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41 O MINISTÉRIO ORDENADO COMO SERVIDOR DA UNIDADE NA IGREJA: hierarquia como serviço e orientação para garantir o trabalho comum na comunidade cristã The Ordained Ministry as servant of the unity in the Church: hierarchy as a service and guidance to ensure the common work within the Christian community Carlos Eduardo Alves * RESUMO: Para realizar a missão de ser Sacramento Universal de Salvação no mundo, a Igreja conta com os diversos ministérios nela presentes. Dentre eles, está o ministério ordenado, que tem na Igreja a missão de garantir a unidade, daí serem os presbíteros os servidores da unidade, pastoreando o povo de Deus e o orientando para realizar o trabalho evangelizador em comunhão. Tais ministros são ordenados pela Igreja, e não auto-intitulados; são escolhidos e confirmados para garantirem a unidade em todos os serviços que a comunidade necessita; exercem seu poder como serviço/autoridade e não como dominação. Para realizar seu ministério, devem basear-se no modelo de Jesus dos evangelhos, que se fez o Servo de YHWH, para entregar a vida pelos seus. Só o amor capacita a Igreja a trabalhar em profunda unidade, e só o amor torna possível que a autoridade seja exercida pelos ministros ordenados em favor do serviço comum, sem o perigo de oprimir os fiéis a eles confiados. PALAVRAS CHAVE: Ministério ordenado. Autoridade. Comunhão. Unidade. Serviço. ABSTRACT: To carry out the mission of being Universal Sacrament of Salvation in the world, the Church has various ministries. Among them is the Ordained Ministry, whose mission is to ensure the unity in the Church. Hence, these ministers should be the servants of unity, ministering God’s people and guiding them to perform the work of evangelization in communion. These ministers are ordained by the Church, and not self-appointed. They are chosen and confirmed to ensure unity in all the services that the community carries out, exercising their power as authorities and not as dominators. To accomplish this ministry they should be based on the model of the Jesus in the Gospels, who became the Servant of YHWH and gave his life for his own. Only love enables the Church to work in deep unity, and love alone makes possible for the authority to be carried out, by the Ordained Ministers, in favor of the common service, without the danger of oppressing the faithful entrusted to them. KEY WORDS: Ordained Ministry, authority, communion, unity, service. * Carlos Eduardo Alves é presbítero diocesano, bacharel e professor de teologia. Tem Especialização em Teologia Contemporânea.

O MINISTÉRIO ORDENADO COMO SERVIDOR DA UNIDADE NA IGREJA ... pensar o ministério ordenado não como o que manda e desmanda na Igreja, mas como o que serve a Igreja desempenhando

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O MINISTÉRIO ORDENADO COMO SERVIDOR DA UNIDADE NA IGREJA: hierarquia como serviço e orientação para garantir o trabalho comum na

comunidade cristã The Ordained Ministry as servant of the unity in the Church: hierarchy as a service

and guidance to ensure the common work within the Christian community

Carlos Eduardo Alves *

RESUMO: Para realizar a missão de ser Sacramento Universal de Salvação no mundo, a Igreja conta com os diversos ministérios nela presentes. Dentre eles, está o ministério ordenado, que tem na Igreja a missão de garantir a unidade, daí serem os presbíteros os servidores da unidade, pastoreando o povo de Deus e o orientando para realizar o trabalho evangelizador em comunhão. Tais ministros são ordenados pela Igreja, e não auto-intitulados; são escolhidos e confirmados para garantirem a unidade em todos os serviços que a comunidade necessita; exercem seu poder como serviço/autoridade e não como dominação. Para realizar seu ministério, devem basear-se no modelo de Jesus dos evangelhos, que se fez o Servo de YHWH, para entregar a vida pelos seus. Só o amor capacita a Igreja a trabalhar em profunda unidade, e só o amor torna possível que a autoridade seja exercida pelos ministros ordenados em favor do serviço comum, sem o perigo de oprimir os fiéis a eles confiados.

PALAVRAS CHAVE: Ministério ordenado. Autoridade. Comunhão. Unidade. Serviço.

ABSTRACT: To carry out the mission of being Universal Sacrament of Salvation in the world, the Church has various ministries. Among them is the Ordained Ministry, whose mission is to ensure the unity in the Church. Hence, these ministers should be the servants of unity, ministering God’s people and guiding them to perform the work of evangelization in communion. These ministers are ordained by the Church, and not self-appointed. They are chosen and confirmed to ensure unity in all the services that the community carries out, exercising their power as authorities and not as dominators. To accomplish this ministry they should be based on the model of the Jesus in the Gospels, who became the Servant of YHWH and gave his life for his own. Only love enables the Church to work in deep unity, and love alone makes possible for the authority to be carried out, by the Ordained Ministers, in favor of the common service, without the danger of oppressing the faithful entrusted to them.

KEY WORDS: Ordained Ministry, authority, communion, unity, service.

* Carlos Eduardo Alves é presbítero diocesano, bacharel e professor de teologia. Tem Especialização em Teologia Contemporânea.

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INTRODUÇÃO

Entre os diversos ministérios na Igreja estão os desempenhados pelos

ministros ordenados, também chamados, principalmente pelos documentos

oficiais da Igreja, de ministérios hierárquicos, já que só são desempenhados

por cristãos que fazem parte da hierarquia da Igreja. De acordo com um dos

documentos da CNBB (1981, p. 55), desde os tempos apostólicos o ministério

ordenado se diversifica em três graus: o episcopado, o presbiterato e o diaconato,

e com as Cartas de Santo Inácio de Antioquia, por volta do ano 110, esta tríade é

fixada (OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 55).

