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CAPÍTULO 1 O MONASTÉRIO DOS SÁBIOS: O SENTIDO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS 1. Quero começar este trabalho interrogando-me sobre esta esfin- ge discreta que se chama, magistralmente, ciência do direito. A história das verdades jurídicas no 1 ocidente, como discurso' estruturador da instituição social, é uma palavra enigmática. A ciência jurídica, como discurso que determina um espaço_ poder sempre obscura, repleta de segredos e silêncios, constitutiva de múltiplos efeitos mágicos e fortes mecanismo de ritualização para a ocultação e clausulas técnicas de manipulação social. Enigmático, coercitivo e canônico, o conhecimento do direito responde em alta medida a nossas subordinações cotidianas e à versão conformista do mundo que fundamenta a sociedade instituída. Respaldado na funcionalidade de suas próprias ficções e fetiches a ciência do direito nos massifica, deslocando permanentemente os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-se, assim, menos visíveis. 22 Claramente, o saber jurídico aposta na racionalidade para garantir 1 Existe muitas controvérsias em torno do que pode ser entendido por discurso. Em relação aos objetivos deste trabalho o caracterizarei superficialmente como a linguagem vista globalmente desde a perspectiva de suas condições de produção, circulação e consumo. Por outro lado, também me importa caracterizá-lo como a linguagem compreendida a partir de seu funcionamento intertextual. 2 Ver a respeito: Ricardo Entelman El Discurso Jurídico: perspectiva psicoanalítica y otros abordajes epistemológicos. Nota introdutória. Hachette, Buenos Aires. 1982.

O Monasterio Dos Sabios

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Busca da sabedoria, uma introdução ao direito jurídico

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CAPÍTULO 1

O MONASTÉRIO DOS SÁBIOS: O SENTIDO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS

1. Quero começar este trabalho interrogando-me sobre esta esfin-ge discreta que se chama, magistralmente, ciência do direito.

A história das verdades jurídicas no 1ocidente, como discurso' estruturador da instituição social, é uma palavra enigmática. A ciência jurídica, como discurso que determina um espaço_ poder sempre obscura, repleta de segredos e silêncios, constitutiva de múltiplos efeitos mágicos e fortes mecanismo de ritualização para a ocultação e clausulas técnicas de manipulação social.

Enigmático, coercitivo e canônico, o conhecimento do direito responde em alta medida a nossas subordinações cotidianas e à versão conformista do mundo que fundamenta a sociedade instituída.

Respaldado na funcionalidade de suas próprias ficções e fetiches a ciência do direito nos massifica, deslocando permanentemente os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-se, assim, menos visíveis.22

Claramente, o saber jurídico aposta na racionalidade para garantir

1Existe muitas controvérsias em torno do que pode ser entendido por

discurso. Em relação aos objetivos deste trabalho o caracterizarei

superficialmente como a linguagem vista globalmente desde a perspectiva de

suas condições de produção, circulação e consumo. Por outro lado, também me

importa caracterizá-lo como a linguagem compreendida a partir de seu

funcionamento intertextual.

2 Ver a respeito: Ricardo Entelman El Discurso Jurídico: perspectiva

psicoanalítica y otros abordajes epistemológicos. Nota introdutória. Hachette,

Buenos Aires. 1982.

o poder, incrementar a organização hierarquizada do espaço social e regular, veladamente, o imaginário jurídico político de nossa experiência cotidiana.

Como discurso encantado, a ciência do Direito participa do sistema de representações míticas que governam a produção dos dispositivos de submissão. Estes, em geral, respondem não só a certos efeitos deliberados como também a um conglomerado difuso de efeitos mágicos provocados pela ordem simbólica da sociedade.

No terreno especifico do saber jurídico podemos dizer que os atores sociais não se encontram unicamente submetidos ao sistema de coerções determinado pela ciência do direito, sobretudo eles se encontram atraídos por sua magia.

A força comunicacional ciência jurídica passa vitalmente por um jogo de significados ilusórios; um território encantador onde todos fazem de conta que o Direito, em suas práticas concretas, funciona à imagem semelhança do discurso que dele fala.

Desta maneira, a montagem mítica que impregna o discurso jurídico ocidental gera uma relação imaginária entre o saber e as práticas do direito.

Isto produz um campo simbólico (um eco de representações e

idéias) que serve para dissimular conflitos e antagonismos que se desenvolvem fora da cena linguística. Eles existem na historia e são negados por um conhecimento convertido em uma potência independente, abstrata, que se levanta por sobre os homens. As chamadas “ciências jurídicas” 3 aparecem, assim, como um conjunto de técnicas de “fazer crer" com as quais se consegue produzir a linguagem oficial do direito que se integra com significados tranquilizadores, representações que têm como efeito impedir uma ampla reflexão sobre nossa experiências sócio-política. Idéias dispersas e efeitos fabuladores que contêm omissões intencionais sobre o saber jurídico, a lei e o poder. Neste sentido a linguagem oficial do direito determina uma multiplicidade de efeitos dissimuladores. Deles quero ressaltar, em primeiro lugar, a capacidade do campo simbólico do direito para ocultar a genealogia e o

3 Uso o plural em relação à expressão "ciência do Direito" por que a despeito do que se

aprende nas aulas universitárias, a reflexão sobre o Direito não pode ser resolvida a partir da idealização de um domínio unificado para os processos históricos de constituição do saber jurídico. Como poderíamos amalgamar, por exemplo, a análise estrutural e sistêmica com a jurisprudência como prática cognitiva ou com as preocupações comprometidas com um saber sobre a justiça

funcionamento institucional do discurso jurídico. Nunca aparece manifesto o poder desse discurso, nem sua função como discurso do poder e sobre o poder.

Em segundo o lugar quero me referir a falta de esclarecimento,

pela ciência jurídica, do caráter mitológico de sua racionalidade subjacente. O pensamento jurídico omite manifestar-se sobre os modos em que a gramática de produção, circulação e recepção de seus discursos desvincula as verdades que constrói de sua realidade política.

Em terceiro lugar quero registrar a interdição que a dimensão

simbólica do direito de provocar para negar a divisão do social, simulando linguisticamente sua unidade proclamando ilusoriamente o fim de toda contradição, tanto no espaço social como no tempo histórico, diluindo a singularidade dos desejos e as diferenças culturais na ilusão da igualdade de todos perante a lei.

Em quarto lugar, quero sublinhar a existência de mecanismo

ilusório que põem em funcionamento o sistema dominante das representações jurídicas sobre o Estado: encarnação do interesse geral, protetor desinteressado dos desejos coletivos e a personalidade moral da nação, forma racionalizada do exercício da coerção, que permite aos homens não obedecer aos homens senão aos valores sociais (expressos em normas jurídicas). Uma estrutura de instituições sem história (reduzidos em ultima instância a uma visão do Estado como ordenamento jurídico), que serve para construir a imagem de uma sociedade homogénea, harmoniosa, uma sociedade na qual o conflito adquire sempre o sentido de uma transgressão legal.

Tomando distância deste sistema de representações quero dizer que a razão de Estado fica identificada com a racionalidade do saber jurídico e da lei positiva, como uma forma de impor-nos interesses e desejos legalizados quer dizer, que estes passam a ser os mesmos desejos e interesses que outorgam consistência simbólica ao Estado. Esse obscuro e discreto "objeto" de desejo e submissão.

Por último, me parece importante apontar o fetichismo das

normas jurídicas que dissolvem na lei todas as dimensões do poder do

Estado, atribuindo assim, à ordem legal uma qualidade que parece intrínseca (a obrigatoriedade) quando, em realidade, essa qualidade pertence não as normas positivas, mas ao tipo de relações sociais reais das quais as normas jurídicas são sua expressão. Da mesma maneira que a mercadoria não cria a mais-valia, realiza-a no momento de intercâmbio, a norma jurídica não cria verdadeiramente a obrigação, realiza-a no momento do intercambio social, quer dizer, que a mercadoria na esfera econômica cumpre o mesmo papel que a norma na esfera jurídica4. Assim, no mundo do direito, graças ao fetichismo das normas, tudo parece ser objeto de decisões, da vontade, fruto de atos pessoais, em uma palavra: encarnação da Razão. Nunca surge manifesta a densidade de relações que não são queridas, as coisas às quais os homens estão vinculados, as estruturas e as instituições, que censuram permanecendo invisíveis. E graças a este fetichismo da norma que se obtém uma generalização abstrata da ordem legal e das pessoas jurídicas, que permite representar a unidade social de urna maneira simultaneamente imaginária e real.5

Sobre estas bases o pensamento jurídico de corte liberal articula as representações do Estado e do direito apresentando o primeiro como sujeito externo à sociedade, que encarna o bem comum, fundamentando sua ação e existência racionalizadora no direito.

2. A produção e reprodução da língua legítima (a linguagem oficial

de um povo) se encontra vinculada ao processo de constituição do sistema de representação que constitui o estado como dimensão simbólica das re1açõess de poder e dos dispositivos de vigilância e disciplina das condutas cotidianas. Desde esta perspectiva semiologicamente caracterizada como um modo simbólico da apreensão e integração do mundo social. Estamos diante de uma forma social englobante a permite consagrar - além das contradições -. Uma versão unificada do espaço político e das relações de poder, quer dizer, urna forma modelo que serve para representar ideologicamente o funcionamento integrado (operando ao mesmo tempo como fundamento de legitimação) da variedade de lugares onde desenvolve alguma forma

4

Miaille, Michel. Urna Introdução Crítica ao Direito. Lisboa, Moraes Editores, 1976, P.90.

5 Idem p. 89 e 90.

de poder.6 O estado pode desta maneira, ser descrito como fundamento

simbólico de um sistema de instituição. É o poder mistificado em um discurso unitarista que encarna a autoridade e nos brinda segurança.

O estado como discurso de poder a vigilância e a disciplina social

supõe a existência de uma língua legitimas que censura e manipula o imaginário dos sujeitos para constituir a cultura oficial.

Coincido com Félix Guattari7 que o conceito de cultura – vinculado

a linguagem legítima – profundamente totalitário. É uma maneira de condensar, em processos semiológicos unificadores, as atividades de orientação no mundo das relações sociais, econômica e politicas Campos inteiros do saber são eliminados para remeter os homens a

6 Perguntar-se sobre a natureza do Estado implica a busca de um

critério que permite pensar como unidade uma multiplicidade de indivíduos e de atos sociais, instituições e modos de operacionalizar o exercício do poder. Para mim a natureza desta unidade é semiológica, surge de um efeito ideológico de significação.

