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O MERCADO E SEUS VÁRIOS SIGNIFICADOS: A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE DIREITO E ECONOMIA. MARKET AND ITS SEVERAL MEANINGS: THE INTERDEPENDENCE BETWEEN LAW AND ECONOMICS Michel Pinheiro Francisco Alexandre de Paiva Forte RESUMO O presente artigo trata da instituição mercado, analisando a evolução conceitual no plano da realidade econômica e da ordem jurídica, a fim de iluminar a compreensão do papel que cabe ao jurista. Longe de alhear-se da realidade econômica o operador do Direito deve ter a exata noção de onde e como pode intervir para orientar as forças econômicas, inseridas dentre os fatores reais de poder, à consecução de objetivos sociais, constitucionalmente impostos, especialmente no tocante aos direitos fundamentais. O conceito de mercado é mais usado entre os economistas, ao passo que nas demais ciências humanas não se tributa a devida atenção a esse conceito, embora o uso do termo também seja freqüente. A institucionalização do mercado não pode desconsiderar o plano do ser (sein), sob pena de a normatização acabar esvaziada e deslegitimada. Nesse sentido, partimos do conceito de mercado como local ao conceito jurídico de mercado. O mercado é indissociável das normas jurídicas, mesmo num contexto normativo aparentemente desregulado, com o mínimo de interferência estatal. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVE: MERCADO; ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO; KARL POLANYI; LIBERDADE ECONÔMICA; INTERVENÇÃO ESTATAL. ABSTRACT The present articles treats of the market institution, analyzing conceptual evolution at plane of the economic reality and of legal order aiming to bright understanding of the role that sets the jurist. Far away to be mindlessly of the economic reality law operator must have the exact notion of where and how can to intervene in order to direct economic forces inserted among actual power factors to the obtainment of constitutional imposed social goals relating to fundamental rights (civil rights). The market concept it is more used between economists, while in the other human sciences it is not tributed the due attention to such concept, however its use it is too frequent. The market institutionalization can not disregard the being plane (sein), under penalty of the normatization to end voiadable and delegitimized. In this sense we depart from the concept of market as local to the legal concept. The market it is undissociated of legal norms even at a normative context apparently deregulated with a minimally statal 965

O MERCADO E SEUS VÁRIOS SIGNIFICADOS: A … · Karl Polanyi (2000, p. 17) em sua obra clássica, a Grande Transformação, começa afirmando que a civilização do século XIX se

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O MERCADO E SEUS VÁRIOS SIGNIFICADOS: A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE DIREITO E ECONOMIA.

MARKET AND ITS SEVERAL MEANINGS: THE INTERDEPENDENCE BETWEEN LAW AND ECONOMICS

Michel Pinheiro Francisco Alexandre de Paiva Forte

RESUMO

O presente artigo trata da instituição mercado, analisando a evolução conceitual no plano da realidade econômica e da ordem jurídica, a fim de iluminar a compreensão do papel que cabe ao jurista. Longe de alhear-se da realidade econômica o operador do Direito deve ter a exata noção de onde e como pode intervir para orientar as forças econômicas, inseridas dentre os fatores reais de poder, à consecução de objetivos sociais, constitucionalmente impostos, especialmente no tocante aos direitos fundamentais. O conceito de mercado é mais usado entre os economistas, ao passo que nas demais ciências humanas não se tributa a devida atenção a esse conceito, embora o uso do termo também seja freqüente. A institucionalização do mercado não pode desconsiderar o plano do ser (sein), sob pena de a normatização acabar esvaziada e deslegitimada. Nesse sentido, partimos do conceito de mercado como local ao conceito jurídico de mercado. O mercado é indissociável das normas jurídicas, mesmo num contexto normativo aparentemente desregulado, com o mínimo de interferência estatal.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVE: MERCADO; ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO; KARL POLANYI; LIBERDADE ECONÔMICA; INTERVENÇÃO ESTATAL.

ABSTRACT The present articles treats of the market institution, analyzing conceptual evolution at plane of the economic reality and of legal order aiming to bright understanding of the role that sets the jurist. Far away to be mindlessly of the economic reality law operator must have the exact notion of where and how can to intervene in order to direct economic forces inserted among actual power factors to the obtainment of constitutional imposed social goals relating to fundamental rights (civil rights). The market concept it is more used between economists, while in the other human sciences it is not tributed the due attention to such concept, however its use it is too frequent. The market institutionalization can not disregard the being plane (sein), under penalty of the normatization to end voiadable and delegitimized. In this sense we depart from the concept of market as local to the legal concept. The market it is undissociated of legal norms even at a normative context apparently deregulated with a minimally statal

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interference.

KEYWORDS: KEY-WORDS: MARKET; ANALYSIS OF LAW AND ECONOMICS; KARL POLANYI; ECONOMIC FREEDOM; STATAL INTERVENTION.

Introdução

Tomamos como fontes principais as obras de Ferrarese (1992), Torre-Schaub (2002) e Polanyi (2000).

O conceito de mercado, segundo a definição do Aurélio é o “conjunto de atividades de compra e venda de determinado bem ou serviço, em certa região; comércio”.

Assim, a primeira noção de mercado está estreitamente relacionada a um local físico. Entretanto, com a evolução do sistema capitalista, a noção do mercado como local de trocas, embora não tenha sido de todo superada, já não é suficiente para entender a instituição que ora se comporta como algo controlável, ora como uma espécie de ente demiúrgico a determinar as condutas humanas e a ditar o destino de povos e nações.

À exceção de Polanyi poucos autores dedicam uma atenção analítica à noção de mercado. (FERRARESE, op. cit., p. 17), de tal sorte que resulta numa polissemia. A diversidade de significados ocorre também em função das diversas pespectivas disciplinares.

A necessidade e conveniência de uma definição de mercado decorre dos variados mecanismos que o constituem e que reclamam a participação de autoridades, inclusive judiciárias (TORRE-SCHAUB, op. cit., p. 6).

Os mercados têm três funções principais: 1) propiciar o encontro entre vendedores e consumidores; 2) facilitar o intercâmbio de informações, bens, serviços e a contabilização das transações; e 3) estabelecer uma infra-estrutura institucional como um domínio periférico regulativo a fim de tornar eficiente o funcionamento dos mercados. Esta última função diz respeito à área de domínio do direito (HARTERT, 2002, p. 58). A meta do mercado é a alocação eficiente de recursos. O conceito de eficiência diz respeito à obtenção de um resultado desejado pelo menor custo possível (HARRISON, 2003, p. 28).