As comunidades cristãs sempre tiveram líderes ou pessoas encarregadas

do governo, não se consta que tenha havido comunidades anárquicas ou acéfalas,

sem governo nem autoridade. (CASTILLO, 1990, p. 295)

A Igreja entende os ministérios ordenados como de instituição divina:

“Cristo nosso Senhor, com o fim de apascentar o povo de Deus e

aumentá-lo sempre mais, instituiu na sua Igreja vários ministérios

que se destinam ao bem de todo o corpo. [...] instituiu a Santa Igreja,

enviando os apóstolos como ele próprio fora enviado pelo Pai e quis

que os sucessores destes, os bispos, fossem os pastores da sua Igreja

até o fim do mundo.” (LG, 18)

Também os entende como especial serviço ao povo de Deus, os ministros

que são revestidos do poder sagrado estão a serviço de seus irmãos (LG, 18). Daí

pensar o ministério ordenado não como o que manda e desmanda na Igreja, mas

como o que serve a Igreja desempenhando o papel de co-ordenador, que ouve

e sente a realidade para ajudar os cristãos a perceber o melhor caminho para

continuar fiel ao projeto de Deus, papel de pastor que caminha com suas ovelhas

e percebe o terreno em que ele e elas estão pisando, estando atento para que

nenhuma (e nem ele próprio) caia nalgum buraco.

Este artigo procurará apresentar o ministério ordenado sob a perspectiva

conciliar, embasada no modelo de Cristo que assumiu os moldes do servo de

YHWH para desempenhar seu ministério. Mostrando que os bispos, padres e

diáconos são ordenados pela Igreja, não se auto-intitulando servidores dela, mas

sendo escolhidos por ela para desempenhar tal serviço. Ao se tomar consciência

desta escolha e deste mandato eclesial, apresentar-se-á seu papel principal, o

de garantidores da unidade, servidores da harmonia, que devem exercer seu

poder como autoridade-serviço e não como meio para dominar-oprimir. A seguir,

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mostrar-se-á o modelo para esta visão, o modo como Jesus realizou sua missão,

assumindo um papel de servo, que deve ser a inspiração para todos os que agem

in persona Christi, cabeça da Igreja, que fez de seu poder serviço e ordenou que

seus apóstolos e discípulos fizessem o mesmo. Por fim, refletir-se-á sobre a fonte

da unidade: a Trindade, e sobre o amor que torna possível fazer da Igreja ícone

do mistério trinitário, ajudando a entender que sem amor não se faz unidade,

e que os ministros ordenados precisam colocar o amor em primeiro lugar, em

suas convicções e ações, para conseguir realizar seu papel de serem servidores da

unidade.

1. Ministros ordenados e não auto-intitulados

Os ministérios dos bispos, presbíteros e diáconos é uma participação

especial no sacerdócio de Cristo, que se difere do sacerdócio comum dos fiéis,

tanto essencialmente quanto em grau (LG, 18), mas que se ordenam um para

o outro. Para que tais ministros desempenhem seu ministério é necessário que

recebam da Igreja o sacramento da Ordem, assim ninguém se auto-intitula

ministro ordenado, mas é instituído pela comunidade eclesial, que reconhece

nele o carisma e o chamado de Deus para o desempenho de tal função.

O Novo Testamento não descreve claramente como a Igreja Primitiva

destinava alguém para o ministério eclesial. Pelo que parece, a Igreja Primitiva

teve duas formas de ordenação, que talvez nem existissem desde o começo. Em

torno de Tiago, em Jerusalém, havia um conselho de anciãos, a recepção de novos

ministros nesse conselho se fazia por um rito de entronização, as comunidades

paulinas, de outro modo, conhecem o rito da imposição das mãos (FEINER e

LOEHRER, 1975, p. 171).

O gesto de imposição das mãos, mesmo que presente em quase todos

os povos e religiões (TABORDA, 2011, p. 241), se percebe na tradição bíblica, no

Antigo Testamento como gesto de bênção, gesto sacrifical, transferência de algo

do sujeito que impõe as mãos ao que recebe a imposição, imposição de uma

autoridade (TABORDA, 2011, p. 242-244). No Novo Testamento é um gesto de

bênção, de doação do Espírito, expressão da comunhão eclesial, transmissão da

força (TABORDA, 2011, p. 245). Na sinagoga era o gesto usado para a instituição

dos doutores da Lei. O Novo Testamento mostra três fatos de tal imposição

significando uma ordenação para o ministério eclesial: a ordenação dos sete

diáconos (At 6, 3.8), o envio de Paulo e Barnabé pela Igreja de Antioquia (At 13,

1-4) e Timóteo, que recebera o carisma pela imposição das mãos do presbitério

(ITm 4, 13). A imposição das mãos começou a existir nas igrejas da diáspora e,

por fim, na Igreja toda, depois que desapareceram as comunidades judeu-

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cristãs. O cristianismo se apropriou do gesto judaico e lhe deu uma forma nova,

expressando que o detentor do ministério eclesial está, mediante os apóstolos,

em ligação imediata com o próprio Cristo (FEINER e LOEHRER, 1975, p. 172).

No decurso do século XI, a ordenação é incluída entre os sacramentos.

A Ordem é um sacramento único, recebido originalmente e com plenitude

de poderes pelo bispo e comunicado parcialmente, pelo bispo, aos seus

colaboradores, os presbíteros e os diáconos (BRUNETTI, 1986, p. 85). É marca

característica na celebração da Ordem o ministério colegiado e a participação

da comunidade. Em nenhuma das narrações da imposição das mãos para a

instituição de ministros eclesiais, na Sagrada Escritura, está ausente a participação

dos Doze, pelo contrário, sua ação é fundamental, não a de um entre eles, mas

sempre se fala dos apóstolos (TABORDA, 2011, P. 247). A tradição cristã conservou

a característica colegial da ação de impor as mãos, tanto na ordenação episcopal,

quanto na presbiteral.

A oração de ordenação episcopal usada atualmente é baseada na oração

ordenatória da Tradição Apostólica de Hipólito de Roma (FEINER e LOEHRER,

1975, p. 172). A epiclese da oração de Hipólito nomeia os dons impetrados para o

ministro, afim de que possa executar seu serviço.

Os dons não são os mesmos para os bispos, os presbíteros e os diáconos.

Para o bispo é pedida a graça do zelo salvífico, de fidelidade sacerdotal no serviço

de Deus pelo culto de louvor e oração, bem como a bonomia misericordiosa para

com os pecadores (PONTIFICAL ROMANO, 2001, p. 78). O bispo preside a ação de

graças, oferece o sacrifício de louvor, preside a comunidade.