Kelsen, por exemplo, tentou estabelecer o critério de unidade para este conceito, desde uma perspectiva estritamente jurídica, identificando-o com o sistema de normas integrantes do direito positivo. O objetivo de Kelsen não é o meu: o autor vienense estava preocupado pela conceitualização do Estado para satisfazer suas pretensões epistemológicas encaminhadas para o estabelecimento de uma ciência estrita do Direito. Minha preocupação, pelo contrário, está dirigida ao diagnóstico dos efeitos políticos desta noção na sociedade. Por isso preciso recuperar a semiologia e a psicanálise, situando a questão da conceitualização do Estado - a partir de um critério de unidade no campo das dimensões míticas de significação, ou melhor como uma forma fetichizada de representar o "outro cultural". O Estado seria, assim, um "operador totêmico", quer dizer, um coágulo de ficções e fetiches, um condensador significativo, um "topos lógico" que mobiliza as crenças para a produção de desejos, poderes e saberes dominantes. E o lugar de formação da identidade cultural

7Ver a respeito: Félix Guattari. Micropolítica. ' cartografia do desejo, Petrópolis,

Vozes. 1985. p. 15 e ss.

uma esfera simbólica altamente padronizada a favor do modo de semiotização dominante. Isso permite que o poder hegemônico se apodere da subjetividade, submetendo a seu controle a singularidade dos desejos. As significações da cultura oficial vão tecendo o conjunto de crenças e ficções (o pensamento simbólico), que permite instituir a disciplina e o conformismo na sociedade.

Esta sequência reflexiva permite entende o Estado como lugar de

realização de uma intertextualidade totalitário 8 . O que se pretende afirmar é que a cultura estatizada produz indivíduos normalizados, articulados uns aos outros conforme sistemas hierárquicos, sistemas de valores e sistemas de submissão dissimulados. Assim, pode-se afirmar a existência em nome do Estado, de uma atividade produtora de subjetividade. Não só uma atividade produtora da subjetividade. E dos desejos individuais, senão também da subjetividade social. Nossos sonhos, fantasias e paixões raramente escapam a essa grande máquina de produção da subjetividade. 9 Os atos que se podem considerar espontâneos e livres dos controles da língua oficial, não programados pelas dimensões simbólicas do Estado, são muito mais reduzidos do que se pode crer. O Estado, como cultura, pretende garantir uma função hegemônica em todos os campos em que pode manifestar-se nossa singularidade. Isto permite desenvolver um rigoroso sistema de

8

Em curta síntese pode-se caracterizar a noção de intertextualidade corno um processo relacional de discursos, textos, linguagens e pré-compreensões significativas. E o discurso dos "outros", funcionando como operador implícito de nosso discurso. E a memória semiológica de uma comunidade que influe, de forma velada, aprisionando em um pré-moldado significativo o futuro dos discursos (sem que isto determine necessariamente a clausura do infinito das significações). Também, pode-se dizer que a intertextualidade é um "mais além" da conotação que aponta para a desorganização enigmática que envolve todo o discurso. Somos nós mesmos, ao escrever o falar, atra-vessados pelo entrelace discursivo que antecede nossa palavra e que é convertido em um canto de idéias anônimas que se instalam subjacentemente no discurso que estamos elaborando. Quando falamos de intertextualidade estamos querendo nos referir ao conjunto de significações socialmente disponíveis, mantidos como uma reserva produtora e interpretativa, como um complemento forçoso de nosso discurso. Ver a respeito meu trabalho A Ciência Jurídica e Seus Dois Maridos, editado pelas Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, RS, 1985. 9 Neste sentido ver: Felix Guatarri, op. cit., p. 25 e ss. Me importa destacar que a produ-

ção da subjetividade forma um sistema de exclusões, hierarquias e diferenças baseado num paradigma normativo da personalidade social.

interpretações uniformes, um código de fantasias relativas ao poder – com o com o qual se intenta recuperar e desativar o conflito social e individual - que facilita o enquadramento, dentro da ordem, das contradições sociais. Em suma, graças às funções simbólicas do Estado o lugar do poder se torna inacessível, É um lugar blindado pela censura, os segredos e os silêncios discursivos.

Para fazer funcionar uma sociedade democraticamente

precisamos alterar as dimensões simbólicas e o imaginário que consagra o Estado como uma instância da censura, do segredo e do silêncio. Esta tarefa exigirá a produção de um saber crítico que permita, por um lado, o enterro dos efeitos de submissão (à língua legítima) e, por outro lado nos faça aprender graças a esse enterro.

Uma sociedade democrática necessita desenvolver campos de

desejos singulares Guattari os chama "processos de singularização"10. Por seu intermédio se constituíram mecanismos de sensibilidade, formas de criatividade dirigidas à formação de uma subjetividade singular, assim como dispositivos destinados a transformar o tipo de sociedade em que vivemos e o tipo de valores que aceitamos sem sentir-nos protagonistas do processo que os consagrou como uma dimensão simbólica da instituição social. Desta forma, teríamos uma singularização existencial que coincidiria com um gosto de viver, com um desejo de protagonizar o mundo no qual nos encontramos e de reconhecer a legitimidade do con-flito na sociedade.

.

Desta maneira, o discurso social se converte em um território de

10

O termo "singularização" é usado por Guattari para designar os processos de afirmação de outras maneiras de ser, de outras sensibilidades diferentes das impostas pela produção social da subjetividade capitalista. Este autor também emprega a expressão "revolução molecular" para referir-se aos processos produtores da singularidade. E preciso ter presente que a autonomia de nossos desejos unicamente pode ser vivida a partir do vetor de singularidade

significações abertas, em uma enunciação sem proprietários. Não exis-tem mais os donos do saber, do segredo, do silêncio e da censura. Nes-tas circunstâncias o discurso pode circular socialmente sem funcionar como cultura repressiva, como "cultura de pontífices". Particularmente adiro aos pensadores que não aceitam a distinção entre cultura erudita e popular. Prefiro falar, por um lado, de unia cultura oficial, conformista e repressiva, e por outro lado, de unm campo cultural de resistência, alta-mente subversivo e fortemente direcionado à formação dos sujeitos sin-gulares, autônomos.

Todos os fenômenos importantes da atualidade - anota Guattari - se encontram comprometidos com dimensões de desejo e subjetividade. Não se consegue explicar o que está acontecendo nas últimas décadas do século XX, se não se entende até que ponto se está concretizando uma produção de subjetividade coletiva, que com muita dificuldade se expressa como repulsa de um certo tipo de ordem social.

Vários fenômenos que estão ocorrendo atualmente não podem

ser explicados unicamente em termos de ideologia. A meu ver trata-se de certos processos de constituição da subjetividade coletiva, que não são a soma das subjetividades individuais, mas consequência do enfrentamento com as maneiras com que, hoje, se fabrica a subjetividade em escala planetária11.

11

"A cultura oficial produz um paradigma da personalidade socialmente aceitável. Esse

modelo se baseia em um rígido sistema de identidades e exclusões. Nasce, assim, o modelo de homem normal e de homem excluído. Para este último resta: o impulso da, fuga, a experimentação de micropolíticas que permitam a desterritorialização (e não a captura) dos territórios conquistados pela cultura instituída. Desta forma precisam criar, a partir de seus desejos excluídos, modelos contraculturais de subjetivação, modelos de singularidade. Estaríamos diante de certas políticas de percepção e dos afetos já que estariam se enfrentando com processos de segregação, que atuam diretamente a nível dos corpos e dos desejos. Ocaso do Irã é um exemplo ainda mais complexo. Não rechaça os mecanismos repres-sivos da identidade social, só busca formar personalidades conformadas a um modelo teológico alternativo. Me parece mais interessante considerar os efeitos políticos dos movimentos minoritários, como um modo de ruptura com o padrão cultural do "homem obediente". Ver Félix Guattari, op. cit., p 55 e ss.

Retomando o tema do Estado, diria, que este pode-se tornar urna forma social democrática no momento em que os indivíduos tenham força para modificar a cultura oficial e suas formas instituídas de produção da subjetividade coletiva, superpondo-lhe a intertextualidade de um campo cultural de resistência. Quer dizer, quando a sociedade tem capacidade de criar e aceitar, junto à cultura legítima, a produção de unia subjetividade coletiva de resistência. O Estado será, então, um produtor democrático da subjetividade coletiva e individual. Isto não quer dizer que se renuncie institucionalmente à produção seriada e modelada (moldada) da subjetividade (isto seria uma utopia semiológica). Unicamente quero dizer que o jogo institucional tolera a circulação nos conjuntos sociais de uma subjetividade (expressa em domínios simbólicos e imaginários) de resistência. Afirmo isto porque parto da ideia que um Estado democrático possível não passa de um "Estado tolerante".

Quando os militares latino-americanos se consideraram os

legítimos guardiões, em última instância, do uso público do discurso estatal, quando a produção social da subjetividade se organizou a partir da chamada "ideologia da segurança nacional", surgiu uma situação de extrema intolerância com relação a qualquer forma - ainda que fosse um mero indício - de produção de uma subjetividade de resistência. Os regimes militares das duas últimas décadas mostraram uma sensibilidade muito aguda em relação ao caráter subversivo da produção social de uma cultura de resistência. Seu temor levou-os a desconfiar da eficácia dos mecanismos de recuperação ideológica 12 . Preferiram preservar-se reprimindo através do genocídio e o "semiocídio" a resistência cultural à sua vocação panóptica e a seus desejos de

12

A recuperação ideológica é um conceito que utilizo para fazer referência às ideias, discursos

e micropolíticas de resistência que são expropriadas pelo discurso da cultura oficial para

reforçar seus dispositivos semiológicos de identificação e segregação social, como seria o caso

da indústria da perversão, montada em torno do "gueto gay", ou as crenças machistas

incorporadas nos movimentos feministas. No caso do conhecimento jurídico também se vivem

processos de recuperação ideológica quando se tenta contaminar a teoria crítica, interpretando-

a a partir da visão de mundo juridicista.

A recuperação ideológica evita o estabelecimento de uma forma social democrática,

cristalizando no interior da cultura oficial, as tentativas de circulação social dos interesses e

dos desejos segregados. Uma forma social democrática só pode ser pensada como um lugar

político sem exclusões. Não pode existir uma forma social democrática com desejos segregados

e afetos excluídos

militarizar a língua legítima. Desta maneira o Estado converteu-se em urna forma-social extremamente autoritária: um exercício simbólico do autoritarismo que militarizou a vida cotidiana.

Resumindo a questão colocada, podemos falar de um processo

de produção autoritária da subjetividade quando as instituições criam a ilusão de um espaço social homogêneo, transparente e unívoco; um espaço onde os atores sociais ficticiamente se sentem pertencentes a urna Nação, graças ao efeito integrador dado por sua condição de simples consumidores do discurso autorizado; em contrapartida podemos falar de uma produção democrática da subjetividade, quando surgem, na sociedade, discursos de reformulação e resistência à disciplina e à vigilância impostas pela cultura oficial. No discurso de resistência, os atores sociais adquirem a estatura de criadores e não mais de consumidores passivos do discurso oficial.

O Estado autoritário procura realizar uma dupla exclusão dos

atores sociais. Em urna direção proclamam a menoridade cultural do povo e o impedem, com este argumento, de desenvolver práticas culturais autônomas13. Em outra direção impedem-nos de ascender à cultura dominante como emissores autorizados. Esta dupla destituição simbólica veta o direito do povo de ascender à plena cidadania. Existe um cidadão castrado na medida em que não se conta com as devidas garantias para que os atores sociais possam ser produtores autônomos do discurso social.

