O lugar da técnica CIVITAS 2012

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    DESAFIOS CONTEMPORNEOS PARA A ANTROPOLOGIA NOCIBERESPAO: O LUGAR DA TCNICA

    COMTEMPORARY CHALLENGES FOR ANTHROPOLOGY IN THECYBERSPACE: THE ROLE OF TECHNIQUE

    Theophilos RifiotisDepartamento de AntropologiaPrograma de Ps-graduao em Antropologia SocialGrupCiber (Grupo de Pesquisa em Ciberantropologia)UFSC

    RESUMO: A antropologia no ciberespao tem como ponto de partida a comunicaomediada por computador, que, explicita ou implicitamente, pressupe umaexterioridade dos objetos tcnicos e reduz a agentividade apenas aos seres humanos. O

    presente trabalho procura refletir criticamente sobre tais pressupostos a partir de umadupla inspirao terico-metodolgica: em primeiro lugar, tomando como referncia amatriz clssica inaugurada por M.Mauss sobre a tcnica nas sociedades tradicionais eanalisando a especificidade atribuda condio moderna com relao a tcnica; numsegundo momento e complementarmente, o texto avana no sentido de sistematizar osdebates contemporneos sobre agncia e os limites da dicotomia humano/tcnico,especialmente a partir das obras de B.Latour, notadamente a partir da noo deciborgue. Trata-se, portanto, de uma releitura da perspectiva antropolgica clssica daabordagem da tcnica e o questionamento da noo moderna de objeto-tcnico aplicadoao ciberespao. Em ltima instncia, colocamos em debate as noes de uso,apropriao e representao dos objetos tcnicos nos estudos antropolgicos nociberespao.PALAVRAS-CHAVE: cibercultura, teoria ator-rede, agncia, redes sociotcnicas,hibridismo

    ABSTRACT: The starting point for anthropology in cyberspace is the idea of communication mediated by the computer. Such an idea presupposes, explicitly or implicitly, a certain exteriority of the technical objects and, at the same time, itcircumscribes agentivity exclusively to human beings. The present paper proposes acritical reflection about these assumptions by exploring a twofold theoretical andmethodological inspiration. Firstly it approaches the classical matrix about technique intraditional societies, as it was first conceived by M. Mauss, as a reference and itanalyses the specificity attributed to the modern condition regarding technique. In asecond and complementary moment the paper advances as it systematizes thecontemporary debates about agency and explores the limits of the human/technicaldichotomy. Here it dwells specifically on the works of B. Latour, and the notion of cyborg. It is thus a rereading of the classical anthropological perspective regarding theapproach of technique and the questioning of the modern notion of object-technical as itis applied to cyberspace. Finally, the paper discusses notions such as usage,appropriation and representation of technical objects in the anthropological studiesin cyberspace.KEY-WORDS: cyberculture, actor-network theory, agency, sociotechnical networks,hybridism

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    APRESENTAO

    Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careo de que o bom seja bom e o ruimruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e aalegria longe da tristeza! Quero os todos pastosdemarcados... Como que posso com este mundo? Avida ingrata no macio de si; mas transtraz aesperana mesmo do meio do fel do desespero. Aoque, este mundo muito misturado... (Riobaldo)G. Rosa, Grandes Sertes Veredas.

    Procuro no presente texto sistematizar algumas questes sobre as quais venhotrabalhando nos ltimos anos relacionadas ao hibridismo e agncia no-humanaespecialmente no campo da antropologia no ciberespao1. Para alm de uma aparentenovidade, tais questes tm se revelado estratgicas e motivo de embates dentro docampo antropolgico e da comunicao, especialmente para os estudos dacibercultura2. Dentro dos limites dessa publicao, apresento uma breve discussodos principais argumentos que tenho defendido no campo e seus desdobramentos.

    Tomarei como foco analtico uma releitura da perspectiva antropolgica clssicada abordagem da tcnica e o questionamento da noo moderna de objeto-tcnico.

    Concretamente, defenderei uma posio crtica em relao a noes correntes no campoda cibercultura tais como uso, apropriao e representao envolvendo osobjetos tcnicos.

