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Christine Margareth Whiting da Fonseca O mito de Ceix nas Metamorfoses 11, e o epos ovidiano – versão corrigida – Estudo acerca da disposição narrativa e das características particulares do mito em tela relativas ao epos tal como desenvolvido por Ovídio. Tradução em prosa e em verso. Dissertação visando à obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Financiada pelo Capes. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Pinheiro Hasegawa São Paulo 2016

O mito de Ceix nas Metamorfoses 11, e o epos ovidiano · Christine Margareth Whiting da Fonseca O mito de Ceix nas Metamorfoses 11, e o epos ovidiano – versão corrigida – Estudo

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Christine Margareth Whiting da Fonseca

O mito de Ceix nas Metamorfoses 11, e o epos ovidiano

verso corrigida

Estudo acerca da disposio narrativa e das caractersticas particulares do mito em

tela relativas ao epos tal como desenvolvido por Ovdio.

Traduo em prosa e em verso.

Dissertao visando obteno do ttulo de Mestre

pelo Programa de Ps-Graduao em Letras

Clssicas da Faculdade de Filosofia, Letras e

Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

Financiada pelo Capes.

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Pinheiro Hasegawa

So Paulo

2016

2

Agradecimentos

Ao Prof. Dr Alexandre Pinheiro Hasegawa, pela orientao tranquila e segura em

todas as etapas do trabalho.

Ao Prof. Dr Ricardo da Cunha Lima, pela orientao e estmulo nos estgios iniciais

do trabalho e da traduo.

Capes, pelo financiamento da pesquisa.

minha me, em especial, e a toda minha famlia.

A Dirceu Villa, pela leitura atenta e crtica do trabalho, da traduo, e pelo incentivo.

A Eneida de Almeida, Lya Valeria G. Serignolli e Eduardo Giannetti pelos encontros

aprazveis.

A Martin Dinter e Ruy Afonso Proena.

A Joo Papaterra, pelas valiosas conversas.

Figura: tear vertical, reproduzido a partir de um skyphos da Becia, pertencente ao Ashmolean Museum, Oxford.

3

Resumo A primeira parte deste trabalho compe-se de um estudo do gnero pico tal como

desenvolvido por Ovdio nas Metamorfoses, por meio da anlise detalhada do promio e de outras

passagens programticas, concomitantemente avaliao dos modelos que acabaram por formar sua

variante particular de epos, a saber, Hesodo, os poetas alexandrinos, alm dos predecessores latinos,

em particular nio, Lucrcio e Virgilio. A segunda parte consta do estudo e anlise do mito de Ceix, no

livro 11, no tocante disposio narrativa e abordando-o em seu aspecto alusivo a obras precedentes,

notadamente quanto ao conflito pietas / pax x impietas / ferocia que permeia o mito. Por fim, foi feita

uma traduo em prosa de todo o mito, apresentada linha a linha, e uma em versos dodecasslabos da

parte principal.

Palavras-chave: metamorfoses, Ovdio, poesia pica, intertextualidade, mescla de

gneros.

Abstract The first part of this piece of work consists of a study of the epic genre as developed by Ovid

in Metamorphoses, by means of a detailed examination of the proem and other programmatic passages,

simultaneously to an appreciation of the poetic models who contributed to form his particular variant of

epos, namely Hesiod, the alexandrian poets, together with his Latin predecessors, particularly Aenius,

Lucretius and Virgil. The second part consists of the study and analysis of the myth of Ceix in book 11,

concerning narrative disposition and its marked alusiveness to preceding poems, notably in relation to

the pietas / pax x impietas / ferocia conflict which underlies the story. Finally, there is a prose

translation of the whole myth presented line by line, followed by a verse translation of the main part of

the myth.

Key words: metamorphoses, Ovid, epic poetry, intertextuality, mixing of genres.

4

Sumrio

Apresentao ............................................................................................................................. 5

I. Estudo do epos ovidiano a partir de passagens programticas ........................................ 8 1. O promio (1. 14) .......................................................................................................... 10

1.1 In noua ....................................................................................................................... 12 1.2 fert animus: a tcnica em lugar da inspirao pelas Musas ...................................... 13 1.3 mutatas dicere formas ................................................................................................ 31 1.4 nam uos mutastis et illa: o papel dos deuses ............................................................. 40 1.5 prima ab origine mundi ad mea tempora .................................................................. 45 1.6 perpetuum carmen: o epos ovidiano e a unidade ....................................................... 50

1.6b emulando os poemas cclicos .............................................................................. 52 1.6c emulando o eplio ................................................................................................ 54

1.7 adspirate e deducite ................................................................................................... 57 2. As filhas de Mnias (4. 1803) ........................................................................................ 66

2.1 acerca do tecer ........................................................................................................... 66 2.2 as narrativas das Minieides ........................................................................................ 70

3. Minerva e as Musas (5. 294678) .................................................................................. 78 4. O mito de Aracne (6. 1145): um epos inovador ......................................................... 83 5. O mito de Orfeu (10. 1707) .......................................................................................... 94 6. O mito de Pitgoras (15. 60478) ................................................................................ 100 7. O eplogo (15. 871879) ................................................................................................ 104

II. O livro 11 e o mito em tela .............................................................................................. 106 1. Mitos antecedentes ....................................................................................................... 107

1.1 A morte de Orfeu (184) ......................................................................................... 107 1.2 O episdio de Midas (85193) ................................................................................. 107 1.3 A construo dos muros de Troia (Laomedonte e Peleu) (194220) ...................... 109 1.4 Peleu e Ttis (221265) ........................................................................................... 110

2. O Mito de Ceix .............................................................................................................. 114 2.1 Parte inicial: o reino de Ceix .................................................................................... 117

2.1a Peleu em Trquis (266289) .............................................................................. 118 2.1b Dedalio e Quone (o discurso de Ceix) (290345) ......................................... 120 2.1c O episdio do lobo (345409) ........................................................................... 121

2.2 Parte principal: Alcone (410748) .......................................................................... 124

2.2a A partida (1 discurso de Alcone) (410474) ................................................... 132 2.2b A tempestade (474572) .................................................................................... 139 2.2c Juno ris visita Sono o sonho de Alcone (573673) .................................. 155 2.2d O despertar (2 discurso de Alcone) (674709) .............................................. 161 2.2e O retorno (710748) .......................................................................................... 163

2.3 Consideraes finais ................................................................................................ 168

III. Texto original em latim ................................................................................................. 172

IV. Traduo em prosa (linha a linha) ............................................................................... 185

V. Traduo em verso .......................................................................................................... 202

VI. Suma Bibliogrfica ......................................................................................................... 213

5

Apresentao A presente dissertao contempla abordar, na Parte I, as particularidades do epos

ovidiano a partir das influncias que ajudaram a mold-lo, o que abrange os modelos

do poeta com destaque influncia herdada da poesia alexandrina , bem como seu

histrico de poeta elegaco levando em considerao a avaliao de algumas das

passagens programticas da obra, a saber, o promio, o mito das filhas de Mineu, o

mito de Minerva com as Musas, o mito de Aracne, o mito de Orfeu, o mito de

Pitgoras e o eplogo.

Em seguida, na Parte II, ser analisado o mito em tela em relao disposio

narrativa, permeada pelo conflito pax x ferocia (disposio violenta, beligerante)

trabalhado na Eneida, de Virglio, a reforar sua unidade.

O mito de Ceix divide-se em duas partes: a primeira (parte inicial), em que se

delineia o ethos do protagonista, e a segunda (parte principal), o fulcro do mito, em

que a herona tem maior presena. A histria se equilibra entre as contrastantes

transformaes ocorridas aos dois irmos: no incio, Dedalio cuja disposio

dominada pela ferocia , transformado em gavio feroz, solitrio e infeliz; ao final

da histria, Ceix de disposio benigna, pela pax , transformado em ave, junto

com sua mulher Alcone a quem se deve o timo para a expresso dias de halcyon ;

e permanecem unidos em harmonia com a natureza.

A narrao do relacionamento de Ceix com Peleu, na parte inicial do mito,

salienta a natureza pacfica do protagonista, de modo a contrast-lo com o tipo

psicolgico da esposa caracterizado pela turbulncia afetiva , que rouba a cena na

segunda parte. Conforme Griffin, subjacente ao mito, unificando as vrias partes,

esto as sempre presentes dualidades contrastantes pietas / pax x impietas / ferocia

(1997: 141). A ideia analisar o mito luz das caractersticas particulares da pica

ovidiana delineadas na primeira parte do trabalho.

Para o estudo da disposio narrativa do mito em questo ser levado em

considerao todo o livro 11, que lhe serve de moldura, bem como sua posio no

todo do poema. Aps comentar brevemente o incio do livro, sero abordados os

episdios do mito de Ceix que antecedem a histria de amor e constituem o seu

prembulo Ceix com Dedalio e Ceix com Peleu ; em seguida ser abordada a

parte principal, a histria de Ceix e Alcone, em que a esposa se torna protagonista.

A histria de amor consta de cinco partes bem definidas por matria e

tratamento, e compostas em perfeita simetria:

6

1. a separao (com discurso de Alcone, em que a herona apresenta elementos

comuns a heronas de outras obras, como as personagens de Calipso, na Odisseia

(canto 5), de Media nas Argonuticas (livro 3) e de Dido, na Eneida (livro 2) (410

73);

2. a tempestade, que por sua vez retoma a tempestade homrica (Odisseia, canto 5) e a

virgiliana (Eneida, livro 1) (474572);

3. a parte central: o comportamento dos deuses (573673);

4. o despertar (com discurso de Alcone) (674709);

5. o retorno de Ceix e a metamorfose (710748).

As sucessivas partes alternam matizes picos e elegacos, constituindo amostra

exemplar do modo pico ovidiano, que se transforma, ou metamorfoseia, assumindo

traos de outros gneros, de acordo com as exigncias do enredo.

Ateno especial ser dada, neste trabalho, metfora relativa ao ato de tecer,

aplicada composio do epos, de que o poeta se vale repetidas vezes. Ela tem

presena importante no promio, que ser detalhadamente analisado, e no poema

como um todo, particularmente no mito de Minerva e Aracne.

