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O Leitor e o Labirinto - Suely Fadul Villibor Flory

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O Leitor e o Labirinto

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Suely Fadul Villibor Flory

Editora Arte& Ciência

1997

O Leitor e o Labirinto

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© 1997, by autor

Editor: Henrique Villibor FloryDiretor Administrativo: Alexandre Villibor Flory

Capa e Projeto Gráfico: Gregor OsipoffEditoração eletrônica: Ronaldo Ivan Verginio

Nelson Miguel de Paula

Dados Internacionais de catalogação na publicação (CIP)Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP

Flory, Suely Fadul VilliborO leitor e o labirinto/ Suely Fadul Villibor Flory.� São Pau-

lo: Arte & Ciência, 1997.p.1. Romance português contemporâneo. 2. Leitor e leitura

� Estética da Recepção. 3. Estética da Recepção � Textos ficcionais.4. Literatura portuguesa � Ficção � História e crítica. 5.Saramago, José, 190 � Crítica e interpretação. 6. Mourão,David, 19 � Crítica e interpretação. ITítulo.

CDD � 869.0986909869.3509

F641l

Índice para catálogo sistemático:1.Romances: Literatura portuguesa: Crítica e interpretação 869.309

2.Literatura portuguesa: Romance: Século XX: História e crítica869.3509

Editora Arte & CiênciaRua Joaquim Antunes, 922 - conjunto 3

CEP 05415-001 - Pinheiros - São Paulo - SPTel/fax: (011) 253-0746/ (011) 3171-0477

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . .......................................................................................11

01. O romance português contemporâneo. Considerações Gerais ........11

02. A importância do leitor, co-autor do texto (Estética daRecepção) ...................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 : Percurso Teórico - A Estética da Recepção ..................... 17

1.1 - Produção e Leitura ........................................................................ 17

1.1.1 - Os múltiplos enfoques da Estética da Recepção ........................... 23

1.2 - O espaço do leitor: os vazios do texto ........................................... 31

1.3 - A organização do repertório dos textos ficcionais ......................... 36

1.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia ..... 38

CAPÍTULO 2 : O experimentalismo e a construção do romance no ro-mance, como marcas de contemporaneidade na ficção portuguesaatual ......................................................................................................... 47

2.1 - Perspectiva Panorâmica ................................................................ 48 José Cardoso Pires ........................................................................ 48 Agustina Bessa-Luís ...................................................................... 49 Lídia Jorge .................................................................................... 50 Antonio Lobo Antunes ................................................................. 51 José Saramago ............................................................................... 52 Teolinda Gersão ............................................................................ 55 Antonio Rebordão Navarro ........................................................... 55 Vergílio Ferreira ............................................................................ 56 David Mourão-Ferreira ................................................................. 57 Helder Macedo .............................................................................. 58

CAPÍTULO 3 : O leitor confidente e as dualidades intrínsecas emUM AMOR FELIZ de David Mourão-Ferreira ......................................... 61

3.1 - Localização do romance na obra do autor ..................................... 62

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3.2 - O signo do duplo - Ambiguidade: Produção e efeito ..................... 64

3.2.1 - O narrador autodiegético e o mundo das relações ......................... 68

3.3 - O repertório ficcional e os limites de uma época ........................... 74

3.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia ..... 76

3.3.2 - Representação e Diegese - Os “pífios anos 80” ............................ 79

3.4 - Os vazios do texto e o papel do leitor ........................................... 81

3.4.1 - O autor implícito e o leitor-narratário (“Poiesis”, “Aisthesis” e“Katharsis”) .................................................................................. 82

3.4.2 - Texto, Contexto e Metatexto - A invasão da narrativa pelodiscurso......................................................................................... 85

CAPÍTULO 4 : O leitor-organizador e a pluralidade das narrativas emHISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA. A montagem do texto peloleitor. ........................................................................................................ 87

4.1 - Localização do romance na obra do autor ..................................... 89

4.2 - A produtividade do romance plural .............................................. 94

4.2.1 - A montagem do texto e a pluralidade de narrativas (Enunciação eEnunciado) .................................................................................... 97

4.2.2 - O narrador heterodiegético e a focalização múltipla .................... 100

4.3 - O inter-relacionamento História/história, realidade/ficção naconstrução do texto de Saramago ............................................... 108

4.3.1 - O repertório ficcional em História do Cerco de Lisboa.(Intertextualidade, dialogismo e pluridiscursividade. Auto-reflexibilidade e polifonia)............................................................ 111

4.4 - O labirinto esfíngico e a aventura do leitor sob a égide da"Poiesis" - a comum construção. ................................................ 115

CONCLUSÃO: A dura conquista do texto: o leitor co-autor e a auto-referencialidade do texto. (UM AMOR FELIZ e HISTÓRIA DO CERCODE LISBOA, romances modelares da narrativa portuguesacontemporânea) ..................................................................................... 121

BIBLIOGRAFIA . ................................................................................... 129

0.1 - Bibliografia dos autores do “corpus” básico .............................. 129

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0.2 - Bibliografia dos autores do “corpus” complementar .................. 129

0.3 - Bibliografia geral ......................................................................... 130

ANEXO 1 - Obras de David Mourão-Ferreira ........................................ 139

ANEXO 2 - Obras de José Saramago ..................................................... 141

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INTRODUÇÃO

O romance português contemporâneo Considerações Gerais

“A prática rica e multímoda da ficção portuguesa con-temporânea arrisca-se justamente em indefinição pordefinidas formulações que, mesmo que seja de modo inad-vertido, atravessa, duplica ou interroga. Reflectir sobreteoria dos géneros não pode significar a busca de umanorma (mesmo que ela exista, aliás constantemente trans-formada pelo relativismo histórico que sempre a conduz)- mas consiste certamente em arriscar, na práticairradiante de um sentido discursivo afim, uma compreen-são (delimitação) que permita a evidência dasdescolagens, o gosto das descoincidências, a surpresade uma desunião que, apontando o uno (um uno hipoté-tico - e sempre por hipóteses caminhamos), informa o seuseguir diverso”1

A literatura portuguesa contemporânea atravessa uma fase deinvejável produtividade, com a eclosão ou permanência de autores comoAntonio Lobo Antunes, Helder Macedo, Teolinda Gersão, José CardosoPires, Vergílio Ferreira, José Saramago, Ivette K. Centeno, Agustina BessaLuís, Carlos de Oliveira, Urbano Tavares Rodrigues, Antonio RebordãoNavarro, David Mourão-Ferreira entre vários outros, da mesma ou maiorrelevância, arrolando-se escritores de pelo menos três gerações: a que co-meçou pelo neo-realismo entre 45 e 50, outra, já dos anos 60, que se dedicaa um romance intimista, existencialista, de maior subjetividade e, nos anos70 e 80 em diante, autores das mais variadas tendências, todos com umdenominador comum: a renovação fundamental e profunda do romance,revelando dimensões que demonstram a transformação de formas, atextualização do romance, o acompanhamento, enfim, da mudança dos tem-pos e contextos socio-ideológicos, dos quais a produção literária, com seucaráter especular, tem sido um vivo e dinâmico reflexo.

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A dificuldade básica, com a qual nos deparamos na análise deobras de nosso próprio tempo, advém exatamente do aspecto subjetivo edelimitador do espaço-tempo a que pertencemos, da pequena ou nenhumadistância entre nós e os autores estudados, da falta de uma perspectivahistórica mais abrangente que nos facilitaria os julgamentos, classificaçõese, até mesmo, uma maior objetividade e isenção críticas.

É possível, no entanto, percorrer o numeroso e heterogêneo“corpus” dos textos narrativos atuais, procurando verificar característicasrecorrentes, denominadores comuns, ideologias conflitantes ou análogas,tendências estéticas predominantes, tentando formular procedimentos dearticulação e produção literárias que deixem entrever a orgânica ficcional daliteratura de nossa época.

A alteridade, o desenvolvimento da problemática do outro emseus mais diversos níveis - alteridade do gênero, alteridade do discurso,alteridade do narrador, entre outras - é uma característica que advém datextualização do romance, que se volta agora sobre si mesmo, questionando-se, explicando-se, através da pluridiscursividade e da auto-reflexibilidade. Aconstrução do romance no romance, o texto que se constrói à vista e com acolaboração do leitor, inserido num contexto de interações, de fusão de hori-zontes de expectativas do emissor (polo da produção) e do receptor (polo darecepção), configura um processo de auto-referencialidade, sublinhando ocaráter especular do romance-texto e o experimentalismo da ficção atual.

Assim sendo, a ficção contemporânea, de um modo geral, e parti-cularmente o romance português preocupam-se com a superação de um sim-ples re-lembrar, objetivando acima de tudo - como uma recriação de toda umaconcepção do mundo atual, fragmentário e múltiplo - incorporar o própriomundo, constituindo-se o próprio texto e seu discurso, na representaçãodessarealidade inquietamente. Focalizando, simultaneamente, “estados de consci-ência” e “aspectos concretos do mundo em torno”, o romance moderno privi-legia o mundo dos valores, desviando o centro de gravidade do romance,anteriormente centralizado na intriga, para as persongens “a quem as coisasacontecem”2.

A ficção moderna liberta-se da coação absoluta do enredo elança novas luzes sobre a personagem, a quem as coisas acontecem, rom-pendo-se o equilíbrio entre o “mundo dos factos” e o “mundo dos valo-res”3, uma vez que se estabelece um nítido predomínio das personagenssobre o suceder dos eventos, fugindo-se ao culto da história pela história.O discurso dialógico prevê a presença do outro inserido na fala do narradore, por outro lado, as falas das personagens estabelecem a pluridiscursividadee a relativização da diegese, onde o leitor percebe verdades e não a verdade.

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Revela-se, assim, a preocupação básica do romance contempo-râneo em se vincular à esfera dos valores, através da sobreposição e inter-relacionamento de diferentes visões de mundo, centrados nas persona-gens - Essência - que contrastam com os valores da Aparência, decorren-do daí a grande importância da pluridiscursividade, que elucida os proces-sos de construção textual autonímica, criando um jogo especular entre osvários locutores do romance.

Deslocando-se o centro de gravidade da intriga para a persona-gem, novas luzes são lançadas sobre os choques de valores que decorremdo inter-relacionamento das pessoas, num mundo em mudança. Inserida noconflito, permanentemente aberto entre os homens, a personagem é enfocadacom insistência. De que lado ela se posiciona: a favor de valores caducos,na sua defesa veemente?; ou contra eles?. Se está contra, de que maneira eem que medida? Ou está à deriva, alheio ao desmoronar do mundo ao seuredor, vivendo na irrealidade do passado, acreditando que tudo está emordem, ainda que vivendo no próprio caos?

A realidade incerta e indeterminável apresenta-se em articula-ções multiformes, onde as antinomias do real são traduzidas pelo estabele-cimento de sucessivos contrastes entre autores, textos sobre textos, visõesde mundo, configurando-se contradições de variadas ordens, que refletem osconflitos que se inserem no mundo atual e na ficção que o modeliza.

Pretende, isto sim, representar a natureza enigmática do homem,inserido nesta realidade imprecisa e flutuante, cujos valores em mudançarefletem-se no discurso ficcional, sendo o texto a própria mimese do real.

Estilhaços de pensamentos, fragmentos sem sentido, trechosfraseológicos aparentemente desconexos, constroem novos significadosque podem refletir, de modo convincente, a perplexidade de um mundoflutuante, fragmentário e sem contornos definidos, representando a nature-za enigmática do homem, cujos valores em mudança refletem-se no própriotexto ficcional.

A importância do leitor, co-autor do texto (Estética da Recepção)

A significação frasal é uma hipótese, que se erige sobreuma quantidade de significados correlacionados, que,por sua vez, são projetados sobre a base material dossignificantes. O núcleo do significado frasal assim obti-do é definível como estado de fato (Sachlage). Na acepçãoprópria do termo, este estado de fato é o primeiro passo

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da recepção. Para a constituição do estado de fato, noentanto, é necessária não só a atividade redutora doleitor, como, ao mesmo tempo, uma atividadecatalisadora*, que ocupe os vazios.4

No contexto do romance português atual, torna-se cada vez maisimprescindível a colaboração do leitor na decodificação da mensagem tex-tual, daí a necessidade de se considerar a prioridade analítica do aspecto darecepção sobre os da produção e da representação. A estrutura imanente,verbal do texto - a produção como organização de estruturas - ou mesmo aestética sócio-ideológica da representação - a reflexão ideológica comotarefa legítima da literatura - não conseguem dar conta da obra literária emsua totalidade, configurando-se antes como reduções apressadas. É preci-so ir mais além, analisando e prevendo processos de interação que advêmda participação dinâmica do leitor. A Estética da Recepção propõe a con-cepção da abertura do horizonte de significação da literatura e da contribui-ção indispensável do receptor que articula e realiza essa abertura.

Quando se lê um texto trabalha-se com hipóteses prévias, quevão se confirmando ou não na leitura, ou se tem que voltar atrás e lernovamente. A leitura configura-se, pois, como um ato interativo, onde setrabalha por ensaio e erro.

O romance é o espaço textual onde se potencializam infinitaspossibilidades de relacionamento, cabendo ao leitor, através de suas pro-jeções representativas e da estrutura de apelo do texto, ocupar os “bran-cos” do texto, os “vazios”, o “não-dito”. Os diversos planos da narrativapossuem significados secundários, conotativos, que coexistem com ossignificados primários constituindo-se horizontes suplementares de sig-nificação: o horizontal das conotações metonímicas e sequenciais e overtical das metafóricas.

O leitor, co-autor do texto ficcional, estabelece uma conjunção e édessa interação que decorre a presentificação da mensagem ficcional. O re-ceptor traça uma linha congruente, que lhe assegura a descoberta do sentidodo romance, elaborando, através das constantes do próprio texto, as variá-veis da recepção, espaço ou meio de reflexão, onde se pode mergulhar cadavez mais, através de leituras e re-leituras.

Pretendemos, nesse estudo, verificar o papel catalisador do lei-tor em dois autores bastante representativos da literatura portuguesa con-temporânea: José Saramago e David Mourão-Ferreira. O primeiro utilizan-do-se da história ficcionada, da alteridade do narrador, do discurso dialógico,da intertextualidade com textos históricos e ficcionais e com diferentes re-

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gistros genológicos e o segundo baseando-se na pluridiscursivididade, napolifonia da multi-focalização, na intertextualidade entre as falas das perso-nagens - criando um painel dos “pífios anos oitenta” - na duraçãobergsoniana, no predomínio e invasão do discurso sobre a narrativa. Com-pete ao leitor a ocupação dos vazios, dos brancos do texto, usufruindo doprazer estético da poiesis, uma vez que participa da construção do própriotexto, ocupando os espaços que lhe são reservados; da aisthesis pelapossibilidade de configurar uma nova visão do mundo pela fusão de seushorizontes de expectativae as do autor; e, da katharsis pela ativação desuas representações projetivas, que podem levá-lo a uma re-elaboração deconceitos individuais, através da interação com o texto ficcional.

Este livro pode ser sub-divido em partes: um percurso teóricosobre a Estética da Recepção, principais teóricos e abordagens; uma refle-xão sobre o romance português contemporâneo, vertentes e característicasdominantes (“corpus complementar”), visando contextualizar os dois ro-mances a serem analisados - História do Cerco de Lisboa de José Saramagoe Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira - (“corpus básico”); o repertó-rio ficcional, as estratégias textuais, a construção do romance no romance,as inter-relações entre emissor-mensagem-receptor, serão abordados emtrês partes subsequentes, onde os romances do “corpus básico” serãoanalisados, à luz dos aspectos teóricos da Estética da Recepção e da Teoriado Texto.

O objetivo final é demonstrar que o texto - polo da produção epresença do autor implícito - insere-se num contexto - quadro espácio-temporal e fusão de horizontes de expectativas - providenciando o campode atuação do leitor, em diversos níveis - polo da recepção - que constrói oseu metatexto através do ato da leitura.

Notas

1 Maria Alzira Seixo - A palavra do romance. (Ensaios de Genologia e análi-se). Lisboa: Livros Horizonte, 1986. p.82 Alexandre Pinheiro Torres - “Sociologia e Significado do Mundo Romanes-co de José Cardoso Pires”. In; Posfácio da obra de José Cardoso Pires - OAnjo Ancorado. 5ª ed., Lisboa: Moraes Editores, 1977.3 Idem, Ibidem, p. 154.4 Karlheinz Stierle - “Que significa a recepção dos textos ficionais?”. In:Vários Autores - A Literatura e o Leitor. Selec. trad. e introd. de Luiz CostaLima. Rio: Paz e Terra, 1979, p. 138.

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Percurso Teórico - A Estética da Recepção

1.1 - Produção e Leitura

Today, one rarely picks up a literary journal on eitherside of the Atlantic without finding articles (and often awhole special issue) devoted to the performance ofreading, the role of feeling, the variability of individualresponse, the confrontation, transaction, or interrogationbetween texts and readers, the nature and limits ofinterpretation - questions whose very formulationdepends on a new awareness of the audience as an entityindissociable from the notion of artistic textos5

Nos últimos vinte anos pudemos presenciar, de início sutil esilenciosamente, mas, na verdade, uma verdadeira revolução no campo dateoria literária e do criticismo, quando palavras como leitor, audiência, re-ceptor, antes vistas como conceitos óbvios e triviais, passam a ser umapreocupação comum a várias correntes atuais de estudos críticos. Os jor-nais literários publicam artigos cada vez mais numerosos, onde a concretizaçãodo texto ficcional através da leitura, a variabilidade das respostas e proje-ções individuais dos leitores, a natureza e os limites da interpretaçãorevelam uma preocupação comum com a recepção do texto literário, lado alado com os tópicos críticos tradicionais da criação e da representação(genesis-mimesis).

O processo da leitura é estudado e analisado de todos os ângu-los, em sua variabilidade, em seus valores intrínsecos, nas condições pes-soais e históricas em que se encontram os leitores, considerando-se a pro-dução do texto artístico, tanto uma construção do autor como uma re-cons-trução pelo leitor, partindo da premissa básica de que uma obra literária sóexiste, concreta e efetivamente, quando é atualizada pela leitura.

A preocupação com a produção e leitura do texto artístico jáaparece no conceito aristotélico de prazer, estudado por Jauss6, onde seressalta a dupla origem do prazer estético como decorrente de dois fatores: a

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“admiração de uma técnica perfeita” (a composição do texto) e o “regozijoante o reconhecimento da imagem original no imitado” (o gosto do lei-tor). Aliam-se um efeito de ordem intelectual e um efeito sensível, paracompor o caráter estético inerente à recepção do texto, sublinhando-se aidéia aristotélica de que a natureza catártica é que determina a eficácia daobra literária.

A reflexão formalista - de início com uma proposta redutora dotexto como imanência, artefato verbal, vendo a produção textual como orga-nização de estruturas, com uma objetividade intemporal, analisada,sincronicamente como uma autônoma construção de sentido e fundada natransformação da e pela arte, e no conceito de estranhamento - vai se atenu-ando com os estudos de Chklowski, Tynianov, Todorov, e, mais tardiamen-te, Lotman, que vêem a obra literária, não somente como artefato verbal,mas como objeto estético, como ponto de encontro entre o texto e o leitor.

Chklowski7 vê a arte como produto de uma série de procedimen-tos estéticos do autor, utilizados para provocar um efeito de“estranhamento” no leitor. Decorre daí a necessidade de maior concentra-ção e interesse na decodificação da mensagem ficcional, sugerindo um tra-balho de deciframento por parte do receptor da mensagem. A oposiçãoentre a língua prática (sistema primário) e a língua literária (sistemamodelizante secundário) ressalta o desgaste da primeira, decorrente dareferencialidade e imediatismo de sua função, em oposição àdesautomatização das modalidades habituais da percepção, complexidadee até mesmo hermetismo da segunda, estética e artisticamente elaborada.

O conceito da obra como sistema é enfocado por Tynianov quevê o texto como transformação, tanto na interação dos seus componentes,como na sua mutação ao longo da história. O leitor é componente funda-mental do processo, sendo constantemente invocado, uma vez que é aprópria percepção do receptor que vem a ser modificada pelo texto. Lotman,mais tardiamente, embora enfoque o texto como produto de suas inter-relações, já compreende que as séries de equivalências engendradas permi-tem ao leitor possibilidades múltiplas de significação; é a plurisignificaçãoda mensagem ficcional. Afirma ele que a divisão do texto, em segmentosestruturalmente equivalentes, possibilita uma determinada ordenação dotexto. Frisa, porém, que essa ordenação não pode ser totalmente realizada,para que não se automatize e se torne estruturalmente redundante. O mate-rial heterogêneo do texto é convertido em séries de equivalências que, aomesmo tempo, não descartam a sua heterogeneidade. A composição dotexto artístico supõe a organização sintagmática dos elementos do tema porexemplo, mas a sua heterogeneidade é preservada, uma vez que esses ele-

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mentos devem antes passar por uma decomposição paradigmática, que de-pende de oposições fundamentais, postas em evidência dentro de um cam-po semântico limitado por leitores diversos, em épocas distintas.

O estruturalismo tcheco prossegue e amplia as idéias formalistas,compreendendo que é o processo de desautomatização da linguagem quemove a criação artística, cujo valor estético decorre das relações da própriaobra com a norma estética. Mukarovski ressalta a importância da normapara garantir a sistematicidade do texto e providenciar o relacionamentoentre o autor e sua obra e entre a obra e o leitor. Os aspectos individuais darecepção não interferem na realização do processo, pois, o que interessa éa rejeição ou apropriação da regra pelo destinatário, possibilitando as rela-ções entre o grupo social e o texto. É uma teoria voltada para a produção dasignificação, pela contraposição do sentido a um código vigente, que seriao mediador entre o texto e o meio social em que se insere. A percepção daobra como uma realidade histórico-cultural, que não se esgota no própriotexto, é um dos elementos de contextualização que transparece nos traba-lhos de Jakobson, dos estruturalistas franceses e do new-criticism norteamericano que, embora centrados na análise imanente da obra de arte -mensagem que gera seu próprio código - e na produção de sentido comodecorrência da organização de estruturas textuais, começam a se preocuparcom a contextualização da obra, tanto sincrônica como diacronicamente,procurando compará-la com outras obras da mesma época, do mesmo autore até mesmo com obras de outras épocas.

Contrapondo-se ao estruturalismo, surge a crítica marxista queafirma a necessidade de se avaliar a relação entre o artista e a sociedade enão somente os mecanismos estéticos e a análise estrutural da obra literá-ria. Lukács e Goldman, entre outros, priorizam uma estética da representa-ção, que toma apenas o “reflexo” como tarefa legítima da literatura, preven-do as influências da sociedade sobre o autor, deste para a obra e desta parao leitor, não pressupondo, no entanto, a inversão de seus vetores - a influ-ência da sociedade em que se insere o leitor na presentificação da obra.

Mikhail Bakhtin representa um ponto de viragem entre a críticada primeira metade do século e a crítica contemporânea. Contestando acriatividade da “língua estética”, vítima, segundo ele, do mesmo processode desvalorização da língua prática, Bakhtin propõe uma teoria da lingua-gem, que deverá estabelecer vínculos entre a comunicação e a ideologia,baseando-se no caráter ideológico do signo linguístico. A palavra, refletin-do as camadas sociais, não se caracteriza pela unidade, mas pela pluralidade.A utilização do signo, elemento vivo e atuante, pelo falante manifesta suasrelações com o real. Considerando ainda a tentativa de unificação da lin-

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guagem, através da adoção de uma norma reguladora, cabe à literatura nãoa representação da norma mas a expressão do plurilinguismo social e dapluridiscursividade nas falas das personagens do texto ficcional.

A natureza polifônica do romance, o uso da ironia, acarnavalização, o dialogismo e a intertextualidade implicam noquestionamento da linguagem como instrumento de manipulação ideológi-ca. A presença do leitor torna-se real como a presença de um “outro” inse-rido no discurso do narrador, providenciando um diálogo entre os planosdo enunciado e da enunciação, que embora conflituoso, possibilitará umaparticipação ativa do leitor na presentificação da mensagem ficcional.

A Estética da Recepção surge, nos fins dos anos sessenta,propondo a abertura do horizonte de significação da literatura, ressaltan-do a contribuição do leitor na concretização do texto e, acima de tudo,enfocando a prioridade analítica do aspecto da recepção sobre os daprodução e da representação. Jauss propõe a organização de uma novahistória da literatura, baseada nas reconstruções da obra literária, decor-rentes da sua recepção na época do autor e em diversas épocas, realizan-do uma pesquisa sincrônica e diacrônica da recepção do texto pelo mes-mo leitor através de re-leituras, e por leitores diversos. Assim sendo,afirmava Jauss, em suas palestras na Universidade de Constança (“escolade Konstanz”) que

Urgia renovar os estudos literários e superar os impassesda história positivista, os impasses da interpretação, queapenas servia a si mesma ou a uma metafísica da ‘écriture’,e os impasses da literatura comparada, que tomava acomparação como um fim em si. Tal propósito não seriaalcançavel através da panacéia das taxinomias perfei-tas, dos sistemas semióticos fechados e dos modelosformalistas de descrição, mas tão só através de uma teo-ria da história que desse conta do processo dinâmico deprodução e recepção e da relação dinâmica entre autor,obra e público, utilizando-se para isso da hermenêuticada pergunta e resposta.8

A recepção é um processo gerador de significados que realizaas instruções dadas por um texto num dado momento. A obra literária évista em inter-relação com a realidade histórico-cultural do autor e do leitor.Jauss aponta a necessidade de se elaborar uma nova história da literatura,baseada nas reconstruções da obra pelos leitores e na sua recepção emépocas diversas.

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Enfatiza, ainda, a necessidade de comunicação entre os doispolos da relação texto e leitor, isto é o efeito - momento condicionado pelotexto - e a recepção - momento condicionado pelo leitor, que possibilitam aconcretização do sentido como duplo horizonte: o literário, implicado pelaobra (interno) e a visão de mundo, trazida pelo leitor de uma determinadasociedade. O seu conceito de leitor fundamenta-se em duas categorias: a dohorizonte de expectativas9 - somatória de códigos vigentes e de experiên-cias sociais acumuladas - e da emancipação - efeito e finalidade da arte. Areceção do texto por vários leitores configura um movimento, que revela oresultado da circulação inter-individual da obra, uma vez que o texto é vistocomo uma estrutura sócio-ideológica.10

Partindo da premissa que não há conhecimento sem prazer evice-versa, Jauss formula os conceitos de fruição compreensiva e compre-ensão fruidora uma vez que o significado de uma obra de arte só pode seralcançado, se for esteticamente vivenciado. A natureza comunicativa,transgressora e eminentemente libertadora da obra de arte potencializa-seatravés da experiência estética, composta, segundo Jauss, por “três ativi-dades simultaneamente complementares: a “Poiesis”, a “Aisthesis” e a“Katharsis”.

A Poiesis corresponde ao prazer estético de se sentir co-autordo texto, uma vez que o leitor se insere no texto, como encarregado deatualizar as possíveis combinações de diferentes discursos, polifonia devozes, visões do narrador e das personagens; a Aisthesis é a consciênciareceptora, o prazer de renovar sua percepção do mundo, a participação nojogo lúdico do texto; a Katharsis é o prazer efetivo que liberta o leitor deseu cotidiano, levando-o, através da fruição de si no outro, à liberdadeestética de sua capacidade de julgar e envolver-se.

Jauss, contestando a visão tradicional de que as personagensse configuram pelas suas ações, acredita que os heróis ficcionais definem-se antes pelas respostas desencadeadas no público. Assim sendo, consi-dera as seguintes modalidades de identificação: associativa - a representa-ção torna-se uma espécie de jogo entre o leitor e o texto; admirativa - acorporificação de um ideal pelo herói dispõe o leitor na direção do reconhe-cimento e adoção de modelos; simpatética - o herói se confunde com ohomem comum presentificado pelo receptor; catártica - leitor é capaz deintrojetar sua identificação, refletindo e analisando os fatos e ações que seencadeiam; irônica - uma possível identificação é apresentada ao destina-tário para, logo a seguir, ser ironizada ou completamente refutada.

Partindo, portanto, da ênfase dada ao polo da recepção, da ne-cessidade de incorporar a aplicação e a hermenêutica na compreensão da

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obra literária, Jauss propõe uma história da literatura, fundada na interaçãomútua do texto e do leitor, sintetizando a recepção a partir de dois aspectosbásicos: o caráter estético e o papel social da arte.

Elabora sete teses sendo as quatro primeiras premissas das trêsfinais. A primeira tese apresenta o tema da concretização do texto peloleitor, uma vez que a obra de arte só existe quando é presentificada por umreceptor. A segunda tese considera os complexos de controle da obra, umavez que é ela que predetermina a recepção, oferecendo orientação ao seureceptor. Ela atualiza o "horizonte de expectativas" e as regras lúdicas fami-liares ao leitor. A reação de cada um é individual, mas a recepção é um fatosocial, uma vez que o horizonte é coletivo e trans-subjetivo.

A noção de Jauss, de que o valor da obra artística é diretamenteproporcinal à sua negatividade, quanto às expectativas de seus primeirosleitores, configura a terceira tese. Quanto maior a distância estética (a obraestá além de seu tempo), mais arte, uma vez que a reconstituição do horizon-te determina o caráter artístico da obra no modo e grau de sua ação sobrecerto público, que ainda não se acha preparado para compreendê-la11. Aquarta tese desenvolve a noção da fusão de horizontes do autor, da obra edo leitor, configurada na recuperação da pergunta do público, através daanálise da resposta que é o texto. Fundir horizontes, aparentemente dísparese independentes entre si, resulta na compreensão do texto, interiorizadopelo leitor através de suas projeções e de sua visão de mundo.

Baseando-se nessas quatro teses, aqui ligeiramente esboçadas,Jauss estabelece um programa metodológico que se propõe a investigar aliteratura, a partir de três aspectos: o diacrônico, relativo à recepção dasobras literária ao longo do tempo; o sincrônico, pertinente ao sistema derelações da literatura numa época determinada e a sucessão desses siste-mas; a relação literatura/vida prática. A arte existe para contrariar expecta-tivas e não para confirmá-las. Completam-se, assim, as sete teses que apre-sentou em suas primeiras palestras na Universidade de Constança (Alema-nha) em 1967, fundamentando-se, teoricamente, a necessidade de uma novahistória da literatura, baseada, como já dissemos, nas reconstruções daobra e sua recepção em épocas diversas.

A noção de contrução de significados pelo leitor configura-seatravés das repercussões de horizontes sociais do passado penetrando nohorizonte do presente, providenciando a compreensão e apreensão de um“determinado momento”, atualizado pela leitura. No diálogo texto/leitor,Jauss vê a análise textual - divisão do todo em partes, análise interpretativa,estratégias discursivas e narrativas - inserida no contexto de produção erecepção, onde avultam os pré-juízos, preconceitos e pressupostos do au-

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tor e do leitor, presentificando-se uma constante auto-interrogação, decor-rente da aplicação das respostas do texto às perguntas do receptor. (Lógicahermenêutica da pergunta e da resposta).

A literatura comparada é também uma das preocupações do teóri-co, que se debruça sobre o estudo da intertextualidade, ressaltando o papeldo “velho” (citações, referências, insinuações de outros autores, de outrasépocas ou da mesma época) que se torna “novo” num texto que odescontextualiza. A análise das estratégias textuais esclarece como o autororganiza, dialeticamente, as relações entre o individual e o coletivo, entre aliteratura nacional e as estrangeiras, a partir de seu próprio contexto socio-ideológico. A consciência da presença mútua de um autor em outro, de umaliteratura em outra e a intensidade da função complementar do contexto esta-belecem relações integrativas* (alusões, empréstimos, adaptações) e rela-ções diferenciais (paródia, ironia), configurando-se inter-relações de unida-de/alteridade, decorrentes dos próprios autores estudados, que devem estarna base de qualquer análise que se pretenda comparativa.

Se é verdade que Jauss, como já constatamos, está interessadona recepção da obra, do modo como ela é, ou deveria ser, recebida, WolfgangIser12 - outro dos teóricos de Constança, contemporâneo e também importan-te mentor da Estética da Recepção - concentra-se no efeito (Wirkung) produ-zido pelo texto, ou seja, na ponte que se estabelece entre o texto literário* -com sua ênfase na leitura paradigmática do intervalo, do não dito, das entre-linhas, dotado de um horizonte aberto-e o leitor. Iser desenvolve uma teoriado efeito estético, conduzindo, a partir dos processos de transformação, àcontituição do sentido pelo leitor, descrevendo a ficção como estrutura decomunicação. O repertório ficcional, as estratégias textuais, as variantes deleitura, o leitor implícito, os vazios do texto completam a perspectiva do textoem si mesmo e sua recepção pelo leitor, cujo espaço é garantido pela própriaobra. Stierle13, dando continuidade às proposições teóricas de Iser, enfoca aperspectiva do texto no sistema, uma vez que constata que o texto incorporasistemas de intervenção semiótica do contexto sócio-ideológico em que estáinserido. As teorias de Iser e seus seguidores serão estudadas no ítem se-guinte desse ensaio, onde se verificará o espaço do leitor, a organização dorepertório, a ficção com efeito, enfim, como o texto prevê o leitor. (1.2. OEspaço do leitor: os vazios do texto).

1.1.1 - Os múltiplos enfoques da Estética da Recepção

As teorias literárias, baseadas na visão privilegiada do polo darecepção do texto sobre o da produção, desenvolveram-se rapidamente naItália, França e Estados Unidos, retomando abordagens dos formalistas,

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estruturalistas, e outros precursores e desenvolvendo uma multiplicidadede enfoques sobre o leitor no texto. Deste modo seus estudos conside-ram: o desempenho do leitor, o papel da intuição interpretativa, a compe-tência sócio-ideológica, a diversidade de respostas individuais, a transa-ção, confrontação e interrogação entre textos e leitores, a natureza e oslimites da interpretação, rastreando uma nova concepção da “audiência”(audience), da recepção do texto literário como entidade inerente à noçãodos textos artísticos.

Nos Estados Unidos a Estética da Recepção vai encontrar di-versos adeptos no âmbito dos estudos acadêmico-universitários,refortalecidos com o advento de professores universitários europeus, des-tacando-se entre eles o próprio Wolfgang Iser. Denominados por algunsReader-Response Criticism e por outros Audience-Oriented Criticism14,os críticos e teóricos norte-americanos passam a se preocupar com os estu-dos sobre a recepção, compartilhando as mesmas preocupações dos estu-diosos da Escola de Constança.

Susam Suleiman, em seu ensaio “Introduction: Varieties ofAudience-Oriented Criticism”, publicado na obra The Reader in the text15,elabora um agrupamento, por necessidade de exposição, de seis variedadesou categorias de correntes críticas ligadas à Estética de Recepção (audience-oriented criticism) levando em conta as ligações com teorias críticas anterio-res e, principalmente, a multiplicidade de enfoques sobre o leitor no texto:retórica (rhetorical); semiótico-estruturalista (semiotic and structuralist);fenomenológica (phenomenological); subjetivo-psicanalítica (subjective andpsychoanalytic); sociológico-histórica (sociological and historical); ehermenêutica (hermeneutic), frisando, no entanto, que essas aproximaçõesnão se excluem, antes se completam e se mesclam entre si. Atendendo a essadivisão, apenas para fins didáticos, tentaremos compreender as principaisabordagens de cada categoria, procurando relacionar obras e críticos, que seenquadram em uma ou mais correntes teóricas aqui estudadas, bem comoprecursores, que foram retomados, de tendências críticas anteriores.