    Lembro que as questes que sero mais adiante levantadas so resultantes dediferentes influxos e esto longe de poderem ser consideradas uma novidade para aantropologia3. De fato, na minha perspectiva, desde o final dos anos 80, e

    1

    Trabalho apresentado na 28. Reunio Brasileira de Antropologia (So Paulo, julho de 2012).2 Desde 1997, no GrupCiber (Grupo de Pesquisa em Ciberantropologia) do Programa de Ps-graduaoem Antropologia Social da UFSC temos procurado desenvolver a pesquisa e a reflexo terica no camposociotcnico. Pessoalmente, tenho defendido a importncia desses debates em todos os Simpsios daAssociao Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber) desde 2008, colocando em perspectiva o lugar da tcnica na antropologia e repensando as noes de rede e tcnica. Especialmente a partir dos Simpsios de 2010 e 2011, em que houve atividades que tomaram a teoria ator-rede comoreferncia central para os debates. Delas participaram renomados pesquisadoras da rea como AndrLemos, Lcia Santaella, Erick Felinto, Mssimo de Felice e Fernanda Bruno.Registro desde logo que considero a noo de cibercultura como problemtica e defendendo quedeveramos (...) ao invs de definies apriorsticas de ciberespao, cibercultura, etc., que poderiam seconfundir com um nominalismo, retomamos as interrogaes bsicas sobre como se do as interaesnesse espao. Possibilitando, ento, condies para revisitarmos criticamente os conceitos e princpios

    metodolgicos da Antropologia. (Rifiotis, 2002, p. 3)3 A reflexo crtica que estou propondo tem como ncora os trabalhos desenvolvidos pelo GrupCiber doPPGAS/UFSC e devedor dos dilogos, argumentos e pesquisas desenvolvidas em pareceria

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    marcadamente desde o incio dos anos 90, observa-se um significativo esforo para pensar questes crticas tais como a relao sujeito-objeto, natureza-cultura e sociedade-tcnica. Elas so fundamentais para o enfrentamento dos horizontes antropolgicos dacibercultura, sobretudo, na discusso sobre o lugar da tcnica. Podemos citar diversostextos da maior relevncia como os de Bruno Latour Une sociologie sans objets?Remarques sur l'interobjectivit (1994) ou o mais conhecido deles Jamais fomosmodernos (2000), publicado inicialmente em 1991. No campo especfico da chamadacibercultura digno de nota o esforo de Arturo Escobar em Welcome to cyberia. Notes on the Anthropology of Cyberculture (1994), publicado na prestigiosaCurrent Anthropology com comentrios comentrios interessantes, dentre os quais destacaria osde Marilyn Strathern pelas suas contribuies na reviso crtica da antropologia. Porm,o trabalho mais emblemtico e radical de daquele momento tenha sido publicadooriginalmente em 1991 por Donna Haraway e foi intitulado Manifesto ciborgue:cincia, tecnologia e feminismo-socialista no final do sculo XX (2000). A leitura atualdesses trabalhos continua atual e pode nos auxiliar na definio dos rumos da pesquisaantropolgica da cibercultura, especialmente na vertente da Teoria Ator Rede.

    Foi inspirado pela Teoria Ator Rede, sistematizada por Latour em Reenssablar elsocial (2005), que venho refletindo sobre o que chamaria de hiato entre o estudo datcnica e dos objetos nas sociedades tradicionais e modernas, e a necessidade deuma simetrizao que nos possibilite perceber e pensar a tcnica e os objetos para almda sua aparente exterioridade e limites dados pelo estreito permetro do uso,apropriao e representao. numa perspectiva sociotcnica que procurareidesenvolver meus argumentos sobre o hibridismo e a agncia no-humana.

    Um clssico moderno

    Marcel Mauss pode parecer uma referncia secundria nos debates sobre atcnica. Podemos resgatar a sua contribuio para o campo da tcnica diretamente doclssico As Tcnicas corporais (1974, ed. org. 1936). Num sentido direto da sua prpria definio de tcnicas corporais: (...) as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos (vol. 2, 1974, p.

    211). Dessa definio preliminar, Mauss tira consequncias importantes para os estudos principalmente com Maria Elisa Mximo e Jean Segata.

