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Tradução de RUTE MOTA O MELHOR AMIGO DO CÃO A história de um laço inquebrável SIMON GARFIELD Lisboa 2021

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Tradução de Rute Mota

O MELHOR AMIGO DO CÃOA história de um laço inquebrável

SIMON GARFIELD

Lisboa 2021

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Para todos os cães que amamos.

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«Se não tiver um cão, pelo menos um, não hánecessariamente nada de errado consigo, mas pode

haver algo de errado com a sua vida.»Roger Caras

«Raramente o cão elevou o homem ao seu nível de sagacidade,mas muitas vezes o homem o fez descer ao seu.»

James Thurber

«O facto de um cão conseguir sentir cheirosque uma pessoa não consegue

não faz dele um génio; faz dele um cão.»Temple Grandin

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ÍNDICE

Introdução: A essência canina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1. A imagem indelével . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232. Como começaram os cães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393. O Fido pensa que talvez… . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 494. O que Darwin não sabia sobre cães (não valia a pena saber) . . . . . . 635. Cura canina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 816. Os cães mais inteligentes da Terra e para além dela . . . . . . . . . . . . . . . . 977. Como chegámos ao jackshi-tzu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1138. Como ganhar uma roseta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1279. Cães literários. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14510. Cães artistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16311. A arte do mais fofo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18512. Inglório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20713. Nasceu cão, morreu um cavalheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21914. Uma visita à Discovery Dogs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257Leituras adicionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259

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INTRODUÇÃO: A ESSÊNCIA CANINA

Porque está ele aqui?Porque está o meu cão deitado aos meus pés, enrolado como um

croissant, enquanto eu escrevo isto? Como é que acabei por ter estima pela sua pungência ligeiramente ofensiva? Como é que o seu mau há-lito se tornou uma piada quando amigos cá vêm para jantar? Porque largo eu mais de 1000 libras por ano para pagar o seguro dele? E por-que gosto eu tanto dele?

O Ludo não é um cão especial. É apenas mais um labrador re-triever, 1 dos cerca de 500 000 que existem no Reino Unido (seria 1 de entre 1 milhão nos Estados Unidos, é a raça mais popular em ambos os países). O Ludo tem muito em comum com todos estes cães. Adora brincar com uma bola; e claro que é um excelente retriever (cão de busca) especializado. Seria capaz de comer toda a comida do universo sem deixar nada para os restantes cães. Tem propensão para displasias da anca. Fica particularmente encantador numa cama de cachorro, dentro de uma casa com aquecimento central muito distante da dos seus antepassados, em Newfoundland.

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No entanto, está claro que o Ludo é um animal único para mim e para o resto da sua família humana. É agora um cavalheiro idoso, com doze anos e meio, e nós faríamos praticamente qualquer coisa para ga-rantir a sua felicidade contínua. É de bom grado que nos deixamos en-sopar enquanto ele tenta distinguir cada cheiro em Hampstead Heath. Os nossos dias são organizados em torno das necessidades dele: as suas refeições, os seus passeios, a administração de medicação que lhe salva a vida (tem epilepsia, este pobre querido). Gastamos com ele uma extra-vagante quantia do nosso rendimento disponível, e ele nunca nos envia um cartão de agradecimento.1 Quando não está connosco durante alguns dias (por exemplo, num fim de semana em que os nossos filhos o levem), a casa parece extraordinariamente vazia. Sinto-me muito afortunado por o conhecer. Só Deus sabe como nos aguentaremos quando ele morrer.

Este fim de semana, irei à Discover Dogs, num centro de expo-sições de East London, para ver cães a realizarem testes de agilidade e de obediência numa arena, e terei a oportunidade de conhecer du-zentas raças diferentes. Alguns desses cães caberiam na minha bolsa, a outros, eu não os conseguiria pôr dentro do meu automóvel. Terei também oportunidade de comprar uma grande quantidade de aces-sórios e apetrechos relacionados com cães, cuja maioria, é claro, não se destina a cães, mas a humanos, como pinturas a óleo, vestuário e artigos para a casa (com frases como «Se não posso levar o meu cão, não vou», «Os cães fazem-me feliz, ao contrário de ti» e «Preferia estar a passear o meu schnauzer»). Para compensar o facto de não ser permitido levar animais a este evento, na sexta-feira seguinte o Ludo assistirá a uma exibição de Rocketman no cinema Exhibit, em Balham, no Sul de Londres. Apesar de não ser especialmente fã de Elton John (na verdade, ele gosta de ouvir qualquer coisa, desde que não pareça ser o som de um aspirador), o Ludo terá um lugar ao lado do meu, com uma manta e uns snacks próprios. Todos os cães presentes nesta exibição têm entrada gratuita «em troca de mimos à equipa», e as luzes ficam ligadas durante o filme para não os perturbar.

1 Se, no momento em que lê isto, o leitor estiver a ponderar comprar o seu primeiro cão e acha que pagar 800 libras por um é um bocado puxado, tudo o que lhe posso dizer acerca das despesas que se seguirão — veterinário, alimentação, dog-sitting, acessórios (tanto es-senciais como supérfluos) — é: Ah! Ah! Ah!

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Como é que chegámos aqui, ao ponto em que o cão é superior? Como é que chegámos a este momento em que o cão vai ao cinema? Como e quando é que nos apercebemos de que os cães iriam auxiliar os humanos não apenas na caça, mas também na desminagem e na deteção do cancro? Com que grau de aquiescência silenciosa é que os humanos deram meia-volta e aceitaram que as suas vidas domésti-cas — o seu horário de trabalho, a limpeza dos seus tapetes, as suas escolhas de férias — seriam a partir de então determinadas pelas ne-cessidades de um animal que costumava viver na rua e desenrascar-se sozinho? Quando é que o sofá substituiu o vasculhar das ruas?

Este livro analisa como o mais forte dos laços interdependen-tes se manifestou ao longo de séculos e como transformou muitos milhões de vidas, humanas e caninas. Se houver alguma verdade na afirmação de Nietzsche segundo a qual «O mundo existe através da compreensão dos cães», então talvez também haja alguma verdade no facto de um estudo dos cães nos fornecer conhecimento valioso sobre nós mesmos.

Porque está ele aqui?Porque está este homem a fazer algo que envolve um repetitivo ruído de teclas

e um ocasional suspiro amoroso? Quantas bebidas quentes pode ele fazer que inter-rompam o seu teclar? Porque é ele tão mau a lembrar-se da hora do meu almoço? Porque é que esta cama de suposta espuma de memória que ele me comprou não se lembra da forma confortável como me enrosquei ontem à noite? Porque me sinto eu tão afortunado por o conhecer?