1. A civilização do século XIX e as origens do mercado

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Karl Polanyi (2000, p. 17) em sua obra clássica, a Grande Transformação, começa afirmando que a civilização do século XIX se firmava em quatro instituições: 1) o sistema de equilíbrio de poder entre as Grandes Potências; 2) o padrão internacional do ouro; 3) o mercado auto-regulável; e 4) o estado liberal.

O mercado auto-regulável era a fonte e matriz do sistema, a ponto de as leis do mercado constituírem “a chave para o sistema institucional do século XIX” (op. cit., p. 17).

A tese fundamental de Polanyi na obra em comento é a de que a idéia de um mercado auto-regulável “implicava uma rematada utopia” (p. 18). Não obstante, essa rematada utopia constituía um mecanismo institucional definido que fez da civilização do século XIX singular em relação aos períodos históricos anteriores: ela baseava-se no lucro. E desse motivo ou princípio derivou o sistema de mercado auto-regulável (op. cit., p. 47).

Os preços mundiais das mercadorias “constituíam a realidade principal da vida de milhões de camponeses continentais” (op. cit., p. 33), de modo que os orçamentos, armamentos, comércio exterior, matérias-primas, independência nacional e soberania “eram funções da moeda e do crédito”.

“ A economia de mercado, o livre comércio e o padrão-ouro foram inventos ingleses” (POLANYI, op. cit., p. 47).

Resgatando a história dos cercamentos de terras na Inglaterra, Polanyi afirma que “as leis de mercado só são relevantes no cenário institucional de uma economia de mercado” (op. cit., p. 56), fato que os economistas modernos esqueceram, o que distanciou-os da realidade. A atuação da Coroa foi decisiva para permitir uma transição e reduzir o impacto das novas mudanças, diminuindo o ritmo do processo de desenvolvimento e socorrendo as vítimas.

De acordo com Brenan e Buchanan (2000, p. xvi) a grande descoberta intelectual do século XVIII foi a da ordem espontânea do mercado – onde as regras substituem a moral -, no sentido de que numa estrutura apropriada de regras (leis e instituições, segundo a terminologia de Smith) os indivíduos ao seguirem seus próprios interesses acabam realizando os interesses da coletividade, numa grande rede de coordenação social além dos limites da divisão do trabalho. Tudo quanto é necessário é um contexto constitucional apropriado com regras adequadas. A economia política trata dessa questão de maneira central, muito embora o economista atualmente seja definido como aquele que sabe como o mercado funciona.

Os modelos formais de mercado derivados de exercícios matemáticos dos economistas desconsideram as restrições institucionais, como se fossem totalmente irrelevantes a forma como os indivíduos interagem dentro das estruturas de mercado (BRENNAN E BUCHANAN, 2000, p. 16). Um exemplo comum, segundo Brennan e Buchanan (op. cit., p. 17), podem existir mercados de pesca que funcionam muito bem no qual as forças da demanda e da oferta operam de modo a gerar resultados inteiramente satisfatórios na alocação e distribuição, sob determinados recursos e parâmetros institucionais, ao passo que ante a ausência de direitos de propriedade relacionados à área de pesca provavelvemente haveria o fracasso na definição de um conjunto de regras que seriam ideais do ponto de vista normativo.

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Num sistema de mercado, diz Polanyi (op. cit., p. 60) “qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda”. Eis o signficado do termo “sistema de mercado”, o qual se caracteriza ainda pela peculiar exigência de que deva funcionar sem qualquer ingerência externa, de modo que os preços e nada além dos preços livres dirigem a economia. Sendo o mercado “um local de encontro para a finalidade da permuta ou da compra e venda” (POLANYI, op. cit., p. 62 e p. 76).

“A permuta, a barganha e a troca constituem um princípio de comportamento econômico que depende do padrão de mercado para sua efetivação” (POLANYI, 2000, p. 76). Polannyi explica as diferenças entre três tipos de comércio: o do mercado local, como ocorre entre campo e cidade de forma complementar, que não serviu de ponto de partida para os mercados interno e externo; o comércio interno, essencialmente competitivo; e o comércio externo, também complementar, o qual originalmente “sempre esteve ligado à aventura, exploração, caça, pirataria e guerra”, baseando-se muito mais na reciprocidade do que no princípio da permuta que caracteriza o mercado.

O comércio, segundo Polanyi (apud FERRARESE, op. cit., P. 18), é uma função do mercado, onde este é dominante. E o dinheiro é mero símbolo do poder de compra que adquire vida atrávés do “mecanismo dos bancos e das finanças estatais” (POLANYI, 2000, p. 94).

A contribuição de Polanyi no entendimento de Ferrarese (op. cit., p. 34 e ss.) está primeiramente no plano histórico à medida que ele contestou a idéia liberal de que o mercado auto-regulado seria produto de uma evolução espontânea da sociedade. Ao contrário, o laissez-faire foi resultado de uma deliberada ação do Estado. Em segundo lugar, a contribbuição de Polanyi ocorre no plano ideológico, no ponto em que ele destaca o potencial devorador das relações sociais que o mecanismo de mercado pode desencadear.

Sob uma perspectiva jurídica, Santini (apud FERRARESE, op. cit., p. 70 e ss.) concebe o mercado de forma institucional, como lugar destinado ao comércio institucionalizado mediante uma série de estruturas econômicas, sociais e jurídicas permanentes. Há uma correspondência e intercambialidade entre o mercado como local e o mercado como instituição, esta última entendida como área social circunscrita e com regra, sendo o local concebido como o espaço no qual impera a regra (de mercado). Assim, parte-se da idéia de mercado como espaço físico para a idéia de mercado como espaço social. Do ponto de vista ideológico, o mercado também pode ser significado como expressão da liberdade ou de opressão; assim como pode ser visto como paradigma específico de ação social.

2. Os quatro signficados de mercado segundo Ferrarese

Ferrarese (op. cit., p. 20) numa perspectiva analítica aponta a existência de quatro significados de mercado: 1) mercado como local; 2) mercado como ideologia; 3) mercado como paradigma de ação social; e 4) mercado como instituição. Entretanto, no

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plano prático a separação não é absoluta. Na perspectiva sociológica, o mercado caracteriza específica modalidade de ação social. No sentido ideológico, o mercado, como garantia da liberdade, induz a considerar caracteres que se encontram no próprio mercado como paradigma de ação social ou como lugar. Ainda no sentido ideológico, o mercado aponta indiretamente para as ações estruturadas dos indivíduos.

