o Pensamento Místico

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    1/22

    Franz Josef Brseke*

    Formas irracionais de pensar: o pensamento mstico

    simile simili cognoscitur

    Resumo

    Podemos constatar manifestaes do pensamento mstico desde os primrdios dahistria humana. Este pensamento no restringe-se uma poca ou uma regio. Porisso no seria exagero dizer que o pensamento mstico tem mais traos intertemporais e

    interculturais do que o racionalismo cientfico que foi essencialmente um produto dopensamento metafsico ocidental. A mstica faz a ponte entre oriente e ocidente, elaexpressa uma experincia tal fundamental que no deixou-se encapsular em uma dasgrandes religies mundiais, nem deixou-se expulsar delas, apesar das ondasracionalizantes que tambm os grandes sistemas religiosos sofreram, em grau eintensidade distinto.

    O irracionalismo da mstica crist medieval possui certa evidncia. Exatamente istodificulta o seu entendimento dentro dos padres do racionalismo ocidental e de umamente treinada racionalizar e identificar estruturas e estruturaes inteligveis. Estadificuldade no apresenta-se somente como tal, i.e. como a mera incapacidade deentender um determinado fenmeno. No-entendimento e repdio daquilo que eu noentendo andam, no caso da mstica, frequentemente juntos.

    A impressionante habilidade que o homem ganhou quando comeava aplicar osconhecimentos cientficos no campo do trabalho, e o imenso crescimento dos seusconhecimentos na explorao do mundo, contriburam para o esquecimento gradualmas progressivo das irrracionalidades que fundamentam e envolvem o seu fazer. Pareceoportuno nos lembrar daquilo que no est na alcance das nossas mos e dos nossosclculos racionalizantes. Lembrar-se somente possvel quando ainda tm vestgios nanossa alma daquilo que esquecemos. Um desses vestgios um conceito que ainda est

    presente no pensamento contemporneo e que nos diz ainda "alguma coisa", apesar da

    decadncia dos grandes sistemas religiosos; o conceito do sagrado. Este parece estcarregando a memria da pr-modernidade.

    Palavras Chave:

    Racionalidade, Irracionalidade, Mstica, Sagrado

    *Franz Josef Brseke professor do departamento de Cincias Sociais da UFSC; autordos livros Chaos und Ordnung im Prozess der Industrialisierung (1991); A Crtica daRazo do Chaos Global(1993); A Lgica da Decadncia(1996);A Tcnica e os Riscosda Modernidade (2000) e publicou em co-autoria: Bltter von Unten (1981) e Riqueza

    Voltil(1997).

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    2/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 2

    No sabemos porqu, mas entendemos melhor as coisas quando pensamos em opostos.Como entender a palavra esquerda sem recorrer ao seu oposto: a direita? Alis o queseria a esquerda sem a direita? Tambm enxergamos melhor as estrelas quandonenhuma luz, a iluminao pblica por exemplo, atrapalha a nossa viso. O brilho das

    estrelas somente alcana os nossos olhos com um firmamento mergulhado na escurido.As estrelas precisam, para ser vistas, o seu oposto: a escurido do universo.

    Tambm as palavras para serem ouvidas precisam algo bem distinto de se mesmo.Necessitam o silncio para transportar a sua mensagem para os nossos ouvidos. Horaquando eu falo, interrompo o silncio. Extingo, assim, o contraste que d vida asminhas palavras. O exagero pode me levar falar demais, rpido demais, alto demais.Este exagero no interrompe somente o silncio; ele extingue-o. Desta maneira, quandoa fala afasta-se longe demais do silncio ela afasta-se tambm de um entorno que essencial para sua prpria realizao e torna-se falatrio.

    Como falar, ento, sobre o prprio silncio? O silncio, parece, existe para nos mostrarque a fala tem limites. Com a palavra silncio denomino algo que desapareceexatamente no momento quando digo: isto o silncio. O silncio se subtrai, quando serevela. inalcanvel por minhas palavras, pois muito mais uma experincia do queuma coisa, que posso etiquetar com conceitos.

    Quando entramos numa das grandes catedrais medievais e fazemos alguns passos nadireo do altar sentimos logo que este lugar foi feito para dar espao ao silncio. Aconversa da rua, que nos envolveu minutos antes, cede e sentimos o peso das nossas

    palavras, baixamos a voz e comeamos abrir os nossos olhos, nossos ouvidos e nossocorao.

    O Eu inquieto

    Eu sou o que quando digo: eu sou? Por um lado sou alvo dos ataques das minhaspulses. Pulses que me empurram, que me vinculam com o passado e o presenteanimalesco. Na verdade no so as minhaspulses: eu sinto algo que me leva, que medetermina, que me conduz ao no refletida. Na verdade eu no tenho as pulses,no possui elas como um dono possui e dispe, as pulses tem mm.

    Sou tambm o eco das exigncias da conscincia coletiva. Sinto o peso da moral sociale tento viver conforme as prescries da sociedade. Os agentes da moral social, os pais,

    a turma, a galera, o partido, a corporao etc. me pressionam para dar as respostas sperguntas da vida conforme as regras estabelecidas por eles. O Super-Ego estampa orosto dos outros na minha cara. Ou como canta Raul Seixas: Enquanto voc se esfora

    para fazer tudo igual...

    O meu Ego tem uma posio difcil entre as ondas dos desejos que vem do Id e aconscincia moral, o meu Super-Ego. Posio difcil porque no posso me identificar

    plenamente nem com um lado nem com o outro. Essa impossibilidade por sua vez no uma opo minha. O preo da identificao plena com as demandas animalescas seria,tanto como a identificao plena com as demandas do Super-Ego a desintegrao do

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    3/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 3

    meu Eu. Este no idntico com os desejos libidinosos nem idntico com a opiniodos outros, a moral social.

    A posio difcil do Eu frequentemente motivo de fuga. Tento esquecer as tarefas

    difceis do Ego, que busca manter uma postura equilibrada entre as demandascontraditrias na minha alma. Podemos nos aliviar compactuando com um lado dascontradies; entregamo-nos ento s pulses ou mergulhamos na alma coletiva,tentando ser somente um exemplar do padro comum, um sujeito normal.

    Este esquecimento, favorecendo um dos extremos, vivemos com alvio, sintimos umalibertao momentnea. Mas, tambm, temos que anestesiar o nosso Eu para receber a

    permisso da transgresso na direo dos extremos. lcool, drogas, ritmos, marchas,palavras de ordem ... muitos so os estmulos que demitem o Eu temporariamente dasua responsabilidade. Mas, nos voltamos. Ou melhor: Eu volto e recebo a minhaautoconscincia. A morte do Eu era somente temporria. Volto e confronto a plena luz

    do dia, acordo com remorso e sinto, apesar dele, que a vontade de se entregar j estnascendo de novo. Somos inquietos e no sabemos porqu.