A oração de ordenação associa os presbíteros, no essencial, ao múnus dos

bispos, a exemplo dos anciãos eleitos por Moisés, que foram associados a ele para

assisti-lo em todas as suas tarefas. Pede-lhes o dom de se tornarem cooperadores

da ordem episcopal, dispensadores dos mistérios divinos, unidade ao bispo para

implorar a misericórdia divina em favor do povo a eles confiados e de todo o

mundo. (PONTIFICAL ROMANO, 2001, p. 114-115)

Os diáconos não são ordenados para o sacerdócio e o pastoreio, mas para

o serviço. A prece de ordenação pede para eles a consagração para o serviço do

altar, para que resplandeçam neles as virtudes evangélicas, o amor, a solicitude

com os doentes e os pobres, a autoridade discreta, a simplicidade de coração e

uma vida guiada pelo Espírito. (PONTIFICAL ROMANO, 2001, 158-159)

À luz dessas indicações, evidencia-se que o bispo só é capaz de

corresponder plenamente aos seus compromissos, mediante a cooperação

de todos os ministros que tem ao seu lado, e que os presbíteros e diáconos só

exercem legitimamente seus ministérios em comunhão com o bispo.

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Os dons pedidos na prece de ordenação se concedem em atendimento

das orações de todo o povo.

“Os consagradores não transmitem a Ordem como se ela se originasse

neles mesmos, nem transmitem um poder que pudessem passar

adiante por si mesmos a um outro. É o Pai quem concede a sua graça,

é Cristo quem transmite seus poderes, é a comunidade que participa

nessa transmissão.” (FEINER e LOEHRER, 1975, p. 174-175)

O ministro ordenado recebeu o ministério no seio da comunidade e terá

de exercê-lo a serviço dela.

2. Ministros da unidade

É papel dos ministros ordenados coordenar a Igreja, garantindo que em

todos os seus atos se mantenha a vontade de Deus e se realize a continuação da

missão salvadora de Cristo. Para que isso seja possível, é necessária a unidade de

todos os membros da comunidade eclesial, superando as diferenças de ideias,

visões de Igreja, interesses pessoais ou de grupos particulares. Respeitando as

diferenças entre os membros, deve o ministro ordenado ajudar a comunidade

a compreender a proposta comum e trabalharem juntos, para que o objetivo

evangelizador de realize. Para isso o ordenado recebeu autoridade sobre

o rebanho, para garantir que as ovelhas se mantenham fiéis à voz de seu

Pastor, Jesus Cristo, ouvida através dos pastores por ele enviados, os ministros

ordenados.

Reger a Igreja é mantê-la na unidade, na comunhão que a caracteriza

como a Igreja que recebe sua unidade da unidade da Santíssima Trindade. A

presidência ou direção da Igreja é um serviço à unidade, para que o bem de um

seja o bem de todos. O serviço da unidade é comparável ao do regente numa

orquestra, ele não é a orquestra, mas a orquestra se reconhece nele, e ele sem

a orquestra não é nada (TABORDA, 2002, p. 557). Tanto ele, quanto a orquestra,

obedecem à mesma partitura (no caso da Igreja, a Palavra de Deus).

A função do ministro ordenado não é pegar para si todas as funções, mas

despertar a todos e a cada um a que assumam o serviço, na diversidade de seus

carismas, na complementariedade mútua, no respeito e na valorização de todos

os carismas. Criar uma ordem harmônica na comunidade eclesial, em que cada

um exerça seu poder e sua liberdade.

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Pregar a Palavra não é função específica do ministro ordenado, o específico

dele é a responsabilidade de garantir a pregação, e garanti-la na unidade da fé, em

comunhão com as demais igrejas, com a Igreja de Roma e com a fé dos apóstolos

(TABORDA, 2002, p. 559). Guardião da fé para que não haja cismas nem divisões,

pois é ele ministro da unidade.

Os sacramentos são a celebração da práxis da Igreja à luz da memória de

Cristo. O ministro da unidade exerce na celebração dos sacramentos, sobretudo

da Eucaristia, seu serviço em favor da unidade. Somente no sacramento do

matrimônio a função de garantir a unidade não é do ministro ordenado, mas dos

noivos, porque na família, Igreja doméstica, não é alguém de fora, mas de dentro,

que deve fazê-lo.

A unidade da Igreja é obra do Espírito Santo, e a função de servir à unidade

também vem dele, daí a necessidade de se receber a função de ministro da

unidade pela ordenação sacramental. O ministro é representante da Igreja, não

por obra da Igreja, mas do Espírito Santo, só pode representar Cristo estando

inserido na fé e na comunhão da Igreja, estando dentro da comunidade.

Nessa comunidade, Corpo de Cristo, o ministro representa

sacramentalmente Cristo-cabeça. O poder de Cristo é exercido por um membro

do corpo, irmão entre os irmãos, que remete ao poder de Cristo Ressuscitado

que está no corpo todo e em cada membro, segundo o carisma de cada um. O

ministro é ordenado para atuar no poder de Cristo existente na comunidade.

O ministro não divide poderes na Igreja, pois o poder não é dele e ele não

tem o direito de dividir o poder que não está nele, pois está no todo. Cabe-lhe

promover e reconhecer o exercício desse poder por todos os cristãos, de acordo

com o ministério de cada um (TABORDA, 2002, p. 561-562). O ministro ordenado

age in persona Christi, representa a Cristo, representando a Igreja unida na fé e

no amor.

As comunidades querem seus ministros em seu seio, querem que eles

caminhem com elas, assumam suas buscas e seus problemas, participem de suas

expressões populares e respeitem as demais funções que vão surgindo dentro do

povo de Deus. (BOFF, 1986, p. 61-62)

3. Autoridade como serviço

Pensadas essas duas características do ministério ordenado: ser dado

pela comunidade eclesial e ter o papel de garantir a unidade da comunidade,

é necessário refletir sobre a concepção de autoridade que reina no dia a dia de

nossas comunidades.