Outro aspecto a ser sublinhado no nosso percurso est ligado a uma atitude do

poeta para com seu epos, designada pelo termo latino lasciuire, atribudo ao fazer

potico de Ovdio por Quintiliano, em duas instncias. Na primeira delas, Ovdio

mencionado como exemplo, quando discorre acerca das transies que ligam o

promio exposio dos fatos nos discursos jurdicos: ...ut Ouidius lasciuire in Metamorphosesin solet; quem tamen excusare necessitas potest, res diuersissimas in speciem unius corporis colligentem (Inst. 4.1.77) ...como Ovdio costuma ser desmedido nas Metamorfoses; mas a necessidade pode desculp-lo porque rene as coisas mais diversas sob a aparncia de um corpo nico1.

possvel notar uma disposio crtica relativa a Ovdio por parte de Quintiliano na

afirmao; esta se refere ao fato de que Ovdio no teria composto um poema unitrio,

segundo os preceitos aristotlicos. possvel inferir que Quintiliano julgasse

excessivo o que Ovdio fizera, o modo como desenvolveu o seu poema, como se, pelo

excesso de arte, Ovdio fosse libidinoso. Mas esta, porm, no a nica acepo de

lasciuire relativa a Metamorfoses.

1 Trad. de J. A. de Oliva Neto

7

Lasciuire pode ser traduzido por "exorbitar", ou seja, exceder-se, desviar-se da

norma, exceder os justos limites, o razovel, ou ser desmedido, conforme a traduo

de Oliva Neto acima (e tambm OLD, s.u. 3c no tocante escrita, cujo exemplo a

prpria frase de Quintiliano aqui reproduzida). Porm, achamos importante no perder

de vista as acepes (OLD, s.u., 1 e 2) de "brincar", "saltitar", "saracutear", "folgar",

"traquinar", "troar", "tratar com ligeireza", bem como as acepes ligadas

licenciosidade sexual. Desta maneira, certa ambiguidade da parte de Quintiliano no

precisaria necessariamente ser descartada. A meno abaixo, por exemplo, constitui

certamente mais uma referncia ao excesso de Ovdio, mas permite outras

possibilidades a lasciuus: Lasciuus quidem in heris quoque Ouidius et nimium amator ingenii sui, laudandus tamen partibus. (Inst. 10.1. 889) At mesmo na pica Ovdio desmedido [ou brincalho ou dissoluto] e demasiado enamorado de seu prprio talento; todavia deve ser elogiado em partes2. No tocante traduo, primeiro foi elaborada uma traduo em prosa, verso a

verso, do mito inteiro Parte IV do trabalho , para que se estude minuciosamente o

texto do original latino de modo a servir de base para a composio da traduo em

verso. Em relao a esta Parte V , a proposta foi compor uma verso em

dodecasslabos heroicos e sficos. H uma tradio relativa traduo das

Metamorfoses em verso para o portugus, seja em decasslabos Bocage , seja em

dodecasslabos Haroldo de Campos. Optamos pela ltima opo por ser um verso

mais longo e que, portanto, em teoria, permitiria verter com maior eficincia a concisa

lngua latina para o nosso idioma. Buscamos tambm manter a correspondncia verso

a verso com a verso original.

2 Quando no especificado, todas as tradues so minhas.

8

I. Estudo do epos ovidiano a partir de passagens programticas

As fontes usadas por Ovdio para as histrias das Metamorfoses no podem ser

determinadas com preciso. Conforme Crump, poucas so as instncias cujas origens

podem ser traadas3; no se pode tampouco ter certeza, no caso de haver registro de

verses anteriores de um mesmo mito, sobre qual delas originou a verso constante no

poema; ou at se existiriam, ainda, outras fontes acerca de que nada se sabe (Crump

1931: 1956).

Ocorre algo similar em relao forma potica em que foi baseada a obra o

poema etiolgico , cuja origem remonta pica homrica, mas que foi bastante de-

senvolvido por Hesodo e adotado pelos poetas helensticos, cujo exemplo mais no-

tvel so os itia (o termo significa "causas" ou "origens"), de Calmaco. No tocante

matria, Nicandro de Clofon (autor de obra cujo ttulo tambm Metamorfoses) e

Partnio de Nicia reuniram metamor- foses em colees, e h registro de um poema

denominado Ornitogonia, de Beo, que indica ter sido uma coleo de histrias de

homens transformados em aves. fato, pois, haver existido poemas dessa natureza.

O poema de Ovdio, no entanto, difere dos poemas etiolgios tambm

conhecidos como poemas-catlogo que o precederam. Apesar do ttulo,

metamorphoseon, termo grego4 que significa "transformaes" e de, nos primeiros

versos, o autor afirmar sua inteno de falar sobre formas transformadas em novos

corpos e de realmente haver uma transformao de algum tipo ligada a quase todas

as histrias , percebe-se que as transformaes, alm de estarem presentes enquanto

procedimento ostensivo e unificador do poema, funcionam tambm como recurso

tcnico, para auxiliar na passagem de um mito a outro, como dobradias a interligar

painis que, no mais das vezes, as superam por ser mais interessantes, ou, para

empregarmos a metfora da tessitura utilizada pelo poeta, esto presentes como 3 Nas Metamorfoses, o mito de Circe, no livro 14, claramente tomado da Odisseia, por exemplo, e os eventos relacionados a Eneias constituem, abertamente, um apanhado da Eneida. 4 Anderson destaca que no havia, ao tempo de Ovdio um termo em latim equivalente ao termo grego metamorphosis transformatio, que teria traduzido bem, s teria vindo a existir no tempo de Santo Agostinho (1963: 1). Plnio, o Velho, no entanto, usa o termo transfiguratio (Nat. 7. 188), dicionarizado com o sentido de "mudar para nova forma, transformao" (OLD). O verbo bastante empregado em latim, e Higino a usa, aplicada nitidamente a uma metamorfose do tipo ovidiano: Iuppiter formicas in homines transfigurauit. Se Higino fosse mesmo um escravo liberto de Augusto, seria ento da mesma poca de Ovdio, que lhe dirige uma elegia dos Tristes; infelizmente, a tendncia achar que o Higino das Fbulas no deve ser identificado com o liberto de Augusto. O dicionrio de Ernoult-Meillet d como equivalente de transfiguro w. Mas a prova mais eloquente de que antes de Santo Agostinho havia ao menos um verbo muito adequado para traduzir o conceito de metamorfose que Estcio, nas Siluae 7.73, em aluso ao Ovdio de Metamorfoses, diz: et qui corpora prima transfigurat.

9

pontos especiais a unir as vrias partes da manta. As metamorfoses, porm, carregam

no poema de Ovdio uma significao mais profunda, dado que, conforme se ver no

decorrer do trabalho, constituem tambm como que um segundo tema, subjacente,

visto que trata tambm das transformaes mesmas por que passa a poesia. Desta

forma, est claro que a matria tratada no poema mais complexa do que o ttulo faz

sugerir.

Segundo Crump, Metamorfoses no apenas mais um entre os poemas-

catlogo, pois no visa a constituir um mero elenco de transformaes (1931: 1978).

So os intervalos entre elas, isto , as histrias que as precedem das quais as

transformaes constituem o desfecho e a ligao para outra histria , o verdadeiro

foco do poema.

O ttulo iludente ao sugerir que o poema se encaixa na categoria de poema-

catlogo. So as histrias que as transformaes interligam a verdadeira matria de

Metamorfoses (1931: 200); e estas versam sobre como a vida de deuses, heris e

homens dominada pelos afetos. O fato de este aspecto achar-se encoberto pela

superficialidade do ttulo da mesma maneira que se encontram encobertas a

interpretao programtica do promio e de tantas outras passagens (o tema deste

trabalho) e de o alcance do poema ser muito maior do que seu ttulo sugere, apenas

desvela o sofisticado engenho do poeta (artifex), a sua ars.

O aspecto importante de Metamorfoses a ser tratado neste trabalho a

natureza programtica de vrias passagens do poema que comentam, de maneira

direta ou no, a natureza da prpria composio potica.

Ovdio entretece histrias, contando histrias dentro de histrias. Seguimos os fios de suas histrias medida que ele as entretece. Ele conta, por exemplo, a histria de Orfeu, que conta a histria de Vnus e Adnis, em que Vnus conta a histria de Atalanta. Alguns contadores de histrias as contam medida que tecem. O poema de Ovdio tecido, deducite, como ele diz, usando uma forma do mesmo termo empregado para descrever a tapearia de Aracne. Como ele prprio fia novelos, seguimos as pistas ou os fios de seu texto no sentido original do termo "texto" que de algo tecido, como um produto txtil. (Barolski 2014: 20)

H vrias passagens no poema que aludem, cada uma a seu modo, ao prprio

narrar, ou seja, a aspectos da composio de um poema narrativo, ou epos ; pode-se

aventar, inclusive, que o poema como um todo versa sobre o tema veladamente ,

aspecto que o presente trabalho visa iluminar. Entre as passagens em questo

podemos citar o promio, marcadamente; a histria do corvo e da gralha no livro

10

2.531632; as histrias das filhas de Mineu, que abrem o livro 4; a histria de

Minerva com as Pirides e com as Musas, ao final do livro 5; a competio entre

Minerva e Aracne, que abre o livro 6, na qual o tecer metfora ostensiva para a

composio potica; o canto de Orfeu no livro 10; o mito de Ceix e Alcone, livro 11,

a ser analisado em pormenor; o relato de Nestor no livro 12, entre outras.

Inmeros mortais e deuses narram histrias nas Metamorfoses. A obra uma

histria de narradores ou cantadores: o foco central a narrativa, o fazer do poema

pico. E este muito associado ao ato de tecer. Quando Ovdio escreve sobre muitos contadores de histrias, ele assume suas personas. Ele prprio um contador de histrias escrevendo sobre contadores de histrias (Barolski, 2014: 17).

1. O promio (1. 14) Procederemos, primeiramente, distino das informaes programticas das

Metamorfoses reunidas pelo poeta no promio, com o intuito de deixar clara a sua

inteno relativa ao prprio epos para, em seguida, nos sub-itens que se seguem,

elabor-las em maior detalhe.

In noua fert animus mutatas dicere formas

corpora; di, coeptis (nam uos mutastis et illa)

adspirate meis primaque ab origine mundi

ad mea perpetuum deducite tempora carmen.

Meu nimo me leva a contar as formas transformadas em novos corpos. Deuses, os meus comeos pois vs os transformastes tambm, impulsionai; da primeira origem do mundo aos meus tempos tecei abaixo o ininterrupto poema.

O promio das Metamorfoses de Ovdio compe-se de duas partes, segundo

a distino de Srvio (Aen. 1. 1). A proposio da matria (vv. 12):

In noua fert animus mutatas dicere formas / corpora.

e a invocao aos deuses (vv. 24) (Predebon 2006: 14):

........ di, coeptis (nam uos mutastis et illa) adspirate meis primaque ab origine mundi ad mea perpetuum deducite tempora carmen.