13

O modelo da personalidade obediente simula todos os seus dispositivos de exclusão

apelando para a ficção da igualdade de todos perante a lei e o fetiche da representação política. O paradigma normativo da personalidade social não proporciona nenhuma garantia para o exercício pleno da cidadania, por parte dos que ajustam sua existência ao modelo da personalidade "legitimia". Seu patriotismo simbólico não lhes dá nenhum passaporte para participar das decisões de sua sociedade. Tanto só que se identificam com as crenças do poder, como os segregados por elas, são excluídos dos mecanismos de decisão. Não basta assimilar-se para adquirir o direito de participar da sociedade. Inclusive as minorias totalmente excluídas possuem maior força política, na medida em que têm alguma chance de tomar consciência de sua segregação e experimentar, a partir daí, formas dissidentes de subjetivização. Ver a respeito: Marilena Chauí. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo, Brasiliense. 1985.

3. Sem sombra de dúvidas, posso situar dentro dos que atuam de

alguma maneira na produção social da subjetividade, na administração institucional da cultura legítima - os emissores autorizados a dizer as verdades das ciências do homem, no centro do círculo daqueles que detém o uso público da razão. A linguagem legítima se encontra, no essencial, Inter textualizada pelos saberes que integram o vasto campo das chamadas ciências do homem. Nesta perspectiva corresponde caracterizar o complexo discurso das "ciências humanas" como saber do Estado: uma informação que se apresenta como neutra para despojar o povo de sua participação política, para destitui-lo culturalmente, na ilusão de urna participação no conhecimento de verdades (de fato os atores sociais são convidados miticamente das verdades pontificadas sob ameaça da marginalização e da exclusão social); uma informação que se apresenta como objetiva para dissimular o fato de que as fronteiras entre o imaginário e a realidade unicamente podem ser estabelecidas por urna decisão política. Isto quer dizer que não existe nenhuma objetividade científica neste campo, como tampouco uma suposta neutralidade nas relações analíticas estabelecidas em seus discursos.

A produção social da subjetividade se encontra privilegiadamente

reservada aos especialistas dos diferentes saberes sobre o homem (aqueles que detêm conhecimentos e informações que os autorizam ao uso público das crenças e ficções instituídas). Eles são os encarregados de revelar a verdade como a palavra do enigma.

Desde esta perspectiva a função intelectual é imediatamente

política e a função política imediatamente sacerdotal. Recordemos que Deus se infere do clérigo. Não como maquinação mas como sua condição de possibilidade, o pedestal ilusório do seu poder real.

Todo discurso de verdade evoca uma realidade simbólica, que

atua como memória coletiva (u sistema de subjetividade coletiva) no seio das relações políticas. É o sentido comum (que não é outra coisa que a subjetividade modelada pela instituição social). Funcionando como ideologia, quer dizer, renunciando a ser um meio de compreensão do mundo para passar a ser um modo de aumentar a autoridade de alguns homens sobre outros. Assim, se consegue anestesiar os efeitos semânticos dos discursos de verdade. Deixa-se de relacionar as

palavras com o mundo, obtendo-se em troca uma incidência política nas relações entre os homens. Da mesma maneira, que a produção de bens impõe uma ampla gama de modos de relacionamento, a produção científica das palavras de verdade estabelece coercitivamente outra ampla gama de mediações entre os homens.

Não se pode, portanto, examinar o nascimento de um poder políti-co em forma autônoma, sem considerar o nascimento conjunto de um saber especializado e um imaginário gnosiológico a ele associado. As verdades são muito menos neutras do que parecem. Elas ordenam politicamente os acontecimentos humanos. A história das verdades sociais é a história de uma ilusão coletiva marcada pelo poder.

O lucro capitalista é fundamentalmente produção de poder

subjetivo. O lugar do poder subjetivo, por sua vez, passa pela produção das verdades sobre a forma da sociedade. Dentro deste sistema o indivíduo se encontra na posição de consumidor da subjetividade que circula Socialmente (consome sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de imagens, de inibições, de segredos e censuras, sistemas de automatismo, vigilância e disciplina, etc.).

Ainda, quando nos enfrentamos com as chamadas ciências

humanas devemos admitir que as formas que adquirem esses saberes dependem também da subjetividade coletiva instituída. Os especialistas se encontram também na posição de consumidores da subjetividade coletiva. Eles, inclusive, são duplamente consumidores da subjetividade instituída. Além da subjetividade que circula socialmente consomem a subjetividade específica que articula e controla a produção social das verdades. Os discursos de verdade nunca são resultado de um emissor isolado. Eles estão vinculados a uma prática comunitária organizada em torno de uma subjetividade específica dominante. Nenhum homem pronuncia legitimamente palavras de verdade se não é filho (reconhecido) de uma comunidade "científica", de um monastério de sábios.

Existem os patriarcas do saber, os decanos das comunidades científicas, que sempre necessitam de discípulos, precisam formar escola. Assim nasceu no ocidente cristão a instituição escolar. Se organizou o ensino porque existia a clara necessidade de converter, evangelizar para que o povo de Deus pudesse produzir. E esta necessidade, com outras roupagens, continua hoje comandando a produção social da subjetividade. A universidade contemporânea, todavia, sente a necessidade de converter, de evangelizar. Unicamente existem as verdades incorporadas a uma instituição, vinculadas a um sistema de interdições, segredos, e privilégios. De outra forma, o exercício do pensamento não se faz senão através do exercício da autoridade de forma articulada com a produção e difusão do poder. Falar, escrever, comunicar, implica pertencer a uma comunidade cultural simultaneamente linguística e política. Não há linguagens inocentes, cada uma cristaliza uma relação histórica de forças. No caso da comunidade científica é impossível penetrar nela, converter-se em um de seus emissores autorizados, se não se fala (ao menos como ritual de iniciação) a língua oficial do Estado, se não se aceitam os "padrões epistemológicos" que a cultura científica dominante impõe. Neste sentido, a verdade é sempre uma palavra do Estado. Ele exerce sobre as verdades uma tutela sutil, latente, não declarada, da qual é muito difícil escapas. Estamos falando, com outras palavras, do sistema de produção da subjetividade científica. Analisando, há alguns anos, estes mesmos problemas, para o caso específico da produção das verdades jurídicas chamei "sentido comum teórico dos juristas" ao sistema de produção da subjetividade que coloca os juristas na posição de meros consumidores dos modos instituídos da semiotização jurídica.

É claro que se pode suprimir a referência ao campo jurídico e falar do "sentido comum teórico" como um imaginário de referência a partir do qual se estabelecem as inibições, os silêncios e as censuras de todos os discursos das chamadas ciências humanas. O sentido comum teórico, como um quadro de referência imaginário permite que em nome da verdade se organize a vida social no interior de um grande paradoxo: em nome de uma razão madura (me refiro à razão científica) se consegue a infantilização dos atores sociais. Eles não conseguem mais pensar por si, pensam a partir da mediação que o Estado exerce sobre a produção, circulação e recepção de todos os discursos de verdade.

Examinando o papel que cumpre a formação de um campo

epistemológico, como forma de controle dos discursos de verdade, pode

constatar-se que sua função básica se encontra diretamente

comprometida com a produção estatal da subjetividade coletiva. O

discurso epistemológico não deixa de ser urna instância desse processo

de subjetivação. É um dos níveis constitutivos do sentido comum teórico

das ciências humanas. Por certo a epistemologia suprime a discussão

sobre o caráter social das verdades produzidas pelos diferentes saberes

sobre o homem, impedindo a compreensão de seu poder.

A tarefa epistemológica se revela como uma preocupação pelo

controle lógico-metodológico dos discursos de verdade e como uma

censura - em nome da neutralidade e da objetividade do saber - do valor

do conhecimento como empresa coletiva-institucional vinculada ao

processo da inserção dos atores sociais no sistema de subjetividade

dominante.

Na instância epistemológica junto a um discurso metodológico

manifesto se desenvolvem quadros de referência imaginários,

diretamente comprometidos com os sistemas instituídos de produção

social da objetividade. Neste sentido, o discurso epistemológico não atua

criticamente sobre o coração da subjetividade dominante. As grandes

questões epistemológicas não perseguem a subversão da subjetividade

instituída. Pretende ignorá-la em vez de tentar revelá-la. Desta maneira

o discurso epistemológico esconde sua própria pertinência ao sistema

da subjetividade oficial. Seu poder descansa precisamente neste

ocultamento.

Dito em outras palavras, a epistemologia não focaliza as

incidências do discurso científico na história e desta no discurso

científico. Isto permite ver que existe um funcionamento pré-discursivo

do sistema de significações que conforma a subjetividade das ciências

humanas como processo social. Há um nível de significações que

impregnam a ação social, atuando de forma bastante independente dos

significantes discursivos, não obstante cumprem um papel de peso na

eleição e na organização destes significantes. Essas significações

correspondem ao nível do imaginário social e de imaginário

epistemológico.

As diversas práticas sociais, inclusive a científica e a

epistemológica, desenvolvem significações imaginárias, que jogam um

papel central na organização dos discursos sociais, com

intertextualidade extra-discursiva. Quando um escravo, diz Castoriadis, é

linguisticamente definido como um "animal vocal", a relação de

sintagmas se produz por uma criação imaginária que nenhuma lei

discursiva pode explicar. Ela se explica por suas consequências sociais

como condição de existência da ação social14, pelo funcionamento social

do imaginário.

Como segunda tentativa de caracterização, chamo de sentido

comum teórico o complexo de significações pré-discursivas que

compõem, simultânea e articuladamente, o imaginário gnosiológico das

ciências humanas e de seu contorno epistemológico.

Se trata de uma atmosfera de significações sociais que permitem

que uma realidade e uma história construída incida sobre os sujeitos e

os discursos de verdade.

O sentido comum teórico, como conglomerado imaginário de

múltiplas instâncias significativas, não pode ser discursivamente

captado. Para revelá-lo precisamos de um diagnóstico derivado e

oblíquo, que transcenda suas marcas discursivas.

O sentido comum teórico precisa, assim, ser entendido como

uma racionalidade subjacente, que opera sobre os discursos de verdade

das ciências humanas. Esta racionalidade tem múltiplos modos de

emergência (surge como comportamento / modos de sensibilidade, de

percepção e de sexualidade / hábitos e fantasmas éticos, religiosos e

gnosiológicos / relações estereotipadas ou preconceituosas / dispositivos

de vigilância e disciplina / mitos, fetiches e operadores totêmicos / etc.) e

configura a instância de pré-compreensão do conteúdo e os efeitos dos

discursos de verdade das ciências humanas, assim como também incide

sobre a pré-compreensão que regula a atuação dos produtores e

usuários desses discursos.

14

'Castoriadis. Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e

Terra. 1982. p. 121

. O sentido comum teórico, ao estabelecer vinculações pré-atribuí-

das entre as significações provoca uma relação mágica com a ação, no

nível do conjunto de seus efeitos sociais.

A história não existe sem seus fantasmas radicais. Antes que a

racionalidade se manifesta expressamente no discurso de verdade,

existe um fazer histórico determinado por um universo de significações,

dado por um "mais além" do discurso. No jogo dessa "distância"

significativa com o discurso situa-se uma gramática inconsciente de

produção, circulação e reconhecimento dos discursos de verdade, que

pretendo revelar - com umaa intenção didático-subversiva - agrupando

todas as suas modalidades pré-discursivas atrás da expressão: sentido

comum teórico; um forma de economia significativa para poder falar

condensadamente de todas elas.