O antropomorfismo dos cães não é um fenómeno recente. Tenho, na minha secretária, uma foto do século xix de um labrador preto ves-tido como um cavalheiro, de fato e cartola (e a fumar um cachimbo). Cães que falam têm sido uma constante nos filmes praticamente desde o início do cinema sonoro. Porém, o conluio entre cães e humanos nunca foi tão abundante, imaginativo e desconcertante como hoje. A natureza do nosso laço — o nosso compromisso recíproco — parece ter-se apro-fundado significativamente nos últimos cinquenta anos, muito porque o nosso conhecimento científico do cão foi tornado possível pelos avan-ços da genética e a nossa interpretação sociológica do comportamento

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de um cão abriu mais vias para um relacionamento comum. Como dan-çarinos encorajados pela bebida e pela tenacidade, estamos enlaçados aos nossos melhores amigos num abraço extático.

É uma paixão que nem sempre tem um final feliz, lamentavel-mente. Ao lado do cavalheiro da era vitoriana, tenho uma foto de um cão com um boné Kangol achatado e óculos que lembra o Samuel L. Jackson. No meu outro computador, tenho fotos de cães a ler, a velejar e a andar de bicicleta. Sei que há algo de moralmente errado nestas imagens, mas é-me difícil não adicionar mais à pasta, pois aqueles patudos são adoravelmente irresistíveis.

Todas as semanas recebo um e-mail da revista americana Bark, com o assunto «Cães Sorridentes». Cada mensagem contém pelo menos duas fotografias de dois belos cães sorridentes, mais recente-mente o Baxter («O Baxter tem uma personalidade animada, adora comer, preguiçar ao sol, passear no exterior e festas») e o Chad («Este belo rapaz pode começar por parecer algo reservado, mas é isso que o torna misterioso e encantador!»). Por mais atraentes que estes cães sejam, é claro que eles não estão mesmo a sorrir. Contudo, o pessoal da Bark sabe muito bem que é frequente os fotogénicos terem vanta-gem: a maioria dos cães dos e-mails está à procura de uma nova casa depois de um início difícil.

Os nomes que damos aos nossos cães são cada vez mais nomes que daríamos aos nossos filhos. Para cada antiga Fido, temos uma nova Florence, para cada antigo Major, temos um novo Max. Não era assim há trinta anos. Hoje, os nomes são os de heróis humanos. Nel-son continua a ser popular; em breve, começaremos a ver muitas Gre-tas. Teremos uma cadela chamada Taylor e um cão chamado Swift. Os advogados gostam de chamar aos seus cães Shyster, e os arquitetos preferem Zaha, e nestes tempos são mesmo muitos os jovens Fleabags que se encontram nos parques. Só na música rap é que isto funciona ao contrário: Snoop Dogg, Phife Dawg, Nate Dogg, Bow Wow.

Usamos cada vez mais os cães para nos descrevermos a nós pró-prios. Um entrevistador de rádio inflexível é um rottweiler, um que seja brando é um caniche (ou um cachorrinho). As personagens amigáveis e corretas dos romances são labradores amorosos. Os homens cor-ruptos da City são pit bulls. Alguém que não larga uma luta parece um

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terrier, ao passo que um detetive persegue o seu alvo como um cão de caça. Já perceberam a ideia. Perceberam a ideia, porque são rápidos como um galgo e inteligentes como um cão pastor.

Há muito que usamos os nossos amigos caninos para descrever as nossas ações e emoções. Depois de trabalharmos como um cão, ficamos cansados como um cão. Uma vida dura é uma vida de cão. Fi-camos bêbedos que nem cachos, mas apanhamos uma cadela. Os cães ladram e a caravana passa, mas cão que ladra não morde. Uma depres-são é um cão negro. Cadelas apressadas parem cães tortos. Quem com cães se deita, com pulgas se levanta. Somos presos por ter cão e presos por não ter. E fazemos sexo numa posição tão popular entre cães que eles designaram oficialmente o estilo.

Termino este livro em abril de 2020, nos dias assombrados pelo vírus, e o Ludo é o único na nossa casa que não parece ansioso. Em vez disso, está exausto. Já é um lugar-comum observar que a pandemia se tornou perversamente amável para os cães: agora, é raro estarem em casa, e são levados a passear tantas vezes que lhes é quase insuportável. Os amigos e os vizinhos querem que o emprestemos: se tivermos um cão, temos um motivo para sair à rua. Os abrigos de animais relatam um aumento na procura. O local que poucos meses antes recebeu a Disco-ver Dogs é agora um hospital com quatro mil camas. As redes sociais estão inundadas de vídeos e cartoons de cães relacionados com a covid-19: o comentador desportivo Andrew Cotter transformou em estrelas os seus amorosos labradores, Olive e Mabel, que se batiam pela supremacia durante o confinamento. Os donos de cães que vivem sozinhos estão, mais do que nunca, gratos pela companhia e pelo conforto. Porém tam-bém há preocupações adicionais: hoje, mais do que nunca, não quero que o Ludo adoeça; a sua habitual comida seca da Alemanha está com o stock em baixo; é muito difícil abrir os sacos perfumados para os dejetos sem lamber primeiro os dedos para ajudar a separar a abertura.

Até quem nunca teve um cão e só assistiu à Crufts2 pela televisão sabe que a nossa relação com os cães é rica, diversa, desconcertante e

2 Evento canino internacional realizado anualmente no Reino Unido. (N. da T.)

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complexa — de facto, tão rica, diversa, desconcertante e complexa como a que temos com outros humanos. Cada vez mais, os cães deixam de ser apenas parte da casa para passarem a ser parte da família, a relação mais próxima que nos atrevemos a ter com outra espécie além da nossa.

Este livro examina os nossos esforços humanos para aperfeiçoar mais esta relação, para criar o animal perfeito, para atribuir a um cão comportamento humano. Em muitos aspetos, os cães tornaram-se uma extensão de nós próprios. Albert Einstein comentou certa vez que o Chico, o seu fox terrier de pelo de arame, era dotado de uma grande inteligência e da capacidade de guardar rancor. «Ele tem pena de mim porque eu recebo muito correio; é por isso que ele tenta mor-der o carteiro.» Esta abordagem — apenas os cientistas sociais persis-tem em chamar-lhe antropomorfismo; os amantes de cães tendem a considerá-la um comportamento absolutamente aceitável — é ampla-mente reprovada pela maioria dos comportamentalistas animais como intrinsecamente humana; mas continuamos a fazê-lo. Na verdade, fazemo-lo hoje com uma convicção e um sentido de normalidade tais que não mimosear os nossos cães com uma dieta que envolva cur-cuma se pode assemelhar a negligência.

Quando o cinema Exhibit deu início às suas sessões para cães e respetivos donos em 2017, os filmes tinham temas relacionados com cães — A Dama e o Vagabundo, Ilha dos Cães —, mas, mais recentemente, os animais viram filmes comuns que apenas parecem ter alguma rela-ção com cães: If Beale Street Could Talk; The Big Sick; Can You Ever Forgive Me?3 Quando o filme termina, o cão moderno mantém o seu glamour de Hollywood. Envolvemo-lo em peles e coleiras adornadas, fazemos dele uma estrela no Instagram.4

Este livro é principalmente uma celebração dos cães em toda a sua inteligência, curiosidade, beleza e lealdade. Pergunto-me se os

3 Títulos em português: Se Esta Rua Falasse, Amor de Improviso e Memórias de Uma Falsificadora Literária, respetivamente. (N. da T.)