    O Eu infladono foge da sua situao desconfortvel de forma convencional, fazendo opacto ou com a libido ou com a moral social. Ele resolve as suas ansiedadesalimentando-as. Como? O projeto do Eu inflado a permisso da satisfaoconscientemente, definindo-se como o centro do mundo. Fazendo dos outros o espelhodas suas vaidades, consegui inverter o olhar dos outros como instncia moral. Todavia,o narcisista continua vivendo na dependncia dos outros. O Ego no centro das atenesvive do aplauso, da fama, da inveja, do reconhecimento. Quando estes se tornamescassos, entra o Eu inflado em crise.

    O Eu profundo

    O caminho da mstica um caminho que envolve o Eu mas no o caminho da moral,nem das pulses, nem da vaidade. A inquietude que o nosso Eu senti no leva o mstico

    para fora, buscando reconhecimento, nem para cima, no sentido de uma identificaototal com a moral social, nem para baixo, no sentido da busca de uma salvao nasatisfao sensitiva ou animalesca.

    O caminho da mstica o caminha para dentro, um contato extraordinrio com oprprio Eu, evitando as exigncias da sociedade centradas no Super-Ego, tentando

    manter distncia, tambm, com as pulses, acalmando a sede do sexo e a vontade dematar e morrer. Nas profundezas da sua alma faz o mstico a experincia de fazer parteda alma do mundo. Nesta experincia revela-se o Eu como manifestao da alma domundodentro da prpria alma e torna-se evidente a unidade de tudo.

    Aprofundando o seu Eu, em vez de infl-lo, dissolve-se este, no no sentido da suanegao, mas de uma ampliao que abraa o mundo e recebe-o. Abrir mo dasvaidades quotidianas torna-se, por isso, algo fcil para um mstico. Em vez doreconhecimento social, superficial e fugaz, alimenta uma outra fonte seu Eu, estavincula o que se perdeu, religa o que se separou, transcende a situao dada.

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    4/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 4

    1. A Experincia Mstica

    A palavra msticasinaliza essencialmente uma experincia, sinaliza algo que foge deuma definio clara e distinta. Argumentar em favor da filosofia mstica como defender

    outras vertentes do pensamento parece impossvel pela prpria essncia dessaexperincia. Todavia falamos sobre experincias msticas e corremos o risco de cair,contrariando todas as nossas intenes, no falatrio. Na verdade no trata-se somentede um risco, o nosso fracasso discursivo j est programado e vai acontecer com certanecessidade. Pois tambm se pudssemos falar com as lnguas dos anjosquem garanteque o leitor tenha ouvidos para ouvir?

    Falar sobre a experincia mstica no pode ser mais do que uma aproximao. Estaaproximao no mtrica, no significa chegar perto mas no alcanar. Nosaproximando podemos entender e sentir em certos momentos a plena verdade dasexperincias relatadas, para perder no momento seguinte todo contato com a mensagem

    das palavras na nossa frente. O nosso empreendimento ento frustrante e instigante aomesmo tempo. Persegue-se aquilo que se subtrai, movido com a esperana de alcana-lo.

    O lugar das nossas explicaes e argumentaes mais precisamente a filosofiamstica, a a experincia mstica se articula e tenta fazer uma ponte para o mundo dafala. Filosofando sobre a mstica j distanciamo-nos dela, pois, este mnimo dadistancia necessrio, para alcanar um mnimo de probabilidade de comunicao.Todavia, a tentativa de comunicar-se sobre a experincia mstica no to longe deoutras dificuldades que nos temos quando queremos passar experincias para os outros.Quem j tentou falar sobre a experincia de uma dor intensa, sabe que o outro entende a

    palavra dor, mas no est sentindo o que voc est sentindo. De uma forma semelhantevive o mstico encapsulado na sua experincia que possui plena evidncia para ele(como a evidncia da dor) mas no para os outros.

    Na literatura sobre a mstica encontramos sempre a expresso unio mistica paradesignar a experincia da unio do Eu com o todo ou o divino. Na verdade issosomente um aspecto da experincia mstica, muito valorizado na mstica medieval criste budista. Podemos, alm da experincia da unio ou unidade, identificar mais outrasexperincias msticas que at possibilitam para ns hodiernos o entendimento do nossotema. Trata-se ento de basicamente seis complexos de experincias que envolvem

    primeiro a unidade, segundo apresena, terceiro afelicidade, quarto a morte,quinto oamor e sexto o tempo. Vamos em seguir brevemente relatar porque unidade, presena,felicidade, morte e amor possuem um potencial mstico.

    Unidade

    Encontramos relatos literrios da saudade e da (rara) experincia de uma unidade com atotalidade dos Seres, da natureza, do mundo. At encontrar um nome para o Todo j difcil. Na linguagem potica com a qual os msticos tem afinidade especial, por que ela

    permite oscilar em vez de definir, valoriza a aluso em vez da denominao exata,aparece este Todo tambm sob inmeros signos. O poeta Hlderlin fala sobre um

    desejo de reencontrar uma unio com a natureza ou do objetivo de terminar a

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    5/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 5

    controvrsia eterna entre o Self e o mundo1. J o filsofo Max Scheler prope oconceito sensibilidade cosmovital para expressar a capacidade do homem de sentir-secomo parte do cosmo, sensibilidade, segundo ele, prejudicada por causa da tradio

    judica-crist que sempre entendeu o homem, como sendo obrigado, executando

    mandamentos bblicos2

    , dominar o mundo. Essa unio com a natureza, em Hlderlin eScheler, significa mais do que comumente a conscincia ecolgica moderna, quetambm destaca o homem como parte de um sistema natural maior. A unidade com anatureza, o mundo, a totalidade de todos os Seres, tem nos dois autores citadosqualidade mstica, transborda a fala da responsabilidade pelos recursos naturais etranscende a mera conscincia ambiental.

