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1 O Papel das Agências Reguladoras na Gestão dos Serviços Públicos: um Estudo de Caso da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL Autoria: Carla Aparecida Arena Ventura, Dante Pinheiro Martinelli Resumo Verifica-se uma tendência clara nos últimos anos, entre os países que optaram por amplos processos de privatização de serviços básicos, de criar órgãos de regulação ou de conferir maior autonomia ou poderes aos já existentes, observando-se, na prática, o fortalecimento das agências reguladoras. No Brasil, as agências reguladoras foram implementadas no contexto do processo de desestatização na segunda metade da década de 1990. Dentre as agências criadas destaca-se a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, que desempenhou um papel fundamental no processo de flexibilização do setor de telecomunicações. Este estudo qualitativo, do tipo estudo de caso, visou compreender a relevância da atuação das agências reguladoras a partir da análise do processo de criação e das ações e relações da ANATEL no contexto das telecomunicações brasileiras. Na presente investigação, inicialmente foi realizada uma pesquisa descritiva com dados secundários. Posteriormente, foi realizada uma pesquisa descritiva do tipo estudo de caso. Os dados foram coletados por meio de observação e entrevistas semi-estruturadas realizadas na agência reguladora. As entrevistas foram analisadas por meio da análise de conteúdo. Como resultado deste estudo são propostas sugestões para a gestão dos serviços de telecomunicações no Brasil. Introdução Nos anos de 1990, o movimento de reforma do Estado, especialmente nos casos de monopólios públicos, associado às mudanças econômicas e políticas derivadas do acentuamento do processo de globalização em âmbito mundial, alteraram as práticas de gestão dos serviços estatais. Nesta perspectiva, os Estados aprofundaram, modificaram e sofisticaram suas ações de regulação econômica, concebendo novos mecanismos, órgãos e instituições específicos, o que resultou no fortalecimento do papel das agências reguladoras na regulação de setores-chave da economia. A reestruturação do modelo de monopólio estatal das telecomunicações no Brasil iniciou-se em 1995, acompanhando o movimento irreversível de reformas já realizadas em outros países latino-americanos como o México, Chile, Argentina e Venezuela. Estas mudanças consolidaram-se com a criação da ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações, responsável pela implementação do modelo de flexibilização na exploração dos serviços telecomunicações. Este estudo visa compreender a relevância da atuação das agências reguladoras em um cenário de reforma do Estado, através da análise do processo de criação e das ações e relações da ANATEL no contexto das telecomunicações brasileiras. Na presente investigação, inicialmente foi realizada uma pesquisa descritiva com dados secundários, mediante a revisão bibliográfica de documentos, materiais jornalísticos e estudos sobre as agências reguladoras e a experiência brasileira nesta área, especialmente a evolução e atuação da Agência Nacional de Telecomunicações. Posteriormente, foi realizada uma pesquisa descritiva do tipo estudo de caso, utilizado em pesquisas de campo. Os dados foram coletados por meio de observação e entrevistas semi-estruturadas realizadas na agência reguladora. As entrevistas foram analisadas a partir da análise de conteúdo. Como resultado deste estudo de caso, são propostas sugestões para a gestão dos serviços de telecomunicações no Brasil. As Agências Reguladoras

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O Papel das Agências Reguladoras na Gestão dos Serviços Públicos: um Estudo de Caso da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL

Autoria: Carla Aparecida Arena Ventura, Dante Pinheiro Martinelli

Resumo Verifica-se uma tendência clara nos últimos anos, entre os países que optaram por amplos processos de privatização de serviços básicos, de criar órgãos de regulação ou de conferir maior autonomia ou poderes aos já existentes, observando-se, na prática, o fortalecimento das agências reguladoras. No Brasil, as agências reguladoras foram implementadas no contexto do processo de desestatização na segunda metade da década de 1990. Dentre as agências criadas destaca-se a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, que desempenhou um papel fundamental no processo de flexibilização do setor de telecomunicações. Este estudo qualitativo, do tipo estudo de caso, visou compreender a relevância da atuação das agências reguladoras a partir da análise do processo de criação e das ações e relações da ANATEL no contexto das telecomunicações brasileiras. Na presente investigação, inicialmente foi realizada uma pesquisa descritiva com dados secundários. Posteriormente, foi realizada uma pesquisa descritiva do tipo estudo de caso. Os dados foram coletados por meio de observação e entrevistas semi-estruturadas realizadas na agência reguladora. As entrevistas foram analisadas por meio da análise de conteúdo. Como resultado deste estudo são propostas sugestões para a gestão dos serviços de telecomunicações no Brasil. Introdução

Nos anos de 1990, o movimento de reforma do Estado, especialmente nos casos de monopólios públicos, associado às mudanças econômicas e políticas derivadas do acentuamento do processo de globalização em âmbito mundial, alteraram as práticas de gestão dos serviços estatais. Nesta perspectiva, os Estados aprofundaram, modificaram e sofisticaram suas ações de regulação econômica, concebendo novos mecanismos, órgãos e instituições específicos, o que resultou no fortalecimento do papel das agências reguladoras na regulação de setores-chave da economia.

A reestruturação do modelo de monopólio estatal das telecomunicações no Brasil iniciou-se em 1995, acompanhando o movimento irreversível de reformas já realizadas em outros países latino-americanos como o México, Chile, Argentina e Venezuela. Estas mudanças consolidaram-se com a criação da ANATEL, Agência Nacional de Telecomunicações, responsável pela implementação do modelo de flexibilização na exploração dos serviços telecomunicações.

