quatro décadas do século xix e princípios do século xx a equacionou, teremos de qualificá-la como sendo filha de um eclectismo anti-religioso, pois pensamos que o enquadramento cientista que a fundamentou 1 lhe conferiu uma indiscutível unidade, ainda que compatí- vel com uma grande diversidade de expressões. Captar tudo isto será o escopo das páginas que se seguem, começando-se por tentar perceber como é que o anticlericalismo político tradicional (antijesuitismo, anticongrega- nismo, anticlericalismo propriamente dito) foi inserido na estratégia que culminará nas leis laicistas da República. DO ANTICLERICALISMO LIBERAL À DIMENSÃO SOCIAL DA QUESTÃO RELIGIOSA Desde logo há a destacar que, para o laicismo, o Jesuíta, o frade e o padre apareciam como propagadores de uma visão do mundo e de uma moral anacrónica e, Consequentemente, adequadas aos interesses da reac- ção política e do ultramontanismo. Surge assim como natural a sua absor- ção do legado antijesuítico de Pombal, da herança anticongreganista do liberalismo e do anticlericalismo protagonizado por intelectuais como Ale- xandre Herculano 2 . E, se os momentos altos dessa actualização foram condicionados por conjunturas de crise política e social (inícios da década de 70, primórdios dos anos 80, inícios do século xx), uma análise diacró- nica permite surpreender uma preocupação constante na campanha laica: a denúncia dos malefícios civilizacionais que o clero —sobretudo o regular — estaria a provocar enquanto agente educativo, assistencial ou religioso. Para se inteligir esta faceta da questão religiosa poder-se-ia optar por uma descrição das múltiplas manifestações políticas que, desde o início dos * Este texto reproduz, quase na íntegra, um capítulo da nossa obra A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal (1865-1911), vol. 1, Coimbra, 1988, pp. 489-612. 1 Cf. Fernando Catroga, op. cit., pp. 221-279. 2 Sobre o anticlericalismo de Herculano veja-se Fernando Catroga, op. cit., vol. 1, pp. 8 e segs. 211

O Laicismo e a Questão Religiosa Em Portugal

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Trata da história do desenvolvimento do laicismo em Portugal em consonância com a chamada Questão Religiosa

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  • Fernando Catroga Anlise Social, vol. XXIV (100), 1988 (1.), 211-273

    O laicismo e a questo religiosaem Portugal (1865-1911)*

    A questo religiosa constituiu um dos pontos nodais em que mais acen-tuadamente se concentraram as contradies que estiveram na gnese dasociedade portuguesa que emergiu da paulatina destruio do AntigoRegime. Mas, se quisermos perceber o modo como o militantismo laicistadas ltimas quatro dcadas do sculo xix e princpios do sculo xx aequacionou, teremos de qualific-la como sendo filha de um eclectismoanti-religioso, pois pensamos que o enquadramento cientista que afundamentou1 lhe conferiu uma indiscutvel unidade, ainda que compat-vel com uma grande diversidade de expresses. Captar tudo isto ser oescopo das pginas que se seguem, comeando-se por tentar perceber como que o anticlericalismo poltico tradicional (antijesuitismo, anticongrega-nismo, anticlericalismo propriamente dito) foi inserido na estratgia queculminar nas leis laicistas da Repblica.

    DO ANTICLERICALISMO LIBERAL DIMENSO SOCIAL DAQUESTO RELIGIOSADesde logo h a destacar que, para o laicismo, o Jesuta, o frade e o

    padre apareciam como propagadores de uma viso do mundo e de umamoral anacrnica e, Consequentemente, adequadas aos interesses da reac-o poltica e do ultramontanismo. Surge assim como natural a sua absor-o do legado antijesutico de Pombal, da herana anticongreganista doliberalismo e do anticlericalismo protagonizado por intelectuais como Ale-xandre Herculano2. E, se os momentos altos dessa actualizao foramcondicionados por conjunturas de crise poltica e social (incios da dcadade 70, primrdios dos anos 80, incios do sculo xx), uma anlise diacr-nica permite surpreender uma preocupao constante na campanha laica: adenncia dos malefcios civilizacionais que o clero sobretudo o regular estaria a provocar enquanto agente educativo, assistencial ou religioso.

    Para se inteligir esta faceta da questo religiosa poder-se-ia optar poruma descrio das mltiplas manifestaes polticas que, desde o incio dos

    * Este texto reproduz, quase na ntegra, um captulo da nossa obra A Militncia Laicae a Descristianizao da Morte em Portugal (1865-1911), vol. 1, Coimbra, 1988, pp. 489-612.

    1 Cf. Fernando Catroga, op. cit., pp. 221-279.

    2 Sobre o anticlericalismo de Herculano veja-se Fernando Catroga, op. cit., vol. 1, pp.

    8 e segs. 211

  • Fernando Catroga

    anos 70, foram promovidas contra as ordens religiosas, ou recorrer aoestudo pormenorizado dos textos anticlericais sados em livros, jornais erevistas alguns dos quais especificamente criados para esse combate(A Semana de Loyola: 1884-85; O Anti-Jesuta: 1894; Demolio: 1909;A Lanterna: 1909-1910), ou ainda invocao das inmeras confern-cias e sesses pblicas realizadas com objectivos anlogos. Porm, com talcaminho, cair-se-ia numa interminvel enumerao factual e cronolgica,que, conquanto seja perspectiva a merecer estudo monogrfico prprio,lesaria a economia desta exposio e colidiria com o esprito sinttico quelhe queremos dar. Neste contexto, procurar-se- compreender, antes demais, como que um projecto cultural de matriz dessacralizadora e laicarecuperou os contributos secularizadores, que j vinham de trs, para umaperspectiva que se objectivar num ataque mais radical ao estatuto medi-tico e educativo do clero e da Igreja.

    Sabe-se que a chamada questo italiana e as deliberaes do ConclioVaticano I, articuladas com a crise social e poltica que a Comuna e avitria da III Repblica Francesa, laica e anticlerical3, simbolizaram4,condicionaram um novo empolamento da questo religiosa. E, recorde-se,para alm da contra-ofensiva doutrinal (neotomismo), saram de Romaincentivos para que essa campanha recebesse uma traduo organizada.Foi neste contexto que surgiu, entre ns, a Associao Catlica (1872),liderada pelo conde de Samodes, facto que, ligado s provas da crescentepenetrao das ordens religiosas no Pas, no deixou de incomodar osmeios polticos mais fiis tradio anticongreganista do liberalismo por-tugus. Como resposta, nasceu em Coimbra5 um movimento a favor dafundao de associaes liberais, sob o impulso de alguns maes e positi-vistas. O seu programa era claro: apelava para o revigoramento de umafrente liberal ampla, programaticamente baseada na defesa das leis secula-rizadoras de Pombal e do liberalismo6, condio que consideravam fun-damental para que no voltassem a perigar os alicerces do sistema repre-sentativo.

    Sublinhe-se que, neste perodo, o anticongreganismo no era exclusivodo republicanismo nascente. Compartilhavam-no, igualmente, muitos sec-tores que no punham em causa o regime monrquico. Da o carcterapartidrio que se quis imprimir s associaes liberais, embora as cautelasde instituies como os rgos superiores do Grande Oriente LusitanoUnido7 no tivessem dado iniciativa o sucesso que, para os seus promo-tores, a ameaa ultramontana exigia. A de Coimbra teve, porm, uma vida

    3 Cf. Andr Mater, La Politique Religieuse de la Republique Franaise, Paris, Librairie

    Critique mile Nourry, 1909.4 Fernando Catroga, op. cit., vol. 1, pp. 416-433.

    5 Para alm de Ablio Roque de S Barreto, foram fundadores da Associao Liberal de

    Coimbra Manuel Emdio Garcia, Zeferino Cndido e Correia Barata. Cf. Antnio ZeferinoCndido, Dr. Manuel Emigdio Garcia, in O Occidente, vol. 27. XXVII ano, n. 931, de 10de Novembro de 1904, pp. 249-250.

    6 assim sintomtico que a Associao Liberal de Coimbra que existia desde

    1876 , aquando das comemoraes pombalinas, tenha feito sair um opsculo que reprodu-zia as leis de 3 de Setembro de 1759 e o Decreto de 28 de Maio de 1834, da autoria de JoaquimAntnio de Aguiar, Cf. As Leis de Secularizao em Portugal, Lisboa, Typographia Popular,1883.

    212 7 Cf. Fernando Catroga, op. cit., vol. 1, pp. 420-422.

  • O laicismo e a questo religiosa

    muito activa nos finais da dcada de 708 e nos princpios dos anos 80 esabemos que na Covilh e no Porto9 se levantaram associaes anlogas,grupos que tiveram um papel relevante na agitao do problema anticon-greganista10 e na promoo do centenrio de Pombal11. E, quando seavana no tempo e se nos depara a gnese de comisses antijesuticas(1889, 1894), ou a formao de grupos como a Liga Liberal (1900) e deoutras agremiaes anticlericais mais efmeras e menos importantes, ainda a mesma inteno que encontramos presente: defender a legislaoanticongreganista anterior e concitar a mobilizao da opinio pblica volta de valores que eram apresentados como sendo fundamentais para asobrevivncia do sistema representativo e, por isso, passveis de serem par-tilhados por vrias tendncias poltico-ideolgicas.

    No temos dvidas de que muitos dos activistas que animaram o com-bate anticlerical, no s nesta poca, mas tambm nos finais do sculo,no ultrapassaram o horizonte definido pela Associao Liberal de Coim-bra, ainda na dcada de 70. Tratava-se, em suma, de prolongar a luta ini-ciada por Pombal12, Joaquim Antnio de Aguiar e pelos agitadores docaso das Irms da Caridade13 e dos Lazaristas e obstar a que se consoli-dasse, com a conivncia tcita das autoridades, o regresso, de facto, dasordens religiosas, legalmente proscritas. E faziam-no por motivos naciona-listas aquelas eram estrangeiras e exteriores autoridade da igrejanacional, por razes filosficas os votos perptuos colidiam com osdireitos fundamentais do homem e por motivos culturais e polticos: a

    8 No dizer de um jornal da poca, esta Associao nasceu num momento perigoso em

    que a reaco clerical ameaava a liberdade (O Tempo, xi ano, n. 1757, 10 e 11 de Maiode 1881, p. 1, col. 5).

    9 Sabemos que, pelo menos em 1883, esta Associao estava activa no Porto e tinha

    como dirigentes Joo Carlos Freire Temudo Rangel, Joo Carlos Pereira da Silva Lessa,Manuel Carneiro Pinto, Rodolfo de Castro, Joaquim Manuel Pereira Bitetos, Alfredo doAmaral Gaspar, Manuel Fernandes de Oliveira, Joaquim Coelho Bragante, Manuel Martinsdos Santos Jnior, Jos Joaquim Pereira, Henrique Gomes da Silva e Antnio Ferreira deJesus. Cf. Supplemento ao n. 3728 do Conimbricense, Coimbra, Casa Minerva, 1883, p. 2,col. 3.

    10 O tema da campanha antijesutica nos incios da dcada de 80 pode ser atestado por

    escritos como os de Silva Pinto, Os Jesutas, Cartas ao Bispo do Porto, 3.a ed., Porto, Typo-graphia Occidental, 1880; Teixeira Bastos, Os Jesutas, Lisboa, Antnio Furtado (ed.), 1880;Alexandre Braga, Discurso Pronunciado no Comcio Antijesutico Realizado no Theatro dosRecreios a 7 de Setembro de 1885, Porto, Typographia Occidental, 1885.

    11 A Associao Liberal de Coimbra, neste perodo, ligou mesmo a questo religiosa

    questo nacional levantada a propsito da discusso do tratado de Loureno Marques coma Inglaterra. Para protestar, lanou um manifesto e promoveu um comcio com o sentimentoe aplauso de dois mil e tantos cidados {Suplemento ao n. 3504 do Conimbricense, 1881,p. 1). Cf. tambm O Conimbricense, xxxiv ano, n. 3505, 8 de Maro de 1881, p. 1, cols.1-4.

    12 Das mltiplas evocaes de Pombal para reforar o anticlericalismo da poca veja-se

    a de Jos de Castro, O Marquez de Pombal e o Jesuitismo, Conferencia Apresentada noSalo do MontePio Egitanniense por Occasio do 1. Centenrio do Grande Estadista noDia 8 de Maio de 1882, Coimbra, Imprensa Acadmica, 1882. Sobre as comemoraes pom-balinas veja-se Fernando Catroga, op. cit., vol. 2, pp. 921-932.