    Frequentemente encontramos nos mitos antigos a constatao de uma unidade inicialentre terra e cu. Com a separao da terra e do cu surgiu a multiplicidade dos outrosSeres. O homem perdeu a unidade e vive desde ento com a saudade de reencontra-a;ele quer abraar cu e terra. Albert Camus, nos diz : "No sempre fcil ser um homem

    e ainda muito menos um ser humano puro, pois ser puro significa, reencontrar aquelelar da alma, onde sentimo-nos ligados ao este mundo, onde pulsa o sangue nas nossasveias no mesmo ritmo como o pulso ardente do sol de meio dia."3Percebemos que alinguagem potica tem muitas maneiras de falar sobre a unidade. Mais tarde quandoapresentamos a tradio do pensamento mstico vamos ver como a filsofia mstica e osmsticos cristos medievais colocaram a unio misticano centro dos seus pensamentos.

    Presena

    Somente existe uma presena para todos os Seres. A variedade refere-se multiplicidade das suas caractersticas; suas qualidades so diferentes, mas todos esto

    presentes no mesmo momento. At um observador est includo nesta presena comume pode viver ela intensamente. Basta se acalmar, basta se desligar da correria do dia-diae ganhamos uma outra relao com o tempo. A experincia da presena comum detodos os Seres baseia-se na unidade. Eu participo na unidade experimentando a

    presena que eu tenho em comum com todos. A presena comum mais do que ummomento comum, este tem a tendncia de desaparecer na medida em que a conscincialinear do tempo divide este em unidades cada vez menores. Desta maneira progredimosdo segundo para um dcimo de segundo at aos milsimos de um segundo e assimadiante. A presena no registra o tempo desta forma linear, pois a presena noconhece o relgio para medir o tempo. A presena possui um tempo prprio que

    depende unicamente da sua experincia pelo Eu. Nesta experincia toca o Eu nostempos infinitsimos curtos e infinitsimos longos, mas no no sentido linear dorelgio, o Eu experimenta como o tempo implode e se expande no mesmo momento adinfinitum.Nesta experincia o tempo para e torna-se uma eternidade que abrange tudo;o Eu participa numa paz universal, desinteressado, est somente a junto com osoutros.

    Essa forma de viver a presena ento plenamente harmoniosa e positiva. Mais tardevamos ouvir de uma experincia negativa da presena, que um acordar para a prpriaexistncia, vivida como um assalto nossa conscincia que encontra-se de repente nummundo angustiante e sem sentido. A experincia do absurdo, relatado por Camus, ou a

    "nusea" descrito por Jean-Paul Sartre, testemunham esta maneira diferente de

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    6/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 6

    conceber a presena. Curioso que atravs dessa experincia negativa, abri-se para osdois autores o caminho para uma extrema valorizao da vida finita. A minha presenana terra tanto para Camus como para Sartre o bem mximo. Parece que os doisautores expulsaram a experincia mstica pela porta de frente para receb-la na porta

    dos fundos.

    Felicidade

    A felicidade como experincia mstica no reduzvel uma simples satisfao, umcontentamento ou algo semelhante. A felicidade como satisfao est ligada com avariedade dos Seres, resultado de um arranjo das coisas e circunstncias conforme osnossos critrios e expectativas. Pois, relatos da felicidade profunda falam sobre umaaceitao plena do mundo e da situao dada. Neste momento paz reina na relao entreEu e o Mundo. O Eu no conhece mais interesses ou desejos, feliz sem desejar. Nadaagita mais a nossa alma, todos os impulsos de querer algo fora daquilo que est sendo

    vivenciado cedem uma tranquilidade incomum. O Eu concentra-se, encontra em semesmo o centro do mundo sem ser egocntrico. A concentrao do Eu inclui umaabertura plena na direo da totalidade do mundo. Esta abertura do Eu no leva a umvnculo superficial com os fenmenos, os Seres com seus atributos variados e variveis.Muito pelo contrrio entra o Eu em contato com o fundamento das variaes, o Ser. Daexperincia do Ser dos Seres emana a felicidade mstica, ela vincula-se frequentementecom a sensao da presena, acima descrita. Nunc stans, chamaram os msticosmedievais em latim esta sensao de um "agora imvel", cheio de alegria. Nada menosdo que o eterno, a dimenso divina, seria nestes momentos especiais presente, presentena anulao do tempo, que parece parar.

    Frequente nos relatos msticos so sensaes que parecem transbordar aquilo que apalavra felicidade pode ainda nos dizer. Em certos momentos o Eu parece sair "fora des" para se dissolver na totalidade do Ser; extasie- do grego ek-stasis- foi chamado esteestado, resultado de prticas contemplativas e meditativas, incluindo no muito rarotambm exerccios corporais (abstinncia, dana, autoflagelao etc.) alm de uma

    predisposio pessoal para esta experincia extrema. O contexto cultural perdeu-se porcompleto na banalizao moderna da extasieno consumo de uma droga que herdou seunome. Todavia encontramos ainda na maior distoro da experincia mstica dafelicidade a reminiscncia e a saudade de algo que transcende o nosso horizontecomum.

    Amor

    Tambm o amor pertence ao vasto campo da experincia mstica. Ele e o conceito daunidade tem alta afinidade, pois, tambm o amor quer unio. Isto expressa-senitidamente no amor entre homem e mulher. O que ama um homem quando ele amauma mulher? A pergunta remete-nos num primeiro momento nas suas qualidades ecaractersticas, deixa-nos pensar tambm at em possveis motivos fteis deste amor,como a posio social que esta mulher ocupa ou os bens que ela possui. Rejeitamosespontaneamente dinheiro como fundamento srio de um amor. Apesar do fato de quecasar-se por causa de dinheiro ainda pode encontrar uma certa compreenso, nunca

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    7/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 7

    chamaramos amor o que este casamento motivou. Sabemos que o amor algo mais,algo no to perifrico como o interesse monetrio. Amar algum por causa da suaaparncia - dos seus olhos bonitos, por exemplo - j algo mais compatvel com oconceito comum de amor. Mas encontramos forte resistncia quando propomos reduzir

    o significado do amor uma mera atrao fsica. Ele quer somente sexo, mas ele no teama. Considerao imediata quando o amor est sendo reduzido exclusivamente ao seuaspecto sexual e unio corporal.