Este estudo visa compreender a relevância da atuação das agências reguladoras em um cenário de reforma do Estado, através da análise do processo de criação e das ações e relações da ANATEL no contexto das telecomunicações brasileiras.

Na presente investigação, inicialmente foi realizada uma pesquisa descritiva com dados secundários, mediante a revisão bibliográfica de documentos, materiais jornalísticos e estudos sobre as agências reguladoras e a experiência brasileira nesta área, especialmente a evolução e atuação da Agência Nacional de Telecomunicações. Posteriormente, foi realizada uma pesquisa descritiva do tipo estudo de caso, utilizado em pesquisas de campo. Os dados foram coletados por meio de observação e entrevistas semi-estruturadas realizadas na agência reguladora. As entrevistas foram analisadas a partir da análise de conteúdo.

Como resultado deste estudo de caso, são propostas sugestões para a gestão dos serviços de telecomunicações no Brasil. As Agências Reguladoras

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As primeiras agências reguladoras foram criadas na Inglaterra a partir de 1834 com o objetivo de permitir a participação efetiva do Estado na organização das relações econômicas. Nesta perspectiva, a regulação como espécie de intervenção federal apresenta características marcadamente econômicas, com o intuito de cuidar de um campo específico de atividades proveniente de setores ditos privados ou de reserva estatal, como as telecomunicações no caso do Brasil. Segundo Ferraz Júnior (2000), as agências reguladoras representam a substituição do modelo de gestão com base em controles formais e na intervenção direta, para um modelo gerencial, com base na avaliação de desempenho (eficiência) e intervenção condicionante da eficiência (regulação e regulamentação).

Na verdade, a criação de agentes autônomos deve embasar-se em uma relação de equilíbrio que, por um lado, vise diminuir a concentração de poderes nas mãos do Estado, estabelecendo um ambiente mais saudável e democrático e por outro, garanta que a agência também não esteja totalmente imune ao controle estatal, o que seria um grande risco de afronta ao Estado de Direito.

As agências apresentam também a missão de proteção dos consumidores. Daí falar-se em universalização dos serviços básicos, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil. Sendo assim, o modelo de privatização dos serviços, como os de telecomunicações no Brasil, justificou-se, em primeiro lugar, pela necessidade de se universalizar os serviços prestados em regime público, independentemente da região geográfica e da classe social do usuário, buscando ampliar o seu acesso.

Outro ponto de profunda importância para as agências reguladoras, de forma geral, é o estímulo e manutenção à concorrência. Esta é uma tarefa extremamente complexa e delicada. Devem, portanto, buscar manter uma estrutura de mercado economicamente viável, fazer licitações transparentes para a escolha de novas empresas, impedindo que os concorrentes se aliem ilicitamente.

Marques Neto (2002) adverte que o órgão regulador deve ter total independência perante os agentes econômicos exploradores da atividade regulada. Perder tal independência significaria negar a própria razão de ser da regulação. Isso não significa que a atividade regulatória deva ser exercida contra o regulado. No novo contexto da regulação estatal (onde o traço da competição e da pluralidade de prestadores constitui eixo vetorial), os operadores da atividade regulada são parte fundamental. Porém, em que pese manter com eles uma permanente e transparente interlocução, o órgão regulador deve poder divisar os interesses gerais que tutela, dos interesses específicos (embora legítimos) dos regulados.

Deve-se também salientar a busca de autonomia da agência reguladora com relação ao poder político. Sendo assim, apesar de implementar macropolíticas setoriais definidas pelo governo, a agência reguladora não deve se transformar em instrumento de jogo político. Para reduzir essa influência deliberada, os órgãos dirigentes são colegiados e os membros possuem mandato fixo. Desta forma, busca-se garantir, pelo menos em tese, a estabilidade dos dirigentes, a autonomia na gestão administrativa do órgão regulador, fontes próprias de recurso e a não vinculação hierárquica da agência a qualquer instância do governo.

A “independência” das agências reguladoras é um tema bastante complexo. Não se pode deixar de vislumbrar aqui no mínimo dois viéses: a retórica governamental e sua postura concreta, no que tange conferir efetivamente independência a tal ente (VENTURA, 2004).

Em suma, as agências reguladoras devem buscar assegurar a maior permeabilidade da atividade regulatória aos interesses da sociedade, possuindo mais capacidade de arbitramento desses interesses e se configurando em um novo tipo de autoridade estatal. Trata-se de uma perspectiva radicalmente diferente da regulação estatal tradicional, desenvolvida em espaços tecnocráticos sem clara interlocução com a sociedade. Verifica-se, portanto, que as agências

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reguladoras possuem uma autoridade negocial ao invés de uma autoridade unilateral. Além da autoridade negocial, destacam-se os seus poderes normativo, de mediação e fiscalização.

A atividade regulatória possui um caráter notadamente normativo e, neste cenário, as agências reguladoras acabam por compartilhar a tarefa normativa com o legislativo. De acordo com Menezello (2002), o poder regulador é uma delegação de competências do Poder Legislativo e Executivo às agências para que, atuando com dinamismo, atualidade e flexibilidade, possam atender aos reclamos dos agentes regulados dentro da moldura jurídica vigente.