11

A proposio anuncia a matria de que tratar o poema; a invocao constitui o

pedido a uma Musa ou deus/deusa, para que conduzam o poema a bom termo; no caso

das Metamorfoses, a invocao contm tambm informao sobre a matria.

Quintiliano (Inst. 10.1.489) cita Homero como o principal poeta a ser lido

por quem quisesse adquirir o domnio da oratria, e discorre sobre a excelncia deste

em todas as cinco partes de um discurso, a comear, naturalmente, pelo promio: Age uero, non utriusque operis ingressu in paucissimis uersibus legem prohoemiorum non dico seruauit sed constituit? Nam et benivolum auditorem inuocatione dearum quas praesidere uatibus creditum est et intentum proposita rerum magnitudine et docilem summa celeriter comprehensa facit.

E ele [Homero] no convenhamos , eu no diria observou, mas estabeleceu, as regras dos promios em pouqussimos versos no incio de cada uma de suas obras? Pois faz o ouvinte benevolente por meio da invocao s deusas, s quais se acredita que presidam sobre os poetas, e atento, por meio da magnitude dos temas propostos, e disposto a aprender dada a matria mais rapidamente abrangida na suma.

De fato, o primeiro verso da Ilada invoca a deusa, e menciona a matria a ira de

Aquiles; nos seis versos seguintes o poeta explica como o afeto acarretou inmeras

desgraas aos gregos desde que Agamemnon e Aquiles se desentenderam. E no

promio da Odisseia, o poeta igualmente invoca a Musa (como se ver adiante), e em

seguida enfatiza as inmeras aflies de Odisseu, para logo mergulhar in medias res

na narrativa (Russell 2001: 27677).

O promio das Metamorfoses mais breve, constituindo-se de apenas quatro

versos; trata-se, porm, de uma passagem de contedo extremamente denso e

elaborado. Mais de seis sculos separam Ovdio de Homero; o poeta latino faz com

que cada uma das palavras ou expresses utilizadas na passagem seja cuidadosamente

escolhida de modo que, alm de comunicar aos leitores acerca do partido potico

adotado e da matria a ser tratada, tambm aluda a autores, obras e conceitos que

considera como centrais na elaborao do poema, permitindo que diferentes camadas

de sentido se alternem e metamorfoseiem , medida que se avana na leitura, de

modo a abranger natureza complexa da obra, conforme se ver adiante.

In noua, fert animus, dicere, formas mutatas, noua corpora, meis coeptis, nam

uos mutastis et illa, adspirate, primaque origine mundi, ad mea tempora, deducite,

perpetuum carmen: cada uma destas expresses est carregada de significado, e deve-

se creditar somente ao autor sua prpria ars e ao seu ingenium , de que faz parte

a disposio ldica, lograr reunir tanta informao em apenas quatro versos. A seguir,

12

comentaremos as expresses presentes no promio e sua relevncia no entendimento

da obra.

1.1 In noua importante salientar que a primeira expresso do promio in nova ,

implica o rumo novidade, remetendo ao verbo innovare, "inovar". Ela ocupa a

posio de maior destaque do poema: a primeira. Esta posio extremamente

importante nos poemas antigos, carregando muito peso, e a expresso a alocada pelo

poeta encerra um significado preciso: que a principal motivao do poema caminhar

no sentido do novo, ou seja, criar novidade inovar no mbito potico.

A proposio sofisticada. O primeiro verso, considerado por si s, j

constitui uma construo potencialmente enganadora: parece ser uma unidade

sinttica completa, levando o leitor a crer que o poeta tenciona falar acerca de formas

mudadas, voltado ao novo (Anderson 1993: 1089), mas vago. Conforme avana

para o segundo verso, porm, o leitor se v obrigado a reformular seu entendimento

inicial: sua interpretao desfeita pelo autor (o termo corpora modifica a construo

sinttica), que elucida que tratar de formas transformadas em novos corpos, ou seja,

discorrer acerca de transformaes fsicas. A primeira transformao que o leitor

encontrar, portanto, conforme Feldherr, no vem por meio de histria narrada no

poema, mas embutida em suas prprias estruturas lingusticas. E esta transformao

na esfera lingustica do texto j sugere que a obra abrange um campo semntico

paralelo quele do universo exterior de suas histrias (Feldherr 2010: 2). Quanto ao

equvoco que o leitor levado logo a corrigir, ele mesmo perceber, mais adiante na

leitura, no constituir mero engano.

A interpretao precipitada do primeiro verso, feita pelo leitor antes de chegar

ao segundo, significativa de duas maneiras: primeiro porque a construo, que

originalmente se cria completa, mantm-se nesta sua perfeio apenas por um breve

momento, proporcionando ao leitor, logo de sada ou seja, leitura do comeo do

segundo verso , sua primeira experincia de transformao proporcionada pelo

poema. E ela no acessria, constitui a matria fundamental do poema, como o autor

est a declarar. E em segundo lugar porque, quando o leitor estiver em condio de

avaliar todo o poema, perceber que sua interpretao inicial, que logo aps o

13

primeiro momento pareceu-lhe precipitada, a partir de mais uma reviso acaba por

no constituir equvoco algum, mas, sim, tornar a ser acertada5.

S no incio do segundo verso, ento, o poeta desvenda ao leitor que nova

qualifica corpora, restringindo, como que jocosamente em instncia de lasciuire ,

o alcance da primeira declarao (que o leitor percebe que estava incompleta); porm,

isto de modo algum a neutraliza. Sob a aparncia de uma simples declarao sobre a

matria de que tratar discorrer sobre formas transformadas em novos corpos, a

matria ostensiva de Metamorfoses, jaz a outra afirmao, de ordem programtica: o

autor pretende inovar com o gnero.

Logo em seguida, no mesmo segundo verso, com a expresso et illa, o leitor

ser levado a experienciar outra instncia anloga de dupla significao, esta relativa

ao prprio gnero potico do poema (assunto a ser tratado, em detalhe, adiante).

1.2 fert animus: a tcnica em lugar da inspirao pelas Musas

A imitatio era comumente utilizada pelos escritores antigos, pois conferia

diferentes camadas de sentido s suas obras; consistia no estudo e emprego de

elementos reconhecidamente caractersticos do modo ou da matria de dado poeta,

admirado e considerado modelo por um poeta mais novo, de modo a definir sua

prpria filiao genrica.

Oliva Neto (2006: 1636) elabora um ilustrativo apanhado sobre os escritos

tericos de autores gregos e latinos acerca da imitatio e da aemulatio, que informa o

quanto esses procedimentos eram valorizados pelos antigos, a comear por Dionsio

de Halicarnasso, no sculo I a.C.. Este escreve, no Tratado da Imitao, ser esta uma

atividade que, segundo alguns princpios tericos, refunde um modelo; e que a

emulao, por sua vez, consistiria em uma atividade do esprito a mov-lo no sentido

da admirao daquilo que lhe parece belo. A imitatio a ser almejada no era mera

imitao, uma imitao no seletiva e acrtica, nas palavras de Oliva Neto, como

aquela que Ccero condenara no tratado Sobre o Orador (2. 22.9092). E Horcio,

assim como Ccero, tambm preceituara a composio mimtica, porm exigindo do

poeta a pratic-la que, obrigatoriamente, inserisse um aspecto particular seu, uma

5 O movimento de interao do autor do poema com as expectativas do leitor foi demonstrado por W. Batstone em seu artigo "On the surface of the Georgics", com a tcnica denominada por ele como "teoria da reao do leitor". Batstone analisa os cinco primeiros versos das Gergicas, onde Virglio induz o leitor uma experincia deste tipo.

14

qualidade prpria, no legado tradicional (ou seja, o legado grego, considerado

propriedade de todos); o que pode ser conferido na Arte Potica, vv. 1317 e 2689; e

nas Epstolas, 1. 19.1234. Caso contrrio, o poeta no passaria de mero tradutor

(interpres). Quintiliano, nas Instituies Oratrias (10. 2.47), haveria de explicitar a

insuficincia da imitao banal, elaborando os limites estabelecidos por Horcio e

recomendando claramente a necessidade do uso da inveno. Ao final da passagem

reitera:

Turpe etiam illud est, contentum esse id consequi quod imiteris. Nam rursus quid erat futurum si nemo plus effecisset eo quem sequebatur?

torpe estar contente em s perseguir algo para imitar, pois, pergunto outra vez: o que teria acontecido se ningum tivesse obtido mais do que obtivera aquele que ele imitava? (Trad. por J. A. Oliva Neto)

Postura que haveria de ser reforada por Pseudo-Longino, no tratado Sobre o Sublime

(caps. 13 e 14, particularmente 13 2), onde prescreve a imitao e a emulao para se

alcan-lo: "Qual e em que consiste o caminho sublimidade? Na imitao e

emulao dos grandes prosistas e poetas do passado" (Oliva Neto 2006: 1636).

Retornemos proposio de Metamorfoses. Esta anuncia no primeiro verso

tomado isoladamente , a disposio do poeta criao da novidade em seu poema,

inovao potica. No segundo verso, anunciada a matria ostensiva do poema: falar

sobre as formas transformadas em "novos corpos". O termo "formas", nesta

afirmao, permite mais de uma interpretao: pode ser interpretado tambm como

"formas poticas" a forma elegaca, cujo metro o dstico elegaco; a forma da

tragdia cujo metro o trmetro imbico, por exemplo. Neste sentido, o poeta est a

comunicar que os dsticos elegacos que sempre usara dado que at ento compusera

somente nesse metro , seriam transformadas em novos corpos, ou seja, em

hexmetros, fazendo com que seu novo poema resulte em epos, poema pico. E que

este epos ser inovador, conforme vimos acima.

Passemos adiante. A ao contida no primeiro verso, porm, diz respeito

tambm ao responsvel pela escolha da matria citada: afirma ser a disposio do

poeta, o seu prprio animus, ele mesmo, enfim, que conduz a ela fert animus. O

poeta est a afirmar que foi ele mesmo quem determinou a matria do poema. Em vez

de pronunciar primeiramente o nome da Musa dado que se considerava, entre os

antigos, que era ela tambm a responsvel pela escolha da matria a ser tratada , o

poeta afirma sua prpria vontade como soberana (como j haviam feito antes dele

15

outros poetas picos, entre eles Apolnio de Rodes e Virglio, conforme veremos

adiante).