    Percebemos que uma reflexo sobre o amor afasta-nos cada vez mais de interessesegostas, sejam eles sociais, financeiros, estticos, sexuais, etc. e leva-nos passo passona direo da pergunta: o que a final o amor autntico? O que o fundamento doamor? Ouvimos o que os mais competentes nesta questo, os poetas, cantam:

    Amor, Amor

    Quando o marquando o mar tem mais segredo

    No quando ele se agitaNm quando tempestadeNem quando ventaniaQuando o mar tem mais segredo quando calmariaQuando o amorQuando o amor tem mais perigo

    No quando ele se arriscaNem quando ele se ausentaNem quando eu me desesperoO amor tem mais perigo quando ele sincero

    (Sueli Costa-Cacaso; cantada por Maria Bethania)

    A poesia da Sueli Costa quer nos mostrar o segredo do mar, que tambm o segredo doamor. Ela tenta libertar a nossa percepo de impresses superficiais. No a ventania ouat a tempestade, to temidos por ns, so essenciais. O vento move a superfcie, agita

    o mar, mas desvia a nossa ateno do segredo oculto nas suas profundezas. Somente acalmaria que envolve a nossa alma na sua calma, deixa-nos sentir o seu segredo. Este,todavia, no se revela, mas se apresenta como tal: como segredo. Sentimos tambm queeste segredo das profundezas do mar tem algo que pode nos envolver, algo que tem

    potencial perigoso. E exatamente sobre o perigo do amor fala a segunda metade dapoesia. A poeta no pergunta: quando o amor mais lindo ou algo semelhante, no, elapergunta: quando o amor tem mais perigo? Ela tambm no diz: quando o amor est emperigo? Ela pergunta: quando o amor temmais perigo? Este perigo um perigo queemana do amor, um perigo para os amantes e para o prprio amor. O perigo do amor, seu segredo, segredo guardado sob a superfcie calma do mar. De novo liberta a poetao nosso pensar de fenmenos secundrios e surpreendemo-nos. Nem mesmo colocar o

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    8/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 8

    amor em risco considerado importante, to pouco o fato da sua ausncia ou o meudesespero.

    Sabemos do final: o amor tem mais perigo, quando ele sincero. A calmaria do mar

    oculta o seu segredo. A sinceridade no agitada, ela no uma ventania que movesomente a superfcie. A sinceridade calma do amor oculta o seu segredo e significatambm perigo mximo. O mar pode nos puxar para dentro da sua profundeza,exatamente na hora quando menos esperamos, na hora da calmaria. Assim o amor: noa paixo desesperada, no, algo to pouco espetacular como a sinceridade do projeto daunio com o amado coloca nos em perigo. Todavia, a poeta no pode nos revelar osegredo do mar, to pouco como ela pode nos informar sobre as caractersticas do

    perigo que emana do amor sincero. Seguindo o canto da poesia aproximamo-nos aosegredo do Ser, a unio plena com ele extinguira a nossa existncia, por isso o amor, e o

    projeto sincero da unio, significam perigo.

    Morte

    Falamos sobre experincias msticas e temos que falar tambm sobre a morte. Ela no estrito senso uma experincia, porque algo que acontece alm do horizonte da nossavida. Por causa disso, segundo Epicuro a morte no deve nos preocupar; quando nossomos ele no e quando ele , no somos mais. Surge assim a pergunta como

    podemos ento saber da morte? Aparentemente somente atravs da morte dos outros,que nos inevitavelmente confronta com a prpria finitude.

    Segundo Heidegger, um dos pensadores que colocou a finitude no centro das suasatenes a morte caraterizada pela sua: a) pendncia, b) pelo fim e c) pela totalidade.O que quer dizer issso? A morte est sempre pendente. Sempresignifica que o Eu ou,na terminologia de Heidegger, o ser-a, terminando a sua existncia no ato de morrer,no est mais. O ser-a nunca pode morrer, se complementando. Quando secomplementa j no est mais a. A morte continua assim na pendncia da perspectivado ser-a. Sendo pendente penetra a morte toda existncia; podemos tambm dizer queexistir significa morrer. Com outras palavras: a morte no algo que acontece com oser-a num futuro remoto e vem como algo externo. Ela no um acontecimento vindode fora da nossa existncia mas, intrinsecamente vinculada com esta, pois sempre noestado de pendncia. Como diz o poeta: no meio da vida, a morte nos abraa.

    Para Plato filosofar significa tambm morrer, na medida em que quer uma libertaoda alma do corpo, tema abordado na vspera da morte de Scrates, e documentado naescrita de Platophaidon. A alma, libertada do corpo, para Socrates e Plato, imortal. desejvel tentar alcanar atravs da filosofia uma postura espiritual que antecipa decerto modo esta libertao definitiva da alma na hora da morte. Como? Atravs de umaconcentrao da alma ao essencial, j durante a vida o que inclui a pacificao dodesejo, significa assim ascese e abstinncia da satisfao de necessidades superficiais.Quando a alma contempla-se atravs dos sentidos o resultado a inquietao, quandoela se contempla atravs de si mesmo ela torna-se calma e alcana, ultrapassando suas

    prprias limitaes, o imutvel e imortal. A contemplao em depndencia dos sentidos

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    9/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 9

    fica, pelo contrrio, presa as coisas mutveis. O exerccio de morrer atravs da filosofiae do reconhecimento do Ser imutvel e eterno ajuda o homem, assim Plato, de perder omedo da morte. Socrates toma a taa com o veneno mortal, com a maior tranquilidade,sem nenhuma emoo, sem alterar sua expresso, sem mudar de cor.4

    Uma percepo da morte atravs de uma filosofia mstica faz o medo da morte ceder.Heidegger que entendeu, quando elaborou sua obra prima Ser e Tempo (1927), o medocomo estado emocional bsico do homem - um medo que resultava da conscincia dasua prpria finitude - mudou na fase madura da sua vida a perspectiva. Agoravalorizando o papel do pastor do segredo do Ser recomenda serenidade frente dasangustias que afligem o ser-a. Esta mudana consequncia da viragemdo filsofo.

    Na medida em que o mistrio do Ser entra cada vez mais no focus do seu pensarrelativiza-se a importncia da preocupao (cura, Sorge) do homem com a sua prpria efinita existncia. Mais tarde vamos ver como os msticos medievais transformam a

    morte, to angustiante para os que no so beneficirios da f, em algo que ganha atqualidades positivas na chamada: mors mistica(morte mstica).

    Tempo

    Tudo tem seu tempo, h um momento oportuno para cada empreendimento debaixo docu.Tempo de nascer,e tempo de morrer;

    tempo de plantar,e tempo de colher a planta.Tempo de matar,e tempo de destruir,e tempo de construir.Tempo de chorar,e tempo de rir;tempo de gemer,e tempo de danar.Tempo de atirar pedras,e tempo de ajunt-las;

    tempo de abraar,e tempo de se separar.Tempo de buscar,e tempo de perder;tempo de guardar,e tempo de jogar foraTempo de rasgar,e tempo de costurar;tempo de calar,e tempo de falar.Tempo de amar,

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    10/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 10

    e tempo de odiar;tempo de guerra;e tempo de paz.Ecclesiastes 3,1-8

    Este texto, um fragmento hebrico traduzido para a lngua grega no terceiro sculoantes do nascimento de Cristo, faz parte do livro Ecclesiastes do Velho Testamento."Tudo tem seu tempo"; esta frase simples podemos entender como a mera constataode um fato: todos os acontecimentos comeam num determinado momento, duram umtempo, e do espao para um outro acontecimento. Entendido assim pensamos o tempocomo uma linha reta, dividido em intervalos, nesta linha cada evento preenche umacerta quantidade destes intervalos, preenche o seu tempo.