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Apesar de se terem passados 50 anos do início do Concílio Ecumênico

Vaticano II e de a Igreja ter se redescoberto como Povo de Deus e Corpo de Cristo,

formada por todos os batizados, na opinião da maioria da população, e até mesmo

dos católicos, a Igreja aparece geralmente como uma instituição repousando

sobre um grupo de funcionários responsáveis, aos quais faz frente um grupo de

usuários. Existe a Igreja (o papa, os bispos e os padres) e seus fregueses.

A Igreja ainda aparece como representada pelo clero. Basta lembrar os

noticiários durante a transição entre o papado de Bento XVI e Francisco: as notícias

eram de uma Igreja dividida, não porque se percebessem discordâncias entre

seus membros todos (fiéis e hierarquia), mas por problemas na Cúria Romana,

como se a Igreja fosse resumida à estrutura administrativa do Vaticano ou fosse

os cardeais e o papa.

Uma comunidade eclesial consciente de seu papel e de sua essência talvez

se assuste com essa concepção exclusivista, mas é necessário lembrar que tal

opinião é resultado de definições dadas pela própria Igreja, como por exemplo:

“A Igreja é, em sua essência, uma sociedade desigual, isto é,

compreendendo duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho,

aqueles que ocupam um cargo nos diferentes níveis da hierarquia

e a multidão dos fiéis. E tais categorias são tão distintas entre si,

que apenas no corpo pastoral residem o direito e a autoridade

necessários para promover e dirigir todos os membros em direção

da finalidade social. Quanto à multidão, não tem outro direito senão

o de se deixar conduzir e, como rebanho dócil, seguir seus pastores.”

(PIO X, Encíclica Vehementer apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 12)

“Na Igreja de Deus, pela vontade manifesta de seu divino fundador,

distinguem-se, de modo mais absoluto, duas partes: a discente e a

docente, o rebanho e os pastores [respectivamente]” (LEÃO XIII, 1885

apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 12)

Ou por informativos e pessoas ligados à Igreja:

“Sobre o plano da fé, o bispo é doutor. O diálogo entre o bispo e os

leigos cristãos é possível, todavia, neste terreno, o leigo somente

pode receber e ser ensinado” (Masses auvrières, jan. 1960, editorial

apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 13)

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“O povo fiel não tem senão deveres de submissão a cumprir com

relação a seus diversos chefes hierárquicos. A massa do povo fiel

é essencialmente governada e radicalmente incapaz de exercer

uma autoridade espiritual, nem diretamente, nem por delegação.”

(D.GUÉRANGER, 1873 apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 13)

Mesmo sendo citações de textos bem anteriores ao Vaticano II e à nossa

época, não se pode descartar a força que tais definições e ideias tiveram ao longo

de décadas e até séculos, inculcando a ideia de que o clero está mais próximo de Deus e os leigos nunca vão ter a mesma proximidade, vivem no mundo (mau) e

por isso precisam rezar muito para serem ouvidos por Deus. Basta prestar atenção

no modo de falar do povo, inclusive católico: “assistir à Missa”, “acolher o nosso Celebrante...” ou nos textos de alguns sites neo-conservadores, que exaltam a

Grande Disciplina, como Salvem a Liturgia! (www.salvemaliturgia.com) e Montfort (www.montfort.org.br). A Igreja ainda é vista como governantes e submissos,

aqueles são os clérigos e esses são os leigos. O saber, o poder e a celebração estão

concentrados no clero.

No Vaticano II a Igreja foi definida de um modo diferente desse:

primeiramente ela é definida como Mistério e Povo de Deus e somente num

segundo momento é apresentada sua organização. Os ministérios podem ser

compreendidos a partir do que a Igreja é, e é ela que os faz, têm sentido em função do serviço prestado à comunidade. A Igreja não deve ser compreendida

a partir dos ministérios, como se fossem eles (e neste caso, os ordenados) que a

fizessem.

Em nossos dias, quando parece retornar a sede por uma Igreja do

poder, do brilho, da glória exterior, mais que nas últimas décadas, é necessária a

passagem de uma Igreja fundamentada sobre o poder do clero para uma Igreja com responsabilidades comuns, suscitando todos os ministérios necessários para

o serviço do evangelho, a fim de cumprir sua missão de ser sacramento do Reino,

sacramento universal de salvação, Igreja de Comunhão. Parece que a providência de Deus nos providenciou augusta ajuda para se resgatar esta visão através do

Papa Francisco, que tem chamado a atenção para o essencial papel da Igreja, de

ser cada vez mais servidora.

Não se trata de repartir e conceder aos leigos pequenas responsabilidades, nem de achar que o papel da hierarquia é dispensável. Trata-se de reconhecer a

própria natureza da Igreja como povo de Deus e a missão que cabe a todos e

a cada um, segundo sua vocação e seus carismas. A Igreja que deve realizar a

presença sacramental de Cristo no mundo, deve realizar em si mesma a verdade

da comunhão de fé e caridade, e a comum responsabilidade de todos os cristãos

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na tarefa de ser instrumento de encontro com Deus e dos homens entre si

(LARRABE, 1992, p. 6-7). Os ministros ordenados estarem atentos aos carismas

de cada um, para serem os primeiros incentivadores para a prática ministerial de

todos os membros do povo de Deus, e os trabalhadores que ajudam a diversidade

dos serviços a caminharem em comunhão profunda, real e frutuosa.

É importante prevenir-se do perigo de confundir unidade e comunhão

com uniformidade. Onde todos fazem de tudo, pensando que todos podem

exercer todos os ministérios, acontece o contrário do projetado: se todos têm

todos os ministérios, nessa comunidade ninguém tem ministério específico.

Não há como exercer um serviço reconhecido pela Igreja e em nome da Igreja,

pois ninguém dá espaço para que alguém seja realmente ministro, já que todos

querem sê-lo.

Numa Igreja que valoriza todos os seus ministérios a autoridade continua

existindo, pois cada ministro (leigo ou ordenado) tem a autoridade que lhe

compete e a exerce sempre que exerce seu ministério específico. A autoridade, sob

este ponto de vista, que é o defendido neste artigo, não é direito de dominação de

um sobre outros, é, sim, dever de serviço do ministro em relação à comunidade.