4 Afinal, talvez não haja grande novidade na experiência de irmos ao cinema com o nosso cão. Eis uma anedota dos anos 90: «Na última vez que fui ao cinema, estava lá uma mulher com o seu cão. O cão riu-se durante todo o filme, mas, quando o herói morreu no fim, ele ficou em lágrimas. Quando o filme terminou, aproximei-me da mulher e disse-lhe que o cão dela era extraordinário e que nunca antes vira um cão apreciar tanto um filme. “Estou tão surpreendida como o senhor, porque ele tinha detestado o livro”, disse ela.»

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cães escreveriam uma apreciação semelhante dos humanos. Iremos entregar-nos a histórias de cães, reconfortantes e absurdas, calorosas e preocupantes, divertidas e graves. Contudo, o livro também levanta algumas questões difíceis acerca da forma como os humanos tratam hoje os nossos grandes amigos canídeos, e onde isso nos levará. Ques-tiona, por exemplo, se o amor natural que temos pelos nossos queri-dos animais não estará a alastrar para o desrespeito, e o nosso gosto pela variedade e pela novidade, para a exploração. Todos os criadores com quem falei estão preocupados com o futuro. Teremos esquecido de onde vieram os cães e de como costumavam viver? Proporciona-mos-lhes sempre a melhor vida, em contraste com uma melhor vida para nós? E estaremos nós em risco de perder aquilo a que a psicóloga canina Alexandra Horowitz chamou «the dogness of dogs»?5

No âmago deste livro está uma questão central: como é que pas-sámos da caça com o lobo-eurasiático (entre outras espécies de Canis lupus) para a compra de uma cama eletricamente aquecida para o cava-lier king charles spaniel (entre outras raças de Canis lupus familiaris)? Trata--se de um percurso cultural e científico, que nos leva à Austrália, ao Japão, aos Estados Unidos e, quase inevitavelmente, à Crufts, no cen-tro de exposições de Birmingham.

Ao fazê-lo, tentarei explicar a origem do cheagle (o cruzamento entre um chihuahua e um beagle) e do chiweenie (do chihuahua e do dachshund ), e a própria noção de cães de design. O livro revisitará a sequenciação do primeiro genoma de cão completo e considerará as experiências e as teorias mais importantes e recentes das revistas científicas. Questionará se Charles Darwin não devia ser tão conhecido pelo seu trabalho acerca dos cães como é pelo seu trabalho sobre a evolução e analisará porque queria Charles Dickens comprar uma arma para disparar sobre cães. Explorará um isolado cemitério de cães e outras formas que escolhemos para imortalizar os nossos amados animais. Tentará também compreen-der porque as gravuras de cães a jogarem póquer em tempos se vendiam tanto e porque — se ainda não o tiverem visto, têm de pesquisar no YouTube por «Ultimate Dog Tease» — é que um vídeo em que um cão chamado Clark fica continuamente desapontado quando o dono se

5 Isto é, as características caninas dos cães, aquilo que torna um cão um cão. (N. da T.)

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recusa a dar-lhe as recompensas de bacon que ele obviamente merece foi visto mais de duzentos milhões de vezes.

Como não sou psicólogo nem etologista, muito menos geneticista, procurei a orientação sábia de mentes especializadas nestas áreas. As mi-nhas explorações são jornalísticas e testemunhais, e para obter as melho-res provas baseei-me numa sequência de cães que se sentaram algures nas proximidades da minha secretária ao longo de trinta anos: um basset hound chamado Gus, um labrador retriever amarelo chamado Chewy e o meu labrador preto Ludo. Posso então ser tão sentimental como o mais sentimental deles (e assumir as suas características: em tempos, uma crítica a um dos meus livros no Sunday Times chamou-me «um cão com uma trufa exuberante»). Não é possível conhecermos um cão bem--comportado durante qualquer período de tempo — mais do que, por exemplo, uma hora — sem nos interrogarmos um pouco sobre o que está a pensar, o que o deixa receoso ou feliz, e como nos poderíamos divertir em conjunto. (Este livro pende para o lado positivo. Há muitos cães maldosos no mundo — fui mordido uma vez, ao voltar de bicicleta da escola, por um pastor-alemão: injeção antitétano para mim, carta zangada do meu solícito pai para ele —, mas decidi focar-me no aspeto harmonioso da nossa relação, que, felizmente, é o que predomina.)

Um cão habita esplendidamente no interior daquilo que o bió-logo alemão Jakob von Uexküll chamou o seu mundo centrado em si mesmo, ou Umwelt. Ou, como o primatólogo Frans de Waal o colocou no título do seu livro: somos nós suficientemente inteligentes para sabermos quão inteligentes são os animais?6 Se um cão não consegue compreender totalmente os sistemas horário e financeiro, não é por não ser inteligente, é porque estas coisas não são partes importantes do seu mundo.

Em média, o cérebro de um cão tem cerca de um terço do tama-nho de um cérebro humano médio. Porém, o nariz do cão tem mais de duzentos milhões de recetores sensíveis ao cheiro, em comparação com os cinco milhões num nariz humano, o que sugere um conjunto de prioridades bastante diferente. Cerca de um terço da massa cerebral de um cão é dedicado a deveres olfativos, em comparação com 5 por

6 Título original: Are We Smart Enough to Know How Smart Animals Are? (N. da T.)

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cento nos humanos. É-me impossível não reparar como o meu pró-prio cão, com o seu orgulhoso focinho, vê o mundo à sua volta. O seu preciso sentido do olfato faz dele um ótimo juiz não só do seu am-biente e de outros cães, mas também das pessoas: ele consegue avaliar quem pode ter medo de cães e manter-se afastado; recorda-se de quem lhe deu particular atenção no passado e irá cumprimentá-lo com ale-gria no coração e um brinquedo especial na boca; e sabe quando os seus companheiros humanos estão em baixo e precisam de consolo. Pergunto-me, por vezes, se o tratamos a ele e aos seus numerosos amigos com um nível semelhante de sagacidade e respeito.

Uma das muitas coisas que nos atraem num cachorro — além de toda a sua maldita fofura involuntária e indisfarçável — é a sua curio-sidade. Os cachorros gostam de vasculhar as coisas, quaisquer que elas sejam. Esta curiosidade amadurece, mas não desaparece: quando um cão ouve um ruído invulgar, quer sempre investigar. Talvez possamos considerar este livro como um cão a descobrir o mundo à sua volta: ruídos invulgares, um ambiente em rápida mudança e cada vez mais atenção por parte de completos estranhos. Estes estranhos somos nós, a agirmos também como autênticos cachorros, a descobrirmos com uma crescente precisão forense o que faz de um cão um cão, e o que os torna companheiros tão mutuamente enriquecedores. E somos es-tranhos apenas para nós próprios: como donos e amantes de cães, fazemos parte de uma grande comunidade, e o laço que temos com o nosso cão é algo que nos liga também a milhões de outros, uma hu-manidade partilhada.

