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O LIVRO THESOURO DE MENINOS, DE PEDRO BLANCHARD, NO ENSINO DE MATEMÁTICA DAS ESCOLAS DE PRIMEIRAS LETRAS NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO Eduardo Vianna Gaudio SEDU/ES – Rede DOCTUM de Ensino Intencionamos com este texto apreciar o livro “Thesouro de Meninos”, de autoria de Pedro Blanchard, a partir de sua inserção e utilização no ensino de matemática nas escolas de primeiras letras da província do Espírito Santo, durante o período imperial brasileiro. Para isso foi necessário montar um quebra-cabeças a partir de fragmentos de pequenas informações sobre esse ensino. Iniciamos apontando o caráter nacional do ensino da matemática a partir dos primórdios da instituição escola no Brasil, o que consideramos após a independência. O ano de 1827 é o ano da Lei de 15 de novembro que cria escolas primárias a partir da carta outorgada por D. Pedro I, em 1824, que estabelecia, dentre outras coisas, a gratuidade do ensino primário. O projeto da Lei previa que "os professores ensinarão a ler, escrever e contar [...]". Os debates na Câmara modificaram o texto original e muita polêmica ocorreu a partir da sugestão de que fosse, no ensino primário, ensinada a "resolução prática dos problemas de geometria elementar". De todo modo, desde o texto de Martim Francisco, o conhecimento da geometria é pensado como importante na escola de primeiras letras. Baseada no trabalho de Condorcet, a proposta para ensino da matemática na primeira escolarização, mencionava que os alunos no primeiro ano deveriam aprender o sistema de numeração, no segundo as quatro operações da aritmética e as "primeiras noções de geometria, particularmente as que forem necessárias à medição dos terrenos" e, além disso, haveria necessidade de "exercitar o menino em traçar figuras já à mão, já com o compasso e régua". Assim, a polêmica tem início (VALENTE, 1999, p. 111). A fim de constituir um povo civilizado, o projeto educativo era fundamento básico. “Como uma invenção imperial, em grande parte dos discursos a aprendizagem da leitura, da escrita, das contas, bem como a freqüência à escola se apresentava como fator condicional de edificação de uma nova sociedade”. (VEIGA, 2008, p. 502). Para construir esta nova sociedade era preciso que os cidadãos possuíssem alguns conteúdos acadêmicos, e estes deveriam ser aprendidos na escola. Segundo Saviani (2006, p. 21), a partir da Reforma Coutto Ferraz o ensino escolar ganharia um caráter um pouco mais amplo, estendendo o conteúdo acadêmico a aplicações práticas e cotidianas.

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O LIVRO THESOURO DE MENINOS, DE PEDRO BLANCHARD, NO ENSINO DE

MATEMÁTICA DAS ESCOLAS DE PRIMEIRAS LETRAS NA PROVÍNCIA DO

ESPÍRITO SANTO

Eduardo Vianna Gaudio

SEDU/ES – Rede DOCTUM de Ensino

Intencionamos com este texto apreciar o livro “Thesouro de Meninos”, de autoria de Pedro

Blanchard, a partir de sua inserção e utilização no ensino de matemática nas escolas de

primeiras letras da província do Espírito Santo, durante o período imperial brasileiro. Para

isso foi necessário montar um quebra-cabeças a partir de fragmentos de pequenas informações

sobre esse ensino. Iniciamos apontando o caráter nacional do ensino da matemática a partir

dos primórdios da instituição escola no Brasil, o que consideramos após a independência.