O enfoque retórico e o semiótico-estruturalista têm em comum aabordagem do texto literário como uma forma de comunicação. O autor e oleitor são o emissor e o receptor da mensagem ficcional, estabelecendo-secódigos comuns que permitem a sua compreensão e interpretação.

A categoria retórica engloba estudos cujo interesse primordialreside na situação de comunicação, seu significado, conteúdo ideológicoou força persuasiva. Apoiando-se nas obras precursoras de Wayne Booth- The Rhetoric of Fiction (1961)16, J. L. Austin - How to Do Things with

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Words (1962)17 e Stanley E. Fish - Surprised by Sin: The Reader in ParadiseLost (1967)18 prioriza-se o conteúdo ético e ideológico da mensagem. Épreciso descobrir crenças e valores que possibilitem diferentes significa-dos explícitos ou implícitos da mensagem ficcional. Waine Booth, o maisrepresentativo dos teóricos retóricos de uma primeira fase, elabora o con-ceito de autor-implícito * que se define como um alter-ego “actual author’ssecond self”, uma sombra disfarçada, presença que se esparrama e está portrás de cada aspecto do texto e cuja imagem pode ser reconstruída pelo atoda leitura. O autor implícito, no esquema proposto por Booth, tem seucontraponto no leitor implícito, conceito que será bastante desenvolvidopor Wolfgang Iser, que reconhece que o texto prevê o leitor implícito assimcomo revela o autor implícito. São ambos construções interpretativas ecomo tal participam da circularidade de toda e qualquer interpretação. Emsua obra posterior, A Rhetoric of Irony (1974), Booth analisa, dando conti-nuidade às suas preocupações com a decodificação da mensagem ficcional,textos irônicos onde os autores recusam-se a se desvelarem, ainda queimplicitamente, como Beckett por exemplo, configurando-se uma espécie deinstabilidade, sob o signo do niilismo.

É preciso alertar, no entanto, que o termo retórica é considera-do em sua mais ampla extensão, como é visto pelos estruturalistas france-ses, como Gerard Genette19, que se recusam a considerar a retórica como ummero estudo de tropos, do mesmo modo que o crítico norte-americano Paulde Man20, para quem retórica parece ser sinônimo para todo uso auto-reflexivo da linguagem, seja criativo ou artístico. Os autores preocupam-seem conceituar e desenvolver abordagens problemáticas das teorias literári-as contemporâneas como: validade da obra literária; o significado vistocomo sentido da obra em si mesma, inscrito verbalmente no texto e a signi-ficação como o sentido da obra para o leitor, sendo o primeiro resultante dopolo da produção e a segunda do polo da recepção; autoridade e intenção;o texto e sua natureza comunicacional.

Stanley E. Fish21 elabora o conceito, que desenvolverá posteri-ormente, de comunidades interpretativas e a importância de se considera-rem as diferentes recepções da obra literária, de acordo com a visão demundo de diferentes grupos sociais do presente e de épocas outras. PeterRabinowitz22 analisa em sua obra quatro diferentes tipos de audiência deum texto artístico que classifica como: audiência presente ou atual, audiên-cia autoral, audiência narrativa e audiência narrativa ideal (do ponto devista do narrador. Paul Ricouer23 discute a metáfora inserida nos textos emseus mais diversos enfoques. Considera os leitores sob a ótica da retóricaclássica à retórica semiótica, semântica ou hermenêutica, analisando metá-

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fora, primeiramente como uma palavra, depois frase e discurso e finalmen-te como uma verdade paradoxal. A metáfora é estudada na situação dediscurso ou no texto onde aparece, uma vez que ela é, antes de tudo, umamudança conceitual de significado.

Os estudos de Tzvetan Todorov24 preocupam-se em conceituargêneros literários em suas origens, debatendo a validade, dilemas e parado-xos da interpretação, situando-se num ponto de confluência entre as abor-dagens retóricas e os enfoques semiótico-estruturalistas, que seinterpenetram e se confundem.

A categoria semiótico-estruturalista preocupa-se com a leiturado texto artístico, não somente no sentido de interpretá-lo ou assinalar suasignificação, mas principalmente visando analisar os múltiplos códigos econvenções que tornam possível a legibilidade do texto. Roland Barthes25,por exemplo, vê a atividade estruturalista como sinônimo de semiótica. Osestudos sob essa denominação são centrados nas análises e descriçõesdos textos, no processo de leitura e sua contextualização, visando a cons-trução do sentido através da análise estrutural e estabelecendo umasemiótica do texto e uma semiótica do próprio código. O texto aparece comoa presentificação de uma seleção contextual, onde se pode reconhecer ostraços linguísticos responsáveis pelas diferentes estruturas de construçãoe de funcionamento do discurso.

O discurso dialógico, o plurilinguismo, a polifonia do romancesão abordados por Mikhail Bakhtin26, que aponta como objeto principal dogênero romanesco, o que o especifica e cria sua originalidade estilística, ohomem que fala e sua palavra, presentificada numa representação verbal eliterária. O discurso do “locutor” não é somente reproduzido ou transmitido,mas sim “representado com arte” e, ao contrário do drama, representado pelopróprio discurso. O locutor no romance é sempre, em diversos graus, umideólogo, e suas falas são sempre “ideologemas” (“ideólogeme”). Uma lin-guagem particular no romance significa sempre um ponto de vista particularsobre o mundo, envolvendo uma significação social. O discurso torna-seobjeto de representação no romance, que não corre o risco de se transformarnum jogo verbal abstrato. O signo linguístico contextualiza-se, e Bakhtin, emsua postura dialética, estabelece a síntese entre o ato linguístico, que não sereduz a um ato individual pois está inserido na concatenação sentencial dotexto, e o ato da leitura que somente pode ser compreendido num contextosituacional. O signo é um fragmento de materialidade da realidade e presentificauma “penhora”, que permite ao leitor compreender a conotaçáo sócio-ideoló-gica que rege o tema intencional do autor.

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Arrolam-se, dentre vários outros teóricos que se preocupam coma construção do sentido e análise semiótico-estrutural do texto, autores comoo já citado, Roland Barthes27 que embora não elabore uma teoria do texto,apresenta no entanto, sete proposições para análise textual, que concernem:ao método, aos gêneros, ao signo, ao plural , à filiação, à leitura e ao prazer.O texto é visto como um campo metodológico, cujo movimento constitutivo éa “travessia”, uma vez que se aproxima do signo e seu campo é o significante- o infinito do significante remete a idéia de jogo -, e a obra funciona ela mesmacomo um signo geral. Assim sendo, o texto é plural, pode ter vários sentidos,é uma passagem que pode ser concretizada de diversas maneiras. Solicita doleitor uma colaboração prática abolindo-se, ou pelo menos diminuindo-se, adistância entre escritura e leitura. A aproximação do leitor ao texto deve cau-sar prazer, pois é o espaço onde as linguagens circulam, ligando autor e leitornuma mesma prática significante. É esse o conceito de prazer estético e dasexperiências fundamentais da Poiesis, Aisthesis e Katharsis, que foramenfocadas na primeira parte desse capítulo, na visão de Jaus, com base nosconceitos de Barthes.

Gerard Prince28 aborda o papel do leitor, inserido no textonarrativo como um personagem, um interlocutor do narrador,o “outro”previsto pelo discurso dialógico do narrador, denominado por elenarratário (“narrataire”). Seymor Chatman retoma o conceito e analisa,em sua obra Narrative Structure in Fiction and Film29, as construçõesdo leitor real (“real reader”) do leitor implícito (“implied reader”) e donarratário (“narratee”). A intertextualidade aparece nos estudos deJonathan Culler30, de Michael Rifaterre31, que se preocupa, também, emesclarecer os complexos de controle do próprio texto, onde aintertextualidade aparece como absorção e transformação de outros tex-tos por um texto.

Rifaterre constrói seu conceito de arquileitor (archilector), median-te a determinação das passagens da obra, percebidas como esteticamente rele-vantes através da comparação de várias leituras. O conjunto dessas passa-gens (citações, palavras, passagens, descrições, diálogos, imagens) aponta-das como estéticamente produtivas configura-se pela coincidência dos leitoresacerca de seu efeito estético, constituindo a estrutura estilística da obra.

Julia Kristeva32 por sua vez, vê o texto como um aparelhotranslinguístico, onde se harmonizam a verticalidade (leitura paradigmáticada linha metafórica - intertextualidade, dialogismo) horizontalidade (leiturasintagmática das relações metonímicas e de coesão textual). Odistanciamento do texto em relação à língua permite a reconstrução do textoe as permutações de textos, campo por excelência das inter-relações da obra

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com os seus arquétipos, numa relação de realização, de transformação detransgressão* com obras e autores contemporâneos ou não.

Uma crítica retórica ou semiótico-estruturalista33 pode colocar aquestão da leitura - ou mesmo da legibilidade como pano de fundo, e con-centrar-se na descrição de técnicas de persuasão, estruturas narrativas outemáticas, estilos individual ou coletivo, em resumo, aqueles aspectos dostrabalhos literários, que tem sido tradicionalmente olhados como domínioda análise textual.

A categoria fenomenológica, ao contrário das anteriores, está,necessariamente, centrada na questão da leitura, no papel da imaginação,na construção do significado, e, mais genericamente, na percepção estéti-ca. O ato de ler é definido, essencialmente, como uma atividade produtorade sentido, consistindo das atividades complementares de seleção e orga-nização, de antecipação e retrospectiva, de formulação e modificação dasexpectativas durante o processo da leitura.

Apoia-se na Fenomenologia de E. Husserl34, com os seus con-ceitos de horizonte interno e externo, baseados nas experiências individu-ais e coletivas, bem como nos conceitos de “concretização” (presentificaçãodo texto pelo leitor) e pontos de indeterminação de Roman Ingarden.35 Con-siderando que seria um trabalho esgotante e incoerente para o escritor arepresentação da realidade circundante de maneira plena, Ingarden prevêque a obra deixa inúmeros “pontos de indeterminação” para serem preen-chidos pelo leitor.*

Figura central dessa categoria de estudos da recepção ficcional,Wolfgang Iser36 vai dedicar-se à compreensão da convergência texto/leitor,tanto na concretização/presentificação da obra literária, como no preenchi-mento dos “vazios”, dos brancos do texto (“pontos de indeterminação”),observando que o texto prevê um receptor. É a estrutura de apelo do textoque invoca a participação do indivíduo - o seu leitor implícito - organizadore fertilizador da narrativa.

Iser busca na obra a estrutura funcional que determina os efei-tos essenciais do texto sobre o leitor. Seu método, no entanto, não recorre,como vimos em Rifaterre, à comparação de várias leituras (ainda que nãodescarte esse recurso) mas sim a uma análise minuciosa do texto, a umadescrição de seus dados objetivos e esquemáticos e aos correspondentes“vazios” que devem ser preenchidos pelo leitor, através de sua atividadeimaginativa e sua visão de mundo, possibilitando diferentes abordagens domesmo texto ficcional. Os vazios, as indeterminações que perpassam todas aslinhas de qualquer texto (por exemplo: ações não contadas, sumários e elipses

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temporais, aspectos obscuros de pessoas e objetos, suposições implícitas,narrativas secundárias, falsas prolepses), têm para o crítico primordial impor-tância como estímulo e canalização da atividade do leitor. Na verdade a des-crição da forma de uma obra literária não irá se deter nos aspectos presentesem um primeiro plano, mas sim nas sombras, nos hiatos e nas ausências, naselipses de vários tipos, configurando-se uma visão formal do que está pordetrás da trama, da negatividade organizada do texto. O leitor implícito é umadas negatividades atuantes da obra. É uma ausência pessoal a que o textoapela. É a presença do outro - do leitor real - previsto pelas próprias estratégi-as textuais e muitas vezes atuando como personagem diegético tornadonarratário , “ser de papel”, construção estrutural do próprio discurso ficcional.Os estudos de Iser abrangem muitos enfoques. Ainda que inseridos numalinha fenomenológica relacionam-se com as teorias do ato da fala e com oscontextos histórico-culturais do discurso ideológico.

Karlheinz Stierle, discípulo de Iser, a partir da perspectiva do textoem si mesmo e suas estruturas de apelo, vai preocupar-se com a perspectivado texto no sistema. Enquanto Iser elabora uma teoria das variáveis da recep-ção, cujas constantes se encontram no próprio texto, centradas no caráterauto-reflexivo do discurso ficcional, Stierle amplia esta visão afirmando:

A auto-reflexividade da ficção não implica a sua autono-mia quanto ao mundo real. O mundo da ficção e o mundoreal se coordenam reciprocamente: o mundo se mostracomo horizonte da ficção, a ficção como horizonte do mun-do. O âmbito da recepção dos textos ficcionais demarca-se apenas na apreensão desta dupla perspectiva.37

Outra direção dos estudos recepcionais, categoria subjetivo-psicanalítica oposta às abordagens anteriormente expostas, procura aten-der não à estrutura comum, mas às variedades de respostas a uma mesmaobra. O interesse da análise das reações dos leitores pode ser psicológico,revelando como a personalidade do receptor atua sobre a leitura e interpre-tação de um texto artístico.

Norman Holland38 coloca como questão básica a relação entreos modelos da crítica textual, objetivamente encontrados no texto, e a expe-riência subjetiva do leitor sobre um texto. Desenvolve uma abordagem darecepção ficcional, que compreende três passos: descrição objetiva do tex-to como palavras num pedaço de papel; descrição psicológica da própriaresposta do leitor aos estímulos objetivos; identificação de pontos de cor-respondência entre o texto objetivamente compreendido, e o receptor coma sua experiência subjetiva do texto.

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Outros teóricos dessa linha destacam-se, principalmente entrecríticos de língua inglesa como: David Bleich39, D.W. Harding40, Simon O.Lesser41, Jane P. Tompkins42, embora possamos apontar estudos de france-ses como o psicanalista Jacques Lacan43 e de Georges Mounin44, teórico daliteratura que argumenta que os estudos literários devem preocupar-se comos efeitos emocionais e intelectuais dos textos literários sobre os leitores.

A categoria sociológico-histórica aborda uma questão consi-deravelmente mais sofisticada, que interroga até que ponto as mudanças nacomposição - e consequentemente na ideologia e gosto de um públicoleitor nacional - têm contribuido para a emergência de novas formas literári-as. Lucien Goldman45 conclue em seus estudos que todas as grandes obrasda literatura expressam a visão de mundo de uma classe social específica -classe esta a qual pertence o próprio escritor e que constitue tanto a fontecomo a destinação de seus trabalhos. Exemplifica com a visão trágica nasobras de Pascal e Racine que expressam o pensamento francês e a própriasociedade da época onde se inserem estes autores.

A intenção básica dos críticos ligados a essa tendência da Estéticada Recepção é unir a dialética da produção e a recepção de obras literárias emuma dada cultura, em um dado tempo e, por continuidades e descontinuidadeshistóricas, na recepção de obras individuais ou de autores específicos.

As teorias de Jauss, já esboçadas na parte inicial deste capítu-lo, ligam-se às preocupações sociológico-históricas que justificam suasproposições de uma nova História da Literatura, fundamentadaa recepçãodas obras literárias em seu próprio tempo e através do tempo, por leitorescontemporâneos e de épocas distantes, traçando-se, deste modo, a histó-ria da recepção de uma obra. Esta história propõe-se a reconstruir a evo-lução das sensibilidades, das mudanças de gerações ou épocas, das trans-formações e oscilações do gosto, das ideologias dominantes, do ser his-tórico por detrás do texto. Não importa chegar a uma visão, supostamenteválida da obra, diante de outras equivocadas ou errôneas, mas sim aceitartodas as visões de uma obra como expressões legítimas de horizonteshistóricos, correspondentes às diversas épocas e leitores, que atualiza-ram interpretações diversas do mesmo texto ficcional.

Podemos arrolar, entre os críticos que se posicionam nessa linhateórica, nomes como Hans Ulrich Gumbrecht46, Peter Uwe Hohendahl47,Georg Lukács48, Pierre Zima49 entre outros.

O último dos enfoques da Estética da Recepção (Audience-Oriented Criticism para os americanos) é a categoria hermenêutica. Ocriticismo nesta categoria passa da interpretação autoritária para o

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relativismo, como nos trabalhos do desconstrutivismo inspirados nos es-tudos de Jacques Derrida.50 Rejeita-se a idéia de intenção autoral e enfatiza-se a autonomia do texto como objeto poético, ressaltando-se os diversosaspectos da obra que revelam sua vulnerabilidade a quaisquer afirmaçõesabsolutas sobre o seu significado e significação. A crença no texto comoum objeto pleno, o campo de signos usados para produzir uma significaçãoou até mesmo lugar de complexas significações de um sujeito a outro, é oobjeto real da teoria da desconstrução de Derrida. O encadeamentosintagmático, a análise estilística, o eixo conotativo das metáforas, os ele-mentos diversos do texto são desmontados e analisados pelo receptor, quepode realizar várias e diversas leituras do mesmo texto ficcional, na mesmaépoca ou em épocas distintas.

E. D. Hirsch Jr51 dedica-se à análise hermenêutica preocupando-se sobremaneira com o problema da interpretação da obra literária, distin-guindo o significado (meaning) como o sentido da obra em si mesma, ver-balmente inscrito no texto e a significação (signification), que é o sentidoda obra para os leitores. Para compreender o significado é preciso conheceras convenções sociais vigentes na época em que a obra foi escrita, ospressupostos e preconceitos do autor e as estratégias textuais que revelamo autor implícito. A significação, por sua vez, repousa na temporalidademarcada do leitor, na sua visão de mundo e na avaliação do efeito do texto,presentificado através do ato da leitura.

Harold Bloom, Jonathan Culler, Stanley Fish, Hans GeorgGadamer, Paul Ricoeur, George Steiner, Tzvetan Todorov52 são outros teóri-cos dos estudos literários que podem ser arrolados entre os hermenêuticos.É preciso observar, no entanto, que os seis categorias, ou variedades dosestudos da Recepção dos textos ficcionais aqui arrolados, não são estan-ques e, muitas vezes, obras diferentes de um mesmo crítico são enfocadasem categorias diversas, mesclando-se tendências, teorias e aparatos críti-cos. O ponto comum a todos é a preocupação com o estudo de obrasliterárias, a partir do polo da recepção, da concretização do texto atravésda leitura. Verifica-se ainda que os novos estudos críticos tanto europeus(Estética da Recepção) quanto anglo-americanos (Reader-ResponseCriticism ou Audience-Oriented Criticism) revelam uma relação de continui-dade com as gerações precedentes dos estudos literários, enfatizando aanálise do processo da leitura em suas condições pessoais e históricas, emsua variabilidade e seus valores intrínsecos.

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1.2 - O espaço do leitor: os vazios do texto

“As estruturas centrais de indeterminação no texto sãoseus vazios (Leerstellen) e suas negações. Elas são ascondições para a comunicação, pois acionam a interaçãoentre o texto e o leitor e até certo nível a regulam.” 53

O ato da leitura coloca lado a lado dois protagonistas que sedefrontam: o texto e o leitor. De um lado temos o texto trazendo o mundo devalores e o horizonte de expectativas do autor, implícito nas estratégiastextuais, inserido no contexto sócio-cultural, com um repertório enriqueci-do por intertextos, referências, ideologias que se organizam numa estruturade comunicação. Do outro lado o leitor, indiscreto, questionador, procu-rando por respostas. No primeiro momento tendo para auxiliá-lo a sua intui-ção, mas logo a seguir, utilizando-se da investigação e da reflexão que lhepermitem o adentramento da investigação, a compreensão das tensões inte-riores, que interagem na complexa organização textual. De início, uma sen-sação de estranhamento, uma assimetria entre o texto e o leitor, que emboranão seja determinada de antemão, vai lhe permitir múltiplas possibilidadesde compreensão.

É verdade que o leitor nunca poderá retirar do texto a certezaexplícita de que a sua interpretação, ou a sua compreensão, seja a maiscorreta ou verdadeira. A impossibilidade da experiência alheia faz do textouma experiência plural que, embora possua complexos de controle em seusistema de combinações, precisa reservar um lugar, dentro desse mesmosistema, para o leitor , a quem cabe atualizar a mensagem ficcional. Estelugar é dado pelos vazios (Leerstellen) que se oferecem para a ocupaçãopelo receptor. Configura-se, assim, a assimetria fundamental entre o texto eo leitor, possibilitando a comunicação no processo da leitura. É verdadeque essa comunicação só terá êxito mediante a mobilização das representa-ções projetivas do leitor, como esclarece Iser:

À medida que os vazios indicam uma relação potencial,liberam o espaço das posições denotadas pelo texto paraos atos de projeção (Vorstellungsakte) do leitor. Assim,quando tal relação se realiza, os vazios desaparecem.54

O texto é, portanto, pura virtualidade, uma vez que tanto a suaconstituição, como a sua presentificação só podem ocorrer em uma consci-ência, estabelecendo-se os polos do emissor e do receptor, sempre presen-tes em qualquer ato de comunicação. O texto de ficção deve ser considera-do uma comunicação e o ato da leitura uma relação dialógica, onde se

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configura uma dialética baseada na tensão e na argumentação. O fracassona comunicação e no diálogo é uma possibilidade que não pode ser descar-tada, e, sendo assim, é preciso que texto e leitor atinjam a convergência, afusão de horizontes, possibilitando a configuração de uma situação comumque facilite a constituição de sentido do texto.

Iser afirma, a partir da teoria de interação, que a relação interativaderiva da contingência dos planos de conduta, pois é impossível vivenciara experiência alheia. O equilíbrio torna-se possível com o preenchimentodos vazios pelas projeções do leitor e a interação fracassa quando as proje-ções do leitor se impõem, independentemente do texto. Tomando por basea teoria da interação exposta por Edward E. Jones e Harol B. Gerald em suaobra Foundations of social psychology55, Iser arrola quatro tipos de con-tingência: a pseudocontingência: os parceiros se conhecem tão bem queocorre o desaparecimento da contingência; a contigência assimétrica: umparceiro renuncia ao seu plano de conduta e segue o outro sem resistência;a contigência reativa: o parceiro reage sempre ao plano de conduta dooutro, estabelecendo reações de momento - domínio da contingência; acontingência recíproca: um parceiro enriquece o outro, embora haja, apa-rentemente, uma hostilidade mútua.

A contingência do texto ficcional coloca em abalo a interaçãotexto-leitor. No entanto, é também ela própria que assegura o sucessodesta reação, pela possibilidade que abre de uma situação comum a um(Texto) e outro (Leitor), a “fusão de horizontes”. O texto de ficção, porsua própria contingência (eventualidade, imprecisão), está fora de todasituação normativa, dificultando a constituição imediata de sentido, massolicitando a cooperação do leitor, que se vê diante de uma variedade deinterpretações.

A contingência do texto ficcional confirma a diversos leitoresuma informação diferente e, a um mesmo leitor a possibilidade de diferentesenfoques no curso de uma leitura ou releitura. Decorre daí o caráter do textocomo organismo vivo, que se configura como inventário de estímulos(significantes), aos quais responde o leitor com as suas disposições repre-sentativas, estabelecendo-se o circuito do processo de leitura.

A leitura define-se como um processo dinâmico relacional, quepossibilita diversos acessos ao texto, colocado sempre em uma nova pers-pectiva e presentificando uma configuração, um modelo organizado que é asituação global do texto. Este se constitui, ao mesmo tempo, como umaunidade e como uma multiplicidade: a unidade do “todo organizado” e amultiplicidade das variáveis que são os diferentes reflexos das relações doleitor, ocupando os “brancos”, os vazios do texto. Em suma, a leitura é o

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desdobramento do texto sobre o modelo de um processo de realização,determinando o real como “aquilo que ele se torna” no decurso da leitura. Arelação texto/leitor - CIRCUITO DA LEITURA - desdobra-se enquanto pro-cesso de constantes realizações de significados, a cada vez produzidos emodificados pelo próprio leitor.

A atividade básica do leitor reside pois na constituição de sen-tido, estimulada pelo texto, que advém da conexão dos seus elementosconstitutivos, das articulações e da necessidade de uma combinação, res-ponsável pela coesão do texto, através do preenchimento de seus vazios, ede seus brancos (“não-dito” para Umberto Eco)56

Os vazios quebram a conectabilidade do discurso ficcional, si-nalizando, tanto a ausência de conexão, quanto as expectativas que decor-rem do uso cotidiano da linguagem, onde a conectabilidade é pragmatica-mente regulada. Elementos que providenciam a interrupção desta conexão,os vazios tornam-se o critério de distinção entre o uso da linguagem ficcionalem oposição à linguagem cotidiana, uma vez que aquilo que nesta é sempredado, naquela há de ser primeiramente produzido.

Nos textos referenciais (pragmáticos) a multiplicidade de signifi-cações possíveis é constantemente reduzida, através das conexões dossegmentos textuais, para que se garanta a recepção de um objeto determi-nado (objeto real), enquanto que, na obra de arte (objeto intencional), aconectabilidade interrompida pelos vazios torna-se variada, permitindo umnúmero crescente de possibilidades, exigindo decisão seletiva do leitor nacombinação de seus esquemas e segmentos estruturais. Os vazios nãoestão apenas na construção do sentido, mas aparecem também nas estraté-gias do repertório: narração fragmentada, multiplicidade de narradores,focalização múltipla, cortes temporais, intertextualidade, pluridiscursividade,dialogismo, entre outras.

Os vazios quebram ainda a “good continuation”57 (continua-ção desejável) provocando o reforço da atividade de composição doleitor, que deve combinar esquemas opositivos, contrastivos,contrafactuais, encaixados ou segmentados, muitas vezes contra a ex-pectativa aguardada. É preciso recorrer à sua atividade imaginativa paraestabelecer a coerência significativa do texto. A funcionalidade dosvazios do texto é mais restrita, por exemplo, nos romances de tese, cujodiscurso ideológico objetiva uma leitura mais direcionada, e onde o es-paço do leitor não pode ser tão amplo que comprometa o engajamentodesejado ou a própria tese proposta. Por outro lado, os vazios são co-mercialmente explorados nas estórias seriadas, nos folhetins que criamsuspense pela utilização do “não-dito”, “dos brancos” - subentendi-

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dos, insinuações, quebra de continuidade e outros recursos. Nos textosartísticos, nos romances onde predomina a literariedade, os vazios sãotematizados em diálogos interrompidos, em fragmentação sintagmática,em segmentação temporal. O jogo da enunciação (ato de narrar) e doenunciado (diesese, a história contada) configura um esboço de umamotivação implícita, desconhecida até do próprio personagem e quedeve, muitas vezes, ser descoberta pelo leitor, antes ou mesmo junta-mente com os actantes da ação ficcional.

A principal propriedade estrutural do vazio reside no fato de, apartir das relações interrompidas dos segmentos estruturais do texto, pos-sibilitar a organização de um campo, como projeções recíprocas dessessegmentos, dados pelas perspectivas do tempo. Durante o desenrolar tem-poral da leitura, o ponto de vista do receptor desloca-se entre as perspec-tivas e assim, forçosamente, um segmento até então temático recua a posi-ção de horizonte, condicionando a atribuição de outras perspectivas a no-vos segmentos temáticos.

Melhor explicando, pode-se afirmar que a mudança de lugar dovazio é um pressuposto básico para que as operações ocorram dentro docampo de referência. O agrupamento de segmentos se concretiza ao obrigarque o ponto de vista do leitor se desloque entre eles. O segmento, focaliza-do pelo ponto de vista do leitor torna-se temático. Transformando-se umaposição em tema, as outras que não são tematizadas não desparecem masantes se deslocam para uma posição marginal do campo, adquirindo umcaráter de horizonte. Contitui-se deste modo o horizonte de expectativas doleitor, que é projetado pelo texto através de suas estruturas de apelo. Quan-to mais preso a uma postura ideológica encontre-se o receptor, menorescondições terá ele de aceitar a estrutura básica de compreensão de tema ehorizonte, que controla e possibilita a interação texto-leitor. É o leitor implí-cito, ocupando seu lugar na cadeia de comunicação constituida pela tríadeemissor-mensagem-receptor.

Uma teoria semelhante à do leitor implícito de Iser58 é a do leitor-modelo de Umberto Eco59. Sobre o conceito de leitor-modelo, Eco acreditaque o texto estrategiza seu próprio destinatário, como condição básica, nãoapenas da própria capacidade comunicativa, mas inclusive, da própriapotencialidade significativa. Nesta mesma linha sugere a figura do autor-modelo. Este se configura como uma hipótese interpretativa, que vai sedesenhando para o leitor nas estratégias e repertório textuais, numa leiturado “não-dito”, dos intervalos do texto, que permitem a compreensão dacosmovisão autoral. A concepção do autor-modelo de Eco aproxima-se dateoria do autor implícito de Waine Booth, que já mencionamos anteriormen-

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te, e que é também decorrente do repertório, estratégias e horizonte deexpectativas, constituintes estruturais do texto ficcional.

1.3 - A organização do repertório dos textos ficcionais

Porque, se ao princípio era o Verbo, no fim é o Texto. E sóno texto poderemos encontrar os sentidos (e, com eles, orecomeço de tudo)60

A convergência texto-leitor só se efetua no fundo de uma situa-ção. Na impossibilidade de uma situação face a face das relaçõesinterpessoais (relações diádicas) é preciso que o próprio texto crie essasituação, para que se instaure o processo de comunicação, enfim, o queestá presente de uma só vez no uso comum do ato da fala, precisa serconstruído pelo texto narrativo. Os textos de ficção não podem se realizarapoiando-se em processos adquiridos e convenções determinadas, é preci-so encontrar processos e convenções que emanem do próprio texto, cons-tituindo um repertório e criando uma situação contextual que venha a ga-rantir a eficácia da comunicação.

O sentido do texto constitui-se no que ele mesmo oferece paraler - tanto no que é dito, como no que não é dito. São os vazios, como jávimos no ítem anterior, responsáveis pela assimetria fundamental entre otexto e o leitor, que dão origem às múltiplas possibilidades de comunicaçãono processo da leitura.

Relacionando-se os postulados de Austin, sobre o uso comumda fala61, ao ato da leitura, podemos organizar os elementos do texto em:repertório : convenções indispensáveis para o estabelecimento de umasituação que contemple as convenções comuns ao emissor e ao receptor;estratégias: processos aceitos pelo leitor e criados pela potencialidade dotexto; realização: participação do leitor. Partindo do pressuposto que, ao sededicar à leitura de uma obra o indivíduo demonstre sua disposição emparticipar do processo, cabe ao texto organizar os dois primeiros.

O repertório constitui-se de um conjunto de convenções, tradi-ções, normas históricas e sociais - o húmus sócio-cultural de onde o texto éproveniente - que, formando o quadro ou cercadura do texto, reaparece,não com o seu sentido primeiro, mas sim valendo como um polo deinterações. É também, como ressaltam os estruturalistas praguenses, a rea-lidade extra-estética, o componente onde a imanência do texto é transgredida.

Os elementos do repertório têm um estatuto plural no texto,

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são uma lembrança do fundo sobre o qual se apoiam. Não se limitamexclusivamente nem pela origem, nem pelo seu emprego, mas se abrematravés de sua capacidade relacional. É preciso conotar não somentenovo/velho, mas, principalmente, novo/repetição. É indispensável nãosomente reconhecer o familiar, mas principalmente perceber o novo usoque dele se faz. Resulta dessa percepção uma figura de consciência e éprecisamente aí que a linguagem não referencial e não pragmática daliteratura encontra a sua função.

Cada época possui seus próprios sistemas de sentido que orga-nizam a cercadura, o quadro de referências do texto, segundo decisõesseletivas, e sua pertinência nunca poderia englobar a totalidade do mundo.A aparente simplificação e imobilização, que a cercadura dos sistemas pro-picia, advêm de aspectos perceptivos, interpretações da realidade, valores,isto é, de formas determinadas de elaboração da experiência configurando-se o contexto situacional do autor, compondo o repertório do texto emodelizando a realidade, num sistema de escolhas seletivas, onde o dito e onão dito assumem igual importância.

A ficção permite dizer alguma coisa que os sistemas dominantesde sentido colocam entre parênteses, os limites de uma época, o que éignorado ou contestado. Re-estabelece-se, portanto, através da literatura acoerência global da realidade, uma vez que a ficção não se opõe à realidade,mas antes a comunica.

São componentes centrais do repertório textual as normasselecionadas de realidades extra-textuais e as alusões literárias,enfocadas sob duas perspectivas: algumas alusões têm sua origem nossistemas de sentido particulares de cada época, e outras nas soluçõesficcionais dadas por textos anteriores. A alusão a uma literatura passadaabre um horizonte conhecido, mas não se esgota nesta evocação. De-corre daí o papel significatico da intertextualidade, onde o velho é vistocomo novo, num contexto que o modifica. Presentifica-se, através da“penhora”, o elemento comum que viabiliza uma segunda leituraconotativa e paradigmática, uma variação representativa, que configurao mundo sobre o qual o cotidiano esboçado na obra vai se constituir emuma experiência estética do leitor.

É preciso lembrar, ainda, que o romance cria um modelo ideológi-co-verbal do mundo, pressupondo um grupo social diferenciado, onde seinserem as personagens de um mundo possível ficcional, em interação in-tensa e essencial com outros grupos sociais, que compõem a sociedaderepresentada na narrativa. É a desintegração desse grupo, antes estável euno, e agora privado de seu equilíbrio interno e de sua auto-suficiência, que

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viabiliza um terreno socialmente produtivo para o romance, configuran-do-se um processo de transformação, num campo de decorrências plu-rais e simultâneas.

O repertório dá conta dos diversos horizontes de expectativa,gerados pelos grupos sociais que interagem na narrativa ficcional. São ho-rizontes do passado interferindo e compondo um horizonte do presente.São ideologias que se definem por oposições, obrigando o leitor a aceitá-las ou negá-las, criando sua própria visão dos fatos e personagens dadiegese ficcional, presentificando-se o texto através da comunicação dinâ-mica texto/receptor.

1.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia

As obras literárias são feitas de outras obras literárias. São sig-nos calcados sobre signos, uma vez que se caracterizam pela utilizaçãofuncional e estética de um tecido de citações, textos feitos e refeitos em re-leituras. O contexto socio-ideológico e cultural é também mimetizado peloromance, através das estratégias estruturais e da auto-reflexibilidade de umdiscurso voltado sobre si mesmo. A literatura se faz diálogo entre textos,entre texto e contexto, entre texto e leitor. Os textos literários dizem sempremais do que literatura , dizem também da sociedade, das ideologias, dahistória, da psicologia mas com toda a intensidade, que só é possível namodelização de um mundo ficcional.

A leitura de uma obra literária envolve, a partir de certo nível deinterpretação, uma re-leitura. Quem lê, lê na obra aquilo que os outros já leram.Na verdade, mesmo sem ter lido um clássico, Homero por exemplo, nós já olemos em outras obras que revelam leituras de Homero. O dialogismo e aintertextualidade possibilitam essa circulação de significados e significações,estabelecendo inter-relações entre o que está previsto no texto e o que advémda recepção, configurada pelas projeções e representações do leitor.