O poder normativo das agências não é ilimitado. Sua função legislativa baseia-se na teoria do princípio inteligível, ou seja, é legítima a delegação do poder legislativo sempre que o Congresso tenha determinado o alcance do poder que se transfere, assinalando um standard legislativo suficientemente claro e concreto, para que em todo caso a agência atue segundo a vontade do legislador, com a mínima discricionariedade. Neste sentido, a Lei Geral de Telecomunicações, a partir de seu artigo 19, determinou o exercício legislativo/normativo da ANATEL.

As agências reguladoras são também responsáveis por procedimentos de solução de controvérsias entre os usuários e os agentes regulados, bem como entre estes últimos. Configuram-se, portanto, em espaços para a mediação de conflitos na busca de sintonizar os diversos atores envolvidos no setor regulado, caracterizado pela crescente complexização e especialização. Realizam, assim, a mediação ativa dos interesses dos operadores, usuários e do poder político, com o objetivo de viabilizar o atendimento das parcelas mais vulneráveis da população. Este poder é também conhecido como “quase judicial” e deve centrar-se no consensualismo em detrimento de decisões unilaterais.

Deste modo, as agências reguladoras são responsáveis pela gestão dos conflitos entre os seus potenciais clientes. O conflito ocorre quando existem interesses contraditórios e, neste cenário, a agência reguladora deve buscar monitorar as diferentes negociações, visando atuar como um terceiro imparcial. A agência desempenha então um papel primordial, com o intuito de transformar o conflito em algo positivo e construtivo para as partes.

O poder de fiscalização é também de suma importância para as agências reguladoras, delimitando suas relações com os entes regulados. O poder de fiscalizar está intrinsecamente ligado ao cumprimento da regulação e, em última instância, à preservação dos interesses da sociedade. Como conseqüência, as agências podem aplicar sanções contra os agentes que violem o ordenamento vigente. Assim, no caso das telecomunicações, o agente econômico submete-se ao poder fiscalizatório e sancionatório delimitado pela lei que criou a agência reguladora. Ressalte-se que todos os atos da agência devem ser motivados, atribuindo-se a outra parte o direito ao contraditório e a ampla defesa. Em contraposição, a falta de fiscalização adequada também gera responsabilidade para a agência reguladora.

As consultas e audiências públicas são procedimentos que permitem a participação dos agentes regulados e da sociedade em geral na elaboração dos atos normativos, possibilitando a discussão da minuta desses atos e a obtenção de críticas e sugestões com relação às ações emanadas da agência a eles vinculados (MARTINS, 1999).

Menezello (2002) explica ainda que as agências estão vinculadas e obrigadas a realizar tais chamamentos públicos como requisito de legitimidade das normas regulatórias. Estes atos representam a democracia participativa no âmbito da Administração Pública, em complementação à tradicional democracia representativa. Enfatiza-se ainda que, em nome do princípio da transparência, as sugestões recebidas devem ser disponibilizadas ao conhecimento público para todos os interessados na elaboração da norma. Sendo assim, as consultas e as audiências públicas visam discutir possíveis vícios a priori, aumentando a eficiência da regulação e a atuação preventiva das agências, em detrimento de ações

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repressivas e reparos, na busca de um diálogo com os setores regulados e com o objetivo de evitar os denominados riscos de captura.

Os riscos de captura das agências reguladoras representam o confronto das agências com os diferentes centros de poder que se intensificam na sociedade contemporânea. Desta forma, a captura se configura em uma pré-disposição pela agência reguladora a tomar decisões e ações de acordo com a indústria regulada, perdendo sua condição de autoridade comprometida com o interesse coletivo.

A captura é, portanto, mais uma faceta do fenômeno de distorção de finalidade dos setores burocráticos estatais (MENEZELLO, 2002). A literatura sobre o tema identifica diferentes formas de captura e conseqüentes meios para sua prevenção: - A corrupção representa um modo de captura e deve ser equacionada através da

contratação e com o estabelecimento de mecanismos efetivos e permanentes de controle. - Assunção pelo órgão regulador dos valores e interesses do regulado, denominada como

contaminação de interesses. Pode ser prevenida pela radicalização da transparência e publicidade da atividade regulatória.

- Há ainda a insuficiência de meios, representada pelo esvaziamento de recursos materiais, logísticos, financeiros e principalmente humanos. Deve ser evitada e para tanto, as agências possuem orçamento próprio, todavia sujeito à aprovação governamental, em um sistema de pesos e contrapesos.

- Por fim, a captura pelo poder político, bastante discutida neste capítulo. Visando evitar a sua captura, a atividade da agência deve estar aberta à participação de

todos os interesses envolvidos, mediante mecanismos de ouvidoria, conselhos consultivos e utilização de consultas públicas, audiências abertas e foros setoriais. Mostra-se assim necessária certa descentralização da atividade regulatória, que deve primar pela publicidade e transparência. Afinal, as agências somente poderão realizar a sua missão se suas ações forem efetivamente legítimas, ou seja, contarem com a credibilidade e apoio de seus clientes internos e externos (VENTURA, 2004).

Com base no exposto, conclui-se que as estruturas institucionais que permitiram a consolidação das reformas que culminaram com a flexibilização de alguns setores, principalmente as telecomunicações, caracterizaram-se pela separação das atividades de regulação, gestão e definição de políticas.

Nesta perspectiva, os modelos que levaram às mudanças buscaram delinear os limites entre a gestão técnica do processo, delegada às agências reguladoras e as macro-políticas governamentais, visando reduzir a captura política destes entes. Para tanto, foram criados os Conselhos Diretores das agências reguladoras, compostos por Conselheiros indicados pelo governo, mas com mandatos fixos.