“A melhor autoridade é aquela que faz muito pouco, mas que lembra

aos outros o essencial de sua função e de sua vida, que os chama

para assumir responsabilidades, os sustenta, os confirma.” (VANIER,

1982, p. 183)

No serviço específico de cada um, a comunidade percebe a necessidade

de respeitar o desempenho do papel de cada ministro, recebendo as orientações

dos pastores ordenados não como imposição, mas como ajuda para incentivar

a cada um para que exerçam seus ministérios. Sem centralizar tudo nas mãos

de poucos e sem deixar de repartir as tarefas, permitindo que cada um sirva à

comunidade em algum aspecto específico.

A autoridade nasce do serviço exercido em favor da unidade da

comunidade. O reconhecimento da autoridade deve ajudar cada membro da

comunidade a ser ele mesmo e a exercer seus dons próprios, para o bem de

todos. A hierarquia tem por dever dirigir o Corpo de Cristo, agindo na pessoa de

Cristo-cabeça, o que não significa que ela seja dona do corpo ou do rebanho,

mas é sim a servidora de todo o corpo, cuidando para que cada membro cumpra

seu papel unido aos outros membros, respeitando a diversidade de cada um e

tendo autoridade para incentivar os servidores que ajudam o rebanho a “pastar

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por verdes prados”, e para reprimir, na caridade e na misericórdia, os que se

esquecerem de que o rebanho tem um pastor, Jesus Cristo, ou que o corpo tem

vários membros, não permitindo que os interesses individuais ou particulares

impeçam a comunidade toda de caminhar unida.

Os três graus do ministério ordenado exercem tal serviço de garantidores

da unidade do corpo eclesial.

Os bispos são pastores e, no exercício deste ministério, devem comportar-

se como quem serve, como pastores que conhecem suas ovelhas e por elas são

conhecidos e como pais que agem com amor e solicitude para com todos (CD, 16).

Agindo assim, o bispo poderá tornar sua Igreja uma família que vive e caminha

na união e na caridade, consciente de seus direitos e deveres. Também é de

extrema importância que o bispo trate com carinho especial os sacerdotes, que

compartilham de suas funções e de sua solicitude no pastoreio da Igreja local, não

bastando ser ele a cabeça do presbitério, é preciso que seja também seu coração.

O bispo e o presbítero não são mediadores, mas ministros do único

Mediador. O sacerdócio de Cristo é uma mediação descendente, exprime e realiza

visivelmente a benevolência de graça do Pai com os seus (SESBOÜÉ, 1998, p. 82).

Os presbíteros, como senado do bispo, ajudam-no a governar a Igreja Local e

constituem com o bispo um único presbitério (LG, 28). Assim, o presbiterato é

primeiramente colegial, sua experiência de unidade com a Igreja Local autoriza os

presbíteros a cuidar da unidade em cada uma das comunidades a eles confiadas.

Nenhum presbítero pode exercer autenticamente o ministério presbiteral fora

da comunhão com o presbitério (CNBB-CNC, 1985, p. 24). O bispo preside, o

presbítero co-preside. A diferença básica entre presbítero e bispo reside no

grau de responsabilidade que cada um tem por uma Igreja Local e na relação

mútua. O bispo condensa em si o poder da Igreja Local, o poder do presbítero é

fazer o bispo presente numa parcela da Igreja Local, ele é cooperador da ordem

episcopal. Nesta relação entre presidir e co-presidir a Igreja está a diferença entre

bispo e presbítero (TABORDA, 2002, p. 566-570). Ambos, em profunda comunhão

de coração e atitudes, cuidam de garantir a caminhada comum do rebanho,

servindo ao povo de Deus pela dedicação em fazê-lo ouvir a voz do Bom Pastor.

A função de representante de Cristo não separa o presbítero da comunidade

dos fiéis, dos quais permanece irmão (PO, 9). A edificação do Corpo de Cristo é

uma tarefa comum, pela qual todos os fiéis são responsáveis, o presbítero é o

presidente da comunidade, alguém que não absorve e monopoliza as múltiplas

funções e os diversos serviços, mas que os coordena e impulsiona. Quanto mais

exercer sua função em espírito de serviço e comunhão, tanto mais o presbítero

será efetivamente para a comunidade sinal da unidade e comunhão que têm por

origem o próprio Cristo e, com ele, o Pai e o Espírito (CNBB-CNC, 1985, p. 24-25).

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O diácono, mesmo fazendo parte dos ministérios ordenados, não é

ordenado para o pastoreio, mas mesmo assim é também servidor da unidade,

“ele constrói a unidade da Igreja a partir dos menos favorecidos” (TABORDA,

2002, p. 571). Esse ministério não encontra sua fonte apenas na generosidade

humana e no desejo de ser útil aos outros, mas se enraíza na caridade que vem

do alto. O diácono é o animador oficial da diaconia de Cristo na Igreja e para o

mundo, é seu serviço unir toda a comunidade para se tornar a “Boa Samaritana”,

mostrar para ela os pobres e servir com ela a eles. Pelo tríplice múnus de servir à

Palavra, à Liturgia e à Caridade, este ministro ordenado pode garantir a unidade:

iluminando a caminhada da Igreja pela Palavra de Deus proclamada, ensinada e

vivida; celebrando a vida com Cristo, através dos atos litúrgicos da comunidade

congregada na comunhão da Trindade; e levando todos os membros do corpo

de Cristo a se saberem irmãos e servidores uns dos outros, preferencialmente dos

pobres e dos doentes.

A autoridade dos ministros ordenados precisa garantir a unidade, sempre

orientada pelo amor e pelo jeito de Jesus agir, pois ele é o primeiro pastor e a

fonte de toda autoridade na comunidade eclesial.