O discurso dialógico - dialogismo - bastante estudado porBakhtin62, estabelece uma relação direta entre o texto e o leitor, uma vezque pressupõe a antecipação do discurso de um outro no próprio discur-so do narrador, como se na própria fala deste estivesse encravada a répli-ca do leitor. O interlocutor necessário, o receptor da mensagem ficcional,o polo que se fecha e permite a completude do círculo de comunicação,está sempre presente na figura do leitor, parceiro do diálogo concretizadopelo ato de ler. O leitor tornado narratário, é uma das personagens dadiegese ficcional, é o tu, receptor da mensagem, previsto pelas própriasestratégias textuais.

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Num sentido mais amplo é possível estender o diálogo entre osujeito da escrita e o destinatário, para um diálogo com textos outros, cons-tituindo-se três elementos dialogantes: autor implícito no texto e leitor vir-tual58, que se dispõem em dois eixos perpendiculares: da horizontalidade:diálogo do sujeito da escrita com o destinatário virtual e da verticalidade *:diálogo do texto com outros textos. Ampliando ainda mais, poder-se-iainserir a leitura crítica, que configura uma metalinguagem, em dois eixos quese sobrepõem aos dois primeiros: o horizontal - “diálogo do crítico com oseu leitor virtual - e o vertical - diálogo do texto crítico com outros textoscríticos. A partir dessas duas posturas básicas torna-se viável efetuar umasobreposição com os seus consequentes cruzamentos transversais: “diálo-go do crítico com o leitor do autor (considerando sempre esse leitor comoum elemento estrutural do enunciado poético), o diálogo do crítico com oleitor actual do autor (o que ele não podia prever, o que a continuação dahistória e as mudanças da cultura lhe deram, por vezes a séculos de distân-cia), o diálogo do texto crítico com outros textos poéticos contemporâneos,anteriores ou posteriores aquele sobre o qual concentra a atenção”.59

Apesar de se configurar como uma complexa rede de interações,o “dialogismo metalinguistico” não pressupõe um enriquecimento daintertextualidade. As múltiplas relações apontadas acima preveem a manu-tenção das fronteiras discursiva e textual, ou seja a manutenção da repre-sentação, e, a intertextualidade, no seu sentido básico, envolve a aboliçãodas fronteiras pela força transgressora da escrita.

Na verdade, a intertextualidade realiza-se no interior do textoficcional, pelo aproveitamento, transformação e incorporação de alusões,montagens, citações, referências, imitações, paródias, reproduções de ou-tros textos, inseridos no próprio discurso, que revelam o “velho” de umnovo ângulo, ou sob uma nova perspectiva, conservando-se um sentido de“penhora” que perdura no texto. A intertextualidade não somente condicionaa utilização do código, como se destaca, explicitamente, no próprio nível deconteúdo da obra.

A compreensão da intertextualidade, como essencialmente liga-da à poeticidade e à evolução literária, é relativamente nova. Não se trata depesquisar influências e fontes, que pretendam explicar a obra pela pesqui-sa, ainda que erudita, da biografia do autor; nem mesmo leituras embasadasem visões críticas da história, psicanálise ou sociologia. É fundamentalverificar a funcionalidade e a incorporação dos intertextos na produção deuma obra única, definindo-se a narrativa literária de signos, fundados nasinter-relações de textos artísticos, transpostos uns para os outros.60

A pluridiscursividade que Bakhtin61 nomeia como

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plurilinguismo (plurilinguisme) decorre da necessidade de se materializa-rem discursos ideológicos originais, de diferentes personagens, abrangen-do graus diversos de independência literária e semântica, podendo refrataras intenções do autor e servindo-lhe, até certo ponto, de segunda lingua-gem. Assim as falas das personagens, abrangendo diversos graus de inde-pendência literária, semântica e com uma perspectiva própria, constituemfalas de outros na linguagem do narrador, estratificando-se em gêneros,profissões, sociedade e, num sentido mais restrito, visões de mundo, indi-vidualidades e orientações. A pluridiscursividade revela-se nos dialetoscaracterizadores dos diversos locutores da diegese ficcional, penetrandono romance, ordenando-se aí de um modo especial e constituindo um siste-ma literário original, que rege o tema intencional do autor.

A multiformidade social e plurilinguística, que o prosador utilizano seu discurso, é o ponto de convergência de vozes diversas, inclusive asua, para a qual as outras vozes criam um fundo, sem o qual a prosa não teria“efeito” literário. A pluridiscursividade, incorporando componentes históri-co-sociais do contexto no discurso ficcional, configura a interpretação deuma pluralidade de ideologias assumidas pelos personagens do romance.Instaura-se, assim, um dinamismo e interação constantes entre as vozes doromance, que se confrontam na discussão de problemas, revelando a impor-tância do discurso plural na organização da polifonia do romance.

O sistema ideológico do mundo real penetra na construçãonarrativa, através do discurso literário, um sistema modelizante secun-dário, caracterizado pelo uso da pluridiscursividade, do dialogismo, daintertextualidade, da carnavalização introduzindo, deste modo, uma vi-são plural e polifônica da realidade circundante que se presentifica nadiegese ficcional.

A polifonia romanesca constrói-se nas complexas redes de rela-ções dialógicas, que se configuram entre todos os elementos estruturais doromance: nas réplicas entre diálogos aparentes e diálogos interiores; nasvozes distintas dos personagens com suas idéias, reflexões e atos, comdiferentes nuances e tonalidades; nas montagens dos segmentos diegéticos,providenciando uma abrangência espácio/temporal, onde se concretizammúltiplas rupturas e crises.

A carnavalização do discurso ficcional revela-se naneutralização de fronteiras, no mundo às avessas, manifestando-se nanarrativa irônico-humorística, onde se desvanecem as fronteiras sociais eas linguagens. O dialogismo e a pluridiscursividade propiciam a interaçãode vozes plurais e a eclosão de discursos específicos, como o autobiográ-fico, o dramático e o epistolar, numa organização peculiar, que se faz diá-

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logo entre o absoluto e o relativo, entre a verdade e a mentira, entre leitu-ras sobrepostas de obras, configurando-se uma estrutura de apelo, atra-vés da contingência ficcional.

A fragmentação diegética, a segmentação temporal, as ideologi-as conflitantes e as digressões meta-históricas absorvem atmosferas soci-ais e envolvem o leitor, o tu a quem o discurso é dirigido, numa comunica-ção dinâmica e ativa.

Estabelecem-se correlações entre os sistemas expressivos e ossistemas de conteúdo do texto, que vão compor o estatuto semiótico eideológico do romance. Ativam-se, simultaneamente, a representação, cen-trada na estrutura imanente da obra, bem como o efeito, reflexo dos atos decompreensão fundados no leitor, presentificando-se os sistemas de códi-gos que atualizam a pluralidade inerente à obra literária.

Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifoniadefinem uma nova visão do romance, em toda a sua amplitude, frisando-se a importância do papel catalisador do leitor na concretização da mensa-gem ficcional.

Na junção das práticas discursivas, que têm organizado a narra-tiva de nossos dias, acentua-se o caráter polifônico, multifacetado e auto-referencial do romance contemporâneo, visto e analisado sob o signo dateoria do texto, porque “se ao princípio era Verbo, no fim é o Texto. E só notexto poderemos encontrar os sentidos (e com eles, o recomeço de tudo)”

Notas

5 Susan R. Suleiman - "Introduction : Varieties of Audience - OrientalCriticism"- IN - The Reader in the text. Princenton: Princenton UniversatyPress, 1980, pp. 314.6 Hans Robert Jauss - "O prazer estético e as experiências fundamentais daPoiesis, Aisthesis e Hatharsis "- IN - A literatura e o leitor - Seleção, tradu-ção. introdução de Luiz Costa Lima Rio: Paz e Terra, 1979, pp. 63 a 82.7 V. Chkloushi - "A arte como procedimento"- IN - Teoria da Literatura.Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1978, pp. 39 a 56.8 Hans Robert Jaus - "A Estética da Recepção: Colocações Gerais"- IN - ALiteratura e o leitor. Seleção, tradução e introdução por Luiz Costa LimaRio: Paz e Terra, 1979, pp. 47 a 489 Hans Gadamer fala, em fusão de horizontes históricos na mesma linha deJaussem sua obra Wahrheit und Method ( Verdade e Método) 1960 e E.

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Hursserl em Erfahreit und Urteil (Experiência e Julgamento) 1948 introduz adiferença entre horizonte interno e externo (fenomenologistas)10 E. Benveniste - Problemas de Linguística Geral. SP: Nacional 1976 - anali-sando o texto em sua natureza comunicacional, fala em dois movimentos dedecodificação do discurso linguístico: de um lado a horizontalidade, direta-mente ligada ao sujeito, ponte entre o e4missor e o receptor da mensagem e, deoutro lado, a verticalidade onde a importância primordial reside na situação,isto é, na contextualização da mensagem em um dado espaço e numa deter-minada situação.11 Esta noção também é compartilhada por Paul Ricoeur La Metaphore vive(hermenêutica negativa) e Derrida - Literatura et la difference (teoria dadescontrução textral) e é especialmente aceita pelos modernos teóricos12 Wolfgang Iser - “Der Leservorgang” (O Processo da Leitura) e “DieWirklichkeit der Fiktion” (A Realidade da ficção) IN R.Warning (organiz.) -Rezeptionaesthetic, Teorie und Praxis. UTB - 303. Muenchen: 1975, pp. 253-256 e pp. 277-342. e ainda:Wolfgang Iser, “Théorie de la Reception en Allemagne”. Poétique. Paris:Seuil (39): 275, set. 1979.Outras obras do autor: vide Bibliografia Final.13 Karlheinz Stierle - “Que significa a recepção dos textos ficcionais” - IN -Vários autores - A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção. Sel.trad. e introd. de Luiz Costa Lima. Rio: Paz e Terra, 1979. pp. 133-188.14 Denominação adotada por Susan Suleiman e Inge Crosman na coletâneade ensaios de diversos autores americanos e europeus, sobre a Estética daRecepção, organizado e editado por elas, e intitulado The Reader in the text- Essays on Audience an Interpretation. Edited by Susan R Suleiman andInge Crosman. Princeton: Princeton University Press, 1980.15 Idem, Ibidem - pp. 3-45.16 Chicago: Univer. of Chicago Press, 196117 New York: Oxford Univ. Press, 196218 New York: St., Martin’s Press, 196719 Figures I, II, III. Paris: Seuil, 1966, 1969, 1972.20 Blindness and Insight. Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism.New York: Oxford Univer. Press, 1971.21 Surprised by sin: The Reader in Paradise Lost. New York: St. Martin’sPress, 1967.22 “Truth in Fiction: a Reexamination of Audiences” IN Critical Inquire 4,1977.23 La Métaphore Vive. Paris: Seuil, 1975.24 “The origin of Genres”. IN New Literary History 6, 1975.

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25 “Elements de Semiologie” - Communications 4, 1964- “Introduction à l’analyse structurale des récits” - Communications 8, 1966. - S/Z - Paris: Seuil, 1970.26 Esthétique e Théorie du Roman. Paris: Gallimard, 1978.27 “Elements de Semiologie” - Communications, 4, 1964.- “Introdution à l´analyse structurale des récits” - Communications 8, 1966- S/Z - Paris: Ed. Seuil, 1970.- “De l´oeuvre au texte” - Revue d´Esthétique 3, 1971.28 “Introdution à l´étude du narrataire” Poétique 14, 1973.29 Ithaca: Cornell Univ. Press, 1978.30 “Presupposition and intertextuality” - M.L.N. 91 - 1976.31 Semiotics of Poetry. Bloomington: Indiana Univers. Press, 1978.32 “A produtividade dita texto”. IN Vários autores - Literatura e Semiologia.trad. Célia Neves Dourado. Petrópolis: Vozes, 1972.- Introdução à Semanálise. trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:Perspectiva, 1974.33 Susan R. Suleiman e Inge Crosman arrolam, na “Introdução”(“Introduction”) e na Bibliografia Comentada (“Annoted Bibliography”),inúmeros críticos e obras que se destacam, não só como precursores dosestudos sob a leitura do texto literário, mas muitas vezes, começando peloestruturalismo e semiótica prosseguem seus estudos em direção à Estéticada Recepção ou “Audience-Oriented Criticism”, como aparece na obra TheReader in the Text - Essays on Audience and Interpretation. Princeton:Princeton University Press, 1980. Selecionamos, dentre eles, os que já tive-mos oportunidade de analisar como:Mieke Bal - Narratologie. Paris: Klincksiek, 1977.Emile Benveniste - Problemas de Linguística Geral. (1ª ed. francesa), 1966Claude Brémmond - “La Logique des possibles narratifs. Communications8, 1966.Umberto Eco - A theory of semiotics. Blomington: Indian Univ. Press, 1976.Stanley Fish - “Literature in the Reader: Affective Stylistics” - New LiteraryHistory - 2. 1970Northrop Frye - Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.Boris Gasparov - “The Narrative Text as an Act of Communication” - NewLiterary History - 9. 1978.Gerard Genette: Figures I, II, III. Paris: Seuil, 1966, 1969, 1972.A. J. Greimas - Sémantique Structurale. Paris: Larousse, 1966.Kate Hamburger - The Logic of Literature. Bloomingto: Indiana Univ. Press,1973Philippe Hamon - “Por um estatuto semiológico da personagem” - (Paris,1974) “Qu´est-ce qu´une description?” Revue de théorie et d´analyse

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litteraires - n.3, 1975. p.466-485.Romam Jacobson - “Questions de Poétique” - 1973. Linguística e Comuni-cação. São Paulo: Cultrix, 1963Iuri Lotman - A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978Tzvetan Todorov - Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil,1970. Littérature et signification. Paris: Larousse, 1967.Boris Uspensky - A Poetics of Composition. Los Angeles: California Univ.Press, 1973Harald Weinrich - Literatur fur Leser. Stuttgart: Kohlhammer, 1971.34 Erfahrung und Urteil. Hamburg: Claasen. 1948.35 A obra de arte literária. trad. de Albin E. Beau, Maria da Conceição Pugae João F. Barreto. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1973. (O original DasLiterarische Kunstwerk é de 1967).* Sua grande contribuição advém do fato de que a idéia de concretizaçãorompe com uma visão tradicional da arte como mera representação. Chama aatenção para a estrutura de recepção necessária em toda a obra literária, embo-ra não se preocupe em relacionar este fato como um ato de comunicação.36 Wolfgang Iser - “Theorie de la reception em Allemagne” Poétique.Paris:Seuil (39): 275, set. (1979)- The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response. Baltimore: JohnsHopkins Univ. Press, 1978. (Do original alemão Der Akt des Lesens: TheorieAesthetischer Wirkung - 1976).- Outras obras de Iser estão arroladas na Bibliografia Final.37 Karlheinz Stierle - “Que siginifica a recepção dos textos ficcionais?” IN: ALiteratura e o Leitor. selec. trad. e introd. de Luiz Costa Lima. Rio: Paz eTerra, 1979, pp. 133-188. (p. 171).38 The Dynamics of Literary Response. N.York: Oxford Univ. Press, 1968.- “Literary Interpretation and Three Phases of Psychoanalysis”. CriticalInquire 3. 1976.39 Literature and Self - Awareness: Critical Questions and EmotionalResponses. N.York: Harper and Row, 1977.- Subjective Criticism. Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press, 1978.40 “Psychological Processes in the Reading of Fiction”. British Journal ofAesthetics 2. 1962.41 Fiction and the Unconscious. Boston: Beacon Press, 1957.42 “Criticism and Feeling”. College Englisch 39 (1977). p.169-178.43 “Seminaire sur La lettre Volée. IN: Ecrits I. Paris: Seuil, 1966.44 “Devant le Texte”. Etudes Littéraires 9, 1976.45 Pour une sociologie du roman. Rev. ed. Paris: Gallimard, 1965.- Structures mentales e creation culturelle. Paris: Editions Anthropos, 1970.46 “Sobre os interesses cognitivos, terminologia básica e métodos de uma

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ciência da literatura fundada na teoria da ação”. IN: A Literatura e o Leitor.selec. trad. e introd. de Luiz Costa Lima. Rio: Paz e Terra, 1979.47 “Introduction to Reception Aesthetics”. New German Critic 4, nº 10 (1977).48 Teoria do Romance. Lisboa: Editorial Presença. s/d. (original alemão DieTheorie des Romans) 1971.49 Pour une sociologie du texte littéraire. Paris: Union Generale d’Editions,1978.50 L’Ecriture et la différence. Paris: Seuil, 1967.- “Le Facteur de la vérité”. Poétique nº 21. 1975.51 The Aims of Interpretation. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1976.- Validity in Interpretation. New Haven: Yale Univers. Press, 1967.52 As obras que caracterizam o enfoque hermenêutico dos autores citadossão:- Harold Bloom - Kabbalah and Criticism. New York: Seaburg Press, 1975. _____________ - “Poetic Crossing, Rhetoric and Psychology”. GeorgiaReview 30. 1976.- Jonathan Culler - “Beyond Interpretation: The Prospects of ContemporayCriticism”. Comparative Literature 28. 1976.- Stanley Fish - “Interpreting the Variorum” - Critical Inquire 2. 1976.- Hans Georg Gadamer - Wahrheit und Methode. Iubingen: Mohr, 1960.- Paul Ricouer - Le Conflit des interprétations: Essays in Hermeneutics.Paris, Seuil, 1969.- George Steiner - After Babel - Cpt V - “The Hermeneutic Motion” - NewYork: Oxford Univ. Press, 1975.- Izvetan Todorov - Symbolisme and Interpretation. Paris: Seuil, 1978.53 Wolfgang Iser - “A interação do Texto e o Leitor”. IN: A Literatura e oLeitor. sel. trad. e introd. por Luiz Costa Lima. Rio: Paz e Terra, 1979.54 Wolfgang Iser - “A interação do texto com o leitor”. IN: A Literatura e oLeitor. op. cit.55 Apud “A interação do texto com o leitor”. IN: A Literatura e o Leitor.op.cit. p. 106 56 Leitura do texto literário (Leitor IN Fabula). Lisboa: Ed. Presença, 1979.* De acordo com a tradição husserliana, Roman Ingarden distingue: os obje-tos reais - passíveis de determinação completa -; objetos ideais - devem serconstituídos uma vez que são autônomos; objetos intencionais - objetos dearte não se submetem a uma determinação exaustiva.57 Conceito da Psicologia da Percepção que “indica a ligação consistente dedados da percepção em uma forma de percepção, assim como a ligação dasformas de percepção entre si.” W. ISER - “A interação do texto com o leitor”.In: A literatura e o leitor. op.cit., p. 109.* Em Os maias, de Eça de Queiroz, por exemplo, o leitor descobre, juntamento

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com as personagens, a ocorrência do incesto que atinge os dois irmãos -Carlos Eduardo e M. Eduarda - e tem como consequência a dispersão totalda família.58 The implied reader. Baltimore and Lonfon: The Johns Hopkins UniversityPress. 1974 (Do original Der Implizite Leser. Munich: Wilhelm Fink, 1972)59 Leitura do Texto Literário. (Lector in Fabula). Lisboa: Editorial Presença,1979.60 Maria Alzira Seixo - A palavra do romance. Lisboa: Livros Horizonte,1986, p. 20.61 Segundo Austin são três os postulados que possibilitam o sucesso do atoda fala: a enunciação performativa que pressupõe convenções comuns aolocutor e ao destinatário; o estabelecimento de processos aceitos por um eoutro; a disposição das pessoas envolvidas em tomar parte da açãolinguística: “apud” Wolfgang Iser - “Théorie de la Reception en Allemagne”.IN: Poétique nº 39, set, 1979.Para ampliação desse assunto ler: J. L. Austin - How to Do Things withWords. New York: Oxford University Press, 1962.62 Mickhael Bakhtin - Questões de literatura e de estética (A teoria doromance). São Paulo: Editora UNESP/HUCITEC, 1988.63 Júlia Kristeva, “Sémiotiké”. Paris: Seuil, 1969.Apud Leyla Perrone Moises. A Intertextualidade Crítica. IN: Poétique nº27. trad. de Clara Crablé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979, p.215-216.64 Idem, Ibidem, p. 216.65 Um desenvolvimento mais pormenorizado da intertextualidade, implícita eexplícita, pode ser encontrado em; Laurent Jenny - “A estratégia da forma”.Poétique nº 27. trad. Clara Crablé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979, pp. 5-49.66 Questões de literatura e de estética (A teoria do romance) op.cit. p.119,136-152.Na verdade, no Dicionário de Narratologia, (Carlos Reis e Ana Cristina M.Lopes. Lisboa: Almedina, 1987. pp. 321-323) o termo pluridiscursividadeaparece como a correspondente tradução do “plurilinguisme ” da ediçãofrancesa aqui citada. A tradução brasileira, diretamento do russo editadapela UNESP/Hucitec em 1988, com o título: Questões de Literatura e deEstética (A Teoria do Romance) opta pelo termo plurilinguismo ..

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O experimentalismo e a construçãodo romance no romance, como marcas de contemporaneidade na

ficção portuguesa atual

O romance contemporâneo debate-se com problemas deremodelação de estrutura que incidem fundamentalmen-te sobre os mecanismos de representação: a nível da lin-guagem (articulação sintáctica e ortodoxia semântica),a nível de construção de um universo (composto por ele-mentos classicamente determinados) e a nível de umamundividência explícita (o sentido que se desprende dasignificação, a apreensão de um significado a instituircomo meta ou, pelo menos, sintoma). Gênero narrativopor excelência, é no plano da organização sequencialdos constituintes de sentido que os outros níveis provamo seu maior ou menor grau de adequação a essa consci-ência da alteração estrutural e a validam.67

O experimentalismo no romance contemporâneo decorre, acimade tudo, de remodelações estruturais que atingem todos os níveis dos me-canismos de representação: o discurso dialógico, fragmentado, apluridiscursividade, a articulação das linguagens e registros sublinham onível da linguagem; por sua vez, a construção de um mundo possívelficcional, modelizado a partir do mundo real, implica na fragmentaçãodiegética, na espacialização dos segmentos temporais, nas estratégias tex-tuais que configurando a emergência de uma coerência interna, no nível douniverso criado pelo próprio romance; e, finalmente, o nível de umamundividência explícita apoia-se na construção de sentidos, a partir do atoda leitura, pela ocupação dos vazios e brancos do texto, pela fusão doshorizontes de expectativa do emissor e de seu destinatário, decorrente dainteração e participação em processos comuns de significação, contidos notexto e decodificados pelo leitor, através de suas projeções interpretativas.

Gênero em evolução, ainda sem definições acabadas, o romance

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participa ativamente das mudanças decorrentes do rápido processo de trans-formação que caracteriza a sociedade contemporânea, refletindo-a mais pro-funda e substancialmente que qualquer outro gênero. Antecipou, e aindaantecipa, a futura evolução de toda a literatura, pelo autoquestionamentode sua própria construção; pela maior liberdade de linguagem, renovadapor conta do plurilinguismo extra-literário, mimetizado pelos extratos roma-nescos da língua literária; pelo discurso ambíguo invadido pelo riso, pelaironia e pela paródia; pelo contato vivo com um presente em processo,ainda não acabado, que aflora como área de domínio, plenamente assimila-da, pelo romance de nossos dias.

Assim sendo, os estudos sobre o romance preocupam-se comos registros e descrições das mais variadas formas romanescas, mas, ne-nhum dos registros, mesmo considerado como um conjunto de característi-cas várias, consegue qualquer formulação que sintetize o romance comoum gênero pronto, com um, ou até alguns traços fixos ou invariáveis.

Bakhtin ressalta essa constatação, propondo-se, no entanto, aestabelecer “particularidades estruturais e fundamentais do mais maleáveldos gêneros” na tentativa de o compreender melhor:

Aponto três dessas particularidades fundamentais quedistinguem o romance de todos os gêneros restantes: 1. Atridimensão estilística que se realiza nele; 2. A transfor-mação radical das coordenadas temporais das represen-tações literárias no romance; 3. Uma nova área deestruturação da imagem literária no romance, justamen-te a área de contato máximo com o presente(contemporaneidade) no seu aspecto inacabado.68

Tendo em mente essas abordagens sobre o romance, acentua-damente o contemporâneo, torna-se fácil compreender a grande variedadede textos narrativos, com as mais diversas e até contraditórias característi-cas, que constituem a produção ficcional portuguesa de nossos dias.

2.1. Perspectiva Panorâmica

Se considerarmos O Delfim (1968) de José Cardoso Pires, comouma data limite, que marca o fim do neo-realismo ortodoxo - ainda presenteem várias obras de autores diversos - podemos admitir, em Cardoso Pires,Carlos de Oliveira, no próprio Saramago de Levantado do Chão e outros, oadvento de um segundo neo-realismo mais complexo e sofisticado, com areflexão sobre o país, sobre a Revolução dos Cravos (1975), onde o enfoque

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social mescla-se com a consciência de novos procedimentos formais, den-tro do gênero romanesco. O Delfim é o romance da construção do relato.Revela-se a superação de uma certa referencialidade neo-realista, constitu-indo-se o texto numa pesquisa gradual da verdade, que vai se construindocom o auxílio do leitor. O que se representa é a busca tortuosa e árdua daverdade. O narrador apoiado na lição do mestre estabelece a importância dainserção do sujeito num espaço e tempo, localizados por objetos, envolvi-do num jogo de interesses e valores, utilizando a memória para produzir umconhecimento em processo.

Procura-se apreender, através de testemunhas e da reconstruçãodos fatos, a verdade última, que se articula em dois níveis narrativos: o planoda enunciação e o plano do enunciado, cuja inter-relação vai possibilitar aconstrução dessa verdade, gradativamente e diante do próprio leitor, cúmpli-ce na reconstrução dos eventos que articulam a ação dramática da intriga.

A narrativa encerra-se com a despedida do narrador e de umcompanheiro de vigília que é o próprio leitor, tornado narratário, persona-gem também do texto ficcional. O processo laborioso de pesquisa e “caça”faz emergir a auto-referencialidade do romance, com a relativização do sabere da verdade.

Outra vertente do romance atual português, marcada pela rare-fação do enredo, densamente psicológica, mostrando a fragmentação dohomem, dividido entre a essência e a aparência - que se reflete nas técnicasdo fluxo da consciência, nos monólogos interiores e na concepçãobergsoniana do tempo - enraiza-se no Presencismo de José Régio, Branqui-nho da Fonseca, com precursores do nível de um Raul Brandão. A Síbila deAgustina Bessa Luís, publicada já em 1954, apresenta, aliada a um estiloinvulgar e personalíssimo, uma formulação romanesca inovadora, onde odiscurso da narradora integra em si mesmo não só as vozes de inúmeraspersonagens, como os acontecimentos que as modelam, construindo umaperspicaz percepção do mundo sufocante, que marca a circularidade dotempo e da vida.

O existencialismo de Vergílio Ferreira liga-se também a essa ver-tente - Aparição (1959) - com os questionamentos básicos do SER, do SERCOM OUTRO e do SER PARA A MORTE, numa organização romancescaexigente, onde se sobressai a voz polarizada do narrador, concentrando emsi toda a problemática e as visões das outras figuras do romance e inaugu-rando um tipo de romance que coloca em pauta os valores universais dohomem, em suas indagações angustiadas: - de onde viemos?; quem so-mos?; que destino temos?.

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A par dessas vertentes, surgem ainda, entre os mais recentesautores da ficção portuguesa, romances matizados por determinantes só-cio-psicológicas, pela influência - as vezes mesmo negada - do “noveauroman” francês, com multiplicação de intrigas paralelas, coincidentes ouconflitantes, que sublinham temas e situações, sem a justificativa dasinjunções naturalistas. Providenciam antes o alargamento da forma roma-nesca, com a utilização de diversos registros, como o biográfico, o epistolar,o histórico, que coexistem, interrogam-se e interagem com o discursoficcional do próprio texto.

Tentaremos verificar, em alguns romances e autores escolhidoscomo amostragem, as diversas tendências que marcam o romance portugu-ês contemporâneo, desde as raízes neo-realistas e presencistas, até as abor-dagens existencialistas e sócio-psicológicas dentre outras, frisando as rup-turas, fragmentações, polifonia, autoreferencialidade e alteridade que sefazem presentes, das mais variadas formas, sublinhando o caráter plural eenriquecedor da ficção lusa atual.

A raiz neo-realista destaca-se na literatura de resistência, que secoloca contra a repressão e a massificação social. Desloca-se o polo dosprivilegiados para o dos “humilhados e ofendidos”, lançando-se um fechode luz sobre as personagens e seus conflitos, num mundo marcado porinjustiças de toda a sorte. A idéia de resitência vai estar ligada à forma que,por sua vez, está à serviço de uma denúncia de alienação sem que o roman-ce seja transformado em panfleto. Dentre os muitos romances que refletema fragmentação e a desestruturação do mundo e do discurso no romanceportuguês contemporâneo, destacamos alguns que se prestam paraexemplificar as afirmações aqui expostas. Nessas obras instaura-se umalinha ficcional de realismo fantástico, cujas conotações refletem os princi-pais aspectos de um relacionamento social e político, marcado pela ausên-cia de liberdade, pela penúria, pela ignorância.

Nessa linha ficcional insere-se O Dia dos Prodígios - (1980) - deLídia Jorge. O romance baseia-se num dia de prodígio, uma espécie de fimdo mundo, quando uma cobra voou. As personagens - Carminha Parda,Carminha Branca, José Pássaro Volante e sua esposa Branca, que comoPenélope tece uma colcha com o desenho de um dragão que a escraviza -vivem num meio asfixiante e esclerosado. O século XX chegou com atrasoem Vila Maninha que, como Portugal, - vive fora do Tempo. Inventa-se o“réptil que voa” para se poder sustentar um mundo vazio, opressivo einjusto. As personagens são marginalizadas, obsecadas pela idéias de pe-cado (dragão) e pela repressão. A homologia entre o dragão do prodígio e odragão da repressão configura um processo de desalienação, pretendendo

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mostrar que as pessoas desejam ou criam prodígios fugindo à realidade, àopressão de um país anquilosado e voltado para o passado.

A introspecção, os dramas psicológicos, a trama densa e adiegese fragmentada refletem a influência presencista que se adensa napredominância do “mundo dos valores” sobre o “mundo dos fatos”69, coma tendência marcante de fugir ao culto da história pela história, vinculando-se à esfera dos valores através das personagens.

Os Cus de Judas, de Antonio Lobo Antunes, trai a influência desuas raízes presencistas, uma vez que é um romance de aprendizado - sendoinclusive indicado pelas letras do alfabeto - revelando a trajetória de umjovem, dilacerado entre o passado em África e o presente em Portugal,sentindo-se “estrangeiro” em ambos os lugares. O tempo psicológico, arecuperação do passado pela memória, permite que no espaço de uma noite- enquanto a personagem principal, um médico, conversa com uma mulher -toda a sua vida seja relembrada. A metáfora do herói, no período que decor-re entre sua juventude e maturidade, é a perda de sua inocência e ilusão. Vaià Africa para “ser homem” e vivencia uma verdadeira descida ao inferno,que o transforma em um dentre os vários “voltados” da guerra, marginaliza-dos, sem lugar no seu próprio país. Vagando de bar em bar, procura noálcool o paraíso perdido, o passado irrecuperável, o único modo de re-encontrar-se no próprio cerne de sua auto-destruição.

Antonio Lobo Antunes, que já publicara Memória de Elefante(1979), segue publicando na década de 80, Conhecimento do Inferno (1980),Explicação dos Pássaros (1981), Fado Alexandrino (1983), Auto dos Da-nados (1985), As Naus (1988), culminando em 1990 com Tratado das Pai-xões da Alma, um dos seus melhores romances, e o último deles - A OrdemNatural das Coisas (1992-outubro) dentre a longa série já publicada, ondese patenteia sua grande potencialidade criativa e inovadora no plano dalinguagem: pluridiscursividade, monólogos interiores possibilitando aintrospecção psicológica, discurso dialógico; no plano diegético: a tramaconfigura-se através de vozes e pontos de vista de vários personagens,enriquecida pela polifonia e multifocalização; no plano da construção daspersonagens: vetores ideológicos de uma sociedade em mudança, opressi-va, densa e profundamente hipócrita. Insere-se a obra numa outra vertente,matizada por determinantes sócio-psicológicos, mimetizando o mundo emcrise, através de um discurso multifacetado, introspectivo e repetitivo.

Tratado das Paixões da Alma constrói-se sob o signo dadualidade. São dois os personagens principais, o Juiz de Instrução e oHomem (que se descobre no decorrer da narrativa, “coincidentemente”,chamar-se Antunes, como o próprio autor do romance) que se alternam nos

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papéis de personagens, de narradores e até mesmo de narratários, repre-sentando muitas vezes o papel do outro, implícito no discurso do narrador.O passado evocado e o presente vivenciado providenciam também um mo-vimento binário, onde se inserem as possibilidades bifrontes de todos oseventos, sob a égide do bem e do mal, onipresentes e questionados nopróprio texto ficcional.

Os demais personagens formam o cenário humano que irárepresentar uma amostragem da sociedade ambiciosa e mesquinha, aci-ma de tudo hipócrita, parodiada pelo discurso irônico, que marcaidelevelmente a narrativa, levando-nos a ler o que está por detrás, oavesso dos fatos, cuja realidade subterrânea pode-se inferir através donão-dito, das lacunas, enfim, dos vazios e brancos do texto, que seoferecem à ocupação, requerendo movimentos cooperativos, conscien-tes e ativos por parte do leitor.

“A diegese é enganosamente simples. Num momento qual-quer de um presente recentíssimo, o Estado inicia o desmantelamento ecaptura de um grupo de terroristas”70, do qual fazem parte o Homem, oArtista, o Padre, o Estudante, o Bancário, a Dona do lar dos Velhos,entre outros participantes citados esporadicamente. Um dos membrosdo grupo, - o Homem (Antunes), é preso e um Juiz de Instrução (Zé),escolhido a dedo, é designado para dirigir o interrogatório. Ocorre, po-rém, que ambos foram criados juntos, embora numa relação de subservi-ência, onde o Homem era “o filho dos patrões”, outrora ricos, podero-sos e agora decadentes, e o Juiz, o filho do caseiro alcoólatra e da mãeservil, que consegue, através de estudos, pagos pelos patrões, chegarao cargo que ora ocupa, invertendo, aparentemente, os papéis dedominador e dominado. Na verdade, essa inversão de posições vai serevelar totalmente inóqua, uma vez que ambos são mortos pela máquinarepressora de uma polícia política.

O homem em crise, as ideologias conflitantes, as lutas político-sociais são retratados através de meta-narrativas, intertextos, polifonia devozes e focalizações levando-nos a constatar a relatividade dos aconteci-mentos e da verdade.

Memorial do Convento (1982) de José Saramago apresenta a“forma como resistência, fundindo textos de vários autores e fazendo deseu discurso um amálgama de influências, que refletem a alienação do pró-prio povo. Ficcionando a própria História, embora não se configure comoum “romance histórico”71, esta obra presentifica uma análise da situaçãode hoje através do confronto com a moralidade do passado. É no passadoque encontramos as raízes dos problemas atuais portugueses.

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O tempo histórico é o Século XVIII, sob o reinado de D. João V.Enquanto França e Inglaterra inauguram os tempos modernos, Portugalvive em clima de Idade Média, início do tempo das conquistas. Tudo vemda Colônia para pagar as manufaturas importadas; o poder discricionáriodo rei é uma realidade de injustiça e opressão; a inquisição e os autos de féservem para canalizar a atuação da massa popular e conservar o domínio daIgreja sobre o povo e a própria nobreza.