Qual o melhor ponto de partida para a nossa análise histórica desta relação? Talvez as provas visuais, com os cães no seu estado mais irrepreensível, e os humanos no seu estado mais comprometido.

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1. A IMAGEM INDELÉVEL

Durante alguns dias, em fevereiro de 2019, os Protein Studios, em Shoreditch, decidiram pendurar algumas das suas fotografias ao nível dos olhos dos cães. O evento incluiu «cães célebres do passado», como os corgis da rainha, a Laika, a cadela espacial soviética, e a Petra, a cadela da série televisiva infantil Blue Peter, sentada a uma máquina de escre-ver, a responder ao correio dos fãs. Também havia fotografias de cães «heróis» que tinham rodas onde haviam estado as suas patas e imagens dos influencers caninos mais fotogénicos do Instagram. A exposição, in-titulada «The National Paw-Trait Gallery»1 (o hífen era provavelmente desnecessário), constituiu uma promoção de lançamento da competição «O Cão mais Fantástico do Mundo», levada a cabo pelo Facebook, ainda que a definição de «fantástico» não estivesse inteiramente clara. Quando foi nomeado vencedor um chihuahua de nove anos do México, chamado Toshiro Flores, ele pareceu ficar tão surpreendido como toda a gente.

1 Trocadilho entre «paw-trait» ( paw: pata) e «portrait» (fotografia, retrato), evocando o nome de um dos museus mais famosos de Londres, a National Portrait Gallery. (N. da T.)

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Desde que os humanos pintavam nas paredes das grutas que os cães são apresentados em galerias públicas, e todos os donos de ga-lerias privadas a partir do Renascimento reconheceram uma verdade universal: se pusermos um cão numa parede, as pessoas aproximam--se com interesse. Se pusermos um número suficiente de cães num número suficiente de paredes, talvez seja igualmente verdade que pos-samos construir uma análise irresistível da relação entre humanos e canídeos ao longo de milhares de anos.

O que podemos deduzir de outros eventos recentes? Em 2013, uma exposição na Gallery on the Corner, em Battersea, estava a vender obras que tinham sido criadas por cães para ajudar o abrigo Battersea Dogs and Cats Home: os focinhos tinham empurrado uma tigela de comida pelo chão, a tigela tinha um pincel agarrado, e o chão estava forrado de papel. Os cães eram convidados a assistir e também a participar no evento, sendo especialmente bem-vindos se estivessem dispostos a comprar.2

Em julho de 2019, as Southwark Park Galleries, no Sudeste de Londres, organizaram um evento semelhante. Anunciado como «Arte Contemporânea. Escolhida por Cães. Para Cães e Humanos», tratava--se de galeristas e críticos de arte proprietários de cães que tinham escolhido as suas obras favoritas relacionadas com cães. Havia traba-lhos dos artistas Martin Creed, Joan Jonas, David Shrigley e Lucian Freud. Águas-fortes, óleos, filmes e fotogramas que mostravam cães em situações muito variadas pareciam não ter nada em comum além do truque da sua curadoria, mas um segundo olhar permitia encontrar um ponto comum: eram todos adoráveis. Não há lugar melhor do que uma tela ou uma fotografia para mostrar o nosso amor pelos cães, e também a nossa dependência deles, e o seu propósito.

Os trabalhos mostrados nas Southwark Park Galleries são part de um panteão nobre. Uma volta por qualquer galeria importante proporciona

2 Alguns cães demonstraram um talento natural, embora, na minha opinião, ainda pudes-sem melhorar muito. Parte do seu trabalho revelava uma falta de conhecimento do mais básico da teoria da arte, e, honestamente, muitos trabalhos pareciam por concluir. É fre-quente os pintores humanos terem muita dificuldade em abandonarem as suas telas e darem-nas por terminadas, o que não acontecia com estes cães pintores — estes pintores mal podiam esperar por obterem as suas recompensas.

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um período e um cenário caninos para qualquer estado de espírito, e podemos perceber como se dá a mudança da relação entre humanos e cães ao longo dos séculos. Começamos no século xv com o cão como parceiro de caça e símbolo de estabilidade — o animal como uma valiosa posse aristocrática — e terminamos com cães com cha-péus fantasiosos a receberem milhões de «gostos» online. Os cães no Instagram não têm menos importância do que a cena de caça, pois são ambas imagens de deleite. Os cães mudaram ligeiramente — na sua constituição física, na sua proeminência, e decerto na sua varie-dade —, mas a importância deles para a imagem e para a criação de imagens é consistente.

Uma visita às salas públicas e às zonas de armazenamento da Na-tional Gallery em Londres proporcionará cerca de duzentos quadros com cães, que na sua maioria parecem secundários. Porém, voltemos a olhar: são muitos os cães que dominam as telas, sobrepondo-se sub-tilmente na imagem como se tivessem discretamente encantado o seu autor. A sua proeminência confirma a sua importância; até a sua pre-sença aparentemente secundária — por exemplo, o pequeno griffon--de-bruxelas burguês aos pés de O Casal Arnolfini, de Jan van Eyck, de 1434 — comporta uma mensagem importante, neste caso, fidelidade e orgulho. Eis Cristo Pregado à Cruz, de Gerard David, de cerca de 1481, a figura central quase nua, prostrada, estendida na diagonal da tela, e, em primeiro plano, um pequeno cão, quase sem pelo, a chei-rar um crânio; eis o destino, e a curiosidade sobre aquilo em que nos transformaremos. Eis Joseph Greenway, por Jens Juel (1778), um dândi no bosque acompanhado pelo seu cão de caça, que olha para ele com respeito e um pouco de receio à semelhança do que as equipagens dos navios mercantes de Greenway terão feito. Eis a subtil remodelação da praça de São Marcos, em Veneza, de Canaletto, em 1756; um rafeiro desgrenhado parecido com um terrier aos pés de dois nobres: o cão pa-rece aguardar restos de bolos do Caffè Florian à sua direita; qualquer dono de cão reconhecerá essa esperança.