4. Atuação de Jesus como modelo

A mudança de mentalidade, de que a Igreja é servidora do Projeto

Salvador de Jesus, ou seja, do Reino de Deus, e não a controladora da Verdade e

de Deus, fundamenta-se como necessária se a prática de Jesus for o modelo que

a comunidade eclesial segue. Tal compreensão parecia crescer nas décadas de

1970 e 1980, estagnando-se na de 1990 e parecendo regredir na entrada do novo

milênio, principalmente na cabeça do clero mais jovem e dos futuros ministros

ordenados, os seminaristas. Nos últimos anos, voltou a ganhar força a visão de

que é necessário recuperar a “riqueza” da Igreja, como se compreendê-la como

serviçal, diminuísse seu poder ou seu valor. O que parecia ter sido superado,

depois de séculos de um clero aristocrático ou com ilusões de aristocracia, voltou

com toda força, entendendo poder como dominação (ά) e não

como autoridade (ί). Ao se esquecer o modo como Jesus

conduz seu ministério, esqueceu-se também que a verdadeira riqueza da Igreja

está na sua continuidade de missão, inspirada na missão de Cristo, não na

exibição de sua riqueza exterior, seja nos ritos, seja nas vestes ou nos móveis e

prédios. Ser sinal universal de Salvação (LG 48) é seu valor e sua riqueza.

A oposição de Jesus aos modelos religiosos de sua época parece

justamente se basear na constatação da preocupação dos líderes de serem fortes

e dominadores, fundando seu poder na ameaça (saduceus) ou na escravização

52

a normas e regras (fariseus, escribas). Chegou Jesus, então, ao ponto de deixar

claro a seus discípulos que “entre eles não deveria ser assim” (Mt 20, 26-28),

quem quisesse ser o poderoso, deveria ser o mais servidor e estar pronto para

entregar sua vida pelos outros, entendendo poder como liberdade perante as

coisas e as pessoas (TABORDA, 2011, p. 47), capacidade de agir em comunhão,

colocando a necessidade do ser humano como razão última de suas decisões.

Não são as coisas que dizem o que devemos fazer, como se o perigo de perdê-

las nos obrigasse a destruir tudo e todos para garantir sua posse, deveria ser

sim a pessoa a dizer e decidir o que fazer, para que as coisas respondam à

necessidade do todo, pois se cada indivíduo faz parte do todo, o todo estando

desequilibrado prejudica também o indivíduo. Sendo assim, servir a todos é

garantir o equilíbrio do todo, sendo verdadeira expressão de poder a autoridade

de decidir sobre o melhor, cuidando de toda a estrutura da qual se faz parte,

para que estando todos bem, o indivíduo detentor do poder também garanta

seu bem estar.

A atuação de Jesus nas Escrituras aparece como a atuação do Servo de YHWH, servidor da vontade do Pai, centro de suas atenções, sendo servidor de

cada pessoa humana, o que ele entende como sendo a vontade do Pai.

Jesus não teve uma atuação sacerdotal, segundo a compreensão do

sacerdócio aarônico, e nem poderia ter atuado assim, pois não era da raça sacerdotal (Levi, Aarão), agiu sim de forma antissacerdotal, relativizando tudo

o que não fosse o Pai ou sua vontade, podendo ser acusado de blasfêmia

(TABORDA, 2011, p. 37) pelos fariseus, chefes do povo e saduceus. Sendo que, se o poder de garantir a ordem na região de Jesus tinha sido dado ao sinédrio

pelo Império Romano, o fato de Jesus criar atrito com tais autoridades e com

os mestres populares deu ao Império condições de acusá-lo de subversão (TABORDA, 2011, p. 37). Foram estes os dois motivos alegados para a condenação

e morte dele: blasfêmia e subversão.

O ser humano está acima da instituição, que não deve dominá-lo, mas

servi-lo. Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 30-37), Jesus deixa clara essa

visão, quando apresenta o levita e o sacerdote deixando de cuidar da pessoa

humana sob o pretexto de uma exigência ritual da instituição, a proibição de se contaminar tocando um cadáver ou algumas feridas, valendo mais as regras

de sua função no templo do que a necessidade da pessoa humana. Outro atrito

com o poder sacerdotal aparece na expulsão dos vendilhões no templo (Mc 11, 15-17), o que poderia prejudicar a casta sacerdotal que se servia do comércio

praticado lá para se enriquecer e para garantir seu domínio sobre os fiéis, já que

só eles poderiam oferecer os sacrifícios de reconciliação com Deus, achando- se no direito de determinar todos os meios válidos e aceitos para a realização

desses atos.

53

O único escrito bíblico que afirma que Jesus é sacerdote é a Carta aos

Hebreus, mas mesmo assim, o faz desmontando o conceito clássico de sacerdócio,

mostrando Jesus mais como vítima do que como sacerdote (TABORDA, 2011, p.

39), sendo um sacerdócio não mais ritual, mas histórico, vivencial, existencial.

O culto prescrito na Lei (Hb 8,5), oferecido por uma casta separada, não leva a

Deus. Jesus é o intercessor, verdadeiro sacerdote, não por sua separação dos

demais, mas justamente por se fazer semelhante aos que sofrem (Hb 7, 25; 2, 17-

18). Cristo oferece-se a si mesmo, é o fim do sacerdócio ritual. Fim, por mostrar

que não é mais a religião ritual, como era compreendida, que torna possível a

comunhão com Deus (significando fim, aqui, término), e fim também porque ele

faz vislumbrar uma nova concepção de sacerdócio, bem mais próxima da que

Deus teria (significando fim, aqui, meta, finalidade).

Não sendo uma prática sacerdotal ritual, a prática de Jesus nos evangelhos

é muito mais próxima da prática do Servo de YHWH.

“O Servo de YHWH renuncia ao poder, porque reconhece que só

chegará ao poder, se todos tiverem acesso ao poder. O Servo sabe

que só pode realizar-se humanamente junto com os outros e, com seu

aniquilamento, está contribuindo a que todos os humanos possam

realizar-se.[...] A missão do Servo de YHWH é por fim à opressão e

destarte contribuir para o progresso humano rumo à realização, e o faz

confiando que todos, mesmo os mais fracos e desprezíveis, têm poder.