O ano de 1827 é o ano da Lei de 15 de novembro que cria escolas primárias a partir da carta outorgada por D. Pedro I, em 1824, que estabelecia, dentre outras coisas, a gratuidade do ensino primário. O projeto da Lei previa que "os professores ensinarão a ler, escrever e contar [...]". Os debates na Câmara modificaram o texto original e muita polêmica ocorreu a partir da sugestão de que fosse, no ensino primário, ensinada a "resolução prática dos problemas de geometria elementar". De todo modo, desde o texto de Martim Francisco, o conhecimento da geometria é pensado como importante na escola de primeiras letras. Baseada no trabalho de Condorcet, a proposta para ensino da matemática na primeira escolarização, mencionava que os alunos no primeiro ano deveriam aprender o sistema de numeração, no segundo as quatro operações da aritmética e as "primeiras noções de geometria, particularmente as que forem necessárias à medição dos terrenos" e, além disso, haveria necessidade de "exercitar o menino em traçar figuras já à mão, já com o compasso e régua". Assim, a polêmica tem início (VALENTE, 1999, p. 111).

A fim de constituir um povo civilizado, o projeto educativo era fundamento básico. “Como

uma invenção imperial, em grande parte dos discursos a aprendizagem da leitura, da escrita,

das contas, bem como a freqüência à escola se apresentava como fator condicional de

edificação de uma nova sociedade”. (VEIGA, 2008, p. 502). Para construir esta nova

sociedade era preciso que os cidadãos possuíssem alguns conteúdos acadêmicos, e estes

deveriam ser aprendidos na escola.

Segundo Saviani (2006, p. 21), a partir da Reforma Coutto Ferraz o ensino escolar ganharia

um caráter um pouco mais amplo, estendendo o conteúdo acadêmico a aplicações práticas e

cotidianas.

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A organização do ensino tinha por base um currículo elementar compreendendo "a instrução moral e religiosa, a leitura e escrita, as noções essenciais de gramática, os princípios elementares de aritmética, o sistema de pesos e medidas do município" (artigo 47), a serem desenvolvidos nas escolas primárias de primeiro grau. Esse currículo básico seria enriquecido nas escolas primárias de segundo grau com "o desenvolvimento da aritmética em suas aplicações práticas, a leitura explicada dos evangelhos e notícias da história sagrada, os elementos de história e geografia, principalmente do Brasil, os princípios das ciências físicas e da história natural aplicáveis aos usos da vida" (idem). Prosseguiria, ainda, com "a geometria elementar, agrimensura, desenho linear, nomeações de música e exercícios de canto, ginástica, e um estudo mais desenvolvido do sistema de pesos e medidas, não só do município da Corte, como das Províncias do Império, e das Nações com que o Brasil tem mais relações comerciais" (idem).

No caso da província do Espírito Santo, pelo menos no “Regime interno das escolas: para se

observar provisioramente” constituído a partir do Regulamento de 1848, também elaborado e

assinado por Coutto Ferraz o ensino de matemática se estendia ao simplorismo acadêmico

constituído a partir das discussões políticas do início do período imperial, como podemos

apreciar em um treco do já citado documento, publicado no Jornal Correio da Victória de 28

de outubro de 1849.

[...] Na 3ª sala estão em 1º banco os que estudão a grammatica nacional, e a aritmética mercantil em 1as operações: no 2º banco os que estudão a grammatica, proporções arithmeticas e geométricas: no 3º banco os que continuão nestes mesmos exercícios e com especialidade na syntaxe, orthografia, elementos de geographia, e historia. Victoria 28 de outubro de 1849. – O director, Luiz da Silva Alves d’ Azambujo Susano (CORREIO DA VICTÓRIA, 1849, p.2-3).

No caso do ensino da matemática, nas escolas de primeira classe o ensino ia além da

aritmética básica, incluindo aplicações práticas desta, proporções e geometria prática.

Ressaltamos que estas escolas, estavam estabelecidas em lugares de população mais

volumosa, consequentemente regiões mais urbanizadas. Naquelas onde o grupo de alunos em

estado de aprender estiver na faixa de 20 alunos, as de segunda classe, o ensino deveria-se

restringir às quatro operações de aritmética de forma teórica e prática.

A este povo tão humilde e “ignorante” cabiam apenas estudos rudimentares de aritmética,

pois os saberes necessários a sobrevivência nesta sociedade ainda são elementares, visto que o

desenvolvimento urbano e industrial ainda era incipiente na sociedade brasileira quiçá na

sociedade espírito-santense.