    13 O problema da invaso das ordens regulares estrangeiras, vocacionadas para aces

    na esfera da assistncia e do ensino, provocou uma acesa polmica que apaixonou a opiniopblica nos finais da dcada de 50 e princpios dos anos 60. So inmeros os textos que a elese referem. Mas, por todos, veja-se o estudo de Maria do Cu Cristvo, A Questo dasIrms de Caridade; Estudo de Opinio Pblica: 1858-1862, Lisboa, 1977 (dissertao delicenciatura apresentada Faculdade de Letras de Lisboa; exemplar mimeografado). 213

  • Fernando Catroga

    influncia sobre os estabelecimentos de ensino e sobre as conscincias iriaadulterar a educao14, impedir a consumao da privaticidade da famlia(devido forte atraco feminina pela religio) e actuar como um grupo depresso que s serviria os interesses dos sectores mais reaccionrios. Emsuma: no clero no existiria nem amor de ptria, nem de famlia, nem detrabalho, nem de justia, nem de paz15. Mas este posicionamento, s porsi, no significava a adeso a postulados agnsticos ou atestas quanto aoproblema religioso, dado que, em muitos casos, foi compatvel com a acei-tao do catolicismo16, ou, pelo menos relembre-se o debate dentro daMaonaria17, com uma religiosidade natural de fundo desta. Noentanto, igualmente verdade que, com a crescente influncia da doutrina-o cientista e a tomada de conscincia de que o clericalismo seria insepa-rvel de outros aspectos da organizao da sociedade, a memria e a actua-lizao da campanha anticongreganista foram paulatinamente integradasnuma atitude crtica mais global religio.

    A QUESTO RELIGIOSA E A QUESTO SOCIALOra o estudo da evoluo do militantismo laico nos seus vrios matizes

    convenceu-nos de que seria errado caracterizar o anticlericalismo (na acep-o ampla do termo) exclusivamente em funo dos seus suportes poltico--ideolgicos, pois isso equivalia a consider-lo, no caso portugus e para operodo que nos interessa, uma das expresses que a ideologia republicanamais agitou com a finalidade no somente de demolir um dos sustentculosda Monarquia, mas tambm de recalcar a importncia da questo social naluta contra o regime. Definir o problema nestes termos seria secundarizaro papel autnomo das ideologias na assuno da conscincia histrica eimplicaria esquecer a funo sociopoltica que a Igreja e a sua gesto dosimbolismo social desempenhavam na legitimao e reforo do poder esta-belecido. Assim, se, no horizonte dos efeitos polticos da contestao anti-clerical, o adversrio era, principalmente, a reaco (identificada com olegitimismo), com as modificaes doutrinais da Igreja e, em particular,com o apostolado de Leo XIII, o equacionamento, numa perspectiva deesquerda, dos problemas sociais e polticos no mais ser feito sem levarem conta as propostas alternativas que a Igreja comeou a apresentarcomo soluo para o dilema entre a democracia e a autoridade, o capital

    14 Todas as intervenes contra a presena dos Lazaristas e das Irms da Caridade

    (Mendes Leal, Alexandre Herculano, Vicente Ferrer Neto Paiva) so unnimes em denunciaros malefcios para a educao nacional decorrentes do magistrio das ordens religiosas. Umaboa smula dessas preocupaes encontra-se no opsculo annimo Jesutas e Lazaristas,Segunda Edio Augmentada de Os Jesutas em 1860, Lisboa, Typ. de J. G. de Sousa Neves,1862. Pode dizer-se que este diagnstico ser integrado no anticlericalismo subsequente.

    15 Miguel Bombarda, O Estado e o clericalismo, in O Mundo, ix ano, n. 3108, de 29

    de Junho de 1909, p. 1, cols. 1-4.16

    Aquando da morte de Alexandre Herculano, um admirador da sua obra veio a ter-reiro para denunciar os que no queriam compreender que o anticlericalismo do historiadorseria compatvel com o fundamento testa da sua viso do mundo. Cf. Sousa Moreira, Ale-xandre Herculano e o Clero Romano, antes e depois da Sua Morte, Porto, Escriptores daEmpreza, 1877, pp. 24 e segs.

    214 17 Fernando Catroga, op. cit., vol. 1, pp. 423-424 e 480-481.

  • O laicismo e a questo religiosa

    e o trabalho. No lugar prprio estudmos como que este desafio foi assi-milado pelo movimento laico18 e quais foram os seus efeitos imediatos naquesto religiosa: cresceu o nmero dos que passaram a conexionar a com-preenso do fenmeno clerical com a crtica sociedade que o produzia eque se servia do clericalismo como instrumento de domnio.

    E, se as associaes laicistas procuraram responder, no terreno, aber-tura da Igreja questo social, escritores houve que tentaram dar uma res-posta mais teortica ofensiva do catolicismo sobre o grupo social em quea descristianizao parecia progredir mais aceleradamente: o operariado.Foi para isso que j em 1888 Heliodoro Salgado se lanava na luta em proldo aprofundamento da crtica anticlerical, recorrendo filosofia e hist-ria das religies para demonstrar a insolvel anttese que, a seu ver, existi-ria entre o catolicismo e o socialismo. Para isso invocava o princpioproudhoniano segundo o qual a fonte da opresso social assentaria nacrena no Absoluto19 e servia-se de exemplos histricos para ilustrar opapel opressivo da Igreja contra os heterodoxos e os livres-pensadores nodecorrer dos tempos, a fim de concluir que, na emancipao do opera-riado, a libertao da alienao religiosa seria correlata da libertao daopresso econmica: Hoje, escrevia ele, acabrunhado debaixo das con-tribuies que lhe impe o Estado, e vexado pelas prepotncias dos pode-rosos, perdida a f religiosa graas ao trabalho demolidor da Enciclopdia,e da Filosofia alem, nada esperando de Deus, e tudo confiando do seuprprio esforo, o operariado, constitudo em associao de classe,marcha ao encontro do previsto conflito social, do qual sai definitiva-mente uma nova ordem de coisas20.

    Na verdade, com a publicao da encclica Rerum Novarum (1891), oteor destas prevenes teria de aumentar. E um bom exemplo dessa reac-o encontra-se na tese de Afonso Costa, A Igreja e a Questo Social(1895)21. Inspirando-se num pensamento socialista eclctico Marx,Benoit Malon, o jovem professor universitrio sublinhava a justeza datese marxista sobre a origem da explorao, mas, seguindo Malon, defen-dia igualmente que, luz da concepo evolutiva da histria que perfi-lhava, os valores morais e jurdico-polticos seriam to importantes comoos econmicos na transformao da sociedade22. Da que defendesse ocolectivismo social, mas no a estatizao da economia, j que a esferaprodutiva se devia organizar segundo a lgica da propriedade privada oucooperativa. Este modelo de sociedade seria o mais ajustado natureza

    18 Cf. Fernando Catroga, op. cit., vol. 1, pp. 304-316.

    19 Pierre-Joseph Proudhon, Systme des Contradictions conomiques ou Philosophie

    de la Misre, t. i, 2 . a ed., Paris, Garnier Frres, Librairies, 1850, pp. 344 e segs.20

    Heliodoro Salgado, A Egreja e o Proletariado, Porto, Sociedade Cooperativa de Pro-duo Typographica O Trabalho Editora, 1888, pp. 60-61. Num sentido anlogo, veja-seGuedes de Oliveira, Propaganda Revolucionario-Socialista. Em face da Historia. DiscursoProferido no Sarau Socialista Efectuado em 19 de Setembro de 1880, na Sala das Sesses daAssociao dos Trabalhadores, Porto, Typ. de A. Fonseca Vasconcelos, 1880.

    21 Cf. Afonso Costa, A Egreja e a Questo Social, Analyse Critica da Encyclica Ponti-

    fcia De Conditione Opificum de 15 de Maio de 1891 com Um Appendice Contendo oTexto Latino e a Verso Portugueza da Encyclica, Coimbra, Imprensa da Universidade,1895.

    22 Id., ibid., pp. 91 e segs. 215

  • Fernando Catroga

    perfectvel do homem e realizao, na Terra, dos princpios ticos que,erradamente, a religio projectava numa esperana transcendente.

    Para o optimismo histrico de Afonso Costa, os propsitos de renova-o doutrinal e de empenhamento social manifestados pela Igreja sob omagistrio de Leo XIII seriam meras panaceias tendentes a adapt-la aosnovos tempos para, com isso, criar as condies propcias reconstruodo antigo poderio que tinha exercido sobre a sociedade. Logo, a defesa daharmonia entre o capital e o trabalho, a reduo da justia social cari-dade, o apelo tutela religiosa das organizaes de classe e, por fim, oconvite resignao dos explorados em nome de uma promessa post mor-tem seriam princpios que, uma vez aplicados, trariam uma nova subordi-nao do poder temporal ao poder espiritual23. Assim, a novidade dasideias expendidas na encclica Rerum Novarum seria ilusria, pois se esta-ria perante a invocao de um modelo social inspirado na ordem medieval,a fim de se invalidarem as esperanas perfectibilistas do homem quetinham inspirado as epopeias histricas verdadeiramente libertadoras.

    A obra de Afonso Costa espelha lapidarmente a evoluo dos parme-tros crticos do anticlericalismo portugus. As implicaes sociais da ques-to religiosa ganhavam relevncia em consequncia dos fundamentos filo-sficos em que a sua anlise entroncava e em funo dos interesses sociaise polticos dos grupos que mais activamente suportavam a militncia laica.O juzo de valor que se fazia acerca dos efeitos da doutrinao social daIgreja, a acentuao da sua campanha contra as filosofias racionalistas, olivre-pensamento, a Maonaria e a Carbonria e contra a democracia libe-ral, republicana ou socialista, funcionavam, para os mais radicais, comoprovas de que a Igreja e a religio se tinham transformado nos principaisbaluartes da opresso social e poltica. E um dos principais paladinos damutao do anticlericalismo em Portugal j em 1883 era taxativo acerca dafundamentao cientista da nova perspectiva, ao escrever que a crtica religio teria de inspirar-se nas teorias de Proudhon, Malon, Pi y Margalle Littr24. No fundo, posio anloga no escrevemos inteiramentesemelhante se detecta em escritores laicos to diferentes entre si Tei-xeira Bastos, visconde de Ouguela, Magalhes Lima, Afonso Costa, Fer-no Botto-Machado, Faustino da Fonseca, Agostinho Jos Fortes, Fernan-des Costa, Miguel Bombarda e tantos outros, o que retrata uma situaoque se foi tornando dominante na estratgia do laicismo e que pode serassim resumida: se, como queriam os republicanos, a questo religiosa25era inseparvel da questo do regime, era-o igualmente como afirma-vam os socialistas, anarquistas e republicanos radicais da questosocial.

    23 Cf. Afonso Costa, op. cit., pp. 143 e segs.

    24 Cf. Hel iodoro Salgado, O problema, in A Discusso, i ano , n. 15, de 19 de

    Dezembro de 1883, p. 1, col. 4.25

    Isto , tendia-se a superar af irmaes c o m o esta: N e s t a luta em que se acha envol -vida a Europa inteira para eliminar da lei a forma monrquica e reconstituir-se pela formada democracia , os velhos e lementos d o privilgio pessoal n o achando a p o i o nem da razo,nem da justia, nem da moral idade , pedem socorro a o clerical ismo, protegendo-o , contantoque ele bestialize as massas conservando-as submissas . Tal a signif icao da questo reli-giosa no fim do sc. xix (A Semana de Loyola, Semanrio Anti-Jesuitico, i ano, n. 1, 6

    216 de Abril de 1884, p. 4).

  • O laicismo e a questo religiosa

    Pressupe tudo isto um distanciamento crtico face ao anticlericalismoestritamente republicano e oportunista consubstanciado na clebre fr-mula de Gambetta. E o facto de, nos finais de Oitocentos e princpios dosculo xx, a esmagadora maioria dos activistas anticlericais estar republi-canizada significa que a perspectiva meramente politista da questo reli-giosa ainda continuava a perdurar em muitos deles. Alis, s isto explicaque a imprensa operria, na linha das deliberaes das reunies anticleri-cais de 1895 e de 1900, se debruce amide sobre o problema, procurandodenunciar os limites daquela posio, contrapondo-lhe a necessidade de searticular o problema do clericalismo com a questo social26, o caso deum artigo inserto no rgo dos tabaqueiros do Porto, em que se podemsurpreender as linhas essenciais da questo religiosa no iderio socialista eanarquista no dealbar do novo sculo. O autor seguia Bebei e sublinhavaque, tambm para ele, a religio no ser suprimida; h-de acabar por siprpria27. E, depois de aceitar a preveno de Pablo Iglesias segundo aqual, para o movimento socialista, o inimigo principal no seria o clerica-lismo, mas sim o capitalismo, acrescentava, citando o positivista italianoHenrique Ferri, que isso no devia obstar a que os socialistas lutassem,com outros livres-pensadores, contra a prepotncia do clericalismo, quechegou a ser, mais ou menos voluntariamente, segundo os pases, umpoderoso auxiliar das classes exploradoras28.