É o respeito ao poder dos sem poder.” (TABORDA, 2011, p. 49-50)

O jeito de Jesus agir e demonstrar sua autoridade parece estar muito mais

próximo desta concepção, tanto que após o serviço prestado por ele aos seres

humanos descartados da sociedade de sua época e os ensinamentos por ele

proferidos, o evangelho conclui que ele ensinava como quem tem autoridade (Mt

7, 29). Seu poder não é força, é autoridade. Sua existência pobre e desapegada de

títulos, de condição financeira tranquila, de preocupações com posse de coisas

passageiras, bem como seu modo de agir, convidando os excluídos para realizar

consigo sua missão, colocando em primeiro lugar os que eram postos em último

ou até para fora da realidade, ensinando a ser o último e o servo de todos, tudo

isso mostra o modo de Jesus agir e de entender a autoridade.

Este é o modelo daqueles que na Igreja iniciada com Jesus têm o poder

de conduzi-la, coordenando seus trabalhos, como ele coordenou seu ministério

evangelizador. Jesus sabia de seu poder e o utilizou como serviço, chamando os

vários discípulos e ordenando-lhes que usassem os dons que receberam, cada

54

um com sua capacidade, para realizar a vontade do Pai e anunciar a Boa Notícia

de que o Reino de Deus está próximo. Os ministros ordenados, inspirados nele

e ordenados por ele, assumem a continuidade de sua missão, conduzindo a

comunidade, ajudando-a a descobrir os dons e serviços próprios de cada um,

coordenando seus trabalhos para que a realização da pessoa humana seja a

primeira preocupação, e seu encontro com Deus seja pleno, pela compreensão

de sua vontade salvadora imanente e transcendente, “por dentro e por fora”. Na

Igreja a autoridade é poder-serviço, que não se exerce sobre um grupo, mas no

interior de um grupo, neste caso, de uma comunidade, não é imposto pela força,

mas reconhecido pela necessidade de organização e trabalho comum. Assim, o

poder é da Igreja e não do ministro ordenado, é a necessidade da comunidade

que exige do ministro o uso de sua autoridade, que também é serviço com, para

garantir que o serviço da Igreja de iniciar e realizar o Reino de Deus vá sendo

possível de acontecer. Não é simplesmente a vontade do ministro que o faz exigir

algo da comunidade, mas a caminhada da comunidade, comparada à proposta e

ao modelo de Jesus, que faz o ministro conduzir a comunidade (indo junto com

ela) à prática salvadora aprendida com o Mestre.

Entendendo o jeito de Jesus exercer sua autoridade na condução dos seus

discípulos como o modelo do ministério ordenado na Igreja, pode-se completar

esta reflexão com a figura do Bom Pastor, demonstrada por Jesus como sendo sua

própria figura, podendo ser também, já que o ministério ordenado pretende agir

na pessoa de Cristo, a figura-modelo para a realização de seu serviço na Igreja.

Desde os primórdios, a Igreja utilizou a designação de pastor para os

ministros ordenados (TABORDA, 2011, p. 71), mas como a figura bíblica do

pastor também era um título régio, messiânico, ligada ao poder temporal, aqui

precisamos compreendê-la como a compreende o evangelho de João, sob a ótica

do Servo de YHWH: o Bom Pastor que entrega sua vida pelas ovelhas (Jo 10, 11;

LG 6), e que para ser pastor é necessário primeiro amar, se não com um amor

profundo (ά), pelo menos com um amor de amizade

(ί), pronto para cuidar dos cordeiros e das ovelhas do pastor-modelo

que é Jesus (Jo 21, 15-19). O pastor ama as ovelhas, serve-as, vive com elas. O

ministro ordenado, amando ao verdadeiro dono das ovelhas, o Bom Pastor,

precisa ir à frente do rebanho, mas não por coação e sim para ser o modelo do

rebanho (IPd 5, 2-3), alguém em quem os outros podem se espelhar. Se o pastor-

ministro se espelha em Jesus, seu rebanho também pode ver transparecer nele o

jeito de Jesus pastorear.

Como a figura do pastor pode trazer consigo a ideia de distinção ovelha-

pastor, como ser irracional versus ser racional, não se pode perder a ótica do pastor

como aquele que entrega sua vida pelas ovelhas, a exemplo do Servo de YHWH.

Este é o espírito que deve animar a vida do ministro ordenado, como animou o

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ministério de Cristo, que em sua paixão-morte-ressurreição concretiza o ideal do

Servo (TABORDA, 2011, p. 74).

Jesus age como o pastor, convidando seus discípulos a serem pastores

com ele (Lc 9, 1-6; 10, 1-9), a irem onde ele deveria ir e a realizar o que ele precisava

realizar. Pastor que cria ovelhas-protagonistas, dá a vida e ensina a fazer o mesmo

(Lc 22, 19), lava os pés e manda fazer igual (Jo 13, 4-17). Sua atuação é o modelo

de atuação dos atuais pastores da Igreja.

5. Só o Amor constrói e une

Os ministros ordenados, servidores do povo de Deus, a ponto de dar a

vida para servi-lo, como foi desempenhado o ministério pastoral de Jesus, só

conseguirão cumprir seu papel de garantir a unidade da Igreja se colocarem o

amor em primeiro lugar. O amor pode ser considerado aspecto fundamental da

Igreja, é ele que nos insere na vida trinitária, que nos faz constituir o Corpo Místico

de Cristo. “O amor de Deus se infunde em nosso coração pelo dom do Espírito

Santo” (Rm 5, 5).

Sendo a Igreja ícone da Trindade, chamada a ser una na diversidade de

ministérios, “realidade criada e divinizada que torna presente e participa o mistério

de Deus”(VVAA, 1984, p. 167), deve ser no mundo sinal do amor que une a Trindade.

É na Trindade que se encontra a origem do amor, quando a comunidade

de fé se abre à experiência de tal amor, ela cumpre seu papel de sacramento-sinal,

manifestando a presença de Deus expressa no amor vivido em comum. “Todo o

bem que o povo de Deus pode prestar à família humana durante o tempo da

sua peregrinação terrena deriva do fato que a Igreja é o ‘sacramento universal da

salvação’, manifestando e atuando simultaneamente o mistério do amor de Deus

pelos homens.” (GS, 45)

Tanto os leigos quanto os ministros ordenados encontram o último

fundamento de seu ser na Igreja na Trindade. A Igreja vem da Trindade, vive da

Trindade, caminha para a Trindade. Mesmo que união tão perfeita só aconteça

em Deus, a comunidade pode inspirar-se a viver de tal modo que busque sempre

tal perfeição no amor, fazendo da diversidade presente na Igreja não a origem

da divisão e da disputa, mas a motivação para a união de forças tão diversas e

tão necessárias, uma completando à outra. A Igreja, espelhando-se na Trindade,

tende a manter as distinções, as diferenças de ministérios e carismas. Eles, por

sua vez, podem entrelaçar-se de tal modo em comunhão que constituam uma

unidade. Para cuidar dessa dialética está presente o ministério ordenado, como

primeiro responsável, já que é o ministério da unidade.