    O tempo, entendido como tempo linear, encosta-se no entendimento espacial do tempo.Pois, a linha um fenmeno espacial; o espao imaginado em somente umadimenso. Sentimos logo no incio das nossas reflexes a intimidade enigmtica entreespao e tempo. Enigmtica porque no contentamo-nos com a igualao entre o tempoe uma linha reta. No satisfaz a nossa curiosidade reduzir o tempo um espaoachatado e, ainda mais, reduzido uma nica dimenso. O tempo remete-nos algomais. O que seria este algo mais?

    Tudo tem seu tempo. Estas palavras confrontam-nos tambm com uma multiciplidadede tempos internos a cada ato, cada evento. Estes tempos especficos no referem-se um determinado intervalo ou um ponto na linha estendida entre passado e futuro. O

    tempo do qual o pronome possessivo "seu" fala uma propriedade de todos osfenmenos, uma propriedade distinta que d cada evento singular o seu pesoespecfico. O tempo de nascer mais do que a mera data do nascimento, como tal um

    ponto na trajetria da flecha do tempo linear. O tempo de nascer o lanamento de umSer para dentro do mundo. Sendo no mundo o Ser est a, junto com os outros Seresvivos, mas singular na posse do seu tempo. Ter tempo prprio que o nascimento d,significa mais do que nada a confrontao com a prpria temporalidade. E possuirtemporalidade viver a finitude da vida como condio existencial.

    Tudo tem seu tempo. Tempo de nascer, e tempo de morrer ... O texto dos ecclesiastesrevela sob esta tica toda dramaticidade do tempo que prprio do homem. A euforia

    do seu lanamento cede abruptamente ao tempo de morrer, mas no como uma simplesfinalizao, tambm o tempo de morrer no uma mera data no trmino de umatrajetria. O tempo de morrer no o ltimo ponto de uma linha, pois faz parte dotempo prprio de cada um, semeado com o tempo do nascimento, permeia a vida e est

    presente na temporalidade da existncia humana. No surpreende ento que o texto nomenciona expressis verbis o tempo da vida, que, para o homem moderno destaca-seentre os tempos de nascer e morrer. O tempo que do homem, marcado pelonascimento e pela morte, a vida possui uma temporalidade forte, que no encontra seuequilbrio entre seus opostos.

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    11/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 11

    O conceito de tempo prprio despede-se do tempo absoluto que, lembrando-nos doconceito de espao absoluto, homogneo e linear. Possuir tempo prprio no exclusividade do ser humano. Podemos diferenciar entre os tempos prprios do mundoorgnico e inorgnico, entre os tempos biolgicos marcados pelos ciclos de reproduo

    e os tempos microfsicos com suas velocidades extremamente lentas e extremamenterpidas.

    O homem tem tempo prprio, mas ele no fez o tempo. Ele pode influenciar comoo seutempo passa, pois condenado a ser temporal. O tempo lhe foi dado e foras alm dasua alcance delimitam o tempo a sua disposio. Este mistrio desde os primrdios doaparecimento da sociedade humana uma das experincias mais fortes do homem e afonte mais slida dos sentimentos religiosos e do pensamento filosfico.

    A experincia do tempo permeia todas as outras experincias msticas. A experincia dapresena ou da morte, por exemplo, seriam inexistente sem ele. Todavia tende a

    experincia mstica pr-moderna "resolver" o problema do tempo atravs da suaimploso na presena ou da sua eternizao na unio. A temporalidade, na medida emque ela leva o ser humano inevitavelmente na direo da sua morte, aparece na msticamedieval ento sob o ngulo da superao de um entendimento meramente quantitativoe linear do tempo. Isto alivia a angstia que o esgotamento do nosso tempo na mortegeralmente provoca. A filosofia existencial do sculo XIX e XX escolheu a existnciasingular e finita como seu tema principal, isto tem as vezes o curioso efeito de causar afelicidade de estar vivo frente a morte. Na verdade significa a filosofia existencial,como a de Camus e Sartre, uma experincia clara e ntida da presena, que conhecemoscomo experincia mstica. Esta mstica sem deusvai nos ocupar ainda mais adiante numcaptulo especfico.

    2. Fragmentos histricos do pensamento mstico

    Podemos constatar manifestaes do pensamento mstico desde os primrdios dahistria humana. Este pensamento no restringe-se uma poca ou uma regio. Porisso no seria exagero dizer que o pensamento mstico tem mais traos intertemporais einterculturais do que o racionalismo cientfico que foi essencialmente um produto do

    pensamento metafsico ocidental. A mstica faz a ponte entre oriente e ocidente, elaexpressa uma experincia tal fundamental que no deixou-se encapsular em uma dasgrandes religies mundiais, nem deixou-se expulsar delas, apesar das ondasracionalizantes que tambm os grandes sistemas religiosos sofreram, em grau eintensidade distinto.

    Somente para evidenciar o universalismo do pensamento mstico e para ilustrar o seulargo espectro mencionamos alguns nomes e vertentes msticos mais conhecidos. Nandia temos a doutrina da Vedanta; na grcia antiga os cultos dos mistrios; noislamismo o sufismo; no judaismo o chassidismo e a kabbala. No christianismo,

    principialmente no fim da idade mdia, destacaram-se vrias correntes, como a msticade Jesus e a mstica nupcial de Bernard de Clairvaux; a mstica da paixo deBonaventura; a mstica profticade Hildegard von Bingen; a mstica especulativado

    padre dominicano Mestre Eckhart e dos seus alunos Seuse e Tauler etc. Com o fim da

    Idade mdia a mstica ocidental enfraqueceu, mas no deixou de existir, temos ento na

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    12/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 12

    Espanha Ignatius de Loyola e Teresa de vila e Joo de la Cruz que da tom mstico poesia do amor; na Rssia o movimento dos starzen. Vertentes pietistas do sculodezenove, tambm, sofreram a influncia da mstica para nem falar sobre a mstica semdeusdo fim do sculo XIX e do sculo XX. Vamos em seguir apresentar os principais

    pensadores msticos e autores que cujos pensamentos contm, pelo menos, forteselementos msticos. Restringimo-nos por enquanto aos pensadores ocidentais, paraevidenciar com mxima clareza possvel sua relao tensa com a razo tcnica, presentena filosofia metafsica ocidental e o seu produto: a tcnica moderna.