As agências reguladoras são, assim, organismos independentes do setor regulado e com certa autonomia com relação ao governo. O agente regulador atua como um verdadeiro mediador em todo esse processo, promovendo e supervisionando as relações entre os diversos atores envolvidos no setor, mercado e governo.

A ilustração abaixo tenta elucidar graficamente as diferentes relações estabelecidas pelas agências reguladoras.

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Ilustração 1. Rede de Inter-relações das Agências Reguladoras

Após o estudo das relações externas que configuram o universo das agências reguladoras, o foco do próximo item é a experiência do Brasil quanto à criação de agências reguladoras e mais especificamente a atuação da ANATEL no setor de telecomunicações.

A experiência brasileira

No Brasil, as agências reguladoras foram criadas no contexto do processo de desestatização, em que a venda das empresas estatais prestadoras de serviço poderia resultar na perda pelo Estado do poder de influir na prestação do serviço e controlar a estrutura das empresas. Deste modo, foram implementadas com o objetivo de monitorar serviços fundamentais e cujo colapso seria um desastre para a economia. A primeira agência criada foi a ANEEL, Agência Nacional de Energia Elétrica, por meio da Lei 9.427 de 1996. Posteriormente, foram instituídas a ANATEL, objeto deste estudo e a ANP, Agência Nacional do Petróleo, respectivamente pelas Leis 9.472 de 1997 (Lei Geral de Telecomunicações) e 9.478 de 1997.

As várias agências não seguiram um modelo comum. Todavia, apresentam semelhanças e são entidades que exercem tarefas típicas do Estado e gozam de autonomia com relação ao Executivo. Possuem a natureza jurídica de autarquias com regime especial.

Ao estudar o assunto, Moraes (2002) comenta que no Brasil, as agências reguladoras foram constituídas como autarquias de regime especial integrantes da administração indireta, vinculadas ao Ministério competente para tratar da respectiva atividade, apesar de caracterizadas pela independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade.

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No caso das telecomunicações, a Lei Geral de Telecomunicações rompeu com os modelos jurídicos anteriores, mudando conceitos até então vigentes e criando uma nova estrutura de mercado, fundamentada na implantação de agência reguladora independente: a ANATEL.

Neste sentido, as competências administrativas exercidas pela União em matéria de telecomunicações, segundo a Lei nº 9.472/97, foram atribuídas, precipuamente, à Agência Nacional de Telecomunicações, que encarna o órgão regulador previsto no art. 21, XI da Constituição Federal (MARTINS, 1999).

Ao Poder Executivo ficou reservado o estabelecimento das políticas governamentais para o setor, além da jurisdição, delegada ao Ministério das Comunicações. Em 2003, o Ministério das Comunicações criou a Secretaria de Telecomunicações, com o objetivo de formular as políticas do setor. Além disso, a Secretaria tem competência sob os serviços de radiodifusão sonora (rádio) e radiodifusão de sons e imagens (televisão), que com a nova redação constitucional deixaram de ser considerados serviços de telecomunicações.

À ANATEL cabe regular as telecomunicações no Brasil, exercendo o poder concedente dos serviços prestados em regimes público e privado, a administração ordenadora das atividades privadas e a fiscalização dos serviços, incluindo a qualidade e os aspectos de organização do mercado (VENTURA, 2001).

A ANATEL, além da competência técnica, desfruta de liberdade gerencial e autonomia. Deve, todavia, prestar contas de suas ações, tanto qualitativamente como sob o ponto de vista financeiro. Dentre as atribuições da ANATEL, destacam-se: - Implementar a política nacional de telecomunicações. - Propor a instituição ou eliminação da prestação de modalidade de serviço no regime

público. - Propor o Plano Geral de Outorgas. - Propor o Plano Geral de Metas para Universalização dos Serviços de Telecomunicações. - Administrar o espectro de radiofreqüências e o uso de órbitas. - Compor administrativamente conflitos de interesses entre prestadoras de serviços de

telecomunicações. - Atuar na defesa e proteção dos direitos dos usuários. - Atuar no controle, prevenção e repressão das infrações de ordem econômica, no âmbito

das telecomunicações, ressalvadas as competências legais do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade.

- Estabelecer restrições, limites ou condições a grupos empresariais para obtenção e transferência de concessões, permissões e autorizações, de forma a garantir a competição e impedir a concentração econômica no mercado. Editou a resolução 101 em 1999 estabelecendo os conceitos de controle e coligação, com o fim de orientar os agentes econômicos sobre a aplicação das normas restritivas da concentração no setor.

- Estabelecer a estrutura tarifária de cada modalidade de serviços prestados em regime público. A compreensão da função da ANATEL na gestão das telecomunicações no Brasil é,

então, fundamental para uma análise das políticas adotadas no setor de telecomunicações e a proposição de sugestões de direcionamentos futuros para a agência.

No item seguinte são explicitados os procedimentos metodológicos utilizados neste trabalho.