Estes são cães secundários, cães que puseram ali o seu nariz. Por todo o lado, nas galerias de todo o mundo, os cães deslocam-se para o primeiro plano e há um cão para cada emoção e cada estado de es-pírito. Procuramos aristocracia senhorial? Vejamos Os Galgos do Conde

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de Choiseul, de Gustave Courbert (1866). O cão como protetor? Ex-perimentemos Uma Criança a Dormir num Berço sob o Olhar de Um Cão Corajoso Que Acabou de Matar Uma Enorme Víbora, de Jeanne-Elisabeth Chuadet (1801). Fofura a toda a prova? Retrato de Um Extraordinário Cão Musical, de Philip Reinagle, com as patas no teclado e a expressão de estar «só a praticar!» na sua pequena cara de spaniel (1985). Veremos um absoluto desprezo no dachshund a urinar contra a figura central de O Vendedor de Fósforos, de Otto Dix (1920), e uma radiância absoluta nos numerosos cães de traços grossos e costas direitas a dançarem hip-hop criados por Keith Haring. Uma vez mais, procuramos afinidade entre as obras e não a encontramos. Porque haveriam elas de partilhar algo mais do que pelo? Porém, depressa surge um fio: os cães atraem-nos com a sua presença calorosa e consoladora, as suas próprias caracte-rísticas caninas. Quer a presença deles na tela seja central ou reduzida, todas as imagens pareceriam incompletas sem eles. E dolorosas tam-bém, como um corte ao longo de uma falange.

Certa vez, visitei David Hockney no seu estúdio de Los Ange-les, e falámos inevitavelmente dos seus queridos dachshunds, Stanley e Boodgie. Eram modelos difíceis, disse ele, distraíam-se facilmente com visitas ou alguma atividade na cozinha. Concluiu que eles não se interessavam muito por arte.

Hockney viveu durante muito mais tempo do que os seus cães e também sobreviveu à maioria dos seus companheiros humanos mais próximos. Em memória deles, criou uma parede canina na sua casa de Los Angeles, uma vastidão gloriosamente pungente de afeto: cães enroscados, cães deitados de costas, cães aconchegados uns aos ou-tros nas suas camas macias, cães com os seus focinhos a sonharem à beira de uma almofada. Há uma fotografia particularmente tocante de Hockney afundado numa poltrona às riscas em frente à sua grande parede, cada um dos braços orgulhosamente enrolado em volta de um dos cães, com mais de quarenta pinturas do Stanley e do Boodgie atrás dele. «Não me desculpo pelo tema notório», escreveu ele na sua introdução a um livro dos seus retratos de cães. «Estas duas pequenas criaturas são minhas amigas. São inteligentes, amorosas, divertidas e muitas vezes sentem-se aborrecidas. Observam-me a trabalhar. Re-paro nas imagens calorosas que criam em conjunto, na sua tristeza

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e nos seus prazeres.» Explicou que, num mundo triste, quis deses-peradamente pintar algo terno. «O tema não era os cães, mas o meu amor pelas pequenas criaturas.» É isto, claro, que captamos em pratica-mente toda a arte relacionada com cães.

Encontram-se mais provas do afeto quase sufocante que os hu-manos prodigalizam aos seus cães no Kennel Club de Mayfair e no Kennel Club’s Museum of the Dog em Manhattan, repositórios da maior e mais ornamentada coleção de arte canina no mundo. Aí se en-contra o cão como herói, espécime soberbo e guerreiro de desportos sangrentos. A coleção de Londres tem inúmeros troféus e certificados de campeonatos e uma grande quantidade de fotografias que mostram humanos orgulhosos e dedicados ao lado de cães orgulhosos e exaus-tos. Há pessoas da realeza, pessoas do povo e um número elevado de excêntricos em tweed e brogues cujo elevador social não os levou mesmo ao topo. A coleção também documenta com eloquência os diversos papéis do cão, e a forma como foram mudando, na Inglaterra do sé-culo xix, desde as muitas cenas de corridas e de caça até uma gra-vura do Billy, célebre por capturar ratazanas em 1823 (possivelmente um terrier, de certeza um campeão). O retrato mais comovente, e que narra de forma mais sucinta como o cão trabalhador estava a ser ul-trapassado nos nossos afetos pelo animal doméstico, surgiu em 1860, com a pintura a óleo de Richard Ansdell, Buy a Dog Ma’am. Muito in-fluenciado por Landseer, e exibido originalmente na Royal Academy, mostra um homem com uma expressão dura e bastante indiferente junto a um grande pilar no que parece ser uma zona de mercado de uma cidade. Numa mão segura um pequeno cão branco com um laço vermelho no pescoço (talvez resultado do cruzamento de um caniche com um pug), ao mesmo tempo que na outra segura o que pode ser um spaniel, e a mensagem é clara: o tempo deles no campo chegou ao fim, e já não se destinam ao trabalho.

A coleção de Manhattan foi transferida para a sua nova casa em Park Avenue no início de 2019, depois de muitos anos de inatividade nos subúrbios de St. Louis. Contém o tipo de bugigangas engra-çadas de que qualquer tia-avó se orgulharia (figuras em porcelana, troféus de caça em peltre), mas também algumas exibições surpreen-dentes, como um retrato-robô que determina, caso alguma vez nos

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transformássemos num cão, que tipo de cão seríamos (o código in-formático segue o nosso aspeto mais do que o nosso temperamento).

Pictoricamente, o Museum of the Dog tem todos os clássicos, in-clusive o Silent Sorrow, de Maud Earl (Caesar, o cão de Eduardo VII, a chorar a sua perda ao lado de uma poltrona, em 1910), e Pug and Terrier, de John Sargent Noble, de 1875, com o terrier preso e desesperançado com uma tigela de pedinte pendurada ao pescoço com a inscrição «ca-ridade», ao passo que o pug bem alimentado se situa um degrau acima, lançando um olhar pesaroso sobre toda a injustiça. Contudo, a pintura mais célebre, por ter um painel de parede só para si, é um quadro de Christine Merrill, Millie on the South Lawn, na Casa Branca. A Millie era uma springer spaniel inglesa que pertenceu a George H. W. Bush e a Bar-bara Bush, e ali está ela, ao lado de uma bola vermelha, a ocupar quase toda a tela, a Casa Branca e respetiva fonte atrás dela praticamente uma lembrança tardia. A Millie parece dominar tudo; tem o ar de quem é amada pelos donos. O retrato é acompanhado de uma carta de Barbara Bush, a assinalar a abertura do museu de cães em St. Louis, em 1990: «Os cães enriqueceram a nossa civilização e introduziram-se nos nos-sos corações e nas nossas famílias ao longo dos tempos…» (Em mais de um século, Donald Trump é o primeiro presidente americano a não ter um cão na Casa Branca.)3

3 Num rally, em El Paso, em fevereiro de 2019, Trump enalteceu os pastores-alemães na deteção de drogas na fronteira mexicana, mas disse que a ideia de ele próprio ter um cão lhe parecia ser pretensiosa. Na sua biografia, Ivana escreveu que o seu caniche Chappy «lhe ladrava de forma territorial» sempre que ele se aproximava. Os seus predecessores tiveram uma abordagem diferente. Os dois cães-d’água portugueses dos Obamas eram presenças constantes para alívio da tensão, e as suas fotos eram tão solicitadas que tinham uma agenda própria na Casa Branca. A biografia da Millie de Barbara Bush, escrita pela própria Millie (é óbvio), vendeu mais do que as biografias da sua dona e do marido desta. Trump usa consistentemente o termo «cão» de forma pejorativa. O seu antigo estrategista-chefe, Stephen K. Bannon, foi «largado como um cão por quase toda a gente», e o antigo candi-dato presidencial Mitt Romney «engasgou-se como um cão» durante a sua campanha. Co-mentou frequentemente que os seus inimigos tinham «disparado como um cão», o que quer que isso queira dizer. E quando, no final de outubro de 2019, Trump anunciou triunfante-mente a morte do líder do Estado Islâmico, Abu Nakr al-Baghdadi, gabou-se de que «ele morrera como um cão». Mostrou-se mais orgulhoso do papel que um cão chamado Conan teve no decorrer daquela morte, supostamente perseguindo Al-Baghdadi por um túnel abaixo enquanto ele detonava um colete suicida. O presidente considerou Conan, um pas-tor-belga malinois, «um belo cão — um cão talentoso».