    Como facilmente se pode perceber depois do que ficou escrito, anfase posta nas implicaes sociais da questo religiosa exigia que semantivesse uma atitude vigilante em relao s infiltraes ilegais e aocrescimento da influncia do clero sobretudo o regular na sociedadeportuguesa, o que ocorreu nomeadamente nos incios da dcada de 80 enos princpios do novo sculo em consequncia da emigrao de religiososexpulsos de Frana. A salvaguarda da privaticidade da famlia e a vigi-lncia perante os tentames para se criar um partido catlico, acompa-nhada pelo interesse em pugnar pelo ensino obrigatrio, gratuito elaico29 condio que se considerava primordial para se conseguir ainteriorizao e a socializao dos novos valores dessacralizados , epela garantia da neutralidade religiosa do Estado e dos actos essenciais daexistncia individual, foram-se definindo como as principais preocupaesda propaganda laicista. No espanta, assim, que a polmica tenha recupe-rado o anticlericalismo liberal e reactualizado algumas controvrsias liga-das dogmtica da Igreja, acentuando particularmente tudo o quepudesse contribuir para acelerar a desmistificao do estatuto sacral dopadre e da Igreja e para liquidar a adeso popular ao simbolismo reli-gioso.

    26 Referindo-se s relaes entre capitalismo e clericalismo, um jornal operrio escrevia

    em 1908: Derrubado o capitalismo, ele arrastar na sua queda todas as instituies que athoje lhe tm servido de apoio e suporte {A Greve, i ano, n. 53, de 10 de Maio de 1908, p.2, col. 1).

    27 Navi, A religio, in A Voz do Proletrio, xii ano, n. 617, de 8 de Novembro de

    1908, p. 1, cols. 1-2.28

    Id . , ibid. Para uma perspectiva do anticlericalismo no pensamento europeu deesquerda veja-se V. M. Arbeloa, Socialismo y Anti-Clericalismo, Madrid, Taurus, 1973.

    29 Sobre as ideias pedaggicas do laicismo portugus veja-se Fernando Catroga, op. cit.,

    vol. 1, pp. 205-219. 217

  • Fernando Catroga

    Mais concretamente, esta faceta do problema passou pelo reacender dodebate em aberto desde a ruptura protestante30 e o iluminismo acerca do celibato eclesistico e da confisso auricular. Com efeito, a par-tir da dcada de 70, estes temas voltaram lia, empurrados no s pelosnovos condicionalismos sociais e culturais, mas tambm por alguns intelec-tuais no catlicos e at republicanos que pensavam bastar extinguira confisso para que a questo religiosa ficasse solucionada nos pasescatlicos.

    A CONFISSO AURICULAR

    Estava neste caso Sampaio Bruno. Reconhecia, certo, que a confissoconstitua um meio de controlo psicolgico que agredia a privaticidade doscidados e, dada a sua natureza secreta31, instituda desde o Conclio deLatro (1215, cnon 21), conferia ao confessor e, Consequentemente, Igreja um poder que se repercutia no interior das famlias e, atravs destas,nos negcios do estado. E esta realidade seria particularmente agravadacom a grande atraco que a mulher manifestava por tal prtica. Emborafizesse este diagnstico, o seu espiritualismo metafsico impedia-o, porm,de, a partir dele, formular quaisquer juzos de valor que invalidassem anecessidade da religio e do sacerdcio: na questo de saber qual amaneira fosse de conseguir que a mulher no seja, moralmente, umaescrava do sacerdote e se se apurou, conclua Bruno, que a mulher ,moralmente, uma escrava do sacerdote pela direco espiritual e temporala que ela consente em submeter-se-lhe, para emanciparmos a mulher, ecom ela a sociedade civil, do oculto predomnio clerical [cumpria] desco-

    30 O exemplo protes tante , no num apelo imitativo, mas como a r m a crtica do catoli-

    cismo, encontra-se, amide, nos textos dos livre-pensadores portugueses, dent ro de u m a inter-pretao interessante: o protestant ismo teria cr iado condies pa ra a modernizao da cul turae da economia das sociedades que o adop ta rem. Assim, Ferno Bot to -Machado escrevia em1910: Mui to mais felizes foram os povos do nor te com o protes tant i smo. Esse, ao menos ,no s queimou os confessionrios, mas nem presta obedincia grande Falperra que sechama Cria R o m a n a , nem reconhece deuses, nem santos, nem divindades; rasgou as bulaspapais e foi, por bem dizer, com as chamadas heresias de Lute ro , de Wiclif, de Calvino e deJean Huss , a chave do livre-pensamento e da liberdade de conscincia [...] Teve trs vantagenso protes tant ismo, e da o engrandecimento dos povos que o adop ta ram: em primeiro lugar,os homens , na sua nsia de lerem e interpretarem, por si mesmos, a Bblia, quase todos apren-deram a ler [.. .]; em segundo lugar, t iveram mais cedo uma compreenso ntida de si mesmos ,do Universo e da Vida [...]; em terceiro lugar, cr iaram energias que , ao contrr io , foram intei-ramente obli teradas pela religio catlica, que Zola chamou , com razo , ' a religio da mor t e ' a religio da tor tura , da resignao, do cilcio, do je jum, da abstinncia e da continnciade carne que afinal, a sublime expresso do amor e da vida da espcie (Ferno Bot to-Machado , A Queda do Monstro [...], Lisboa, Typographia Bayard, 1910, p p . 14-150. Estareivindicao do protestant ismo como gnese do livre-pensamento e da modern idade talvezexplique o forte sucesso que o nome de alguns dos seus protagonistas teve na onomatope iamanica das ltimas dcadas do sculo x ix . Ex. : Jean Huss (Sebastio de Magalhes Lima) ,Lutero (Hel iodoro Salgado), Calvino (Jos Ferreira da Silva), todos figuras influentes noGrande Oriente Lusi tano Unido .

    31 Pa ra u m a descrio histrica da evoluo da prtica da confisso desde as origens da

    Igreja, em que era essencialmente exercida pelos bispos, a t sua extenso ao clero secular(sculo xii) e regular e deciso do Conclio de La t ro , veja-se A . Vacant et al . , Diction-

    218 naire de Thologie Catholique, Par is , Letouzey et An (eds.), 1903-67, t. III, cols. 828-926.

  • O laicismo e a questo religiosa

    brir o ndulo desta temvel supremacia; ele, de longa data, foi encontrado,pois que manifesto seja: o confessionrio. O que d fora ao clero catp-lico, rematava o publicista portuense, no o dogma: a confisso auri-cular32.

    Diferente foi, como se compreende, a posio dominante no militan-tismo laicista. E, se no discordava das premissas de que Bruno partia, adenncia da poderosssima arma psicolgica fornecida pela confissoinscrevia-se, todavia, na contestao global do estatuto social e mediticodo padre, vale dizer, era mais uma das peas polmicas da campanha33 des-cristianizadora. Melo Jnior34, Lino de Macedo35, Ferno Botto-Machado36,Jlio Augusto Martins37, Sebastio de Magalhes Lima e, no fundo, todaa propaganda livre-pensadora organizada no se identificavam com a posi-o defendida por Sampaio Bruno, acusando-o de no ir ao mago da ques-to religiosa. Se ocorresse a abolio da confisso auricular, afigura-se--nos, escrevia Sebastio de Magalhes Lima em 1908, que o domnio daIgreja no cessava por este facto e que o perigo permaneceria o mesmo[...] O nosso fim formar a conscincia portuguesa, arrancando o crebroda criana e o corao da mulher s garras dos malfeitores que procuramamold-las s suas veleidades e aos seus caprichos38. Como se v, o fitoimediato desta campanha incidia na libertao da famlia da intromissoclerical, o que, segundo o anticlericalismo, comummente acontecia atravsdas confidncias feitas durante a confisso. Da que esta surgisse, a pardo controlo dos estabelecimentos de ensino e dos actos essenciais da exis-tncia (nascimento, casamento e morte), como o maior instrumento depoder que a Igreja detinha. Isto , e como lembrava o padre Natrio aosseus colegas em O Crime do Padre Amaro, a, confisso um meio depersuaso, de saber o que se passa, de dirigir o rebanho para aqui ou paraali... E quando para o servio de Deus, uma arma. A est o que a absolvio uma arma39.

    Implcita em todos estes ataques, encontramos uma inteno comum:negar a funo meditica do sacerdote e entender este como um homem,sujeito a paixes e subordinado aos interesses mundanais. O que explicaque a campanha contra a confisso auricular prolongue, noutro contexto,

    32 Sampaio Bruno, A Questo Religiosa, Porto , Lello e Irmos, 1907, p . 439.

    33 Para a contestao laicista da prtica veja-se Andr-Saturnin Morin, A Confisso,

    Lisboa, Emp. de Publicaes Populares, 1913.34

    Melo Jnior, A confisso, in A Semana de Loyola, Semanrio Anti-Jesutico, Iano, n. 49, de 8 de Maro de 1885, pp. 3-5; n. 50, de 15 de Maro de 1885, pp. 10-14;n. 51 , de 22 de Maro de 1885, pp. 8-10; n. 52, de 29 de Maro de 1885, pp. 3-7.

    35 Cf. Lino de Macedo, A confisso, in A Vanguarda, ix ano, n. 2641, de 7 de

    Maro de 1904, p. 1, cols. 1-2.36

    Veja-se tambm o pequeno opsculo, escrito num tom violento e panfletrio, de Fer-no Botto-Machado A Confisso, Lisboa, Typ. La Bcarre, de F. Carneiro & C . a , 1908.

    37 Cf. Jlio Augusto Martins, O sacramento da penitencia, in A Vanguarda, XII ano ,

    n. 4478, de 29 de Abril de 1909, p. 1, cols . 1-2.38

    Sebastio de Magalhes Lima, O livre pensamento em Portugal. Extracto do dis-curso pronunciado hontem, na Caixa Econmica Operaria, pelo sr. dr. [. . .] , para encerra-mento do Congresso Nacional do Livre Pensamento, in A Vida d'um Apostolo, Sebastiode Magalhes Lima, Jornalista, vol . 3 , Lisboa, Imprensa Lucas, 1931, p . 195.

    39 Ea de Queirs, O Crime do Padre Amaro, Cenas da Vida Devota, De acordo com

    a edio de 1880, revista pelo autor, precedida de uma carta indita de Antero de Quental,Lisboa, Livros do Brasil, s. d., p. 116. 219

  • Fernando Catroga

    a denncia da manipulao que, atravs dela, o clero podia fazer das cons-cincias, pondo em perigo a privaticidade familiar, a honra das donzelas,a fidelidade conjugal e a natural transmisso das heranas, perigos quea literatura de temtica anticlerical Ea de Queirs, Antnio Enes40,Cipriano Jardim41, entre outros no deixar de assinalar.

    O CELIBATO ECLESISTICOA controvrsia sobre o celibato eclesistico intimamente articulada

    com a denncia da confisso no era nova. A ruptura protestante havia--o contestado e, no decurso dos sculos seguintes, a discusso acerca domnus religioso no deixou de questionar a sua validade para o exercciodo sacerdcio (abade de Saint-Pierre, Voltaire, Rousseau, Restif)42. Entrens, a rejeio do celibato encontra-se em alguns iluministas43. Mas Sam-paio Bruno, historiando a querela na nossa literatura desde os incios dosculo xix, limitou-se a mencionar algumas obras sadas em prelosbrasileiros44, omitindo, porm, a discusso ocorrida no perodo vintista45,e que teve na obra universitria de Jos Manuel da Veiga46 a sua melhorexpresso terica. A questo voltou a irromper durante o setembrismo47 enas dcadas seguintes48. Mas foi no contexto do novo ressurgimento daquesto religiosa na sequncia da postura mais conservadora da Igrejadesde o Sillabus (1864), do Conclio do Vaticano I e da ofensiva raciona-lista e laica que o problema do celibato eclesistico voltou a ganhar

    40 Cf. Antnio Enes, Os Lazaristas, Drama Original em 3 Actos, Lisboa, Typographia

    do Jornal O Paiz, 1875. Sobre a polmica que esta pea despertou vejam-se, entre outras:Padre Sena de Freitas, Os Lazaristas pelo Lazarista Sr. Ennes, Porto , Livraria Central,1875; Augusto Jos Fonseca, A Questo Lazarista, Porto , Typographia de Silva Teixeira,1875; F. Guimares Fonseca, Os Lazaristas pelo Lazarista Senna Freitas, Lisboa, Typogra-phia de Augusto Rodrigues, s. d.