2.1. O mercado como local

Ferrarese (op. cit., p. 21) observa inicialmente o paradoxal desenvolvimento da história do mercado. À identificação do mercado como lugar corresponde também uma impossibilidade de identificação espacial do mercado. Este é concebido como cidade imaginária onde está presente a propriedade privada, a concorrência, a tendência à maximização da utilidade, etc. (p. 21).

O mercado pode ser um lugar fisicamente determinado ou um lugar ideal, simbólico, uma área da vida social dedicada às trocas e transações econômicas.

W. Neale (apud FERRARESE, op. cit., p. 19) concebe o mercado como lugar onde dois grupos de sujeitos se encontram para a troca de bens.

Nesse sentido, Torre-Schaub (op. cit., p. 3) faz referência a definições de mercado como lugar teórico, abstrato, em vez de um lugar preciso onde se cruza a oferta e a procura. Ainda pode ser entendico como o conjunto das operações econômicas e igualmente como um modelo de trocas.

As feiras medievais constituem as primeiras formas de localização física do mercado. Com o desenvolvimento, a identidade de lugar cedeu a uma identidade periódica, de tempo. Nas sociedades antigas os pequenos mercados locais apresentavam um caráter acessório em relação à rede de relações sociais existentes (FERRARESE, op. cit., p. 22).

Weber (apud FERRARESE, op. cit., p. 23) identifica na estabilidade do mercado um dos traços característicos do nascimento das cidades. E mais importante é que a cidade exprime uma política econômica citadina, fixando através da regulamentação as condições da economia local, tornando mais estreita a ligação entre lugar e atividade econômica.

Polanyi (apud FERRARESE, op. cit., p. 80), analisando a relação existente entre desenvolvimento da civilidade urbana e o desenvolvimento do mercado, observa que a espacialidade do mercado tendia a ser contida e represada nos confins urbanos em virtude de um desenvolvimento paradoxal, de modo que a cidade, sendo originada do mercado era também o meio de impedir a sua expansão.

De acordo com Torre-Schaub (op. cit., p. 3) o mercado na visão da escola neoclássica é tido como lugar teórico de cruzamento e adequação da oferta e da procura, bem como uma rede relações entre agentes econômicos que estão em estreita comunicação. Ante a

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idéia do mercado natural a escola neoclássica propõe uma teoria do mercado baseada no preço justo e equilibrado. Para Jevons, citado por Torre-Schaub (op. cit., p. 3), o mercado envolve todo grupo de pessoas que estão em estreitas relações de negócios e efetuam importantes transações em torno de um produto. É assim, diz Torre-Schaub, que do fim do século XVIII em diante, consolida-se o ideário liberal e passamos de uma definição concreta de mercado para uma definição cada vez mais abstrata, onde o mercado torna-se uma idéia, uma lógica que “reagrupa uma série de atos, de fatos e de objetos” (op. cit., p. 3-4).

No século XX o mercado ultrapassa as fronteiras da Economia com a institucionalização de transferências sociais na ordem da economia. O projeto intelectual do mercado torna-se mais abstrato e requer a intervenção do direito para estabelecer a liberdade e sua regulamentação simultânea. A regulamentação requerida ultrapassa as relações de produtores/comerciantes, consumidores e municipalidades. A liberdade de comércio encontra na livre concorrência a sua expressão mais eficaz (TORRE-SCHAUB, op. cit., p. 4). A partir daí o conceito de mercado no pensamento liberal ultrapassa o discurso da comercialidade e transforma-se num jogo político, calcado numa construção racional, política e jurídica da livre concorrência. Entretanto, não parece nada original, sob um ponto de vista construtivista, considerar o mercado como fruto de uma ação voluntária. Colbert, segundo Torre-Schaub (op. cit., p. 4), já definia o mercado como um espaço unificado organizado pelo Rei. Na concepção liberal, por outro lado, o mercado se destaca da feira, sua referência institucional, e passa a existir por si mesmo onde a concorrência entre comerciantes se manifesta ao lado das regulações, do poder de polícia, para coibir os abusos. O comércio é exercido nos pontos mais diversos, em mercados dispersos, mas que respondem ao mesmo funcionamento: “concorrência, liberdade e diversidade” (TORRE-SCHAUB, op. cit., p. 5).

A tese de Polanyi é que ao fim do período marcado pelo nascimento do mercado auto-regulado da época liberal, todas as formas de mercado conhecidas mantiveram um caráter de importância secundária na vida econômica, sendo muito mais um lugar de expressão e de potencialidade da lógica social existente em vez de uma autonomia da vida econômica que tendia a invadir e influenciar a esfera das relações sociais (FERRARESE, op. cit., p. 24).

Na visão de Polanyi o mercado sai de uma importância secundária para tornar-se num mecanismo que acaba por condicionar e tornar-se pervarsivo à lógica de funcionamento das relações sociais (FERRARESE, op. cit., p. 24). A mesma compreensão é esposada por Walzer (2003, p. 487).

A institucionalização do mercado corresponde a um processo de desenraizamento do mercado de uma localidade física e de sua crescente influência no espaço das relações sociais, acabando por constituir-se como espaço autônomo relacional, dotado de regras e características próprias (FERRARESE, op. cit., p. 25).

A antropologia econômica cunhou o termo “diáspora comercial” para o comércio intercultural e às instituições relativas no âmbito das sociedades tradicionais. Polanyi estabelece como ponto de partida do revés do mercado o comércio de longa distância, resultado da localização geográfica dos bens e da divisão do trabalho.

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A tendência do mercado de dissorciar-se de um lugar físico é acompanhada paradoxalmente da progressiva constituição da cidade (ou de bairros) dedicada exclusivamente a atividades econômicas. Ressalte-se que, como recorda Weber (apud FERRARESE, op. cit., p. 25 e ss.), uma parte predominante dos bens das empresas circula em lugares diversos daquele em que a empresa tem sede.