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De momento, o item mais apelativo do museu não é um quadro mas um paraquedas, usado por um herói canino da Segunda Guerra Mundial. Muitos cães participaram em voos de missões cruciais durante o conflito, inclusive Rob, o collie inglês paraquedista, que aparentemente saltou ou foi empurrado de um avião mais de vinte vezes enquanto tra-balhava atrás das linhas do inimigo para o SAS (Serviço Aéreo Especial) durante a campanha norte-africana, e, no final da guerra, recebeu a medalha Dikin, o equivalente canino da Cruz Vitória.4

Porém, a heroína celebrada no Park Avenue’s Museum of the Dog é a célebre yorkshire terrier Smoky. Como os do Rob, os pormeno-res exatos das proezas dela são difíceis de provar, mas acredita-se que a Smoky combateu nas selvas da Nova Guiné e ajudou a estabelecer as linhas de comunicação por baixo de um importante aeroporto. Ela foi incorporada no 26.º Esquadrão de Reconhecimento Fotográfico, da Quinta Força Aérea, e, apesar de não tirar fotografias, foram-lhe atribuídas doze missões de combate e ganhou oito estrelas de serviço. Segundo o Yorkshire Post, que fez a cobertura do caso por a família da Smoky ser originária da zona, os esforços do animal salvaram as vidas de mais de 250 homens e mais de 40 aviões. Porém, isso não era o suficiente para a Smoky; a Smoky queria mais.

Quando o seu dono, Bill Wynne, precisou de internamento hospi-talar, a Smoky ia sentar-se na cama dele. Depressa os outros pacientes também a quiseram por perto para os confortar, e a Smoky tornou-se um cão de terapia a pedido. Quando Wynne chegou à Austrália, ele e a Smoky visitaram os hospitais e em breve os pacientes se mostraram de novo bem; mas isso continuava a não ser o suficiente para a Smoky (ou para Wynne). A Smoky saltou de paraquedas de um avião para vencer outros quatrocentos concorrentes ao título de Melhor Mascote da Área do Sudoeste do Pacífico. Passou então a ser célebre e reconhe-cida onde quer que fosse, e foi um pequeno êxito em Hollywood, não propriamente ao nível do Rin Tin Tin e da Lassie, mas muito atrativo nas aberturas de supermercados e na televisão por cabo.

4 Uma autêntica estrela; ou, pelo menos, foi-o até 2006, quando um antigo membro do SAS sugeriu que os feitos do Rob haviam sido muitíssimo exagerados, e que provavel-mente ele nunca tinha sequer saltado, que fora tudo um estratagema inventado pelo tutor adotivo do Rob na Força Aérea, que queria evitar devolvê-lo ao seu dono original.

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Para percebermos completamente a longevidade da nossa rela-ção artística com os cães, temos de recuar ao museu vivo que dá pelo nome de Pompeia. O cão semidomesticado teve em tempos uma pre-sença muito forte aqui, e quem visita as ruínas hoje consegue aperce-ber-se de uma cauda a desaparecer em cada esquina. Alguns foram enterrados sob a cinza escaldante, mas centenas de outros fugiram (com ou sem os seus donos) quando os primeiros sinais reverberaram Vesúvio abaixo, em 79 d. C. O mais célebre dos vestígios guardava a entrada da Casa do Poeta Trágico, na secção noroeste da cidade, uma paragem obrigatória em todas as visitas.

Este cão é um mosaico, infelizmente. Talvez já o tenham visto: a rosnar no vestíbulo, visível a partir da rua, preto e branco com uma coleira vermelha, ainda preso mas pronto a atacar caso pensem em entrar sem permissão. Dada a ferocidade das intenções do cão, as pa-lavras por baixo dele podem bem ser as mais supérfluas da língua latina: Cave Canem.

Porém, «Cuidado com o cão» talvez seja só um sinal; talvez o mosaico negue a necessidade de um cão real a rosnar. Ouvi alguém sugerir que este tipo de avisos em Pompeia alertavam as pessoas para terem cuidado não por se tratar de um cão de guarda e morder, mas por ser um desses seres que se enroscam tão suavemente aos nossos pés que podemos facilmente tropeçar neles e magoá-los.

Contudo, o Poeta Trágico não tinha um destes. Na verdade, o Poeta Trágico não tinha nada, à exceção dos seus versos trágicos. A casa só recebeu o nome dele quando foi escavada em 1824, com a sua designação inspirada por um mural do que se terá julgado ser a re-citação de um verso temível a uma audiência arrebatada (mas que foi mais tarde reinterpretado como uma apresentação dramática de um oráculo). De modo que não sabemos realmente quem viveu naquela casa, ou quem tinha (ou fingia ter) o cão ameaçador; mas a casa está ladeada por duas lojas, uma das quais talvez tenha vendido anéis e colares, o que sugere a possibilidade de um joalheiro a proteger pedras preciosas.

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E há ainda o cão de lava, o cão que morreu quando o Vesúvio en-trou em erupção. Preso e impossibilitado de fugir, de costas contorci-das pela dor, a uivar pelo seu dono e pela sua antiga vida em Pompeia, pelos banhos de imersão e pelas festas de toga.

Ao contrário do que muitos começam por acreditar, e foi tam-bém esse o meu caso, esta imagem célebre não é um cão coberto de cinza endurecida, como uma criação culinária num restaurante muito fino. Nem é uma verdadeira relíquia de Pompeia. É, antes, uma fi-gura de um cão formada em 1870, através da injeção de gesso de Paris e uma solução glutinosa na concavidade criada quando o ocupante original desse espaço — esse pobre cão, com uma corrente presa à sua grossa coleira — se decompôs até se desfazer ao longo dos sé-culos que se seguiram à sua morte escaldante. O cão deixou uma ca-vidade em seu redor solidificada por pedra-pomes, e os arqueólogos e curadores viram aí uma oportunidade. Injeta-se algo na cavidade, aguarda-se que esse enchimento endureça, e depois cinzelamos e ras-pamos e polimos os rebordos, e voilà: um cão agonizante que nos fala através dos séculos.