A diegese desenvolve-se em dois planos: o sublime e o popular,que se constituem em duas formas de se “chegar ao céu”. De um lado, noplano do sublime, temos a construção de um convento em Mafra, parapagar o “milagre” de um herdeiro que asseguraria a sucessão de D. João V,e, por outro lado, no plano do popular, a construção da “passarola” porFrei Bartolomeu de Gusmão, auxiliado por duas pessoas do povo, campo-neses sem instrução - Blimunda e Baltazar Sete-Sóis. No decorrer do roman-ce, o sublime se transforma em baixo e o baixo em sublime. As duas maneirasde se conseguir chegar ao alto - construir um convento para comprar acomplacência divina ou construir uma “passarola” que, movida pelas “von-tades” tiradas ao homens por Blimunda, desafia o próprio Deus e conseguesubir ao céu - envolvem-se com interesses econômicos e religiosos, mar-cando uma total subversão de valores na sociedade retratada no romance.

Simbolicamente é a vontade do homem que move tudo o queexiste, e o romance de Saramago serve de crítica ao presente, onde as pes-soas vivem ainda dos sonhos miríficos das conquistas, esquecendo-se deque o homem vale pela sua vontade, pelo fazer e não pela sua acomodaçãoalienada e alienante. Em Levantado do Chão, publicado anteriormente (1980),por exemplo, Saramago mostra-nos que o FAZER Social, a luta do povooprimido contra as injustiças seculares, pode conseguir modificar a aliena-ção social que os condena “desde sempre”.

A raiz neo-realista faz-se presente em ambos os romances, acen-tuadamente no contexto ideológico de Levantado do Chão, e implicitamen-te, como pano de fundo tanto do passado histórico como do presenteconotado em Memorial do Convento, onde o realismo fantástico coexistecom o dialogismo, a carnavalização, sublinhando o tema da construção, narealidade (o convento) e no sonho fugidio (a passarola). Envolvem-se ma-téria fictícia, matéria histórica e personagens com atributos supra-huma-nos, flutuando a narração numa zona de sombras, onde interagem a aventu-ra da sociedade e a interdição dos sonhos impossíveis.

José Saramago publica ainda, entre outros, O ano da morte deRicardo Reis (1985), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco deLisboa (1989) e o recente Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) demons-

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trando uma linha coerente de revitalização e interrogação do passado, rea-lizando um movimento para fora das molduras estereotipadas e para dentroda problematização da natureza do processo histórico.

Concretiza-se a narrativa numa rede textual, onde afloram contí-nuas e diversas possibilidades de sentido e ação, atraindo o leitor paradentro do texto, partícipe da co-apropriação de fatos históricos - realidadeextratextual - pela própria diegese. Recria-se o mundo ficcional através darevitalização de sentidos e da construção textual, fundada na produtivida-de de intertextos, onde o velho aparece com um novo sentido. O crivocrítico da ironia, a inversão dos papéis secundários e dos principais, avalorização do feminino, o resgate de “potenciais” personagens “inferio-res” da história providenciam o processo de construção da verdade, quenão se sonega, antes é posta a nu, recontada pela diegese ficcional, epresentificada pelas estruturas de apelo do texto.

História do Cerco de Lisboa, que analisaremos em outro capítulodesse estudo, tem como princípio condutor a metáfora do apagamento, darasura que se estende desde a primeira até às últimas páginas. O “deleatur”, osinal de eliminação de palavras pode rasurar até mesmo certas decisões dahistória. O revisor Raimundo Benvindo Silva, personagem principal, insere-se num estatuto de passividade, que é contestado, no momento em que eleresolve intervir no livro que está revisando, mudando o episódio histórico doauxílio dos cruzados na libertação de Lisboa às mãos dos mouros.

A alteração da visão da história permite reativar a dinamizaçãoda comparação entre o passado histórico (século XII) e o presente (séculoXX). O cenário repete-se. Na narrativa histórica surge o romance deMogueime e Ouroana, que sublinha o romance presente de Raimundo eMaria Sara, aos pés da cidade prestes a ser conquistada.

A sobreposição de três narrativas - a histórica, a do revisor e ado autor - que fluem simultaneamente e se entrecruzam potencializa umainterpenetração do tempo e do espaço, permitindo, a partir da produtivida-de diegética, a reflexão sobre o Portugal de hoje, sem a asfixia dos mitoshistóricos, agora questionados e subvertidos.

O Evangelho Segundo Jesus Cristo é um texto que pressupõeum texto anterior (o Novo Testamento) para com ele dialogar. A diegeseapoia-se num presente simbólico e indicial que atualiza diante do leitor avida e o sofrimento de Jesus. O uso de provérbios, chavões, lugares co-muns, citações populares e literárias são configurados com um novo senti-do, que se apóia na apropriação cultural, na inversão das formas do sagra-do, no enfoque antes humano do que divino da figura de Jesus. A

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plurissignificação do texto se concretiza através do processo desconstrutorda linguagem, que possibilita a participação do leitor. A multiplicidade defocalizações vai sublinhar as muitas faces da verdade, que podem mudarsegundo o curso das leituras e re-leituras do texto.

A iconografia está na base da construção das descrições dotexto, como verificamos logo no primeiro capítulo, que se abre com umaleitura da pintura de Durer - O Cristo no Gólgota, com todos os seusdetalhes. A enigmática tigela negra, de grande valor simbólico na narra-tiva, está igualmente presente no quadro, utilizado como base das des-crições iniciais.

A diegese evolui através de metanarrativas, polifonia de vozes,focalizações e intertextos que vão compondo e re-compondo a realidade deum evangelho apócrifo, sob uma ótica diversa da cristã, mas igualmenteválido à luz dos valores humanos de uma sociedade em crise.

O romance de Teolinda Gersão - Paisagem com mulher e mar aofundo (1982) - realiza uma inversão do motivo, tradicionalmente positivo, domar na literatura portuguesa. Nesta obra, o mar é a força inconsciente quetudo avassala e entorpece. É algo negativo que cerca os portugueses, opri-mindo-os, obrigando-os à dispersão e tornando-os um povo sem raízes.Portugal é como o barco da loucura dirigido pelo Senhor do Mar (persona-gem identificado como O. S. - Oliveira Salazar), uma espécie de tótemonipresente e mítico.

A protagonista Hortênsia - viúva de um arquiteto e cujo filhomorrera na África - dialoga com sua nora que espera um filho. A recriação deum espaço (família) e de uma linguagem (fala de Hortênsia) representam aúnica maneira de quebrar a realidade sufocante e opressora que obrigatodos à diáspora.

No final do romance quebra-se a imagem do Senhor do Mar enasce o neto de Hortênsia renovando-se a esperança de superar adescaracterização e a perda de identidade, que marcam as pessoas em todoo desenrolar da narrativa.

A situação narrativa de confidência, o discurso intimista, a temáticada solidão e da espera, o desnudamento do vazio existencial revelam-se numamultiplicidade de planos, que oscilando entre o simbólico e o lúdico, vão permi-tir a produção da significação através da interação projetiva do leitor.

O Discurso da Desordem, já na década de 70, (1972), de AntonioRebordão Navarro, reflete, de modo exemplar, o romance contemporâneoaparentemente desconexo, mas criando um universo fragmentado, paraleloao seu próprio discurso. O homem é focalizado através de metanarrativas,

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intertextos, polifonia de vozes e pontos de vista que nos fazem conhecer arelatividade dos acontecimentos, reservando-se ao leitor o papel deorganizador da narrativa, que se concretiza através do ato da leitura.

O centro de gravidade é desviado para as personagens, privile-giando-se a esfera dos valores em detrimento dos fatos em si, que são tãomutáveis como os olhos que os vêem e as consciências que os interpretam.

Evidencia-se, consequentemente, a interpenetração do tempo edo espaço, uma vez que o tempo não se propõe mais a representar o fluxo davida, o seu caráter efêmero, a sucessividade dos acontecimentos, mas sim asimultaneidade desses eventos, sob as mais variáveis perspectivas. Privi-legiam-se descrições de momentos vividos, onde estão fundidos segmen-tos temporais de diferentes níveis com o espaço físico e psicológico, procu-rando-se captar as correntes íntimas do ser humano, a partir das aparênciasexteriores. O entrecruzamento de diferentes espaços acaba por nos levar àdissolução da idéia tradicional de tempo, sobrepondo-se um novo conceitode tempo, psicológico, denso, durativo.

A convivência diária das personagens - jornalistas, intelectuais,escritores, professores e pessoas do povo - faz com que alguns fatos, comouma festa onde ocorre um falso atentado à vida de um homem de negócios,cenas do cotidiano ou a história de uma velha solitária que tinha um sapopor companhia, sejam enfocados por diversos e diferentes narradores con-figurando-se os discursos, como mimeses das falas das personagens,inseridas no contexto social a que pertencem.

Outros autores destacam-se no quadro da ficção portuguesaatual com uma produção constante, como os já citados Vergílio Ferreira eJosé Cardoso Pires, e outros de igual valor, como Augusto Abelaira,Almeida Faria, Urbano Tavares Rodrigues, Marina Ondina Braga, FilomenaCabral, Maria Judith de Carvalho, Agustina Bessa-Luís, Maria Velho daCosta, João de Melo, David Mourão-Ferreira, Helder Macedo, cada umcom suas características próprias, mas tendo em comum a preocupação demodelizar a realidade desconexa do mundo atual, sob a ótica das persona-gens, representadas pelo seu discurso. O discurso apropria-se da narrati-va privilegiando-se, não a verossimilhança diegética - reprodução de acon-tecimentos -, mas o seu reflexo através do mundo de valores dos persona-gens, do narrador e do narratário.

Vergílio Ferreira72, por exemplo, descreve uma trajetória em suasobras, vindo desde o romance tradicionalmente estruturado - Vagão J liga-do ao neo-realismo - até aos seus romances de cunho existencialista - Apa-rição, Estrela Polar, Nítido Nulo, Até ao Fim entre outros - cuja fragmen-

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tação temporal/estrutural exige, cada vez mais, a presença e atuação doleitor na decodificação da mensagem ficcional.

O romance Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira que seráanalisado nos capítulos subsequentes desse estudo, privilegia o discursoindireto livre do narrador, os discursos citados e os discursos transpostosdas personagens propiciando uma alternância entre o “telling” (contado) eo “showing” (mostrado) atualizando o dinamismo textual e possibilitando afusão de duas linguagens no interior de um mesmo enunciado. Coexistem,portanto, duas leituras paralelas, configurando-se um eixo sintagmático - lei-tura horizontal da diegese ficcional - e um eixo paradigmático de significação- leitura vertical dos vetores ideológicos e metafóricos da mensagem contidano texto. Fundem-se realidade, ficção, versos e referências a outros autores,no discurso irônico do narrador autodiegético, deixando transparecer o que élatente ou contestado, na sociedade que o cerca.

A personagem central feminina - a enigmática Y-protagonista,juntamente com o narrador autodiegético, de um caso de amor feliz - faz-sede início veladamente, através do discurso e focalização de um narradoremocionalmente envolvido, que nos revela, pouco a pouco a mulher mítica,original, parceira do homem na sua realização amorosa. Desenha-se, nodesenrolar da diegese ficcional, o quadro de uma sociedade fragmentada,onde o homem em crise encontra-se retesado entre a essência e a aparência,vivendo, numa mentira consentida, o seu “amor feliz”.

O texto revela, em sua dualidade, o que é marginal, o que é realsob o manto da aparência, sublinhando a dificuldade de se permanecer fiela si mesmo, realizando um intertexto sutil com versos de Fernando Pessoa eempregando o pronome de primeira pessoa do plural, para permitir a inclu-são do narratário no discurso do narrador.

Entrecruzam-se o plano da enunciação - através das reflexões,dos discursos entre parênteses que sublinham o ato de escrever - e o planodo enunciado - onde convivem, num presente diegético, as pesonagensenvolvidas na trama ficcional.

O narrador utiliza, ainda, a polissemia das palavras, uma vez quepela palavra re-inventa-se o mundo modelizado pelo texto artístico.

Os meus Objectos! Já penseis chamar-lhes´Hobbyjectos; já desejei chamar-lhes hollyjectos o meumarchad de Lausannse, esse desmancha-prazeres, é quetem torcido o nariz a ambas as designações” (MourãoFerreira - Um amor feliz, p. 19).

O questionamento dos valores sociais e dos próprios valores

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individuais do personagem-narrador permite-nos, portanto, uma dupla vi-são de todos os fatos e reflexões, presentificados pelo seu discurso. Aalternância entre narrar e representar (diálogos) configura um horizonte deexpectativas, partilhado pelo autor implícito e pelo leitor virtual, revelando,como já vimos antes, o que fica por detrás do real, o que estava latente epassa a ser desvelado. O discurso dialógico, no plano da enunciação, infiltra-se dos pontos de vista do autor implícito, pressupondo ainda, como parcei-ro do diálogo, o leitor virtual que assume o papel de narratário na estruturado narrado, confundindo-se com a personagem-confidente.

Publicado em 1991, Partes de África de Helder Macedo - críticoe professor universitário, autor de poemas, artigos e ensaios críticos sobrevários autores portugueses de Dom Dinis a Jorge de Sena - é a sua estréiana ficção e brilhante estréia.

Romance em plural, que se constitui de uma somatória de diver-sos registros romanescos, destacando-se quatro tipos de narrativas que sedesenvolvem simultaneamente: um romance de tese, um romance de via-gem, um romance memorialista, um romance familiar, sem contar com a obraUm drama Jocoso de um certo Luis de Garcia Medeiros.

O protagonista, narrador auto-diegético de sua própria história,é a voz emissora que vai modelando um texto complexo, que abole as fron-teiras entre o fictício e o factual.

A vida do protagonista-narrador é o fio condutor que providen-cia a unidade diegética, fragmentada em segmentos temporais e espaçosdistintos, cada qual com suas ocorrências, seus costumes, ideologias, seushabitantes típicos. Configura-se um mosaico, onde as diversas narrativasinterpoladas refletem uma visão caleidoscópica das partes no todo e daspartes que se libertam do todo, procurando vida independente, como pe-quenas histórias que se explicam e se iluminam.

Partes de África é um romance polifônico que, por aproximaçãometonímica ou por conotação metafórica, explora a produtividade da visãoespecular das personagens uns sobre os outros, desvelando, sob as más-caras da ficção, a experiência pessoal de diferentes “Áfricas”, onde se fun-dem a realidade e a ficção.

Vemos, portanto, que nos romances atuais os estados de cons-ciência são apresentados mas não decifrados, cabendo ao leitor o exercíciode uma participação consciente, que o exorte a ir um pouco além da páginaimpressa. À primeira leitura, a obra confunde o leitor que, em lugar da sen-sação de segurança e domínio - abrigo -, vai experimentar como narratário,como leitor participante do texto, juntamente com as personagens, a inse-gurança e a incerteza de uma realidade flutuante.

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A angústia, a solidão, o medo e o sofrimento estão presentes,com frequência, na temática contemporânea não somente para expressar aperplexidade e fragilidade do homem, diante da falência de antigos valores,mas também como um modo de intensificar as situações de conflito, aambiguidade diegética e os muitos ângulos da verdade.

Por outro lado romances, onde a ação organiza-se numa fábulacomplexa - como no já citado Memorial do Convento por exemplo -, utili-zam-se dos fatos como pretextos para que possamos compreender as per-sonagens, em toda a sua complexidade e densidade humanas. Debatendo-se num mundo de aparências, o homem vê-se sufocado pelas pressões einjustiças de uma realidade fragmentada e multifacetada, onde coexistemgrandes injustiças, concretizadas nas profundas diferenças sociais e naslutas entre opressores e oprimidos.

Dentre os diversos romances que constituem a produçãoficcional portuguesa das duas últimas décadas, com obras e autores damaior relevância, destacamos os romances Um Amor Feliz (1986) deDavid Mourão Ferreira e História do Cerco de Lisboa (1989) de JoséSaramago, de um lado pelo seu valor intrínseco e, de outro lado, porquese destacam como representações modelares do romance português atu-al. Retratam a sociedade contemporânea, o homem dilacerado, as lutaspolítico-sociais, mimetizadas através da fragmentação diegética, dasobreposição de metanarrativas, da intertextualidade, entrelaçando-se,na tessitura de ambas, ficção e metalinguagem. A construção do roman-ce no romance e a auto-referencialidade solicitam do leitor uma ativida-de dinâmica de interação, que o coloca no espaço dramático do textoencarregado de presentificar as contiguidades metonímicas e o eixo dascombinações metafóricas para chegar à compreensão e interpretação damensagem ficcional.

O romance, gênero em processo, reflete mais substancial e sen-sivelmente a evolução da própria realidade. O mundo fragmentado, dividi-do entre essência e aparência é mimetizado pelo discurso ficcional com osseus diversos registros romanescos, sua estrutura fragmentada ecaleidoscópica, mutável ou flutuante, segundo focalizações variáveis, re-servando-se ao receptor a montagem pessoal da diegese ficcional. A fábulaé secundária. As personagens assumem o primeiro plano, como já vimos,com o seu discurso tão desordenado às vezes como as suas vidas, basea-das em aparências. Narradores e narratários - leitores participantes - pode-mos nos encontrar à procura da unidade perdida e reencontrada nos diver-sos momentos de nossas vidas e nas diversas leituras de romances, quemodelizam a perplexidade dos dias em que vivemos e a complexidade domundo atual.

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Notas

67 Maria Alzira Seixo - A palavra do romance (Ensaios de Genologia e análi-se). Lisboa: Livros Horizonte, 1986, p.185.68 Mikhail Bakhtin - Questões de Literatura e de Estética (A Teoria doromance). São Paulo: UNESP/Hucitec, 1988. pp. 403/404.69 Alexandre Pinheiro Torres - “Sociologia e Significado do MundoRomancesco de José Cardoso Pires”. In: Posfácio - PIRES, José Cardoso. OAnjo Ancorado. 5a. ed., Lisboa: Moraes Editora, 1977, p. 153.70 Fernando Mendonça. Resenha crítica - Antonio Lobo Antunes - Tratadodas paixões da alma. Colóquio Letras n. 125-126. Lisboa: CalousteGulbenkian, jul/dez 1992. p.296-297.71 Maria Alzira Seixo em sua obra A Palavra do Romance (Lisboa: LivrosHorizonte, 1986) à p. 23, define muito bem a particularidade desse romance,como podemos constatar pela passagem abaixo:“A obra de José Saramago tem procurado, e de modo particularmente sensí-vel a partir de Memorial do Convento, textualizar a memória que confronte oser com o tempo; daí que os seus livros tenham sido lidos, em muitos casos,como romances históricos - o que, obviamente, e de uma perspectiva rigoro-sa da teoria literária - não são. O que acontece é que José Saramago, convocao passado, aliás fielmente reconstituído (mas com intromissões do tipo fan-tástico que o alteram, note-se), para o filtrar de modo consciente por umaóptica do presente - o que é inteiramente diverso do que acontece com oromance histórico, onde o presente se abandona como tal para mergulharcompletamente no passado e nele se integrar; (...)72 O autor foi estudado em minha tese de doutorado: Tempo de SER. Tempode FAZER. A Temporalidade essencial e o espaço do leitor nos romances deV0ergílio Ferreira, defendida na Faculdade de Ciências e Letras de Assis,UNESP, 1988 e publicada pela Editora HVF/CERED/UNIP, São Paulo, 1993.

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O leitor-confidente e as dualidades intrínsecas em Um Amor Felizde David Mourão-Ferreira.

A palavra interiormente persuasiva é uma palavra con-temporânea, nascida de uma zona de contato com o pre-sente inacabado, ou tornado contemporâneo; ela se ori-enta para um homem contemporâneo e para um descen-dente, como se fosse contemporâneo.A concepção parti-cular do ouvinte-leitor compreensivo é constitutiva paraela. Cada palavra implica uma concepção singular doouvinte, seu fundo aperceptivo, um certo grau de respon-sabilidade e uma certa distância”.73

O leitor-confidente em Um Amor Feliz é o ouvinte-leitor, a quemo narrador autodiegético dirige sua palavra “interiormente persuasiva”. Odiscurso dialógico, privilegiando o momento presente, foco de irradiaçãode toda a diegese, providencia a palavra contemporânea de um presente emprocesso, de um diálogo confessional, envolvendo narrador e narratário,personagens à deriva numa sociedade em transformação. O leitor, o outroinserido no discurso do narrador, ultrapassa o espelho e vê-se no discursoconfessional do protagonista sentindo-se esse você, em cumplicidade ínti-ma com o narrador, que o questiona, e o considera um seu igual, despindo-se da autoridade desumanizada de criador e assumindo-se, acima de tudo,como criatura, com todos os seus anseios, virtudes e vícios.

O texto se constrói sob o signo do duplo, pela ambiguidade dodiscurso dialógico, e pela intersecção dos planos da enunciação e do enun-ciado, onde dialogam o eu-narrador e o eu-narrado, inseridos ambos natrama ficcional.

A análise de Um Amor Feliz, objetivo central desse capítulo,partirá de uma contextualização do romance na obra de David Mourão-Ferreira, considerando a seguir: a produção e efeito da ambiguidade e dodialogismo num texto marcado por dualidades intrínsecas; o narrador auto-diegético e o mundo das relações; o repertório ficcional e os limites de umaépoca; a intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia textuais; a repre-

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sentação e a diegese - retrato dos “pífios anos 80”; os vazios do texto e opapel do leitor, finalizando pela invasão da narrativa pelo discurso, caracte-rística marcante do romance em estudo.

3.1 - Localização do romance na obra do autor.

A obra de David Mourão-Ferreira é não só vasta comovariada. Faltava-lhe, porém, um romance. Um Amor Felizpreencheu essa lacuna e, ao mesmo tempo tornou-se umlivro exemplar no conjunto da produção romancística dosúltimos anos, e exemplar por dois motivos: como parâme-tro da tendência atual, e como padrão de qualidade daficção portuguesa contemporânea.74

O romance Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira situa-senum ponto de confluência entre o homem, ser histórico-social, obrigado aviver e con-viver com o mundo das aparências - a sociedade ironicamenteenfocada neste livro - e o homem, ser ontológico, procurando sua verdadeno próprio existir - SER - e na completude essencial, que advém do relacio-namento amoroso - SER EM OUTRO.

Primeiro romance publicado pelo autor, que se iniciou na litera-tura em 1945, quando na revista Seara Nova (nº 927), sairam seus primeirospoemas, David Mourão-Ferreira exerce intensa atividade intelectual comopoeta, crítico, ensaista, contista, novelista, dramaturgo, conferencista,polemista e agora romancista. É impossível pensar a história da literatura eda cultura portuguesa da segunda metade de nosso século, sem sublinharseu nome ou ressaltar seus estudos críticos, ensaísticos, sinais visíveis desua personalidade fascinante e complexa.

Dominando a arte versificatória como poucos, entretecendo atécnica tradicional e as lições da modernidade, ele é o poeta das explosõesde Eros, confrontando o corpo e o mundo, utilizando os sentidos como apossibilidade de ter acesso ao outro, enfim, realizando um amálgama, entrea filosofia do seu tempo, da linguagem poética e da comunicação. De seuspoemas aflora a mulher, em densa e serena inquietação, na infinitavulnerabilidade de seu corpo, somatória de outros corpos e outras mulhe-res, que se sublimam na evocação da mulher ausente - signo de restriçãopara a pluralidade de sentidos, desafio, sonho, fascínio, mulher mítica, par-ceira do homem em suas necessidades e prazeres.

Multiplicam-se seus livros de poesia, publicados desde 1950com A Secreta Viagem e a seguir com grande regularidade: Tempestade de

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Verão (1954), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), Do Tempo ao Coração(1966), Cancioneiro de Natal (1971), Matura Idade (1971), As Lições doFogo (antologia) (1976), Entre a Sombra e o Corpo (1980), Os Ramos OsRemos (1985), O Corpo Iluminado (1987), entre outros.

Na ficção publicou contos e novelas da maior relevância, ondeas estratégias narrativas realizam-se pela interferência do insólito naconcatenação diegética, pela caracterização das personagens através deseu próprio discurso ou pela inserção dos sujeitos num mundo de relaçõesintersubjetivas, que se revelam entre sombras e vozes irônicas oucontemplativas, como por exemplo, subliminarmente em Os Amantes (1968)e mais notadamente em As Quatro Estações (1980).

Professor universitário (Faculdade de Letras de Lisboa), diretorde revista literária (Colóquio/Letras) diretamente envolvido com a cultura ea intelectualidade portuguesa (já foi secretário de Estado da Cultura logoapós a Revolução de 25 de abril) é ainda crítico respeitado e tradutor.

Dono de uma prosa aliciante, utilizando-se das mais diversasestratégias estilístico-estruturais, o texto de David Mourão-Ferreira é mar-cado pelo dialogismo, pela pluridiscursividade, pela auto-reflexibilidade,tornando o leitor um parceiro indispensável, confidente solicitado a partici-par continuamente, preenchendo os “vazios”, o “não-dito”, lendo o queestá por detrás, o que é contestado, os limites do homem e de seu tempo.

Um Amor Feliz75, já várias vezes re-editado, foi considerado oromance do ano em 1986, tendo sido agraciado com os mais diversosprêmios: Grande Prêmio de Ficção da APE (Associação Portuguesa deEscritores); Prêmio Cidade de Lisboa; Prêmio Pen Clube e Prêmio D. Dinis,da Casa de Mateus.

A utilização de um discurso confessional configura, desde oinício, um diálogo com uma personagem confidente, que representa o pró-prio leitor inserido no texto. O romance fundamenta-se na fusão de antíte-ses entre o religioso e o profano, entre o efêmero e o essencial, entre averdade e a aparência, criando uma cumplicidade íntima, entre o emissor e odestinatário da mensagem ficcional.

O erotismo aflora, embora muitas vezes etéreo como o própriodiscurso, celebrando o amor e a ausência da amada, fazendo do amor um“jogo mental”, uma “desmesurada hipótese” conceitos presentificados logode início nas epígrafes do próprio texto. O romance revela-se como umasíntese das idéias, das obras, e das tendências estéticas contemporâneas,justificando-se portanto, a análise pormenorizada desse texto, sem dúvidaextremamente representativo do autor e de sua época.

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3.2 - O signo do duplo - Ambiguidade: Produção e Efeito (Plano daenunciação e plano do enunciado)

Nem sei porque me apetece contar-lhe a si, precisamentea si, esta vulgaríssima história de um amor feliz.

Mentira! Claro que sei. Foi justamente você quem nocomeço deste ano me revelou um segredo de que eu nun-ca tinha chegado a suspeitar. E me confiou mesmo a fór-mula de certas circunstâncias indispensáveis à existên-cia de um ´amor feliz´:

´Uma pessoa casada... só com outra pessoa casada.´

Apesar de você ainda ser mais nova que a Y, logo deimediato se firmou, entre nós dois, desde a primeira vezque nos encontramos, uma espécie de cumplicidade quenão queremos ou não podemos levar longe demais. Masconfesse que é divertido, para nós ambos, este reticentepacto de auxílio mútuo76

O signo do duplo, a ambiguidade que marca, indelevelmente, odiscurso ficcional, configura-se logo no segundo capítulo, onde o narradorse confessa a uma personagem confidente, que representa a presença doleitor, tornado narratário , “ser de papel”, personagem criado também pelopróprio texto.

Responsável pela presentificação da obra através do ATO DALEITURA, o leitor (receptor da mensagem) estabelece com o narrador (emissorda mensagem) um “pacto de auxílio mútuo”, uma cumplicidade, que o levaa encarnar esse você, interlocutor necessário, confidente induzido a ser e aaceitar sua participação compulsiva na clandestinidade desse “amor feliz”.

A construção dos sentidos do texto vai realizar-se pela evoca-ção do narrador que, embora apoiado em anotações (feitas em uma agenda),vai recuperar o factual com o auxílio do ficcional, pela fusão dos registroslírico e confessional que sublinham o discurso e contaminam o próprioleitor, obrigado a atualizar suas projeções representativas na decodificaçãoda mensagem.

Partindo da dualidade básica que se estabelece entre o plano daenunciação e o plano do enunciado, o narrador autodiegético é, ao mesmotempo o eu-narrador e o eu-narrado, enquanto personagem protagonista datrama ficcional.

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Verifica-se, a partir do ponto de vista do narrador, uma mudançade enfoque, privilegiando-se não os fatos mas as pessoas a quem os fatosacontecem, configurando-se, consequentemente, a invasão da narrativapelo discurso e providenciando o amálgama discurso-narrativa, onde o pri-meiro detém a primazia, por conter o mundo de valores que preside à elabo-ração do texto.

O eu-narrador estabelece um diálogo com o eu-narrado no pró-prio discurso ficcional, ponto de partida para que se concretizem os diálo-gos com as outras personagens, na fusão do presente do enunciado - pas-sado diegético que se presentifica diante de nós - e do presente daenunciação, do ato de escrever, criando-se, ficcionalmente, um presentecomum ao narrador e ao narratário e dando-nos a ilusão do que o primeironarra os fatos a medida que os vivencia.

Através da construção de um texto intrinsecamente dialógico,apoiado na pluridiscursividade das falas das personagens, organiza-se umhorizonte de expectativas do emissor (autor) que passa a ser partilhadopelo receptor (leitor), configurando-se a montagem de uma situaçãocontextual, que substitui a situação face-a-face das relações interpessoaise garante a eficácia da comunicação. É o espaço do leitor que participa danarrativa ocupando os “vazios do texto”, o “não-dito”, recriando o textoficcional pelo ato da leitura e revelando o que na sociedade fica latente, évirtual ou contestado, enfim, os limites de uma época.

As epígrafes iniciais, elementos de ligação entre o título e oromance, estabelecem um diálogo “in absentia” entre um eu-emissor (autorimplícito) e um tu-receptor da mensagem (leitor virtual), passando a fazerparte do estatuto plural do repertório de Um Amor Feliz, onde o velho serelaciona com o novo, estabelecendo um polo de interações e possibilitan-do a plurisignificação textual, a partir do fundo sobre o qual se apóia. É a“penhora”, de que fala Wolfgang Iser, que nos irá possibilitar um pontoconvergente, um ponto comum entre autor e leitor, norteando apresentificação da mensagem ficcional.

Deste modo os textos de Stendhal e Savinio, utilizados na aber-tura do romance, providenciam este ponto comum, uma vez que o receptoriniciará a leitura da obra, a partir dos mesmos pressupostos que orientaramseu emissor:

Ne pas aimer, quand on a reçu du ciel une âme faitepour l´amour, c´est se priver soi et autrui d´un grandbonheur.

STENDHAL

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L´amore propriamente non esiste. É una ipotesi, una gran-de, una smisurata ipotesi.

ALBERTO SAVINIO

Il più sicuro modo di felicità è il movimento mentale: il´gioco´ mentale.

ALBERTO SAVINIO

Le vrai métier de l´animal est d´écrire um roman dans ungrenier, car je préfère le plaisir d´écrire des folies à celuide porter un habit brodé qui coûte huit cents francs.

STENDHAL

Os conceitos de amor, felicidade e do verdadeiro mister do ho-mem, explícitos nas epígrafes acima, norteiam e balizam a leitura do romanceque, fundamentalmente, se apoiará e desenvolverá as afirmações ali conti-das, realizando o privilégio de demonstrar e atualizar a cosmovisão do au-tor, através do discurso do narrador autodiegético. O amor é umadesmensurada hipótese, é um jogo mental, é uma construção do própriohomem que, atuando no plano das possibilidades e das hipóteses, nãocorre o risco de se decepcionar ou de se desiludir.

A apresentação da personagem central feminina - a enigmáticaY, protagonista, juntamente com o narrador autodiegético, de um caso deamor feliz - faz-se de início, veladamente, através do discurso e dafocalização de um narrador emocionalmente envolvido, que nos vai des-velando, pouco a pouco, a mulher mítica, original, parceira do homem narealização amorosa. O “xaile branco”, de solteira, com a sua cor, símbolode pureza, embora de “malha entreaberta e larga”, simboliza o amor semculpa no plano da essência, uma vez que ambos são atraídos, irresistivel-mente, um pelo outro, apesar da interdição social representada pelo fatode já serem casados.

O discurso do narrador autodiegético dirige-se a um interlocutor,ainda não identificado, instaurando-se uma longa fala, de natureza intrinse-camente dialógica:

Digamos, para simplificar, que se chama Y. (E, surpreen-do-me a murmurar: Ípsilon...) Além de não querer nempoder dizer o seu nome, o nome é o que menos interessa;ou o que menos deveria interessar-nos. (A.F., p. 11)

E mais adiante:Estrangeira sim. Ou em parte estrangeira.

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Bonita? Mais, muito mais que bonita. É antes uma da-quelas mulheres sobre quem até as outras mulheres,desportivamente engolindo em seco ao ouvirem a seurespeito o moribundo adjectivo ´bela´, não conseguem irmuito além de comentários deste gênero: ‘Só é pena queseja um pouco parada’. Ou então: ‘Aquele pescoço...Aquele pescoço não vai aguentar-se por muito tempo’.(A.F., p. 12)

O narrador reflete sobre a palavra do outro, compreendendo aenunciação como a réplica de um diálogo. O discurso se enriquece pela coe-xistência das vozes do eu e do outro, objetivando a plurisignificação queadvém de pontos de vista diversos. A elaboração do discurso do narradorautodiegético prevê possíveis indagações do narratário e as responde.

As reticências, as dúvidas do narrador na busca da melhor ma-neira de contar seu encontro com a Y, deixam vazios e espaços a serempreenchidos pelo leitor, que vai compondo a personagem, juntamente como seu autor:

Mas o orgulho é que geralmente predomina. Sobretudopor ter sido ela quem... Como hei-de dizer? Por ter sidoela quem veio ao meu encontro, quem afinal espontane-amente... me escolheu* (A.F., p. 14)

A introdução da personagem interlocutora do narrador faz-seno segundo capítulo, providenciando a ambiguidade diegética em váriosníveis. Em primeiro lugar realiza-se a fusão personagem-interlocutora/lei-tor-narratário, uma vez que, em muitas passagens, perde-se a consciênciade uma personagem autônoma e resta-nos a sensação de que o diálogo serealiza diretamente entre o narrador e o narratário:

(Como poderei resistir, daqui a pouco, à tenta ção de re-produzir esse nosso diálogo? Sempre me empolgou acres-centar à mais que certa efemeridade de uma conversa amuito provável efemeridade do seu registro.)

‘Uma pessoa casada’, repetiu você, ‘só com outra pessoacasada’. E que de preferência uma delas seja mais velha.De preferência o homem. De preferência mesmo um tantomais velho, pouco disposto a correr novos riscos, parti-cularmente capaz de não cair na tentação de embarcarem mais outro OUTBOARD conjugal. (A.F., p. 17)

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3.2.1 - O narrador auto-diegético e o mundo das relações

Por outro lado introduz-se, através da ironia e da paródia, umadicotomia marcante entre o mundo da essência e o mundo da aparência. Omundo da essência repreesentado pelo narrador-personagem, na sua indi-vidualidade de artista (escultor), e pela personagem-interlocutora, igual-mente pelo seu trabalho artístico (poeta), que lhes permite assumir a insatis-fação e a busca constante do outro, como completude natural de si própri-os. O mundo da aparência presentifica-se através dos relacionamentos so-ciais preconceituosos e falsos, ironicamente modelizados pelo texto ficcional.