    Nietzsche e Heidegger j chamaram a ateno pelo fato que o pensamento dos filsofosgregos, antes de Scrates e Plato, diferenciam-se bastante dos seus sucessores.Descobrem a, entre os chamados pr-socraticos, uma maneira no-metafsica de pensarque, vinculada a arte, ainda no participa naquilo que Heidegger chamaria, 2500 anosdepois, esquecimento do Ser. Principalmente Anaximandro, Parmnides e Herclito,este ltimo de forma privilegiada, servem de fonte de inspirao para o

    empreendimento heideggeriano da superao da metafsica.5

    Depois de um esquecimento de quase quinhentos anos est sendo redescobertoMeisterEckart (ca.1260-ca.1328) primeiro pelo romantismo, em especial de Franz Baader,depois por Franz Pfeiffer, Friedrich Nietzsche, Rudolf Steiner, Gustav Landauer,Martin Buber, Ernst Bloch, Alfred Rosenberg, Martin Heidegger e muitos outros. Hoje

    podemos chamar Eckart o mais influente representante da mstica especulativa nalngua alem.6Eckart lecionava em 1302/03 e 1311/13 comoMagister actu regens, i.e,como professor catedrtico, na universidade de Paris, da vem a denominao Meister(mestre) que simplesmente a traduo do ttulo Magister. A sua catedra dauniversidade de Paris era reservada para estrangeiros, alm de Eckart s mais um outrofoi chamado duas vezes para ocup-la: Tomas de Aquino. Tambm na sua ordem, eleera dominicano, Eckart conseguiu funes importantes. Erapriorem Erfurt,provincial

    para a provncia saxonia e vigrio geralem Estrasburgo para os monsterios femininosde lngua alem. Para proteg-lo melhor contra a crtica crescente, os dominicanoschamaram-o para Colnia. Aqui a sua prpria ordem processou-o com a inteno dereverter as crticas que acusaram Eckart de heresia nos seus escritos e seus sermes.Apesar do fato que, como era de esperar, a ordem dos dominicanos inocentou Eckart,abriu o arqu-bispo de Colnia um processo inquisitrio. Sabemos da frequncia destes

    processos na poca, todavia era um professor de teologia de renome frente SantaInquisio bastante incomum. Eckart defende-se na altura, elaborando uma defesa

    escrita, que ele apresenta 1327 em Avignon, na sede temporria do Papa (1309-1377).Curiosamente desaparece Eckart aqui. Em 1329 informa umaBula(in agro dominico)enviada pelo papa Joo XXII. para Colnia da condenao de 28 das suas doutrinas eda sua morte. A Bula diz na sua introduo "... algum das terras alemes de nomeEckart e, come dizem, professor dos Escritos Santos, e da ordem dos irmosDominicanos, queria saber mais do que era necessrio ..."7

    Eckart no queria saber mais do que era necessrio, mas com certeza sabia e viu maisdo os seus inquisidores e a conscincia religiosa comum da poca. A mstica de Eckartno era algo somente interior e distante do mundo real. Muito pelo contrrio, era aexperincia e o conhecimento de Deus. Esta experincia ntida no abdicava o

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    13/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 13

    pensamento claro e distinto, nem negava uma sensitividade forte, simplesmentetransbordava e transcendia estes. Vrios temas permeiam os escritos do mestre, entreeles so os mais importantes: a) o homem tem que se livrar de si mesmo (seiner selbstledig werden) e se distanciar de todas as coisas para conseguir ouvir a palavra oculta na

    sua alma b) este motivo ento j visa na direo da importncia do silncio (stilnisse,stilleswgen, mhd) pois somente ele possibilita ouvir; c) o homem vai ouvir, em silncioe livre de si e das coisas, o que? Ele vai ouvir a palavra pois, deus mesmo uma

    palavra, uma palavra no falada (Got ist ein wort, ein ungesprochen wort; mhd);silncio no significa somente no falar, ficar em silncio no estado da libertao de si edas coisas, significa tambm ser vazio (leer sn, mhd); o vazio atrai Deus, ele no temcomo resistir, ele tem que preencher o vazio no corao do homem; d) pois a alma devefazer a sua parte, tem que se unir ou concentrar em Deus (gesament sn, mhd) e seestender e levantar com humildade na sua direo (fgezogen sn, mhd); e) umafaiscana alma(fnklin,mhd; Seelenfunke, nhd) vincula esta com Deus, o ponto de partidada sua unio com ele, fonte tambm de uma alegria difcil de escrever; esta faiscasimboliza tambm o de repente, surpreendente e espontneo da experincia da unio,como Eckart diz, um quebrar e perpassar (Durchbrechen) f) importante : deixar, deixarser, ser sereno; g) no ter, no saber, no fazer, pois o fazer no nos sacraliza, o nossoser que sacraliza o fazer; no devemos nos preocupar com o agir, mas com aquilo quenos somos; h) Eckart valoriza a nadificao(vernichtung) do homem; o nada no nasua perspectiva somente um vzio, o nihildo aristotelismo, o nada algo positivo e

    perfeito; o nada no encontramos atravs da negao daquilo que , pois naperspectiva de Eckart como alis do Zen, alcancvel atravs da concentrao do todo doconcreto, no vazio , mas a mais absoluta plenitude, a liberdade, a verdade, aunio.

    A ordem dos dominicanos abrigava muitos dos msticos de destaque, como tambm oMestre Eckart. Quando a cura monialium, i.e. o acompanhamento espiritual, dosmembros femininos desta ordem passou para os fradres dominicanos (fratres docti),ganharam estes ltimos grande influncia sobre a perspectiva teolgica das freiras.Alm do mais entraram na segunda metade do sculo XIII muitas viuvas ou orfs, umaconsequncia das grandes perdas de cavalheiros nas cruzadas, nas ordens crists e emespecial na ordem dos dominicanos. Estas mulheres cultas e oriundas das camadas altaseram um cho frtil para a teologia mstica que correspondia, em muitos casos, comuma disposio para uma emocionalidade excntrica. Esta emocionalidade ainda notinha sofrida sua domesticao no processo do crescente controle dos afetos resultado

    da racionalizao que acompanha o processo civilizatrio na Europa e descrito porNorbert Elias.8 Entender a Idade Mdia exige, alm das informaes histricasnecessrias, tambm uma transposio para dentro do estado emocional dos homens emulheres desta poca.