Há versões diferentes sobre quem era o proprietário do cão e onde vivia ele. Alguns consideram-no um cão de guarda, preso no pátio de entrada do general romano Marcus Vesonius Primus. Porém, outros, como Mary Beard, atribuem-lhe origens mais humildes, como cão de um trabalhador encarregado da lavagem da roupa e do trata-mento dos tecidos. É claro que nenhum cão desejaria morrer desta forma, asfixiado e sozinho. Quais terão sido os últimos pensamentos do animal? Porque não regressou o seu dono para o salvar?

A boa notícia é que os cães regressaram a Pompeia. Numa re-constituição dramática da domesticação original, os cães selvagens de Nápoles e das áreas envolventes descobriram que, onde havia turistas, havia comida. Assim, no final do século xx, regressaram em grande número, remexendo no lixo, até ao ponto em que os turistas se senti-ram ultrapassados em número e um pouco intimidados, e o ministro da Cultura italiano decidiu que deviam agir. Em 2009, estabeleceram uma missão de resgate de cães hercúlea, na qual muitos cães vadios de Pompeia foram fotografados e postos para adoção no (agora extinto) sítio «(C)Ave Canem». Mais de 20 cães foram recebidos em casas

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afetuosas nos primeiros 6 meses da campanha, o que foi considerado um início modesto, visto que a Liga Antivivissecção de Itália calculava que havia 70 000 cães vadios nos arredores da região da Campânia. Os progressos e as vantagens da esterilização e da «microchipagem» tiveram uma chegada tardia a esta parte do mundo, bela e em ruínas, e os cães descobriram que voltaram a ser donos do local.

Não resta qualquer aspeto das nossas vidas que os cães não te-nham melhorado, e os artistas deixar-nos-iam mal se não os repre-sentassem a todos — mas todos são muitos. Com tantas imagens de cães para escolher ao longo dos séculos, e tantos papéis caninos para representar, talvez seja necessário algum filtro de modo a escolher os melhores dos melhores. Fiz a minha lista pessoal dos seis melhores. Surpreender-me-á se concordarem com a minha escolha, mas espero que vos inspire a fazer a vossa. Tenho pelo menos a certeza de que as minhas escolhas ampliam algo importante: o nosso desejo de repre-sentar os cães sob a forma pictórica — e mais recentemente encon-tramos as margens desregradas destes extremos no Instagram e no Twitter — revela não só o nosso amor por estes animais, mas também a nossa dependência deles. As nossas vidas em conjunto estão inter-ligadas há tanto tempo que não os termos perto de nós sugere uma falta ao dever.

Por ordem inversa:Em sexto lugar, temos Julgamento por Júri, de Sir Edwin Landseer,

pintado em 1840. Landseer, um favorito da rainha Vitória, foi o mais requintado de todos os retratistas sentimentais do século xix (e há al-guns de entre os quais podemos escolher). Este quadro em particular, em exibição em Chatsworth House, no Derbyshire, é invulgarmente antropomórfico: apresenta um sofisticado caniche com a pata numa página do que tudo leva a crer que seja um livro de jurisprudência, com os seus pequenos óculos pousados na outra página. O caniche ocupa todos os centímetros disponíveis da sua poltrona vermelha, onde exibe um ar aristocrático, dando as suas ordens a todos os ou-tros cães dispostos à sua frente, incluindo um bóxer, um galgo, um terra-nova e um spaniel, todos supostamente a aguardar algum tipo

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de julgamento (o quadro é por vezes referido como «Ditar Leis»). Su-põe-se que o caniche represente o Lord Chancellor britânico, mas há algum debate (ou pelo menos houve, logo depois de o quadro ter sido pintado) sobre se se trata de Lord Brougham ou de Lord Lyndhurst. O quadro diz: até entre cães há uma ordem natural das coisas e um correto sentimento de justiça; os humanos não são os únicos a decidir o que é justo.

Em quinto, temos Nipper, resultado de um cruzamento, com tra-ços de terrier, a escutar um gramofone em A Voz do Dono. O Nipper viveu em Bristol na última década do século xix. O seu olhar inqui-sitivo para o altifalante cónico — «De onde estão todas estas vozes a vir?» — viu a luz do dia sob a forma de uma pintura do seu dono, Francis Barraud, intitulada A Voz do Dono, expressão que acabou por dar origem também ao nome da empresa de gramofones5. «Foi a ideia mais feliz que alguma vez tive», afirmou Barraud em relação ao seu quadro algum tempo mais tarde, a caminho do banco (mas só depois de ter concordado em alterar a imagem original do Nipper a ouvir um disco cilíndrico num fonógrafo Edison para um disco de gramofone, achatado e redondo, recentemente patenteado).

Com o dinheiro da venda, Barraud comprou uma casa, e nessa casa ouvia discos de gramofone com a imagem do seu cão a girar neles. Morreu antes de o seu trabalho ter sofrido uma nova e perturba-dora interpretação simbólica por parte do departamento de marketing da HMV. «O forte apelo da imagem assenta provavelmente na fideli-dade do cão», afirmava um anúncio nos anos 1950. «É portanto apro-priado que esta característica de fidelidade tenha sido a tónica de His Master’s Voice desde então — fidelidade na reprodução dos trabalhos de grandes músicos, fidelidade ao público que confiou na His Master’s Voice durante meio século para lhe proporcionar as melhores novi-dades para o entretenimento doméstico.»6 Porém, antes de se terem

5 His Master’s Voice. (N. da T.)6 Há ainda uma paródia inspirada no quadro, feita pelo artista alemão Michael Sowa: uma

pintura de um teatro com um gramofone gigante no centro do palco, e uma audiência completamente constituída por cães, quase todos clones do Nipper, muito embora um pug e alguns outros também se tenham esgueirado para lá. A audiência está em êxtase, atenta a todas as notas.

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apropriado dele para uso comercial, o quadro dizia: somos uma raça culta e curiosa, e somos todos ouvidos, abertos à novidade e à mara-vilha da vida.

A minha quarta escolha é o Autorretrato com Cão Itzcuintli, de Frida Kahlo. Trata-se de um autorretrato que mostra a impetuosa artista mexicana sentada à frente e ao centro, com um olhar absolutamente indiferente. Usa um vestido escuro cujas dobras sumptuosas lhe co-brem as pernas, e à beira da sua saia volumosa está um pequeno e inquisitivo cão mexicano sem pelo com uma marcada atitude de «Para onde é que estão a olhar?» Kahlo teve vários cães, muitos deles apare-cem nos seus autorretratos. Neste caso, não é claro o motivo por que o pequeno mexicano careca foi pintado tão pequeno, dada a grande importância que os cães tiveram na sua vida (ela admirava muito a herança asteca dos seus cães, a reputação deles como grandes curan-deiros para quem sofria de dor crónica, como era o caso de Kahlo depois do seu acidente, e não menos importante a sua capacidade de gerarem uma quantidade surpreendente de calor corporal). Julga-se que este cão em particular era um dos seus preferidos, um Sr. Xolotl. O quadro diz: o tamanho é irrelevante, e nós iremos guiar-vos neste mundo o melhor que pudermos.