Tratava-se do primeiro grande jantar oferecido por umdesses casais de diplomatas latino-americanos que mis-teriosamente conseguem ter já entrado em relações, seismeses depois de aqui terem chegado, com todas as pesso-as - mesmo todas* , pensam eles - que se lhes afiguraindispensável conhecer em Lisboa. (A.F., p. 21/22)

O discurso indireto livre do narrador, os discursos citados e osdiscursos transpostos das personagens propiciam uma alternância entreo “telling” e o “showing”, atualizando o dinamismo textual e possibilitan-do a fusão de duas linguagens no interior de um mesmo enunciado. Coe-xistem, portanto, duas leituras paralelas, configurando-se um eixosintagmático - leitura horizontal da diegese ficcional - e um eixoparadigmático de significação - leitura vertical dos vetores ideológicos emetafóricos da mensagem contida no texto. Fundem-se realidade, ficção,versos e referências a outros autores, no discurso irônico do narradorautodiegético, deixando transparecer o que é latente ou contestado, nasociedade que o cerca.

‘Já reparou?’, lançou-me você logo a seguir. ‘Já repa-rou como parecemos uns pobres penduras entre todasestas sumidades de Pediatria?’(A.F.,p. 17).

E, nas páginas seguintes:Era o jantar de encerramento de mais umas jornadas In-ternacionais de Pediatria, tão inevitavelmenteinolvidáveis que já ninguém hoje se lembra delas. Depoisda memorável sessão de fados para estrangeiro ouvir eesquecer, (...) tinhamo-nos arredado um pouco, no últi-mo andar daquele hotel pseudocosmopolita, para o vãodessa janela de onde mal se via uma Lisboa sujamenteespectral, toscamente iluminada, a tirintar de desempre-

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go, de expedientes e de salários em atraso, sob um esfar-rapado capote de nevoeiro. (A.F., p. 18)

juraria, apesar de tudo, que nos encontramos ambos àderiva entre o que somos por dentro e o que a nossaépoca nos obriga a fazer. (A.F., p. 19)

O texto revela, em sua dualidade. o que é marginal, o que é realsob o manto da aparência, sublinhando a dificuldade de permanecermosfiéis a nós mesmos, realizando um intertexto sutil com versos de FernandoPessoa e empregando o pronome de primeira pessoa do plural para permitira inclusão do narratário no discurso do narrador.

Entrecruzam-se, assim, o plano da enunciação - através das re-flexões, dos discursos entre parêntesis que sublinham o ato de escrever - eo plano do enunciado onde convivem, num presente diegético, as persona-gens envolvidas na trama ficcional.

O narrador utiliza, ainda, a polissemia das palavras, uma vez quepela palavra re-inventa-se o mundo, modelizado pelo texto artístico.

Os meus objectos! Já pensei chamar-lhes hobbyjectos;já desejei chamar-lhes hollyjectos O meu marchand* deLausanne, esse desmancha-prazeres, é que tem torcidoo nariz a ambas as designações (A.F., p. 19)

O questionamento dos valores sociais e dos próprios valoresindividuais do personagem-narrador permite-nos, portanto, uma dupla visãode todos os fatos e reflexões presentificados pelo seu discurso. A alternânciaentre o narrar e o representar (diálogos) configura um horizonte de expectati-vas, partilhado pelo autor implícito e pelo leitor virtual, revelando, como jávimos antes, o que fica por detrás do real, o que estava latente e passa a serdesvelado. O discurso dialógico, no plano da enunciação, infiltra-se dos pon-tos de vista do autor implícito, pressupondo ainda, como parceiro de diálogo,o leitor virtual que assume o papel de narratário na estrutura do narrado,confundindo-se com a personagem-confidente.

As personagens, que constituem o mundo de relações onde seinsere o narrador autodiegético, são apresentadas e identificadas sob óti-cas diversas, que se concretizam em três estratégias textuais: discurso efocalização do narrador; discurso e focalização da própria personagem ediscurso do narrador com focalização da personagem. Assim sendo, a vi-são que temos das personagens é composta por vetores diversos, repre-sentados por enfoques de pessoas diferentes, em situções distintas, provi-denciando sua configuração através da convivência, do relacionamento

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social e dos atos cotidianos.

As mulheres de sua vida vão se delineando através da superpo-sição de segmentos do passado que nos permitem compreender o desenro-lar do próprio presente. A esposa - agora limitada a um papel maternal - já foia companheira, que o satisfazia com plenitude.

Tu, aos vinte, aos vinte e dois anos, já com saudades deteres tido dezoito, e mal sabendo então o que te espera-va: todo esse estúpido calvário de exames e mais exames,de provas e mais provas (...) para te guindares aos pínca-ros da Pediatria, pouco a pouco trocando o teu efêmeroviço de moreninha por essa cor de azeitona engelhada,para não falar já na tua secreta renúncia a vires algumavez a ter filhos, ou com receio do pai que lhes caberia emsorte, ou a fim de melhor cumprires a tua missão de mãedos filhos dos outros, de mãe dos teus alunos, dos teusassistentes, do teu próprio marido.(A.F. p.38/39)

O interesse sexual arrefeceu mas restou um grandecompanheirismo, afeto, e respeito pela figura humana da esposa. Os casosamorosos se sucedem. O amor-loucura com a brasileira Xô leva-o a fugirpara Roma e lá ficar sem dar notícias. A esposa, algum tempo depois, vaiprocurá-lo em Roma. Encontram-se e voltam a Portugal juntos, como se a“mãe” tivesse lá ido para resgatar o filho de suas loucuras.

Sucedem-se os muitos casos e aventuras amorosas com AnaDora, Elvira, Isabelinha, Octaviana, Úrsula, “singelo A, E, I, O, U do maualuno que sou, repetente e relapso incorrigível, cabulão que nunca passada primeiríssima página da cartilha” (A. F., p.87). Fica patente a impossibili-dade de uma relação mais duradoura. Decorre daí sua tese sobre as mulhe-res que existem (a esposa, a Y) e as mulheres que só se mostram presentes(as outras todas no passado e a ZU, filha da “mulher a dias” no presente).

Mas tu, Xô, tu é que foste, aqui há coisa de vinte anos, agrande pedra de toque, a terrível exemplificação do meusingular comportamento diante das mulheres que ´exis-tem´ e das que se limitam, pelo contrário, a tão-só semostrarem presentes´.

E aqui tens, ao fim destes anos todos, a razão ou uma dasrazões, Xô, por que tão miseravelmente bati em retiradaao chegarmos a Roma, depois daquelas esplendorosastrês semanas passadas em Amalfi. (A.F. p. 87)

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A busca incessante, a insatisfação e o enfado no relacionamen-to com as mulheres vão sublinhando o comportamento do narrador/perso-nagem, que se recusa à acomodação. É o artista em busca da emoção e dabeleza, que se renova, se esgota e torna a recomeçar. Procura, assim, na arte(escultura) e na mulher, a beleza que se configura nas formas e, no corpo,elementos de ligação entre o homem, a mulher e a arte.

A Y, no entanto destaca-se do abecedário das mulheres de suavida, representando a “Beleza”, a doação, a completude sexual, a protago-nista e parceira de um “amor feliz”.

O amor que emerge sublevando preconceitos, interesses mes-quinhos ou menores, acima e além do cotidiano, não se rende às exigênciasmenores. A Y surge como uma metáfora da perfeição, superando lugarescomuns e necessidades diárias do homem comum e tributável. Estranha,diferente, cosmopolita, “em parte estrangeira” marcada por um discursoeivado de estrangeirismos, a Y destaca-se da sociedade que a cerca.

É ela que o escolhe, como o escolheu a Arte, para ser o seueleito, pagando para isso o preço exigido da clandestinidade, dodesajustamento, da busca essencial do que é invisível aos olhos, e que sótransparece na criação artística.

A Y é definida através de substantivos, sublinhando valoresnocionais, definitivos, sem a superficialidade de adjetivos caracterizadores.É a essência, o que realmente importa, a chave para sua compreensão:

Beleza; simplicidade; sensibilidade; sensualidade; inte-ligência. E inteligência mais profunda, bastante mais vivado que a sua discrição deixaria supor.

Acompanhando tudo isto (...) aquele irresistível pendorpara o sussurro, o murmúrio, o segredo, a confidência,situando-se muitas vezes na fronteira indecisa entre osilêncio e a palavra. (A.F. p. 41)

O seu espaço é o atelier - onde se encontram ambos, a Y e opersonagem/narrador - aberto para o céu, aberto para o rio, “sumido nasentranhas da terra”, longe dos jornais e da TV. É, por excelência, o lugardevido e próprio da arte, da realização pessoal, da busca da Beleza e doideal de perfeição.

Síntese da Beleza, da completude do homem/artista, esfinge im-possível de ser decifrada pelo diapasão comum de outras mulheres, a Yrepresenta a conquista da Arte, sempre contraditória, oferecendo-se e ne-

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gando-se, explicando-se inexplicável em seus comportamentos e atos,onipresente sempre nos atos e pensamentos do narrador.

Como se orgulho me importasse! O que importa é a lumi-nosa plenitude que a Y trouxe à minha vida, numa alturaem que eu já não esperava, por parte das mulheres, senãoesses fogachos e admiração com que elas próprias se ilu-dem, ou se pretendem promover na opinião dos outros.Isto para não falar de favores mais ou menos venais.

Da parte da Y, além de um desinteresse absoluto o mínimode concessões ao odioso despotismo do tempo.” (A.F. p.14)

Na página final do romance, a constatação do amálgama Y/Bele-za, conotando a possibilidade de transcender a imanência, de “pairar acimado mundo” pela posse, pelo contato e pelo amor à Beleza.

Mulher, Beleza, Arte fundem-se na figura da Y, indecifrável,acima e além dos padróes convencionais, realização sempre almejada, ain-da que fugidia.

Ó minha bela Câncer, com ascendente em Escorpião, quefigura contraditória faço eu ao pé de ti, sempre a oscilarentre ímpetos de Touro e indecisões de Peixes! Tu, Água eAgua: que fluida! Eu, Terra e Água: quantas vezes a lamaa espreitar-me.

Pergunto a mim próprio se o seu amigo terá razão: neu-rótica a Y? Ou até psicótica? Se assim for, poderei acasogostar menos dela? Não será também psicótica a pró-pria Beleza? Não será antes psicótico o amor da Beleza?Mas só a Beleza e o amor da Beleza, por mais psicóticosque sejam ou mais fora de moda que pareçam, conseguemafinal empolgar-me e fazer-me pairar acima do mundo.(A.F. p. 299)

Outras personagens femininas são enfocadas, como a ridículaLídia/Laurentina, caso fugaz da mocidade e a ZU, filha da diarista Floripes,vulgar, venal, fazendo do sexo, uma arma para prender, enredar, conseguirpresentes e vantagens. A primeira atua como contraponto na construçãoda esposa - a Sra. Doutora, quando ainda estudante de medicina - idealis-ta, apaixonada em contraste com a vulgaridade de Laurentina, ironicamen-te apelidada de Lídia, como a lírica pastora de R.Reis. A ZU, por outrolado, serve de contraponto à caracterização da Y. Frequenta o mesmo

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atelier, mas a hipocrisia, o jogo insinuante e matreiro, a cobiça por presen-tes e vantagens materiais, a participação num conluio para prejudicá-lo edestruir seu casamento - ela era a autora das cartas anônimas que acabampor provocar uma ameaça de infarto na esposa - vão sublinhando as dife-renças abissais entre seu caráter e atos com os da própria Y.

O relacionamento do escultor (que se chama Fernão, nome rara-mente mencionado) com as mulheres - com os diversos e variados tipos de´amor´ atualizados em sua trajetória vital - constitui a linha fulcral da açãoromanesca. É a ausência da mãe, já viúva, mais preocupada com a suafrustrada carreira de cantora lírica e seu segundo casamento do que com ofilho; é o amor da esposa e agora, de algum modo, a “maternal proteção”que lhe faltou na infância; é a personagem-confidente, poeta e artista, se-melhante a ele, amiga apenas, com a qual vai construir sua teoria sobre oamor-feliz, e, principalmente, destinatária, juntamente com o leitor-implícito,da longa narrativa confessional que é a essência do próprio romance; sãoos amores efêmeros de muitas mulheres como Lídia/Laurentina, Xô, Zuentre várias outras; é o “amor-feliz” com a Y, completude existencial dohomem/artista, relações que se concretizam no desenrolar da diegese, com-pondo a trama ficcional do romance.

Personagens masculinos, de fundamental importância no de-senrolar da narrativa, sobressaem-se apenas dois: o Niassa e o escritorDavid, “com o seu inseparável cachimbo”.

O Niassa representa a rebeldia estudantil, a juventude, a boemiae o desajustamento social do artista. É o contraponto do personagem/narrador que, antigo colega e agora escultor de sucesso, encara ironica-mente seu “talento” vendo antes um trabalho inteligente de “marketing”,que o Niassa não teve oportunidade de conseguir, cumprindo ele sim, a sinado artista, do “gauche” que vive esquecido e morre sem ter conseguido oreconhecimento, merecido ou não. Sua morte propicia o re-encontro deFernão e David, revelando-nos afinidades de amigos comuns, com posi-ções ideológico-culturais semelhantes.

O poeta David, amante da personagem/confidente, é a presen-ça física do próprio autor - David Mourão-Ferreira -, personificado notexto ficcional. Relações de semelhança entre os fatos reais que marcam avida do autor e os fatos ficcionais que caracterizam esse personagem -“de secundaríssima importância” no dizer do narrador - providenciam essaidentificação. É através dos diálogos entre David e o narrador/protago-nista que se constrói um metatexto crítico sobre o fazer literário, consta-tando-se a tematização da construção do romance no próprio romance.

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Abre-se, consequentemente, um espaço privilegiado para oleitor que vai sublinhando e preenchendo os vazios do texto, viabilizandoaproximações e conotações entre os diversos relacionamentos que seconcretizam na trama ficcional. A persongem-confidente, interlocutora dodiálogo é, por seu lado, a presença física do leitor virtual, tornado narratário,e parceiro do narrador. O romance, como já dissemos, revela-se como umlongo diálogo com um “tu” “in absentia” mas personificado em uma daspersonagens ficcionais. Percebe-se claramente este amálgama em passa-gens diversas do texto, onde fica patente que o narrador conta sua histó-ria, dependendo diretamente do contraponto produtivo da construção dotexto através do ato da leitura. Assim, a polissemia do contar providenciasignificações as mais diversas, propiciando múltiplas interpretações:

“Mas conte comigo. E conte-me tudo.Engraçado: contar a alguém, contar com alguém.Você insiste”

Tem de contar comigo. Tem que contar-me tudo. Porqueela conta muito na sua vidaMais engraçado ainda: tudo é contar” (A.F. p.228)

A polissemia do significante contar, empregado com três signi-ficados diversos sublinha a importância do interlocutor, do parceiro dodiálogo confessional, destinatário da mensagem e do próprio texto ficcional.

Temos assim, no plano da enunciação, a marca indelével daambiguidade que torna o discurso do narrador operante, funcional e alici-ante. O leitor participa da narrativa pois os fatos lhe são revelados emsimultaneidade e contiguidade, situando-se no espaço dramático do texto enão no tempo, permitindo o diálogo das personagens com os seus duplos,através de discursos reveladores e sutis.

3.3 - O repertório ficcional e os limites de uma época.

O repertório de Um Amor Feliz providencia a construção de umasituação-quadro - contexto em que se compreende o próprio texto -, apoian-do-se na ambiguidade do discurso dialógico, na ambiguidade diegética e naintertextualidade. O romance é uma longa fala do narrador-personagem, es-tando implícita, no discurso dialógico do narrador, a réplica do outro. Aambiguidade diegética fundamenta-se nas focalizações de pessoas diversassobre os mesmos fatos, transformando-se personagens e espaços em signosideológicos que balizam as intersecções entre o mundo da essência e o mun-

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do da aparência, onde se debate o eu-narrado, personagem protagonistada trama ficcional. A intertextualidade realiza-se pelo entrecruzamentodos discursos de diferentes camadas sociais - pluridiscursividade - e pe-las inserções de textos literários - versos, poemas, citações e alusões -que aparecem com novo sentido, contextualizados pela utilização da iro-nia e da paródia.

O jogo de dualidades, que se estabelece entre o narrador-prota-gonista e a personagem-confidente, permite que a figura de um personagemsecundário - o escritor David, amante da personagem-confidente (calcadocomo já apontamos no próprio autor David Mourão-Ferreira) seja criticado,providenciando uma espécie de “mea culpa” do autor implícito - de quem onarrador funciona como um “alter ego” - e possibilitando uma configuraçãodo espaço sócio-ideológico onde se desenrola a diegese ficcional. O hori-zonte problemático de uma época, o contexto onde se compreende o pró-prio texto vai tendo seus contornos definidos, possibilitando a fusão dehorizontes do emissor e do receptor da mensagem, constituindo-se no“humus” sócio-cultural onde se inserem as personagens.

Depois de 25 de Abril, com aquela sina de lhe terem cabi-do, como se diz, umas quantas responsabilidades políti-cas (quem as não teve?, quem as teve de maneira respon-sável?), dificilmente lhe perdoei, com este meu tempera-mento de anarca, tê-lo visto para aí misturado, à ilhargade pavõezinhos mais recentes, com uma frandulagem defalhados, de ambiciosos e de charlatães, que a gente jáconhecia de ginjeira há quase trinta anos, que já desdeessa altura não poderia tomar a sério, e que ele tinhamesmo obrigação de avaliar muito melhor do que eu. Umdia, em nome de um dos tais (...) até caiu na esparrela deme convidar para já não sei que almoço ou jantar ´ofici-al´, que reuniria a fina flor da ´intelligentizia´ lusa, e emque tive, como é evidente, o grandíssimo gosto de nãopôr os pés. (A.F., p. 77)

Configura-se o quadro da sociedade onde se inserem as perso-nagens, em um mundo de relações e inter-relações, providenciando-se umretrato de comportamentos dominantes e suas contradições. Os persona-gens transformam-se em vetores ideológicos, simbolizando diversas pos-turas e cosmovisões no painel da época que no texto se presentifica. ONiassa, artista incompreendido, marginalizado pela sociedade e pelo suces-so, David, poeta bem sucedido, colaborador de uma nova ordem social epor ela decepcionado, o narrador-personagem, Fernão, escultor de sucesso

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contestador e rebelde, inconformado com os estreitos limites do cotidiano,à procura da Beleza e da realização, e todas as personagens femininas per-mitem-nos uma visão caleidoscópica da sociedade contemporânea, questi-onada e modelizada além dos seus próprios limites.

3.3.1 - Dialogismo e intertextualidade, pluridiscursividade e polifonia

Backhtin concebe todo o discurso como um diálogo, afirmandoque não há enunciado fora de suas relações com outros enunciados, e queessas relações são análogas às relações entre as réplicas de um diálogo.Decorre desse dialogismo a noção de intertextualidade. Essa perspectivapermite a concepção de qualquer texto (notadamente o literário), como umdiálogo de vários registros: do narrador, do autor implícito, do destinatário,do contexto cultural atual ou anterior onde se inserem o texto e o leitor.Realiza-se, portanto, um cruzamento de superfícies textuais, configurando-se uma pluralidade altamente operativa, um sujeito plural em diálogo: diálo-go de discursos, diálogo de sujeitos numa encenação dramática, em quereverberam múltiplos textos.

Todo texto é absorção e transformação de um outro texto, atra-vés de um processo de escrita-leitura, onde uma citação, uma alusão, umaapropriação de um texto reaparece fora de seu contexto primeiro; o “velho”torna-se “novo” numa re-utilização que o descontextualiza, possibilitandouma nova leitura, com uma variada gama de conotações.

Em Um Amor Feliz o discurso do narrador autodiegético, alter-nando-se e entrecruzando-se nos planos do enunciado - tempo do relato,do “presente” diegético onde duas pessoas “realizam” um amor feliz - e daenunciação - tempo do ato de narrar, metatexto sobre a construção do pró-prio romance, onde se inserem o autor implícito e o narratário, estabeleceum jogo de equívocos, com a utilização do discurso indireto livre (com ouso de parênteses, aspas, reticências, inserção de falas no discurso donarrador) e dos discursos diretos, instaurando-se o domínio do dialogismoe da intertextualidade.

La me esquivei o melhor que pude à insitência das duasescanifradas e ambulantes ruínas, garantido-lhes que jáestava a escrever (mentira), como derivativo a outrostrabalhos, essa inocente historieta de art fiction, e queteria muito gosto em brevemente lhes enviar a ambas, sópara elas, claro, e que as não divulgassem, umas cópiasdatilografadas. (Nova mentira, evidentemente: viesse eu

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algum dia a escrever a historieta, quem me dera que a Lite-ratura ma apreciasse, que a Informação ma difundisse! Nofundo não passo de um escritor frustrado) (A.F. p. 23/24)

A utilização do discurso entre parênteses - plano da enunciação,do ato de narrar - estabelece um diálogo entre o leitor e o autor implícito, previs-to pelo próprio texto. A ambiguidade é reforçada pela ironia que o leva a nomearas duas mulheres, provavelmente uma professora de literatura e uma jornalista,já velhas embora influentes, de Literatura e Informação, providenciando umaleitura às avessas, já em pleno domínio do carnavalesco. O que se afirma noplano do enunciado (discurso do narrador autodigético) é negado no plano daenunciação (discurso entre parêntesis).

As personagens do romance são apresentadas também sob o sig-no do duplo. Temos a focalização do narrador autodiegético e a focalização daspróprias personagens, possibilitando-nos a compreensão das suas caracterís-ticas mais marcantes, não somente pelo discurso dialógico do narrador, mas,mimeticamente, pelos seus próprios discursos. Realiza-se a intertextualidadeentre as falas de representantes das mais diversas camadas sociais.

Assim a diarista Floripes identifica-se pela enxurrada de pala-vras que constitui o seu discurso, análogo ao de Laurentina, ambas decamadas sociais mais pobres; a mãe do narrador-personagem pela influên-cia do italiano, seu idioma natal, e a Y pelo uso de inúmeros vocábulosestrangeiros, mostrando não somente seu cosmopolitismo, mas principal-mente a fragmentação do seu eu, sua luta entre a consciência social docerto ou errado, a par da verdade de seu amor, indispensável para “mantê-la viva”. Sua culpa é atenuada pois vive num mundo enredado pela mentirae falsidade. Falando sobre a carta da Y, quando precisa abandonar o país,repentinamente, por problemas familiares, o narrador afirma que:

A transcrição integral seria penosa. Bastará o postscriptum: até porque o sei de cor. Curiosamente (quediria o Freud?), todos os seus curtos períodos começampor ´não´:

Não calcula como custa. Não quero dizer Adieu. Não seise posso dizer Au Revoir. Não me procura (sic). Não meesquece (sic). Não imagina como soube me fazer feliz.Não sei quando volto. Não sei se volto. (A.F., p. 251)

O recurso do sonho é usado para estabelecer inter-relações en-tre as personagens femininas: a Zu, a personagem-confidente, a Y e a suaprópria esposa, providenciando uma polifonia de vozes e visões, que se

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confudem e se sobrepõem, montando uma nova imagem da mulher: mãe,esposa, amante, amiga, numa simbiose altamente conotativa:

Outra vez você (a personagem-confidente) com a cara daZu, com o corpo da Zu. Mas a voz é sua; os cigarros osseus; os jeans também.

Estamos numa sala abobadada, rectangular outrapezoidal, recoberta de estantes em três das paredes,enquanto a quarta - que parece a mais ampla de todas -se mostra constituída por uma única e enorme vidraça.Reina, la fora, a mais completa escuridão: como se fossela fora o fundo do mar. E só o interior da sala se apresen-ta profusamente iluminado. Temos diante de nós um re-trato semelhante ao que fiz da Zu nessa mesma tarde: orosto, no entanto, é o da Y.

´Com estes olhos tinha de acontecer...´ comenta você, emjeito de consolação, com todo o ar de estar a cumpriruma visita de pêsames. ´Mas conte comigo. E conte-metudo´.

Vou a dizer-lho, mas já a minha mulher se encontra juntode nós, incrivelmente mais magra, toda vestida de preto(...) (A.F., p. 228)

A fusão das mulheres de sua vida providencia a constatação daangústia que o assola quando separado da Y. Ela preenche um espaço vaziode sua vida amorosa e sexual, que já foi ocupado pela esposa, agora grandeamiga e companheira, muito mais mãe do que amante. Aliás é sempre sob afocalização de uma figura maternal que sua esposa aparece, constatando-sesua seriedade como profissional e sua generosidade como ser humano, quese refletem em suas falas e diálogos, marcados pela correção e sobriedade.

Mas é a Y, a mulher, a parceira sexual de um “amor feliz” que o põeinquieto e ansioso, trazendo-lhe a completude de um relacionamento intenso,que já não julgava possível. É através do discurso confessional do narradorà personagem-confidente, interlocutora do diálogo ficcional, que podemoscompreender e avaliar os envolvimentos afetivos e sociais, bem como osconflitos interiores, que vão delineando personagens - inclusive o próprionarrador - de grande densidade humana e de complexa textura dramática,disfarçadas sob a aparente futilidade de seus comportamentos.

O romance configura-se, pois, como um longo diálogo “inpraesentia” com uma personagem-confidente, mas, como já apontamos,

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“in absentia” com um tu, narratário onipresente no discurso dialógico,fazendo deste texto uma obra aberta a uma pluralidade de leituras, queadvêm da dinâmica participação do leitor na decodificação da mensagemficcional. A pluridiscursividade e a polifonia refletem-se nos diferentesregistros, nas falas das personagens que transitam entre os diversos pla-nos da narrativa.

Presentificam-se, durante toda a narrativa, dualidades intrín-secas e uma intertextualidade interna - diálogos entre discursos do textocom o próprio texto, que nos permitem conhecer a verdade sob ângulosdiversos. O protagonista, enquanto narrador autodiegético transmite-nosa sua visão do mundo como artista e como ser humano, convivendo comoutros seres à procura da comunicação, da completude amorosa e exis-tencial, marcado pelo signo da rebeldia, que é também a marca de seudiscurso.

3.3.2 - Representação e diegese - Os �pífios anos 80�

Outro aspecto da intertextualidade que se pode constatar nessaobra realiza-se com trechos, citações, versos, poemas, excertos de outrosautores que aparecem inseridos no discurso, constituindo-se em estratégi-as textuais, parte integrante do repertório ficcional.

O sentido do texto repousa, como já vimos, num conjunto deconvenções, tradições, normas históricas e sociais - o “húmus socio-cultu-ral” de onde o texto é proveniente, bem como nas normas selecionadas derealidades extratextuais e alusões literárias. Cria-se um modelo ideológicoverbal do mundo, a partir do repertório do texto que emana do repertório dopróprio autor e deve encontrar certa consonância no repertório do leitor. Éesta interação que vai providenciar a fusão de horizontes de expectativasnuma situação comum, indispensável para a construção do sentido do tex-to pelo leitor.

A utilização de passagens de outros textos - literários, musicais,culturais - num processo intersemiótico, designando, como propõe J.Kristeva, a transposição de um ou vários sistemas de signos em um outro,pode-se fazer de forma sutil, sem marcas definidas, pode ser destacada comaspas, negrito, parênteses, incorporando-se ao texto com um sentido novo,que conserva a “penhora” de seu significado primeiro, mas é enriquecido dediferentes conotações que providenciam a plurisignificação do texto artístico.

Temos, assim, exemplos onde se realizam sutis intersecções coma poesia de Fernando Pessoa, usado como um patrimonio comum, uma

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apropriação cultural decorrente de íntima e frequente convivência:

Juraria, apesar de tudo que nos encontramos ambos aderiva entre o que somos por dentro e o que a nossaépoca nos obriga a fazer. (A.F., p. 19)

e, bem mais adiante:(...) umas velhas casas ainda vagamente senhoriais, unsvelhos portões entreabertos sobre o infinito de coisanenhuma, uns velhos muros cobertos de hera ou de vi-nha virgem, a resistirem, humildemente heróicos, à vul-garidade confrangedora de pelintras e pretensiosasurbanizações, de casinhotas e fabriquetas que os vãocercando.(A.F., p.122)

Observe-se, ainda, nessas citações o predomínio de um registrolírico, que pode ser detectado pela repetição de sintagmas - “velhas casas”,“velhos portões”, “velhos muros” -, ou pela adjetivação impertinente “mu-ros humildemente heróicos”. Configura-se a contaminação do discursoficcional por procedimentos do discurso poético, providenciando-se umespaço de reflexão e introspecção, produzida pelo narrador e presentificadapelo narratário.

Mais adiante, a citação de Fernando Pessoa é marcada peloparêntesis, e re-utilizada como no texto original:

Ao balcão lá para o fundo, apenas uma empregada,absorta e bonitinha, com o ar angélico de quem prefe-ria comer chocolates (´come chocolates, pequena;come chocolates!´) ao fadário de estar ali aviando li-vros (A.F., p. 124)

O efeito que se pretende com esse intertexto, no entanto, é bemdiverso dos dois primeiros. É antes uma ironia complacente, uma crítica aodescaso com a cultura e o pouco interesse em ser alguma coisa mais do que“bonitinha”.

Na mesma página, mais abaixo, confirma-se a intenção irônicado narrador, que busca na referida livraria manuais de astrologia, e é comesse registro pseudo-científico, “mero cotejo de lugares comuns” que sevai tecer o discurso narrativo. Na verdade esse intertexto sublinha a ironiamaior: a perda de tempo de um intelectual em procurar apoio e orientação em“receitas de astrologia”. Ainda que a ironia e a paródia sejam marcas domi-nantes nessas passagens, cria-se uma ambiguidade e um dialogismo entre

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diferentes enfoques que oscilam entre a crença e a descrença. O leitor nãopode ter certezas e diversas variáveis da recepção podem ser aventadas, emrazão da relativização da verdade que se faz presente:

Poupá-la-ei ao suplício de lhe transcrever aqui na ínte-gra o que os autores do referido manual (eram dois) opi-navam acerca dos nativos de Touro com ascendente emPeixes. Mero cotejo de lugares comuns: contatos fáceis enumerosos; propensão para criar climas (?); amor dasartes, da natureza e dos prazeres, mas (sic) sem materia-lismos excessivos; etc., etc. E tudo isso assim rematado:Atracção pela Virgem. Oh, que manual maisdesactualizado! Para não falar já da inexistência de vir-gens no mundo de hoje, Virgem é o signo da minha mu-lher. (A.F., p. 124)

A ação dramática da diegese ficcional centra-se no relacionamen-to amoroso entre o personagem-narrador (Fernão) e a bela Y, instaurando-seo conhecimento mítico do homem e mulher primordiais, parceiros amorososque se completam. No entanto a construção do espaço textual providencia amodelização de um mundo possível calcado na sociedade dos anos 80, “ospífios anos oitenta” que se vão desenhando através das focalizações daspersonagens, da intertextualidade interna (diálogos entre discursos internosao texto) bem como da intertextualidade externa (com textos de outros auto-res) da pluridiscursividade e polifonia que se concretizam numa narrativamarcada como já dissemos, pela ironia e pela paródia, configurando-se acarnavalização do discurso, como um polo de interações, onde se encontramnarrador e narratário, construções estruturais do próprio texto.

3.4 - Os vazios do texto e o papel do leitor

A contingência do texto ficcional - eventualidade, imprecisão -coloca em abalo a interação texto/leitor. Por outro lado é a própria contin-gência de um discurso que assegura o sucesso desta relação pela confi-guração de uma situação comum a um e outro através da fusão de todasituação normativa, uma vez que se constitui como um organismo vivo,um inventário de estímulos, aos quais o leitor responde com as suas dis-posições representativas, no curso de uma leitura ou várias re-leituras.

A validade do familiar aparece suspensa no texto ficcional, pro-videnciando, assim, a criação de vazios na interação emissor/receptor. Es-tes vazios são eficazes pois, colocando em abalo a relação dialógica entre o

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texto e o leitor, produz as codições de reconhecimento de uma situação -quadro, onde texto e leitor atingem a convergência (fusão de horizontes,situação comum). No discurso de ficção constrói-se aquilo que é dado,preliminarmente, na linguagem corrente.

A leitura, como um processo dinâmico relacional, produz a di-versidade de acessos ao texto, possibilitando vários enfoques ou perspec-tivas que desenham, ao final, para o leitor, uma situação global do texto.Essa relação se desdobra enquanto processo de constantes realizações designificados, a cada vez produzidos e modificados pelo leitor.

Assim sendo, a mensagem ficcional é decodificada, não so-mente através do que é dito, mas principalmente pelo não-dito, pelosbrancos e vazios, pelos intervalos que se estabelecem na construção do(s)sentido(s) do texto.

Em Um Amor Feliz a ambiguidade, o jogo de dualidades intrínsecas(enunciação/enunciado, narrador/narratário) o dialogismo e a intertextualidade,a pluridiscursividade e a polifonia são estratégias textuais que, preservando acontingência do texto ficcional, constroem o repertório, providenciando e pre-vendo a possibilidade de uma situação comum com o repertório do leitor.

3.4.1 - O autor implícito e o leitor narratário (Poiesis, Aisthesis eKatharsis)

É preciso, no entanto, sublinhar a funcionalidade e o efeito dojogo que se estabelece entre o narrador, o autor implícito e o leitor narratário,frisando-se que, tanto o último como o segundo, são representados porpersonagens secundários inseridos na própria diegese ficcional. Recupe-rando o que já foi estudado, repetimos que o autor implícito é representadopelo personagem David, calcado sobre o próprio autor, e o leitor-narratárioincorporado pela personagem-confidente, parceira do diálogo, interlocutorado narrador, configurando uma presença material do leitor no texto.

A presença do autor implícito faz-se, portanto, sob a ótica donarrador, através de um personagem secundário, um escritor conceituado,participando ativamente da vida cultural e política do país e amante dapersonagem-confidente. Além dos objetos e descrições que o identificam“inseparável cachimbo”, o sucesso intelectual e artístico, a meia-idade, acalvície - o narrador autodiegético deixa transparecer afinidades reais entreeles, embora, aparentemente, forte antipatia os separasse. São ambos artis-tas afamados (escultor e escritor), planejam fugas e viagens que os libertemdo cotidiano, são homens maduros, amantes de mulheres bem mais jovens,

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e vivem a experiência de um “amor feliz”. Assim sendo, apesar da aparenteinimizade entre eles, o narrador já pressente uma amizade futura:

O mais curioso é que pela primeira vez desde há muitosanos me acontecia VER o seu amigo sem que por elesentisse qualquer espécie de animosidade. Até lhe des-culpava o cachimbo; até estaria pronto a perdoar-lheoutras coisas. Talvez a vossa escapada a Veneza intervi-esse um pouco nessa minha boa vontade.