Para os gregos, da poca de Homero ao perodo imperial tardio, o poeta recebia sua inspirao das Musas, ou de algum outro deus (por exemplo, Apolo ou Dioniso) a quem ele atribua a responsabilidade pelo enthousiasms, que permitia cantar conforme desejasse6; consequentemente, era prtica muito difundida entre os poetas fazer uma apstrofe a estas fontes divinas da inspirao logo no incio de suas obras, ou mesmo clamar que haviam sido investidos da funo de poetas por elas (como no caso de Hesodo). (Fantuzzi 2004: 1)

As Musas eram deusas e no imortais de importncia secundria por sua

linhagem e porque habitavam o Olimpo. Conforme consta na Teogonia (vv. 5363) as

Musas nove foram geradas pela unio de Zeus com Mnemsine, no decorrer de

nove noites seguidas. Eram denominadas deusas desde as fontes mais antigas, como

Homero, que se dirigia a uma apenas, mas sabia existirem outras. A Ilada (2.594-

600) traz a histria de Tmiris, aedo da Trcia, que desafiara as Musas ao vangloriar-

se de vencer um concurso mesmo sem a sua ajuda; foi por elas muito punido e

privado de sua habilidade. Assim, a atitude delas para com os humanos no difere da

dos outros deuses, que no hesitavam em destruir quem ousasse usurpar o seu lugar.

Homero invoca a deusa como autoridade no promio da Ilada, incio da tradio

potica greco-romana:

1 , , , , , 5 . (Il., 1. 17)

Canta, deusa, a clera de Aquiles, o Pelida (mortfera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus e tantas almas valentes de heris lanou no Hades, ficando seus corpos como presas para ces e aves

6 Enthousiasms, do grego, derivado de en, tes, e ousa, significando "possudo pela essncia de um deus", era termo usado pelos gregos para manifestaes de possesso divina, seja por Apolo (caso das pitonizas), ou por Dioniso (caso das bacantes). A noo de que a inspirao dos poetas uma forma de entusiasmo de Scrates, consta no dilogo Fedro, de Plato. Nele esto identificadas quatro tipos de loucura: proftica, ritual, potica e ertica. A formulao data do perodo arcaico grego, quando os limites entre xtase religioso, embriaguez, profecia mstica e criao potica eram tnues, quando no inexistentes.

16

de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus) desde o momento em que primeiro se desentenderam o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles 7.

A invocao da Musa no promio da Odisseia, comparece logo no primeiro

verso do promio e no ltimo: , , , , : , , . 5 , : , , : . , , , . 10 (Od. 1.110) Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada. Muitos foram os povos cujas cidades observou, cujos espritos conheceu; e foram muitos no mar os sofrimentos por que passou para salvar a vida, para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas. Mas a eles, embora o quisesse, no logrou salvar. No, pereceram devido sua loucura, insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hiperon, o Sol e assim lhes negou o deus o dia do retorno. Destas coisas fala-nos agora, deusa, filha de Zeus. A invocao das Musas no "Catlogo das Naus" (Ilada 2) ilustra-lhes a sabedoria.

: , : : (Il. 2.4847) Dizei-me agora , Musas que no Olimpo tendes vossas moradas pois sois deusas, estais presentes e todas as coisas sabeis, ao passo que a ns chega apenas a fama e nada sabemos quem foram os comandantes dos Dnaos e seus reis.

7 Todas as tradues de Homero neste trabalho so de autoria de Frederico Loureno, a menos quando especificado.

17

Segundo Hardie (2002: 34), as palavras fixadas na pgina substituem a imediata

porm passageira presena da palavra falada, e as palavras, tanto as escritas como as

faladas, geram para o leitor uma iluso de mundo, real ou fictcio. Elas comunicam a

presena de um autor ausente ou falecido, sendo que o uso da linguagem para superar

a perda da presena j era presumido na cultura oral.

Hardie afirma que as Musas eram consideradas como garantidoras das

tradies orais, por estarem sempre presentes, de modo a enxergar tudo o que

acontece: presentes sempre, e em todo lugar, eram invocadas para se apresentar ao

poeta no momento da composio; Musas e poeta eram consideradas responsveis por

garantir a presena ao receptor, transformando o que seria uma memria do passado

em experincia de estar presente quela ocasio (Hardie 2002: 34).

No poema de Hesodo Trabalhos e Dias, o breve vocativo s Musas

comparece, porm, na primeira posio (seguido de invocao mais longa a Zeus):

1 , , :

Musas da Piria, que com cantos gloriais, vinde! Dizei Zeus, hineando vosso pai,8

Na Teogonia, poema sobre o nascimento dos deuses e do mundo, um hino s

Musas corresponde ao promio, e Mouson (Musas) tambm a primeira palavra que

comparece:

,

Pelas Musas heliconades comecemos a cantar9

O hino compem-se de uma passagem de cento e trs versos (que pode ser dividida

em duas partes) glorificando as Musas, mais a invocao, com doze versos. Aps o

primeiro verso, que estabelece com clareza a primazia das Musas para o seu canto, o

poeta versa sobre sua morada, no Monte Hlicon, e sobre seus costumes, e de como

elas celebram com seu canto os vrios deuses. O trecho a seguir, que compreende os

versos 2234, forma, segundo Andr Malta, a chamada "Epifania das Musas":

8 Trad. de Luiz Otvio Mantovaneli. 9 A traduo de JAA Torrano.

18

, . , , : 25 , , , , , , . : 30 , : , . , . ; (Teog. 2235)

Elas certa vez a Hesodo o belo canto ensinaram, ao pastorear as ovelhas no sop do sagrado Hlicon. Primeiramente esta fala as deusas me dirigiram, as Musas Olmpias, jovens do porta-gide Zeus: 25 "Pastores do campo, vis vergonhas, no mais que estmagos: sabemos muita mentira dizer semelhante aos fatos e sabemos, se queremos, verdades enunciar". Assim disseram as jovens do grande Zeus, concertantes. E a mim deram um cetro (de um loureiro em flor, o ramo 30 que apanharam, espantoso), e em mim inspiraram voz sublime para que eu glorifique o que ser e foi , mandando entoar a ditosa raa dos que sempre so, mas em primeiro e por ltimo cantar sempre a elas prprias. Mas por que a mim isso roda sim do carvalho ou da rocha?10

O poeta narra como as Musas dotaram o poeta com o belo canto, e a fala das deusas

reproduzida diretamente. A passagem enuncia o desprezo divino destas pelos

"Pastores do campo, vis vergonhas, no mais que estmagos", acrescido de um

detalhe revelador: de que no lhes importa se a poesia que inspiram seja ou no

verdadeira (vv. 268). Segundo Malta, a descrio do encontro entre as Musas, as

divindades da linguagem cantada e ritmada, e o seu poeta eleito, , provavelmente, a

nica passagem da literatura grega , a chegar at ns, em que as deusas falam, em

que tm um discurso prprio. E a novidade consiste no fato de que, no caso, como so

as Musas, "os prprios poemas j se identificarem com suas falas." (Malta 2012: 27).

Ovdio, que, conforme se ver, toma Hesodo como modelo, levar este aspecto s

10 Trad. de Andr Malta.

19

ltimas consequncias no mito (Met. 5.294678) que narra o encontro de Minerva

com as Musas (comentado adiante, item 3).

A invocao s Musas no promio da Teogonia, testemunho da confiana dos

poetas antigos no poder das deusas: , , . , 105 , , . , , , 110 , . , , , . (Teog. 10415). Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto, gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos, 105 os que nasceram da Terra e do Cu constelado, os da noite trevosa, os que o salgado Mar criou. Dizei como no comeo Deuses e Terra nasceram, os Rios, o Mar infinito impetuoso de ondas, os Astros brilhantes e o Cu amplo em cima. 110 Os deles nascidos deuses doadores de bens, como dividiam a opulncia e repartiram as honras e como no comeo tiveram o rugoso Olimpo. Dizei-me isto, Musas que tendes o palcio olmpio, ds o comeo e quem dentre eles primeiro nasceu11. 115

Para os antigos, eram elas que passavam o dom e a matria do canto ao poeta, que

lhes servia de veculo.

Torrano (2001: 21) busca expressar a atitude dos poetas antigos em relao a

elas: A primeira palavra que se pronuncia neste canto sobre o nascimento dos Deuses e do mundo Musas, no gentivo plural. Por que esta palavra e no outra? Dentro da perspectiva da experincia arcaica da linguagem, por outra palavra qualquer o canto no poderia comear, no se poderia fazer canto, ter a fora de trazer consigo os seres e os mbitos em que so. preciso que o primeiro nome das Musas se pronuncie e as Musas se apresentem como a numinosa fora que so das palavras cantadas, para que o canto se d em seu encanto. O nome das Musas o prprio ser das Musas, porque as Musas se pronunciam quando o nome delas se apresenta em seu ser, porque quando as Musas se apresentam em seu ser, o ser-nome delas se pronuncia. (...) (...) A exortao "pelas Musas comecemos a cantar" diz tambm que tenhamos nelas o prncpio por que nos deixar guiar e exprime ainda a vontade de que seja pela fora delas que se cante. 11 Trad. de JAA Torrano. Os grifos, quando houver, so da autora.

20

No nem a voz nem a habilidade humana do cantor que imprimir sentido e fora, direo e presena ao canto, mas a prpria fora e presena das Musas que gera e dirige o nosso canto.

O procedimento grego de invocar as Musas ou outros deuses, atravessa o

perodo clssico e adentra o helenstico. Nas Argonuticas, Apolnio de Rodes invoca

as deusas em vrias passagens (1.22; 3.15; 4.15, 55256, 138192; cf. 4. 984). No

promio do primeiro livro, o autor se dirige primeiramente a Apolo; nota-se uma

mudana marcante na atitude do poeta, que se coloca enquanto sujeito, em primeira

pessoa, duas vezes (vv. 2 e 7):

, , , . (Arg. 1. 14)

Comeando por ti, Febo, as glrias dos homens antes nascidos eu lembrarei, os quais, pela boca do Ponto e atravs das Pedras Cianias, por ordem do rei Plias, ao ureo toso impeliram a bem construda Argo12. No verso inicial, a partir de Apolo, o poeta ele prprio, sublinha , relembrar as

glrias dos homens de um passado distante13 e, desta forma, anuncia o gnero do

poema. Segue, ento, breve apanhado acerca do orculo a Plias, o que d o motivo

para a expedio (os versos 24 passam a descrever a matria). Segundo Fantuzzi, s

mais adiante o poeta se dirige s Musas para que elas interpretem ou mesmo

inspirem o canto do poeta; enfatizando com este ordenamento a conscincia de seu

papel na autoria do poema em detrimento do papel da tradio (F. /Hunter 2004: 91).