Procedimentos Metodológicos Trata-se de uma pesquisa qualitativa, considerada apropriada quando o fenômeno em estudo é complexo, de natureza social e que não tende à quantificação. A pesquisa qualitativa

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pode ser definida como um multi-método, envolvendo uma abordagem interpretativa e natural do objeto de estudo (DENZIN & LINCOLN, 1994). Neste contexto, a pesquisa qualitativa busca o sentido do comportamento dos atores, baseando-se na interpretação. Neste estudo, inicialmente foi realizada uma investigação descritiva com dados secundários sobre o processo de reestruturação das telecomunicações no Brasil, a partir de uma intensa revisão bibliográfica de documentos (contratos, planejamentos governamentais, protocolos, acordos internacionais e legislações), materiais jornalísticos e estudos sobre o tema. A revisão bibliográfica centrou-se em material recente, partindo fundamentalmente de publicações do início da década de 90. Esta delimitação justifica-se pela atualidade do tema trabalhado e pela rápida obsolescência dos trabalhos afins, causada por um grande dinamismo no sistema transnacional globalizado e por uma série de transformações tecnológicas nas comunicações, de impacto imprevisível sobre o mercado e as políticas regulatórias nacionais e internacionais.

Posteriormente, foi realizada uma pesquisa descritiva do tipo estudo de caso, utilizado em pesquisas de campo. Yin (1994) apresentou quatro aplicações para o modelo de estudo de caso: 1 – Explicação de ligações causais complexas em intervenções reais complexas. 2 - Descrição do contexto no qual as intervenções ocorreram. 3 – Descrição das intervenções. 4 – Exploração das situações em que as intervenções avaliadas não possuem resultados claros.

As tecnologias da comunicação e informação podem envolver todas as quatro categorias. Este trabalho embasa-se eminentemente nas três últimas aplicações.

Para Hartley (1994), o estudo de caso consiste em uma investigação detalhada de uma ou mais organizações, ou grupos dentro de uma organização, com vistas a analisar o contexto e os processos envolvidos no fenômeno em estudo. Esta pesquisa analisou a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL.

Para a coleta de dados, foram realizadas observações e entrevistas com representantes de diferentes instâncias de poder da ANATEL com o intuito de entender melhor o âmbito de atuação e as relações da agência com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como o exercício dos diferentes poderes normativo, de mediação e fiscalização por esta organização.

De acordo com Selltiz et al (1980), a observação se torna uma técnica científica na medida em que: serve a um objetivo formulado de pesquisa, é sistematicamente planejada, é sistematicamente registrada e ligada a proposições mais gerais, em vez de apresentadas como um conjunto de curiosidades interessantes e, por fim, quando é submetida a verificações e controles de validade e precisão. Neste sentido, destaca-se que a grande vantagem da observação consiste na possibilidade de registro do comportamento, tal como ele ocorre.

Por outro lado, a entrevista pode ser considerada como uma técnica relevante para a coleta de dados envolvendo a comunicação verbal entre o pesquisador e os entrevistados. É geralmente utilizada em estudos exploratórios e descritivos.

Quanto à análise, os dados secundários foram analisados através de análise documental e as entrevistas através de análise de conteúdo.

Segundo Bardin (1977), a análise de conteúdo pode ser compreendida como um único instrumento, marcado porém por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações. Ao longo deste trabalho foi realizada uma análise de significantes, também denominada análise temática. Assim, a foram identificados conteúdos que convergem para significados semelhantes, agrupando-os em unidades temáticas. Os temas resultantes da análise de conteúdo das entrevistas são expostos no próximo item.

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Achados da Pesquisa No Brasil, o processo de reestruturação das telecomunicações, organizadas sob a

forma de monopólio estatal, ocorreu no final dos anos de 1990 como conseqüência de um movimento global de liberalização dos serviços. Sendo assim, das entrevistas realizadas depreendem-se as unidades temáticas “pressão externa” e “defasagem tecnológica”, quando se trata da evolução dos serviços de telecomunicações no país. A ênfase na pressão externa não exclui as questões internas como estímulo à reestruturação do setor. Não se pode esquecer também o movimento de reforma do Estado e o déficit tecnológico do setor de telecomunicações no Brasil.

Neste contexto a ANATEL, criada em 1997 pelo Poder Executivo, nasceu com o propósito de promover a liberalização dos serviços de telecomunicações no Brasil e desempenhou um papel fundamental no estabelecimento do modelo de reestruturação do setor.

Quanto aos poderes da ANATEL, das entrevistas analisadas observaram-se as unidades temáticas: “quase-legislativo”, “quase-executivo” e “quase-judiciário”.

Por outro lado e buscando analisar a atuação das agências a partir da perspectiva oposta, surge a pergunta: quais são as influências dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário do Brasil na atuação da ANATEL?

Durante as entrevistas, procurou-se compreender a real interferência destes poderes e o seu significado no dia-a-dia da agência reguladora e conseqüentemente na gestão das políticas do setor. A relação da ANATEL com o Legislativo sequer foi mencionada nas entrevistas, pois é bastante difusa. Entretanto, essa relação tende a ser cada vez mais estreita, não mediante uma maior integração com o Parlamento, mas a partir da ação do Tribunal de Contas da União, que tem se feito presente, sobretudo, no que diz respeito a licitações e a fiscalizações realizadas na agência. Ainda, pode-se dizer que o Judiciário é chamado apenas em questões de resolução de conflitos entre as empresas ou entre estas e a ANATEL, quando não aceitam as decisões do órgão regulador. Ênfase maior foi atribuída às relações com o Executivo, poder criador da ANATEL. Contudo, nestes nove anos da agência reguladora, a ligação com o Executivo vem sendo permeada por vários conflitos e indefinições.