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    antropolgicos, dos quais ele mesmo se diz insatisfeito, voltando-se para uma reflexosobre a ideia de que h tcnica quando h instrumento, para chegar a uma segundadefinio que o leva a uma equivalncia surpreendente:

    O corpo o primeiro instrumento e o mais natural instrumento do homem. Omais exatamente, sem falar de instrumento, o primeiro e mais natural objetotcnico, e ao mesmo tempo meio tcnico do homem seu corpo. (Mauss,vol.2, 1974, p. 217)

    Sabemos hoje a importncia dos estudos sobre corporalidade (Maluf, 2001), maso lugar da tcnica no tem sido explora de modo sistemtico. Os objetos manipulveisque esto em vnculo intrnseco e permanente com o corpo (articulaes, contatos),

    fazem do corpo e da chamada cultura material um conjunto integrado e indissocivel,desde a publicao de As Tcnicas Corporais, pelo menos esse o ponto de vistadefendido por um grupo fundado em 1995 e que procura resgatar essa contribuio deMarcel Mauss (REDE, 2003). Lembramos que em 2010 foi publicada uma seleo deartigos da revista Technique & Culture em dois volumes contendo artigos publicados narevista desde 1976, e que na nova edio cada autor comenta seus artigos. Naquela publicao fica evidente o interesse pela abordagem de Mauss e Leroi-Gourham sobre a

    tcnica e sua hibridizao do social, poltica, crena, metafsica, cultura material, eapontam uma vocao que se reatualiza no estudo da tcnica e dos objetos naantropologia. Como citada primeira pgina do primeiro volume da reedio deTechnique & Culture: Paradoxalmente, rien ne change peut-tre plus vite que lestechniques, rien ne change peut-tre plus lentement que les ides, que les faons de penser. (2010, p.6). Embora o tom possa parecer exagerado e polmico, ele nosinstiga a pensar os limites dos nossos trabalhos no campo da cibercultura.

    Retomando a questo inicial, diria que evidente que o prprio Mauss dedicou-se com maior nfase ao corpo, afastando-se dos objetos e dos instrumentos, mas aconexo estava feita e trata-se de uma espcie de anterioridade do corpo em relao aosoutros instrumentos:

    Trata-se de uma nfase consciente e que acarreta algumas consequnciasimportantes. O objetivo de Mauss era lanar luz sobre um domnio at entooculto pela noo tradicional de tecnologia: em geral, diz ele, considera-se

    equivocadamente que existe tecnologia quando um instrumento envolvido noato de manipulao. A esta technique instrument, Mauss ope um conjunto

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    de techniques du corps, s quais confere mesmo um papel preliminar: o corpo o primeiro instrumento a dominar, aquele que intermedeia a relao comtodos os demais. (Rede, 2003, p.283)

    Vale ainda lembrar que para Mauss a anlise antropolgica antes de tudo baseada no fato social total:

    Os fatos que nos interessam no so fatos especiais de tal ou qual parte damentalidade; so fatos de uma ordem muito mais complexa, a mais complexaque se possa imaginar. So aqueles para os quais proponho a denominao defenmenos da totalidade, em que no apenas o grupo toma parte, como ainda, pelo grupo, todas as personalidades, todos os indivduos na sua integridade

    moral, social e mental e, sobretudo, corporal ou material. (Mauss, vol. 1,1974, p. 198)

    Claro est que Mauss aponta horizontes, inspira, moda de um mago, emcontraste com Emile Durkheim (Fournier, 2003), ou da sua etnografia surrealista,como nos aprendeu James Clifford (1998), que ele nos d os termos conceituais para anossa reflexo sobre a tcnica. Mas est pontuado o aspecto especfico da totalidade,num certo sentido, mais integrativa qual devemos fazer face quando estudamos a

    tcnica. E ela no foi a primeira, ao modo inspirador, prprio da produo de Mauss, ele j havia sinalizado no seu Manuel dEthnographie :

    L'objet est dans bien des cas la preuve du fait social : un catalogue de charmes[objeto ou ao que exerce efeito mgico] est un des meilleurs moyens pour dresser un catalogue de rites. (Mauss, 1926, p. 7)

    A utilizao da palavra charme no sentido antigo de fetiche bastantereveladora para o nosso debate porque restitui o lugar do objeto numa plenitude, outotalidade, Mauss torna o objeto uma prova do fato social4. O social tornado matria.Portanto, entendo que tratar os objetos tcnicos em termos de uma pretensaexterioridade como pressuposto no as noes de uso, apropriao erepresentao limitar os debates e as consequncias da conexo entre o sujeito e oobjeto j anunciadas por Marcel Mauss.