Por estas razões sustento que o discurso das ciências humanas é

umaa modalidade conformista da produção social da subjetividade, na

medida em que sua aparente nitidez lógica produz o ocultamento das

mitificações, segredos, silêncios e censuras de nosso cotidiano, assim

como das mitificações e demais componentes coercitivos do cotidiano

das práticas científicas que produzem os saberes sobre o homem e suas

relações sociais.

Uma parte desse sentido comum teórico poderia ser identificada

como ideologia. Principalmente no que se refere às crenças sobre a

possibilidade de construir, em nome das verdades, um discurso

logocêntrico determinante de um efeito de denotação pura (que nega os

outros efeitos conotativos do discurso e o caráter conotativo da

denotação). Uma conotação dissimulada e arrogantemente unívoca. Um

efeito de univocidade que oculta o caráter forçosamente plural do mundo

- como complexo significativo - e de suas versões cognitivas.

O sentido comum teórico poderia também ser pensado como ideológico na medida em que imita a realidade social, ocultando as formas na qual ela exercita e distribui o poder. Isso, pela ilusão que o sentido comum teórico tem, dentro de si, de haver podido conquistar, com a linguagem, o esquema ideal (perfeito, neutro, objetivo e indiscutível) que funciona ficticiamente como sistema do mundo social.

Não obstante, se esquadrinhamos bem a produção da subjetividade que chamo de sentido comum teórico, poderá vislumbrar-se que a noção de ideologia é insuficiente para poder fazer, com ela, referência a todos os fenômenos micro políticos comprometidos na formação social da subjetividade. Estes fenômenos micro políticos passam não só pela linguagem, senão por todo o trabalho de semiologização que compromete as próprias raízes produtoras do desejo. Estou, assim, situando a questão no terreno que o pensamento marxista chamaria de "infraestrutura produtiva" (no caso de bens, desejos e dispositivos do poder).

4. O discurso epistemológico das ciências humanas estabelece

um acordo institucional básico (um pacto social sobre as verdades) que

delimita o que se pode aceitar como pertinente e legítimo no trabalho

científico. Como afirma Foucault: se pode dizer a verdade científica

unicamente obedecendo a regras de uma "política" discursiva que se

deve (re)ativar em cada um de seus discursos15. Existe um conceito

normativo de ciência (determinado pelo discurso epistemológico mani-

festo e por sua racionalidade subjacente) que vai delineando algo assim

como um sistema de exclusões, que vai configurando uma série de

dispositivos institucionalmente coativos para a história das verdades

científicas.

Aparentemente, são neutras, lógicas e inocentes as condições

epistemológicas de produção das verdades científicas. Escondendo-se,

em um punhado de razões lógico-epistemológicas, um certo número de

regras, que obstaculizam o acesso livre, para qualquer sujeito, na ordem

do discurso científico.

Nas ciências sociais a ortodoxia e a heresia não apontam exclusi-

vamente para o controle do discurso senão também dos sujeitos que

falam. Desta forma, os emissores das palavras de verdade ficam subme-

tidos aos discursos científicos e estes às instituições que controlam sua

produção, circulação e reconhecimento. Não existem discursos de ver-

dade, nas ciências humanas, que não guardem um alto grau de

15

Foucault, Michel. El Ordem del Discurso. Barcelona, Tusquets Editor, 1973.

adequação com os saberes e poderes que implicam. Desde logo, a

adequação entre os espaços de saber e a distribuição social do poder

não é transparente. Em nome de um conhecimento com apetites de

exatidão se exalta o controle metodológico dos discursos de verdade

para tornar simultaneamente opaca suas vinculações com o desejo, o

interesse e o poder.

O horizonte teórico das ciências humanas - nos quais o saber se

inscreve - pretende ser apenas lógico, metódico, sistemático. Desta

forma se determina uma ordem mitológica na qual o desejo, o interesse

e a política se pacificam. No fundo uma forma de guardar as aparências

e manter em segredo os poderes de submissão, as lutas e o objeto do

desejo que portam OS discursos de verdade. O discurso - proclama

Foucault - não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas

de dominação: senão aquilo pelo qual, e por meio do qual se luta, aquele

poder do qual alguém quer se assenhorear16.

Pretendo sustentar, então, que a articulação do discurso

epistemológico com o científico determina, nas ciências sociais, uma

relação mitológica que funciona como gramática de produção, circulação

e reconhecimento de suas verdades: o sentido comum teórico.

Aparentemente o discurso epistemológico se afirma como tal,

proclamando uma distância radical com as ilusões (crenças, mitos,

interesses, representações, fetiches, etc), que fundamentam as práticas

cotidianas de significação. Desta forma, proclama-se a vigência de uma

dupla racionalidade: a científica e a do sentido comum ou cotidiana. A

primeira colocando como nevrálgica a discussão sobre a "cientificidade

da ciência" busca estabelecer critérios inflexíveis de demarcação entre o

que deve e o que não deve ser, considerado como ciência. De fato, trata

de opor o saber que legitima como científico das representações

metafísicas, opiniões e relações políticas e ideológicas do sentido,

construindo a verdade e o erro, enfrentando o sentido referencial e as

evocações conotativas (sem advertir que as significações referenciais

são um sistema de conotações) miticamente dissimulando,

16

Foucautt, Michel. op. cit.

diferenciando, em suma, a episteme da doxa. Partindo desta dupla

racionalidade surge uma ordem configurativa do que se deve entender

por "cientificidade da ciência”.

Agora, inadvertidamente, este entendimento sobre a racionalidade

científica da ciência provém precisamente de todas as regiões do saber

que foram excluídas. A questão não deixa dúvidas: existe na episteme

uma doxa que, funcionando como sua racionalidade subjacente, introduz

significações extra-conceituais no interior de um sistema de conceitos,

uma ideologia que introduz o segredo e censura no interior dos

enunciados de verdade e um sistema de relações de dominação

simbólica que marca politicamente o princípio da neutralidade e da

pureza das ciências humanas (e do pensamento científico do direito que

foi evoluindo a partir de Kelsen).

Me limito a assinalar, agora, minha intenção de chamar de sentido comum teórico o conjunto de elementos integrantes de uma doxa ilusoriamente "elucidada".

O sentido comum teórico estaria, assim, constituindo uma racionalidade subjacente que não deixa de ser uma fala adaptada a pre-conceitos, hábitos metafísicos, visões normalizadoras das relações de podei princípios de autoridade, ilusões de transparência, noções apoia-das em opiniões, assinalações religiosas mitológicas, etc.

Em suma, uma fala adaptada às relações simbólicas de dominação que, como diria Legendre, "delimitam um lugar mítico que tem vocação lógica".

A meu juízo estamos diante de urna racionalidade mitológica que legitima politicamente uma doxa dissimulada como episteme;

Acercando-me de urna terceira caracterização do sentido comum teórico do direito (que pode ser generalizado para o resto das ciências humanas) o identificarei com a racionalidade jurídica ocidental que se manifesta subjacentemente como gramática de produção, circulação e reconhecimento dos discursos do direito (especialmente no discurso das ciências jurídicas).

Entendo por racionalidade subjacente o modo de funcionamento

social do discurso jurídico, guiado por efeitos pré-compreensivos de

sentido, que vão transformando o sentido comum teórico em um

princípio de controle da validade e da verdade do discurso jurídico. O

sentido comum teórico notifica, desta forma, "o lugar secreto" das

verdades jurídicas.

Quisera que as funções do sentido comum teórico do direito não

sejam confundidas com o que alguns propõem chamar de "filosofia es-

pontânea das ciências". Nesta segunda expressão me incomoda o termo

"espontâneo". De fato, a racionalidade jurídica subjacente aos diversos

discursos do direito tem bastante pouco de espontânea e muito de um

jogo de manobras institucionais.

5. Até agora falamos da ciência cio direito como fragmento de

uma totalidade maior: as ciências cio homem na sociedade. Proponho-

me agora a inverter os termos desta relação para falar das ciências do

homem como partes de um todo que caracterizarei como "saber legista".

Seguindo Legendre, definirei o saber legista como um conjunto de onhecimentos destinados a fazer funcionar uma sociedade, na pers-pectiva em que opera a lei. Estamos colocando-nos assim diante do conjunto de representações simbólicas que permitem a entrada dos seres humanos na lei.

Não tenho a menor dúvida de que existe uma visão jurídica do

mundo, do homem e da sociedade que penetra em amplas zonas dos

discurso ocidental. É uma visão do mundo que atravessa

intertextualmente o discurso literário, psicanalítico, médico, político,

sociológico, antropológico, econômico, etc. Adotando uma expressão de

Legendre chamarei de "juridicismo" essa "visão de mundo legalista".

Sabemos pouco das funções sacra e dogmática que as ciências

humanas cumprem como instituição social da subjetividade coletiva, se

não tematizamos o vínculo forte entre lei e verdade, que as determina. O

estudo das relações entre o saber e a lei se encontra travado pelos

ideais e as crenças que fundam a racionalidade científica.

O cientificismo17 - que caracterizarei, obliquamente, como o con-

17

O cientificismo pode ser caracterizado como o sistema de representações constitutivas do imaginário das ciências sociais, na versão da tradição positivista. exalta as possibilidades de uma ciência das ciências, que seja ao mesmo tempo uma crítica científica à filosofia. O cientificismo supõe que se possa tratar o conjunto das praticas

junto de ilusões que permitem sustentar que a linguagem das ciências

do homem na sociedade pode ser apenas instrumento neutro, objetivo e

método, de um conteúdo triunfante – contrai um diabólico casamento

com o juridismo para deixa, em uma erudita, as questões mais ardentes

dos discursos de verdade.

O cientificismo como crença vital do sentido comum teórico do

juridicismo, que impregna os saberes da lei para desfazer o caráter "jurídico" de todas as ciências do homem, quer dizer, desvincula-as das assinalações mitológicas da visão de mundo que introduz simbolicamente o homem na lei.

Ao abrigo do juridicismo e do cientificismo fingimos analisar, sem proibições, a sociedade industrial e suas instituições, servimos, como produtores, os saberes do Estado.

O juridicismo também é responsável pelos mecanismos de solenização da palavra, dando assim base para a reprodução da função dogmática - como propulsora da expansão do sistema industrial - e do funcionamento irrepreensível da ciência da lei.

A solenização da palavra permite à ciência da lei mostrar-se como saber enigmático, o saber de um poder suposto como absoluto, dotado da divina capacidade de dizer indefinidamente a verdade. Assim, o juridicismo instala, como vínculo mágico entre a lei e a ciência, a palavra funcionando como "a voz digna da majestade", conforme a memorial afirmação de Justiniano, que Legendre invoca em um de seus textos:

O juridicismo então, legitima o discurso que contém o oráculo do poder, legitima o funcionamento social da lei, como uma palavra enigmática, que demanda a presença de glosadores sacralizados.

científicas como uma realidade homogênea (D. Lecourt), que constitue, pelo menos em princípio, a unidade de uma totalidade indiferenciada, um pressuposto filosófico idealista para fundamentar o funcionamento ideológico e político das ciências sociais. Uma forma para silenciar em nome da epistemologia, a história institucional das verdades produzidas pelos saberes da lei. Essa história é negada afirmando-se uma calma neutralidade metodológica e certas virtudes lógicas intrínsecas à formação de seus discursos. Em suma, o cientificismo é o nome que podemos dar a uma proposta do conhecimento fundada no mito de um espaço puro para as ciências do homem.