    41 Cf. Cipriano Jardim, O Casamento Civil. Comedia-Drama em 4 Actos Representada

    pela Primeira Vez no Teatro de D. Maria II, em 29 de Agosto de 1882, Lisboa, Typ. de Adol -pho Modesto , 1882.

    42 Cf. Bernard Plongeron, Thologie et Politique au Sicle des Lumires (1770-1820),

    Paris, Oroz, 1973, pp. 192 e segs; Manuel Trindade Salgueiro, O Padre em Herculano, Lis-boa, Editorial Verbo, 1956, pp. 193 e segs.

    43 Nomeadamente em Jos Anastcio da Cunha. Para o problema do celibato do fi l-

    sofo do sculo xviii veja-se Graa Silva Dias, U m discurso do celibato no sculo xvi i i , inAnlise Social, vol . 23, n.os 92-93, 1986, pp. 733 e segs.

    44 Cf. Sampaio Bruno, op. cit., pp. 328-330. Em 1828, Lus Gonalves dos Santos edi-

    tou sobre o assunto um livro no Rio de Janeiro, que dois anos depois era reeditado em Portu-gal: A Voz da Verdade da Santa Egreja Catholica, Confundindo a Voz da Mentira doAmante da Humanidade, para Sedativo da Efervescncia Casamenteira dos Modernos Anti-Celibatarios, Lisboa, Typographia de Bulhes, 1830.

    45 As posies de deputados vintistas contra o celibato eclesistico esto sintetizadas em

    Jos Eduardo Horta Correia, Liberalismo e Catolicismo. O Problema Congreganista (1820-1823), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1976, pp. 226-228.

    46 Cf. Jos Manuel da Veiga, Memria sobre o Celibato Clerical, Que Deve Servir de

    Fundamento a Uma das Theses dos Actos Grandes do Seu Autor [...], Coimbra, Imprensada Universidade, 1822.

    47 Passos Manuel ter pensado em proibir o celibato. Cf. Manuel Trindade Salgueiro,

    op. cit., p. 193 e segs.48

    Cf. Leandro Jos da Costa, O celibato clerical, in Archivo Universal, 2 . a srie, iano, n. 5, 1859, pp. 69-70; n. 7, de 15 de Agos to de 1859, pp. 101-103; n. 9, de 29 de

    220 Agosto de 1859, pp. 134-136; n. 11, de 12 de Setembro de 1859, pp. 163-165.

  • O laicismo e a questo religiosa

    actualidade polmica, tornando-se um dos tpicos essenciais da campanhaanticlerical. E, nos finais da dcada de 60, a opo existencial de umconhecido sacerdote ligado corrente do catolicismo liberal o padreJacinto (Carlos Loyson), ao assumir-se, polemicamente, em rupturacom a tradio catlica sem pretender sair do grmio da Igreja, deu azo auma controvrsia que apaixonou a opinio pblica, no s em Frana, mastambm em outros pases europeus. E opes similares de padres portugue-ses (Joo Bonana49 e Henrique Ribeiro Ferreira Coelho50) reforaramainda mais, entre ns, o eco do caso Loyson.

    Em 1861 encontramos a sada da traduo de um texto de Michelet,A Mulher, o Padre e a Famlia51, e em 1864 reeditou-se a obra de JosManuel da Veiga52, sinal de que, depois do aprofundamento do dramapsicolgico e metafsico decorrente do celibato feito por Alexandre Hercu-lano em O Monge de Cister (1841) e em Eurico, o Presbtero (1845), o pro-blema voltava a ganhar acuidade53. Num estilo dialctico, Veiga anatema-tizava o celibato relembre-se que a primeira edio da obra saiu em1822, escudando-se no prprio texto bblico e na histria da Igreja, paraconcluir, na linha de Filangieri, que o celibato somente se tinha iniciado nosculo iv e universalizado com Gregrio VII54. E, em vez de ter sido umfactor de moralizao dos costumes, a experincia mostrava-o contrrioao direito natural e ilegtimo, injusto e prejudicial no s ao Estado, masat prpria Igreja, pois, enquanto no houve lei do celibato, os costu-mes dos eclesisticos eram puros e irrepreensveis e desde a primeirapoca da sua instituio s teria gerado clrigos concubinrios, adlte-ros e devassos55.

    Estas ideias fizeram escola, pois um escritor da nova gerao CostaGoodolfim, ligado ao movimento do associativismo popular e ao nascenterepublicanismo56 invocava-as em 1872 para defender que, tal comoacontecia no protestantismo, somente com o casamento dos padres e a suaconsequente insero na normalidade da vida familiar o clero podia desem-

    4 9 Joo Bonana, jovem eclesistico defensor do casamento civil e da separao da

    Igreja do Estado, veio a despadrar-se em funo das dificuldades que lhe foram postas porparte da hierarquia da Igreja. Cf. Joo Bonana, A Religio e a Poltica. Ao Padre AmricoVigrio Capitular da S de Lisboa e Bispo Eleito do Porto, Lisboa, Typographia Livre, 1870.Sobre as perseguies a Bonana veja-se Sampaio Bruno, op. cit., pp. 331-332.

    5 0 Apaixonado por uma senhora, Henrique Ribeiro, irmo de Toms Ribeiro e abade de

    Santa Maria de Silgueiros, rompeu com a Igreja nos princpios da dcada de 70, vindo a ligar--se ao grmio da igreja evanglica de Espanha. Cf. Sampaio Bruno, op. cit., pp. 318 e segs.

    51 A traduo foi efectivada por Jos Maria de Andrade Ferreira. Cf. Sampaio Bruno,

    op. cit., p. 149. Em 1876, editado por Antnio Maria Pereira, saa em Portugal o livroA Famlia do Jesuta, Romance Portuguez.

    52 Saiu com este ttulo: O Celibato Clerical, Memria Que Serviu de Fundamento a

    Uma These dos Actos Grandes, Lisboa, Typ. da Sociedade Typographica Franco-Portu-gueza, 1864.

    53 Cf. Manuel Trindade Salgueiro, op. cit., pp. 189-226.

    54 O preceito celibatrio, no princpio da era crist (sculos i-iv), constitua uma honra,

    sem ser propriamente obrigatrio. J consta de um cnon de Elvira (ano 305), mas foi sobre-tudo com Gregrio VII e com os Concl ios de Reims (1119) e de Latro (1123), sob o papadode Calisto II, que a disposio ganhou maior universalidade. O Conc l io de Trento (s-culo xvi ) quase se limitou a corroborar as deliberaes anteriores. Sobre as vrias fases daevoluo do celibato eclesistico veja-se A . Vacant et. al . , op. cit., t. ii, cols . 2068-2088.

    55 Jos Manuel da Veiga, op. cit., p. 192. Citamos a edio de 1864.

    56 Cf. Costa Goodo l f im, O Celibato Clerical, Lisboa, Typographia Universal, 1872. 221

  • Fernando Catroga

    penhar correctamente a sua funo pastoral: o seu empenhamento na vidafamiliar prpria torn-lo-ia imune aos interesses ultramontanos e, por-tanto, mais ligado sociedade, pois o casamento possibilitaria que o cleropassasse a ser apstolo de Cristo, e no escravo de Roma57.

    Um outro autor, ento a navegar nas guas do pensamento de Comtee de Littr, veio a terreiro situar o debate na perspectiva do positivismoracional58. Referimo-nos a Luciano Cordeiro e ao seu livro O Casa-mento dos Padres, igualmente sado em 1872. Para o jovem escritor existiauma insanvel contradio no pedido que, por essa altura, o padre Jacintoformulava junto da Santa S: tinha optado pelo casamento, mas, simulta-neamente, requeria que o no expulsassem do seio da Igreja. certo quea inteno do beneditino francs visava impulsionar a reforma e a moder-nizao do catolicismo, desiderato que, aos olhos positivistas de LucianoCordeiro, surgia como uma incongruncia. Com efeito, se o celibato faziaparte da dogmtica da instituio, defender o casamento dos padres e ocatolicismo seria contraditrio e, perante o dilema, s uma sada seria coe-rente: ser ou no ser catlico. Enquanto a Igreja no resolver o contrrioo catlico acreditar no celibato [...] Casando morre para a Igreja.59Assim sendo, quem reconhecesse a verdade do catolicismo no podia admi-tir excepes ou heterodoxias, sob pena de pr em causa a totalidade doedifcio em que assentava a autoridade da Igreja; ao contrrio, quem pau-tasse as suas opes pelo ponto de vista cientfico e filosfico noteria dvidas de que o celibato, a continncia absoluta ou a castidadeabsoluta60 constituam a violao duma lei natural, um atentado contraa Vida, uma viciao da natureza, da individualidade humana61. Emconsequncia, acreditar que a Igreja pudesse ajustar-se modernidadeseria no compreender a grande lio do evolucionismo positivista, luzda qual, se uma Religio a afirmao duma Verdade absoluta, e umaIgreja a forma objectiva dessa Verdade, como poderia existir o Pro-gresso no Absoluto, a Relatividade no Imutvel62? Em suma: tal comoAntero de Quental em 186563, mas com outros argumentos, Luciano Cor-deiro pretendia demonstrar que seriam vos os sonhos do catolicismo libe-ral, pois a Igreja seria irreformvel.

    O problema do celibato clerical nos incios da dcada de 70, correlacio-nado com outras facetas polmicas da questo religiosa (antijesuitismo,

    57 Cf. Costa Goodolfim, op. cit., p. 16.

    58 Luciano Cordeiro, O Casamento dos Padres (A propsito da Carta do Padre Jacinto

    Loyson), Lisboa, Imprensa de J. G. de Sousa Neves, 1872, p. 6. Um ano depois, AntnioAugusto Teixeira de Vasconcelos publicou O Celibato Ecclesiastico, Lisboa, Livraria Catho-lica, 1873, obra em que o autor defende o celibato e critica a pretenso do padre Jacinto. Denotar, por outro lado, que o problema do celibato eclesistico passou para as pginas daimprensa, sendo de destacar, conforme menciona Teixeira de Vasconcelos, a polmica tra-vada entre o Jornal da Noite, o Partido Constituinte e o Jornal do Commercio.

    59 Id., op. cit., p. 19. Por esta mesma altura, ideias anlogas s de Luciano Cordeiro

    foram expendidas pelo ento jovem Sebastio de Magalhes Lima em A Actualidade, EstudoEconomico-Social por [...] Estudante do 3. Anno Jurdico, Porto, Imprensa Portuguesa,1873.

    60 Id., ibid., p. 18.

    61 Id., ibid.

    62 Id., ibid.

    63 Antero de Quental , Defesa da carta-encclica de Sua Santidade P io I X , in Prosas,

    222 vol . i, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1923, pp . 279-303.

  • O laicismo e a questo religiosa

    casamento civil) e inserido na agitao de ideias que, por essa altura, eraalimentada pela vanguarda interessada em fomentar uma alterao qualita-tiva nos horizontes culturais portugueses, foi to intensamente vivido nosmeios intelectuais laicos64 que o encontramos como um dos temas domi-nantes de um vastssimo conjunto de obras literrias escritas a partir de1870. certo que o assunto no era indito, mas, se compararmos o esta-tuto do padre nos romances de Alexandre Herculano ou de Jlio Diniscom o seu tratamento na fico anticlerical a partir daquele perodo, ver--se- como o equacionamento da dramaticidade existencial decorrente dochoque entre o sentimento amoroso (humanamente entendido) e a solidoprovocada65 pelo voto, ou o enaltecimento de um mnus pautado peloideal evanglico comprometido na vida das comunidades O ProcodyAldeia (1843) e As Pupilas do Senhor Reitor (1863-67), deu lugar cr-tica inspirada no voltairianismo mas ainda incorporada no melodramaromntico ou na anlise dos costumes feita a partir dos cnones estticosdo naturalismo. No fundo, isto espelha a paulatina acentuao das diferen-as entre o anticlericalismo liberal, ainda crente no renovamento do catoli-cismo, e o anticlericalismo acirrado pelas deliberaes do Conclio Vati-cano I e convicto, pela filosofia da histria e pela sociologia, de que asrepresentaes religiosas no passavam de produtos anacrnicos do esp-rito humano.

    certo que a dicotomia entre o padre liberal e o padre boal e ultra-montano ainda detectvel em muitos textos da dcada de 7066, como aquerer dizer que, apesar do aumento da contundncia perante o clero, alio herculaniana67, no que ao anticlericalismo respeita (consubstanciadana recordao da polmica levantada por Eu e o Clero (1850) e do caso dasIrms da Caridade), ainda no estava inteiramente ultrapassada. Mas omodo como algumas obras de sucesso trataram o dilema entre a fidelidadeao voto e a natureza humana do padre foi perdendo a tenso (insolvel)subjacente a Eurico, o Presbtero e foi ganhando, ao contrrio, um tommais realista, colorido pela virulncia do antema (caso de Silva Pinto68)

    6 4 Ainda na dcada de 70 saiu, na editora de Carrilho Videira, a obra de scar Mrio

    Os Padres, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1875.6 5

    A dramaturgia de Antnio Enes e de Silva Pinto muito sensvel a esta questo.6 6

    Por exemplo, Cunha Belm, na sua pea O Pedreiro Livre, no deixa de sublinhar operfil moral e poltico do padre liberal, contrastando-o com o sacerdote ignorante e goliar-desco. Cf. Cunha Belm, O Pedreiro Livre; Drama em Quatro Actos Representado pela Pri-meira Vez no Teathro do Gymnasio em 21 de Janeiro 1876, Lisboa, Imprensa de J. G. deSousa Neves, 1877.