A significação do mercado como “não-lugar” encontra um epílogo significativo próprio na realidade atual do mercado dito glogal, que representa o grau extremo de dispersão da localização física do mercado. O mercado financeiro internacional é o caso mais evidente de perda de importância da espacialidade do mercado ante o fluxo de informações econômicas, cuja rede representa um mercado sem pátria. (FERRARESE, op. cit.,p. 30).

Montesquieu, segundo Ferrarese (op. cit., p. 25 e ss.) entendia que a riqueza, sobretudo a mobiliária, pertencia a todo o mundo e não apenas a um Estado particular. Hayek, por sua vez, também citado por Ferrarese (op. cit., p. 25-29; e 68-69) fala da Grande sociedade a congregar todos os homens em face da interdependência.

É crescente a relevância simbólica da sociedade que condiciona e informa um número sempre mais relevante de ações sociais. Os locais físicos não passam de terminais de uma rede de relações e de informações do tamanho do mundo inteiro (FERRARESE, op. cit., p. 29)

2.2. O mercado como ideologia

Caracterizada por uma certa tendência de absoultutização do mercado, Weber (apud FERRARESE, op. cit., p. 31) definiu a liberdade de mercado como “o grau de autonomia dos indivíduos participantes do comércio na sua luta de preço e de concorrência”. Em suma, o laissez-faire traduz bem o conceito de mercado como ideologia, à medida que ao indivíduo é dado o arbítrio de seus interesses econômicos, tanto quanto de sua consciência religiosa.

Friedman (apud FERRARESE, op. cit., p. 34) postula uma dura separação entre os aspectos científicos e os não-científicos da análise econômica. O mercado livre funciona para os indivíduos como um mecanismo onde a unanimidade é sempre possível porque toda pessoa pode escolher livremente.

A liberdade é funcional à realização dos escopos econômicos do mercado. Smith considerava a liberdade imprescindível a fim de que o preço de mercado correspondesse ao preço natural (FERRARESE, op. cit., p. 32).

O mercado assume um caráter constitucional na defesa da liberdade pessoal, valorizando a igualdade filosófica sem qualquer consideração das circunstâncias particulares. O aspecto político da liberdade de mercado está em encarar o indivíduo como protagonista e medida do mercado, sob as seguintes variantes: 1) comportamento dos atores sobre o mercado em termos de racionalidade; e 2) espontaneísmo das

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relações de mercado numa perspectiva evolucionista. Nesse ideário liberal clássico cada qual é o guardião da própria saúde, seja física, seja mental e espiritual. Os indivíduos buscam as próprias conveniências e interesses. (FERRARESE, op. cit., p. 34). Ferrarese aponta a retórica da onisciência do consumidor que identifica a liberdade com o mercado (FERRARESE, op. cit., p. 20 e ss.). Aliás, nesse ponto lembramos de um episódio que aconteceu com o autor deste artigo durante a campanha política do Referendo do Desarmamento. Na calçada de um shopping de Fortaleza o autor distribuía alguns panfletos – e pouco importa se contra ou a favor do desarmamento – quando foi abordado pelos seguranças. Mesmo diante das explicações de que se tratava de matéria absolutamente estranho ao comércio e de algo legítimo, além disso, fora das dependências do shopping, o autor teve que retirar-se para não ser levado preso. De modo que o mercado, localizado no shopping, ao menos simbolicamente, não compactua com manifestação política nem na calçada que se diz pública. A liberdade é apenas a de consumir.

A assimilação do mercado à arena política, na qual o consumidor teoricamente é detentor de poder, segundo Ferrarese (op. cit., p. 33 e ss.), pode ser exemplificada com a máxima “um dólar, um voto”.

Marx, a seu turno, destacou a desigualdade como limite à liberdade de mercado e apontou que esta última acaba por colocar a dignidade pessoal como simples valor de troca, expondo os sujeitos ao desfrutamento e não à liberdade (FERRARESE, op. cit., p. 34 e ss.).

A idealização do mercado como coexistência pacífica entre liberdade e uma subvaloração do aspecto conflitual que incide no mercado é também uma forma de absolutização da liberdade de mercado. A concorrência é expressão de uma tensão institucional entre liberdade e conflito. Weber concebe a concorrência como luta pacífica. A concepção weberiana de concorrência remete o mercado aos seus aspectos conflituais, que reclama uma regulação para garantir o normal funcionamento das relações de mercado. A redução do conflito a forma pacífica requer uma constrição do âmbito de liberdade, sob forma de regulamentação no interesse mesmo de funcionamento do mercado. Eis o papel desempenhado pelo contrato. Não por acaso Buchanan (apud FERRARESE, op. cit., p. 40) chegou a dizer que a economia mais do que uma ciência da escolha é a ciência do contrato.

Macpherson (apud FERRARESE, op. cit., p. 41 e ss.) critica a hipótese de que a liberdade seja o ingrediente fundamental do mercado. Ele observa o exasperado conflito entre poderes individuais que resulta na concorrência. A mercantilização infinita e o conflito institucionalizado são as marcas da ideologia oposta ao mercado livre.

Um aspecto importante da ideologia do mercado é a relação entre liberdade de mercado e democracia. Os teóricos da democracia, segundo Ferrarese (op. cit., p. 43) são propensos a supor que a liberdade de mercado não deve ser absoluta e que os conflitos possam determinar-se entre mercado livre e processo político.

A tendência da força econômica a alimentar a idéia de um nexo inscindível entre o papel do desenvolvimento do mercado e a preservação da liberdade constitui uma prova da circularidade da poliarquia, fazendo coincidir os objetivos da classe política e os

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objetivos do empresariado, o que torna vã o funcionamento da poliarquia sob base exclusivamente política (FERRARESE, op. cit., p. 44).

Robert Dahl, segundo Ferrarese (op. cit., p. 44) destaca a potencial contradição entre a razão da propriedade e a razão da democracia. Do ponto de vista liberal a liberdade econômica tem um valor intrínseco que não pode ser manipulada pela política (op. cit., p. 45).

Friedman, colocando a liberdade econômica como integrante da liberdade, sublinha que ela é um fim em si mesma, além de ser um meio indispensável para a realização da liberdade política. Assim, resolve-se a questão da interdependência entre democracia e liberdade de mercado, a favor desta última (FERRARESE, op. cit., p. 45).

Montesquieu, ainda que de maneira estática, vislumbrou um balanceamento entre economia e política. Numa visão mais moderna pode-se entender o mercado e a política como parceiros, de sorte que o balanceamento pode fornecer um corretivo à visão ideológica do mercado (FERRARESE, op. cit., p. 46-47).