Mais ainda: que teremos também, em matéria de vida ede ficção (onde acaba uma?, onde começa a outra?),provavelmente a mesma intrínseca disponibilidade. Quemo diria! Talvez estivéssemos afinal predestinados a virum dia a ser amigos.(A.F., p.214/215)

Mais adiante, numa passagem bastante esclarecedora, onarrador-personagem conversa com o escritor David estabelecendo umametanarrativa sobre a elaboração do próprio romance que estamos lendo

(O escritor David)‘Pois então fica sabendo que pela minha parte tenho oprojecto de um romance a respeito de um tipo que és tu,ou mais ou menos tu... Mais ainda: em que tu própriosejas o narrador. Isto é: um romance a teu respeito e con-tado por ti.’

(narrador-personagem)‘Parece complicado, rosnei.

(narrador-personagem)‘E se eu já estivesse a escrever esse mesmo romance?’

(o escritor David)‘Mais divertido ainda’ respondeu.‘Será talvez necessário que tu queiras escrevê-lo paraque eu possa escrevê-lo. O que é o pobre do autor diantedos poderes e dos caprichos do narrador?’

(narrador-personagem)Continuei: ‘Imagina também que até resolvo colocar-te,no romance em causa, como simples comparsa, como per-sonagem de secundaríssima ordem que é o que tu mere-ces?’ (A.F., p. 267/268)

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Percebe-se, nitidamente, que se inter-relacionam seres reais eseres ficcionais - de um lado autor e leitor e de outro narrador, narratário epersonagens - bem como os planos da enunciação e do enunciado, fundin-do-se o real e o ficcional num todo único e orgânico.

Configura-se um “alter-ego” do autor implícito na figura do es-critor David, amante da personagem-confidente, que vem possibilitar uma“visão com”77 o narrador e ao mesmo tempo uma “visão por fora” do autorda narrativa, através de uma criatura ficcional criada por ele mesmo.

Respondendo a uma interpelação do escritor-personagem se-cundário - David, o narrador autodiegético, protagonista de um “amorfeliz” afirma:

´Sabes que mais?´,respondi. Escusas de me estar a levar àcerta. Queres um conselho? Dou-te mesmo uma data deconselhos... Escreve sobre o Savinio, escreve sobre oStendhal: eles merecem. Continua a trabalhar naGulbenkian: a Gulbenkian merece. Continua a dar aulas,continua a fazer conferências: os alunos e os ouvintesmerecem. Continua a escrever umas bonitas poesias emo-cionantes para as meninas emocionadas as pespegaremdepois aos senhores com quem vão para a cama e paraesses mesmos senhores te ficarem então com uma certaraiva: tu mereces... Mas o romance, o romance deixa-opara mim. Cá saberei desv encilhar-me. (A.F., p. 269/270)

Todas as afirmações são calcadas nos fatos, na realidade davida de David Mourão-Ferreira. É o autor chamado para o texto, fundindo-se o factual e o ficcional, através dos diálogos, dos intertextos, da represen-tação do real no ficcional.

O leitor, feito co-autor do texto ficcional vivencia o prazer estéti-co da “Poiesis” decorrente da construção do texto pelo ato da leitura, atu-alizando possíveis combinações de discursos que se alternam, secomplementam e até se contradizem. A consciência receptora, o prazer derenovar sua participação no mundo, de uma nova percepção da essênciahumana através do jogo lúdico do texto, definem a “Aisthesis”. A fruiçãode si no outro, a liberdade de potencializar sua capacidade de julgar e envol-ver-se, de se poder ver refletido na própria diegese ficcional, libertando-sedo cotidiano, configura o prazer efetivo da “katharsis”.

Em Um Amor Feliz encontramos respaldo para vivenciar o pra-zer estético da leitura, em todas as suas acepções, graças à construção de

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um texto complexo, plural onde o espaço do leitor é preservado pelaartisticidade do discurso e pela modelização de um mundo ficcional, ondenos encontramos autores/narradores, personagens e leitores em perma-nente diálogo.

3.4.2 - Texto, Contexto e Metatexto - A invasão da narrativa pelodiscurso

O mundo das aparências revela-se através da paródia simbólica- seres humanos/navios/barcos - e pela ironia das relações sociais falsas esuperficiais e o mundo da essência através das diversas formas de amor. Oamor/sexo, completude biológica e ontológica pelo “amor feliz” com a Y; oamor/respeito, admiração quase filial pela esposa que substituiu a mãe,sempre ausente e o amor/amizade com a personagem confidente. Constrói-se, assim, o contexto onde se desenrolará a diegese ficcional.

As várias perspectivas narrativas, organizadas dialogicamentea partir do uso simultâneo de discursos das mais diversas camadas sociais- mimetizando as falas das personagens - introduzem a polifonia e apluridiscursividade possiblitando várias leituras do texto ficcional nos diá-logos narrador-leitor, narrador-autor, narrador-personagens. A construçãodo romance no romance configura um metatexto crítico, questionando ejustificando o próprio texto num processo de autoreflexibilidade.

Assim sendo, é através do discurso que o narrador nos apre-senta um universo diegético, marcado pela ambiguidade, dialogando com onarratário e alterando, consequentemente o movimento linear da trama.Concretiza-se um jogo entre o eu que narra, o eu que vivencia e o tu quepassa a participar da ação. O domínio absoluto do narrador é quebrado pelodialogismo, pela pluridiscursividade, e pela intertextualidade, apresentan-do-nos personagens inseridas num contexto, modelização do real que sepresentifica no texto ficcional, onde se constata a invasão da narrativa pelodiscurso, neste romance exemplar da ficção portuguesa contemporânea.

A Y, enigmática e misteriosa, simboliza a incógnita da própriaArte, a busca incessante da Beleza, no corpo da mulher e na escultura doartista. O nu da mulher, o corpo erotizado, o objeto do amor funde-se com omundo material, providenciando a cisão entre o viver erótico e sua repre-sentação, como constatamos em sua própria poesia: “no teu corpo existe omundo todo”78. Síntese das mulheres plurais que povoaram e povoam avida do narrador/protagonista, a Y é a personificação da mulher ausente,carne e estátua, perversa e serena, poesia, arte encarnada, mito:

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(...) no longo capítulo da transferência dos corpos, nasmulheres plurais, há só uma: a Ausente. Essa é a grande.Essa é a real. A hipér bole da restrição para a pluralidadedos sentidos, a monovalência sempre exterior, o desafioao percurso, a prova efectiva do drama, o dispositivo daalteridade, a concreta e a arbitrária (...) A Ausente, asempre Ausente, é esse excesso evanescente - onde a som-bra de um poeta/de repente nos abraça? 79

Notas

73 Mikhail Bakhtin - Questões de Literatura e de Estética (A teoria do roman-ce). São Paulo: Editora UNESP/HUCITEC, p. 146.74 Fernando Mendonça - “A renovação do romance português”. O Estadode São Paulo. São Paulo: 11 fev. 1989. Cultura, v.7, n.º 447, p.6.75 As demais obras do autor estão arroladas no Anexo 1 (Ficha Bibliográficade David Mourão-Ferreira)76 David Mourão-Ferreira - Um Amor Feliz. 3a. ed. Lisboa: Editorial Presença,1987 (p. 16).Todas as citações do romance no presente estudo serão dessa mesma edi-ção, sendo indicada pela sigla A.F., seguida do número da(s) página(s).77 Jean Pouillon - O tempo no romance. São Paulo: Cultrix/Edusp (1974). Oautor desenvolve os conceitos de “visão com”, “visão por fora” e “visãopor detrás”.78 A Obra Poética I - Lisboa: Livraria Bertrand, 1980, p. 241.79 Maria da Glória Padrão - “Uma eleição” In Letras e Letras. Ano I, no. 8, 01julho de 1988, p. 10.

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O leitor-organizador e a pluralidade das narrativas em História doCerco de Lisboa. A montagem do texto pelo leitor.

Graças a este modo de conceber o tempo histórico -projectando-o em todas as direções -, autorizo-me a pen-sar que o meu trabalho literário, no campo do romance,produzirá uma espécie de jogo contínuo em que o leitorparticipa directamente, por meio de uma sistemática pro-vocação que consiste em ser-lhe negado, pela ironia, oque lhe fora dito antes, levando-o a perceber que se vaicriando no seu espírito uma sensação de dispersão damatéria histórica e da matéria ficcional, o que, não sig-nificando desorganização duma e outra, pretende ser umareorganização de ambas.(José Saramago)80-

O leitor de Saramago envolvido pelo jogo dialético entre maté-ria histórica e ficcional, - cada uma envolvendo registros próprios, dis-cursos que procuram mimetizar uma adequação à linguagem da épocahistórica (sec. XII), à linguagem científica da História, à linguagem doromance histórico tradicional e ainda à linguagem cotidiana da açãoficcional -, vê-se obrigado a organizar uma pluralidade de narrativas, bus-cando a significação da obra através de significados diversos, oferecidospelas estruturas de apoio do texto na sua multiplicidade caleidoscópica.

A montagem do texto obriga o leitor a percorrer a narrativa, nasenda de um narrador complexo, que não apresenta uma voz única mas,bem ao contrário, é substituível, parece ter sempre a capacidade de setransmutar em outro, aderindo a um ou outro personagem, cedendo-lhesnão só a focalização mas até mesmo a própria voz, assumindo-se comouma pessoa coletiva e levando o leitor-narratário a se sentir identificadocom esse narrador que, de um modo ou de outro, aparece como uma cons-tante ao longo da narrativa.

A re-leitura das raízes nacionais, através da incorporação nodiscurso ficcional, de ecos da narrativa histórica do séc. XII e do romancehistórico tradicional, sublinha o caráter essencialmente português da

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obra, falando de gente concreta, habitantes de um Portugal de ontem ede hoje. A abertura para a auto-referencialidade - com a construção doromance no próprio romance, o experimentalismo, a multi-focalização, areflexão sobre valores ideológicos e estéticos que sublinham a escriturado texto - imprime a marca do universal, configurando-se o projeto esté-tico do autor, tanto no esforço de superação de premissas persistentesdo realismo/naturalismo, quanto na busca de uma saída para osubjetivismo exacerbado, que se faz presente em grande parte da ficçãocontemporânea.

Aflora como implacável necessidade, a inevitabilidade de con-frontar, a partir da ficção, o mundo dos comportamentos da sociedadeportuguesa dos primórdios (séc. XII), em sua época de formação, aosnossos dias (séc XX), quando transcorre a ação principal da primeiranarrativa. O cenário histórico é totalmente diverso, mas o cenário huma-no é, mais ou menos, o mesmo. A conquista e a realização do amor entreMogueine e Ouroana, às portas da cidade dominada pelos mouros, eentre Raimundo e Maria Sara, às portas da indiferença e intolerância deuma cidade dominada pelos livros - mimetizada pela própria editora -equivalem-se e repetem-se. A alteração da visão da História permitereativar, dinamicamente, a comparação entre o passado histórico e opresente. É possível refletir sobre o Portugal de hoje, a partir da recons-trução da História, superando a asfixia dos mitos tradicionais, sem osquais se parecia impossível viver, possibilitando assim, a eclosão deuma nova verdade, como se fosse possível resgatar pela ficção maisverdades do que pelo próprio real.

O leitor sente-se imerso na complexidade de um romanceplural, com narrativas organizadas como círculos concêntricos irregu-lares, que se tocam e interagem em suas construções de sentido, fun-dindo História e ficção. Vê-se inserido num labirinto esfíngico e élevado à aventura da concretização do texto ficcional sob a égide da“poiesis”, a comum montagem do texto entre o polo da construção -criação pelo autor - e da re-construção - presentificação do texto peloato da leitura.

Seria esse procedimento ímpar na obra de Saramago? Signifi-ca essa História do Cerco de Lisboa um novo caminho ou uma conti-nuidade na obra do autor? Para que possamos compreendê-la em suaabragência, necessário se torna ressaltar o itinerário ficcional de JoséSaramago, situando o texto que ora analisamos, no contexto de outrasobras, ideologias e procedimentos estético- ficcionais que marcam seupercurso literário.

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4.1 - Localização do romance na obra do autor.

Recordo-lho que os revisores são gente sóbria, já virammuito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho eu, éde história, Assim realmente o designariam segundo aclassificação tradicional dos gêneros, porém, não sendopropósito meu apontar outras contradições, em minhadiscreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida,é literatura, A história também, A história sobretudo, semquerer ofender, (...)

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O senhor doutor é um humorista de finíssimo espírito,cultiva magistralmente a ironia, chego a perguntar-mecomo se dedicou à história, sendo ela grave e profundaciência, Sou irônico apenas na vida real, Bem me queriaa mim parecer que a história não é vida real, literatura,sim, e nada mais, Mais a história foi vida real no tempoem que ainda não poderia chamar-se lhe história, (...)81

História do Cerco de Lisboa é um romance de maturidade, se-gundo alguns críticos talvez a melhor obra de Saramago, que, embora deconstrução complexa, revela uma simplificação da linguagem, que a tornamais acessível a um público mais numeroso. Extremamente inventivo, oautor manipula com maestria o jogo temporal estruturado, na sobreposiçãode três planos narrativos: a narrativa da História do Cerco de Lisboa escri-to por José Saramago, a narrativa do romance histórico de mesmo nome,escrito pelo Sr. Doutor, e a narrativa de um texto ficcional, também deidêntico nome, decalcado no texto histórico, negando um fato real, e escritopelo revisor Raimundo Silva, personagem principal da primeira narrativa.

José Saramago sobressai-se, dentre os mais representativos au-tores da ficção portuguesa atual, pela sua narrativa densa e complexa, ondeafloram contínuas e diversas possibilidades de sentido e ação, atraindo oleitor para dentro do texto, partícipe da co-apropriação de fatos históricos -realidade extra-textual - pela própria trama. Recria-se o mundo ficcional atra-vés da revitalização de sentidos e da construção textual, fundada na produti-vidade de intertextos, onde o velho aparece com um novo sentido. O crivocrítico da ironia, a subversão de valores tradicionais, a valorização do femini-no, o resgate de potenciais personagens “inferiores” da História/história,providenciam o processo de construção da verdade, posta a nu e recontadapelo texto ficcional.

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Nascido há 66 anos em Azinhaga, Concelho de Santarém,Saramago veio muito novo para Lisboa, onde cursou a escola até os 17anos, tendo terminado, por razões financeiras, apenas o curso secundáriona Escola Industrial Afonso Domingues, em Xabregas, onde começou a seinteressar por literatura. Trabalhou cerca de dois anos numa serralheriamecânica, que era o curso em que se formara, foi desenhista, empregado nocomércio e numa editora - Estúdios Cor - que dirigiu literariamente e ondecomeçou a viver dos livros e para os livros. Como jornalista co-dirigiu oDiário de Notícias e foi colaborador de Seara Nova, mantendo colabora-ção na revista Status do Brasil.

Escreveu seu primeiro livro em 1947, aos 25 anos - Terra comPecado - de cunho acentuadamente naturalista, apagado por ele de sua bio-grafia e do qual, segundo entrevista no Jornal de letras, artes e idéias82, nãoguardou nenhum exemplar, afirmando ainda que “depois desse tive maisduas outras idéias, ainda devem andar por aí uns papéis...”

Volta a publicar apenas em 1966, já com 44 anos, Os poemaspossíveis e Provavelmente Alegria em 1970, não se tendo encontrado napoesia e, considerando-se, apesar da qualidade de alguns de seus poemas,como um poeta apenas razoável, chegando a conclusão que essa não era a“sua forma”.

Escreveu contos e crônicas, em textos que se constituem emembriões de tramas novelescas, com fragmentos de grande riqueza diegética,publicados em Deste Mundo e do outro (1971) e em A Bagagem do Viajante(1973). O Ano de 1993 apresenta-se como uma obra de instigante estruturaversicular, mas com uma organização semântica de tipo narrativo, revelan-do já a recusa do autor em se enquadrar nos moldes narrativos dominantes.

Manual de Pintura e Caligrafia (1977) segundo Maria AlziraSeixo83 “se debate tematicamente (e só tematicamente, a meu ver, o que lhediminui singularmente o alcance) entre veios de plurissignificação como oduplo, o retrato, a máscara, a interrogação da identidade e da cópia, aaglutinação das diferenças e uma linearização narrativa, que procura assu-mir tais veios como pontos de partida para uma reflexão sobre a função e osefeitos da escrita, espécie de harmonização viva que contraria uma basemimética e especular como a do desenho, ou da pintura (no “especular”começa no entanto já toda a história de autoquestionação do sentido deli-neado, a traço ou a sema, da imagem atraiçoada por diversificações de sen-tidos ou pela própria incapacidade de fidelidade do artista(...)”.

Sua publicação seguinte é um livro de contos, Objeto Quase,onde aflora uma narrativa perfeita, lapidar, que vai desnudando um mundo

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de aparências na fragmentação e no vazio, no excesso e no engano que serevelam em alegorias configuradas no nível simbólico, entre a referênciametonímica e a analogia metafórica. Utilizando-se de vários procedimentosdo fantástico, os contos problematizam o tema do labirinto: labirinto dacidade, da viagem circular, da ideologia absurda, da identidade e até dadestruição do próprio homem pelo objeto que o oprime, denunciando abrutalidade de certos costumes e até mesmo a desumanização e a morte dohomem num mundo quase objeto. O fantástico e o absurdo são renovadosem seus processos construtivos, onde a minúcia e a lógica do encadeamen-to são trabalhados com maestria, contextualizados no amplo quadro cultu-ral e sócio-econômico de nossos dias.

Levantado do Chão (1980) é seu primeiro romance de grandeêxito, agraciado com o “Prêmio Cidade de Lisboa” - 1981, onde se desenvol-ve a saga de uma família de trabalhadores rurais, (os Mau-Tempo) da regiãodo Alentejo, sul de Portugal, enfocada em três gerações que se sucedemdesde o início do século, até logo após a revolução de 25 de abril.

Aproveitando-se de acontecimentos históricos de mais de meioséculo atrás, o romance apresenta-se como um quadro da opressão de tra-balhadores rurais pela burguesia fundiária, compondo, no entretecer davida dos “Mau Tempo”, uma painel da própria história portuguesa,modelizada sob o registro ficcional.

A aproximação Saramago/Neo-realismo deve ser vista com bas-tante cuidado. É preciso atentar para o fato que, embora a ideologia neo-realista esteja presente na diegese ficcional - uma vez que se fundamenta naproblemática social da vida no campo, com a oposição de opressores eoprimidos e a utilização de personagens-grupo - por outro lado, a constru-ção de um discurso peculiar, marcado pelo uso da ironia e do fantástico epelas mudanças constantes de focalização, providencia um distanciamentoda estética neo-realista. Podemos constatá-lo pelo acentuado investimentodo autor no ficcional, fazendo surgir a figura do narrador/contador de histó-rias que se permite julgar, comentar e sublinhar os fatos e idéias, pouco apouco assumidos por focalizações das próprias personagens, transforma-das, ao final do romance, em narradores de sua própria história.

Os deslocamentos temporais, funcionalmente organizados - jogotemporal - providenciam a fusão do passado e presente, sublinhando amarca de intemporalidade e permanência do latifúndio, com sua estruturade dominação, que se vai desvelando em anos de opressão e luta.

Saramago, embora ideologicamente identificado com o neo-rea-lismo, realiza uma revisão de suas propostas, através do inteligente inves-

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timento nas potencialidades ficcionais do discurso, com a valorização daliterariedade e artisticidade do texto, ficcionando a trama sem compromis-sos imediatos com o factual e não deslizando nunca para o panfletário,ainda que se utilize de um linguagem marcada pelo registro da luta do cam-po, possibilitando aos leitores, os mais diversos, maior acesso ao texto.

A dessacralização de mitos, a contraposição ao nacionalismopassadista, a ficcionalização de fatos e heróis do passado são responsá-veis pela imagem desmitificada de Camões, personagem central da peçaQue farei eu com este livro (1980), onde a figura humana do poeta, seusofrimento, sua vaidade e humilhação afloram no cotidiano, nos avessosdo sucesso, na luta pela sobrevivência, onde se encontram juntos escrito-res de ontem e de hoje.

Memorial do Convento (1982) realiza uma co-apropriação dosfatos reais, ligados a história nacional, reconstruindo o passado através daficção. A problematização da natureza do processo histórico, a fragilizaçãodas fronteiras entre história e ficção permitem a re-criação do mundo atravésdos sinuosos caminhos da construção textual, revitalizando sentidos e res-gatando a vida humana, através de personagens secundários da história.

O romance atualiza uma visão dialética da convivência entre ostempos, onde passado e presente se interpenetram e se redimensionam, toca-dos pela cosmovisão carnavalesca, instalando-se o choque entre o oficial e onão-oficial, entre uma pseudo-elite (nobreza e clero) e o povo, entre o sagradoe o profano. Os momentos históricos são revisitados pela desmitificação dosheróis, pelo questionamento do caráter ideológico da história positivista, queignora e silencia a verdade dos relacionamentos humanos, esmagados pelasnoções abstratas de pátria, nação, e pela glória, sempre lembrada, das con-quistas miríficas que marcam o imaginário português.

As personagens vivem em tensão entre espaços que se opõementre o oficial e o clandestino: um rei - D. João V - que quer “comprar” umherdeiro e “comprar o céu” construindo um fabuloso e majestoso conventoem Mafra (sec. XVIII); um padre - Bartolomeu de Gusmão - que deseja voarem sua “passarola”, desafiando a Inquisição, em permanente alerta e con-tradição entre seus atos e os dogmas religiosos que deveria acatar; umsoldado maneta - Baltazar Setesóis - que após a guerra vai trabalhar emduas construções: a construção do convento, onde vende seu suor e parteda própria vida e a passarola, sonho comum de se libertar do chão e de simesmo; uma mulher - Blimunda Sete Luas - que vê os homens por dentro epode atrair suas vontades para reuní-las e prendê-las numa bola de cristal,único modo de se fazer voar a passarola, convivem e se inter-relacionamnum terreno de sedução, fantasia e realidade.

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O discurso ficcional, marcado por um intenso dialogismo, realizauma síntese dialética entre contrários pelo uso da ironia, da paródia, atuali-zando-se a figura do narrador, marcado pelo signo do duplo e pela alteridade.De um lado temos um narrador que, à imagem de um literato do sec. XVIII,utiliza uma linguagem marcada pelo barroco, onde palavra puxa palavra en-volvendo o leitor em sua magia e, de outro lado, temos uma segunda voz,implícita no próprio discurso, como um contraponto irônico que, parodiandoe solapando afirmativas aparentemente “sérias e graves” propicia uma se-gunda leitura, através da cosmovisão carnavalesca.

Em 1984, a publicação de O ano da Morte de Ricardo Reis vemcomprovar as preocupações do autor com um projeto estético, que temcomo base um diálogo com a literatura portuguesa, privilegiando aintertextualidade como sua estratégia por excelência.

A reconstrução ficcional de um heterônimo pessoano - RicardoReis, ele próprio um ser ficcional - inserido na sociedade portuguesasalazarista, providencia uma focalização transfiguradora, onde se interpõema realidade histórica, através de notícias, de jornais, pronunciamentos polí-ticos, anúncios publicitários e a visão poética de um ser ficcional, emdescompasso com o ambiente que o cerca.

História do Cerco de Lisboa, publicada como já dissemos, em1989, sintetiza procedimentos e estratégias textuais que já estavam presen-tes, de um modo ou de outro, em obras anteriores, como: a articulação dodiálogo, a utilização de certo tipo de pontuação , o jogo entre discursodireto e indireto, a alteridade do narrador, a intertextualidade, o dialogismoe a carnavalização. Ainda que privilegiando uma maior limpidez narrativa,um discurso menos marcado pelo barroco como em Memorial do Conven-to, o romance apresenta uma estrutura narrativa complexa, com planos nar-rativos distintos, providenciando um jogo com o tempo - fusão de segmen-tos de diferentes épocas e níveis diegéticos - de fundamental importânciapara a constituição de sentido do texto.

Saramago publicou ainda O Evangelho segundo Jesus Cris-to 84, que conquistou o Grande Prêmio da Associação Portuguesa de Escri-tores (APE) de 1991, onde, realizando uma re-leitura dos textos bíblicos,propõe uma nova visão humanizada de Jesus Cristo, bem como a visão deDeus e do Diabo, o bem e o mal, como ângulos diversos de uma mesmadominação.

A intersecção de intertextos literários, históricos e bíblicos vaipropiciar a invenção e re-invenção de sujeitos históricos/sujeitos ficcionais,num texto composto de outros textos, aparecendo a verdade como uma

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incógnita, que se revela apenas no desenrolar da própria diegese ficcional.O presente simbólico e indicial do sofrimento de Jesus e os intertextospressupõem releituras dos textos bíblicos, especialmente dos Evange-lhos, para com eles dialogar. A utilização de provérbios, chavões, lugarescomuns e o próprio processo construtor e desconstrutor da linguagem, odiscurso carnavalizado, a dessacralização do registro bíblico vão propiciara emergência da plurisignificação desse texto, onde o leitor está encarrega-do de estabelecer nexos e relações, ocupando os vazios, o não-dito concre-tizando-se diversas leituras da mesma obra.

História do Cerco de Lisboa pode ser visto como uma síntesedo projeto estético de José Saramago, marcado por uma complexa constru-ção de planos narrativos, um discurso envolvente e extremamente produti-vo e uma intersecção de ideologias, que se confundem e se auto-explicam.Acrescente-se ainda a pluridiscursividade, o dialogismo e aautoreferencialidade, que explica o fazer romance na construção do própriotexto, e justifica-se, plenamente, a escolha dessa obra para uma análise maispormenorizada, onde se objetiva demonstrar o papel do leitor na organiza-ção da narrativa, através da concretização do texto pelo ato da leitura.

4.2 - A produtividade do romance plural

Julgo que se passa o mesmo que aconteceu com oMemorial: se posso dizê-lo assim, tenho simultaneamen-te duas necessidades - a de introduzir uma linguagemque não contradiga aquilo que tem de exprimir, nestecaso o sec. XII, que logre uma certa adequação ao tempo,mas que, por outro lado, essa adequação não seja tãocompleta que se institua como barreira para a compre-ensão total.

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Dado o carácter frustre da linguagem do sec. XII, tãodistante do português que hoje falamos, mais cautelosoeu tinha que ser, para que a barreira à compreensão nãofosse intransponível. Digamos que utilizo uma lingua-gem de hoje com ecos do passado, que permite uma sen-sação de outro lugar e outro tempo, e também por isto, deoutra gente. 85

História do Cerco de Lisboa emerge no contexto da ficçãonarrativa portuguesa como uma obra que reflete o romance contemporâ-

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neo, aparentemente desconexo, mas criando um universo fragmentado, pa-ralelo ao seu próprio discurso. O homem em crise e a sociedade multifacetadasão retratados através de meta-narrativas, intertextos, polifonia de vozes efocalizações levando-nos a constatar a relatividade dos acontecimentos,reservando-se ao leitor o papel de catalisador da narrativa, que se concreti-za através do ato da leitura.

Configuram-se nessa obra três planos narrativos quecorrespondem a três romances que, como já vimos anteriormente, coexis-tem em um mesmo texto: a História do Cerco de Lisboa escrita por JoséSaramago, cujos personagens principais são Raimundo Silva e Maria Sara,revisores de ofício e amantes; a História do Cerco de Lisboa romancehistórico sobre a reconquista de Lisboa aos mouros pelos portugueses,ajudados pelos cruzados, relativo ao fato histórico ocorrido em 1147 - sec.XII, escrito pelo Sr. Doutor e revisto por Raimundo Silva e a História doCerco de Lisboa que está sendo re-escrita por Raimundo Silva que, modifi-cando um fato histórico, parte do pressuposto que os cruzados NÃO ajuda-ram os portugueses na reconquista de Lisboa, e onde emergem como perso-nagens principais o soldado Mogueime e a jovem Ouroana, personagensinferiores da História, guinados à posição de actantes.

A utilização de diferentes registros de linguagem para lograr“uma certa adequação ao tempo”, ou a utilização de uma linguagem cienti-ficamente adequada a um livro de História ou ainda a um romance históricotradicional, faz com que se alternem discursos que mimetizam as épocasaqui modelizadas, com seus personagens característicos e suas ideologiaspróprias. A intertextualidade providencia a produção de um discurso plural,através de interações: de um narrador com outro narrador, de um discursocom outro, de um tempo com outro, possibilitando a coexistência de contra-dições ideológico-culturais do presente e do passado. Várias vozes se fa-zem ouvir e focalizações diversas propõem diferentes ângulos de visãoconfigurando-se uma relativização da verdade e exigindo participação doleitor com suas projeções interpretativas.

Na narrativa primeira, todo capítulo inicial, em discurso diretocom um registro coloquial entre um autor (Sr. Doutor) e seu revisor, coloca-nos, de chofre, em contato com personagens que se revelam através desuas próprias falas, num presente diegético que se atualiza diante de nós:

O Senhor Doutor é um homem prático, moderno, já está aviver no século vinte e dois, Diga-me cá, os outros sinaistambém levam nomes latinos, como o deleatur, Se os le-vam, ou levaram, não sei, não estou habilitado, talvez

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fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam, Nanoite dos tempos, Desculpar-me-á se o contradigo, maseu não empregaria a frase, Calculo que por ser lugar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases fei-tas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças dealmanaque, os rifões e os provérbios, tudo pode apare-cer como novidade, a questão está só em saber manejaradequadamente as palavras que estejam antes e depois.

(H.C.L. p. 13)

Compare-se o registro da citação acima com a apresentação do“almuadem” no segundo capítulo ressaltando-se a objetividade do narradoronisciente e heterodiegético, onde o discurso dialógico providencia umintertexto com a linguagem dos romances históricos tradicionais, como cons-tatamos no trecho abaixo:

Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que apode dar a natureza seria capaz de distinguir no orientedo céu a diferença inicial que separa a noite da madru-gada, o almuadem acordou.

(H.C.L. p.17)

e, duas páginas adiante:A oração é melhor que o sono, Assalatu jay-run min an-Nawn86, para os que nesta língua o entendem, enfim con-cluiu clamando que Alá é o único Deus, La ilaha illallah, mas agora só uma vez que é quanto basta quando setrate de verdades definitivas. A cidade murmura as ora-ções, o sol apontou e ilumina as açoteias, não tarda quenos pátios apareçam os moradores. A almádena está emplena luz. O almuadem é cego.

(H.C.L. p. 19)

Podemos constatar um outro registro, que realiza uma re-leiturada linguagem dos cronistas antigos, especificamente Antonio Brandão:

Não eram de qualidade as coisas que trazia entre mãos oesforçado príncipe D. Afonso Henriques que lhe consen-tissem tomar muito repouso, nem os pensamentos ocupa-dos na grandeza do negócio presente davam lugar a sepoder quietar e tomar alívio

(H.C.L. p. 146)

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Os diferentes registros que se alternam, segundo os fatos, per-sonagens envolvidos e épocas em que ocorrem, nos diversos planos narra-tivos coexistem no texto ficcional, pressupõem diferentes vozes narrativasque se sucedem, se confundem, se apoiam ou se contradizem, configuran-do-se outro tipo de narrador que não tem voz única, é substituível e comple-xo, fundindo história e ficção.

4.2.1 - A montagem do texto e a pluralidade de narrativas. (Enunciaçãoe Enunciado)

A montagem do texto de História do Cerco de Lisboa apoia-senuma pluralidade de narrativas, configurando-se uma teia complexa de pon-tos de vista e posições ideológicas que se confrontam, de relações dialógicasentre consciências várias de personagens, narradores e linguagens que seinter-relacionam, cabendo ao leitor, através da fusão dos horizontes deexpectativa e da leitura do intervalo, a concretização da mensagem ficcional.

Sobrepõem-se e entrecruzam-se três narrativas que fluem simul-taneamente, realizando uma interpenetração do tempo e do espaço, privile-giando descrições de momentos vividos, onde se fundem segmentos tem-porais de diferentes níveis com o espaço físico e psicológico, mesclando-serealidade e ficção.

Temos uma narrativa primeira, partindo de uma situação-limite,um ponto de viragem na vida do revisor Raimundo Silva, homem maduro emetódico que, num ato gratuito e aparentemente incompreensível, insereum NÃO num texto histórico, ao fazer sua revisão, modificando a verdadehistórica e passando de revisor a criador. Este fato vai provocar uma mu-dança radical em sua vida, levando-o a experimentar o amor, embora tardio,por Maria Sara - chefe dos revisores - ultrapassando as barreiras a que elepróprio se confinara.

O livro que está sendo revisado por Raimundo - História doCerco de Lisboa, de autoria do Sr. Doutor - configura-se como umametanarrativa de 2.o grau (narrativa segunda) e, baseando-se em fonteshistóricas, conta o cerco e libertação de Lisboa, ocupada pelos mouros,pelos guerreiros portugueses auxiliados pelos cruzados.

O NÃO inserido neste texto falseia a verdade e dá margem àoutra metanarrativa de 3.o grau (narrativa terceira). O autor desta é o pró-prio revisor - Raimundo Benvindo Silva que, aconselhado pela Dra. MariaSara, de início sua superiora e depois seu caso de amor -, escreve uma novaHistória do Cerco de Lisboa, partindo do pressuposto de que os cruzados

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teriam negado ajuda aos portugueses. Coexistem, nessa nova narrativa,realidade e ficção, na reprodução dos diálogos travados antes e depois dasbatalhas entre o rei e os cruzados, entre as diversas personagens - o enge-nheiro, os soldados, os nobres, destacando-se o caso amoroso do soldadoMogueime e da jovem Ouroana, que sublinha o romance presente deRaimundo e Maria Sara, aos pés da cidade prestes a ser conquistada.

Questionando o discurso, o papel do revisor e do autor, o textoficcional providencia uma interação entre realidade e ficção entre história emito. As personagens de diferentes tempos e espaços são captadas a partirdas aparências exteriores. Os estados de consciência são apresentadosmas não decifrados, cabendo ao leitor o exercício de uma participação cons-ciente, que o exorte a ir um pouco além da página impressa. À primeiraleitura, a obra confunde o leitor que, em lugar da sensação de segurança edomínio - abrigo -, vai experimentar como narratário, juntamente com onarrador e as persongens, a insegurança e a incerteza de realidades flutuan-tes que se interpenetram.

O primeiro capítulo instaura a narrativa primeira - plano daenunciação - centrada no revisor Raimundo Silva, e introduzida por umnarrador heterodiegético que, após as primeiras palavras - “Disse o revi-sor” - cede a voz e a focalização a dois personagens-chave: o revisor e oautor que passam a conduzir a narrativa, instaurando-se nesse diálogo ummetatexto sobre o papel do autor, do revisor e da própria obra narrativa. Oautor do romance histórico cuja revisão está sendo feita, aqui chamado deSr. Doutor, é o parceiro do diálogo com o revisor. A utilização do discursodialogado instaura a ambiguidade, providenciando o espaço do leitor, atra-vés do “não-dito” e dos vazios do texto.

Disse o revisor, sim, o nome deste sinal é deleatur,usamo-lo quando precisamos suprimir e apagar, aprópria palavra o está a dizer, e tanto vale para letrassoltas como para palavras completas, Lembra-me umacobra que se tivesse arrependido no momento de mordera cauda, Bem observado, senhor doutor (...)