Na busca de instrução rudimentar em matemática, a fim de resolver cálculos domésticos, ou

comerciais de baixa complexibilidade, a população recorria às taboadas. No Brasil, assim

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como nas nações européias, o livro texto também fazia parte deste universo escolar. No caso

da matemática, de acordo com Valente (1999, p. 128):

Os primeiros autores de livros didáticos destinados às nascentes escolas de primeiras letras e liceus orientam-se, como se viu, por Bézout e por Lacroix. Simples é a explicação: mestres que foram da Academia de Marinha onde Bézout era o autor adotado; ou professores da Academia Militar, onde dominavam as obras de Lacroix, natural era que sofressem, para a escrita de seus textos didáticos, a influência desses autores.

Concluímos que, pela simplicidade, ou não complexibilidade, do ensino primário, devidas

diversas questões as quais realizamos antecipadamente, estes livros não devem ter chegado à

escola primária. E se chegaram não foram utilizados, ou até mesmo rejeitados devido seu grau

de complexibilidade. O s compêndios chegavam às escolas por meio da presidência, que:

Tanto em Portugal, como no Brasil, os livros passavam por uma análise; os aprovados eram indicados para utilização nas escolas. Registravam-se, nessas determinações, não apenas a preocupação com a qualidade dos manuais, mas também uma forma de assegurar um maior controle sobre os conteúdos e práticas escolares (ZUIN, 2007, p.202-203).

As comissões, e ou a quem de direito examinava os livros a serem adotados na escola elegiam

critérios para esta escolha. Segundo Galvão (2005, 2010, p.8) estes deveriam atender às

necessidades básicas da população.

Além de útil, o livro escolar também deveria ser bem organizado. Para ser aprovado, o manual deveria apresentar uma seqüência lógica, não ser confuso, ser claro/breve, ser metodicamente planejado, ser adequado ao uso escolar. Na segunda metade do oitocentos, os manuais também deveriam se basear nos preceitos do método intuitivo: suas páginas deveriam coadunar-se com um espírito mais prático do que teórico e, entre os recursos possíveis para que isso ocorresse, recomendava-se o uso de desenhos, de exercícios, de quadros. Percebe-se, nesse aspecto, a consciência que tinham os que estavam à frente das instâncias de instrução pública provinciais de que o conhecimento científico era distinto do conhecimento escolar. Cabia ao manual mediar essas duas instâncias: se, como vimos, o manual deveria estar isento de imprecisões e inexatidões científicas, também deveria adequar-se ao uso cotidiano da escola e ao público ao qual se destinava.

O livro devia servir ao professor como guia na instrução. Cabia ao mesmo a função de

organizar o processo educativo em torno do que se tinha como conhecimento nos livros e o

que se desejava como conhecimento que os alunos deveriam saber a partir dos processos

educativos.

Em nosso texto não temos a intencionalidade de realizar análise de livros didáticos, mas

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realizaremos discussões sobre alguns deles, que foram utilizados na província do Espírito

Santo, como documentos. Até a segunda metade do século XIX, a produção nacional de livros

didáticos era praticamente inexistente. A maioria dos livros utilizados nas escolas eram

portugueses.

Gonçalves Dias inspecionou escolas públicas de diversas províncias do Norte e Nordeste do país e em seu relatório sobre a inspeção, redigido em 1852, indica a utilização de compêndios portugueses. Com poucas exceções, somente a partir da segunda metade dos Oitocentos, a produção de manuais escolares, assinados por autores brasileiros, passou a fazer parte do cenário educacional, indo ao encontro da tendência nacionalista já instaurada em uma época de expansão educação no país (ZUIN, 2007, p. 203).

Um dos compêndios utilizados na província do Espírito Santo era o “Método facílimo para

aprender a ler e escrever tanto a letra redonda como a manuscrita no mais curto espaço de

tempo” que segundo (ZUIN, 2007, p. 145) também era utilizado em outras províncias no

Brasil, e este era consagrado no território português.