    4Complementarmente, a partir dessa citao poderamos fazer uma associao com os fetiches , expressocunhada por Bruno Latour (2002) para afirmar a combinao de fato com fetiche , e que mereceria um

    desenvolvimento especfico.

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    Uma continuidade crtica

    Confiante na perspectiva aberta pela prpria antropologia, Bruno Latour inicia

    suas reflexes em Jamais fomos modernos lembrando exatamente o que chamei aqui dehiato da antropologia. Para ele, as questes crticas da modernidade no se reduzem ao processo de purificao, pois se trata de um processo sempre acompanhado de seuoposto, a traduo. Se o primeiro funciona por simplificao e reduo, o segundo proliferao de hbridos. Ser nossa culpa seas redes so ao mesmo tempo reais comoa natureza, narradas como discurso, coletivas como a sociedade? , pergunta-se BrunoLatour (2000, p. 12) apontando os limites e dilemas da modernidade.

    Frente s redes sociotcnicas, somos muitas vezes interpelados pela justaposiodo social ao tcnico. Tratando-os de modo separado, purificado, pensamos em duasentidades e tratamos de procurar os melhores meios para recoloca-las em aproximao.Porm, a questo : conseguiremos restituir o amlgama que foi perdido? exatamentenesse sentido que a antropologia traria uma resposta aos dilemas produzidos pelasegmentao e purificao, citando Latour:

    Este dilema permaneceria sem soluo caso a antropologia no nos houvesse

    acostumando, h muito tempo, a tratar sem crise e sem crtica o tecido inteiriodas naturezas-culturas. (...) Basta envi-lo (o etngrafo) aos arapesh ou achuar,aos coreanos ou chineses, e ser possvel uma mesma narrativa relacionando ocu, os ancestrais, a forma das casas, as culturas do inhame, de mandioca ou dearroz, os ritos de iniciao, as formas de governo e as cosmologias. Nem um selemento que no seja ao mesmo tempo real, social e narrado. (Latour, 2000, p.12).

    Acreditando que a antropologia j produziu um importante conjunto de trabalhossobre a continuidade, a hibridizao do humano e no-humano, no temos como deixar de interrogar o nosso prprio modo de pesquisar a cibercultura. Fazendo uma auto-crtica em 20085, eu j anunciava uma tomada de conscincia do modo como vnhamosoperando nas pesquisas do GrupCiber 6. Fiz a crtica das noes de cibercultura,comunidades virtuais, e o que chamo desde ento de vontade de saber scio-tcnico.

    5 Comunicao apresentada na mesa-redonda II Simpsio Nacional da ABCiber (PUC/SP, 2008).6

    Um primeiro conjunto daqueles trabalhos encontra-se publicado no livro Antropologia noCiberespao, organizado por Theophilos Rifiotis, Maria Elisa Mximo, Luciano Lacerda e Jean Segata, pela Editora da UFSC em 2010.

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    Insisti na ideia de que a antropologia no tem fronteiras e que no h razo paraoperarmos na contemporaneidade de modo distinto do que operamos nas sociedadestradicionais.

    Confesso que desde o incio do meu interesse pelo campo da ciberculturaincomodava-me a ideia de comunicao mediada por computador (CMC). A prpriaideia de mediador parecia-me deslocada uma vez que tratvamos decomunicao/interao entre humanos e o computador/rede eram apenas intermedirios,invisibilizados na maior parte do tempo nas nossas descries, apenas presentes comosuporte. Por vezes um mero intermedirio, quase nunca problematizado, apenas umelemento do cenrio onde ocorrem relaes entre humanos. Em linhas gerais, diria queum mediador seria aquele que transforma que atua de modo positivo, interferindo no processo, enquanto um intermedirio como uma caixa-preta, algo que apenastransporta. Havia, em minha opinio, uma invisibilidade dos meios, dos componenteseletrnicos, dispositivos computacionais, softwares, rede fsica, etc. Se fossemoscoerentes com a perspectiva ento adotada, deveramos falar em comunicaointermediada por computador. Estimulado por essa crtica, passei a refletir sobre oselementos tcnicos da CMC, na rede sociotnica. Porm, fazia isso separando oselementos em categorias de humanos, com intencionalidade, volio, conscincia, etc,sujeitos da ao que empregam para fins que eles prprios definem os objetos einstrumentos.