. , , : . A nau os aedos de outrora ainda gloriam, feita por Argos, sob os conselhos de Atena.

12 A traduo das Argonuticas de F. Rodrigues Jr. 13 Ao apontar para a distncia temporal existente entre seu tempo e o de seus personagens, Apolnio enfatiza sua prpria distncia em relao aos argonautas e a todas as figuras da idade heroica. A distncia demarcada (cujas sementes se encontram em Homero) desses personagens manifestao de um posicionamento genrico consciente, caracterstica importante de toda pica greco-latina ps-homrica remanescente (Fantuzzi/Hunter 2004: 92).

21

Mas eu agora narrarei a estirpe e o nome dos heris, os caminhos do longo mar e o que realizaram vagueando. Que as Musas sejam as intrpretes deste canto. (Arg. 1.1822)

Segundo Green (1997: 21), a frase de abertura do poema (vv. 14 supracitados)

caracterstica do comeo de um hino ou invocao divina (de que aponta como

exemplo o H.h. 32. 1819, entre outros). Ela apropriada, porquanto fora um orculo

de Apolo o que dera incio busca pelo Velocino de Ouro e, sendo assim, segue que

Apolo a origem da obra; mas tambm acusa um resoluto e caracterstico desvio da

postura do aedo annimo, que convida a deusa ou Musa para cantar ou contar a

narrativa por meio dele, em direo assero protagoreana (homo mensura) do poeta

como responsvel de incio, com alguma assistncia divina mas, mais tarde, apenas

por si mesmo , pelo trabalho que apresenta e, portanto, com direito a todo o crdito

(Green 1997: 201).

E Apolnio pretende celebrar, no os feitos de heris (andrn), mas de mortais

comuns (photn), o que caracteriza certo rebaixamento da matria. Sua pica,

composta com a firme inteno de ser no-homrica, constantemente evoca versos de

Homero, ecoando e variando-os e, por criar cenas e personagens baseados nele, faz da

pica homrica o pano de fundo frente a que seu epos acentuadamente menos pico,

e, desta maneira, inovador sobressai.

Ao fim da passagem supracitada (1. 1822), Apolnio invoca as Musas para

que sejam as intrpretes hypophetores de seu canto; o termo capcioso e, segundo

Hunter (1993: 125), no traduz meramente "intrpretes" ou "insinuadoras", mas

"inspiradoras", mesmo, em toda plenitude potica do termo. O comentrio de Beye

(1982: 15), no entanto, se mostra arguto: o que Apolnio haveria de narrar seria a

verdade divina, bruta; as Musas se encarregariam de transform-la em arte, tornando-

a inteligvel.

No incio do livro 3 (vv. 15), a invocao a rato, Musa da poesia ertica,

abrange prospectivamente os livros 3 e 4, marcando, assim, a diviso central do

poema (Hunter 1989: 95) (embora o livro 4 tambm contenha invocao que remete

a Homero). Tambm mira a tentativa de conquistar o velocino na Clquida, da mesma

maneira que os livros 1 e 2 cobrem o incio da viagem e o livro 4 o retorno. O poeta

conclama que rato, Musa associada ao ertico (cf. Plat. Phaidr. 259cd), conte ao

poeta como se desenrolar o episdio (em que a paixo de Medeia o tema central e

possibilita a Jaso levar o velocino de volta Tesslia) e que afiance sua narrativa.

22

Apolnio exalta Erato, comparando seus dons aos de Vnus.

Segundo Zanker (1979: 71), a introduo do amor como um dos principais

determinantes do poema foi uma inovao de Apolnio, fato a ser enfaticamente

assinalado, dada a importncia conferida ao afeto no epos ovidiano. O tema, porm,

controverso: tanto sua tese de que o amor o tema central da pica como a crena de

que os livros 3 e 4 tm como tema central as mulheres, em detrimento dos homens,

protagonistas nos livros 1 e 2, so pouco convincentes segundo alguns (por exemplo

Green 2007: 252). Segundo Hunter (1989: 95), Apolnio tambm explora uma

associao tradicional entre ros e criao potica.

Os dois primeiros versos do livro 4 das Argonuticas ecoam os incios,

respectivamente, da Ilada e da Odisseia, por invocar deusa e Musa. O poeta invoca a

ajuda de uma Musa (vv. 15), que no nomeia: pede sua ajuda para narrar os

tormentos e planos de Media, tarefa de que se julga incapaz. Segundo Green,

nenhuma das explicaes heroica a elocuo definitivamente calimaquiana, e

no homrica (1997: 292), pois as alternativas espelham por demais dilemas

femininos caracterstica que tambm se far presente nas Metamorfoses.

Nos versos 138192, o autor reafirma que a histria pertence s Musas, e que

canta em obedincia a elas, delegando-lhes a responsabilidade pelos acontecimentos

que elas lhe teriam transmitido como verdade, ao narrar como os Argonautas

carregaram seu navio e equipagem nos ombros, por sobre as dunas do deserto da

Lbia em doze dias. O motivo desta declaraco, para Green (1997: 344), a absoluta

implausibilidade do bem documentado episdio (Pndaro, nas Pticas 4.2527,

concorda no nmero de dias), ciente de que sua audincia no tardaria a evocar como

as Musas se gabaram para Hesodo de contar mentiras smeis aos fatos atitude que

Ovdio emular em diversas passagens a ser comentadas adiante14.

Jovens e belas, as Musas, no perodo arcaico grego, eram veneradas e

invocadas nos poemas; paulatinamente, do perodo clssico ao helenstico, passam a

ser apenas invocadas, uma prtica que, aos poucos, se transforma em conveno. Ao

tempo da pica latina, de objeto de venerao passam a tpica, conforme veremos.

Calmaco, no seu extenso legos etiolgico em quatro livros, os itia, recorre

s Musas de modo diverso. Na passagem que abre o poema conhecida como "O

Sonho" Somnium o poeta apresenta a si prprio encontrando as Musas no monte

14 Notadamente no episdio de Minerva com as Musas e no mito de Orfeu.

23

Hlicon, e delas recebendo instrues, exatamente como acontece com Hesodo no

incio da Teogonia (vv. 22 34, citados p. 13). Os quatro livros so organizados15

pelo sonho hesidico, o qual desaparece nos dois ltimos mas retorna no fragmento

112, denominado "Eplogo". Nos livros 1 e 2, muitos, ou mesmo todos os

esclarecimentos etiolgicos so feitos a partir de respostas dadas pelas Musas a

perguntas que o poeta lhes faz. Segundo Fantuzzi, a forma da instruo agora

totalmente diferente daquela presente na pica tradicional: em vez de se retirar de

cena e permanecer apenas como figuras de fundo aps inspirarem o poeta com o dom

do canto, as Musas agora ficam a responder s questes que o prprio poeta vai lhes

colocando. Nos livros 3 e 416 Calmaco parece no mais usar o dilogo com as Musas

como expediente para estruturar a obra; em vez disso, itia individuais, de extenso

varivel, seguem-se uns aos outros sem passagens de transio, e a presena constante

das Musas d lugar ao prprio poeta e a uma variedade de diferentes narradores um

poeta h muito falecido, fr. 64; um cacho de cabelo, fr. 110; um muro falante, fr. 97.

De inmeras maneiras Calmaco estabelece Hesodo como seu modelo

potico, embora seu metro seja diferente compe em dsticos elegacos. O poema

termina com uma invocao s Graas (que, no por acaso, esto junto das Musas no

poema de Hesodo), que pode ser interpretada como um desejo, do prprio poeta, de

que elas passassem as mos untadas com leo sobre suas elegias, a fim de que

perdurassem por muitos anos (Calmaco fr. 9.1314 M.).

No decorrer do perodo helenstico, segundo Fantuzzi (2004: 1), percebe-se

que surge outra figura nos poemas, ao lado dos deuses, para afianar a origem da

obra: comparece a figura do antecessor ilustre a ensinar ao poeta novato, instru-lo

como proceder para construir a obra de que se encarregou ou verificar e ratificar a

propriedade do mtodo seguido pelo iniciante. Na prtica, ao combinar as duas sries de figuras as Musas e os mestres, ou modelos, poticos , como se os poetas helensticos houvessem convertido em vantagem para si a distino entre inspirao pelas divindades poticas, por um lado, e a primazia da tcnica ou engenho, techn por um outro; as duas agora formavam uma unidade poderosa, no mais um par de possibilidades opostas. (Fantuzzi/Hunter 2004:1).

15 A organizao interna da obra tem sido fonte de muita controvrsia e h muito que no poder ser conhecido a menos que apaream novos textos. 16 Convm acrescentar que muitas razes embasam a tese de que estes livros, mais o eplogo, foram acrescidos aos dois primeiros livros originais (escritos na juventude do poeta) muito mais tarde.

24

E este aspecto pode ser percebido com clareza nos poetas latinos. Segundo

Boyle, a partir do translado do primeiro canto da Odisseia para o latim, feito por Lvio

Andronico, a pica latina distinguiu-se por constituir um gnero de carter

"palimpsstico", pois muito do seu significado e importncia provinha de sua relao

com outros textos e de sua re-escritura textos especialmente gregos mas, medida

que a literatura se desenvolvia, latinos tambm. Da mesma forma como acontecia na

arquitetura, na escultura, na pintura, e tambm na esfera social e poltica, a poesia

latina, particularmente a pica, criava formas que reformavam incessantemente

realizaes anteriores. nio foi personagem notvel neste aspecto: o seu uso, talvez

extenso, nos Anais, no apenas das obras de Homero, Hesodo e Calmaco, mas

tambm daquelas de seus predecessores Lvio Andronico e Gneu Nvio, forjou o

modelo para seus sucessores, proporcionando pica dos grandes poetas latinos uma

profundidade, derivada destes processos alusivos, que fazia com que seus poemas

chegassem a rivalizar, em termos de intersse, com aqueles gregos que re-escreviam.

Virglio constitui o caso mais paradigmtico, pois estabeleceu o padro para os poetas

picos do perodo imperial e cuja influncia se percebe at a poca renacentista ,

ao explorar as propriedades semnticas da alusividade (Boyle 1993: 12).