    67 Pensamos que o anticlericalismo subjacente, por exemplo, ao teatro de Antnio Enes

    de fundo herculaniano. E o sucesso da pea de Enes deu origem a um filo, de temtica an-loga, na dramaturgia portuguesa da poca. Para alm de obras de Silva Pinto, Cunha Belme Cipriano Jardim, h ainda a destacar: Lino de Assuno, Os Lzaros (1877); Lorj Tavares,Segredo de Confisso (1892), Bento Mntua, O Novo Altar (1911); Bento Faria, Missa Nova(1905); Bento Carvalho, Casamento e Convenincia (1904) e A Infelicidade Legal (1911);Henrique Lopes de Mendona, N Cego (1905); Augusto de Lacerda, A Lei do Divorcio(1910). Cf. Lus Francisco Rebello, O Teatro Naturalista e Neo-Romntico (1870-1910), Lis-boa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1978, pp. 37-38.

    68 Cf. Silva Pinto, O Padre Maldito, Memrias do Cura de Santa Cruz, 2.a ed., Lisboa,

    Guimares & C . a , 1911 (a l . a edio saiu em 1873); Os Homens de Roma. Drama Originalem 4 Actos Representado pela Primeira Vez em 9 de Julho de 1875, Porto, Livraria Portu-gueza e Estrangeira, 1875; O Padre Gabriel Drama Original em Trs Actos, Porto, ImprensaCommercial de Santos Corra & Mathias, 1877. 223

  • Fernando Catroga

    ou desenhado por uma distanciao irnica (caso de Ea de Queirs69),atitudes que no deixavam de provocar efeitos corrosivos que vinham aoencontro da campanha promovida pelos sectores mais activos do laicismointeressados em demolir o estatuto sagrado do sacerdote. Nesta perspec-tiva, no admira que, desde o romance e o teatro, passando pela poesia deum Guilherme Braga Falsos Apstolos e O Bispo10 ou de um GuerraJunqueiro A Velhice do Padre Eterno, a anatematizao dos costu-mes do clero e a incoerncia de muitas situaes de facto com os votostenham constitudo um dos temas fortes da literatura portuguesa de com-bate dos finais do sculo xix e princpios do sculo xx. E esta dominnciafoi tal que muitas das evolues em sentido mais espiritualista surgiramcondicionadas pela questo religiosa (casos de Gomes Leal, de ManuelLaranjeira e do prprio Guerra Junqueiro, nos ltimos anos da sua car-reira). De qualquer modo, a permanncia do anticlericalismo em muitasobras literrias e o xito que algumas peas de teatro obtiveram parti-cularmente na dcada de 7071 mostram como o projecto laicista, pelomenos na sua faceta anticlerical mais jocosa, tinha atingido uma boa partedos sectores urbanos mais intelectualizados.

    Regressando ao que mais especificamente agora nos interessa, no devesurpreender que o diagnstico que acusava o celibato de agredir as maiselementares leis da natureza72 e de conduzir a dramas psicossociais quedesestabilizavam a vida familiar73 no apontasse para os mesmos objecti-vos. Logicamente, para os mais moderados, a crtica, apesar de herticaem relao doutrina catlica, reivindicava a inteno de se morigerar areligio a fim de se garantir a sobrevivncia da prpria Igreja no seio da

    69 Com efeito, convm lembrar que Ea de Queirs comeou a escrever a primeira ver-

    so de O Crime do Padre Amaro no princpio da dcada de 70, perodo decisivo para a agita-o poltica e cultural, como para a polmica sobre a questo religiosa e, em particular, sobreo celibato eclesistico. A personagem que expressa o imprio das ideias positivistas (oDr. Gouveia) acrescentada, sintomaticamente, na terceira verso (1880) aplica-as ana-tematizao do celibato eclesistico, acusando-o de ser a supresso violenta dos sentimentosmais naturais (Ea de Queirs, op. cit., p. 468).

    70 Cf., particularmente, O Bispo Heresia em Verso, Porto, Imprensa Portugueza,

    1884. Relembre-se que este poema foi escrito em 1873.71

    De todos, o maior xito coube pea de Antnio Enes Os Lazaristas, apresentadapela primeira vez no Ginsio Dramtico, de Lisboa, em 17 de Abril de 1875. Foi o incio deuma retumbante carreira que se estendeu at ao Brasil. E , em 1884, a sua representao aindaera motivo de polmica, como nos relata Manuel Borges Grainha ao referir-se ao que aconte-ceu na Covilh naquele ano: uma multido de povo , capitaneada pelos influentes do jesui-tismo, aglomerou-se em massa em volta do teatro, e, voz de comando, comeou a atirarpedras para dentro da sala (Manuel Borges Grainha, A Questo Religiosa e a Liberdadeatravs da Historia, Conferencia Feita na Associao Acadmica do Porto (no Dia 28 deMaio de 1893), Braga, Imprensa Gratido, 1893, p. 43). Sobre o eco da pea de Antnio Enese a reaco que ela imediatamente provocou em Portugal e no Brasil veja-se Inocncio, Dic-cionario Bibliographico Portuguez, Lisboa, Imprensa Nacional, 1922, t. x x , pp. 355-356, e,sobretudo, Vtor Manuel de Aguiar e Silva, O teatro de actualidade no romantismo Portu-gus (1849-1875), in Revista de Histria Literria de Portugal, vol. 2 , 1967, pp. 193-196.

    72 Cf. Romeo Manzoni, O Padre na Historia da Humanidade: Ensaio Popular de Pato-

    logia Psicolgica [...], Lisboa, Grmio Montanha, 1909.73

    E m 1874, Sebast io de Magalhes Lima era taxat ivo: O cel ibato clerical , sobre-t u d o , u m a coisa d o e g o s m o e de imoral idade para os padres, que n o dizer de Michelet 'soos invejosos naturais do casamento e da vida da famlia' (Sebastio de Magalhes Lima,O papa perante o sculo (refutao do ultramontanismo) por [...]Alunno do 4. anno Jur-dico, in A Vida D'um Apstolo, Sebastio de Magalhes Lima Escritor, vol. 1, Lisboa,

    224 Imprensa Lucas, 1930, p. 117).

  • O laicismo e a questo religiosa

    sociedade moderna. Ao contrrio, para os mais radicais, a anatematizaodo celibato era to-somente uma das peas da campanha em prol da des-cristianizao.

    Foi coerente com as ideias que defendeu acerca da confisso a atitudede Sampaio Bruno em relao ao celibato. Escrevia ele, em 1907: ainfluncia do padre sobre a mulher provm da confisso auricular; pormesta s possvel sendo o padre celibatrio. Desde que o padre seja casado,toda a mulher hesita em ir confessar mistrios.74 Deste modo, o casa-mento dos eclesisticos nem sequer devia ser facultativo, mas obrigatrio;e a idade de ordenao devia ser alta, depois dos trinta anos75. Os efei-tos polticos desta opo iriam desaguar naquilo que Costa Goodolfim jhavia sustentado: a obrigatoriedade do matrimnio clerical e as responsa-bilidades familiares nacionalizariam a Igreja, pois, uma vez casados, [ospadres] imediatamente passariam a ser cidados consoante os demais seusconterrneos76. Daqui se pode inferir que, para Bruno, o adversrioprincipal da modernidade no seria a religio ou o sacerdcio em si mes-mos, mas o ultramontanismo. Extinta a confisso auricular e secularizadoo padre pelo casamento, haveria a possibilidade de se edificar uma igrejasocialmente til, respeitadora da privaticidade individual e familiar, decariz nacional77, nem que para isso fosse necessrio o cisma com Roma.A metafsica espiritualista de Bruno mostrava-se, assim, compatvel com atradio regalista, ou, melhor, com a existncia de um catolicismonacional.

    Logicamente, as crticas do militantismo livre-pensador foram maisextremistas e os seus juzos de valor sobre o comportamento dos eclesisti-cos no tinham a inteno ltima de preparar o terreno para a reforma daIgreja. certo que louvavam os padres que vinham a pblico confessar asua adeso ao republicanismo78. Mas acreditava-se que o novo poder espi-

    74 Sampaio Bruno, op. cit., p . 440.

    75 Id. , ibid., mesma pgina.

    76 Id., ibid.,p. 441.

    77 Para o antiultramontanismo, a questo religiosa era tambm um problema de defesa

    da autonomia nacional: Lembremo-nos, escrevia Tefi lo Braga em 1881, que a luta reli-giosa em Portugal questo de vida ou de morte para a nossa nacionalidade (Tefilo Braga, A Questo Religiosa, in A Vanguarda, II ano , n. 61 , de 3 de Julho de 1881, p. 1, col. 2) .

    78 O caso mais conhec ido foi o do abade Pais P in to , um dos revoltosos de 31 de

    Janeiro. A sua adeso ao ideal republicano fez-se no horizonte do catolicismo liberal Mon-talembert, pois acreditava que s num estado livre a Igreja seria igualmente livre: Venha umEstado sem religio e sem dio a ela, e os crentes vivero em paz [...] O grande verdugo daconscincia foi sempre o Estado, que quanto mais religioso se diz, mais cruel se faz (abadePais Pinto , Republica e religio, in O Mundo, ix ano , n. 3043, de 25 de Abril de 1909,p. 3 , col . 6) . Este prelado tinha alguns apoios entre os seus colegas. Assim, em 1891, o padreDomingos Antn io Guerreiro, de Viana do Castelo, enviou uma carta a Pais Pinto em louvordas suas ideias. Cf. A Unio Civica, i ano , n. 11, de 24 de Maio de 1891, p. 3, cols. 3-4.Em Junho de 1909, o padre Antnio Augusto , proco de Vila Seca, reuniu os seus paroquia-nos para explicar a sua adeso a o republicanismo e separao da Igreja do Estado. Cf.O Mundo, ix ano , n. 3091, de 12 de Junho de 1909, p. 2 , col. 1. Em Maro de 1909, opadre Manuel Pires Gil confessou-se republicano. Cf. A Vanguarda, xii ano , n. 4365, de7 de Maro de 1909, p. 1, col. 1. E em Agosto de 1910 declarou-se publicamente republicanoo reverendo Esteves Rodrigues, em comcios realizados em Salvaterra e Coruche. Cf. O Pen-samento, v ano , n. 219, de 14 de Agos to de 1910, p. 1, col . 4. Obviamente, no temos dvi-das de que estes exemplos no so isolados, mas surgem c o m o um indicador de adeso aorepublicanismo de uma parte, ainda que minoritria, do clero secular, atitude alis confir-mada aps o 5 de Outubro de 1910. Cf. Vtor Neto, A questo religiosa na l . a Repblica. 225

  • Fernando Catroga

    ritual inspirado nos ensinamentos da cincia iria extinguir o ritualismo reli-gioso na acepo estrita do termo. Da o relevo que os meios laicos tam-bm davam aos despadramentos. Nos incios da dcada de 70, os casos deJoo Bonana e de Henrique Ribeiro funcionaram como uma espcie deverso portuguesa de uma opo que teve na rebeldia do beneditino fran-cs padre Jacinto a sua expresso mais exemplar. E, nas dcadas seguintes,sempre que chegavam imprensa anticlerical notcias de apostasias, nodeixavam de lhes dar destaque79.