Na declaração no jornal Correio da Victória, de 13 de agosto de 1857, na seção “Instrução

Pública”, dos compêndios aprovados para uso no ensino primário, destacamos o método de

Monteverde, e o Thesouro de meninos, ao qual no debruçaremos neste momento, devida rara

oportunidade de estar em contato direto a uma digitalização deste compêndio.

Instrucção publica – Para o ensino primário desta província, sob proposta do director das escolas, acabão de ser aprovados os seguintes compêndios: Methodo facílimo para aprender a ler, por Monteverde. Cathecismo de Montepellier, nova edição, da que acompanha princípios de orthografia, arithimetica, e geografia. Thesouro de meninos. Arithmetica e gramática nacional do Sr. Suzano (CORREIO DA VICTORIA, 1857, p. 2).

Observarmos o ofício, de sete de novembro de 1859, da remessa de livros da presidência para

a diretoria de instrução pública envolvendo compêndios que detacamos em nossa pesquisa,

inclusive o Tesouro de Meninos.

Palácio da Província do Espírito Santo 7 de Novembro de 1859 – Manda Vossa Mercê receba na Secretaria da Província novos volumes das obras elementares encomendadas para serem distribuídas pelos Inspctores da instrucção publica da Província conforme o disposto no § 2º do artigo das instrucções de 5 deste mez sendo o preço que devo aguardar o constante da nota que junta lhe envio = Deus guarde a Vossa Mercê = Pedro Leão Vellozo = N. Director da instrucção publica. Tesouro de meninos ..................2$000

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Cathecismo ............................... 1$280 Methodo facilimo ....................... 1$000 Grammatica Suzano .................. $800 Taboada ...................................... $ (ESPÍRITO SANTO, 1855-1862, p. 98).

Ainda destacamos a presença do mesmo compêndio na relação de objetos das escolas de

segunda cadeira de instrução primária de Vitória presentes no relatório de Dr. José Ortiz,

professor de 2ª cadeira, elaborado em nove de abril de 1861, em anexo ao relatório

governamental de Costa Pereira Júnior ,de 23 de maio de 1861.

RELAÇÃO DE MOVEIS E OUTROS OBJECTOS, PERTENCENTES ÁS ESCOLAS DA 2ª CADEIRA DE INSTRUCÇÃO PRIMARIA DA VICTORIA 1 Cruz de madeira 2 Mezas grandes para a escripta. 2 Bancos ditos para as mezas. 17 ditos para assento. 1 Tamborete. 30 Quadros com exemplares. 10 cabides para chapeos. 20 Cathecismos históricos. 8 Ditos de Montpellier. 5 Iris clássicos. 12 Methodos facillimos de Monteverde. 3 Thesouros. 4 Grammaticas. 10 taboadas. 1 Livro de leis da Província. 1 Dito para assentamento dos compêndios distribuídos aos alumnos. [...] A época do recebimento dos 7 primeiros artigos d’esta relação não sei, porque teve logar antes de tomar eu posse da escola: parece-se comtudo muito antigos e julgar pelo aspecto desse objectos. Quanto a época do recebimento dos objectos que seguem é a dos cathecismos históricos e Íris, 1º de outubro de 1860; a do livro das leis da província, 20 de agosto de 1860; a de todos os mais livros, 16 de janeiro de 1860 (ESPÍRITO SANTO, 1861, APENSO, p. 5).

Após constatarmos a presença deste manual nas escolas primárias espírito-santenses

abriremos um espaço de apreciação e análise do livro “Thesouro de Meninos” de Pedro

Blanchard, traduzida para o português por Mattheus José da Costa. Segundo Sena (2010, p.

256):

Embora se desconheça o registro da sua primeira edição, suponho que seja uma produção do século XVIII. A presença dessa obra no Brasil é datada do ano de 1808, tendo sido traduzida para a língua portuguesa pelo português Matheus José da

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Costa, já que a presença dessa obra no Brasil ocorreu em 1808, registrada através do pedido a Real Mesa Censória1.

