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O Oratório como Documento do Exercício Religioso Doméstico no Brasil Colônia Silveli Maria de Toledo Russo Mestranda - Universidade de São Paulo Este artigo apresenta algumas das reflexões que vêm sendo elaboradas no âm- bito da minha dissertação de mestrado e que caracteriza um conjunto de informa- ções de valor histórico e religioso, ao par com inegáveis valores artísticos, sobre oratórios, produzidos no Brasil, no século XVII e profusamente nos séculos XVIII e XIX, e que hoje compõem acervos oficiais do estado de São Paulo. Eruditos ou populares, a variada tipologia de oratórios em análise, bem como o conhecimento acerca do catolicismo popular que abarca o estudo desses peque- nos retábulos, constituem fatores determinantes do nosso propósito de contribuir não somente no campo da história da cultura e da religiosidade popular, mas prin- cipalmente no campo da história da arte religiosa. Os oratórios elencados Os oratórios que ora estudamos, hoje inseridos em instituições museológicas, transferiram-se do objeto pessoal para o espaço público, do valor de uso para o valor cognitivo. E, tendo em vista as considerações sobre o que ocorre em sua di- mensão arquitetônica e artística, faz-se importante observar, levando em conta o seu deslocamento do campo pessoal para o público, que tipo de informação ou atributos intrínsecos podem conter, sobretudo de conteúdo histórico. Certamente, as marcas materialmente inscritas nas peças norteiam leituras que possibilitam inúmeras inferências: a matéria-prima e respectivo processamento, as técnicas, as condições sociais de feitura, a morfologia do artefato, bem como seus sinais de uso. Insere-se aqui o objeto como documento, suporte de informação. Para o conceito de categorias de catolicismos brasileiros, cf. Thales de Azevedo. Problemas metodológicos da sociologia do catolicismo no Brasil. Revista do Museu Paulista, Nova Sé- rie, vol. XIV, São Paulo, 963; Idem. Catolicismo no Brasil – um campo para pesquisa social. Rio de Janeiro: Ministério da Educação Cultura, 955.

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O Oratório como Documento do Exercício Religioso Doméstico no Brasil Colônia

Silveli Maria de Toledo Russo

Mestranda - Universidade de São Paulo

Este artigo apresenta algumas das reflexões que vêm sendo elaboradas no âm-bito da minha dissertação de mestrado e que caracteriza um conjunto de informa-ções de valor histórico e religioso, ao par com inegáveis valores artísticos, sobre oratórios, produzidos no Brasil, no século XVII e profusamente nos séculos XVIII e XIX, e que hoje compõem acervos oficiais do estado de São Paulo.

Eruditos ou populares, a variada tipologia de oratórios em análise, bem como o conhecimento acerca do catolicismo popular� que abarca o estudo desses peque-nos retábulos, constituem fatores determinantes do nosso propósito de contribuir não somente no campo da história da cultura e da religiosidade popular, mas prin-cipalmente no campo da história da arte religiosa.

Os oratórios elencados

Os oratórios que ora estudamos, hoje inseridos em instituições museológicas, transferiram-se do objeto pessoal para o espaço público, do valor de uso para o valor cognitivo. E, tendo em vista as considerações sobre o que ocorre em sua di-mensão arquitetônica e artística, faz-se importante observar, levando em conta o seu deslocamento do campo pessoal para o público, que tipo de informação ou atributos intrínsecos podem conter, sobretudo de conteúdo histórico.

Certamente, as marcas materialmente inscritas nas peças norteiam leituras que possibilitam inúmeras inferências: a matéria-prima e respectivo processamento, as técnicas, as condições sociais de feitura, a morfologia do artefato, bem como seus sinais de uso. Insere-se aqui o objeto como documento, suporte de informação.