    Laicizar o conhecimento, a natureza, a sociedade e a vida, tornar aescola gratuita e laica, dessacralizar o padre, civilizar os ritos de passagem,constituam, assim, momentos de um processo descristianizador totali-zante, cujo ponto nodal se ir centrar, porm, nas relaes jurdico--polticas entre a Igreja e o Estado, isto , na dimenso institucional doprojecto laicizador. Para os pases catlicos, a Revoluo Francesa inaugu-rou uma experincia de ruptura que nem as solues concordatrias poste-riores conseguiram apagar da memria do pensamento poltico deesquerda. Na segunda metade do sculo xix, a consolidao, um poucopor toda a Europa, de regimes mais autoritrios e a postura conservadorada Igreja depois das revolues de 1848 reabriram a polmica acerca dapatente contradio que existia como no caso do constitucionalismomonrquico portugus entre o reconhecimento dos direitos fundamen-tais do cidado incluindo a liberdade de pensamento e a imposio,por via igualmente constitucional, de uma religio de Estado. A correntedo chamado catolicismo liberal ainda avanou com a frmula Igreja livreno Estado livre para solucionar a questo. Mas, como se ir ver, tal propo-sio era insuficiente para satisfazer as intenes laicizadoras dos livres--pensadores, pelo que no admira que estes, desde os incios da dcada de70, tenham animado uma campanha que culminar na Lei de Separao de1911.

    A SEPARAO DAS IGREJAS DO ESTADO

    Foi, sem dvida, o ensaio O Papa-Rei e o Conclio (1870), da autoriade Manuel Nunes Giraldes, professor de Direito Poltico e Direito Eclesis-tico, que melhor sintetizou a crtica liberal dogmatizao da infalibili-

    A posio dos padres pensionistas, in Revista de Histria das Ideias, vol. 9, 1987, pp.675-731.

    79 Foi assim que passou a figurar nos anais do livre-pensamento o casamento do ex-

    -prior de Odivelas, Dr. Antnio do Prado de Sousa Lacerda, num bairro administrativo dacapital, em 13 de Agosto de 1900. Cf. Calendrio de Livre Pensamento e Guia do RegistoCivil, Lisboa, Typographia do Commercio, 1908, p. 94. Relevou-se igualmente o enterra-mento civil, por vontade testamentria, do ex-padre Francisco Diogo Lopes (1845-1906). Cf.A Vanguarda, xi ano, n. 3492, de 30 de Julho de 1906, p. 1, col. 4. Polmico e famoso foio despadramento de Manuel Pinto dos Santos; ao sair do grmio catlico, casou-se e aderiua uma das igrejas evanglicas. Respondeu em livro aos que o acusavam de traio. Cf.Manuel Pinto dos Santos, Quem So os Apstatas?, Lisboa, Viuva Tavares Cardoso, 1904.Em 1903, o padre de Anobra, Coimbra, abjurou do catolicismo para aderir ao protestan-tismo. No entanto, passados alguns anos, fez publicar nos jornais uma retratao, regres-sando ao grmio catlico. Cf. O Mundo, viii ano, n. 2825, de 16 de Setembro de 1908, p.

    226 1, cols. 4-5.

  • O laicismo e a questo religiosa

    dade papal80 e sua desadequao aos valores em que assentavam associedades ps-revolucionrias. Anatematizando o dogma, o lente univer-sitrio pretendeu colocar-se ao lado da corrente que, dentro da Igreja,defendia a doutrina conciliarista como a via mais consentnea com a tradi-o evanglica e com os princpios em que radicavam as sociedades demo--liberais profanas. A Revoluo Francesa, frisava Giraldes, tinha aberto oscaminhos da democracia e a essncia da mensagem evanglica mostravaque a religio e a liberdade, em vez de serem contraditrias, eram duasirms amigas, entre as quais no h sombra de antagonismos81. Significaisto que criticava as deliberaes maioritrias dos bispos em nome dasposies j h alguns anos sustentadas pelo catolicismo liberal. Neste hori-zonte impunha-se combater as interpretaes teolgicas e o ultramonta-nismo que desaguavam na apologia do papa-rei82: a democratizao daIgreja traria uma maior espiritualizao do seu mnus, luz da qual per-diam sentido as reivindicaes de um poder temporal para o papa83 e aexigncia de um reforo da sua autoridade dentro da Igreja, espcie decompensao pela gradual perda do seu poder sobre a sociedade profana. que o ensinamento de Cristo no levantava dvidas desde que no fosseinterpretado em termos cesaristas Regnum meum non est de hocmundo e, Consequentemente, a Igreja teria de libertar-se dos seus neg-cios temporais e confinar-se a uma aco exclusivamente evangelizadora Homo, quis me constituit judicem super vos84.

    Ao negar a teoria da infalibilidade e ao delimitar a aco da Igreja aoseu magistrio espiritual como antes j havia sugerido Pedro de AmorimViana85, Manuel Nunes Giraldes apoiava os nacionalistas italianos, res-salvando, porm, a necessidade de a unificao respeitar a liberdade daIgreja no seio da nova nao transalpina86. que o conflito entre a Igreja

    80 Sobre a incidncia deste acontecimento entre ns veja-se Fernanda Farinha Nogueira,

    O Conclio do Vaticano I, Sua Projeco em Portugal Luz da Imprensa Catlica Portu-guesa e da Correspondncia Oficial, 1867-1871, Coimbra, 1970 (dissertao de licenciaturaem Histria apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, exemplarmimeografado).

    81 Manuel Nunes Giraldes, O Papa-Rei e o Concilio, Lisboa, Typographia Universal,

    1870, p. 18. Na mesma data saiu tambm um opsculo annimo inspirado nas ideias de VtorHugo, Castelar e Mazzini contra o papado: Queda do Poder Temporal do Papa ou a Eleva-o de Roma Considerada Luz da Historia, Coimbra, Imprensa Litteraria, 1870, e, visandoainda mais directamente o novo dogma da infalibilidade, alguns anos depois veio a lume,tambm annimo, o dilogo: Infallibilidade do Papa. Dialogo. Interlocutores Erasmo, Dio-genes e Timotheo, Porto, Typographia de Antnio Jos da Silva Teixeira, 1877.

    82 No hino dedicado ao dogma da infalibilidade, os catlicos cantavam: Viva o Santo

    Conclio de Roma/Viva Cristo, sua crena e sua lei,/Viva o herdeiro de Pedro infalvel,/PioNono Pontfice e Rei! (apud Carlos Joo Rademaker, Discurso em applauso DefinioDogmtica Pronunciada pelo Saneio Concilio do Vaticano sobre a Infallibilidade do SummoPontfice Pregado em Lisboa na Parochial Egreja de Nossa Senhora dos Martyres em 18 deAgosto de 1870 Diante do Excellentissimo e Reverendssimo Senhor Monsenhor OregliaArcebispo de Damiata Nncio Apostlico em Portugal pelo Padre [...] com o Hymno doConcilio e da Infallibilidade, 2.a ed., Lisboa, Typographia Universal, 1870, p. 24).

    83 E m Portugal , no seio da Igreja, opunha-se teoria d o poder temporal o bispo de

    Viseu, D . A n t n i o Alves Martins . Contra ele veja-se J o o Joaquim de Alme ida Braga,O Poder Temporal do Papa. Cartas ao Exm. Sr. D. Antnio Alves Martins, Bispo deViseu, Braga, Typ. Luzitana, 1870.

    84 Cf. Manuel Nunes Giraldes, op. cit., p. 37.

    85 Cf. Fernanda Farinha Nogueira, op. cit., p. 391, nota 12.

    86 Cf. Manuel Nunes Giraldes, op. cit., pp. 235-241. 227

  • Fernando Catroga

    e o Estado, subjacente questo italiana, s se sanaria quando se dessefora jurdica a esta proposta sugerida por Lamennais e defendida porCavour e por Montalembert (catlico liberal francs): Igreja livre noEstado livretal a mxima que a voz eloquente do conde de Montalem-bert (no congresso catlico de Malines) infundiu no nimo de todos.Aplaudiu-a o mundo inteiro87.

    Em suma: com este posicionamento, a doutrina expendida em O Papa--Rei e o Conclio dava guarida s pretenses da corrente neocatlica que,desde Lamennais e Montalembert, passando pela doutrinao de Doel-linger, dos padres Jacinto, Dupanloup e Graty, lutava por uma maisclara demarcao entre o poder temporal e o poder espiritual, desideratoque seria irrealizvel com a recente dogmatizao da infalibilidade. que,com este princpio, se reproduzia dentro da Igreja a ultrapassada estru-tura poltico-administrativa da sociedade absolutista, num sculo em queos povos pugnavam pela democratizao das suas instituies. E foinesse sentido que uma minoria debalde se manifestou em Roma contrao absolutismo papal, defendendo que o poder supremo da Igreja deviater a sua sede no Conclio, a expresso eclesistica do sistema represen-tativo.

    Manuel Nunes Giraldes formulou esta pretenso ao fazer a apologia deuma Igreja descentralizada e governada por corpos eleitos. Assim, no cumecolocava o Conclio, composto por delegados eleitos pelos bispos de cadanao. Ao nvel nacional, o governo eclesistico pertenceria a um conclio,que gozaria de inteira autonomia em tudo o que dissesse respeito a assun-tos de mbito regional e em que somente teriam assento os bispos eleitospelo respectivo clero secular. Na base da Igreja estariam os pastores, nonomeados pela hierarquia, mas sufragados pelos seus fregueses. Com estaestrutura conseguir-se-ia, tal como j Jos Flix Henriques Nogueira haviasugerido, uma relao homolgica entre a sociedade religiosa e a sociedadecivil, criando-se, assim, as condies que possibilitariam a conciliao daIgreja com o sculo88.

    Como seria de esperar, o contedo desta obra, mais a mais assinadapor um professor da Universidade89, tinha de provocar polmica90: foifulminada pelo Index91 e pela imprensa catlica92 e, entre outros, Antnio

    87 Cf. Manuel Nunes Giraldes, op. cit., pp. 23-24. O autor refere-se ao segundo con-

    gresso catlico realizado em Malines, em 1863, arepago em que foram reafirmadas por Mon-talembert as ideias do catolicismo liberal. Em 1864, esse papel coube a Dupanloup e, em 1867,quando se realizou o terceiro congresso, as posies liberais foram sustentadas, sobretudo,por Doellinger, Jacinto e Graty. Cf. Fernanda Farinha Nogueira, op. cit., pp. 27-31. SobreMontalembert e a sua posio dentro do catolicismo veja-se E . Vacant et ai . , op. cit., t. x ,cols . 2344-2355.

    88 Id., Ibid., pp. 21 e segs.

    89 Dela foi publicada, em 1871, uma traduo italiana. Cf. Inocncio, op. cit., t. xv i ,

    p. 276.90

    A smula destas crticas foi feita pelo prprio Manuel Nunes Giraldes, na sua Cartado Autor do Livro O Papa-Rei e o Concilio a Seu Pae o Sr. Gregorio Nunes Giraldes,Coimbra, Imprensa da Universidade, 1871, pp. 14 e segs.

    91 Cf. Inocncio, op. cit., t. xvi , pp. 276-277.

    92 Consulte-se, entre outros, A Nao, n. 6923, de 29 de Maro de 1871, p. 1, col . 5,

    p. 2 , cols. 1-3; n. 6976, de 6 de Maio de 1871, p. 1, cols. 1-5, xiii ano; n. 6910, de 9 de228 Maro de 1871, p. 1, cols. 4-5.

  • O laicismo e a questo religiosa

    Jos Carvalho93 e o padre Francisco Maria Rodrigues Grainha94 vieram aterreiro para a atacar, enquanto os sectores liberais a saudaram comentusiasmo95. E, para alm dos apoios conseguidos em artigos de Joa-quim Martins de Carvalho96 e, em boa parte, de Alberto Garrido97,importa destacar a anlise que um dos introdutores do positivismo entrens, Manuel Emdio Garcia, fez da proposta do seu colega de Faculdade,j que, por ela, poderemos surpreender o modo como, no calor do debate,o cientismo equacionou as relaes entre a Igreja e o Estado98.