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Libânio usa um comparação muito pertinente:

“Não se oferece um bolo pronto para todos participarem comendo dele,

mas se busca que todos, trazendo cada um seu ingrediente próprio e

diferente, componham o bolo da comunhão” (LIBÂNIO, 2004, P. 6)

Não existe primeiro a comunhão como obra da hierarquia a cuja participação os fiéis leigos e leigas são convidados, mas existem primeiro os fiéis

construindo, pela força do Espírito, a comunhão, a cujo serviço está o ministério

ordenado.

A Igreja se sente chamada pelo Amor a ser amor. As diferentes funções

na comunidade e o rendimento de cada um não criam situações de privilégio

nem são fontes de mérito, pois o serviço é apenas resposta ao chamado. Na comunidade querida por Cristo não se trabalha no desejo de recompensa, mas

de forma espontânea e com a vontade de servir às outras pessoas (CNBB, 2004,

p. 35). É o amor que opera a unidade e a falta de cultivo do amor a ameaça. Pelo amor, os cristãos estabelecem entre si uma harmonia interior, os fiéis podem

viver na concórdia e na paz e realizam a unidade. Uma missionária protestante

expressa numa frase o quanto a unidade é essencial na Igreja: “Sem unidade não há testemunho” (RIBEIRO, 2013, p. 34) O papa na reabertura do Vaticano II, atento

a isso, mostra a centralidade do amor, o único capaz de gerar verdadeira unidade, na vida da Igreja.

“A educação da caridade terá lugar de honra: deveremos aspirar

à ecclesia caritatis se quisermos que ela seja apta a renovar-se

profundamente a si mesma.” (PAULO VI apud: VVAA, 1984, p. 250)

Assim, só o amor constrói uma Igreja em que os ministérios trabalham em harmonia, unindo-a no objetivo de ser serva do Reino de Deus. Dentro dessa

harmonia, está o responsável de mantê-la, não deixando o amor ser enfumaçado

pelos interesses particulares em detrimento do bem total da comunidade, tal responsável é o ministro ordenado, que pode se inspirar no pensamento de Santo

Agostinho para cumprir sua missão:

“Nas coisas necessárias, unidade; nas duvidosas, liberdade; em todas,

caridade.” (apud: BARREIRO, 2001, p. 165)

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CONCLUSÃO

Numa Igreja, que se entenda como ícone da Trindade, não há espaço para

dominação, tudo é serviço e cooperação. Os diversos ministérios presentes nela

são os responsáveis de realizar o ministério comum que ela tem: servir ao Reino

de Deus, em profunda comunhão.

Os responsáveis por garantir tal comunhão são os ministros ordenados,

servidores da unidade. Coordenam a Igreja, e é seu papel coordená-la,

preocupados em fomentar a cooperação de todos os diferentes serviços que

garantem a vitalidade da comunidade eclesial. São eles os primeiros responsáveis

pela Igreja, não os únicos, e a ajudam a cumprir seu ministério de anúncio do

Reino se abrindo à cooperação entre si e entre eles e os leigos e as leigas.

Como foram ordenados pela Igreja, e não se auto-intitularam servidores

dela, exercem seu serviço com a autoridade de coordená-la, como o Bom Pastor

que dá a vida por suas ovelhas, agindo na pessoa de Cristo, que assumiu em sua

vida o modelo do Servo de YHWH, sendo assim o modelo de todos os que são

chamados por ele a representá-lo.

A autoridade não se confunde com a força dominadora, mas é o exercício

do poder a serviço do bem de toda a comunidade, trabalhando para que

os membros não se dividam nem se distanciem do amor, único capaz de unir

verdadeiramente. A autoridade é reconhecida pela comunidade, não imposta a

ela.

Cinquenta anos depois da abertura do Concílio Vaticano II, que ajudou

a Igreja a redescobrir seu papel no mundo, e a lembrou de que deve assumir-se

como servidora, vivemos uma dicotomia entre o projeto do Concílio e a prática de

alguns clérigos, de modo especial o mais novo, tão exposto pela mídia. Um clero

dominador, dono da verdade, que se impõe pelo brilho de suas vestes e a apelação

a seu poder, não parece ser a proposta da Igreja, muito menos a do fundador e

fundamento da Igreja. Procurou-se, neste artigo, apresentar, então, uma visão de

um clero servidor, embasado na perspectiva conciliar, fundamentado no modelo

expresso por Jesus nos evangelhos. Um clero que se entenda como servidor

do povo de Deus e que, mesmo tendo autoridade, não pode utilizar seu poder

para dominar e escravizar, ou até alienar (como acontece), mas deve utilizar sua

autoridade para coordenar, ajudar a caminhar juntos, tendo a última palavra para

não deixar os cristãos se dividirem, não para satisfazer seus desejos egocêntricos.

O papa Francisco tem demonstrado fidelidade a esta perspectiva, quando

convidou os padres a não se sentirem funcionários, mas pastores, a não serem

intermediários, mas mediadores, a não se cansarem de ser misericordiosos,

principalmente no serviço aos mais fracos (L’OSSERVATORE, 28/04/2013, p. 9). Suas

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atitudes de visível serviço e humildade podem contribuir para que a realidade

mude, e a ideia de pastores-servidores volte a ser o sonho dos seminaristas e dos

ordenados, superando esta fase atual de regresso à Igreja das liturgias misteriosas

e solenes, das vestes retrógradas e demonstradoras de poder, pouco preocupada

com a vida real dos fiéis e a realização da salvação integral do ser humano,

demonstrando dar valor, no máximo, à salvação da alma.

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