� Para o conceito de categorias de catolicismos brasileiros, cf. Thales de Azevedo. Problemas metodológicos da sociologia do catolicismo no Brasil. Revista do Museu Paulista, Nova Sé-rie, vol. XIV, São Paulo, �963; Idem. Catolicismo no Brasil – um campo para pesquisa social. Rio de Janeiro: Ministério da Educação Cultura, �955.

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A presença de oratórios reproduzindo elementos de linguagem arquitetônica é uma constante no elenco selecionado para análise. Em suas variantes, acentuados pela resolução ornamental exterior, ordenam-se de tal maneira como se tratassem de pequenos retábulos. Temos, em alguns exemplos, estruturas convertidas em colunas de fuste reto ou abaulado, assemelhando-se a pilastras ou semicolunas, onde o remate superior culmina em balaustradas ou em frontões variados.

Os oratórios entalhados encontram-se entre as criações mais notáveis, pela combinação de elementos arquitetônicos e ornamentais, estabelecendo uma liga-ção entre a escultura, a pintura (nos exemplares lacados e policromados), o mobi-liário e a talha, com a qual surgem diversos elementos em miniatura.

Vemos que a talha dourada, e por vezes policromada, arte esta que alcança uma das expressões mais importantes do espírito barroco, é elemento proeminente no reves-timento de alguns exemplares do nosso elenco de oratórios. Como aqueles, datados do século XVIII, particularmente de procedência mineira, que apresentam pequenos orna-tos entalhados em relevo, a atestar mão-de-obra erudita, e recebem pintura policroma-da (a pintura de imitação de pedra e o esponjado, executados sobre superfícies da madeira não revestidas de talha, têm particular incidência nesses exemplos), remeten-do-se à talha dourada dos retábulos portugueses do mesmo período, graças à relativa continuidade da cultura colonial às formas desenvolvidas na Metrópole.

Particular relevo merecem as tipologias que apresentam estilemas do vocabulá-rio decorativo de fonte barroca contra-reformista, a figurar nas suas estruturas com-posicionais. Distinguimos algumas soluções de arcabouço mais fechado e desenvol-vimento vertical acentuado, que privilegiam a visão frontal do espectador ao espaço interior, no qual se projeta uma mini-estrutura de corpos salientes, e se destina a conter apenas uma imagem. Assim é o oratório que emerge da parede de uma das salas do Mosteiro de Nossa Senhora da Luz, em São Paulo, especificamente na ala que abriga o Museu de Arte Sacra, e que se integra à taipa da arquitetura edificada no século XVIII, como um testemunho da excelência de uma rústica técnica constru-tiva, baseada na madeira e no barro, possivelmente acompanhando as tradições nas construções da época em São Paulo, onde as ferragens são excepcionais.

Esse oratório a que nos referimos, datado do século XVIII, possivelmente cons-truído anteriormente à construção do convento e acrescentado como oratório em-butido, posteriormente, em finais do mesmo século, graças à espessura das pare-des, apresenta adequação formal que se refere ao retábulo do barroco chamado de “Estilo Nacional” no mundo ibérico, na sua forma de portal em arcos concêntricos e forma torsa em espiral desses arcos, revelando também a presença significativa de uma simbologia eucarística na sua ornamentação - o motivo simbólico orna-mental da videira, mais as folhas de acanto. Esses arcos, cujas extensões com as marcantes superfícies verticais, convergem em profundidade para o espaço central, onde é abrigada uma pequena imagem de Nossa Senhora da Piedade. Verificamos a semelhança dessa peça, com suas arquivoltas, com o frontão dos altares colate-rais da Igreja dos Jesuítas do Embu, estado de São Paulo.

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Já no grupo de oratórios produzidos no século XIX, de original produção pau-lista, sobretudo da região do Vale do Paraíba, temos uma criação espontânea que seguiu viva até o século XX, feita por profissionais possuidores de um fazer artístico não-erudito que na tentativa de cercar os modelos eruditos, introduzem elementos mais ingênuos às peças. Quando a eles se trasladam fórmulas barrocas, desvirtu-am-se dos elementos representativos com formas simplificadas, tendentes a uma organização esquemática. Assim como, pela possível necessidade de diminuir o custo com a produção artística, acabam por optar pela utilização de materiais reti-rados da fauna, da flora e da natureza mineral. As possibilidades culturais e artísti-cas da região adquirem uma grande importância, que podemos verificar na reper-cussão da diversidade de oratórios em estudo.