    Depois de destacar os precursores portugueses das teses de Giraldes(Herculano, Amorim Viana e D. Antnio da Costa) e de definir as trsgrandes linhas que se entrecruzavam no entendimento da religio aracionalista, a ultramontana e a neocatlica, Manuel Emdio Garciaconclua que, naquele ano de 1870 e por detrs da questo italiana, ogrande problema que se punha Europa continuava a ser a velha e com-pleta questo religiosa; A realeza dos papas e a democracia crist; aliberdade da Igreja e a independncia do Estado; a unidade italiana e opatrimnio de S. Pedro99. O livro de Manuel Nunes Giraldes tinha, porisso, o grande mrito de acentuar a f no Evangelho, o amor da Liber-dade, a esperana de ver na Igreja e na Sociedade civil a Liberdade e oEvangelho ligados pelo Amor100. Isto , o autor optava inequivoca-mente, pela corrente catlica101 minoritria, inaugurada por Lamennais eprotagonizada por Montalembert, Dupanloup, Graty, Maret, Doellinger,Darboy, Deschamp, Grasser de Brixon e outros. Consequentemente,enquanto os ultramontanos sustentavam que no papa reside a plenitudeespiritual e reconhecem-lhe tambm, directa ou indirectamente, o podertemporal, Giraldes apoiava os conciliaristas, isto , os que, ao contrrio,

    93 Antnio Jos de Carvalho, O Poder Temporal dos Papas, em Resposta ao Papa-Rei

    e o Concilio do Sr. Dr. Manuel Nunes Giraldes, Lisboa, Typ. do Futuro, 1871.94

    Foi longa a polmica que Manuel Nunes Giraldes e o padre Francisco Grainha trava-ram. Este atacou Giraldes do plpito da igreja da sua terra natal, a Covilh. Respondeu-lhecom a Carta j citada. Grainha retorquiu com uma Resposta Carta do Autor do Papa-Reie o Concilio a Seu Pae o Sr. Gregorio Nunes Girlades, Covilh, s. ed. , 1871. Giraldes repli-cou com uma Segunda Carta do Autor do Livro O Papa-Rei e o Concilio a Seu Pae o Sr.Gregorio Nunes Giraldes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1871. O contestatrio publi-cou ainda uma Resposta Segunda Carta do Autor do Livro O Papa-Rei e o Concilio aSeu Pae o Sr. Gregorio Nunes Giraldes, Covilh, s. ed. , 1871.

    95 Para uma anlise sinttica e respectivo enquadramento da obra de Giraldes veja-se

    Fernanda Farinha Nogueira, op. cit., pp. 390-461.96

    Cf. a polmica de Joaquim Martins de Carvalho com o jornal catlico A Nao emO Conimbricense, x x i v ano, n. 2450, de 17 de Janeiro de 1871, p. 1, cols. 2-4, p. 2, cols. 1--4, e p. 3 , col. 1; n. 2454, de 31 de Janeiro de 1871, p. 2, cols . 1-4, e p. 3, col. 1.

    97 Cf. Alberto Garrido, O Papa-Rei e o Conclio por Manuel Nunes Giraldes, in

    A Civilizao, i ano, n. 11, de 5 de Maio de 1870, pp. 84-85. Igualmente a Correspondn-cia de Portugal elogiou a obra. Cf. Manuel Nunes Giraldes, op. cit., pp. 34-35.

    98 Sobre a insero desta obra no meio cultural de Coimbra cf. Fernando Catroga,

    op. cit., vol. 1, pp. 159-168 e 416 e segs.99

    Manuel Emdio Garcia, O Papa-Rei e o Concil io, in O Trabalho, i ano, n. 10, de9 de Maio de 1870, p. 74, col. 2.

    100 Id. ibid., p. 77, col. 1.

    101 Sobre estas correntes catlicas vejam-se: Jean-Rmy Palenque, Catholiques Libraux

    et Gallicans en France face au Concile du Vatican 1867-1870, Aix-en-Provence, Publicationdes Annales de la Faculte de Lettres, 1962. E ainda: Maurice Vaussard, Histoire de la Dmo-cratie Chrtienne: France-Belgique-Italie, t. i, Paris, Seuil, 1956, e Marcel Prlot, Le Libra-lisme Catholique, Paris, Armand Colin, 1969. 229

  • Fernando Catroga

    dizem que a plenitude do poder espiritual reside na Igreja, representadapelos conclios gerais, e que a Igreja no tem, no pode e no deve ter poder temporal algum102. Com este alinhamento, O Papa-Rei e o Concliono pretendia situar-se fora dos quadros do catolicismo, antes procuravafundamentar um reformismo explicitamente empenhado em harmonizar aIgreja com as ideias polticas de pendor mais liberal. A radicava, na opi-nio de Garcia, o seu inestimvel mrito.

    No entanto, altamente significativo o seu distanciamento em relaos mximas de Cavour e de Montalembert que Giraldes perfilhava, poisno aceitava, para as relaes entre a religio e a poltica, nem o princpioexpresso na frmula Igreja livre no Estado livre, nem sequer a modificaoproposta por Jules Simon, num clebre discurso proferido em 1867, emque sustentava que o elo entre a sociedade poltica e as sociedades religio-sas teria de obedecer ao princpio Igrejas livres no Estado livre. Para Gar-cia, a primeira provocaria, inevitavelmente, o predomnio da Igreja sobreo Estado e a de Jules Simon limitava-se a levar em conta as outras confis-ses religiosas. De acordo com o princpio da liberdade de conscincia e dasua consequente incompatibilidade com a existncia de uma religio ofi-cial, defendia, j em 1870, que aquele s seria plenamente exercido numasociedade cujo Estado fosse religiosamente neutro, isto , respeitador damxima religies livres no Estado indiferente103. A liberdade religiosaconstitua uma conquista desde a revoluo luterana e o Estado teria de serindiferente, porque s assim poderia representar a totalidade dos cidados.Deste modo, as igrejas seriam objectivaes da liberdade de associao ede expresso e o poder poltico devia ter, perante elas, um posicionamentoanlogo ao que mantinha com as demais agremiaes existentes na socie-dade civil (culturais, econmicas): o Estado deve ter com relao Igrejae aos cultos a mesma e to completa misso, como a que lhe pertence rela-tivamente s outras esferas da actividade humana; garantir os direitose manter o estado jurdico das pessoas e da propriedade.104 Quer istodizer que, se o Estado moderno consubstanciava a vontade de todos oscidados com direitos iguais e se, luz dos cnones demo-liberais, nofazia sentido que tivesse indstria ou propriedade, pelas mesmas razesa Carta Constitucional caa em contradio ao impor uma religio deEstado. Manuel Emdio Garcia manter-se- fiel a esta tese e, alguns anosdepois, ao reger a cadeira de Direito Eclesistico, continuar a defend-lanas suas aulas, ainda que num tom mais cauteloso e menos apaixonado105.

    Todas estas tomadas de posio constituram momentos altos de umdebate que teve outras vicissitudes e que, gradualmente, se foi tornandonuclear na campanha laicista. Desde atitudes individuais com grande econa opinio intelectualizada como a do apstata Joo Bonana106, quesaiu da Igreja por se sentir perseguido pela campanha que a hierarquia

    102 Manuel Emdio Garcia, O Papa-Rei e o Concilio, in op. cit., p. 77, col. 2.

    103 E m Frana, Renouvier utilizava esta m e s m a frmula para defender o agnos t i c i smo

    religioso d o Es tado . Cf. Georges Weill , Histoire de l ' l d e Laique en France ao XIXme Si-cle, Paris , Librairie Flix A l c a n , 1929, p . 279 .

    104 Manuel Emd io Garcia, O Papa-Rei e o Conc l i o , in op. cit., p . 85 , co l . 2 .

    105 Id., Apontamentos Colhidos na Aula de Direito Ecclesiastico Commum. Quarto

    Anno Jurdico, 1895-1896, Coimbra, Typ. de Luiz Cardoso, 1895, 36.a lio, p. 3.230 106 Joo Bonana, op. cit., p. 16.

  • O laicismo e a questo religiosa

    estaria a mover aos que procuravam coordenar o seu mnus com os princ-pios liberais, at aos programas polticos de esquerda, a reivindicao daseparabilidade tornou-se uma exigncia tpica do laicismo. Mais concreta-mente, Joo Bonana declarava que, dentro do sacerdcio, no havia lugarpara os que defendiam a possibilidade de se compatibilizar a liberdade como cristianismo (e o catolicismo), isto , para os que reclamavam umaigreja livre no estado livre. D-se igreja o direito incontestvel denomear os seus bispos, os seus cnegos, os seus curas, o de regularizar asua vida ntima. No se intrometa ela porm com os casamentos civis [...],rejeite a proteco do estado, porque a crena resultado duma convicoe esta no se pode impor fora107. A partir destas premissas, noadmira que Bonana tenha evoludo para as posies republicanas, tendn-cia ideolgica empenhada em articular os ataques infalibilidade com aapologia da neutralidade religiosa do Estado, como j se viu em relao aManuel Emdio Garcia. E foi neste contexto que um aluno deste, Sebastiode Magalhes Lima, publicou o opsculo Padres e Reism (1873), logoseguido de O Papa perante o Sculo (1874), obras que anatematizavam opoder temporal do papa, o dogma da infalibilidade e a religio de Estadoem nome da grande e suprema frmula: Igreja livre no Estado indife-rente.109 Isto mostra que o futuro gro-mestre do Grande Oriente Lusi-tano Unido e principal activista do livre-pensamento em Portugal prolon-gava a lio recebida de Garcia a propsito da publicao de O Papa-Reie o Conclio.

    Inmeros outros exemplos podiam ser citados para ilustrar a progres-so da exigncia da liberdade religiosa e da aconfessionalidade do Estado.Com efeito, a luta por tais objectivos passou a ser um dos escopos essen-ciais de muitos textos anticlericais e dos prprios movimentos republicanose socialistas organizados. O programa do Centro Republicano Federal deLisboa (1873) grupo de Tefilo Braga, Carrilho Videira, Horcio EskFerrari, Eduardo Maia j era claro a este respeito, pois propunha-serealizar a separao completa da Igreja e do Estado, de modo que cadacidado pague e siga o culto que a sua conscincia lhe aconselhar, sendocompletamente banido das escolas oficiais dos Estados o ensino de qual-quer religio110. Mas no deixa de ser sintomtico que as bases progra-mticas da faco mais moderada do movimento ento liderada porJos Elias Garcia fossem omissas no concernente a este tema. Noentanto, quando, em 1891, o Partido Republicano elaborou um programaque procurava sintetizar o iderio das suas vrias faces, a questo reli-giosa assumiu grande relevncia no seu articulado, incluindo a defesa daseparao111.

    107 Joo Bonana, Questo da Actualidade, Porto , Typographia Commercial , 1868,

    p. 42 .108

    Sebastio de Magalhes Lima, Padres e Reis, Porto , Imprensa Portuguesa Editora,1873.

    109 Consulte-se ainda o seu artigo Igreja livre no Estado indiferente, in Mosaico, i

    ano , n. 4, de Janeiro de 1875, p. 25.110

    Programa do Centro Republicano Federal de Lisboa, apud Joaquim de Carvalho,Formao da ideologia republicana (1820-1880), in Lus Montalvor et. ai . , Histria doRegimen Republicano em Portugal, Lisboa, Editorial tica, 1935, vol . i, p . 251.

    111 Cf. Trindade Coelho, Manual Poltico do Cidado Portuguez, Lisboa, Liv. Ferreira,

    1908, p. 668. 231

  • Fernando Catroga

    No se pense, contudo, que as propostas laicizadoras foram patrim-nio exclusivo do liberalismo monrquico mais progressista ou do republi-canismo. Bem pelo contrrio. A existncia de um Estado laico aparecia scorrentes socialistas como uma ilao decorrente da reorganizao demo-crtica da sociedade em todos os seus domnios. E, se o primeiro programasocialista portugus aprovado em congresso ainda era omisso no concer-nente questo religiosa, os elaborados posteriormente (1880 e 1882) serotaxativos quanto dependncia que existiria, na sociedade burguesa, entreo problema social e o religioso112. Quer isto dizer que, perante a funoideolgica que o catolicismo desempenhava na hegemonizao do poder daclasse dominante, tambm as vanguardas operrias pensavam que aaliana entre o trono e o altar, mesmo mitigada, constitua um dos supor-tes da explorao econmica e da opresso poltica. Por isso, a militnciasocialista e anarquista incorporou nas suas reivindicaes sociais os pontosbsicos do programa laico, incluindo, logicamente, a exigncia da separa-o da Igreja do Estado113.

    Seja como for, um facto que a sensibilidade em relao ao princpioda separao, agudizada pelas decises antiliberais do Conclio Vaticano I,se foi alargando medida que aumentou a fora poltica e ideolgica dosmovimentos apostados em democratizar a sociedade. Alm do mais, osexemplos de outros pases serviam de argumento supletivo a tais preten-ses, o que explica que, em concomitncia com os casos, j histricos, dosEstados Unidos e da Sua, se invocassem deliberaes mais recentes toma-das sobre a matria no Mxico, Brasil, Guatemala, Japo114 e, sobretudo,em Frana115, ao mesmo tempo que se lastimava que algumas tmidaspropostas legislativas que, entre ns, foram lanadas no Parlamento notivessem encontrado qualquer eco116. Mas foi somente com as medidas

    112 Estes dois programas encontram-se transcritos em Carlos da Fonseca, Histria do

    Movimento Operrio e das Ideias Socialistas em Portugal, n, Os Primeiros Congressos Ope-rrios 1865-1894, Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, s. d., pp. 121-125 e 129-131.