.

Estamos diante de uma "legitimidade enigmática" que mostra a lei

como "o lugar que sabe" e os glosadores como pontífices omniscientes

(o coração do glosador é o coração do saber, seu peito contém as

chaves do enigma).

O juridicismo nos faz viver sua visão de mundo (centrada na lei)

como absoluta e nos mostra algo desse universo de verdades absolutas

comidas na lei, ocultando o resto como condição inquebrantável do

poder da glosa. Sem segredos, nenhum poder enigmático consegue

afirmar sua magia.

Estes esclarecimentos são suficientes para mostrar a importância

do juridicismo na produção social da subjetividade, no estabelecimento

da sociedade industrial como cultura.

O juridicismo permite a colocação em cena de uma representação

mitológica do poder, como uma gestão fora da história.

Legendre, mergulhando no Direito Romano, reconstruiu a gênese

da relação entre o Direito e a ciência. Para poder entender a força desta

relação precisamos, em primeiro lugar, não esquecer nunca a função do

enigma na comunicação social. Necessitamos ter sempre presente o

componente enigmático instalado no "coração de toda linguagem”. A

epistemologia e a linguística oficial (Barthes é uma grande exceção)

renegam o enigma da linguagem, preocupados muito mais em cumprir o

mandato jurídico de dominar os sujeitos, do que entendê-los. Desta

forma, começamos a sentir a necessidade de compreender o

funcionamento linguístico a partir de uma "erótica" das significações e

das instituições: o amor estruturando o enigma das mensagens como

uma ordem litúrgica, quer dizer, como um amor à "palavra mensageira"

como poesia mística do amor divino e suas crenças. Um mecanismo que

permite entender a relação mágica que o direito estabelece entre a

escritura e o corpo; a anatomia mística que articula, no direito romano -

como condição de suas interpretações - a lógica de suas mensagens à

mediação de um corpo misticamente alienado como escrito vivo. Sem

esta alienação não existe interpretação possível nem repertório fundador

das instituições. É o lugar lógico do "grande Outro" como encarnação de

um "Outro absoluto" e irrepresentável. Um corpo alienado: a divinização

de um corpo alienado pelo poder que representa o "grande Outro"

através de uma escritura miticamente reveladora de um enigma.

Estamos no domínio da ficção que representa a verdade como derivação

de um livro absoluto (o Estado, comenta Legendre, surge

simbolicamente desta montagem).

O escrito vivo funda sua eficácia ligando-se simultaneamente a

uma Teoria juridicista do saber e da lei.

Unindo a lei com o saber descobrimos que o sentido da lei para o

ocidente se encontra a partir do saber, na medida em que a lei vivida por

nosso imaginário como o discurso resplandecente da verdade, o

discurso onde a verdade adquire sua totalidade mais esquisita. Por esta

razão a produção social da subjetividade se organiza em torno da lei.

Por intermédio da lei e seus escritos de verdade o corpo dos atores

sociais é instituído, encerrado antes do nascimento nos saberes da lei.

Unindo Legendre a Guattari diria que a produção social da subjetividade

se assenta sobre a lógica do Direito Romano. É o triunfo da

representação simbólica da paternidade corno dominação romana.

Desde Roma até os dias atuais podemos encontrar sempre a

produção jurídica construindo-se em torno da paternidade. E as

instituições também funcionam paternamente como produtoras da

subjetividade. A paternidade opera, então, como um significante todo-

poderoso, que permite evocar um relato legendário co-legitimador de

uma inquestionável sabedoria do comentário. Isto permite situar a lei

como um lugar vazio, por onde circulam significações e alegorias, que

fazem a lei falar. Assim, a lei se encontra como um lugar inicialmente

vazio por onde transitam os doutores, fazendo desse vazio seu lugar de

poder. Homens comuns disfarçados de sábios, reveladores do saber

absoluto. E para isto a lei precisa funcionar como um significante

separado de todas as significações, mas, ao mesmo tempo, simulando

possuir todas as significações que as interpretações possam atribuir-

lhes. Esse é o destino de um escrito vivo como suporte do poder de seus

pontífices: estes simulam interpretar para garantir seu poder. Atitude que

lhes custa muito reconhecer a nossos juízes, apesar de construírem

suas decisões acatando a lógica desse princípio de poder. De qualquer

maneira se comportam nos tribunais, cotidianamente, como sendo "o

único que sabe", cumprindo sem falhas a metáfora paterna, sendo um

"juiz pai" (e um pai-patrão). E a metáfora é tão forte que supre todas as

ignorâncias. Por mais incompetentes que sejam os componentes de um

poder jurídico, suas interpretações serão decisivas. Para além da

ignorância, a paternidade legitima e faz coisa julgada.

Durante muitos anos, cometi o erro de questionar a anemia significativa das palavras da lei e da natureza da linguagem jurídica, que como variedade da linguagem natural apresentava urna vagueza intrínseca, que o tornava irremediavelmente anfibológico. Hoje vejo que esta explicação esconde muito mais do que pretendia explicar. O poder dos juízes não depende tão só das características da linguagem jurídica. As normas são interpretadas para que a função paterna possa ser cumprida pelos juízes e seus auxiliares pontifícios (a doutrina complementa a função paterna).

A vagueza da linguagem das normas facilita o desenvolvimento de urna relação mitológica da lei com o lugar divino da verdade. Não se ganha nada mostrando as normas jurídicas como linguagem natural. Desta forma, unicamente conseguimos uma desmistificação epidérmica. É preciso mostrar a lei como montagem de ficções, que permitem a vigência de um sistema "teatral de interpretações". Também nos dias de hoje, decidir uni processo é exercitar os poderes do artista - julgar é uma arte política.

Não esqueçamos que toda arte repousa necessariamente em uma certa capacidade de produzir efeitos mágicos. Esta capacidade está também presente nas práticas interpretativas do direito, permitindo a celebração mística do texto legal e a consagração do princípio de autoridade. O interprete da legalidade é o único que sabe. Ele exerce a função - que Legendre chama de "amo da verdade", confundindo essa função com a do escrito vivo, com uma lei exposta como mitologia fundadora. Sua palavra torna localizável o princípio de autoridade, graças à mística de um conjunto de crenças legalizadas com a retórica admitida na arte da interpretação.

O juridicismo instala dessa forma um princípio de legalidade na comunicação que está fundado na liturgia de uma lei fundadora, miticamente conhecida e transmitida (por vezes pontificadas) através de

um discurso que diz as verdades apoiando-se no ritual de um procedimento.

Assim, o juridicismo nos põe diante da natureza mesma das

instituições. Conforme a letra latina "instituição" quer dizer doutrina,

ensino; continuando essa ideia, agregarei que se trata do ensino de um

saber absoluto sobre a lei, que estabelece uma regulamentação social

de culpabilidade. A instituição transmite unia "ciência política". Desta

forma, a instituição poderia ser pensada como o estatuto da

transgressão, o saber que estabelece um modelo repressor do ego:

corno modelo normativo da personalidade social.

A instituição funciona assim, no nível onde se opera a relação

entre a lei e o desejo. Assim, o desejo fica regulado em conformidade

com as crenças juridicistas transmitidas pela fala instituída no espaço do

"Direito Público" (a lei). Precisemos as coisas. A relação entre a lei e

seus diversos saberes, da lei com as ciências que consagram seu lugar

nas instituições sociais interpretando liturgicarnente verdades no texto

legal, necessita ser entendida na perspectiva de uma transmissão da

proibição. A glosa escolástica, o comentário sobre a lei é sempre

revelação, em nome da verdade, de um sistema de proibições e

segregações. Por meio dos procedimentos interpretativos, os saberes da

lei vão armando uma delicada trama de certezas básicas que relacionam

o desejo com a lei para ordenar a libido (economia subjetiva

prioritariamente determinada pelo desejo da mãe). Desta forma, os

saberes como intérpretes da lei censuram o desejo ajustando-o às

certezas básicas, que eles mesmos criaram, quer dizer, que

interpretando a lei criam a visão de mundo juridicista como interdito da

sexualidade.

Deste ponto de vista se pode dizer que a interpretação da lei não é um patrimônio exclusivamente reservado para juristas; ele é um privilégio compartilhado por todos os intelectuais, que falam como mensageiros da verdade desde os diferentes lugares, destinados pela instituição social, para as ciências do homem. Eles são glosadores oficiosos do texto legal. Sem eles seria muito difícil instituir a cultura como a forma ideal de nossa consciência moral culposa. Assim, a subjetividade socialmente produzida pelos saberes da lei se instala ficticiamente na consciência moral em forma de normas autônomas.

Estamos diante de uma patologia do dever, que censura a consciência pela ilusão de que as normas fabricadas pela instituição são produtos de nossa singularidade.

Daí que a dinâmica do "superego" da cultura não pode ser

suficientemente clarificada como instância de compreensão do

mecanismo institucional, se não observamos o papel que cumprem os

saberes da lei na formação desta instância de censura. Particularmente,

penso que o "superego" da cultura funciona como "tabu do poder", em

grande parte graças às certezas básicas provocadas pela visão do

mundo juridicista. Esta visão do mundo vincula fatores cognitivos com

pautas emocionais (com laços afetivos) fazendo brotar frente à

submissão o desejo da submissão, o desejo de amar a censura e seus

amos18.

Como corolário poderia também dizer, que o sentido comum teó-

rico dos juristas como parte da visão de mundo juridicista poderia ser

caracterizado, em uma nova aproximação, como "o superego" da cultura

jurídica; unia instância de julgamento e censura que impede os juristas

de produzir decisões autônomas em relação a esse nível censor. Assim,

o ego dos juristas crê igualar o modelo da lei, adaptando sua palavra às

significações que presume contida na lei. Ele encarna ingenuamente a

palavra da lei sem advertir que está adaptando um conjunto de

significantes. Eles estão, na realidade, psicologicamente identificando-se

com o modelo do sentido comum teórico, do direito e do resto dos

saberes da lei.

Podemos, pois, dizer que graças à visão do mundo juridicista e

seu funcionamento como sentido comum teórico, a instituição social tem

18

“O amor ao censor" é uma noção teórica proposta por Legendre - que tem-se que entende-la - conforme Enrique Mari - como estrutura libidinal no sentido freudiano, estrutura de crenças onde o poder toca o nó do desejo. O amor joga um papel central nas explicações que Legendre formula para mostrar como as instituições produzem socialmente a subjetividade, mobilizando crentes. São os afetos que se mobilizam para a aceitação mágica das crenças que sustentam o poder. É também o poder que se mobiliza produzindo cartografias de desejos, afetos e impulsos que o favorecem, formulando um sistema de desejos, um paradigma normativo do amor que torna possível a mais-valia do poder. Se estabelece assim um duplo vínculo entre o amor e o poder. Por um lado de amor ao censor e por outro lado de amor censurado. Por essa dupla relação se produz socialmente a subjetividade

em cada um dos juristas e cientistas sociais seu principal colaborador,

conta com censores de tempo integral.

A gênese do sentimento de culpabilidade nasce da tensão entre

os interditos do ideal do ego e os espaços sociais e individuais de

resistência. É o tabu funcionando como forma geral de legislação, um

tabu organizado em nome de um saber absoluto. O sentimento de

culpabilidade à função "tabu da lei" permite o controle das condutas

revertendo a agressividade do indivíduo contra o mesmo. A

agressividade fica assim convertida em angústia ou em melancolia do

desejo, que é colocada como uma instância social anterior e absoluta.