Em síntese, no que diz respeito ao relacionamento da ANATEL com os Poderes do Estado, encontram-se as unidades temáticas “forte ligação com o Executivo” e “ligação difusa com o Judiciário e Legislativo”.

O modelo adotado pela ANATEL para as telecomunicações privilegia a competição. De acordo com os entrevistados, a competição nos serviços de telefonia fixa, meta da reestruturação das telecomunicações no Brasil, vem ocorrendo na longa distância e no segmento corporativo, confirmando que o grande desafio é atingir competição no serviço local. Não obstante, importa ressaltar a voz comum de todos os entrevistados, que afirmam não ser possível mais olhar para a competição da telefonia fixa sem analisá-la em um contexto abrangente de convergência. Assim, é certo que muitas mudanças já estão ocorrendo, especialmente com a massificação dos serviços de voz com protocolo Internet (VoIP).

No que diz respeito à competição, observam-se as seguintes unidades temáticas: “competição nos serviços de longa distância”, “dificuldade de estabelecimento de competição nos serviços locais”, “convergência”, “VOIP”.

A estabilidade regulatória e a transparência são essenciais na atuação das agências reguladoras, especialmente nas que estão ainda se consolidando como a ANATEL. Durante as entrevistas, verificou-se a busca desta estabilidade pelo Brasil, com o intuito de atrair os investimentos estrangeiros. Assim, quanto à estabilidade regulatória, para o Brasil, observam-se as unidades temáticas: “essencial e busca de investimentos estrangeiros”.

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A estabilidade está também ligada à necessidade de transparência nas ações da agência. Deste modo, a ANATEL estabelece procedimentos de consulta pública e de participação da sociedade civil. Os funcionários da ANATEL mencionaram a relevância da transparência. Entretanto, advertiram sobre a lentidão como conseqüência da busca pela transparência nas ações da agência, visando evitar os riscos de captura já bastante discutidos anteriormente. Ao estudar as agências reguladoras nos países em desenvolvimento, Sánchez & Hwan (2003) constatam que dentre as práticas, a transparência parece ser a mais importante porque promove a legitimidade da agência reguladora e ajuda a evitar a captura regulatória.

Cabe também salientar que, segundo a União Internacional de Telecomunicações (UIT), enquanto a competição é elemento importante para uma estratégia compreensiva de desenvolvimento social e econômico, a transparência na área da competição constitui o item vital para os regimes regulatórios globais. Neste sentido, a UIT associa a transparência ao sucesso das regulações de telecomunicações (ITU, 2003). Sendo assim, quanto à transparência, as unidades temáticas encontradas são: “essencial”, “lentidão” e “risco de captura”.

Com a reestruturação das telecomunicações no Brasil, observou-se ainda um aumento considerável da regulação, com o propósito de assegurar a aplicação dos modelos e, em última instância, garantir o estágio de competição. Destarte, durante as entrevistas, quando se perguntava a respeito do futuro das agências reguladoras, três unidades temáticas apareceram com freqüência: “convergência”, “competição” e “desregulação”.

Neste contexto, como se pode visualizar o futuro da ANATEL em um ambiente de desregulação?

Para os entrevistados, é certa a mudança do papel das agências reguladoras com o avanço das tecnologias, aproximando-as mais dos consumidores e ressaltando o seu papel fiscalizador, no sentido de assegurar os direitos dos consumidores junto às empresas.

Com base nestas constatações, persiste a indagação: quais contribuições podem ser apresentadas ao modelo de gestão das telecomunicações no Brasil para que melhor atinja os seus objetivos durante o período pós-privatização?

Para a UIT, União Internacional de Telecomunicações, o desempenho do setor está profundamente relacionado à atuação das agências reguladoras, cuja performance condiciona-se a fatores como: limitação de discricionariedade, independência de pressões políticas, possibilidade de obter informação detalhada das empresas, processo regulatório aberto ao escrutínio público e existência de recurso ao Poder Judiciário (ITU, 2003). No modelo brasileiro, houve a preocupação com todos estes itens que ocorrem na prática regulatória em diferentes graus de efetividade.

A atividade regulatória da ANATEL possui três níveis distintos: o nível micro, que contém as regras específicas que caracterizam a atividade regulatória; o nível intermediário, marcado pela organização e autoridade das agências diretamente responsáveis pela regulação, envolvendo questões como o grau de independência da agência e os seus riscos de captura e, por fim, o macro-ambiente, conformado pelas instituições legais e políticas. Este trabalho centrou-se fundamentalmente nos níveis intermediário e macro, pois possuem as maiores lacunas, que devem ser discutidas com o intuito de se atingir uma atividade regulatória efetiva.

No estudo do macro-ambiente, verificou-se que as relações da ANATEL são mais próximas do Poder Executivo. No Brasil, a formulação das políticas de telecomunicações continua formalmente sob a responsabilidade do Executivo, representado pelo Ministério das Comunicações, apesar de a ANATEL, na realidade, desempenhar um papel importante, como se observou no processo de reestruturação do setor.