    113 assim natural que, nas manifestaes do 1. de Maio, como a que a Federao

    Geral do Trabalho realizou em 1908, as reivindicaes de natureza social (greve, bolsas de tra-balho, 8 horas, trabalho de mulheres e de menores, segurana, lei antianarquista, despejos,descanso semanal, trabalho de empreitada, inspeco de trabalho, supresso de impostossobre os alimentos) e de carcter poltico (liberdade de imprensa e sufrgio universal) apare-am completadas pelas exigncias da separao da Igreja do Estado e do registo civil obrigat-rio o cerne das reivindicaes laicas. Cf. A Voz do Proletrio, xii ano, n. 590, de 1 deMaio de 1908, p. 4, col. 3.

    114 Cf. Sebastio de Magalhes Lima, O Congresso de Roma, Lisboa, Typ. de O Dirio,

    1904, pp. 16-21.115

    Para o caso francs veja-se Jean-Marie Mayer, La Sparation de l'glise et de l'tat(1905), Paris, Julliard, 1966, e L. V. Mejan, La Sparation des glises et de l'tat, Paris,PUF, 1959.

    116 A 23 de Janeiro de 1885, o deputado Incio Francisco Silveira da Mota, invocando

    os princpios jusnaturalistas legitimadores da liberdade de conscincia, conclua que nopodia pedir-se, em nome do catolicismo, ou de qualquer doutrina religiosa, fora coercivaao estado, no colhendo, por isso, o argumento segundo o qual a religio de Estado se impu-nha por ser maioritria no povo portugus. O problema teria de situar-se ao nvel dos princ-pios, pelo que a lei devia adequar-se aos ditames da razo, os nicos condizentes com a liber-dade, com a justia, com a glria e os interesses do pas, com a sublime, com a divina moraldo cristianismo. A esta luz, requeria Cmara que aprovasse um projecto-lei que, no seuartigo 21, estipulava: permitido a naturais e estrangeiros o culto domstico e pblico de

    232 qualquer religio que no ofenda a moral (Dirio do Governo, n. 19, de 26 de Janeiro de

  • O laicismo e a questo religiosa

    anticongreganistas da III Repblica (1902) e, em particular, com o eco dapoltica de Combes e de seus seguidores (1903-05) que a luta pela separaoganhou uma maior nfase em Portugal. Na verdade, temos conhecimentode que as novas leis foram saudadas por estudantes do Porto117 e porassociaes de militantismo laico, como a Associao Promotora doRegisto Civil e o Grande Oriente Lusitano Unido118. Sem querermos afir-mar que a evoluo do caso francs foi o nico determinante em Portugal,no temos dvidas, porm, de que deu um novo alento ao anticlericalismoentre ns, o que se compreende, quer em funo do desenvolvimento dacrise social e poltica dos incios do novo sculo, quer devido ao conse-quente aumento do militantismo laico, acirrado pelo acidente Calmon(1900) e pelas leis de Hintze sobre as congregaes religiosas (1901). Talempolamento da questo religiosa tinha de colocar a separao como umdos objectivos imediatos do laicismo. De facto, no calor da propaganda,em que se aglutinava um activismo poltico de vrios matizes, unnime navalorizao do problema religioso, a satisfao daquela exigncia era apre-sentada como a condio jurdico-poltica essencial emergncia dohomem novo que iria consolidar a democracia. E, em face da preponde-rncia poltica do republicanismo, no espanta a sua colocao como umdos objectivos revolucionrios imediatos a satisfazer logo aps a queda daMonarquia119.

    Por tudo o que ficou escrito, deve-se ver na aco de Afonso Costa edo Governo Provisrio da Repblica um ponto de chegada de um longocaminho que, bem vistas as coisas, se confundia com o percurso do proseli-tismo laico desde o seu grande momento de arranque, nos incios dos anos70. Logo, se a Lei de Separao correspondeu ao modo de pensar doministro da Justia, e se este no era estranho Arte Real, a objectividadeda anlise obriga, no entanto, a defender que as suas decises de 1911 pre-tendiam rematar a luta entre dois poderes, isto , o longo e atribulado pro-cesso de legitimao e de estruturao do Estado-nao, cuja unicidade de

    1885, pp. 257-258). O elogio desta baldada inteno foi feito, naquele ano, por Sebastio deMagalhes Lima em O Sculo. Cf. S. M. Lima, A Vida de Um Apostolo, Sebastio deMagalhes Lima, Jornalista, vol. 3, pp. 83 e segs. O projecto tambm recebeu apoio do jor-nal A Voz do Operrio, vi ano, n. 277, de 15 de Fevereiro de 1885, p. 2, cols. 2-3;n. 279, de 1 de Maro de 1885, p. 2, cols. 2-4, e n. 280, de 8 de Maro de 1885, p. 2,cols. 1-2.

    117 A saudao foi enviada por estudantes da Academia Politcnica do Porto, a 22 de

    Setembro de 1903. Cf. A Vanguarda, xx ano, n. 29, 1910, p. 3, col. 5.118

    Sintomaticamente traduzida por Jos de Arriaga, foi publicada a obra de mileCombes As Congregaes Religiosas em Frana, Questo Religiosa, Porto, Livraria Acad-mica, 1904.

    119 A Lei da Separao das Igrejas do Estado, promulgada a 20 de Abril de 1911, consti-

    tui uma pea decisiva para a consumao da estratgia laica do novo regime. Sobre esta leie outros diplomas a ela ligados vejam-se: Augusto Oliveira, Lei da Separao. Subsdios parao Estudo das Relaes do Estado com as Igrejas sob o Regime Republicano, Lisboa,Imprensa Nacional, 1914; Alberto Martins de Carvalho, A Lei da Separao das Igrejas doEstado. Outros Diplomas Legaes. Estudo Crtico, Coimbra, Tipografia Popular, 1917. Sobreas consequncias poltico-ideolgicas da aplicao da lei leiam-se: Vtor Neto, art. cit.; RaulRego, Histria da Repblica, vol. 3, Lisboa, Crculo de Leitores, 1986, pp. 5-87; AntnioMatos Ferreira, Aspectos da aco da Igreja no contexto da I Repblica, in Joo Medinaet. ai., Histria Contempornea de Portugal, vol. 1, Lisboa, Amigos do Livro, 1985, pp. 207--218; A. JeSUS Ramos, A Igreja e a I Repblica A reaco catlica em Portugal s leis per-secutrias de 1910-1911, in Didaskalia, fases. 1 e 2, vol. 13, 1983, pp. 251-302. 233

  • Fernando Catroga

    soberania entrava em choque com uma Igreja nostlgica de um poder per-dido.

    Para os mais moderados, a separao permitiria aportuguesar a reli-gio. Da que a propaganda laicista evocasse as tradies regalistas da pol-tica portuguesa desde os primrdios da Monarquia120 e defendesse oregresso a uma Igreja nacional, somente obediente vontade soberana dosseus crentes. O ultramontanismo jesutico no teria amor de ptria121 e,pensavam alguns, s uma Igreja autnoma de Roma e independente doEstado poderia garantir a sobrevivncia do catolicismo: Liberte-se oEstado da Igreja, e liberte-se a igreja portuguesa da cria romana. Decre-tada a separao, organize-se o clero nacional, a igreja nacional em basesdemocrticas, como convm numa democracia, elegendo os seus procos eos seus bispos.122

    Como j se viu, esta inteno chegou a sensibilizar alguns eclesisticosque aceitavam a separao como um caminho que permitiria Igreja reali-zar a sua misso espiritual. J antes de 1910, os padres Pais Pinto e Ant-nio Augusto (proco de Vila Seca) tinham defendido publicamente que esseideal s seria exequvel num regime republicano123. Outros foram maislonge, e a sua inteno de acasalar a vivncia religiosa com os imperativostico-sociais da modernidade levou-os, como a Joo Bonana, apostasia.Nas mesmas condies encontrmos o padre Manuel Pinto dos Santos,presbtero desde 1900, mas que, em 1903, se convenceu de que o ultramon-tantismo, longe de ser uma excrescncia do catolicismo como preten-diam muitos liberais anticlericais, decorria do modo como a igrejaromana interpretava os Evangelhos124. Da que s o regresso a uma expe-rincia religiosa sem mediao pudesse restituir humanidade o aposto-lado de Cristo. E a sua crtica a Roma levou-o para o campo do evange-lismo luterano, em cuja interpretao do cristianismo viu confirmadoaquilo que o romanismo procurava esconder: A verdadeira religio [...], sem sombra de dvida, a base das crenas liberais.125 Mas foi sobre-

    120 N o mais aceso da polmica volta da questo religiosa, a Junta Liberal lanou, a 25

    de Outubro de 1909, um protesto em prol da supremacia d o poder poltico sobre o religioso,evocando as lutas de D . Sancho I, D . A f o n s o II, D . Sancho II, D . Pedro I, D . Joo II,D . Joo IV e D . Jos contra o papado e contra o clero. Cf. O Mundo, x ano , n. 3227, de26 de Outubro de 1909, p . 2 , col . 2. Cf. tambm Tefi lo Braga, A Egreja e a CivilizaoModerna. Conferencia por [...], Lisboa, Publicaes da Junta Liberal, 1910.

    121 Miguel Bombarda, O Estado e o clericalismo, in O Mundo, ix a n o , n. 3108, de

    29 de Junho de 1909, p . 1, col . 1.122

    Velhinho Correia, A Separao da Egreja do Estado , in A Democracia, i ano ,n. 42 , de 28 de Dezembro de 1910, p . 1, col. 2 .

    123 Cf. O Mundo, ix ano , n . 3091, de 12 de Junho de 1905, p. 2 , col . 1. Em artigo inti-

    tulado A Igreja e o Estado (O Mundo, ix ano , n. 3123, de 14 de Julho de 1909, p . 1,cols . 6-7), o padre Antnio Augusto exps as mesmas ideias. N o entanto, indiscutvel queos padres republicanizados eram uma minoria.

    124 A autobiografia deste processo de apostasia encontra-se em Manuel Pinto dos San-

    tos , op. cit., pp . 216 e segs.125

    Manuel Pinto dos Santos, O liberalismo em face da religio romana, in op. cit.,p. 172. Esta conferncia, proferida na Associao de Lojistas de Lisboa em Maio de 1903, foia primeira de um ciclo de trs: O jesuitismo e a liberdade e Proletariado e liberdade. Pelaimprensa da poca sabe-se que foram muito concorridas: segundo o Dirio de Notcias de 6de Maio de 1902, a primeira conferncia reuniu algumas centenas de pessoas [...] O auditrioera composto de indivduos de todas as classes e de um grande nmero de senhoras (cf.

    234 Manuel Pinto dos Santos, op. cit., p. 195).

  • O laicismo e a questo religiosa

    tudo o padre Santos Farinha quem, na conjuntura agitada da revoluorepublicana, mais se empenhou em encontrar uma plataforma de entendi-mento entre a Igreja e o jovem regime. E f-lo seguindo ainda os ensina-mentos de Montalembert: Separao da Igreja e do Estado. Para mimesta frmula no mais do que a expresso da independncia das confis-ses religiosas da aco poltica do Estado. A Igreja no intervm na vidapoltica da nao; a poltica no se intromete na Igreja.126 E, no calor daofensiva laica, alguns monrquicos chegaram a pensar que, indo ao encon-tro das reivindicaes republicanas e anarquistas, se poderia acalmar a agi-tao social e, assim, prolongar a vida do regime. Foi nesse contexto queo mao Jos Pinheiro de Melo, ainda membro do Partido Progressista,tentou, debalde, convencer Jos Luciano de Castro a patrocinar uma lei deseparao127.

    A onda radical ditou o sentido da legislao republicana nesta matriae deixou isolados os que propunham uma soluo mais cordata para asrelaes entre a Igreja e o novo regime. Dir-se-ia que as precaues dosradicais em relao Igreja esmagadoramente monrquica e conserva-dora era correspondente suspeio desta em relao nova ordempoltica, pelo que a criao dos instrumentos adequados radicao de umprojecto cultural descristianizador no podia aceitar, sequer, a sereia libe-ralista da neutralidade estatal em matria religiosa. Se, na educao, pelasmesmas razes, o laicismo reivindicava a obrigatoriedade e a neutralidade,aqui, a instncia poltica teria igualmente de exercer um papel activo nofomento da indiferena religiosa. que, relembre-se, dada a hegemoniacultural que o c