(H.C.L. p. 11)

O diálogo entre o autor e o revisor prossegue questionando eexplicando o texto através do discurso irônico, que desvela o real por trásdo fato, realizando um intertexto onde aparecem referências ao fazer artísti-co, aos autores do passado e ao uso de lugares comuns e chavões, compro-vando-se que o velho se torna novo e aparece com novo sentido no texto,

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ordenando-se de modo especial, fundindo linguagens diversas, visões demundo e orientações individuais, constituindo deste modo um “sistemamodelizante secundário que estabelece seu próprio código.”87

Os autores emendam sempre, somos os eternos insatisfei-tos, Nem têm outro remédio, que a perfeição tem exclusivamorada no reino dos céus, mas o emendar dos autores éoutro, problemático, muito diferente deste modo, (...)

(H.C.L. p. 12)

................................................................................................

Certos autores do passado, se os julgarmos por esse seucritério, seriam gente da espécie, revisores magníficos,estou a lembrar-me das provas revistas pelo Balzac, umdeslumbramento pirotécnico de correções e aditamen-tos, o mesmo fazia o nosso Eça doméstico, para que nãofique sem menção um exemplo pátrio, (...)

(H.C.L. p. 12/13)

................................................................................................

(...) os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, osnarizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões eprovérbios, tudo pode aparecer como novidade, a ques-tão está só em saber manejar adequadamente as pala-vras que estejam antes e depois, (...)

(H.C.L. p. 13)

O segundo capítulo introduz, aparentemente, a narrativa histó-rica, - o livro que está sendo revisado - através do discurso objetivo de umnarrador heterodiegético, onisciente, iniciando-se o presente do enunciadoda narrativa do 2.o grau e mudando-se o tempo e espaço da narrativa.

Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que apode dar a natureza seria capaz de distinguir no orientedo céu a diferença inicial que separa a noite da madru-gada, o almuadem acordou. (...) o almuadem não abriuos olhos. Podia continuar deitado algum tempo ainda,enquando o sol, muito devagar, se vinha acercando dohorizonte da terra (...)

(H.C.L. p. 17)

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No desenvolver da narrativa, no entanto, constatamos que aspáginas iniciais do segundo capítulo não foram escritas por ninguém, umavez que o narrador nos informa que “Não o tem descrito assim o historiadorno seu livro”, (p.19) e, explicando o fato, afirma mais adiante:

Importaria saber, isso sim, é quem escreveu o relato da-quele formoso acordar de almuadem na madrugada deLisboa.

..................................................................................................

A resposta surpreendente, é que ninguém escreveu, que,embora pareça que sim, não está escrito, tudo aquilonão foi mais que pensamentos vagos da cabeça do revi-sor enquanto ia lendo e emendando o que escondidamentepassara em falso nas primeiras e segundas provas

(H.C.L. p. 22)

O discurso dialógico do narrador pressupõe a presença dooutro, inserido no próprio texto ficcional. É o leitor tornado narratário naprópria estrutura narrativa, personagem confidente do narrador, que seconfunde com o protagonista da narrativa primeira, o revisor RaimundoSilva, focalizador de sua própria história e autor de um novo livro sobrea História do Cerco de Lisboa, onde se mesclam o real e o ficcional.

O leitor realiza o encadeamento romancesco pelos vários possíveisficcionais que advém dos planos narrativos, fornecidos pelas estruturas deapelo da obra que se sobrepõem na construção do texto plural. Fundem-sehistória e ficção e a miscigenação de registros configura uma refração especu-lar, que o leva a ler além das palavras, na história de ontem a história de hoje.

4.2.2 - O narrador heterodiegético e a focalização múltipla

Conhecemos o narrador que se comporta de um modoimparcial, que vai dizendo escrupulosamente o que acon-tece, conservando sempre a sua própria subjetividadefora dos conflitos de que é espectador. Mas há um outrotipo de narrador, mais complexo, que não tem uma vozúnica; é um narrador substituível, um narrador que oleitor vai reconhecendo como constante ao longo da nar-rativa, mas que algumas vezes lhe causará a estranhaimpressão de ser outro. Digo outro porque ele se colocounum diferente ponto de vista, a partir do qual pode mes-

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mo criticar o ponto de vista do primeiro narrador. Onarrador será também, inesperadamente, um narradorque se assume como pessoa colectiva. Será igualmenteuma voz que não se sabe donde vem e que se recusa adizer quem é, ou usa duma arte maquiavélica que leve oleitor a sentir-se identificado com ele, a ser, de algummodo, ele. E pode, finalmente, mas de um modo nãoexplícito, ser a voz do próprio autor, dado que o autor,capaz de fabricar todos os narradores que entender,não está limitado a saber apenas o que as suaspersonagens sabem, porquanto ele sabe, e não o esque-ce nunca, tudo quanto tiver acontecido depois da vidadelas.88

O narrador “que se assume como pessoa coletiva” é exatamenteo que se apresenta em História do Cerco de Lisboa. O outro inserido nodiscurso narrativo advém dos diferentes pontos de vista, das focalizações,da intertextualidade e da carnavalização que permitem um diálogo entre osnarradores dos diversos planos diegéticos, entre o narrador e as persona-gens, entre narrador e o autor implícito e entre narrador e o narratário, leitorimplícito no texto ficcional.

A narrativa primeira é introduzida por um narradorheterodiegético, e, logo a seguir conduzida pelo diálogo e focalização dedois personagens: o revisor e o Sr. doutor. Configura-se o capítulo inicialcomo uma metanarrativa onde se questionam os papéis do autor e do revi-sor, a construção do romance, as tênues e discutíveis fronteiras entre histó-ria e ficção, a importância da literatura para revelar o que está por detrás dosfatos, os limites de uma época.

A ironia e o humor sublinham o discurso do narrador/narrado-res acarretando duas consequências: o humor leva o narrador a rir de simesmo e a ironia o leva a renunciar a posse da verdade e do sentido,potencializando-se a constitução de novos sentidos e de diferentes ângu-los da verdade, presentificados pelo ato da leitura.

Disse o revisor, sim, o nome deste sinal é deleatur, usamo-lo quando precisamos suprimir e apagar, a própria pala-vra o está a dizer, e tanto vale para letras soltas comopara palavras completas, Lembra-me uma cobra que setivesse arrependido no momento de morder a cauda, Bemobservado, senhor doutor, realmente, por muito agarra-

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dos que estejamos à vida, até uma serpente hesitaria di-ante da eternidade (...).

(H.C.L., p. 11)

As três primeiras palavras do texto “Disse o revisor” coloca-nosdiante de um narrador heterodiegético, como já mencionamos, que logoapós a apresentação de um personagem - o revisor - que depois viremos aconstatar ser o personagem protagonista - cede a voz emissora a dois per-sonagens que dialogam entre si:

Dois personagens assumem a narração através do discurso di-reto, o diálogo entre o revisor e o sr. doutor, mais dramático e envolvente,possibilitando ao leitor situar-se no meio dos acontecimentos, sem o auxíliodo narrador inicial. A narrativa aparentemente prescinde do narrador e seauto-desenvolve objetivamente, criando uma série de ambiguidades e, aomesmo tempo, estabelecendo pressupostos que nortearão todo o desen-volvimento do romance.

Os assuntos discutidos pelo revisor e pelo sr. doutor estabelecemuma metanarrativa, onde se enfoca a instabilidade das fronteiras entre o fictí-cio e o factual, entre os papéis do autor e do revisor, questionando-se o fazerliterário, o papel da literatura, a intertextualidade e o discurso artístico, enfim,a relação história/vida/literatura. A designação das persongens do diálogopelas suas profissões, utilizando-se de substantivos comuns, grafados comminúscula - o revisor e o sr. doutor - possibilitam identificações e muitasconotações. A primeira vista o sr. doutor, autor do livro que está sendo revi-sado, poderia ser visto como um alter-ego do autor implícito, vetor de suacosmovisão autoral. Percebemos, logo a seguir, que a ironia das falas dorevisor possibilita uma dupla leitura de suas afirmações, constituindo-se numavoz condutora que “usa de uma arte maquiavélica” levando assim o leitor “asentir-se identificado com ele, a ser, de algum modo, ele”.

A) Contentemo-nos com a ilusão da semelhança, porém, emverdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir emestilo profético, que o interesse da vida onde sempre es-teve foi nas diferenças, Que tem isso a ver com a revisãotipográfica, Os senhores autores vivem nas alturas, nãogastam o precioso saber em despiciências e insignificân-cias, letras feridas, trocadas, invertidas (...)

(H.C.L. p. 11)

............................................................................................

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Os autores emendam sempre, somos os eternos insatis-feitos

(H.C.L. p. 12)

e mais abaixo, na página seguinte:B) Agora me ocorre que tanto o Eça como o Balzac se senti-

riam os mais felizes dos homens nos tempos de hoje, dian-te de um computador, interpolando, transpondo, recor-rendo linhas, trocando capítulos, E nós, leitores, nuncasaberíamos por que caminhos eles andaram e se perde-ram antes de alcançarem a definitiva forma, se existe talcoisa (...)

(H.C.L. p. 13)

O uso da primeira pessoa do plural (autores/somos eternos in-satisfeitos) no final da citação A e também na citação B - E nós, leitores -providência uma inter-relação entre os papéis de autores e leitores, uma vezque somos todos leitores de Eça e Balzac e todos igualmente humanos noserros cometidos que precisam ser corrigidos e na insatisfação que nos fazalmejar a impossível perfeição. A ironia do “revisor” reduz os srs. autores,“que vivem nas alturas”, a sua dimensão de seres passíveis de erros,desmitificando o papel do escritor, e reduzindo-o à dimensão humana, ho-mem entre homens, tão passível de erro como qualquer de nós.

O diálogo que se desenrola contém, portanto, inseridos nas fa-las das persongens, as vozes condutoras do leitor e do autor, implícitos nometatexto sobre o fazer literário, sobre a interação história/vida real/ ficção,sobre construção do texto composto de intertextos, cuja temática se estru-tura sobre a imagem da sobreposição.

Na noite dos tempos, Desculpar-me-á se o contradigo,mas eu não empregaria a frase, Calculo que por ser lu-gar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frasesfeitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças dealmanaque, os rifões e os provérbios, tudo pode aparecercomo novidade, a questão está só em saber manejar ade-quadamente as palavras que estejam antes e depois.

(H.C.L. p. 13)

Duas páginas adiante, na continuidade do mesmo diálogo:

Recordo-lhe que os revisores são gente sóbria, já virammuito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho eu é

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de história. Assim relamente o designariam segundo aclassificação tradicional dos gêneros, porém, não sendopropósito meu apontar outras contradições, em minhadiscreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida,é literatura, A história também, A história sobretudo, semquerer ofender (...).

(H.C.L. p. 15)

Se a história é literatura, ela também é passível de mudanças,supressões e acréscimos. Pode ser vista ou revista dependendo de óticasdiversas e até mesmo pela omissão ou apagamento de seus autores ourevisores.

Estabelece-se como princípio condutor da significação do texto,a metáfora da rasura, do apagamento [deleatur] que pode rasurar ou apagaraté certas decisões da história. Frisa-se, nesse capítulo inicial, o estatutopassivo do revisor, que se deve negar a intervir no texto.

Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhedisse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histó-rica, Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro doquintal.

................................................................................................

Todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapatei-ro é a mais comum entre os humanos, enfim, só o revisoraprendeu que o trabalho de emendar é o único que nun-ca se acabará no mundo, Tem sentido muitas tentaçõesde sapateiro na revisão do meu livro, A idade traz-nosuma coisa boa que é uma coisa má, acalma-nos, e astentações, mesmo quando são imperiosas, tornam-se me-nos urgentes (...)

(H.C.L. p. 14)

No entanto, por outro lado, insinua-se ou deixa-se em aberto ahipótese desafiadora de que o revisor pode utilizar o deleatur na revisão dahistória e na construção da verdade, uma vez que, sob sua guarda e arbítrio,reside o poder de apagar, de eliminar erros reais ou imaginários ou de cometê-los ele mesmo.

Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou orevisor. *

(H.C.L. p. 16)

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As palavras finais - “suspirou o revisor” vão marcar ou provi-denciar a volta do narrador heterodiegético, que deu início ao texto -”Disseo revisor” e que havia permanecido na obscuridade durante todo o capítu-lo, totalmente conduzido pelo diálogo entre o revisor e o doutor - pontos devista internos, visão com as personagens.

O segundo capítulo, mudando completamente o registro colo-quial do primeiro capítulo, - presente diegético atualizado em diálogos -showing - que providencia um agora dramático, sublinhando e reservandoespaços e vazios a serem ocupados pelo leitor - abre-se com um registroobjetivo, literário, onde o discurso indireto realiza um intertexto com o ro-mance histórico tradicional, marcado pela presença do narrador “objetivo”e onisciente, que conhece tudo aquilo que narra, colocando-se por detrásdas personagens, como demiurgo construtor do texto.

Quando só uma visão mil vezes mais aguda do que apode dar a natureza seria capaz de distinguir no orientedo céu a diferença inicial que separa a noite da madru-gada, a almuadem acordou.

Aparentemente o leitor é agora apenas o espectador dos acon-tecimentos, distanciados dele e do próprio narrador, pela objetividade rea-lista do discurso indireto no plano do enunciado. No entanto, o cruzamentodo plano da enunciação, do presente do ato de narrar, onde a ironia vaisolapando a objetividade e sublinhando focalizações e ponto de vista ide-ológicos do narrador, instaura-se um segundo sentido, providenciando oespaço do leitor, pela ocupação dos brancos do texto, do não-dito do queestá por trás do real.

Segredo, e também prodígio, se não mistérioinstransponível, é a virtude que elas [as huris do paraísode Maomé] têm de refazer a virgindade tão-logo a per-dem, pelos vistos suprema bem-aventurança na vida eter-na, o que definitivamente vem provar que não se acabamcom esta os trabalhos próprios e alheios, outrossim ossofrimentos imerecidos.

(H.C.L. p. 17)

Algumas páginas após, a quebra da veracidade e verossimi-lhança, estatuto de uma ficção que se propõe objetiva e realista na recriaçãode verdades históricas inegáveis, é sutilmente questionada pelo discursoirônico do narrador no plano da enunciação, e totalmente assumida comouma negação das expectativas providenciadas no plano do enunciado:

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Não o tem descrito assim o historiador no seu livro. Ape-nas que o muezim subiu ao minarete e dali convocou osfiéis à oração na mesquita, sem rigores de ocasião, se eramanhã ou meio-dia, ou se estava a pôr-se o sol, porquecertamente, em sua opinião, o miúdo pormenor não inte-ressaria à história, somente que ficasse o leitor sabendoque o autor conhecia das coisas daquele tempo o sufici-ente para fazer delas responsável menção.

(H.C.L. p. 18)

Na páginas seguintes, a narrativa progride com intertextos fre-quentes com crônicas históricas do sec. XII, com os milagres de Ourique,com o milagre da cura das pernas “encolhidas ou atrofiadas do meninoAfonso” - o primeiro referido por diversos cronistas portugueses e o se-gundo, provavelmente invenção e acréscimo - providenciando, através doplano da enunciação, a ironia e os comentários do narrador, que contestaou desmitifica fatos, crenças e mitos, tidos como verdadeiros e aqui questi-onados pela utilização do discurso irônico:

(...) aquele milagre de Ourique, celebérrimo, quandoCristo apareceu ao rei português, e este lhe gritou, en-quanto o exército prostrado no chão orava, Aos infiéis,Senhor, aos infiéis, e não a mim que creio o que podeis,mas Cristo não quis aparecer aos mouros, e foi pena, queem vez da crudelíssima batalha poderíamos, hoje, registarnestes anais a conversão maravilhosa dos cento ecinquenta mil bárbaros que afinal ali perderam a vida,um desperdício de almas de bradar aos céus.

(H.C.L. p. 20)

e quanto ao segundo milagre [a cura das pernas atrofiadas do menino Afon-so por intercessão da Virgem, que apareceu em sonho a D. Egas Moniz], onarrador arremata:

Verdade é que não cumpriu D. Egas precisamente os di-tados da Virgem, que muito explicado ficou ter-lhe elamandado que cavasse, entendemos nós que por suas pró-prias mãos, e vai ele, que fez, deu ordem que outros ca-vassem, os servos da gleba, provavelmente, já naquelaépoca havia destas desigualdades sociais. Agradecemosà Virgem não ser ela melindrosa a pontos de fazer enco-lher outra vez as pernas do menino Afonso (...)

(H.C.L. p. 21)

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O discurso dialógico do narrador prevê o leitor como seuinterlocutor estabelecendo-se, no plano da enunciação, a cosmovisão erepertório do autor implícito, que se vai desvelando ao leitor, providencian-do uma situação comum, indispensável para configurar a fusão dos hori-zontes de expectativas do emissor e do receptor, indispensável para com-preensão da mensagem ficcional. A ironia, a referência às desigualdades so-ciais e à opressão dos poderosos aparecem sublinhando e questionando o“suposto” milagre. Resta ao leitor acreditar ou não, uma vez que o próprionarrador questiona e satiriza as “verdades” que se incube de nos relatar.

Completando a perplexidade do leitor, cada vez mais obrigado acolaborar na montagem da narrativa, o próprio narrador pergunta e responde:

Importaria saber, isso sim, é quem escreveu o relato da-quele formoso acordar de almuadem na madrugada deLisboa, com tal abundância de pormenores realistas quechega a parecer obra de testemunha aqui presente, ou,pelo menos, hábil aproveitamente de qualquer documentocoetâneo (...).

....................................................................................

A resposta surpreendente, é que ninguém escreveu, que,embora pareça que sim, não está escrito tudo aquilo nãofoi mais que pensamentos vagos da cabeça do revisorenquanto ia lendo e emendando o que escondidamentepassava em falso nas primeiras e segundas provas.

(H.C.L. p. 22)

Constatamos que o revisor é o narrador do formoso acordar dealmuadem que nunca foi escrito, foram “pensamentos vagos” na cabeça dorevisor. Configura-se, pois, o “narrador substituível, complexo”, que causa,às vezes, a “estranha impressão de ser outro”, “narrador que se assumecomo pessoa coletiva”, “voz que não se sabe de onde vem”, identificando-se com o leitor, como afirma o próprio Saramago, ao caracterizar o narradorde seu próprio livro no artigo “História e Ficção”.

No desenvolvimento do romance, cada vez mais a situação donarrador, aparentemente marcada pela onisciência, veracidade e objetivida-de realistas vai se revestindo de um caráter profundamente moderno, con-testador e ambíguo através da focalização múltipla, do jogo dialético entrepassado e presente, da pluralidade de locutores cujos discursospotencializam-se através do uso da ironia, da paródia e da estilização, con-jugados à intertextualidade.

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O investimento na subjetividade e na interiorização da voz nar-radora, questionando o “mandamento épico” da objetividade histórica,transmuta heróis e mitos em anti-heróis e seres humanos, abandonando asimulação de realismo, através da ironia, do fantástico, colocando-se onarrador em uma perspectiva marginal.

Raimundo Silva, personagem principal da História do Cercode Lisboa de José Saramago, é ao mesmo tempo revisor de um romancehistórico do mesmo nome e narrador do seu próprio romance, onde,utilizando o seu poder de rasurar e modificar acrescenta um NÃO àverdade histórica, que o faz passar da atitude passiva de revisor aopapel criador de autor. Consequentemente os narradores que conduzemas diversas narrativas fundem-se num narrador coletivo e complexo, emdiálogo constante com o leitor, narratário inserido no próprio texto quelhe compete presentificar.

4.3 - O inter-relacionamento História/história, realidade/ficção naconstrução do texto de José Saramago.

Duas serão as atitudes possíveis do romancista que esco-lheu, para a sua ficção, os caminhos da História: uma,discreta e respeitosa, consistirá em reproduzir ponto porponto os factos conhecidos, sendo a ficção mera servidoraduma fidelidade que se quer inatacável; a outra, ousada,leva-lo-á a entretecer dados históricos não mais que su-ficientes num tecido ficcional que se manterá predomi-nante. Porém, estes dois vastos mundos, o mundo dasverdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, àprimeira vista inconciliáveis, podem vir a ser harmoni-zados na instância narradora. 89

História do Cerco de Lisboa presentifica, de modo exemplar, aatitude ousada, proposta por Saramago, de entretecer dados históricos numatrama, predominantemente ficcional, onde se problematizam a natureza darelação presente/passado, a revisão consciente e até irônica de fatos emitos históricos, buscando as falas minoritárias, os silêncios, os persona-gens esquecidos da História, acordados e resgatados pela ficção.

A exploração da intertextualidade e da multiplicidade de discur-sos, que compõem tanto a ficção como a história, propiciam o jogo entre ofictício e o real (histórico) que se contrastam e se sobrepõem, re-escreven-do a verdade no diálogo entre discursos e textos coexistentes no texto.

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Ligando-se, por um lado, à tradição do romance histórico portu-guês, através da reconstrução realista de ambientes e acontecimentos his-tóricos, descritos ou evocados com grande poder imagético e riqueza dedetalhes, o texto de Saramago subverte e ultrapassa os limites do gêneropelas características inovadoras que o constituem. A estrutura da narrativa- estatuto do narrador, focalização, construção e função das personagens,papel do leitor - é sublinhada pelas reflexões sobre o processo criativo/narrativo, conduzindo de um lado à metatextualidade e de outro à umareinterpretação da História.

A onisciência do narrador não se limita ao conhecimento objeti-vo dos fatos e dos pensamentos das personagens, mas o conduz a umtranscender cultural e temporal, que lhe permite uma visão abrangente darealidade passada, presente e até futura. Declarando-se, nos comentáriosmetatextuais, explicitamente contemporâneo do leitor, o narrador faz afloraressa perspectiva entre os pormenores e detalhes históricos, através dasintervenções e anacronias que se atualizam nas suas focalizações, comoatalhos que aproximam o passado aos leitores modernos. A re-visitação dopassado torna-se possível através do contexto que o presente lhe inscreve.

A criação e construção das personagens é enfatizada peloscomentários metatextuais (no plano da enunciação, do ato de narrar), comoresultante de uma fusão do verossímel (realista) e do fictício (subjetivo) nãosendo nem pura invenção nem representação mimética da realidade, antes umamálgama possível de pensamentos, frases e ações. Os personagensRaimundo - protagonista da narrativa primeira - e Mogueine - protagonistada narrativa segunda, escrita ou pensada pelo próprio Raimundo - configu-ram-se como figuras ex-cêntricas, invulgares, diferentes dos outros repre-sentantes do meio. Raimundo é revisor, colocado à sombra do autor, numestatuto de passividade que é destruído pelo NÃO, com que altera o texto ea verdade histórica do Sr. Doutor, ensimesmado, solitário e fechado entreseus livros; Mogueine, uma figura semi-histórica, aparecendo em referênci-as de vários relatos históricos, com o nome grafado de modos diversos,como o constata o próprio Raimundo em suas pesquisas, pertence ao gru-po de figurantes marginalizados e esquecidos pela História. Trata-se, pois,de uma história revisitada, reinventada e revista, daí o personagem serjustamente um revisor.

O processo discursivo, marcado pela auto-referencialidade, pelaintertextualidade, pela pluralidade de registros - coloquial, histórico,jornalístico, ficcional -, presentifica-se através de uma linguagem especularonde avultam as implicações ideológicas e contextuais das expressõeslinguísticas, bem como a ambiguidade e multiplicidade de sentidos das

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palavras, impregnadas pelo duplo sentido da ironia, providenciando,desde a comunicação inter-pessoal até o conhecimento intelectual e apercepção do mundo.

Cria-se, assim, através das estruturas de apelo do texto, umasituação comum, um ponto de confluência dos horizontes de expectati-vas do emissor e do receptor da mensagem ficcional, através da cons-trução conjunta de um repertório centrado na autoreflexibilidade so pró-prio texto.O leitor encontra-se com o narrador em pontos comuns ousitua-se, em pontos conflitantes, como um contraponto indispensável,repensando o presente, avaliando registros históricos do passado, re-velando-se tanto um como o outro, implícitos na própria construção dotexto ficcional.

A invenção e re-invenção da História leva a uma reflexão sobrea linguagem, na sua relação dinâmica com esse referente, no seu poder dedizer o real sempre de modo diferente, sob a forma discursiva, emendandofatos históricos, revendo-os, colocando entre o texto e a vida um outroespaço, o que se tece sobre o simbólico e o imaginário.

Tereza Cristina Cerdeira da Silva, sublinhando a importânciada auto-referencialidade, do anacronismo e da ambiguidade, frisa que aficção ultrapassa a relação ingênua de disputar com a história o espaço daverdade. Cabe-lhe revisitar a História, reinventar o real ou o factual pelosseus próprios meios, através do resgate, da elaboração e da sedução dalinguagem, instaurando a plurisignificação textual através de uma ou vá-rias re-leituras. Memória e História constituem-se como seduções do lite-rário, uma espécie de exercício, “onde cada domínio se exercita na ultra-passagem do seu próprio modelo”, configurando-se ambos num novoestatuto, voluntamente híbrido, que se realiza através do ficcional. Con-clue, afirmando

José Saramago se inscreve, assim, na linhagem dos es-critores portugueses contemporâneos que aprenderama revisitar de maneira crítica os domínios da Históriaoficial, não somente para desvelar, ao nível dos conteú-dos, a sua presunção de poder apreender e domesticaro real, de modo a fornecer a fórmula da “verdade” queanula toda possibilidade de releitura: mas, sobretudo,chegou à dúvida fecunda que o lança num terreno ondea sedução da linguagem se faz poderosa - o da consci-ência de uma ruína que é preciso saber reverter em be-nefício da construção de sua própria ultrapassagem.90

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4.3.1 - O repertório ficcional em História do Cerco de Lisboa.(Intertextualidade, dialogismo e pluridiscursividade. Auto-reflexibilidade e polifonia)

O comentário historiográfico em Saramago emerge doscomentários do narrador, da específica selecção e cons-trução dos personagens e da intertextualidade ou justa-posição de discursos: o literário, com ecos da obra dePessoa, Camões, Eça de Queirós, João de Deus, ojornalístico/propagandista, o oficial/institucional e ohistórico. Em História do Cerco de Lisboa esse comentá-rio concentra-se na questão da narrativa da História,aproximando e colocando num mesmo nível a História ea literatura.91

História do Cerco de Lisboa apoia-se num sistema de combina-ção entre três narrativas, configurando-se uma intertextualidade interna eoutra externa. A interna realiza-se entre os três enunciados que se entrelaçamno plano da enunciação e a externa com textos de autores diversos, crônicashistóricas, referências e alusões, tanto à sociedade medieval - época docerco de Lisboa e do romance entre Mogueime e Ouroana - quanto à socieda-de atual, onde se concretiza o caso de amor entre Raimundo Silva e MariaSara, ambos da “seita especial dos revisores”, presentificando-se, no planodos enunciados, a ambiguidade e o entrelaçamento dos segmentos tempo-rais de diferentes níveis narrativos. O lugar do leitor - encarregado de atua-lizar as possíveis combinações dos elementos constitutivos da obra - édado justamente pelo não dito, pelos “brancos” e “vazios”, que assim seoferecem para sua ocupação dentro do texto.

O repertório de História do Cerco de Lisboa constitui-se de umapolifonia de vozes e focalizações de personagens de diferentes contextoshistóricos e sociais, inseridos em metanarrativas e intertextos, intrelaçando-de, assim, na “tessitura” da obra, ficção e metalinguagem. A ficcionalidadeartística desse texto apoia-se justamente na sua capacidade de presentificar oque é virtual ou contestado, ou de algum modo excluído, uma vez que não é adenotação de tal sistema de sentido que o interessa, mas sim o limite que ocircunda, o seu horizonte de expectativas, estruturando-se um eixo deconotações com amplas possibilidades de leitura.

Como já apontamos anteriormente, o plano do enunciado con-tém três diegeses que se inter-relacionam: o amor “real” entre o revisorRaimundo Silva e Maria Sara, a “história real” do cerco de Lisboa e a histó-

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ria ficcional do novo cerco de Lisboa, escrita pelo revisor, agora autor,Raimundo Silva, a partir de um NÃO inserido no texto que revisava, fun-dindo-se o real - o cerco de Lisboa - e o ficcional - circunstânciasmodificadoras do cerco, diálogos e ações das personagens enfocadasnum mundo de relações:

Então o senhor doutor acha que a história e a vida real,Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Nãotenha a menor dúvida, Que seria de nós se não existisse odeleatur, suspirou o revisor.

(H.C.L. p. 16)

Temos, portanto, tanto no plano da enunciação quanto no doenunciado, a marca indelével da ambiguidade que torna o discurso donarrador operante, funcional e aliciante. O leitor participa da narrativa, poisos fatos lhe são revelados em simultaneidade e contiguidade, situando-ono espaço dramático do texto e não no tempo, obrigando-o,consequentemente, a exercer um papel catalisador92 na recriação do textoficcional, presentificado pelo ato da leitura.

Raimundo Silva fechou o livro. Apesar de fatigado, a suavontade seria continuar a leitura; seguir os episódios dabatalha até ao desbarato final dos mouros, mas Gil deRolim, tomando a palavra em nome dos cruzados presen-tes ali disse ao rei que, por este modo notificados domemorável prodígio obrado pelo Senhor Jesus em re-gião também ela tão apartada, ao Sul de Castro Verde,em sítio que chamam de Ourique, província de Alentejo,na manhã do dia seguinte lhe dariam resposta. Posto oque, cumpridas as saudações e cerimonial da ordenan-ça, igualmente se recolheram às suas tendas.

(H.C.L. p. 149)

Realiza-se, no trecho citado, a justaposição de discursos, a par-tir da intertextualidade de diferentes registros, providenciando na fusão dopresente e do passado, do ficcional e do histórico, de dois planos diegéticosque se interseccionam e se fundem: o romance do revisor Raimundo Silva,protagonista da narrativa primeira, e Gil de Rolim, um dos Cruzados, perso-nagem figurante da segunda narrativa - texto de História, sobre o cerco deLisboa em 1147, escrito pelo sr. doutor - bem como da terceira narrativa - o“romance histórico” sobre o mesmo cerco de Lisboa, re-escrito e re-visitado

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pelo mesmo Raimundo, antes revisor, e agora autor.

O discurso ficcional presentifica-se, primeiramente, através deum registro coloquial, num momento presente da narrativa, assumido e fo-calizado pelo narrador onisciente “Raimundo Silva fechou o livro (...)” até“ao desbarato final dos mouros”. Na mesma linha, sem marcas de passa-gem ou uma pontuação específica, a focalização e até mesmo a voz narrativasão assumidas pelo cruzado Gil de Rolim, num registro histórico com ecosde linguagem dos cronistas do sec. XII. “Gil de Rolim, tomando a palavraem nome dos cruzados presentes ali disse ao rei que, por este modo noti-ficados do memorável prodígio obrado pelo Senhor Jesus (...)” instauran-do-se o dialogismo, pela inserção da fala do personagem no discurso donarrador. Fundem-se presente e passado, com justaposição dos registrosficcional e histórico, e no final do parágrafo, a ambiguidade da afirmação“ igualmente se recolheram”, reúne Raimundo Silva, Gil de Rolim e os cru-zados, personagens de narrativas de diferentes níveis diegéticos, de seg-mentos temporais distintos, num mesmo fato, situado não no tempo mas noespaço textual, onde coexistem o ficcional e o histórico, fundidos na mesmarepresentação.

Verifica-se, portanto, que a produção do discurso é plural, cons-tituindo-se em uma interação com outro sujeito ou sujeitos, implicados numrelatividade inter-discursiva. A coexistência de contradições ideológico-sociais entre vários segmentos do passado, entre passado e presente, entretextos de autores de diversas épocas, entre correntes, grupos e círculos dopresente no discurso ficcional, configura a pluridiscursividade, decorrentetanto da pluralidade de discursos histórica e socialmente contextualizados,como da discussão de um problema ou fato por várias vozes diferentes.

As intervenções do narrador, os anacronismos e os comentáriosmeta-textuais sobre a construção do romance no próprio romance, estabele-cem um jogo interno que resulta na auto-reflexibilidade do próprio texto. Al-ternam-se reflexões sobre a representação ficcional e sobre a relativização daverdade, expressando certas formas de existência histórica do próprio sujeitoque reconstrói a história. O texto volta-se sobre si mesmo, contemplando-sena auto-consciência de sua identidade literário-ficcional.

(...) em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quan-to não for vida, é literatura, A história também, A histó-ria sobretudo, sem querer ofender, (...)

(H.C.L. p. 15)

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O senhor doutor á um humorista de finíssimo espírito,cultiva magistralmente a ironia, chego a perguntar-mecomo se dedicou à história, sendo ela grave e profundaciência, Sou irônico apenas na vida real, Bem me queriaparecer que a história não é a vida real, literatura, sim, enada mais. Mas a história foi vida real no tempo em queainda não poderia chamar-se-lhe história, Tem a certe-za, senhor doutor, (...).

(H.C.L. p. 16)

O dialogismo, a intertextualidade presentificam-se na volta paradentro de si mesmo, para a busca de raízes nacionais, com o texto compostode outros textos, que, contextualizados, passam a fazer parte do estatutoplural desse romance polifônico. Constrói-se uma teia complexa de relaçõesdialógicas entre consciências diversas, pontos de vista e posições ideoló-gicas conflitantes, bem como entre todos os elementos estruturais do pró-prio romance.

(...) este soldado Mogueime vai atrás de Ouroana comoquem da morte não vê outro modo de afastar-se, sabendono entanto que com ela tornará a enfrentar-se uma emuitas vezes e não querendo acreditar que a vida tenhade ser não mais do que uma série finita de adiamentos. Osoldado Mogueime não pensa nada disto, o soldadoMogueime quer aquela mulher, a poesia portuguesa nãonasceu ainda.

(H.C.L. p. 325)

O narrador quebra a “good continuation”, a continuação dese-jável estabelecendo com o leitor a contingência reativa, de que nos fala Iser,uma vez que interrompe as reflexões introspectivas do soldado Mogueimepara revelar que essas idéias são suas e, pior ainda, auridas na poesiaportuguesa, ainda por nascer:

O soldado Mogueime não pensa nada disto, o soldadoMogueime quer aquela mulher, a poesia portuguesa nãonasceu ainda

(Idem Ibidem)

O leitor é jogado de uma ficção no passado para uma constataçãoreal no presente, sendo levado a re-lembrar, abruptamente, que está no domí-nio do ficcional, do imaginário, das verdades construídas e não “havidas”.

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Deste modo, o dialogismo, a intertextualidade e a pluridiscursividade constituem-se com formas específicas de especularidade, devoltas do texto sobre si mesmo, fundadas na dinâmica narrativa, envolven-do ação, tempo, espaço, personagens, narrador e narratário, nos diferentesdiscursos que se articulam, inter-relacionam e interagem, através da auto-reflexibilidade dessa obra complexa, deste cerco, onde nos embrenhamosatravés de inúmeras leituras e de uma renovada fruição do prazer do texto,de que nos fala Barthes93 e nos present eia Saramago.

4.4. O labirinto esfíngico e a aventura do leitor sob a égide da Poiesis- a comum construção.

(...) no romance de Saramago, ao lado dos elementostradicionais que remetem para o modelo clássico´ - comoo realismo da descrição histórico-social ou certatipificação do personagem - surgem elementos inovado-res, que contestam esse modelo: a auto-referencialidadeda narrativa, a explícita consciência da linguagem, aintrodução dos personagens ex-cêntricos e fantásticos eo comentário historiográfico que desafia a autoridadeda História, dirigindo-se-lhe como a um discurso, a umtexto, a uma narrativa.94

O texto de Saramago centrado, como já vimos, em três narrati-vas, tendo como elemento comum o revisor Raimundo Silva - protagonistada primeira, revisor da segunda e autor da terceira - utilizando-se dapluridiscursividade decorrente dos diferentes registros do discurso ficcional,das focalizações diversas, da auto-reflexibilidade, volta-se sobre si mesmodiscutindo as tênues fronteiras entre ficção e história e colocando o leitornum labirinto esfíngico, encarregado de decifrar a mensagem ficcional ouser devorado por ela.