2.2. O mercado como paradigma de ação social

Sob tal significado sobressai o caráter individualístico da ação social, considerando o indivíduo como a medida da ação social típica do mercado. Nesse sentido constata-se o favorecimento do individualismo metodológico. A abordagem liberal que considera os sujeitos como capazes de um perfeito cálculo da própria utilidade baseia-se na convenção de uma perfeita racionalidade. Nesse sentido Paretto sustenta que a única norma escolhida pela economia pura seria a satisfação do indivíduo, sendo ele o único juiz (FERRARESE, op. cit., p. 48-49).

Entretanto o modelo da racionalidade absoluta não é o único. Hayek desenvolve a idéia de uma racionalidade orgânica, que seria produto não planificado dos sujeitos econômicos singulares. Outros como Simon, preferem adotar o modelo da racionalidade limitada no qual os atores atuam sob a ilusão de comportarem-se racionalmente, mas só limitadamente alcançam uma situação de racionalidade (FERRARESE, op. cit., p. 49). E Knight defende que a complexidade dos fenômenos econômicos impede que os atores econômicos atuem sob uma idéia simplista de uma racionalidade perfeita (FERRARESE, op. cit., p. 51).

Williamson, com seu neo-institucionalismo econômico entende que a racionalidade limitada permite conciliar a intenção de racionalidade dos sujeitos com os limites inevitáveis da racionalidade. Os cálculos de conveniência feitos pelos atores do mercado acabam sendo falácias porque não levam em conta – como faz apropriadamente R. Coase (1994, p. 10-11) – os custos ulteriores, tais como a exeqüibilidade de um contrato ou a efetivação do direito de propriedade (FERRARESE, op. cit., p. 50).

As características das ações sociais no âmbito do mercado são basicamente as seguintes: 1) interdependência das relações de mercado; 2) competitividade, como conseqüência

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do caráter aberto do mercado (FERRARESE, op. cit., p. 56), a qual consiste num mecanismo refreador da subjetividade, corrigindo-a com uma dimensão de caráter social estampada na substituibilidade das pessoas e na precariedade e mutabilidade das situações; e 3) a previsibilidade.

De acordo com Ferrarese (op. cit., p. 56) Schumpeter chega a destacar a permanente ameaça da concorrência ainda que o mercado pareça sujeito a um feitio monopolístico ou oligopolístico. Hirsch (apud FERRARESE, op. cit., p. 63) considera que o consumo diante do crescimento da economia acaba respondendo a uma lógica incontrolável na perspectiva do indivíduo. E Polanyi[1] afirma que o desenvolvimento tecnológico nascido da iniciativa individual, tornou-se uma autônoma fonte de organização social capaz de colocar em risco a própria liberdade.

Por outro lado a competitividade é um reflexo da liberdade de mercado. A concorrência do mercado é parte da ideologia do mercado livre, seja como salvaguarda contra o risco de jogos de maioria contra minorias débeis, seja enquanto consequência da liberdade (FERRARESE, op. cit., p. 56).

Acerca do caráter da previsibilidade, esta representa paradoxalmente a outra face da liberdade de mercado. É o que implica no automatismo do mercado, a mão invisível (FERRARESE, op. cit., p. 58-59).

A visão do mercado de Hayek desloca-se da fé otimista na plena racionalidade dos sujeitos e abre-se à perspectiva do risco e da incerteza (p. 60), de sorte que o equilíbrio do mercado coincide com uma situação de previsibilidade do comportamento (p. 61). Deparamo-nos com um paradoxo do mercado, uma vez que este é “um universo extremamente móvel, frequentado por atores sujeitos à incerteza”, e não osbstante revela uma inesperada capacidade de orientação do comportamento (p. 61). Mas, como observa Durkheim (apud FERRARESE, op. cit., p. 66), em que pese o comportamento egoístico e conflitual ter como resultado a cooperação, esta não significa necessariamente solidariedade. O dinheiro, observam Simmel e Weber (apud FERRARESE, op. cit., p. 67), despersonaliza as relações sociais, de sorte que o mercado minimiza a necessidade de recorrer às restrições éticas internas e/ou jurídico-políticas externas impostas ao comportamento humano (BUCHANAN)[2].

De todo modo, a característica marcante do mercado sob um perfil social está na estrutura de descentralização, promovendo flexibilidade e diversificação dos comportamentos (FERRARESE, op. cit., p. 68). É Weber (1994, p. 420) ainda quem vai dizer no capítulo inacabado sobre o mercado que quando este é deixado “à sua legalidade intrínseca, leva apenas em consideração a coisa, não a pessoa, inexistindo para ele deveres de fraternidade e devoção ou qualquer das relações originárias sustentadas pelas comunidades pessoais”.

2.3. O mercado como instituição

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Os mercados são instituições que têm por objetivo reduzir os custos de transação das trocas, facilitando-as (COASE, 1994, p. 7).

Para as ciências sociais a instituição é um modelo complexo de comportamento, compreendendo normas e papéis respectivos, dotado de alta regularidade e submetido a uma difusa aceitação social (FERRARESE, op. cit., p. 61). Desse modo, a significação do mercado como instituição implica em atribuir-lhe um elevado valor tanto de regulador do comportamento quanto de expectativas de comportamentos. A sociedade de mercado, para além da alocação de recursos, pressupõe uma eficaz organização das relações sociais a partir do mercado (p. 61).

Sob uma perspectiva evolucionista a institucionalização do mercado aparece caracterizada na sociedade moderna com o elemento contratual (p. 62), constituindo o motor essencial do mercado como instituição na perspectiva traçada por Polanyi que, segundo Ferrarese (op. cit., p. 62), é o autor que mais insiste no aspecto institucional do mercado, como modo fundamental de regulação da sociedade ao lado da reciprocidade (típica da sociedade tradicional) e da redistribuição (própria da política).

Para outros autores, segundo Ferrarese (op. cit., p. 62) a institucionalidade do mercado limita a subjetividade dos atores e se traduz em uma poderosa estrutura de conformação dos comportamentos. O mercado apresentaria ainda a “dimensão e aparência da subjetividade, compreendida como capacidade de escolha, liberdade de ação, afirmação do gosto, etc” (FERRARESE, op. cit., p. 62-63).