Quinto nio foi o primeiro poeta a transpor o hexmetro, metro de origem

grega, para a lngua latina; para tanto, importou vrias regras quanto locao das

unidades rtmicas dentre os seis ps do verso e um complexo sistema de cesuras,

outras descontinuidades e pausas a serem alocadas em lugares fixos no interior do

verso; desta maneira, seu verso tendia regularmente ao padro regular (os primeiros

quatro ps podendo ser dtilos ou espondeus; o quinto, de regra dtilo, seguido por

um espondeu ou troqueu17 no ltimo p) com nfase na regularidade final do verso.

Com os Anais, poema que narra e celebra os feitos de grandes personagens

trata da histria do povo romano desde a queda de Troia at a tomada de Ambrcia, e

do retorno triunfal de Marco Flvio Noblior , nio ambicionava superar o poema

em versos saturninos de Gneu Nvio sobre a guerra contra Cartago (264241 a.C.),

Carmen Belli Poenici.

No prlogo da obra, o poeta deixa explcita a dependncia do modelo grego,

sobretudo homrico, o que facilmente identificvel na elocuo e na escolha mtri-

ca. nio narra como a "sombra" de Homero havia lhe aparecido e relatado que sua 17 Ainda que, ao que tudo indica, o troqueu, com a pausa de final de verso, se transformasse em espondeu.

25

alma, aps outras encarnaes, transmigrara para o seu prprio corpo episdio

claramente baseado na descrio do sonho que Calmaco apresenta nos itia. Segundo

Vasconcellos, o poeta j est a lanar mo do processo alusivo, a ser explorado com

mais consistncia por Virglio, na Eneida. Adianta que se encontram em germe nos

Anais uma vez que constituem os primrdios da poesia latina , "as sutilezas

alusivas que sero multiplicadas e refinadas por poetas das geraes seguintes,

especialmente por Virglio" (Vasconcellos 2001: 17). E, depois, Ovdio.

Segundo Natividade (2009: 16), nio tinha como modelo a pica homrica

mas, como obra de temtica histrica, seu poema aproxima-se da pica alexandrina

por narrar, em muitos casos, feitos histricos contemporneos. O poema resultante,

contudo, de narrao contnua em ordem cronolgica, acaba por distanciar-se da pica

homrica e tambm da calimaquiana, por ser muito longo.

O seguinte verso, que figura como o primeiro fragmento do primeiro livro dos

Anais, constitui uma invocao s Musas:

Frag. 1. Musae, quae pedibus pulsatis magnum Olumpum Musas, que com os ps fazeis vibrar o grandioso Olimpo18

Este verso considerado como o primeiro por certas indicaes restantes. O

nascimento das Musas, segundo Natividade, haveria se dado aps a vitria dos deuses

na guerra contra os Tits, pelo desejo da criao de cantoras para aqueles feitos. Em

dias de festa no Olimpo, cantavam e danavam ao som da lira de Apolo, seu protetor

da um de seus eptetos, Musagetes, o que conduz as Musas, fazendo vibrar a

morada divina (Natividade 2009: 16).

Ainda conforme Natividade, a expresso magnum Olumpum (do fragmento

acima) homrica (cf., e.g., Il., 1. 530), e prefigura o sonho do poeta nio com

Homero a ser narrado no poema e, assim, a afiliao literria de nio Homero seu

modelo , que pode ser discernida nos fragmentos 28. Outros crticos, pelo fato de as

Musas se apresentarem no verso como danarinas, veem no fragmento uma filiao

eniana ao promio de Hesodo (cf. Teogonia, vv. 18), no qual so apresentadas a

danar "em volta da fonte violcea com ps suaves" (vv. 34), e a fazerem "coros

18 Traduo de Everton Natividade

26

belos ardentes no pice do Hlicon", irrompendo com os ps19 (Natividade 2009: 17).

A palavra Musae em primeira posio no verso tambm o corrobora. Enfim, a

referncia de nio dana das Musas suscita muitas interpretaes20.

Homero comparece em um verso do fragmento 3 que termina com a palavra

poeta; o termo adquire em nio um significado especial, uma vez que este cultuava a

poesia trabalhada, afiliada grega, em oposio aos versos dos vates favorecidos

pelas Camenas. No sonho de nio, depois de declarar ser ele a sua reencarnao,

Homero faz uma breve exposio filosfica, recorda-se de ter j reencarnado na forma

de um pavo, e profetiza o sucesso dos temas e do poema que nio vai cantar

(Natividade 2009: 19).

Aps o sonho, nio parte para narrar as aventuras de Eneias, a partir da queda

de Troia, mencionando sua linhagem e incluindo um dilogo entre o heri e Vnus,

sua me. Conforme Natividade, ao iniciar sua narrativa pela queda de Troia, nio fixa

o ponto de partida de seu epos na cena final do poema homrico, fazendo de seus

versos a continuao da Ilada, de cujo autor se prope ser a reencarnao (2009: 22).

Continuao que ser retomada e desenvolvida por Virglio na Eneida.

nio produziu algo novo tambm por ter sido o primeiro entre os poetas

romanos arcaicos Gneu Nvio, Lvio Andronico e ele mesmo a utilizar o termo

Musae para referir as deusas inspiradoras do canto potico. Lvio Andronico (c. 280

c. 200), em sua traduo da Odisseia para o latim, invocara: virum mihi Camena

insece uersutum ("Canta-me Camena, o varo artificioso"), transpondo as musas

gregas para as entidades designadas Camenas, ninfas do canto proftico, divindades

tipicamente itlicas, silvestres e rsticas. E Nvio, no fragmento nouem Iouis

concordes filiae sorores (nove filhas de Jpiter, irms concordes), tambm parece

identific-las com as Camenas, o que possivel inferir (Skutsch, 1968: 18) com base

no seu epitfio: Immortales mortales si foret fas flere / Flerent diuae Camenae

19 Em traduo de JAA Torrano. 20 Natividade (2007: 1718) acrescenta que Bettini (1979: 105-110), no texto intitulado A dana das Musas, apresenta uma interpretao instigante para a operao eniana. Para ele, no se trata de ter o poeta pensado antes em um ou outro autor para estabelecer qual trao distintivo da figura mtica adotar na construo da sua poesia. Pensando na dana sacra do tripudium, praticada pelos Slios e pelos Irmos Arvais (cf. com. ao fr. 62), compara a descrio da dana das Musas enianas das virgens que entoaram o Hino a Juno escrito por Lvio Andronico no ano de 207 a.C. (cf. com. ao fr. 169), segundo Tito Lvio (XXVII, 37, 14). Assim, as Musas danam, em nio, segundo os ritmos, ritos e movimentos de uma dana sagrada romana, da mesma forma que as virgens do Hino a Juno: trata-se de uma apropriao cultural, com a insero de um trao grego oportunamente modificado no sistema constitudo da cultura romana (Bettini, ibid.: 109)". (Natividade, 2009: 17-8)

27

Naeuium poetam (Se aos imortais fosse lcito chorar mortais, as divinas Camenas

chorariam o poeta Nvio). Ainda segundo Skutsch (ibid., p. 144), por ser o primeiro a

utilizar o nome Musa, nio estaria expressando a sua inteno de conformar a poesia

romana mais cuidadosamente aos moldes gregos (Natividade 2009: 167).

Lucrcio, logo nos primeiros versos do promio de seu epos didtico De

rerum natura, louva Vnus como Aeneadum genetrix: Aeneadum genetrix, hominum diuomque uoluptas, 1 alma Venus, caeli subter labentia signa quae mare nauigerum, quae terras frugiferentis, concelebras, per te quoniam genus omne animantum concipitur uisitque exortum lumina solis. 5 Genetriz dos descendentes de Eneias, prazer dos homens e deuses, Vnus nutriz, que sob as lbeis constelaes do cu, enches de vida o mar que porta as embarcaes, as terras produtoras de frutos; por ti, cada uma das espcies de seres vivos concebida e, nascida, dirige os olhos para a luz do sol.

E descreve a deusa como a fora de vida de toda a natureza. Nos versos 218, o poeta

roga a Vnus que inspire seu poema, pois somente ela responsvel por tornar as

coisas deleitveis, e porque Mmio (amigo a quem dedica o poema) sempre fora um

favorito seu. Nos versos 2943 roga que a deusa interceda junto a Marte, de modo a

trazer a paz repblica romana.

Segundo Sedley, o aspecto mais intrigante do promio est nesta primeira

parte (vv. 143). Como podia Lucrcio, um epicurista, louvar Vnus como fora

controladora da natureza e suplicar para que esta interviesse nos assuntos humanos,

uma vez que, para os epicuristas, os deuses decididamente no intervinham de modo

algum nesses assuntos? Algo que o prprio Lucrcio, paradoxalmente, procede

imediatamente a defender no poema. Sedley garante ser possvel afirmar, sem

exagero, que Lucrcio passa o restante do poema procurando desdizer o que declarara

nos primeiros quarenta e trs versos. A explicao para isso, segundo Sedley, que

Lucrcio est a emular Empdocles em seu promio e, evidentemente, no pelo seu

contedo filosfico, mas como um antecedente, ou modelo, potico que admira (fato a

ser abordado adiante, ao comentar o mito de Pitgoras) (Sedley 2007: 76).

A invocao Musa comparece tambm na Eneida (1.811), de Virglio. Os

eventos nela descritos formam uma continuao da Ilada e, retomando nio, so

contemporneos da errncia de Ulisses relatada na Odisseia; retomam tambm

28

Apolnio21. Os poetas do perodo ocupavam-se bastante de temas ligados a Roma,

porm no havia ainda, entre os latinos, quem se comparasse a Homero. Augusto e o

estado romano careciam de uma pica nova, em grande escala, e Virglio preencheu a

lacuna a Eneida no era apenas mais um poema sobre um heri e seus feitos, mas

continha um propsito poltico bem definido: glorificar a cidade de Roma e seu

destino imperial.

Segundo Quinn (1968: 293), precisamente porque o objetivo da Eneida no

era ser apenas mais uma pica heroica, que Virglio esforou-se por enfatizar sua

aderncia forma homrica. Quinn tambm chama ateno para a postura crtica de

Virglio, referente ao que chama de "impulso heroico" aspecto, segundo ele,

recorrente no poema.