Os oratórios de uso privado e suas funções no ritual devocional e litúrgico

Não obstante às considerações do que ocorre na dimensão arquitetônica e artística desses objetos, este estudo procura ater-se ao dinamismo inerente à traje-tória do oratório no interior da morada colonial, sua condição de referência espa-cial e o desdobramento das suas variáveis. Além disso, salientam-se suas apropria-ções e usos, como de objeto de culto, destinado às orações, ao de oratório em funcionamento como altar2 - equipado com pedra d´ara, cálice, castiçais e demais objeto de uso litúrgico; função possível desde que precedida de autorizações espe-ciais – de “indultos”, na terminologia do direito canônico; mediante a promulgação de um breve apostólico obtido através de gestões onde, como relata Carlos Lemos, em Casa Paulista3, preponderavam as influências familiares, o poder político e a força dos “cabedais” perante o bispo e o cabido da região.

Tais licenças, aguardadas pelos interessados para o referido uso, inclinavam-se a se agravar nas muitas oportunidades nas quais os pedidos se dirigiam direta-mente à cúria romana e não ao respectivo tribunal eclesiástico submetido ao nún-cio apostólico�.

2 Para uma descrição geral do altar e suas partes constituintes, cf. Augusto Maria. Exposição histórico-litúrgica da santa missa. São Paulo: Paulinas, �962, p. 9-��.3 LEMOS, Carlos. A. C. Casa Paulista. São Paulo: Edusp, �999, p. 55-56. � Faz-se esclarecedor desse ponto certa ocorrência das Constituições Primeiras do Arcebis-pado da Bahia de D. Sebastião Monteiro Vide, expressão ultramarina mais completa da dou-trina e resoluções do Trento, quando recomenda, em título sobre “em que tempo, hora, e lugar se deve dizer missa, (...) que os oratórios não estando approvados pelo Ordinário, não se celebre nelles” (Livro 2o, título IV, § 338). Lê-se que “é mais conveniente não celebrar, do que dizer Missa em lugar não sagrado, e destinado pela Igreja para este santo sacrifício”, logo a seguir, renovam-se, quase com as mesmas palavras, as proibições de celebrar no recinto doméstico, sem a devida visita e aprovação, ressalvadas apenas as missas rezadas pelos párocos nas casas dos enfermos necessitados de receber o viático e as que podiam di-

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Como exemplo que dispõe a validação das referidas licenças, sempre impres-cindível ao grupo de interessados que, segundo Luiz Mott, em “Cotidiano e vivên-cia religiosa: entre a capela e o calundu” (In: Souza, Laura de Mello e (org.). Histó-ria da vida privada no Brasil I), pertencia a uma “elite branca, acastelada e minoritária demograficamente”5, podemos citar aqui um dos 20� processos de bre-ves de oratório privado, que abrange o período de �728 a �872, organizados na Cúria Metropolitana de São Paulo: o Breve Apostólico de �795, do habilitando Cláudio de Madureira Cavalheiros, Capitão Mor da Ordenança da Villa de Soroca-ba. Expedido pelo núncio apostólico respectivo em favor do beneficiário e sua es-posa, vemos num trecho dessa autorização: que no oratório destes últimos se possa “cumprir o preceito todos os seus familiares (...) e hóspedes”6.

Tratando-se aqui de celebrações de missas, e não mais de habituais rezas dian-te dos oratórios sem função de altar, são várias as passagens em outros processos consultados que ilustram a necessidade, por exemplo, de reservar ou adaptar um dos cômodos da residência especialmente para as atividades ligadas à liturgia eu-carística e os oratórios decentemente ornados e separados das demais dependên-cias da casa, de forma a ficarem desimpedidos de todos os usos domésticos.