Em Marx um certo determinismo econômico estrutural torna possível a modificação e limitação da subjetividade (FERRARESE, op. cit., p. 63). Hirsch, por sua vez, também citado por Ferrarese (op. cit., p. 63) anota que à medida que a economia cresce o consumo acaba por responder a uma lógica social que o indivíduo não tem como controlar (p. 63).

O desenvolvimento tecnológico, nascido da iniciativa individual, tornou-se uma autônoma fonte de organização social capaz de colocar em risco a própria liberdade, segundo Polanyi, citado por Ferrarese (op. cit., p. 63).

Assim como a política assimilou elementos do mercado, o mercado adquiriu “uma capacidade de planificação que tradicionalmente pertencia à política e os grandes grupos econômicos se configuram como estruturas de ‘governo privado’ da sociedade” (FERRARESE, op. cit., p. 64).

O mercado como instituição parece caracterizar-se como uma específica capacidade de fazer coexistente a dimensão subjetiva (que respeita a escolha individual) e a dimensão objetiva (não controlável pelo indivíduo). Assim, a estrutura de funcionamento do mercado não corresponde a uma somatória de comportamentos econômicos independentes (FERRARESE, op. cit., p. 64).

Constata-se no mercado uma não coincidência entre intencionalidade dos sujeitos e objetividade dos resultados. Ainda que os atores se comportem de maneira reciprocamente egoística e conflitual o resultado é uma cooperação socialmente útil na

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visão de Durkheim. Mas, cooperação não se confunde como solidariedade (FERRARESE, op. cit., p. 66).

Na compreensão de Simmel o comércio mediante o dinheiro torna-se o instrumento de objetivação da realidade e ajuda as relações sociais a perderem o componente personalístico (FERRARESE, op. cit., p. 67).

As fronteiras do mercado jamais foram definidas claramente. O regime de mercado fundado sobre o modelo da livre concorrência parece preceder a definição mesma de seu objeto. A natureza do mercado não é evidente nem estável. O mercado é mais do que um lugar de reencontro e de trocas, de oferta, de demanda, dos atores, dos comerciantes, dos objetos. O regime de mercado tende a extrapolar as fronteiras do direito econômico (TORRE-SCHAUB, op. cit.).

A fratura entre o mercado e a pessoa é maior do que a que existe entre o mercado e o Estado. “O comércio abre a porta à patrimonialização da pessoa” (TORRE-SCHAUB, op. cit., p. 12). É preciso, portanto, ficar atento às interferências do mercado sobre os direitos da pessoa. Em que pese o caráter merceológico da sociedade capitalista, por outro lado, é inegável que o mercado incorporou outros critérios de caráter ético e político, como diz Ferrarese (op. cit., p. 74).

3. O conceito jurídico de mercado

Torre-Schaub (op. cit., p. 1) afirma que a onipresença de práticas de mercado nas sociedades contemporâneas favorece o desenvolvimento de ideologias que consideram os sistemas de troca como fenômenos naturais ou espontâneos. A mão invisível é uma possante metáfora representativa do caráter espontâneo e bem sucedido do regime de trocas em contrapartida ao processo de institucionalização. É mesmo impensável um mercado que tenha sido formado à margem da elaboração jurídica de nossas sociedades. O mercado é indissociável das normas jurídicas, ainda que não tenha sido integrado de forma evidente pelo direito, uma vez que não reproduz com exatidão o sistema de mercado liberal. A autora chama a atenção para a transversalidade da categoria mercado, de sorte que a dialética permanente entre o direito e a economia “permite aferir a autonomia jurídica” (op. cit., p. 3) dessa categoria.

Torre-Schaub, diferentemente de Ferrarese (op. cit.), cuida mais da elaboração jurídica do conceito de mercado, destacando as diferentes definições de mercado, a evolução do mercado e as conexões indissolúveis entre o mercado e a livre concorrência. Do ponto de vista jurídico, a definição mais frequente, segundo a mesma autora é a de mercado como local onde se efetuam as vendas de mercadorias; o mercado como conjunto de contratos, de convenções e de transações relativas aos bens e às operações dadas. Para M. Lyon-Caen, citado por Torre-Schaub (op. cit., p.8), o mercado é uma utopia, um projeto político, mas também um “objeto jurídico” a ser construído pelo direito, de sorte que há uma intercambialidade constante entre direito e economia. E o núcleo do direito econômico concerne às regras de regulação da concorrência.

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O modelo concorrencial de mercado é o preferido dos economistas. E vários são os modelos concorrenciais possíveis, o que fornece uma pista à fronteira entre a economia e o direito, diz Torre-Schaub (op. cit., p. 5). O econômico e o jurídico formam um todo: a categoria do mercado, dotada do regime de concorrência. “O mercado construído pelo direito da concorrência se apresenta como um conjunto de objetivos que nos remete ao modelo concorrencial, firmando-se desta forma sobre si mesmo” (TORRE-SCHAUB, op. cit., p. 5).

Joseph William Singer (2008, p. 4) afirma que a regulação é apenas outra palavra para o princípio da legalidade, a “rule of law”. E sem lei o “livre mercado” seria substituído pela guerra de todos contra todos. A regulação de mercado na concepção de Max Weber (1994, p. 50) é caracterizada pela situação em que estão “materialmente limitadas, por determinadas ordens, a mercabilidade de possíveis objetos de troca e a liberdade de mercado para possíveis interessados na troca”. Esse condicionamento do mercado, ainda segundo Weber, pode decorrer de limitações tradicionais da troca, desaprovabilidade social em relação a determinadas mercadorias, de modo jurídico pela normatização da troca ou da liberdade de preços e concorrência, ou de forma voluntária, cujo exemplo mais patente é o da formação de monopólios e oligopólios.

Segundo Weber (1994, p. 225) A extensão dos resultados que podem ser obtidos com a coercibilidade que acompanha a ordem jurídica, especialmente, na área econômica, depende da peculiaridade da própria ação coercitiva. Os limites da capacidade econômica influem decisivamente e a tendência a “desprezar oportunidades econômicas somente para agir conforme as leis é naturalmente pequena, a não ser que uma convenção muito viva desaprove fortemente a evasão do direito formal...” Não raro os agentes econômicos podem inverter o fim pretendido pela prescrição legal, diz Weber.