O promio da Eneida composto pela proposio (primeiros sete versos) a

sintetizar o entrecho e, pela invocao Musa (quadra restante), separada da

proposio (ao contrrio dos promios homricos) , obedece conveno pica e

alude aos promios homricos (alm de conter modificaes provenientes da pica

helenstica):

Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris 1 Armas canto e o varo que, xul de Troia Italiam, fato profugus, Lauinaque uenit Primeiro os fados prfugo aportaram litora multum ille et terris jactatus et alto, Na Hesprica Lavino. Em mar e em terra ui superum, saevae memorem Iunonis ob iram; Muito o encontrou violenta mo suprema, multa quoque et bello passus, dum conderet urbem, E o lembrado rancor da seva Juno; inferretque deos Latio: genus unde Latinum, Muito em guerras sofreu, na Ausnia quando Albanique patres, atque altae moenia Romae. 7 Funda a cidade e lhe introduz os deuses: Musa, mihi causas memora, quo lumine laeso, Donde a nao Latina e Albanos padres quidue dolens regina deum tot uolvere casus E os muros vm da sublimada Roma. insignem pietate uirum, tot adire labores, Musa, as causas me aponta, o ofenso nume, impulerit. tantaene animis coelestibus irae! 11 Ou por que mgoa a soberana dia (En. 1.17) Compeliu na piedade o heri famoso A lances tais passar, volver tais casos. Pois tantas iras em celestes peitos! 22

Segundo Vasconcellos, a proposio da Eneida evoca claramente aquela da Odisseia

(reproduzida pg. 16), porm remete-se tambm ao promio da Ilada (p. 15) e ter-

ceira maior obra-modelo, as Argonuticas.

21 Na obra potica de Apolnio constam poemas hexamtricos sobre a fundao de cidades (de que restam apenas fragmentos), explorando-lhes o passado mtico destarte mantm paralelo com a obra de Calmaco (vide Atia 2, sobre a origem da Siclia). 22 Trad. de M. Odorico Mendes.

29

Em relao Odisseia, so vrios os pontos em comum: termos e um tropo se

repetem sendo que Virglio parece s vezes traduzir os versos homricos,

reproduzindo-lhes inclusive o andamento sinttico. As semelhanas, porm, fazem

mais ressaltar as diferenas de sentido: Odisseu inicia sua viagem errante depois de

ter ajudado a destruir a cidade de Troia e seu povo, ao passo que Eneias, profugus,

deixa a cidade arrasada comandado pelo destino, e viaja para fundar e construir uma

cidade nova, a futura Roma, conduzindo os enadas, os ltimos representantes dos

troianos e ancestrais do futuro povo romano. por meio deste paralelismo que

Virglio torna claras as diferenas entre os dois heris: Eneias um fundador, e sua

viagem, comandada pelo destino, tem um objetivo nobre. Note-se como o nome de

Roma ocupa lugar importante e significativo na proposio o ltimo, final , uma

vez que constitui o fim ltimo da errncia de Eneias (Vasconcellos 2001: 11215).

Ainda segundo Vasconcellos, Virglio estabelece no incio da proposio as

duas partes que compem seu epos:

arma uirumque cano

reproduzindo logo no primeiro hemistquio do primeiro verso, a estrutura bipartida da

obra. Por arma, Virglio refere-se metonimicamente chamada parte ilidica da

Eneida, os combates travados por Eneias no Lcio para fundar a cidade (livros 712);

e por virum odissaca, a errncia do heri at chegar Itlia, enfrentando a ira de

Juno (livros 16). A seguir (vv. 14) apresenta a sntese da primeira parte, para depois

(vv. 57) versar sobre a segunda, fazendo uma sntese das batalhas e indicando sua

finalidade: a construo de uma cidade e a introduo nesta dos deuses troianos,

possibilitando o surgimento futuro de Roma, tema que permeia o poema, enunciado

em profecias e em falas divinas.

Ao passo que clara a retomada do promio da Odisseia, a aluso de Virglio

Ilada, no promio, textual e mais sutil sua proposio reproduz o mesmo

nmero de versos do promio ilidico e, como no poema homrico, evoca o motivo,

mencionando as guerras e a ira de Juno, que por sua vez evoca aquela de Aquiles,

alm de elementos rtmicos e sonoros sobre que no nos deteremos neste trabalho.

Vasconcellos (2001: 119) destaca que, na Ilada e na Odisseia, a invocao

fundida proposio (dirigida Ta, na primeira e Mosa, na segunda), e Homero

pede que a deusa cante por meio de sua poesia o canto que ser o poema; Virglio, por

sua vez, usa do verbo cano em primeira pessoa, assumindo-se como a fonte primeira

30

de seus versos, e invoca a Musa apenas para que ela, filha da Memria, lhe recorde as

causas da malevolncia de Juno.

E neste ponto que o poeta se remete a Apolnio, que no invoca a Musa, mas

dirige-se a Apolo no seu promio (p. 20), sob cuja inspirao o poeta se recordar da

saga a ser narrada. E, conforme vimos, nos promios homricos a invocao e a

proposio esto entretecidas, na Eneida, distintas (a proposio seguida da

invocao); tambm nesse aspecto, o promio virgiliano se aproxima daquele das

Argonuticas, em que a proposio est dividida em duas partes, separadas por um

relato que esclarece o motivo primeiro da expedio. Apolnio dirige-se no primeiro

verso do promio a Apolo, conforme explicado, para invocar as Musas somente no

ltimo.

Desta maneira, Virglio evoca em seu promio os dois poemas que constituem

sua fonte primeira, e tambm remete s Argonuticas, convidando o leitor a partilhar

de uma leitura em profundidade, intertextual, atitude que permear toda a obra, e que

se faz sentir desde a escolha de seu ttulo. (Vasconcellos 2001: 11222). E ao afirmar

"eu canto", afirma-se como autor legtimo do poema caminho que Ovdio, depois

dele, trilhar , no mais mero recipiente pelo qual a Musa sopra o seu canto ou

dependente de um deus para cantar.

E quando o poeta invoca a Musa, o pedido que faz a ela simples, apenas que

o esclarea a respeito dos motivos da mgoa da deusa Juno; sendo que estes, bem

como seu persistente antagonismo para com os troianos, eram conhecidos h muito

pela audincia versada na tradio grega: Homero detalha os antecedentes da mgoa

de Juno na Ilada. Vale citar Vasconcellos: ... a relao de Virglio com seu hipotexto sempre complexa: envolve reelaborao, confronto e incitamento identificao dos "desvios", jamais imitao mecnica e passiva. Temos insistido em que a presena de outros textos sob seu texto se destina a gerar sentidos, numa dialtica a que o leitor no deve ficar alheio sob pena de empobrecer decisivamente sua leitura. Partcipe ativo de uma decifrao que compreende operaes tais como a identificao do hipotexto e a anlise do sentido que a superposio de textos faz brotar, o leitor implcito constantemente provocado a comparar e distinguir. Permanecer no hipertexto, em leitura que no engloba as "fontes", condenar-se a no desfrutar de muitas riquezas, mais ou menos acessveis, da significao, como tambm o [...] a mera identificao dos passos imitados pelo poeta, se no atingirmos o cerne da ars virgiliana: criao de sentido pelo confronto do(s) subtexto(s) integrado(s) estrutura da obra (2001: 126). Conforme visto acima, ao afirmar fert animus na proposio de Metamorfoses,

Ovdio se coloca como sujeito que determina a matria de seu epos, participando de

jogo alusivo ao buscar a novidade. E o primeiro termo da invocao conclama os

31

deuses em seu conjunto para colocar o poema em movimento, dado que participam

ativamente na obra, como protagonistas que so em grande parte das histrias,

notadamente os comeos. Segundo Feldherr, o fato de que Ovdio inicialmente parece

subordinar a criao de seu poema ao mundo exterior (mutatas formas in noua

corpora dicere), fazendo-a dependente das mesmas foras animadoras (os deuses,

criadores do mundo real) para desenrolar-se, a presena enftica dos pronomes

pessoais reiterados nos dois ltimos versos do promio como em Apolnio e

Virglio , geram uma fora subliminar contrria em direo distncia e separao,

a indicar o papel do prprio autor na criao e definio do mundo que descreve

(Feldherr 2010: 2).

1.3 mutatas dicere formas Retornando proposio de Metamorfoses, o uso do plural pelo poeta

mutatas formas in nova corpora , sugere uma unidade composta para o poema, ou

seja, os vrios mitos que, interligados, formaro o todo. E o verbo utilizado para falar

sobre essas formas dicere, ou seja, no sentido mais amplo, "dizer", "contar",

"narrar" alm de indicar tratar-se de um epos, poema narrativo, e sugerir, talvez,

uma elocuo menos elevada que a da pica heroica, um termo cuja acepo

elaborada na tradio potica latina, o que procuraremos mostrar a seguir.

Segundo Predebon (2006: 14), "dicere prende-se a deknumi, "indicar", e a

dke, "justia", "aquilo que se indica e proclama como justo", tal como se v em latim

ius dicere, donde iudex, "juiz", e, como revela a cognao, significa exatamente

"indicar pela palavra" quer em sentido religioso, quer em sentido jurdico, quer,

ainda, em sentido potico e por consequncia ou particularizao significa "narrar"".

Na pica tradicional, de registro elevado, que narra os feitos de reis e heris,

consta geralmente o verbo cano que, basicamente, em sua acepo mais geral,

significa "cantar". Como curiosidade, Quintiliano ilustra a definio de um tropo com

este exemplo: Nam id eius frequentissimum exemplum est: 'cano canto', < et 'canto > dico', ita 'cano dico': interest medium illud 'canto'. (Inst. 8.6.38)

Pois este um exemplo utilizadssimo dela: cano equivale a canto, < e canto > a dico, logo cano equivale a dico: canto o termo do meio.

32

Quintiliano provavelmente se refere a uma dada acepo de canto (OLD, s.u. 4a): dizer

ou recomendar com premncia repetidas vezes; falar extensivamente acerca de algo.

Usa cantari neste sentido nas Inst. 8.3.76 um dos exemplos citados na entrada do

dicionrio.