O dialogismo, a ironia que conduz à carnavalização do discurso,a polifonia de vozes e ideologias conduzem o receptor do texto a uma leiturado intervalo, obrigando-o a se aventurar na ocupação dos vazios, do não-dito, construindo os sentidos do romance através de suas projeçõesinterpretativas.

Enquanto não alcançares a verdade, não poderáscorrigí-la. Porem, se a não corrigires, não a alcançarás.Entretanto, não te resignes.

Do LIVRO DOS CONSELHOS

(H.C.L. p. 9)

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A própria epígrafe do romance, norteando a decodificação damensagem, coloca o leitor sob a égide do questionamento: por que corri-gir a verdade , se, por definição, toda correção seria não-verdade,inverdade? Que verdade é essa que precisa ser corrigida para seralcançada? A esfinge propõe seu enigma e aconselha o leitor a não seresignar, uma vez que a busca da verdade é tarefa perene. Associandoessa epígrafe à figura de Raimundo Silva, o revisor que, acrescentandoum NÃO à um fato histórico real, corrigiu a verdade e criou sua própriaverdade - passando do estatuto passivo de revisor de textos alheios, à deautor de seu próprio texto, demiurgo criador de uma narrativa própria -temos uma prolepse do achado central do livro, o questionamento e arelativização da verdade interior, fruto da busca incessante de cada um denós, sob a metáfora da rasura e a necessidade de mudança.

O narrador pressupõe, através do dialogismo intrínseco de seudiscurso, um interlocutor que o acompanha passo a passo, participando deuma comum construção, que o leva a usufruir o prazer estético da POIESIScomo co-autor do texto. A narrativa que se auto-contempla sublinha a auto-consciência de sua identidade literária ficcional, onde autor e leitor implíci-tos partilham da produção e da recepção da mensagem ficcional, através dacriação e re-criação do texto.

O romance organiza um repertório, “humus sócio-cultural” deonde provém o texto, conjunto de normas histórico-sociais, tradições, con-venções, ideologias, e estéticas, que formam um quadro ou cercadura dotexto reaparecendo no texto não com o seu sentido primeiro mas como polode interações. Assim o cerco de Lisboa em 1147, a formação da nação por-tuguesa, as ideologias da época são conotadas e atualizadas na leitura dasociedade portuguesa atual.

A construção dos personagens-amantes Mogueime e Ouroana- no distante Condado Portucalense, passado histórico onde rei, nobres,cruzados e povo lutam com ou sem a ajuda dos Cruzados, diante dos murosde Lisboa dominada pelos mouros, iniciam um caso de amor nos entreverosda guerra - corresponde à construção de outro par - Raimundo Silva e MariaSara, igualmente amantes, sitiados pelas contingências de um presentemedíocre, que se confundem e se explicam, em projeções recíprocasatualizadas pelo texto ficcional.

Como te chamas, mas é só um truque para começar aconversa, se há algo nesta mulher que para Mogueimenão tenha segredos, é o seu nome, tantas são as vezes queele o tem dito, os dias não só se repetem, como se pare-

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cem, Como te chamas, perguntou Raimundo Silva aOuroana, e ela respondeu, Maria Sara

(H.C.L. p. 290)

A sobreposição das figuras femininas Ouroana e Maria Sara, detempos cronológicos distintos providencia a sobreposição de passado epresente, que se fundem no espaço textual, onde coexistem as duas perso-nagens no mesmo tempo/discurso ficcional.

Em outra passagem, mais se ressalta a fusão/interação dos doiscasais distantes no tempo, próximos na vida, como se constata no tensodiálogo entre Raimundo e Maria Sara, onde são sublinhadas as correlações,idêntidades e aproximações entre os dois casais, na aparente trivialidade doamor cotidiano:

Porquê essa insistência no revisor, Para que tudo fiqueclaro entre Mogueime e Ouroana, Explica-te, Tal comoele nunca virá a ser capitão, eu nunca serei um escritor,E tens medo de que Ouroana vire as costas a Mogueimequando descobrir que nunca será mulher de um capitão,Tem-se visto, Contudo, essa Ouroana viveu vida melhorquando estava com o cavaleiro, e agora quis Mogueime,suponho que ele a não forçou, Não estou a falar deOuroana, Estás a falar de mim, bem o sei, mas o que dizes,não me agrada, Calculo, Dure esta relação o que durar,quero vivê-la limpamente (...)

(H.C.L. p. 329/330)

Os intertextos, as apropriações de versos, citações, idéias, ecosde textos de épocas diversas aparecem com novo sentido, sublinhandopela “penhora”, uma lembrança do fundo sobre o qual se apoiam. Aficcionalização da História permite ao leitor um movimento para fora damoldura e um salto para dentro da história, que é literatura, uma vez que:“tudo quanto não for vida, é literatura, A história também, A história sobre-tudo”. O narrador, declaradamente contemporâneo do leitor, insere a pers-pectiva do presente para descrever e analisar detalhes, pormenores históri-cos, míticos ou ficcionais da época passada que lhe serve de espelho. Osanacronismos são utilizados como estratégias textuais para sublinhar ocontexto comum, onde se inserem o narrador e o narratário. Parte-se dohorizonte e do contexto do leitor para, através de interações, questiona-mentos e aproximações, contestá-lo ou sublinhá-lo com as interligações deeventos passados e presentes.

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Assim sendo, as estruturas de apelo e o horizonte de espera dotexto, através de seu potencial de atuação, tanto no plano ético como noestético, vão conduzir o leitor à construção de um horizonte de expectati-vas, possibilitando, através do estabelecimento de uma situação comum, apresentificação do texto pela leitura e a representação construída de umarealidade múltipla em contínua mutação.

Notas

80 “História e ficção” - In: Jornal de letras, artes e idéias (J.L.). Ano IX, n.o354, 18 a 24/04 de 1989, pp. 17 a 20. Citação: pp. 19/20.81 Todas as citações do romance pertencem à edição abaixo e serão indicadaspela sigla H.C.L. seguida do(s) número(s) da(s) página(s): José Saramago -História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (H.C.L.- pp. 15 e 16)82 Ano IX, n.o 354. Dia 18 a 24 de abril de 1989. pp. 8 a 12.83 A palavra do romance. Lisboa: Livros Horizonte, 1986, pp. 189/190.84 As demais obras do autor estão arroladas no Anexo 2 (Ficha Bibliográficade José Saramago)85 Entrevista concedida a José Carlos de Vasconcelos no Jornal de letras,artes e idéias. J.L. - Ano IX, n.o 354. De 18 a 24 de abril de 1989, p. 1086 Procedimento bastante comum no discurso narrativo de Peregrinação deFernão Mendes Pinto, que inseria a reprodução dos sons de línguas orien-tais em seu texto.87 Iuri Lotman - A Estrutura do Texto Artístico. trad. Maria do Carmo VieiraRaposo e Alberto Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.88 José Saramago - “História e Ficção” In Jornal de Letras, artes e idéias.Lisboa, Ano X, n.o 400. De 6 a 12 de março de 1990. pp. 17 a 20. (p. 19)89 José Saramago - “História e Ficção” IN Jornal de letras, artes e ideias(J.L.) Ano X, n.o 400, 6 a 12/03/1990 - p.19.

90 Tereza Cristina Cerdeira da Silva - “José Saramago. A ficção reinventa ahistória” IN Colóquio Letras, n.o 120. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,abril/junho 1991, pp. 174 a 178. (p. 178)91 Helena Kaufman - “A metaficção historiográfica de José Saramago”. INColóquio Letras n.o 120. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Abril-junho 1991, pp. 124-136. (p. 133)92 Papel catalisador uma vez que amplia a velocidade da reação, exercendouma função organizadora da narrativa. - Sobre o papel do leitor ver estudos

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de W. Iser e K. Stierle - Percurso Teórico)93 Roland Barthes - Le Plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973.94 Helena Kaufman - op. cit., p. 136.

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CONCLUSÃO

A dura conquista do Texto: o leitor co-autor e a auto-referencialidade do texto (Um amor feliz e História do cerco de

Lisboa, romances modelares da narrativa portuguesacomtemporânea

Em suma, portanto, o vazio no texto ficcional induz eguia a atividade do leitor. Como suspensão daconectabilidade entre segmentos de perspectiva, ele mar-ca a necessidade de uma equivalência, assim transfor-mando os segmentos em projeções recíprocas, que, desua parte, organizam o ponto de vista do leitor comouma estrutura de campo.95

Só o horizonte da segunda leitura pode converter a pri-meira leitura, quase pragmatica e causadora de ilusão,em uma leitura captadora da ficção. Pois só assim aconstrutividade da ficção pode-se tornar objeto da fa-culdade de julgar do receptor. Enquanto o texto prag-mático deve ser trabalhado com vistas a uma intençãoque o transcende, o texto ficcional auto-referencial exi-ge ser internamente trabalhado.96

....................................................................................

O texto como espaço textual, em que se multiplicam infi-nitamente as possibilidades de relacionamento, e daí aspossibilidades de constituição da significação, torna-se,na perspectiva do leitor, espaço ou meio de reflexão, emque o leitor pode penetrar cada vez mais, sem nunca oesgotar.97

A ocupação dos vazios do texto, embora guiada pelas suas es-truturas de apelo, não prescinde da participação consciente e ativa do lei-

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tor, estabelecendo a conectabilidade entre os segmentos estruturais da obra,organizados segundo suas próprias projeções interpretativas e constituin-do-se num campo, onde se potencializam sentidos e significados, tornadosem significação através do ato da leitura.

A “leitura captadora da ficção” exige do leitor o envolvimentode sua capacidade de julgar, a interação de mecanismos de representa-ção do texto e os seus próprios, buscando diferentes possibilidades derelacionamento, interpretando a mensagem ficcional e compartilhando oespaço textual, onde se revelam as múltiplas possibilidades de leiturasdo romance.

A conquista do texto é uma atividade participativa que se revelacada vez mais complexa nos romances contemporâneos, onde o discursoobjetivo das “figuras autorais” vê-se substituído pela intersubjetividadede falas indiscriminadas - pluridiscursividade -; pelo texto auto-reflexivoque se debruça sob si mesmo - auto-referencialidade -; pela fragmentação,multiplicidade e experimentalismo que caracterizam o espaço-tempo em quese insere o presente em processo.

Torna-se necessário refletir sobre a construção do romance, suasdiretrizes, suas características marcantes para que se possa melhor compre-ender o estatuto contemporâneo, ou “pós-moderno”,como definem algunscríticos, do romance português de nossos dias.

Os romances analisados nessa pesquisa representam, de modoexemplar, duas vertentes da ficção portuguesa contemporânea que procuraseus próprios caminhos, voltando-se para as raízes de sua própria literaturae revelando seu compromentimento com as tendências atuais da literaturaocidental. Se, em Um Amor Feliz a presença de um narrador/protagonista -narrador autodiegético - confere um caráter de maior subjetividade, permi-tindo um mergulho na interioridade da personagem - raiz presencista - emHistória do Cerco de Lisboa o narrador, aparentemente onisciente e fora dahistória - narrador heterodiegético - revela-se em sua complexidade, multi-plicando-se em três planos diegéticos, narrativas com os seus própriosnarradores, que se inter-relacionam e se entrecruzam. A recuperação dopresente funde história e ficção, permitindo a crítica da sociedade atual,revelando-nos o viver mesquinho e limitado dos que fazem a história e dosque correm o risco de serem engolidos por ela.

A oposição oprimidos/opressores ou vencedores/vencidos faz-se pelo resgate de “personagens secundários” que a História esqueceu esó podem ser recuperados pela ficção, revelando a incorporação e supera-ção da ideologia neo-realista na configuração da situação quadro, da mol-dura em que se insere o próprio texto.

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Em Um Amor Feliz a univocidade, que aparentemente, se po-deria estabelecer pela escolha do narrador autodiegético, quebra-se logono primeiro capítulo pelo dialogismo intrínseco, inerente ao próprio dis-curso narrativo, e cristaliza-se no capítulo seguinte, onde se percebe queo romance é um confissão, uma longa fala a uma personagem-confidente,secundária na trama diegética, confundindo-se e representando o leitor,tornado narratário na estrutura textual. O discurso revela-se como umlongo diálogo, onde o enunciado existe através de sua relação com outrosenunciados, estabelecendo-se no discurso do narrador, relações análo-gas às relações entre as réplicas de um diálogo. A intertextualidadepresentifica-se no cruzamento das superfícies textuais, potencializandodiálogos entre escritor/narrador, narrador/confidente, confidente/leitor,inseridos no contexto sócio-cultural do presente em processo, configu-rando-se, nas estratégias e no repertório ficcional, tanto o autor implícitoquanto o leitor implícito, construções textuais inseridas no próprio dis-curso narrativo.

A diegese vai-se construindo diante dos olhos do leitor, comexplicações, idas e vindas, reflexões do narrador - protagonista, à medidaem que se concretizam, na confissão à personagem confidente, os fatos,personagens e relacionamentos. A trama é discutida, interrogada e monta-da com a participação do leitor.

O texto volta-se sobre si mesmo e o metatexto sobre a constru-ção do romance no próprio romance potencializa a auto-referencialidadeque sublinha sua construção a dois. A marca do texto é a ambiguidade:ambiguidade do discurso dialógico, ambiguidade diegética - focalização depessoas diversas sobre os mesmos fatos - e ambiguidade decorrente daintertextualidade das falas das personagens e do diálogo com outros textosliterários - versos, poemas, citações e alusões, que aparecem com novosentido, em diferentes contextos, filtrados pela ironia e pela paródia.

Em História do Cerco de Lisboa o discurso dialógico estabele-ce uma rede de inter-relações mais complexas, uma vez que, como já vimos,entrecruzam-se e sobrepõem-se três narrativas simultâneas, potencializandoa interpenetração do tempo e do espaço, privilegiando descrições dos mo-mentos vividos em segmentos do passado e do presente, fundindo-se es-paço físico e psicológico, mesclando-se realidade/ficção, nas tênues fron-teiras entre história e literatura.

É um romance polifônico, onde as vozes de ontem e de hojefazem-se ouvir numa mescla de registros discursivos - coloquial, literário,jornalístico, histórico -, onde se interpenetram contextos ideológicos, osmais diversos, questionando-se a construção do texto através do própriotexto. O leitor acompanha a construção do romance com o “revisor”, do“revisor” e sobre o “revisor”, testemunhando as opções necessárias, a lutapela expressão, a procura do registro pertinente e a modelização de um

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História do Cerco deLisboa

Narrador heterodiegéticoque se desdobra em três planosdiegéticos ("narrador plural")

L e i t o r - o r g a n i z a d o r ,decifrador de enigmas, inseridono próprio discurso do narrador

Sob o signo do múltiplo -pluralidade de narrativas

Ambiguidade jogo: enun-ciação/enunciado/1 (narrativaprimeira) jogo: enunciação/enunciado/2 (narrativa segunda)jogo: enunciação/ enunciado/ 3(narrativa terceira)

Um Amor Feliz

Narrador autodiegético

Leitor-confidente represen-tado por uma personagem

Sob signo duplo - dualidadesintrínsecas

Ambiguidade: jogo: enunci-ado/enunciação

mundo possível ficcional, cuja lógica interior, construída pelo repertórioficcional, é mais verossímel do que o próprio real.

Podemos constatar, em resumo, colocando lado a lado os doisromances, os enfoques e as estratégias textuais que se atualizam nasduas obras:

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História do Cerco deLisboa

Alteridade: da própria figura donarrador/narradores e de seus dis-cursos

Auto-referencialidade ou auto-reflexibilidade. Construção do ro-mance dentro do romance:1. construção do próprio romance2 . construção de um romance his-tórico pelo revisor 3. construçãode um texto histórico pelo sr. dou-tor 4. representação do autor im-plícito no plano da enunciação: "vi-são com" 5. intervenções dos nar-radores das três narrativas 6.metatexto sobre arte, história, lite-ratura e suas tênues fronteiras

Sob a égide da Poiesis - o prazerdo leitor, co-autor do texto -organizador da narrativa entre asfronteiras da História/estórias

Intertextualidade: entre textoshistóricos e ficcionais, com textosliterários e crônicas históricos -mergulho nas raízes da literaturaportuguesa

Um Amor Feliz

Alteridade: do discurso de umnarrador

Auto-referencialidade ou auto-reflexibilidade. Construção do ro-mance no romance 1.representaçãode autor implícito personificado emum personagem secundário(David) 2 ."visão com" o narradorauto- diegético 3 . meta texto sobrecriação/arte/literatura

Sob a égide de Katharsis - a cons-trução de uma sociedade fanada("os pífios anos 80"), onde o ou-tro ultrapassa o espelho e vê-seno discurso confessional donarrador

Intertextualidade: entre falas daspersonagens de diferentes cama-das sociais, entre textos literáriosda literatura portuguesa e da lite-ratura européia

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Diegese: rarefação do enre-do. Poucos fatos e muitaintrospecção subjetiva e psico-lógica, sublinhada pela ironia.Crítica, a elite intelectual e àburguesia: artistas famosos, di-plomatas, médicos, intelectuais,políticos

Discurso: ironia, parodia,carnavalização; carnavalização: invasão da narrativapelo discurso

Diegese: trama complexa.Muitas situações romanescascom reflexões sobre história, li-teratura, sociedade, através dodiscurso irônico do narrador.crítica:à sociedade polarizadaentre opressores/oprimidos,tanto nas sociedades do passa-do e do presente, quanto nosplanos do real ou do ficcional

Discurso: ironia, paródia,carnavali zação: discurso plu-ral marcado pela diversidade deregistros

Como verificamos no desenvolvimento dessa pesquisa, os ro-mances Um Amor Feliz e História do Cerco de Lisboa são obras represen-tativas do romance português contemporâneo, onde assistimos a maturaçãode nomes consagrados que produzem desde a década de 50, bem como aproliferação de novos escritores surgidos nas últimas décadas, Verifica-seum alargamento da temática socio-ideológica, acrescida das vivências darevolução de abril, a guerra colonial e os lances da emigração.

A pátria portuguesa, a sociedade de ontem e hoje constituemum “corpus” histórico, assimilado e questionado por diversos autores,em busca de uma identidade nacional a conhecer ou sublinhar. O presenteem processo contextualiza-se num hoje dinâmico, mas também sufocantee massificador, onde o homem fragmentado, tensionado entre a verdade ea aparência, entre ideologias conflitantes, sofre o malogro das relaçõeshumanas, presentificados em textos polêmicos, complexos equestionadores.

A composição textual apoia-se na valorização da escrita, na uti-lização de formas de pluralização discursiva, sob o primado da subjetivida-de, com o predomínio da enunciação - ato de narrar - sob o enunciado - acoisa contada, o narrado.

Diferentes estéticas dialogam nos textos/romances portuguêses

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atuais, configurando-se a contaminação de cosmovisões decorrentes doneo-realimo, do existencialismo, do “noveau roman” e do presencismo en-tre outras. Configura-se uma apropriação e superação de técnicas naturalis-tas, através da auto-reflexibilidade de um texto que se questiona e se voltasobre si mesmo, buscando seu estatuto ficcional, mesmo quando se apóiaem suportes históricos, jornalísticos ou fantásticos.

Revela-se nos romances analisados a sedução irresistível deformas ficcionais que se recusam a classificações e enquadramentos “naorganização tradicional de nexos perfeitos”, buscando antes registros mar-ginais do romance, como os gêneros de primeira pessoa: confissões, auto-biografias, diários, crônicas, ou ainda, a utilização do fantástico, do mágico,do maravilhhoso cristão ou pagão, criando uma lógica interna, própria domundo ficcional, onde se relacionam autores e leitores.

Compreende-se, portanto, a necessidade de participação do lei-tor, exercendo um papel catalisador, que venha a possibilitar a decodificaçãode um texto complexo e denso. Parceiros na concretização da mensagemficcional, encontram-se autor e leitor em dois polos diversos, - polo dacriação e polo da recepção -, que se complementam e inter-relacionam.

O autor, no polo da produção/criação trabalha um discursodialógico e plural, onde afloram, através de estratégias textuais, suas ideo-logias e sua cosmovisão, subjacentes à criação de um mundo possívelficcional, potencializado pelo texto artístico. Por outro lado, o romance si-tua-se num contexto onde avulta o polo da representação, providenciandoa construção do quadro espácio-temporal em que se insere. Através dapluridiscursividade, polifonia, dialogismo e intertextualização cria-se umcontexto interno, coerente com o mundo ficcional construído pelo próprioromance, bem como um contexto externo, onde se sobrepõem textos deautores e épocas diversas da literatura e da história de ontem e hoje.

Constitui-se um metatexto, a partir da construção de sentidodo texto, propiciada pelo ato da leitura, bem como através da auto-referencialidade, texto crítico voltado para a construção do romance nopróprio romance, questionando história, ficção, passado e presente, le-vando-nos a ver o homem na sua natureza inerente, nos seus relaciona-mentos e na sua dimensão de escritor, retesado entre a condição provisó-ria de sua própria natureza e a permanência transcendente que só podeaspirar através da arte.

Na verdade, o romance, “único gênero em evolução”, refletindo“mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e maisrapidamente a evolução da própria realidade”98, contribui para a renovaçãode outros gêneros, pela sua básica definição de arte em processo, que temantecipado e ainda antecipa os caminhos futuros da literatura e da própriaera moderna.

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O romance português, em uma fase de invejável produtividade,reflete a situação atual do próprio país numa época de mudanças e questi-onamentos em busca de sua auto-definição.

“Mais uma vez, não é decerto adequado dizer-se que o romancecomo género está em vias de acabar, esvaindo-se por outras formas deescri ta; será, sim, de toda a justiça acreditarmos no seu revigoramento emfunção de trânsitos diferenciados - pelo menos no caso da ficção portugue-sa deste século, e muito particularmente, da do período actual, certamenteo mais rico que, em toda a sua história, ela pôde atravessar.”99

Notas

95 Wolfgang Iser - “A interação do texto com o leitor” IN VVAA - A literaturae o Leitor. Selec. trad.. e introd. de Luis Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1979, p. 130.96 Karlheinz Stierle - “Que significa a recepção dos textos ficcionais”. IN:VVAA. - A literatura e o leitor. op. cit.,p. 159.97 IDEM, IBIDEM, p. 160/161.98 Mikhail Bakhtin - Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: EditoraUNESP/HUCITEC. p. 400.99 Maria Alzira Seixo - A Palavra no Romance. Lisboa: Livros Horizonte,1986. p. 181.

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PRINCE, Gerard. Introduction à l’éctude du narrataire. IN: Poétique n. 14.Paris: Editions du Seuil, 1973. p.178-196.

QUEIROZ, Eça. Os maias. IN: Obras de Eça de Queiroz. Porto: Lello eIrmão Editores, V. II, p.5-496 (publicado pela primeira vez em 1988).

RABINOWITZ, Peter. Truth in Fiction: A Reexamination of Audiences.Critical Inquiry 4 (1977), 121-42

REIS, Carlos. Ideologia e Pluridiscursividade. IN: Jornal de letras, artes eidéias (J.L.). Lisboa: Ano VII, n. 279, de 09 a 15/11/87, p.28-29.

—————. O Discurso Ideológico do Neo-Realismo Português.Coimbra:Libr. Almedina, 1983.

REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia.Lisboa: Ed. Almedina, 1987.

RICARDOU, Jean. La Révolution textuelle. Esprit 12 (1974), 927-45

RICOEUR, Paul. La Méthaphore vive. Paris: Seuil, 1975.

—————. Le Conflit des interprétations: Essais d´herméneutique.Paris: Seuil, 1969.

RIFFATERRE, Michael. Essais de Stylistique structurale. Paris:Flammarion, 1971.

Page 132: O Leitor e o Labirinto - Suely Fadul Villibor Flory

137

—————- Semiotics of Poetry. Bloomington: Indiana Univ. Press, 1978.

ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance. trad. T.C.Netto. São Paulo:Editora Documentos Ltda, 1969 (Do original francês Pour unNouveau Roman, 1963)

ROSENFELD, Anatol e outros. Vanguarda e Modernidade 26/27. SãoPaulo: Tempo Brasileiro, jan/março 1971.

ROSENTHAL, Erwin Theodor. O universo fragmentário. São Paulo: Cia.Ed. Nacional/EDUSP, 1975.

SARAMAGO, José. História e Ficção. IN: Jornal de letras, artes e idéias(J.L.) Ano IX, n. 354, 18 a 24/04/89, p.19-20.

SARTRE, Jean-Paul. Qu´est-ce que la littérature? IN: Situations II. Paris:Gallimard, 1948.

SEABRA, José Augusto. O Coração do Texto. Jornal de Letras, Artes eIdeias (J.L.) Ano XII, n. 258, de 18 a 24/08/92.

SEIXO, Maria Alzira. A Palavra do romance. (Ensaios de genologia eanálise). Lisboa: Livros Horizonte, 1986.

STEINER, George. After Babel. New York: Oxford Univ. Press, 1975.

STEMPEL, Wolf Dieter. Aspects Génériques de la Réception. IN: Poétique,39, 1979.

STIERLE, Karlheinz. Réception et Fiction. IN: Poétique, 39, 1979.

—————. Que significa a recepção dos textos ficcionais? IN: ———— et al. A literatura e o leitor. (Textos da Estética da Recepção).Selec., trad. e introd. de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1979.

SULEIMAN, Susan R. Introduction: Varieties of Audience - OrientedCriticism. IN: ———— et al. The Reader in the Text. Edited by R.Suleiman and Inge Crossman. Princeton: Princeton UniversityPress, 1980.

TACCA, Oscar. As Vozes do Romance. Coimbra: Almedina, 1983.

TODOROV, Izvetan, STIERLE, Karlheinz e outros. The Reader in the Text.(Essays on Audience and Interpretation). Edited by Susan R.Suleiman and Inge Crosman. Princeton, New Jersey: PrincetonUniversity Press, 1980.

TODOROV, Izvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil,1970.

—————. La Lecture comme construction. Poétique, n.24 (1975), 417-25.

Page 133: O Leitor e o Labirinto - Suely Fadul Villibor Flory

138

—————. Littérature et signification. Paris: Larousse, 1967.

—————. Symbolisme et interprétation. Paris: Seuil, 1978.

TOMPKINS, Jane P. Criticism and Feeling. College English 39 (1977),169-78.

TORRES, Alexandre Pinheiro. Sociologia e Significado do MundoRomanesco de José Cardoso Pires. IN: Posfácio da obra de JoséCardoso Pires. O Anjo Ancorado. 5.ed. Lisboa: Moraes Editora,1977.

USPENSKY, Boris. A Poetics of Composition. Trans. Valentina Zavarinand Susan Wittig. Berkeley and Los Angeles: Univ. of CaliforniaPress, 1973.

VASCONCELOS, José Carlos de - Saramago vence Cerco de Lisboa. IN:Jornal de Letras, artes e idéias. Lisboa: Ano IX, n.354, de 18 a 24/04/89, p.8-12.

VOLOSHINOV, V. N. Marxism and The Philosophy of Language. Trans.L. Matejka and I. R. Titunik. New York: Seminar Press, 1973.

WEINRICH, Harald. Literatur fur Leser. Stuttgart: Kohlhmmer, 1971.

WELLEK, René. The New Criticsm: Pro and Contra. Critical Inquiry 4(1978), 611-24.

ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e história da literatura.São Paulo: Ática, 1989.

ZIMA, Pierre V. Pour une sociologie du texte littéraire. Paris: UnionGénérale d´Editions, 1978.

Page 134: O Leitor e o Labirinto - Suely Fadul Villibor Flory

139

ANEXO 1

OBRAS DE DAVID MOURÃO-FERREIRA

Poesia*1950 - A secreta viagem. Lisboa: Távola Redonda.1954 - Tempestade de verão. Lisboa: Guimarães Editores.1958 - Os Quatro Cantos do Tempo. Rio de Janeiro: Livros de Portugal.1962 - In Memoriam Memoriae. Lisboa: Ed. Minotauro.1962 - Infinito Pessoal ou a Arte de Amar. Lisboa: Guimarães Editores.1966 - Do Tempo ao Coração. Lisboa: Guimarães Editores.1967 - A Arte de Amar (reunião dos cinco primeiros livros). Lisboa:

Guimarães Editores.1969 - Lira de Bolso (Antologia). Lisboa: Publicações Dom Quixote.1971 - Cancioneiro de Natal. Lisboa: Editorial Verbo.1973 - Matura Idade. Lisboa: Ed. Arcádia.1974 - Sonetos do Cativo. Lisboa: Ed. Arcádia.1976 - As Lições do Fogo (Antologia). Lisboa: Publicações Dom Quixote.1978 - Vinte Poesias Inéditas. Porto: Brasília Editora.1980 - Obra Poética, vols. I e II (inclui os livros inéditos À Guitarra e à

Viola e Ofício Órfico). Lisboa: Liv. Bertrand, 1980.1980 - Entre a Sombra e o Corpo. Lisboa: Moraes Editores.1980 - Ode à Música. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.1985 - Os Ramos Os Remos. Porto: Areal Editores.1987 - O Corpo Iluminado. Lisboa: Editorial Presença.1988 - No veio do cristal. Lisboa: Editorial Preesença.Ficção1959 - Gaivotas em Terra. Lisboa: Ed. Ulisseia.1962 - O Viúvo. Lisboa: Ed. Estúdios Cor.1963 - Tal e Qual o Que Era. Lisboa: Colecção Antológica “Best-Sellers”.1968 - Os Amantes. Lisboa: Guimarães Editores.1974 - Os Amantes e Outros Contos. Lisboa: Liv. Bertrand.1978 - Maria Antónia e Outras Mulheres. Lisboa: Ed. Círculo de Leitores.

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140

1978 - A Tua Véspera de Natal. In Natal (antologia). Lisboa: Ed. Arcádia.1980 - As Quatro Estações. Lisboa: Galeria S. Mamede.1986 - Um Amor Feliz. Lisboa: Editorial Presença.1987 - Duas Histórias de Lisboa. Lisboa: Editorial Labirinto1988 - Rampicante Sommerso. Roma, Japadre Editore.Teatro1956 - Contrabando. In Graal, n.2, jun-jul de 1956.1965 - O Irmão. Lisboa: Guimarães Editores.Ensaio e crítica1960 - Vinte Poetas Contemporâneos. Lisboa. Ed. Ática.1961 - Aspectos da Obra de Manuel Teixeira Gomes. Lisboa: Portugália

Editora.1962 - Motim Literário. Lisboa: Editorial Verbo.1966 - Hospital das Letras. Lisboa: Guimarães Editores.1969 - Tópicos de Crítica de História Literária. Lisboa: União Gráfica.1976 - Sobre Viventes. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1977 - Presença da “Presença”. Porto: Brasília Editora.1977 - Alexandre Herculano e a Valorização do Património Cultural

Português. Lisboa: Ed. da Secretaria Geral da Secretaria de Estadoda Cultura.

1977 - Lâmpadas no Escuro. Lisboa: Ed. Arcádia.1987 - O Essencial Sobre Vitorino Nemésio. Lisboa: Imprensa Nacional-

Casa da Moeda.1989 - Sob o mesmo tecto. Lisboa: Editorial Presença.

Obs: A data à esquerda do título refere-se à primeira edição da obra.

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141

ANEXO 2

OBRAS DE JOSÉ SARAMAGO

Poesia*1966 - Os Poemas Possíveis. Lisboa: Portugália Editora. (Lisboa: Editorial

Caminho. 2.ed. 1982; 3.ed. 1985)1970 - Provavelmente Alegria. Lisboa: Livros Horizonte. (Lisboa: Editorial

Caminho, 2.ed. 1985)Ficção1947 - Terra do Pecado (Primeiro romance. Apagado pelo próprio autor

de sua bibliografia. Não sobrou nenhum exemplar - testemunho deJosé Saramago no JL, Ano IX, no. 354, de 18 a 24/04/89, 8-12.)

1975 - O Ano de 1993. Lisboa: Editorial Futura. (Editorial Caminho - 2.ed.1987).

1977 - Manual de Pintura e Caligrafia. Lisboa: Moraes Editores. (EditorialCaminho - 2.ed. 1984; 3.ed. 1986)

1977 - Objeto Quase. Lisboa: Moraes Editores. (Editorial Caminho - 2.ed.1984; 3.ed. 1986)

1978 - Poética dos Cinco Sentidos. (Obra Coletiva) - O Ouvido. Lisboa:Livraria Bertrand.

1980 - Levantado do chão. Lisboa: Editorial Caminho. (Trad. russa pelaEdições Progresso, Mocovo, 1982; Ed. Brasileira São Paulo: Difel,1982; Trad. Alemã Berlim: Aufban Verlag, 1985)

1981 - Viagem a Portugal. Lisboa: Círculo do Livro. (2.ed. 1985 - EditorialCaminho - 1984 - 2.ed., 1988)

1982 - Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho.1984 - O Ano da morte de Ricardo Reis. 6.ed. Lisboa: Editorial Caminho,

1986. (trad. espanhola - Barcelona: Seix Barral, 1985; 2.ed. 1987;trad. italiana - Milão: Feltrinelli, 1985)

1986 - A Jangada de Pedra. Lisboa: Editorial Caminho. (trad. espanhola -

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Barcelona: Seix Barral; 3.ed., 1987)1987 - A Segunda Vida de São Francisco de Assis.1989 - História do Cerco de Lisboa. Lisboa: Editorial Caminho. (São Paulo:

Companhia das Letras. 1.reimpressão, 1989)1991 - O Evangelho segundo Jesus Cristo. Lisboa: Editorial Caminho.

(São Paulo: Companhia das Letras, 1.reimpressão, 1991)Teatro1979 - A noite. Lisboa: Editorial Caminho. (2.ed. 1987)1980 - Que farei com este livro? Lisboa: Editorial Caminho. (2.ed. 1981)1993 - IN NOMINE DEI. Lisboa: Editorial Caminho.Ensaio e crítica1988 - “O meu iberismo” - IN Jornal de letras, artes e idéias, Ano VIII, no.

330.1990 - “História e Ficção” - IN Jornal de letras, artes e idéias, Ano X, no.

400.Crônicas e Editoriais1971 - Deste Mundo e do outro (crônicas publicadas em A Capital em 68-

69). Lisboa: Arcádia, 1971. (Lisboa: Editorial Caminho - 2.ed. 1985;3.ed. 1986)

1973 - A Bagagem do viajante (crônicas publicadas em A Capital e Jornaldo Fundão). Lisboa: Editorial Futura, 1973. (Lisboa: EditorialCaminho - 2.ed. 1986; 3.ed. 1988)

1974 - As opiniões que o D.L. teve (editoriais publicados no Diário deLisboa). Lisboa: Seara Nova/Editorial Futura

1976 - Os Apontamentos. Seara Nova cronicas. (editoriais anteriormentepublicados no Diário de Notícias - 11/03 a 25/11/75)

Obs: A data `a esquerda do título refere-se à primeira edição da obra.