E sem lei o “livre mercado” seria substituído pela guerra de todos contra todos. A escola democrática do direito de propriedade, segundo Singer (op. cit., p. 48) reconhece que as relações de mercado são legítimas somente quando conformam-se a padrões mínimos de regulação de modo que os indivíduos atuem segundo uma ética comum. A proteção ao consumidor e a legislação anti-truste tem essa finalidade. Os mercados, diz Singer (op. cit., p. 50), na esteira do pensamento de Polanyi e Torre-Schaub, não são estados da natureza[3], mas decorrem das regras legais, a principal delas concernente ao direito de propriedade. “A teoria política suporta a idéia de criar uma democracia que respeita os direitos fundamentais. Esse modelo institucional forma a estrutura básica dentro da qual o mercado pode operar, não o inverso” (SINGER, op. cit., p. 50). E mais adiante diz o mesmo autor que “o caráter qualitativo das relações sociais, mais do que a mera maximização do valor de mercado, deve estar no cerne de nossa preocupação” (op. cit., p. 51)

Max Weber (1996), no seu clássico “A ética protestante e o espírito do capitalismo” afirma que o interesse capitalista contribuiu para preparar o caminho à predominância do direito porque o racionalismo econômico é parcialmente dependente da técnica e do direito racionais. Os fracassos de governos de países pobres em promover uma infraestrutura legal de uma economia capitalista, com um aparato burocrático judicial qualificado, inclusive em termos éticos, capaz de proteger a propriedade e os contratos, explica em grande parte a razão pela qual eles permaneceram pobres (POSNER, 2003, p. 258). Na mesma linha de pensamento Arruñada e Andonova (2005, p. 197) sustentam que a efetiva tutela da liberdade de contratar é requisito para o adequado funcionamento

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de uma economia de mercado. A expansão do mercado favorece “a monopolização e regulamentação de todo poder coativo ‘legítimo’ por uma instituição coativa universal” (WEBER, 1994, p. 227). É por isso que a tradição já não encontra a importância que teve em outras épocas e sistemas econômicos, dadas as divergências de interesses entre classes, bem como a velocidade das transações econômicas modernas. O direito é imprenscindível ao mercado.

Em consonância com Singer e Weber, Torre-Schaub (op. cit., p. 4) afirma que a idéia construtivista da categoria de mercado, ao afastar a naturalidade do fenômeno de mercado implica numa atuação maior das autoridades e do legislador, ou seja, na participação voluntária ou política.

Gauthier (2003, p. 35) ensina que a função primária do mercado é a troca de propriedade. Ele conceitua o mercado como o “fórum social primário para os membros de uma sociedade de apropriadores”. A organização eficiente do mercado permite aos apropriadores uma reciprocidade nas contratações a fim de maximizar a produção e determinar a alocação de seus bens.

Anthony Giddens (1991, p. 145) observa que a tentativa de regular os mercados no sentido de remover suas características erráticas redunda num autoritarismo político e na ineficiência econômica. Os mercados restariam submissos ao controle centralizado de “uma agência totalmente abrangente”. Mas, o oposto da regulação, a liberdade sem restrição, implica em grandes disparidades (GIDDENS, op. cit., p. 145-146).

Em termos emancipatórios, diz Giddens (1991, op. cit., p. 145), ir além do capitalismo implicaria a superação das divisões de classe. Ocorre que além das circunstâncias econômicas, “a política da vida” descortina-nos algo além da escassez.

O que Giddens propõe é um sistema pós-escassez. Segundo ele “quando os bens principais da vida já não são mais escassos, os critérios do mercado podem funcionar apenas como dispositivos de sinalização, ao invés de serem também os meios de manutenção da privação em larga escala” (op. cit., p. 146). O autor esclarece que nem todos os recursos são intrinsecamente escassos, de modo que a escassez é relativa “a necessidades socialmente definidas e a estilos de vida específicos” (op. cit., p. 146). Um tal sistema pós-escassez, no entanto, requer uma coordenação mundial, a exemplo do que já ocorre em termos financeiros e corporativos multinacionais.

Os objetivos de justiça e eficiência não são necessariamente incompatíveis (HARRISON, op. cit., p. 310). Uma das possibilidades de compatibilização é através do critério de eficiência de Kaldor-Hicks (HARRISON, op. cit., p. 37-39; POSNER, op. cit., p. 13), o qual consiste em priorizar a escolha que resulte no maior ganho possível para todos, maximizando a riqueza e potencialmente possibilitando a compensação daqueles que estão em condições piores à medida que os que estão em posição vantajosa melhorem mais ainda, de modo que, em vez do empobrecimento, haja um efetivo progresso dos menos favorecidos.

Nesse ponto convém analisar a tragédia dos comuns. Segundo Harrison (op. cit., p. 40), utilizando o exemplo do superpastoreio, a tragédia dos comuns consiste na internalização de lucros (ganhos) sem a completa internalização dos custos, resultando nas chamadas externalidades negativas que redundam num empobrecimento geral,

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sobretudo em matéria de recursos naturais, como ilustra bem o caso da super-exploração da pastagem.

Heller (1997, p.2) trata da tragédia dos anti-comuns, caracterizada pela fragmentação do direito de propriedade, por uma multiplicidade de proprietários com direito de exclusão em relação aos demais, de sorte que em vez da super-utilização (tragédia dos comuns) ocorre o inverso, a sub-utilização dos recursos com prejuízos para todos, a paralisia. A super-utilização também não está descartada (op. cit., p. 63). Heller baseia-se na transição da economia soviética para a economia de mercado, tomando como exemplo paradigmático (op. cit., p. 5) o caso do comércio de Moscou após a abertura liberal, repleto de quiosques, mas com inúmeras lojas vazias, diferentemente do que se deu com a República Tcheca (op. cit., p. 76), a qual alcançou uma rápida reestruturação graças ao lobby de controladores, impedindo a criação de propriedade empresarial anti-comum, ainda que tenha tido o efeito colateral de não aproveitar e não ser distribuída a propriedade entre os administradores e trabalhadores existentes.

Em amparo a Heller, Gauthier (2003, op. cit., p. 42) afirma que o triunfo do contratualismo radical leva à destruição de nossa sociedade, muito mais do que à racionalização da sociedade. E Marshall (2003, p. 305) afirma que existe uma diferença significativa entre uma barganha genuinamente coletiva através da qual as forças econômicas numa sociedade de mercado livre procuram atingir o equilíbrio e o uso de direitos civis coletivos para assegurar revindicações básicas de justiça social.