Tradicional expressão de devoção do povo católico, os oratórios localizavam-se num canto a eles destinado no interior da casa, nas habitações urbanas, ou em cômodos, como os acima citados, localizados na faixa de recepção junto aos alpen-dres das casas-grandes de fazendas e engenhos (providência que constituía uma necessidade devido às grandes distâncias separando as fazendas das vilas), livres de proximidades promíscuas e independentes quanto ao seu acesso, dando oportuni-dade a formas de sociabilidade religiosa capaz de se estender para além do núcleo familiar mais restrito, envolvendo também os escravos e agregados que se vinham reunir diante dele para a reza cotidiana.

Segundo Carlos Lemos, em obra acima citada, essa faixa de recepção da casa roceira separando o público do privado não impedia que as mulheres da família assistissem às cerimônias religiosas que ali aconteciam graças a alguns dispositivos

zer os jesuítas, conforme os seus privilégios, quando em missão pelo sertão, cf. D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor... Impressas em Lisboa no ano de �7�9, em Coimbra em �720, e reimpressa em São Paulo em �853. Livro 2o, título IV, § 338. Propostas e aceitas em um sínodo diocesano realizado na Bahia em �707, essas Constituições, ainda que tives-sem por atribuição, de início, somente a arquidiocese local, foram aos poucos substituindo as da arquidiocese de Lisboa em todos os bispados e jurisdição do prelado da colônia, vigendo como o principal corpus de legislação eclesiástica da América portuguesa ao longo de todo o período colonial e ainda sob o império. Um empreendimento, sem dúvida, bastante importante, entre nós, de adequar as resoluções do Concílio de Trento (�5�5-�563) às circunstâncias peculiares da vivência religiosa em terras do além-mar. 5 MOTT, Luiz. “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”. In: Laura de Mello e Souza (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portu-guesa. São Paulo: Companhia das Letras, �997 (História da vida privada no Brasil; �), p. �6�.6 Processo de Breve Apostólico localizado na Estante 3, Gaveta 6�, Número 77.

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como “grades ou treliças dispostas na parede lateral contígua às acomodações ín-timas”7, que impediam as mesmas de serem vistas pelos possíveis estranhos locali-zados no alpendre.

Assim, chama-nos a atenção um significado assumido no contexto em apreço: o oratório como suporte material e pólo aglutinador de vivências religiosas - fonte potencial para a pesquisa histórica, levando-nos a imergir no universo simbólico da vida cotidiana no Brasil, da Colônia e do Império, e a refletir sobre as mudanças e persistências dos costumes no interior das habitações, em especial no âmbito da religiosidade, primordialmente em meados do século XVIII e início do XIX, época em que os tais oratórios com função de altar, junto aos alpendres fronteiriços, fo-ram gradativamente sendo substituídos pelos oratórios portáteis para uso individu-al, sinais de uma vida íntima em ascensão.

Vemos que a utilização dos oratórios envolve peculiarmente o organismo fa-miliar, tendo como cenário o ambiente doméstico, onde os exercícios destinados às orações tomam como base algum marco ou referência de natureza espacial. Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala8, e também Luiz Mott, em texto já ci-tado, explicitam, nesse sentido, sobre a importância dos espaços reservados pelas famílias, para a prática dos exercícios religiosos e, em especial, para a guarda e a expressão do sentimento de devoção aos santos de predileção dos donos da casa.