A edição que tivemos acesso é a sexta, de 1851. Como nossos indícios de uso no Espírito

Santo são posteriores a esta data, acreditamos ser possível que esta edição tenha sido utilizada

nas escolas primárias espírito-santenses, são não uma similar, ou próxima a ela.

Figura 31: Capa da 6ª edição do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa, 1851, 2010. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

Como intitula na capa do referido manual o livro é dividida em três partes: moral, virtude e

civilidade. Talvez esta tenha sido a composição inicial do texto. Esta edição, a sexta, é

1 A real Criada a Mesa Censória foi criada a de Abril de 1768, pelo Marquês de Pombal, com o fim de reformar o sistema de censura de livros que circulavam em Portugal e seus domínios. Três anos depois será atribuída à Real Mesa Censória a administração e direcção dos estudos das escolas menores, incluindo o Colégio dos Nobres e todos os outros colégios existentes ou que viessem a ser criados, e que até aí tinham estado sob a responsabilidade da Direcção Geral dos Estudos (http://www2.warwick.ac.uk/fac/soc/wie/eubuildit/educational/reformapombalina/censoria/).

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[...] emendada, ornada com16 estampas, e enriquecida de extractos de poesia para facilitar a leitura dos versos, de noções preliminares de arithmetica ou as quatro operações, de um compendio de historia sagrada, de breves noções de geographia, e da tabella dos reis de Portugal (BLANCHARD, 1851, 2010, capa).

Destacamos inicialmente que este livro tinha intenção primeira a moralidade e a civilidade,

que segundo o editor, em sua dedicatória, estas intenções eram necessária a sociedade. Esta

observação já seria um fator que justificaria a utilização deste compêndio no Brasil. O povo

precisa de civilidade e moralidade para que a nação se desenvolva. No projeto imperial, a

constituição de uma nação estava pautada na estruturação e consolidação de uma sociedade

civilizada, educada, e aculturada.

Ainda nessa dedicatória, Borel, Borel e companhia (BLANCHARD, 1851, 2010, dedicatória)

a adoção de noções preliminares de aritmética, [... ]

Figura 32: Trecho final da dicatória da 6ª edição. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard –

Lisboa, 1851, 2010. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

Não encontraremos neste compêndio, um grande tratado de aritmética, mas acreditamos ser o

que de fato fosse o conteúdo necessário, e/ou possível, para instrução primária da província

espírito-santense. Vejamos no índice desta edição:

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Figura 33: Índice da 6ª edição. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa, 1851, 2010, p.

384. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

Das 385 páginas do compêndio, apenas 20 páginas, de 237 a 257, são dedicadas à aritmética.

Nossa avaliação inicial, de não se tratar por essência um compêndio de aritmética, pode ser

comprovada pelo aspecto quantitativo da composição do compêndio, e pela dedicatória inicial

dos editores.

Corroborando com Abreu (2002, 2010, p. 150) o texto base do Thesouro de meninos,

É uma narrativa em que um “Pai de Famílias” dá instruções a quatro jovens sobre

cosmografia, mineralogia, botânica e zoologia, dentro de uma estrutura narrativa que os leva a

passeios, observações da natureza e conversas, nas quais não faltam conselhos sobre os

“deveres da Moral, da Virtude e da Civilidade”.

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Parece-nos que ao adotar este compêndio, de certa forma, se o mesmo fosse realmente

utilizado, o ideal civilizatório poderia-se contretizar a esses moldes. Nada melhor para isso

que um manual de conduta, a isto que este compêndio se pretendia num primeiro momento, o

que fica bastante claro em seu texto. Rememoramos que este pode ser apreciado na íntegra no

anexo digital a este texto.