Isto permite estabelecer o processo social de adaptação da

personalidade a partir do estatuto de culpabilidade instaurada na lei.

De tudo o dito até aqui uma coisa parece evidente: é impossível

tematizar as funções políticas da lei e das ciências jurídicas, sem formu-

lar claramente sua estreita vinculação com uma regulação culposa do

erotismo. Desconhecendo a instância de conexão entre a sexualidade e

a política, ignorando a ideologia do desejo devido, que estabelece a

instituição social, será muito difícil desmistificar as razões subjacentes

que fazem do juridicismo, do Estado, da Democracia e do Direito

Positivo - nas sociedades pós-industriais - meras referências retóricas do

poder.

Falando do Estado, do Direito Positivo e da Democracia desde o

lugar que o juridicismo lhes destina, negaremos suas funções políticas.

O pensamento sobre a Democracia, por exemplo, neste contexto, se li-

mita ao desejo de um retoque nos dispositivos que fazem funcionar a

instituição social. Enquanto o Estado, é definido de um modo tal que não

nos deixe compreende-lo nunca como uma montagem de ficções aptas

para anunciar a verdade suprema e o Direito, que será visto desde o

juridicismo como conjunto imparcial de normas jurídicas, negando sua

condição de registro normalizador da personalidade, onde se joga a

sujeição, às crenças e ao poder.

Uma dupla linguagem, que o juridicismo instala nos discursos

para consagrar, como religião do poder, uma representação sagrada do

Estado, do Direito e da Democracia.

Em suma, os sistemas de instituições, da sociedade industrial, as-

seguram a meta de sua reprodução glorificando um "significante

absoluto" e estabelecendo a celebração de um poder omnisciente (o

Estado), que esteja em toda parte e garantia tudo. Isto, fortemente

expresso, na formulação do princípio teatral de representação da lei viva

na administração (Legendre) e nos procedimentos escolásticos da

interpretação pontiticadora (no foro judicial e nas Universidades).

6. Tenho situado o juriclicismo como a "mentalidade" teológica do

poder que serve pari garantir o funcionamento sacralizado dos saberes

da lei no interior do sistema das instituições sociais do ocidente: uma

mitologia da onipotência.

Sem dúvida, estou pretendendo diagnosticar os dispositivos e

estratégias simbólicas de uma grandiosa técnica de submissão, uma

racionalidade teológica subjacente onde a razão se junta

privilegiadamente a uma divindade sem rosto e sem história para gerar

uma adesão mística à função de censura e aos efeitos perversos de um

sistema de representações simbólicas que funciona como resseguro do

segredo e do silêncio no discurso da instituição social. Os saberes da lei

são sempre mesquinhos: em nome de certas verdades se expressa

através da censura, o silêncio e o segredo, conjurando, dessa maneira,

o perigo de que os protagonistas sociais possam saber demais sobre a

instituição social, a cultura capitalista e sua teologia do poder. Os

saberes da lei, sutilmente sustentados pela mentalidade juridicista,

simulam uma solidez conceitual que esconde a vagueza de suas

significações. O efeito maior deste ato de simulação linguística é o de

produzir as palavras tranquilizadoras. Nas ciências da lei - os que têm o

dom de dizê-las - nunca deixam de falar como se deve e calar,

cautelosamente, aquelas coisas que se fossem ditas preocupariam,

restando-lhes valorizar a função de censura: uma lógica da submissão

organizada através de máscaras, silêncios e segredos.

Falando metaforicamente, diria que a censura se instala na insti-

tuição social, provocando nos atores sociais uma sorte de "cegueira his-

térica", quer dizer, surge uma cegueira como fuga de uma realidade que

não se quer ver, que nos faz evitar ver o que não queremos. Nesse

sentido poderíamos dizer que o juridicismo dissimula a submissão aos

jogos institucionais do poder, provocando uma "cegueira discursiva", que

reassegura nosso vínculo com a instituição social como avalista de

nossos desejos. Um aval estabelecido pelo deslocamento mítico da

função social da lei; fica em segredo o papel da lei como lugar tópico de

aprisionamento do desejo e se exalta ilusoriamente seu papel como

ideal de paz e bem-estar social.

Indubitavelmente a lei no ocidente judeu-cristão cumpre um papel

totêmico: um poder intocável ao qual é oferecido o desejo.

Por outra parte, é preciso dizer que o valor totêmico da lei, unicamente

se torna eficaz se conta com o efeito simbólico de um mediador que

detenha o lugar da verdade. Sua palavra simboliza a voz viva do

superego da cultura19.

Acompanhando os raciocínios de Legendre diria que o "superego

da cultura" potencializa ao máximo a instância da censura social. Ela se

instala e funciona contando, em primeiro lugar, com os saberes da lei:

principalmente contando com os saberes dos juristas, que põem

miticamente em cena a ilusão da necessidade natural e a fatalidade lógi-

ca da existência da lei na sociedade. Desta forma a censura social legi-

tima seu funcionamento dentro de uma ordem.

Em segundo lugar a censura se torna eficaz na medida em que é

enunciada como a expressão máxima da sabedoria; aparecem assim os

avalistas da grande sabedoria (função principalmente executada pelos

operadores universitários do conhecimento do direito) interventores da

onipotência de um poder absoluto, que receberam um poder sagrado

19

É o pontífice, topos lógico, puro significante que encarna por um lado o poder e por

outro o objeto libidinal sublimado no lugar do poder. O pontífice é a voz fictícia que

mobiliza as crenças para o poder, submetendo-nos miticamente a ele através do

modelo de homem normal que é determinado pelo sistema de proibições estabelecidas

pela lei. O pontífice é também urna encarnação mítica desse modelo de homem

obediente e simultaneamente o intérprete autorizado do que pode ser considerado o

"homem médio". Os pontífices inclusive terminam pensando que a maneira como eles

vivem e valoram o mundo é o reflexo fiel do que deve ser, considerando os

comportamentos devidos desse pequeno e glorificado monstro social. Um fantasma da

personalidade funcionando corno paradigma.

para simular obter as respostas da censura.

Por último, o discurso jurídico envolto pelas representações

simbólicas do superego da cultura (sobretudo a partir de suas

manifestações juridicistas) organiza o lugar comum das penas com

efeito tranquilizador de uma coerção beatificada, que mantém os

protagonistas sociais em um permanente estado de crença sacra. O

superego da cultura representa, de alguma maneira, a ideologia

institucional, com suas imposições de identificação, repressão,

culpabilidade, sublimação e segregação. Seu funcionamento não é

racional nem completamente consciente; se encontra muito mais

vinculado ao "ele" que ao "eu" e, portanto, uma forma de consciência ou

mentalidade moral culposa. Uma patologia do dever que nos tranquiliza

e reprime apelando a um sutil Jogo de identificações simbólicas que

fazem do "superego" um ideal do "ego". Para isto, é preciso o

funcionamento de certos dispositivos censores conferidos a outros, que

tomando o poder dos pais adquirem um direito de acautelamento sobre

os atores sociais.

O superego da cultura funciona, então, como uma medicina da

alma, que sublima o desejo, englobando o poder como uma trama de

crenças efetivas, com uma sexologia que justifica e assegura a autorida-

de dos chefes.

Freud define a sublimação como o processo que transforma o desejo em algo sublime, ideal, supremo, uni jogo de representações simbólicas, que aproximam o reprimido ao repressor, convertendo a autoridade, o poder político e a lei nas caras ideais dos desejos reprimidos.

Por outra parte, Freud introduz a noção de "fantasma". Um fantasma, para ele, é um cenário imaginário em que o sujeito está presente para representar, de uma maneira mais ou menos deformada a realização de um desejo. A função primária do fantasma consiste na colocação em cena do desejo em que o proibido está sempre presente na posição mesmo no desejo. Assim, o fantasma é o lugar privilegiado onde se pode ver de mais perto a censura e a representação do desejo, assim como o retorno do reprimido na forma sublimada, que converte a proibição e o dever em sublime objeto de amor. Neste ponto concluiremos, caracterizando o sentido comum teórico do juridicismo

como uma eficiente montagem de fantasmas. Continuando com a problemática da censura, diria, que para

Freud ela é uma função que tende a impedir que os desejos

inconscientes e as formações que derivam deles tenham acesso ao ego.

A noção de censura prefigura, para Freud, a noção de "superego", o

censor do ego, a consciência moral que nos identifica com a autoridade.

A censura, é preciso também sublinhar, funciona a partir da consagração

de um discurso canônico e enigmático que permite expressar sem

dificuldades a ideia de uma legitimidade absoluta, a legitimidade de uma

razão oracular onipresente.

O discurso canônico desenha o perfil de um ego onipresente para

ser copiado pelos atores sociais, que obterão, dessa maneira, uma

subjetividade homogênea que os igualará em um processo de identifica-

ção, que os fará perder as condições de produção de sua singularidade.

É a lei operando como lugar de identificação dos desejos, funcionando

como "ego sublime" tranquilizador: a grande imagem do "Outro

normalizador". No fundo estamos diante da própria instituição social,

funcionando como uni "grande Outro ideal" que permitirá a captura

regulada dos conflitos, orientando o homem a normatizar-se20.

Coincido com Legendre que a instituição social regula e mede o medo valendo-se de uma lei convertida em uni lugar onipresente, onde transitam interpretações dotadas de um poder inquestionável21. O dis-curso canônico opera sobre esta realidade censora estabelecendo um território de fantasmas onde se terá a convicção absoluta de que todos os casos particulares encontrarão necessariamente seu lugar no conjunto classificatório. Assim, o discurso canônico preserva o funcionamento institucional da lei contra as rupturas de seu equilíbrio e o 20

A não realização dos desejos produz, ao nível do inconsciente, desprazer e orienta o homem para sua normalização, quer dizer e erigir-se um superego que lhe autocensura os desejos identificando-os com a autoridade. 21

Estou me referindo ao medo frente aos perigos da vida que demandam a presença

da imagem paterna e não ao temor psicológico. Me refiro aos mecanismos simbólicos que permitem a interiorização de um poder absoluto: a apropriação institucional da agressividade do homem para estabelecer a submissão. É o medo do superego. E o medo não como fundamento da sanção jurídica senão como determinante das palavras tranquilizadoras e das identidades afetivas com a autoridade.

que os juristas chamam pomposamente a segurança jurídica.

Por suposto que quando falo da persistência de um discurso

canônico na sociedade industrial, estou pensando no juridicismo, que

funciona como uma "regra das regras" para vigiar (em nome das

verdades cientificas) o bom funcionamento dos dispositivos de censura e

de identificação da instituição social.

O juridicismo toma conta do desejo, idealizando o temor. Uma

politicas mortífera posta a serviço da instituição social: o dever

idealizado como objeto de amos sublimado. O desejo sempre é uma

demanda de amor, a instituição se serve do dever como se fora a forma

máxima de realização de nossos desejos. Assim, se a demanda de amor

a uma estrutura de submissão. Uma consciência de si percebida numa

outra consciência coercitiva que aliena (na relação poder-pecado) o

desejo. Se trata de um sistema de representações que interioriza no

homem a necessidade de deveres. É o desejo inibido pelo dever, é

nosso desejo convertido em desejo social, convertido em um “obscuro

objeto de espera”. Estranho objeto de deveres que orienta os atores

sociais para normativizar-se, quer dizer, para identificar-se

simbolicamente com a lei ameaçadora.