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Nesta perspectiva, nota-se a dificuldade dos órgãos envolvidos em dissociar a formulação das políticas de sua execução. Na verdade, sabe-se que o detalhamento cabe à ANATEL, a quem a Lei Geral de Telecomunicações reservou a função de elaborar as propostas de políticas setoriais, com ampla participação da sociedade, para posteriormente submetê-las ao Presidente da República, por intermédio do Ministério das Comunicações. Todavia, o relacionamento da ANATEL com os Poderes, especialmente com o Executivo na figura do Ministério das Comunicações, não tem estado livre de entraves resultantes, de acordo com a opinião dos entrevistados, da falta de compreensão do papel da ANATEL no país, uma vez que é muito recente. Assim, o Projeto de Lei 3.337 de 2004, encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo ilustra este conflito ao propor a revisão da atuação das agências e modificações significativas em seu funcionamento.

Outro aspecto que merece ser citado diz respeito à concorrência, objetivo estratégico do modelo de flexibilização das telecomunicações. No Brasil, a defesa da concorrência é de competência do CADE, Conselho Administrativo de Defesa Econômica e da SDE, Secretaria de Direito Econômico, também já mencionados neste estudo. No caso das telecomunicações, a ANATEL deve instruir os processos, continuando o CADE como instância de julgamento. Pressupõe-se, portanto, a articulação efetiva entre ANATEL e CADE no sentido de coibir infrações à ordem econômica. Também nesse caso há uma proposta legislativa (o Projeto de Lei 5.877/05) de autoria do Poder Executivo, encaminhada ao Congresso, que além de alterar a estrutura do CADE, busca modificar as relações do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) com as agências reguladoras setoriais.

Deve-se também afirmar que o fato de ter sido criada por meio de lei, votada no Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, confere legitimidade maior à agência. Contudo, quando se estuda este macro-ambiente, ainda se verifica a necessidade de maior coordenação dos três Poderes e adaptação das instituições legais e políticas do setor público ao desempenho da nova função regulatória. Voltando ao nível intermediário, a Lei Geral de Telecomunicações estabeleceu a estrutura organizacional da ANATEL. Salienta-se que o processo de nomeação dos Conselheiros, envolvendo tanto o Executivo como o Legislativo, a garantia de estabilidade e a fixação de termo final dos mandatos visa legitimar a autoridade dos dirigentes com o intuito de reduzir o espaço para indicações com motivações unicamente políticas. Nota-se também que a existência do Conselho Diretor, atuando em regime de colegiado na direção da autarquia, equilibra de alguma forma o poder atribuído à agência, limitando sua discricionariedade, permitindo maior fundamentação nas decisões e o monitoramento mútuo entre os Conselheiros. Cumpre, entretanto, lembrar que a “independência” do órgão regulador é constantemente criticada e questionada, em virtude do número de profissionais de telecomunicações no Brasil ser muito restrito.

Quanto aos seus recursos humanos, a ANATEL enfrenta sérias dificuldades em manter profissionais qualificados, pois muitos deles migram para as empresas, em decorrência dos salários pagos. A presença do Conselho Consultivo objetiva ainda dar força ao mecanismo de contrabalanço, permitindo a participação da sociedade civil. De acordo com a UIT, a possibilidade de avaliação do público é condição sine qua non para o sucesso da agência reguladora.

Quando se trata da sociedade civil, observa-se o papel relevante que a ANATEL deve desempenhar com relação aos consumidores. Para a Lei Geral, o interesse público representa prioridade para a Agência. Desta forma, a ANATEL buscou criar uma série de espaços para dialogar com o público, através do website ou do seu call center. Em dezembro de 2000, a ANATEL foi a primeira agência reguladora do mundo a receber a certificação ISO-9001.

Quanto à independência financeira da Agência, constata-se que, na prática, o fato de suas dotações serem consignadas na Lei Orçamentária Anual e contingenciadas pelo

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Ministério das Comunicações e pelo Ministério da Fazenda repercute como uma limitação e pode gerar influências políticas. Desta forma, o ideal seria a real independência orçamentária da agência.

Apesar de todas as dificuldades elencadas, constata-se que no âmbito das telecomunicações, o Brasil conseguiu criar um órgão regulador de acordo com suas prioridades e realidade e inovou em muitos mecanismos de regulação. Considerações Finais

O arranjo tradicional das telecomunicações foi marcado pela existência de monopólios, públicos ou privados. O movimento de liberalização do setor iniciado nos anos de 1980, especialmente nos EUA, foi ganhando adeptos nos anos de 1990. Segundo dados do Fórum Econômico Global, no final do ano 2000, 55% dos 236 países já haviam experimentado reformas significativas nas telecomunicações.

No Brasil, a emenda constitucional n. 8, aprovada em 1995, modificou o artigo 21 da Constituição Federal e permitiu a reorganização do Sistema Telebrás, com a quebra do monopólio público das telecomunicações. A reestruturação do setor foi embasada nos pilares da competição e universalização e consolidou-se com a criação pela Lei Geral de Telecomunicações da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) em 1997.

Apesar de todo este movimento, ao contrário do que ocorreu em grande parte dos países desenvolvidos, o setor público brasileiro chegou ao final do século XX com pouca experiência no exercício da atividade regulatória. O processo de desenvolvimento brasileiro, marcado pela estratégia de substituição de importações comandada pelo setor produtivo estatal, gerou uma ampla teia de relacionamentos entre os setores público e privado, mas que não incorporava o exercício da atividade regulatória da forma como esta é tradicionalmente entendida. Quando ao longo da década de 90 modificou sua estratégia de desenvolvimento e, seguindo a experiência internacional, adotou um conjunto de reformas chamadas de neoliberais, o mercado de telecomunicações foi escolhido como um dos primeiros a ser reestruturado. O monopólio estatal foi eliminado e os serviços tradicionais de telecomunicações, assim como toda uma nova gama de serviços, passaram a ser providos por grupos privados que incorporaram algumas das maiores empresas do mercado mundial de telecomunicações. (AMARAL E CALMON, http://www.top.org.ar/Documentos/DINIZ,%20Amaral%20-%20CALMON,%20Paulo%20-%20O%20novo%20ambiente%20regulatorio.pdf).