Heller (op. cit., p. 63-64) esclarece que, embora a propriedade comum e aquela que representa o extremo oposto (dos anti-comuns) não sejam necessariamente trágicas, a probabilidade maior é que o sejam em face dos custos positivos de transação, do comportamento estratégico e da informação imperfeita. A superação das tragédias (comum e anti-comum) está num modelo de propriedade privada eficiente que, por um lado, internalize as externalidades e, por outro, assegure o uso eficiente da propriedade a cada proprietário (HELLER, op. cit., p. 65). E aqui Heller propõe diversas estratégias com base na teoria dos jogos, incluindo intervenções governamentais que premiem a cooperação ou punam os que não utilizam eficientemente a propriedade, tendo como paradigma o dilema do prisioneiro (HELLER, op. cit., p. 73). Economias de mercado em bom funcionamento contém uma quantidade grande de mecanismos que encoraja os proprietários a criar propriedades anti-comunais, de alto valor, e, ao mesmo tempo, limitar a capacidade dos proprietários em criar propriedade anticomum de baixo valor (HELLER, op. cit., p. 78).[4]

Quando o mercado não é capaz de assegurar uma alocação eficiente dos recursos em face de um elevado custo de determinação do mercado, a tarefa é atribuída ao sistema legal (POSNER, op. cit., p. 529-531), sendo que a diferença fundamental entre o mercado e o Estado (sistema legal) como métodos de alocação de recursos está no fato de que o mercado constitui um mecanismo mais eficiente para avaliar os usos da competição.

Heller (op.cit., p. 87) adverte que a experiência da propriedade anti-comum aponta que “o conteúdo de feixes de direitos e não apenas a clareza dos direitos de propriedade importa mais do que supomos”[5].

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Polanyi (op. cit., p. 301) fechando seu livro afirma que para evitar o desastre do liberalismo que abriu caminho ao fascismo o homem deve “se conservar fiel à sua tarefa de criar uma liberdade mais ampla para todos” sem temer que a instrumentalidade do poder e do planejamento se voltem contra ele e destrua a liberdade. Giddens (1991), em outras palavras, diz algo parecido. E a evidência histórica de que o poder serve para assegurar a liberdade, ou para conter os abusos contra a liberdade, o próprio Polanyi menciona em sua obra em relação ao cercamento das terras, na Inglaterra, cuja atuação da Coroa foi decisiva em proteger os camponeses, diferentemente do que ocorrera na Espanha.

4. Considerações finais

Considerando as diversas análises e enfoques dados pelos autores acima citados e considerando o atual quadro de globalização[6] da economia mundial, entendemos que o mercado, embora dotado de forças dinamizadoras - que dão a aparência de uma mão invisível governando o estado de coisas, sobretudo em tempos de bonanças -, cada vez mais reclama do Direito a delimitação, criação, estruturação e reestruturação de marcos institucionais, de sorte que, antes de qualquer demanda por liberdade econômica, sob a rubrica da livre iniciativa, o que demandam os diversos atores envolvidos no processo econômico-social é exatamente a regulamentação.

O mercado, de um ponto de vista jurídico-econômico, pode ser definido a esta altura como uma instituição relativamente dependente das normas que a suportam no plano jurídico e relativamente dependente das leis econômicas, muita delas decorrentes do mundo da natureza, como a escassez de recursos naturais, cuja razão de ser é assegurar a todos uma existência digna, valorizando o trabalho humano e a criatividade decorrente do trabalho e da livre iniciativa, através da alocação eficiente dos bens e recursos.

Assim a institucionalização do mercado ou sua regulação, ainda que parcial, não pode desconsiderar o plano do ser, o mundo dos fatos, as diversas variáveis técnicas, sob pena de a norma recair num completo desprestígio e deslegitimação desde a sua origem.

Vimos também que a mera democratização dos títulos de propriedade e sua, não raro, conseqüente atomização, pode redundar numa maior ineficiência da alocação de recursos. Basta pensarmos na atual política fundiária brasileira, mesclada de algum sucesso social na fixação do homem ao campo, mas repleta de interrogações acerca da viabilidade econômica de certos assentamentos de reforma agrária.

A superação da dicotomia entre socialismo e capitalismo, ao menos nos moldes em que se travou durante o século XX o embate ideológico, abre inúmeras perspectivas de reforma institucional do modelo econômico, sobretudo a partir do consenso mundial acerca da urgência de enfrentarmos a crise ambiental.

O desprestígio do Direito no auge da ideologia socialista marxista deu lugar à hipervalorização do Direito, incluindo a sua globalização, na atual quadra da história em que se escreve os primeiros capítulos do século XXI.

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Por outro lado, é imperioso que o jurista, aí incluindo o legislador, fique atento aos objetivos maiores da civilização. A liberdade econômica, diferentemente das outras esferas da liberdade civil, não é um fim em si mesma, tanto quanto a igualdade não deve ser endeusada nem buscada fanaticamente como a única forma de se alcançar uma sociedade justa. Mais que tudo a eqüidade, como arte política voltada para a obtenção de uma justiça proporcional e razoável, parece ser a chave-mestra das reformas a serem desencadeadas.

Até mesmo porque, a favor da igualdade, o Mercado contribui não raro para a ascensão social de milhares de pessoas, ao passo que numa economia eminentemente estatal a burocracia é a única via de progresso pessoal.

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[1] Freedom in a complex society (apud FERRARESE, op. cit., p. 63).

[2] Libertá nel contrato costituzionale. (apud FERRARESE, op. cit., p. 68)

[3] Pérsio Arida (2005, p. 60-73) discute a historicidade da norma no campo do Direito e da Economia.

[4] Outro exemplo histórico colocado por Heller (p. 81), mais próximo de nossa realidade, foi a distribuição de terras feita pelo governo norte-americano em 1880 para os índios, sem possibilidade de alienação, que resultou num desastre anti-comum, tanto que desde 1928 tem sido debatida pelo Congresso, havendo inclusive alteração na legislação em 1983.

[5] No original: “...the content of property bundles and not just the clarity of property rights matters more than we have realized”.

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[6] A globalização consiste num processo de desenvolvimento desigual que introduz novas formas de interdependência mundial e como tal, “tanto fragmenta quanto coordena” (GIDDENS, op. cit., p. 153).

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