O desejo não é algo que se produz isoladamente, está sempre em

relação com o “outro”, esse é sempre um censor, que está dentro dele

ou simbolizado pela autoridade, ou se quer, pelo discurso que possível o

princípio de autoridade: a visão de mundo juridicista, quer dizer, a visão

de mundo provocada pelas ciências da lei.

Finalmente quero insistir, deixando claramente registrado, que a

visão de mundo juridiscista desenvolve sua função censora apelando a

um pensamento mágico-teológico, como variação do conceito ilusório de

Deus: uma montagem de ficções transcendentes sobre a Sociedade, o

Estado e o Direito. Insto permite uma projeção dos laços afetivos que

vinculam os homens com Deus, como elemento operador de nossas

representações sobre a Sociedade, o Estado e o Direito. Assim,

estaríamos diante de três sistemas de representações que realizariam o

que é impossível ao desejo do homem. Em outras palavras, o juridicismo

mantem viva a magia do pensamento religioso e desta forma o poder,

que se exerce sobre a sociedade, goza do benefício de uma obediência

incondicional.

7. Quero falar agora da eficácia simbólica do juridicismo, quer

dizer, das propriedades que seus símbolos tem para induzir resultados

concretos na sociedade.

O Simbolismo de define, para Lacan, por ser a presença de ua

ausência: implica sempre uma distancia entre a palavra e o mundo, que

fica situada a margem da linguagem como o “não simbolizado”.

Desde este ponto de partida, me interessa tratar das ausências

declaradas pelo simbolismo manifesto no discurso jurídico, quer dizer, o

desconhecimento provocado pelo que está simbolicamente presente no

discurso do direito.

Ausências e segredos que se pode começar a diagnosticar

fazendo presentes as relações, que vem sendo clarificadas pela

psicanálise, entre o desejo, o saber e o poder.

Inicialmente é preciso dizer que o discurso jurídico alude com sua

palavra manifesta (expressa miticamente) principalmente e o conflito

social, o caráter alienante da lei frente ao desejo, a função política da

sexualidade na estruturação da instituição social e a negação da

singularidade dos desejos afirma como subjetividade institucionalmente

produzida (assim se rechaça neuroticamente a ideia de que nossos

desejos tenham sido heteronomamente produzidos pela cultura oficial).

Metaforicamente, poderia dizer que as ausências e silêncios do

discurso jurídico revelam o funcionamento histérico de uma linguagem.

Os “silêncios significativos” do discurso jurídico mostram os lugares em

que os discursos manifesto do direito expressa, em forma negativa, as

ideias que não quer aceitar. O não saber histérico é, no fundo, um não

querer saber. Assim, por exemplo, o discurso jurídico manifesta

negativamente a função censora da lei e do Estado, o caráter

exclusivamente político do direito e do saber que o determina, assim

como o fato que os operadores jurídicos são sempre operadores

políticos. Suas verdades aparecem episternologicamente purificadas

para não aceitar "silenciar" a ideia de que elas são produtos políticos. A

razão é assegurada para rechaçar o fato de que o discurso jurídico é um

discurso com poder e sobre o poder. O discurso jurídico só admite o

poder como alusão (fala da sanção como monopólio estatal da coerção)

sempre expressamente ausente do discurso. Frente ao poder existe um

grande silêncio que serve para rechaçar a ideia de que o poder se

constitui transgredindo o desejo. Também poderíamos falar das formas

negativas em que o discurso jurídico expressa a problemática do desejo

e da moral. O primeiro aludido pela temática da vontade; a segunda

apresentada de um modo tal que permite escamotear o fato de que ela é

sempre ditada pela cultura oficial e que é o desejo do "Outro cultural",

urna forma sempre restritiva das pulsões.

Sintetizando a questão diria que o não, manifesto no discurso

jurídico expresso, por exemplo, através do princípio da pureza metódica de Kelsen, significa o sim desejado pela instituição social para exercer a submissão e produzir socialmente a subjetividade, quer dizer, a cultura legítima. É um "não" que em nome da verdade conserva em segredo o "sim".

Em linhas gerais, pode-se notar nas chamadas ciências jurídicas uma marcada fusão entre o segredo e a verdade.

A legitimação e o poder do discurso jurídico organizado em nome da verdade se encontram no fato de que ele se apresenta miticamente como a revelação de segredos; simula mostrar os segredos do funcionamento social do direito para conseguir um efeito (totalitário) de uniformidade, que reforça a intenção política da unificação dos atores sociais e da produção de uma viagem da sociedade transparente e homogênea. Claro que desta forma proporciona a imagem de uma sociedade nada democrática.

Em nome da verdade os operadores da ciência jurídica. Obtém o domínio do segredo e o exercício da censura significativa.

Estamos diante de uma questão importante: a verdade jurídica é sempre

a fase mítica dos segredos e das ausências de sentido. Ela é um

operador totêmico, que nega os segredos e as ausências. Um fetiche

que oculta o sentido histórico e político do direito afirmando-o

ilusoriamente como transcendente.

A fetichização do direito, quer dizer, a conversão do discurso

jurídico em um mito, não só permite tomá-lo pelo que não é realidade,

senão que também converte os operadores do discurso jurídico em tabu:

amos intocáveis da lei, a verdade e o desejo.

Quando uma cultura jurídica funciona fetichizada e com amos, é

preciso adjetivá-la como teológica e policial; é urna cultura de pontífices,

de emissores institucionais.

Se estamos preocupados em estabelecer um programa de

democratização da cultura, devemos aceitar como uma pauta importante

o diagnóstico precedente.

Não podemos pensar na formação de urna cultura democrática

aceitando um "clima de significações" que impõe lugares reservados,

corno donos, para a lei, a verdade, o desejo e o poder. Em uma cultura

democrática todos esses lugares precisam ser concebidos como vazios,

sem operadores totêmicos, sem silêncios nem segredos, que introduzam

os atores sociais numa região simbólica, onde a história e seus

protagonistas são inadvertidamente censurados; urna região onde os

sujeitos se projetam, sentindo a repressão do desejo e a coerção da lei

como parte da ordem natural e inevitável das coisas. Na cultura totalitá-

ria, os lugares da lei, a verdade, o desejo e o poder estão cheios de

negatividades e carregados de silêncios sobre as desigualdades sociais,

a exploração, as minorias reprimidas e a manipulação institucional de

nossas demandas, de nossas necessidades e impulsos. Lugares cheios

de rituais que dissimulam os antagonismos da história.

Esvaziar esses lugares, como condição da democratização da cultura, implica no estabelecimento de um novo programa pedagógico (sem amos nem censores) que mine, com suaves subversões, a estrutura da racionalidade mórbida, que nos censura e governa desde a instituição social. Se trata, sobretudo, de tornar vazio o lugar da produção da subjetividade, através da invenção de outras "químicas de

existência", de uma reinvenção de unia política da sexualidade, que permita o devir dos impulsos singulares. Seria o lugar do deslocamento permanente do desejo socialmente imposto, seria um lugar vazio dos mecanismos que fazem da cultura uma forma de identidade social, quer dizer, um lunar que deve ser esvaziado para permitir sua utilização como um lugar de múltiplas resistências, ou se se quer, um lugar onde não existam as exclusões. Neste lugar sem amos podem articular-se, no marco de uma participação solidária e comunitária, formas de criação totalmente originais (que podem inclusive recuperar as reservas expressivas do subsolo poético, folclórico, etc. contaminados pelas formas de recuperação ideológica da cultura oficial). A identidade cultural tem consequências políticas desastrosas na medida em que aniquila toda a riqueza expressiva que pode formar-se a margem da instituição social. E importante ter presente que quando uni grupo marginal reivindica sua identidade, se perde, provoca sua auto recuperação ideológica. As minorias não necessitam inventar uma identidade para que seus desejos ganhem um espaço ao sol. Tomemos o caso das mulheres. Não é necessário que os movimentos feministas se preocupem por estabelecer a "alma da mulher" buscar uma identidade para elas; basta que consigam que a economia de seus desejos possa circular socialmente, colocando em questão um mundo dominado pela subjetividade masculina, na qual as relações são precisamente marcadas pela proibição cio devir dos desejos femininos. O mesmo sucede com o devir dos desejos negros ou dos desejos dos homossexuais. Trata-se de uma micro política do desejo contra os mecanismos repressivos da identidade cultural. O importante dos desejos minoritários é sua multiplicidade, sua pluralidade e não sua identidade cultural. Assim, para a democratização da cultura é preciso fazer da marginalização do desejo um lugar de emergência da singularidade contra a ditadura das certezas culturais.

Na busca de sua identidade social as chamadas minorias sociais

perdem a possibilidade de constituir seus desejos em objetos. A procura

de uma identidade transforma seus desejos em "objetos de espera".

A força dos movimentos que expressam interesses socialmente

segregados descansa em sua possibilidade de converter-se em um

ponto de passagem para a alteração substantiva da existência

comunitária, para a reformulação global da ordem, e o modelo de

subjetividade instituído. Quando um grupo é socialmente excluído nem

se quer tem a oportunidade de acomodar-se às identidades

tranquilizadoras que a sociedade industrial propõe. A única saída para

seus desejos é a explosão marginal. Este é um acontecimento político

importante na medida que impulsiona uma série de alterações no nível

das relações concretas e da circulação social da sexualidade. São

propostas de relações afetivas "contra-culturais", pontos de ruptura do

modelo de personalidade dominante.

Se esses movimentos procuram a afirmação de sua identidade,

caem numa trama mortal: transformam o que foi um princípio de ruptura

da ordem em uma demanda de reconhecimento por parte da cultura

oficial. Um grupo minoritário que se preocupa com sua identidade, no

fundo está inconscientemente buscando ocupar um lugar mais ou menos

concreto no circuito da cultura instituída. A busca de identidade parece

esgotar o impulso dissidente. Podemos observar que quando um grupo

minoritário consegue esboçar algum critério para sua identidade

ingressa de uni modo bastante precário e perverso no circuito da cultura

capitalista, formando guetos consumidores dos objetos que a indústria

produz como fetiches desse movimento. Outras vezes a integração

perversa é dada pelos dispositivos que permitem converter os interesses

dos grupos segregados em rituais burocráticos (criação de conselhos da

mulher, dos negros, de latino-americanos nos países da Europa, etc).

Em suma, estabelecendo a problemática da identidade se consegue,

como disse Foucault em relação à luta de classes, que a classe

predomine sobre a luta. No fundo para recuperar ideologicamente a

possibilidade de exterminar a diferença, de trasladar a multiplicidade dos

desejos à visão unívoca do modelo de personalidade dominante. As

exigências de identidade sempre matam as diferenças. O procedimento

da tradução das diferenças à identidade, dada pelo circuito da ordem

oficial, é um esforço de homogeneização, que deixa as minorias

segregadas por uma aparente integração impossibilitadas para realizar

efetivamente unia política de resistência.