Antes das mudanças globais no setor de telecomunicações, o arcabouço regulatório dominante normalmente envolvia um Ministério responsável pela criação de regulação a ser aplicada ao monopólio.Contudo, esta forma de organização tornou-se ultrapassada no novo ambiente liberalizado, especialmente porque as empresas não iriam investir em países sem nenhuma estabilidade regulatória. Neste cenário, observou-se a emergência do modelo de regulador independente, baseado na busca de uma separação estrutural, financeira e política entre o elaborador e o implementador de políticas.

Portanto, os novos reguladores se tornaram a regra e não a exceção, podendo ser considerados a base do movimento de reforma global das telecomunicações. As agências reguladoras não são entes recentes, pois a partir de 1887, tornaram-se instituições comuns nos EUA, sintetizando a administração pública no país.

No Brasil, as agências reguladoras foram criadas no contexto da desestatização e a ANATEL fundou-se no modelo norte-americano da Federal Communications Commission. Este estudo de caso buscou compreender a atuação da ANATEL e a sua relevância para a gestão das políticas de telecomunicações. Os dados foram coletados mediante observações e entrevistas semi-estruturadas. A análise das entrevistas resultou na identificação de conteúdos com significados semelhantes, que foram agrupados em unidades temáticas. Este processo de

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codificação foi fundamental para a sistematização dos dados e para a interpretação das características e singularidades da agência reguladora estudada. Ao tratar as políticas do setor, conclui-se que a ANATEL obteve êxito na universalização dos serviços prestados em regime público, estimula a competição e encontra extrema dificuldade em consolidá-la no nível local, especialmente no tocante à telefonia fixa. Com o tempo, acredita-se que a consolidação da competição levará a tão falada desregulação do setor de telecomunicações, alterando substancialmente os papéis das agências reguladoras, que passarão a privilegiar mais a interação com o consumidor e o seu papel fiscalizador e de garantidor do interesse público. A estabilidade regulatória e a transparência foram consideradas fundamentais para as agências reguladoras, principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil, que dependem de investimentos estrangeiros. Neste sentido, cabe enfatizar que a transparência é essencial para o sucesso dos regimes regulatórios de telecomunicações.

A ANATEL, ente recente da Administração Pública, ainda está se firmando frente ao próprio governo e sociedade. Neste contexto e considerando o seu macro-ambiente, a ANATEL enfrenta problemas de coordenação com os Poderes, especialmente o Executivo e com outros órgãos governamentais. No nível intermediário, possui dificuldades para completar e adequar o seu quadro de recursos humanos às necessidades do ambiente atual e para consolidar a sua tão “controversa” autonomia.

Salienta-se, também, que a aproximação da ANATEL com a sociedade civil não pode ou deve ser minimizada. Deste modo, a agência precisa investir maiores esforços na busca de sua própria legitimidade.

O dinamismo e inovação presentes no setor são expressos na convergência, que está alterando o conceito de regulação e motivará transformações nas agências reguladoras.

Acredita-se, enfim, que o potencial da ANATEL é muito grande e que para conseguir realizar as suas funções com maior efetividade deverá observar algumas das questões discutidas neste trabalho. Na verdade, o sucesso do modelo de flexibilização das telecomunicações no Brasil depende em grande parte da consolidação da agência como órgão verdadeiramente autônomo, bem como de sua adaptação ao novo ambiente regulatório.

Em suma e à luz das considerações supra elencadas, os desafios a serem enfrentados pela ANATEL podem ser assim resumidos: - Contrabalançar a sua autonomia com o controle dos poderes estatais. Apesar da

necessidade de ser um ente autônomo é ainda necessário o controle de seus atos, até mesmo para evitar o abuso de poder e os riscos de captura da agência. Por outro lado, sua relação com os poderes deve ser coordenada, evitando assincronias e assegurando que sua ação seja realmente efetiva.

- Enfatizar ainda mais a proteção dos consumidores e garantia da universalização e qualidade dos serviços de telecomunicações oferecidos.

- Buscar o equilíbrio em suas relações com as empresas, intermediando os interesses dos consumidores e atuando no estímulo à concorrência. Importa enfatizar que é tema recorrente o fato da agência concentrar duas funções aparentemente conflitantes: agente do poder concedente, realizando licitações, celebrando e fiscalizando os contratos e a de arbitrador das divergências entre os agentes do mercado e entre estes e o Poder Concedente. Para evitar qualquer tipo de “parcialidade”, a agência deve primar pela constante busca da estabilidade e transparência regulatória.

- Modernizar/adequar a regulamentação vigente diante da nova realidade tecnológica, baseada nos princípios da convergência de redes, terminais e serviços. O estudo das agências reguladoras e especificamente da ANATEL corroborou ainda mais

a constatação de que representam um quarto poder e que se situam em um nível intermediário entre o Estado e a Sociedade (incluindo aqui tanto os consumidores como as empresas),

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atuando como interlocutores de ambos no processo de condução da liberalização das telecomunicações no país.

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