    No campo dos estudos da cibercultura, a vontade de saber sociotcnico estexpressa nas descries dos modos de iniciao ou socializao dos usurios, enas possibilidades que tais descries abrem para a compreenso das modalidades deapropriao ou representao, entre outras palavras-chave correntes nos nossostrabalhos. assim que a descrio da plataforma (sempre presente e com lugar dedestaque) entendida como uma apropriao pelos sujeitos. Poderia enumerar muitosoutros aspectos, mas prefiro dizer que os identifiquei a todos eles nos trabalhos doGrupCiber, e que ela correspondia a realizar um duplo movimento: em primeiro lugar situar os elementos tcnicos, tecnolgicos e, num segundo momento tratar do social quetomaria vida naquele contexto. Era uma etapa de anlise tcnica (rede da internet,software, etc.) qual se justapunha o social, que, alis, era o objetivo mesmo da pesquisa7. Da deriva a crtica que temos feito netgrafia cujo detalhamento, para

    7 Longe de um tecnocentrismo, mas tambm de uma sociologizao, o que propomos aqui desenhar a

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    estender-me demasiado aqui, remeto aos trabalhos publicados recentemente peloGrupCiber (Rifiotis; Mximo; Cruz, 2009 e 2010; Mximo; Rifiotis; Segata; Cruz;2012), nos quais discutimos detalhadamente a questo da etnografia no ciberespao, enuma outra publicao na qual fazemos uma ponto mais diretamente em dilogo com o presente texto (Rifiotis; Segata; Mximo; Cruz, 2011). Retomamos daquele textoapenas os aspectos centrais.

    A partir de uma detalhada reviso do campo, afirmamos em A etnografia comomtodo: vigilncia semntica e metodolgica nas pesquisas no ciberespao (Mximo;Rifiotis; Segata; Cruz, 2012) que persistem os debates que mantm certas dualidades e justaposies, dentre as quais destacaria as seguintes:

    1) online e dooff-line 2) tcnico e social

    3) sujeito e objeto

    No meu entendimento, tais aspectos crticos participam de uma reviso daantropologia contempornea e no podem ser considerados apenas problemas, digamos,locais dos estudos da cibercutura. O fato de no haver uma soluo global para todosesses e outros problemas identificados nas nossas pesquisas nos coloca numa situaolimite, que nos impulsiona a uma avaliao de conjunto. A tarefa de criar uma tal visode conjunto certamente ser objeto de debates e disputas importantes, e sua resoluoainda parece distante. Porm, h pistas importantes sendo desenhadas deste o final dadcada de 90, como disse no incio do trabalho, e que ainda tem grande potencial nessesentido.

    Assim, seguindo a argumentao de M.Strathern, insistiria ento na ideia de que

    a antropologia contempornea opera criticamente com os termos sociedade ecultura, que seriam epifenmenos, metforas teis e estruturantes do discursocientfico, e que eles implicam em modos de pensar que traduzem uma metafsica, anossa prpria cultura, a cultura da antropologia. Ou como diz M.Strathern: Nossas prprias metforas refletem uma metafsica profundamente enraizada, commanifestaes que emergem em todas as espcies de anlises (2006, p. 39). Talmetafsica, invisvel na nossa prtica de pesquisa, seleciona e organiza o que deve ser observado e relatado. Assim, defendi que conhecer os elementos de base dessa

    necessidade de superar tal condio e elaborar uma abordagem sociotcnica da cibercultura.

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    metafsica seria tomar conscincia dos limites do nosso lugar de produtores de discursose do lugar que ocupam nossos discursos frente a outros.