Para a cidade de São Paulo e arredores, dispomos de somente uma indicação sobre a existência e a difusão de oratórios domésticos (portáteis) no século XVII: Eduardo Etzel, em Imagens religiosas de São Paulo9, informa, por exemplo, em consulta à série de �� volumes de inventários paulistas, desde �578 até �750, pu-blicados pelo Arquivo do Estado de São Paulo, que encontrou, em �67�, entre os objetos privados de devoção, referência a oratório, e cita: “Foi avaliado um nicho em sua avaliação de três mil e duzentos réis”. Na distribuição, segue-se, referente ao nicho: “Quinhão que coube a Izabel Pompeu (...). Deu-se-lhe em um oratório dez patacas”. (vol. �8: p. �86-�99) (nicho e oratório usados como sinônimos).

Somente no início do século XVIII, exatamente em inventários de �7�0 e �736, duas referências a imagens de pequenas dimensões, o que implica admitir que oratórios, bem como pequenas imagens de culto doméstico, difundiram-se princi-palmente em meados do século XVIII. Já as citações de retábulos, painel decorativo situado ao fundo e acima do altar, encontram-se em inventários de �630 e �633, em conformidade com a importância dos cômodos com um oratório com função

7 LEMOS, Carlos A.C. Casa Paulista. São Paulo: Edusp, �999, p. 3�: (...) essa faixa nunca foi exclusividade paulista, pois em todas as propriedades rurais brasileiras encontramos esse agenciamento assumindo diferentes modelos. 8 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio, �98�, p. �3�. 9 ETZEL Eduardo, Imagens Religiosas de São Paulo – Apreciação Histórica. São Paulo: Me-lhoramentos Edusp, �97�, p. ��.

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de altar, especialmente reservado, como já nos referimos, pelas famílias um pouco mais abastadas para as práticas dos mencionados exercícios.

Entre outras indicações levantadas sobre a existência e a difusão de oratórios domésticos, temos, por exemplo, o relato de Maria Beatriz Nizza da Silva, em Vida privada e quotidiano no Brasil, citando um importante negociante da Vila de San-tos, na Capitania de São Paulo, Coronel Francisco Xavier da Costa Aguiar, que, no seu caderno de assentos�0 (�78� a �82�), anotou as despesas feitas com os objetos colocados no cômodo do oratório: uma mesa, um painel grande de Nossa Senhora das Dores e um crucifixo, além de alguns objetos de culto bastante valio-sos, deduzindo, então, Nizza da Silva, “que a posse de um oratório doméstico im-plicava um nível elevado de fortuna, embora outros houvesse mais modestos do que este pertencente a um membro do corpo mercantil”��. Já para a cidade do Rio de Janeiro, a autora informa em uma série de �5 inventários cariocas que, somente quatro deixavam de arrolar entre os seus itens “objetos privados de devoção” os citados oratórios.

Já o pintor francês Jean Baptiste Debret, no Brasil entre os anos de �8�6 a �83�, descreve, em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, o móvel do oratório já fazendo alusão ao seu aproveitamento como mesa eucarística: nele, com efeito, “um altar é erguido, dissimulado atrás de painéis aparentando um armário que se abre de maneira a constituir altar”, informa ainda que “é cercado de gavetas susce-tíveis de conter os acessórios necessários à celebração eucarística”�2. Também no século XIX, no registro de João Maurício Rugendas, em Viagem Pitoresca Através do Brasil (�825-�830), à casa de colono abastado, a seguinte citação: “Há também um oratório reservado ao culto doméstico, o mais das vezes colocado na varanda, no outro ângulo da casa”�3.

Em pesquisa no Acervo “Equipamentos da Casa Brasileira – Usos e Costumes”, existente no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, atentamos para a seguinte referência a uma casa de ex-escrava:

Havia uma cômoda já velha, com puxadores de vidro verde, sobre a qual se estendia uma clássica toalha de rendas e se perfilavam várias imagens de santos. Pelas paredes viam-se litografias de assuntos religiosos emoldurados em madeira. A um canto destacava-se um pequeno oratório, forrado de papel de cor e guarnecido de galeões amarelos; duas velas o iluminavam e faziam

�0 Sem autor, O caderno de assentos do Coronel Francisco Xavier da Costa Aguiar (Santos, São Paulo). In: Anais do Museu Paulista. t. XX, São Paulo, �966, p. �9�, 28�.�� Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil. Na época de D. Maria I e de D. João VI. Lisboa: Estampa, �993, p. 29�. �2 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins Fontes, �9�0. 3v. v. 3, p. �73.�3 RUGENDAS, João Maurício. Viagem Pitoresca Através do Brasil (1825-1830). São Paulo:EDUSP EDUSP/Biblioteca Histórica Brasileira/ Martins Editora, �972, p. ��3.