Em terceiro lugar, temos o Sniper, um herói da Primeira Guerra Mundial, pintado por Samuel Fulton. Fulton foi um artista escocês que se especializou em cães com um ar melancólico, e nenhum foi mais célebre do que o Sniper, um staffordshire bull terrier com um toque de dálmata, que aparentemente nasceu nas trincheiras em 1916. Per-maneceu na frente até ao armistício, a realizar importantes tarefas de deteção e comunicação, com um colete caqui e uma máscara antigás. Uma preferência constante de vários regimentos escoceses, o Sniper parece também ter sido o primeiro cão a entrar na Alemanha depois da guerra. Era uma presença apreciada nas reuniões dos ex-comba-tentes, e, numa delas, posou para Fulton, para um retrato de frente, com uma expressão alerta. Ligeiramente sentimental, como a maioria do trabalho de Fulton, apresenta o corpo branco do Sniper sobre um fundo terroso, ocre, que lembra as trincheiras. Tanto o artista como o cão morreram em 1930 e deixaram à posteridade um quadro que dizia: nunca te deixarei ficar mal.

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A minha segunda escolha não é um único quadro, mas um gé-nero: «Terra-nova a salvar uma criança a afogar-se num lago ou numa corrente, muitas vezes com um pai em pânico ao fundo.» Foi um tropo na pintura durante duzentos anos, uma imagem dramática interpretada de formas diversas por muitos artistas, mostrando-se especialmente po-pular entre os moralistas vitorianos que começavam a receber os cães nos seus salões e a reavaliar toda a relação entre o homem e o cão. Já não é garantido que a imagem suscite uma lágrima no olho ou um nó na garganta, mas pode provocar um sorriso forçado. Landseer pintou um dos clássicos, intitulado Salvo, a partir da história do Milo, o terra--nova de George B. Taylor, guarda do farol de Egg Rock, no Maine. Foi exibido pela primeira vez na Royal Academy em 1856 e três anos depois a sua reprodução chegava a milhares de casas. O quadro mostra um cão enorme e exausto, com uma cabeça preta e pelagem branca num aflora-mento rochoso, de expressão atordoada e língua pendente, com um mar bravio por trás e uma criança ensopada a recuperar sobre as suas patas dianteiras. A criança parece uma menina, e continua de algum modo a usar um chapéu, mas consta que a figura teve por modelo Fred, o filho do guarda do farol. Porém, o Milo fazia mais do que salvar crianças da morte. Os seus latidos eram audíveis no nevoeiro quando o farol era quase invisível, assim alertando navegadores e pescadores antes que fosse demasiado tarde, e deste modo evitando ao Milo o trabalho de ter de voltar a mergulhar para os salvar.

Outra gravura, feita a partir de uma pintura do século xix do francês Joseph Beaume, mostra outro terra-nova num cenário ainda mais dramático, estando desta vez o cão a puxar mesmo uma criança para fora da água à frente dos nossos olhos. A criança tem os braços estendidos, apesar de a água parecer suspeitamente pouco profunda, e o cão olha para o observador com uma expressão cansada, como se dissesse «Que não se repita…» No entanto, essa fadiga parece não ter contagiado o observador, nem o leitor. Publicado em 1886, o ro-mance The Bostonians, de Henry James, contém uma cena em que uma pensão exibe, «defronte da chaminé, um tapete que representa um terra-nova a salvar uma criança de se afogar». Não é possível ignorar o simbolismo: os cães protegem-nos do mal; estarão presentes para nós quando menos esperarmos e mais precisarmos.

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E assim até ao cão no topo. Claramente esta seleção pende para o popular. A minha primeira escolha — selecionada por gostar verda-deiramente dela e com uma pitada de ironia pós-moderna — é Jogo de Póquer, da série «Cães a Jogarem Póquer», de Cassius Marcellus Coolidge. É a imagem irrepreensível e popular em muitos lavabos americanos, e não há nada de vergonhoso nisso. Mostra três são-bernardos ins-truídos e de óculos, sentados em volta de uma mesa com uma toalha verde, todos eles a fumar — dois cigarros e um cachimbo (o artista tinha o patrocínio de uma empresa de tabaco). Atrás, há um quarto cão, mais jovem, evidentemente apoiado nas suas patas traseiras, de cigarro aceso numa pata e claramente interessado no jogo em curso. Todos bebem uísque com soda, e o jogo já vai avançado no momento em que chegamos. Assistimos sem dúvida a uma jogada decisiva: um dos cães segura quatro ases.

O quadro é de 1894 e as suas qualidades são duradouras. É um triunfo do kitsch, mas também da intriga e da beleza. (Bem como do valor intrínseco: em 2015, foi vendido na Sotheby’s por 658 000 dó-lares.) Quanto à composição, o quadro parodia Os Batoteiros, de Ca-ravaggio, de 1594. Depressa esquecemos que se trata de cães a jogar póquer, pois somos levados pela narrativa (quem ganhará? Quem está a fazer bluff ? De quem é a nota de débito na mesa?). C. M. Coolidge depressa percebeu que encontrara um filão, pois os seus cães circuns-pectos são também tema de outros onze quadros, todos igualmente maravilhosos/horrendos. Há Um Waterloo, em que um são-bernardo se senta a uma mesa com um bóxer e um collie, e algum terrível ajuste de contas está prestes a ocorrer. E há Um Amigo em Necessidade, que apresenta uma casa cheia de sete cães diferentes e um pouco de ação chocante por baixo da mesa, onde, oculto dos outros jogadores, um buldogue passa em segredo um ás ao cão à sua esquerda. Esse cão devia ser banido do jogo definitivamente! Contudo, mais uma vez, que trapaça tão fixe!

As pinturas a óleo foram reproduzidas pela empresa Brown & Bigelow, do Minnesota, no final do século xix, e as impressões vendi-das aos milhões. Não é um interesse difícil de explicar. Samuel John-son compreendeu-o no século xviii quando escreveu «Prefiro olhar para o retrato de um cão que conheço do que para todas as pinturas

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alegóricas que podem mostrar-me o mundo.» Este era de facto um conjunto de cães que conhecemos: pragmatistas e maquinadores, cães que ocuparam o nosso lugar — jogadores. Aqueles que compraram as impressões podem ter imaginado os seus próprios cães àquela mesa, ou talvez se tenham imaginado a si próprios. E, muito em breve, ao género de Orwell, ambos podem ter-se tornado indistinguíveis.

Humanos a retratarem cães a jogar póquer: não é insensato ques-tionarmos onde começaram as raízes desta aliança, ou supor que co-meçou muito antes da invenção da tela e do cavalete. Mais uma vez, o trabalho artístico proporciona-nos uma revelação: como o capítulo seguinte explica, parece que desde há dez mil anos que celebramos a nossa acarinhada relação com os cães.

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