    A questo que estou levantando complexa e exige no apenas relativismo e

    pluralismo, em si mesmos tambm limitados, mas uma perspectiva analtica que supereos discursos das negatividades, procurando colocar-se para alm (ou aqum) daqueleque completa os termos faltantes nas conceituaes e prticas dos sujeitos. Da mesmaforma, voltaria a insistir na ideia de pensarmos as crticas sistematizadas por Latour em

    Reensamblar lo social: una introduccin a la teoria del actor-red (2008).Fundamentalmente, destacaria em primeiro lugar a seguinte colocao que me parecefundamental:

    Es cierto que, en la mayora de las situaciones, recurrir a la sociologa de losocial no slo es razonable sino tambin indispensable, dado que ofrece unataquigrafa conveniente para designar todos los ingredientes yaaceptados en elreino del colectivo. (...) Pero en las situaciones en las que proliferan lasinnovaciones, en las que son inciertas las fronteras de los grupos, en las queflucta la variedad de entidades a considerar, la sociologa de lo social ya no escapaz de rastrear las nuevas asociaciones de los actores. (Latour, 2008, p. 26)

    A clara referncia a uma sociologia ps-social, no sentido de que no se trata deconsiderar o social como um domnio especial e no qual a agncia exclusivamentehumana, em Latour no uma espcie de proposta radical de abandono da sociologia ouda antropologia. Trata-se antes de uma convocatria para concentrarmos o foco naao, e no nas figuras j pr-estabelecidas para a observao, e ele sublinha que issoseria especialmente relevante nas situaes em que proliferam as inovaes e onde asfronteiras entre os grupos de se encontram desestabilizadas. Em outros termos, o

    programa adequado para tais situaes seria o de rastrear associaes dos atores, ouseja, seguir os atores (humanos e no-humanos), ou seja, a produo do social em ao.

    Num certo sentido, Latour vem buscando consolidar a presena dos objetos e outrosentes no humanos no mundo do social. o que se poderia chamar de repovoar osocial. Segundo ele, houve uma espcie de estreitamento do sentido do social, operado pela excluso dos entes no-humanos. Essa perspectiva estava presente nos trabalhosde Latour desde os anos 90, seno vejamos como o que ele escreve num artigo

    intitulado Une sociologie sans objets? Remarques sur l'interobjectivit (1994) :

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    Contre les dieux, les marchandises, les biens de consommation, les objetsd'art, elle [a sociologia] a repris l'ancienne admonestation des prophtes: 'Lesidoles ont des yeux et ne voient pas, des bouches et ne parlent pas, des oreilleset n'entendent pas. Quelque chose d'autre, d'aprs elle, vient animer ces corpssans vie, ces statues mortes: notre croyance, la vie sociale que nous projetonsen eux. Les ftiches ne comptent pas en eux-mmes. Ils ne sont rien que l'crande nos projections. Pourtant, nous l'avons appris de Durkheim, ils ajoutent bienquelque chose la socit qui les manipule: l'objectivation. (Latour, 1994)

    Essa interobjetividade, opo em relao a uma intersubjetividade, se bementendi o propsito de Latour, seria uma volta aos objetos e ao que eles acrescentam aohumano: Les objets font quelque chose,ils ne sont pas seulement les crans ou lesrtroprojecteurs de notre vie sociale (p.49). a questo da agncia que ele coloca ecom a qual nos defrontamos com enorme dificuldade. A prpria agncia individual(humana) tem sido, e continua sendo um problema terico central. Veja-se, por exemplo, os esforos de Sherry Ortner sistematizando as abordagens da teoria da prxis(1984). Podemos dizer que a questo est fechada? O que dizer ento para umamudana ainda mais radical: a possibilidade de agncias no humanas?