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sobressair de dentro a figura mal talhada de um Santo Antonio, vivamente co-lorido e cercado de alecrim seco e de flores viçosas. (Azevedo, Aluísio. Girân-dola de Amores (�882). São Paulo: Martins Fontes Editora, �960, p.20�).

Bem mais importante, no entanto, do que sublinhar tais ocorrências eventuais é a indicação contida nessa curta citação, correspondente à definição do vocábulo “oratório” por Antônio de Moraes Silva, em seu respeitável Dicionário da língua portuguesa, de �789: “oratório”, afirma ele, significa o “nicho onde estão os santos em casa”, acrescentando que o mesmo “talvez tenha altar onde se diz missa”��. Assim, como já se pode inferir das considerações sobre o dinamismo inerente à trajetória do oratório no interior da morada colonial, que por vezes toma a função de altar, achamos pertinente a sugestão desse paralelo, já que possuímos, nos exemplares em estudo, oratórios que cumpriam as referidas funções.

Ao estudar os oratórios no contexto doméstico, observamos que, entre as ha-bituais manifestações da vivência religiosa católica, além do oratório com o santo de maior devoção dos donos da casa, havia sempre algum outro símbolo visível da fé cristã. Desde o despertar, por exemplo, via-se o cristão próximo a um rosário dependurado na própria cabeceira da cama ou a um quadro com a imagem do santo de sua devoção pessoal, muitas vezes tendo ao seu lado um recipiente com óleo de mamona onde uma lamparina votiva queimava incessantemente. Todo devoto tinha seu santo protetor e predileto. De todos eles, o lusitano santo Antonio é o de maior devoção familiar também na América portuguesa, sendo sempre o advogado das causas perdidas e o refúgio das tribulações.

Parece lógico dizer que o estudo dos oratórios nos limites formais da sua cria-ção, resultado visual de um processo histórico, e não a simples aceitação de mode-los que chegam de lugares distantes, no caso brasileiro, da metrópole lusa e de suas outras expansões, é um dos aspectos mais atraentes do nosso trabalho de pesquisa; isso porque, superada a fase em que a preocupação essencial era a escolha das peças a serem estudadas, o momento atual caracteriza-se pelo entrosamento dos estudos sobre a arte desses objetos no contexto das práticas religiosas, ou melhor, na proeminência da religiosidade privada da Colônia.

O fiel em comunhão com seu Deus não é apenas um homem que vê verdades novas que o incréu ignora; é um homem que pode mais. Ele sente mais força, seja para suportar as dificuldades da existência ou para vencê-las. Émile Durkheim

�� SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. Rio de Janeiro: A a da Silva Lobo, �889. �v.

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Referências bibliográficas

ALVES, Natália. A Arte da Talha no Porto na época Barroca. Porto: Arquivo Histó-rico – Câmara municipal do Porto, �989, v.�, p. �69.

Oratório de embutir, século XVIII. Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo. Foto Silveli Russo, 2005.

308 - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

Oratórios de pousar, século XVIII. Acervo Museu Paulista da USP. Foto Silveli Rus-so, 2006.

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Oratório de embutir, século XVIII. Acervo Palácio de Inverno do Governo do Estado de São Paulo. Foto Silveli Russo, 2006.

3�0 - AtAs do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno

Oratório de pousar, século XIX. Acervo Palácio de Inverno do Governo do Estado de São Paulo. Foto Silveli Russo, 2006.