8. Agora: Qual é a função do direito frente aos dispositivos de

exclusão social? Quer dizer, sua função na democratização da cultura,

seu papel em relação a uma política dos direitos humanos dentro de

uma sociedade democrática.

Como resposta a esta interrogação só poderíamos dar a intuição

de um primeiro passo.

De início enfrentamo-nos com o problema que nos coloca o fun-

cionamento institucional do direito. Para assumir as bandeiras dos soci-

almente excluídos os juristas precisam converter-se em operadores

marginais cio direito. O que no é fácil. Primeiro, por que correm um risco

bastante concreto de serem institucionalmente segregados. Segundo,

porque lhes será bastante difícil deixar de pensar como membro de sua

casta e converter-se em militante do novo. Dizendo-o em outras

palavras: os juristas marginais precisam estar em contato com o totem

jurídico sem serem devorados por ele. Eles precisam liberar-se do

juridicismo, deixar de ser operadores anestesiados da lei. A estratégia

do jurista marginal exige uni permanente "uso transgressor do direito"

(que é muito mais que um uso alternativo dele) para buscar a

permanente ampliação do espaço do desejo, exercitando o direito a

diferença.

A luta dos socialmente excluídos busca transformar a libido em uma forma de luta social. Esta guerra, no terceiro mundo, não pode prescindir da conquista de expansão no interior das instituições sociais. Se renuncia a fazer a guerra no interior das instituições, perde-a antes de iniciá-la. As forças se apresentam extremamente desproporcionais. Não se pode esquecer que a cultura, a política e a economia capitalista atualmente se desenvolvem em escala planetária. Sua força provém desse caráter transnacional. Por esse motivo os movimentos sociais não p0-em permanecer em um estado de permanente germinação. E necessário que se articule na procura de sua institucionalização. E isto é extremamente complicado. Faz falta uma energia que permita institucionalizar a diferença evitando os riscos da recuperação ideoló-gica. Os movimentos sociais têm a necessidade de penetrar nas institui-ções ganhando espaço sem claudicar de seu espírito marginal.

Pois, se isto não for suficiente devemos também ter presente que

a conquista dos espaços institucionais são só um meio para realizar os

objetivos dos movimentos sociais. A finalidade destes movimentos é a

revolução cultural cotidiana. A conquista dos espaços institucionais

unicamente servem para garantir uma revolução cultural que precisa ser

feita por pequenas ondas moleculares de resistência. Trata-se de uma

revolução molecular institucionalmente protegida. Contando com uma

quota de poder institucional, os movimentos sociais desenvolvem sua

capacidade de articulação. Seu destino final é a reapropriação da vida

cotidiana, deixando os processos de singularidade se afirmarem.

Creio firmemente que este é um dos caminhos viáveis para um

programa de democratização da cultura e suas formas de ensino.

Introduzo o fator educacional porque entendo que o "aparato educativo"

joga um papel privilegiado na transformação dos homens. Também me

parece que é no interior do "aparato educacional" que se devem ganhar

os principais lugares para a resistência institucional. Talvez seja o lugar

da primeira batalha.

Dentro deste panorama temos que situar a participação dos "juris-

tas marginais". No interior deste quadro devem traçar-se as estratégias

que permitam enfrentar os "juristas de ofício" e os saberes que conver-

tem o pensamento jurídico em uma força de negação da história.

Me parece que as principais linhas de atuação dos juristas que

pretendam colaborar com os movimentos marginais passariam por:

a) A Universidade, fazendo os estudantes pensar sobre as

funções do juridicismo nas sociedades industriais: mostrando-lhes a

teatralização do medo que o ensino tradicional do direito comporta;

tentando a permanente denúncia das crenças do sentido comum teórico

do direito (e das outras ciências sociais) que sustentam a produção de

um discurso jurídico destinado a produzir simultaneamente efeitos de

adaptação e exclusão social.

b) A Investigação, inaugurando novas práticas. Existe a

necessidade de criar um novo perfil de investigador que entenda que as

representações teóricas não podem estar divorciadas da prática social

cotidiana, elas são inseparáveis das condições dessa prática. E um

modelo de investigação posto a serviço das práticas autogestionárias e

suas formas de resistência institucional.

c) A Administração da Justiça, conscientizando-a do papel que

pode jogar o poder judiciário como fator de equilíbrio na desproporcio-

nada luta do diferente Contra as atuais formas de desenvolvimento

planetário da instituição social. Os movimentos sociais têm pouca

chance de plasmar espaços institucionais de resistência sem contar com

a produção de cerimoniais judiciais de resistência que os avalizem.

d) Os Programas de Governo, empenhando-se na elaboração de

políticas alternativas que substituem os programas governamentais

concernentes, por exemplo, a droga, ao menor abandonado, a mulher, o

negro, a velhice, a prostituição, a doença, a loucura, etc. As novas polí-

ticas buscariam fortalecer as práticas autogestionárias, estando, ao mes-

mo tempo, sempre alertas, tratando de evitar as respostas repressivas

do aparato estatal.

e) A Redefinição da Problemática, dos Direitos Humanos, que na

sociedade onde não existem problemas de desaparecidos ou

necessidades de julgar atos de terrorismo estatal, precisa ser entendida

como mola propulsora das lutas que necessitam os socialmente

excluídos.

9. Para finalizar estes fragmentos reflexivos sobre o sentido

comum teórico dos juristas diria que:

a) O vínculo orgânico da cultura com a instituição social não é um

fato sociológico, mas político. Significa que o exercício do pensamento

não se faz senão com o exercício da autoridade. A língua legítima não é

Outra coisa que uma produção, circulação e consumo de uni saber que

mobiliza as crenças ambientais em direção ao poder.

b) O Sentido comum teórico dos juristas deve ser entendido como

um conglomerado de opiniões, crenças, ficções, fetiches, hábitos ex-

pressivos, estereótipos que governam e disciplinam anonimamente a

produção social da subjetividade dos operadores da lei e do saber do

direito, compensando-os de suas carências. Visões, recordações ideias

dispersas, neutralizações simbólicas que estabelecem um clima signifi-

cativo para os discursos do direito antes que eles se tornem audíveis ou

visíveis.

c) Os chamados sujeitos de direito não são outra coisa que um efeito de

significação do sentido comum teórico dos juristas tradicionalmente se

invoca a ideia de um hipotético sujeito de direito para fingir a existência

de uma suposta natureza humana na qual as normas jurídicas se

referem para regulá-las coercitivamente. Por sua vez, Kelsen pretendeu,

desde sua perspectiva purificadora, encarar o sujeito de direito como a

personificação de um conjunto de normas que teriam como seu âmbito

pessoal de validade a referência a um mesmo indivíduo. As duas

conceitualizações, entretanto, guardam silêncio sobre um elemento

político importante: o sujeito de direito não é outra coisa que a produção

social da subjetividade jurídica determina a partir do sentido comum

teórico do direito. O sujeito de direito é fabricado e moldado no - registro

social. Assim se inventa a percepção juridicista do mundo. O sujeito de

direito, no fundo não é outra coisa que a versão juridicista do. paradigma

normativo da personalidade social, a negação do homem diferente.

d) O que os filósofos e juristas chamam de "real" não é outra coi-

sa que um fluxo de significações, uma trama de símbolos, um grande

tecido de escrituras entrelaçadas infinitamente. Um enorme livro de fic-

ções que poderíamos intitular: sentido comum teórico.

Desde este ponto de vista o que se chama realidade jurídica não

apresenta nenhuma distância com suas versões interpretativas, o resto

fica a margem da linguagem.

As significações jurídicas formam um texto forçosamente depen-

dente de sua própria história discursiva, dependente das vozes

incógnitas do sentido comum teórico do direito e dos outros saberes da

lei (das citações anônimas extraídas da cultura).

De um modo geral poderia dizer que os juristas contam com um arsenal

de sintagmas prontos, pequenas condensações de saber, fragmentos de

teorias vagamente identificáveis, coágulos de sentido surgidos do

discurso produzido pelo "Outro" cultural, fluxo de significações que

formam uma memória do direito a serviço do poder. Estamos na

presença de uma mentalidade difusa, um conjunto de crenças e ficções

que os juristas manifestam como ilusão epistêmica, como um sentido

comum científico.

Como as verdades jurídicas se produzem no interior dessa ilusão

epistêmica é impossível separar nelas funções sociais da ciência

jurídica, as razões teóricas das justificações políticas.

As verdades se relacionam sempre com os processos

persuasivos. Desta forma, é o sentido comum teórico dos juristas que

torna confiáveis (verossímeis) as conclusões persuasivas dos raciocínios

jurídicos. Elas se tornam verossímeis quando conseguem criar um efeito

de pertinência com o sentido comum teórico que o juridicismo determina.

e) Com a expressão "sentido comum teórico dos juristas" quero

também expressar que por trás das questões do método existe também

uma série de pressupostos sobre a própria concepção de ciência e seu

valor social que se aceitam como opiniões intocáveis. É o imaginário da

linguagem científica que dá a seus enunciados atribuições impossíveis:

estabelecer palavras sem ambiguidades, eliminar os componentes

míticos da verdade, situar o erro como polifonia e a verdade como

univocidade, impor a ilusão da linguagem como versão objetiva do

mundo, eliminar a determinação conotativa da verdade, etc.

Surgem, assim, uma série de prejuízos gnoseológicos que servem

principalmente para ocultar as funções políticas desempenhadas pelos

discursos de verdade.

Desta maneira se levanta também uma grande ficção semiológica que

permite, discretamente, dissimular o fato de que o poder também é

significado e que, por este motivo, se manifesta no discurso como

ausência, enunciados que negam sua condição significativa, exclusões

hierárquicas, diferenciações e efeitos de unidade. Assim, as

significações aparecem como disciplina dos corpos e regulação de

valores, dentro de uma política de moralização dos hábitos cotidianos,

fetichizando-os.

A lei e o saber do direito constituem um dos níveis das relações

simbólicas do poder. O sentido comum teórico juridicista manifesta esta

dimensão simbólica por intermédio de discursos que outorgam ao

conflito o sentido de uma transgressão, é uma doxa que expressa o

princípio de estabilização dos conflitos.

f) O sentido comum teórico do direito, sem advertir sua própria

natureza gnoseológica, trata de manter a clássica distinção entre doxa e

episteme, reivindicando um lugar privilegiado para a segunda.

Mantendo-se fiel ao princípio de ruptura epistemológica aposta na

possibilidade de estabelecer um abismo entre o sentido comum e o

sentido científico, entre a verdade e a ideologia, assim como entre a

objetividade e a política. Nega, assim, o caráter simbiótico entre as

ações e as significações.

Desta forma o sentido comum teórico do direito reproduz o mito da dupla racionalidade: a cotidiana, sem nenhuma condição para captar cristal i ria mente a história e a ciência, que poderia, recorrendo a proce-dimentos auto-corretivos, ascender ao conhecimento imaculado da rea-lidade sócio-jurídica.

Estamos diante de um mito importante que precisamos desvelar - descobrir expondo à crítica a própria noção de verdade. Neste sentido teríamos que mostrar uma presença ética, ideológica e política que fundamenta uma vontade de verdade fora de todo o controle epistemológico. Dito de outro modo, que existe unia doxa no coração da episteme: o sentido comum teórico.

Setembro, 1986.