Cano o termo de elocuo elevada que aparece no promio da Eneida,

moldada na tradio homrica. J dissero, com o sentido de (em acepo literria)

"arranjar", "pr em ordem", "examinar", "arguir", "discutir", (ou mais

frequentemente) "falar", "discursar", "tratar acerca de algo", "dissertar"23 , usado no

epos de Lucrcio:

Quod super est, uacuas auris animumque sagace 50 s lies da natureza traze, Memmio semotum ad curis adhibe ueram ad rationem, Socegada a razo, attento o ouvido, ne mea dona tibi studio disposta fideli Dons, que por ti dispuz com fiel cuidado, intelecta prius quam sint, contempte reliquas. Antes que os bem profundes, no rejeites. nam tibi de summa caeli ratione deumque Sobre as razes dissertarei contigo disserere incipiam et rerum primordia pandam 55 Da ordem do ceos, da essencia das deidades, unde omnis natura creet res, auctet alaque, Explicar-te-hei os atomos primeiros quoue eadem rurso natura perempta resoluat De que os entes construe, augmenta e cria quae nos materiem et genitalia corpora rebus A natureza, que s antigas formas, redunda in ratione uocare et semina rerum Quando destrudos so, manda volvel-os. appellare suemus et haec eadem usurpare 60 Tenho de lhes chamar primeiros corpos, corpora prima, quod ex illis sunt omnia primis. Princpios, corpos genitaes, matria, (Da Nat. vv. 1. 5061) Visto que dlles se origina tudo.24

Como se pode notar, dissero termo mais apropriado natureza do discurso didtico

de Lucrcio, de cunho filosfico e cientfico. Nas Gergicas 1. 5, Virglio usa cano; canimus consta em Valrio Flaco e em

Lucano; Estcio, na Tebaida, canam; nos Fastos 1. 2, obra em versos elegacos de

registro elevado, que o prprio Ovdio compara pica, consta cano. Na pica

homrica, aeide, na Ilada, corresponde a cano, e ennepe foi traduzido por insece por

Lvio Andronico inseco o termo que mais se aproxima semanticamente de dico,

pois significa dizer, narrar. Excetuando-se as Metamorfoses, o verbo dico aparece no

promio al mezzo, no livro 7, da Eneida e na traduo no literal da invocao da

Odisseia feita por Horcio. Este a refere na Arte Potica, como exemplo do que um

poeta poderia fazer para no incorrer no equvoco da pomposidade, da afetao

desnecessria. Para tanto, usa de sua prpria traduo:

23 A Latin Dictionary, Lewis & Short. 24 Trad. de Antonio J. de L. Leito.

33

Quanto rectius hic, qui nil molitur inepte: dic mihi, Musa, uirum, captae post tempora Troiae qui mores hominum multorum uidit et urbes (Ars P. 1402) Quo mais corretamente este, que nada prepara ineptamente: / "Diz-me, Musa, o varo que, aps o tempo de Troia capturada, / viu cidades e os costumes de muitos homens"25. Horcio aparentemente opta por dico por consider-lo registro mais adequado, talvez

por ser mais natural, espontneo menos estudado26.

A sexta buclica virgiliana (vv. 38), ao retomar em vrias passagens o

fragmento dos Atia, Aos Telquines, de Calmaco, sugere haver uma diferena, seja

de elocuo ou semntica, no emprego de cano e dico: o primeiro "canta" reis e

batalhas, o segundo "diz" singelo poema:

Cum canerem reges et proelia, Cynthius aurem Como eu cantasse reis e batalhas, Cntio uellit et admonuit: 'pastorem, Tityre, pinguis puxou-me a orelha e advertiu-me: 'ao pascere oportet ouis, deductum dicere carmen.' pastor, Ttiro, pingues ovelhas cabe nunc ego (namque super tibi erunt qui dicere laudes, pascer, dizer singelo poema.' Agora eu Vare, tuas cupiant et tristia condere bella) (pois ters quem deseje dizer teus agrestem tenui meditabor harundine Musam. louvores, Varo, e funestas guerras celebrar) pratico, com tnue flauta, agreste Musa27.

A passagem indica haver nuances a distinguir os dois termos, que devem ser

exploradas. O poeta relata que "cantava" reis e batalhas, maneira da tradio pica, e

aconselhado por Apolo pois que era um pastor e assim caberia a ele compor

clogas, poesia campestre , a usar o termo mais adequado, dicere, possivelmente por

ser menos solene, mais apropriado ao seu epos. Segundo esta conjectura, cano seria

usado para referir especificamente matria heroica, o epos de elocuo elevada,

enquanto dico seria mais adequado a outros modos de poesia pica. Mas h outra

hiptese a levantar.

A distino parece clara na passagem supracitada, no entanto, o prprio poeta

emprega dico no promio segunda metade do poema, a parte ilidica da Eneida

(obra em doze livros), notadamente guerreira. No promio obra como um todo, no

livro 1, o poeta usa o termo cano (conforme p. 28). Na diviso central do poema,

25 Trad. de H. Penna e Sandra Bianchet. 26 Em conformidade com seus preceitos, nas odes 1.6.5 e 1.19.12 Horcio usa dicere para referir a matria da Ilada e da Odisseia; na ode 4.15.1, endereada a Augusto, ao relatar sua tentativa frustrada por Apolo de alar-se pica guerreira, usa loqui, tambm menos elevado. 27 Trad. de A. Predebon (2006: 17)

34

porm, ao iniciar a metade ilidica a parte mais heroica, posto que guerreira e que,

portanto, deveria ser tratada com maior elevao , Virglio emprega dico na pro-

posio, aps pedir inspirao Diva:

Tu uatem, tu, diua, mone. Dicam horrida bella, Dicam acies actosque animis in funera reges Tyrrhenamque manum totamque sub arma coactam Hesperiam. Maior rerum mihi nascitur ordo. (En. 7.414) "Tu o teu uate, Diua, Tu inspira! Direi hrridas guerras, Exrcitos direi, e reis levados Pela ira morte, e os esquadres Tirrenos, E toda a Hespria em armas reunida. Maior se me apresenta ordem das cousas".28

A passagem tem elocuo elevada, como atesta o vocabulrio e a invocao

musa. E o promio introduz a parte mais importante maior rerum ordo da matria

da Eneida, em que o heri concretiza os feitos a que estava destinado, culminando na

fundao de Roma. Aventaremos uma explicao para o uso de dico no promio em

questo.

O heri de Virglio, embora dotado de muitos traos do heri homrico,

tambm prefigura o ideal distintamente romano: a imagem do prfugo a deixar as

runas de Troia levando em segurana consigo os deuses penates, o filho pela mo e o

pai nos ombros, fizeram dele modelo exemplar. Obediente vontade divina e

devotado famlia, o heri aos poucos aprende a sacrificar a felicidade individual e a

glria pessoal aos chamados do dever cvico a pietas, valor maior romano, o

distingue.

Nota-se, na primeira parte da obra, que Eneias amide retratado como heri

sem muito entusiasmo, nostlgico, a olhar para trs, a seu passado troiano, em vez de

olhar ao futuro romano, adiante. Ele se v oprimido por dvidas, ansiedades, e pelo

peso da responsabilidade pelas pessoas que traz consigo. Aps sete anos a vagar

errante, quando a viso dos campos da Ausnia que busca parece finalmente a seu

alcance, Eneias perde o pai e se desvia da rota: ento, quando sua fora de vontade

atinge o ponto mais baixo, que aporta na orla cartaginesa e ter de resistir ao mais

28 Trad. de Barreto Feio.

35

poderoso obstculo a se antepor ao cumprimento de seu destino romano na parte

odisseica do poema.

Sua visita ao submundo, no livro 6 (ltimo livro da parte odissica), aps

chegar Itlia, faz com que possa dar um ltimo adeus a esse passado e que

vislumbre a promessa futura de um povo romano como uma forma de compensar sua

perda. um marco divisrio: Eneias compreende que o objetivo de sua busca

estabelecer as fundaes para erguer algo novo e grandioso (e no simplesmente

construir uma cpia da cidade de Troia).

Na metade ilidica do poema, Eneias aparece mais consciente de que a tarefa

no ser cumprida sem maior esforo e comprometimento de sua parte: deve

demonstrar mais independncia frente vontade divina deixar de ser mero joguete

para poder tomar o crdito por seus feitos. Como que a emular a mudana na atitude

de seu personagem, possvel que Virglio tenha optado por dico como forma de

afirmar tambm sua prpria vontade (em detrimento da inspirao divina) e

autoridade, pelo relato dos acontecimentos a partir deste ponto, que passam a ser

considerados quase como histricos: Eneias triunfa sobre os habitantes da regio,

desposa Lavnia, filha do rei Latino, funda a vila de Lavnio, no Lcio, e tem por

sucessor seu filho Ascnio, ou Iulo, que erguer Alba Longa e de quem descendero

Numitor, Rmulo e a linhagem de Julio Csar a gens Julia; acontecimentos, bom

lembrar, que no so narrados diretamente mas anunciados em profecias, etc.

nesta parte do poema, tambm, que a vitria do protagonista comea a

prefigurar o triunfo do prprio Augusto filho por adoo de Jlio Csar, logo,

descendente direto de Eneias , e que cresce a relao entre eventos desenvolvidos no

poema e acontecimentos histricos reais, fazendo com que a percepo da distncia

histrica entre eles seja atenuada pela intrincada correlao de detalhes engendrada

pelo poeta.

Finalmente, a utilizao de dico por Virglio parece estar ligada ao fato de que,

a partir desse ponto, ele est a narrar eventos que, supostamente, se passam no mais

no tempo mtico tempo em que os deuses mantinham pleno domnio sobre as aes

dos personagens , mas em um tempo que o poeta almejava que fosse percebido j

como histrico. A incluso de elementos que prefiguram situaes ocorridas na Roma

augustana s faz reforar a sensao de veracidade que o poeta deseja incutir ao que

relata no poema. E o termo dico, ento, se faz presente para emprestar autoridade ao

que narrado, a autoridade conferida pelo prprio poeta a narrar eventos "histricos".

36

Esta hiptese embasada por Habinek, como veremos a seguir a distino entre

cano e dico ser retomada logo adiante.

Thomas Habinek conceitua canto carmen, sem restringir-se ao epos como

fala ritualizada, e acresce que at os mais rigorosos defensores das tradies e gneros

individuais no mundo romano aceitam como canto todo o domnio das letras cuja

apresentao era oral ao menos a ponto de no neg-lo. A questo da ritualizao

Habinek defende carmen, (canto, song) como sendo a fala, sermo, ritualizada ,

justamente a emergncia, no decorrer do tempo, da autoridade do canto (Habinek

2005: 57), sendo que o funcionamento do sistema cultural romano baseava-se na

distino crucial entre fala ritualizada canto , e a fala usada na comunicao

cotidiana.

Habinek distingue loquor usado para a atividade corriqueira da comunicao

humana ; e cano (e seus derivativos cantus, cantio, canticum, carmen) a fala

tornada especial pelo uso especializado da dico (2005: 61), metro regular, acom-

panhamento musical, figuras de lingu