    Todavia, somente estes fatores no explicam a fora da onda mstica que varre trssculos do "outono" da Idade Mdia europia e alcana seu auge, na Alemanha, nosculo XIV. Nesta poca a decadncia da cultura dos cavalheiros (Staufer) e osurgimento lento de uma cultura urbana e burguesa marcam a passagem da Idade MdiaAlta para a Idade Mdia Tardia. So tempos de crise, a igreja est sacudida pormovimentos de base que exigem uma leitura original da bblia, por seitas que

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    14/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 14

    combatem o papismo, por poderes monrquicas que desafiam a autoridade do papa. Nosculo 13 a igreja romana conseguiu uma vitria contra Friedrich II. (1212-1250), quemostrou-se logo como temporrio. O deslocamento da sede do papa para Avignon(1309-1377), depois de um meio sculo de lutas e intrigas entre Kaisertume a igreja,

    evidencia a profundidade da crise. Pois tambm fora do campo conflituoso do poderpoltico aumentam as tenses: a dana da morte, motivo artstico cultivado desde ento,procurava, no pela primeira e no pela ltima vez, Europa como um dos seus palcospreferidos. A morte negra, a peste bubnica, mata sem se revelar como uma doenainfecciosa, assim nos anos 1347-1352. Frente do terror existencial buscam uns prazeresefmeros, celebram o carnaval antes da paixo, pois perderam a perspectiva crist daresignatio e da ressurreio. Outros avaliam a relao entre Bem e Mal e comeamacreditar, face dos sofrimentos incomensurveis, numa supremcia do Mal. Com forasmgicas tentam pessoas assustadas cercar as foras do Mal e dedicam-se a prticas erituais diablicos. O paganismo, nas margens da europa latina, tardiamente"civilizadas" pelo imprio romano e mais tarde ainda alcanadas pelo cristianismo ainda presente na inconscincia coletiva e oferece-se, com suas inclinaes panteistas eanimistas, como alternativa oculta. Isto vale em especial para as antigas terras celtas egermnicas.

    Em contraste com o lado irracional e desordenado da Idade Mdia, que prevalece nosenso comum como sua caracterstica principal, encontramos, para completar as suastenses intrnsecas, um grande avano na direo da racionalizao e da sistematizaodo pensamento. J desde o sculo IX, tentaram telogos e filsofos em Laon, Melun,Paris, nas escolas de Saint Victor e Chartres unir o pensamento filosfico com adoutrina da revelao crist. Com nfase foi tratada o mtodo de pensar, que valorizava

    uma elaborao clara da questo (quaestio), uma limitao e distino precisa dosconceitos (distintio), a argumentao lgica e uma considerao formalmente corretados argumentos e contra-argumentos (disputatio). A escolstica medieval alcana seuauge no sculo treze quando vrios momentos histricos favorecem o seudesenvolvimento. Paradoxalmente, em consequncia das cruzadas intensificam-se oscontatos do ocidente com os rabes, que evoca na Europa um certo choque cultural eleva a aceitao de vrias conquistas culturais e intelectuais do mundo rabe. Nadisputa escolstica com Aristteles e seus interpretes gregos e rabes ganhou a filosofiae teologia crist novos horizontes. O aristotelismo cristo de Albertus Magnus e Tomasde Aquino torna-se, em termos, temporariamente hegemnico na Escolstica emarginaliza posies de Bonaventura e Averres. Pois logo formou-se entre os

    franciscanos, com Duns Scotus, uma forte contra-posio. Assim a escolstica dispunhasobre diversos grandes sistemas argumentativos, tanto na perspectiva tomista comoscotista. No sculo XIV e XV entra a escolstica em decadncia. O nominalismo deWilhelm Ockam contribui decisivamente para a dissoluo da unidade de pensamentoescolstico, que se perde na disputa de questes formais e secundrias. Todavia

    podemos dizer que a filosofia da natureza do nominalismo preparava o cho para osurgimento da fsica moderna.

    Quem fala sobre a mstica crist tem que falar tambm sobre Kabbala, a tradiomstica judica. Esta mostra a sua maturidade no sculo XII, principalmente na Espanhae no Sul da Frana, ento contempornea da mstica crist medieval. Pois ela tem uma

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    15/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 15

    histria que nos remete at o sculo III at VI, quando surgem os textos do livro SeferJesira. Em 1180 comeam circular cpias do Sefer h-Bahir na Frana, contendointerpretaes msticas da bblia de autores annimos. Uma outra obra, o livro Sefer h-Sophar do sculo XIII, considerada uma das obras chaves da Kabbala, competindo na

    sua importncia para crculos judicos no-ortodoxos, como livro Sefer h-Soharquecontem 2400 pginas de interpretaes msticas da Torae foi provavelmente escrito porMoses Leon da Castlia entre 1240 e 1305.

    A mstica kabbalista encontrou no chassidismo da europa oriental uma fortecontinuao. O chassidismo surgiu no sculo XVIII e tornou-se popular na Polnia,Romnia, e na Ucrnia. Podemos at chamar o chassidismo um movimento social que

    procurava uma resposta, um caminho para Deus, em tempos de perseguio secular dojudasmo europeu. Esta perseguio conseguiu em fim quase exterminar o chassidismojunto com as populaes judicas dos pases mencionados durante o genocdionacional-socialista (1939-1945).

    Foi Gershom Scholem e Martin Buber (1878-1965) que preservaram na sua obra amemria do chassidismo.9Martin Buber escreve: "O chassidismo a Kabbala que setransformou em Ethos. Mas a vida que ele ensina no ascese, mas alegria em Deus.(...) (O chassidismo) integra o alm no aqum e deixa o agir e formar como a almaforma o corpo. Seu cerne um ensinamento para o xtase como o topo da nossaexistncia. Mas o xtase no aqui uma 'nadificao' da alma como na mstica alem,mas o seu desdobramento ..."(Buber, 1963:15) A palavra Kabbala vem do hebraicokibbele significa tanto como "receber". A mstica judaica com suas vrias e influentesvertentes valoriza a imaginao de um Deus vivo, que se manifesta na criao,revelao e salvao. A contemplao kabbalista leva no seu auge experincia da

    presena de Deus em tudo o que . Tambm fazeres cotidianos como beber ou comer,se feitos na conscincia desta omnipresena de Deus, podem se tornar meios para aunio com este ltimo. A menor hostilidade do chassidismo referente ao corpo humanoe seus desejos sexuais, permite a descoberta do divino tambm na unio amorosa dehomem e mulher. A mstica nupcial do cristianismo nitidamente, apesar da sualinguagem ertica, mais abstrata e menos sexual.