    Ao longo dos seus trabalhos, Bruno Latour nos fornece uma srie de exemplosde situaes em que deveramos problematizar a agncia de objetos. Seria intil aquidetalh-los, mas lembremos ao acaso uma pequena srie deles: arma, controle remoto,lombada. Mas tambm o celular, o computador, ou ainda medicamentos, etc, etc. Noh uma lista exaustiva porque no se trata de atribuio de agncia, muito menos deuma questo ontolgica, mas de descrio/rastreamento de interaes. O princpio estna distino entre mediador e intermedirio, ou seja, como um elemento (humano

    ou no-humano) incide no curso de uma ao. Por essa razo, estou lendo rastrear conexes como uma tarefa tipicamente antropolgica. A ao o foco da ateno e noas entidades pr-configuradas. Agncia no determinao ou escolha, mas resultadoda descrio de uma ao, de um processo, ou melhor, de um fluxo da ao.

    Falar em agncia apresentar uma ao e mostrar os narrar os rastros observveis. Emoutros termos, em muito breves, diria que a questo estaria em perguntar-se de quemodo algo/algum incide no curso da ao de outro agente? Como se d essa

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    incidncia? Assim, a rede no seria mais um produto j dado, nem um simples contexto para a ao. Nem vnculo ou ligao. Ela no atua de modo homogneo, nem linear, ela pode tanto produzir aproximao, quanto distanciamento. Ela metfora, discurso,contexto, mediador, intermedirio, dependendo em qual ao os agentes estoenvolvidos.

    Consideraes Finais

    O que foi colocado aqui um desenho feito com as linhas gerais do que temostrabalhado no GrupCiber/UFSC. Longe de ser um programa de pesquisa fechado, propomos compartilhar nossas inquietaes, coloc-las em dilogo para consolidarmosum campo de pesquisa que nos permita exercitar uma antropologia contempornea.Digo contemporneo no sentido de G.Agamben: Contemporain est celui qui reoiten plein visage le faisceau de tnbres qui provient de son temps (2008, p. 22). ParaAgamben, a contemporaneidade uma relao singular com o seu prprio tempo, aoqual aderimos tomando distncias. A primeira adeso est feita com a modernidade, osegundo movimento seria coloca-la como uma esttica, a esttica da objetividade, efazer um movimento que nos permitam sair do crculo purificao-traduo. A teoriaator-rede fornece as pistas necessrias para tal distanciamento.

    A pesquisa no campo da cibercultura ter muito a ganhar levando emconsiderao a Teoria Ator Rede. Podemos interrogar a prpria prtica etnogrficasobre os limites de produzir narrativas de agncias humanas e no-humanas. E sobre a prtica de rastreamento de associaes e como destacar agncias, ou identificar coletivos hbridos, mapear fluxos da ao e seus deslocamentos e controvrsias. Vejono trabalho de Marilyn Strathern excelente exemplo de descrio etnogrfica de fluxo edeslocamentos. Ela escreveu um artigo que mereceria a nossa particular no campo dacibercultura intitulado Cutting the network (1996), no qual ela d exemplos decomo rastrear fluxos e trabalhar com associaes inesperadas que ocorrem no curso daao.

    Para os limites do presente texto, apenas posso deixar registradas as minhasquestes e um primeiro desenho dos meus argumentos. Entendo que a questo crtica

    da noo de sociotcnico que seu valor epistemolgico, com a superao de

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    dicotomias, ainda esta sendo desenhado.Para finalizar gostaria de citar um texto de Julio Cortzar intitulado Prembulo

    s instrues para dar corda no relgio, o qual me serviu de epgrafe na minhaapresentao o II Simpsio da ABCiber (2008) e que me parece desenhar exatamente oque tenho como horizonte para a antropologia, especialmente, entre ns que nosdedicamos cibercultura. Afinal, se a minha avaliao est correta, estamos nosiniciando numa perspectiva que nos obriga a rever nossos prprios fundamentos:

    Pense nisto: quando do a voc de presente um relgio esto dando um pequeno inferno enfeitado (...). No do somente o relgio, muitasfelicidades e esperamos que dure porque de boa marca, suo comncora de rubis; no do de presente somente esse mido quebra-pedrasque voc atar ao pulso e levar a passear. [... ] Do o medo de perd-lo,de que seja roubado, de que possa cair no cho e se quebrar. Do suamarca e a certeza de que uma marca melhor do que as outras, do ocostume de comparar seu relgio aos outros relgios. No do umrelgio, o presente voc, a voc que oferecem para o aniversrio dorelgio.

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    Referncias Bibliogrficas

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