Na pequena parte de matemática, sem pretender realizar uma análise de livro didático, até

mesmo porque este livro não tinha caráter acadêmico, apesar de ter sido amplamente utilizado

nas escolas primárias portuguesas e brasileiras, buscaremos apontar seu conteúdo, forma de

abordagem, e algumas curiosidades.

Inicialmente verificamos que o texto é descritivo e explicativo. Ele não se pretende apresentar

como um texto didático, orientando alunos e professores. Ele descreve os conceitos como se

estivesse relatando um fato, um acontecimento, construindo uma definição. Podemos observar

isto na página inicial da parte de matemática, como ilustra a figura 34.

Figura 34: Introdução da parte de matemática. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard –

Lisboa, 1851, 2010, p. 237.

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Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

Em termos de conteúdo, o Thesouro de Meninos se restringe, em matemática, a definição de

número – introduzindo a idéia de número monetário, às quatro operações, regra de três, e a

“Tabella ou divisão dos pesos e medidas” (BLANCHARD, 1851, 2010, p.254). Lembrando

que não era um compêndio para uso em escolas, ele não preconizava o exercício do

aprendizado a partir da leitura.

Nesse compêndio não existiam listas de exercícios, apenas alguns poucos exemplos do que

ele buscava ensinar como o texto descritivo, e explicativo. Esta idéia reforça o que já

havíamos comentado: o papel do professor era se utilizar dos conteúdos livrescos e conduzir,

junto aos seus alunos, o processo de aprendizagem e memorização do conteúdo, o que

acontecia na maioria das vezes de modo oral e repetitivo.

No início, antes de apresentar as operações, depois de apresentar os números monetários ele

apresenta uma tabuada. Esta curiosa, pois apresenta-se na forma de tabela, com fundamentos

cartesianos, como podemos observar na figura 35, extraida da página 240.

Figura 35: Tabuada de Pythagoras. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa, 1851,

2010, p. 239-240. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

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Outra curiosidade é a denominação, sem nenhuma explicação, desta tabuada de “Pytagoras”.

No século XVI, em portugal já se utilizavam outras tabuadas, um pouco mais simples, em

nosso ponto de vista, de serem entendidas pelos leitores. O detalhe que podemos apontar é

que no texto de Blanchard a tabuada era condição necessária para se aprender a fazer contas,

tal qual no livro de Nicolas. Fica comprovado que a apresentação de uma tabuada no início

dos estudos de aritmética, principalmente para realizar as primeiras operações, era

considerado necessário desde início do século XVI, em Portugal, até o império brasileiro no

século XIX. Decorá-la era fundamento para conseguir aprofundar nos estudos de aritmética,

que para o século XIX, nas escolas primárias brasileiras em geral, se resumia nas quatro

operações, na regra de três, e nos sistemas monetário e de pesos e medidas.

Quando apresenta as operações (Blanchard), as descreve como receita, detalha conceitos

como o de números decimais – classes e ordens –, exemplifica, em alguns momentos

utilizando valores monetários, mas curiosamente, na montagem da sentença, não utiliza a

simbologia, chamados “signaes algebricos” apresentada na montagem da “contas”, como

podemos apreciar nas figuras 38, 39, 40 e 41, que seguem:

Figura 38: Apresentação dos sinais algébricos. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard –

Lisboa, 1851, 2010, p. 240. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

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Figura 39: Apresentação da conta de somar. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa,

1851, 2010, p. 241. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

Figura 40: Demonstração da conta de somar. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa,

1851, 2010, p. 241. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

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Figura 41: Apresentação de conta montada de subtração utilizando valores monetários. Fragmento do Thesouro

de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa, 1851, 2010, p. 243. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

Os sinais algébricos aparecem na descrição das operações em forma de sentença, mas não na

montagem das contas. Detalhe interessante do exemplo é a explicação do “vai um” quando o

detalhamento da operação é descrito: a conversão de dez unidades e uma dezena, e de dez

dezenas em uma centena, em vez de “vai um”, no texto de Blanchard, “guarda-se o 1”.

Podemos afirmar que a construção conceitual não era tão primária, ou rudimentar, assim, mas

para possíveis leigos no assunto um caminho interessante para se aprender uma regra, uma

norma que conduzisse a realização de uma operação.

Após a apresentação das operações, o texto de Blanchard apresenta a prova das contas, como

podemos observar na figura 42, que segue:

Figura 42: Explicação da Prova. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa, 1851, 2010,

p. 250. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

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No texto verificamos a possibilidade de utilização de duas regras para realizar a conferência

das contas: a “prova real” e a “prova dos nove”. Exemplos só aparecem da prova real,

operação inversa, e nenhuma explicação sobre a prova dos nove.

Continuando do texto Blanchard, apresenta a regra de três, baseando-se no conceito de

proporção – ele não detalha esse conceito –, introduzindo a incógnita “x”; a construção de

sentença na forma de equação lógica, mesmo que a resolva apenas com as contas; e apresenta

a idéia do juro e de como calculá-lo. O conceito de porcentagem é utilizado, mas não é

detalhado, como podemos observar nas figuras 43 e 44, que seguem:

Figura 43: Apresentação da regra de três. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard – Lisboa,

1851, 2010, p. 251-252. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

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Figura 44: Modo de preparar o juro a qualquer quantia. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro Blanchard

– Lisboa, 1851, 2010, p. 251-252. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

Finalizando a parte do livro “Thesouro de Meninos”, Pedro Blanchard, apresenta a tabela de

conversão de pesos e medidas. Quanto a esta questão já nos reportamos anteriormente em

nosso texto. Aqui consideraremos apenas uma reflexão sobre o livro em questão. O detalhe

que nos chama a atenção neste compêndio é que no mesmo apenas apresenta-se uma tabela de

conversão de medidas, o que podemos ver em fragmento do texto, figura 45, que segue:

Figura 45: Início da tabela de conversão de pesos e medidas. Fragmento do Thesouro de Meninos de Pedro

Blanchard – Lisboa, 1851, 2010, p. 254. Fonte: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.

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Finalizando a reflexão sobre este livro, gostaríamos de reforçar a idéia de que o mesmo não

tinha como gênese de existência ser um livro de uso escolar. O formato, a linguagem didática

se dá em função de ser um livro de caráter civilizatório, moralizador. O trecho do livro

destinado à matemática, se restringe ao cálculo aritmético e a uma tabela de conversão de

pesos e medidas. Não tem nenhuma pretensão de der um compêndio de matemática escolar,

apesar de ter sido amplamente utilizado, como já comprovamos.

O livro de Pedro Blanchard, “Tesouro de Meninos”, tem texto com linguagem simples, para

pessoas simples. Talvez esta tenha sido a motivação de utilizá-lo em escolas, principalmente

primárias, onde os alunos pouco sabiam e precisavam, aos poucos, ir se tornando civilizados,

pois eram crianças, e no pensamento da época, precisavam ser docilizados. Mesmo assim não

podemos descartar a possibilidade deste ter sido utilizado pelas famílias, fora da escola, na

educação doméstica de seus filhos.

Acreditamos que o ensino primário de matemática na província do Espírito Santo tenha sido

bastante incipiente por motivos aos quais já temos discutidos anteriormente: a falta de

docentes qualificados, e/ou habilitados para a envergadura do cargo; as condições precárias

das escolas primárias; materiais (dentre eles os livros) inadequados para tal nível de instrução;

descaso da população com a instrução pública; dentre outros motivos.

A matemática que era efetivamente ensinada nas escolas primárias pode ser resumida, a partir

de nossas investigações, nos seguintes conteúdos: as quatro operações básicas, sendo elas

adição, subtração, multiplicação e divisão; princípios de proporção, através da regra de três; e

o sistema de pesos e medidas, e sua conversão dos sistemas antigos para o novo sistema

adotado no império brasileiro. Esta não apresentava bons resultados, em geral, assim como

todo o ensino primário da província durante o período em que nos dedicamos a estudar.

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