    Os msticos medievais cristos na Europa apoiam-se teolgicamente, sem explicitarisso sempre ou at sem ter conscincia disso, nos apstolos Joo e Paulo e no Pseudo-Areopagita. Deles, mas principalmente de Joo vem tambm a forma literria dos

    grandes relatos visionrios. Os textos biogrficos das freiras mostra a influncialiterria de Santo Agostinho e suas confissiones. Os documentos que circulavam entreos amigos de Deus (Gottesfreunde), um movimento ou, melhor dito, uma rede de apoioe comunicao de msticos concentrados na vale do Rio Reno, no tinham sempre omesmo valor literrio nem eram de qualidade e de teor homogneo. Encontramos aolado de obras que influenciaram profundamente o desenvolvimento da lngua alem eque se destacam como obras teolgicas ou filosficas, simples textos que no so maisdo que biografias mal escritas e em termos de contedo, cpias imperfeitas de outrasobras.

    Parece que somente no sculo vinte a histria comea ter uma relao "normal" com a

    idade mdia e sua forma de viver a religiosidade crist. Atrs das bruxas aparecem

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    16/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 16

    telogas e mdicas, e atrs das vises para-normais e revelaes fantsticas apareceuma outra vertente da teologia crist ou a continuao da filosofia mstica. Todavia, noseria aconselhvel expurgar toda e qualquer irracionalidade da mstica medieval ouconfundir a Santa Inquisio como uma campanha de homens possudos pelo poder e

    pelo intelecto teolgico contra mulheres sbias e especialistas em medicina popular. Oque hoje nos impressiona , muito pelo contrrio, exatamente a coragem intelectual e

    pessoal com a qual homens e mulheres religiosas assumiram o cerne irracional dosagrado. Na represso da igreja romana contra a vertente mstica dentro de suas

    prprias fileiras manifesta-se o processo da racionalizao ocidental, que primeiramente desencantamento, combate magia e outras formas irracionais dereligiosidade. Feito isto, i.e. depois da tabula rasa religiosa, da racionalizaoteolgica, no final da idade mdia, a primeira onda de cientificizao podia dar conta dorecado. As palavras racionalidade e racionalizao ganham seu sentido em contato comseu oposto i.e. a irracionalidade, o completamente outro da razo. A falacontempornea de "vrias racionalidades" encobre cada vez mais este sentido e suaverdadeira problemtica. O oposto da racionalidade no uma outra racionalidade, ooposto tudo aquilo que o processo da racionalizao sacrificou, identificando-o comomgico, diablico, louco, paradoxal, inexplicvel, absurdo, ilgico, emocional, comuma palavra: irracional. Acontece que, na medida em que a teologia crist racionalizouo conceito do sagrado, esqueceu que este no vive, sem seu fundamento semfundamento. O fundamento sem fundamento o que Rudolf Otto chama o numinoso.Segundo ele o sagrado um conceito composto que tem uma camada teolgica,altamente racionalizada, uma camada tica, e um cerne i.e. o prprio numinoso que

    profundamente irracional. Se o cerne do sagrado no fosse irracional, a f seriadispensvel. O sagrado exige f porque inacessvel razo ou procedimentos de

    refutibilidade cientfica.O renascimento da Europa tambm o renascimento da metafsica grega, patrono do

    progresso da razo, at que ela mesma tinha fora suficiente para voltar-se contra suasprprias razes filosficas. A religio liquida a religio, a filosofia liquida a filosofia, ea cincia .... E a cincia? Ser que estamos em via de liquidar a cincia com meioscientficos?

    3. O cerne irracional do sagrado: o numinoso

    O irracionalismo da mstica crist medieval possui certa evidncia. Exatamente isto

    dificulta o seu entendimento dentro dos padres do racionalismo ocidental e de umamente treinada racionalizar e identificar estruturas e estruturaes inteligveis. Estadificuldade no apresenta-se somente como tal, i.e. como a mera incapacidade deentender um determinado fenmeno. No-entendimento e repdio daquilo que eu noentendo andam, no caso da mstica, frequentemente juntos. O repdio do vis irracionalda mstica tem vrias razes, uma delas est ancorada na prpria psique do homem.Alis o prprio repdio j indica, pelo fato de tratar-se de uma reao emotiva, que onosso tema envolve questes psicolgicas.

    Sabemos depois de mais de um sculo da existncia de diversas escolas psicolgicas,entre elas a psicanlise na tradio de Freud e Jung, que o gelo est fino sob o qual foi

    erguido a nossa conscincia. Na verdade luta o nosso Eu permanente, por um lado, com

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    17/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 17

    as demandas normativas implantadas na nossa alma atravs da educao e daconvivncia social, e por outro, com os desejos e as necessidades vinculadas nossacorporalidade com seus aspectos animalescos. "Racionalizar" o nosso negciocotidiano, para garantir tanto a nossa integridade psquica, que exige um minmo de

    atendimento das necessidades afetivas, entre elas as sexuais e as agressivas, como anossa sobrevivncia em sociedade, que pressupe a aceitao das suas normas bsicas.

    No fcil para o nosso Eu conseguir um equilbrio entre demandas to fortes, e noso raros os momentos em que perdemos-o.

    Podemos observar que exatamente estas pessoas que malmente conseguiram seestruturar conforme as exigncias civilizatrias e domar suas pulses para tornarem-se

    pessoas sociais e cultas, tendem erupes agressivas quando encontram-se emsituaes que ameaam o seu delicado estado. Defendemos ento a racionalidade danossa conduta de vida com emoo, se for necessrio. Em um longo processo histricofoi preparado o que hoje o homem moderno, com a sua alta capacidade de controlar

    seus afetos ou desviar e transferir suas energias libidinosas para campos socialmenteaceitas.

    No processo civilizador que todas as culturas conhecem, ganha a racionalizao - noocidente - um status privilegiado. Isto promoveu tanto o desenvolvimento da cincia eda tcnica como levou para uma conduta de vida asctica com a valorizao do trabalho

    profissional ininterrupto. Apesar do fato de que os impulsos desta conduta de vidaracional nos remetem a uma motivao religiosa, obra iniciada nos tempos daescolstica e da Santa Inquisio e fortalecida decisivamente pela reforma protestante,ficou a base religiosa, i.e. irracional, do modo vivendido homem moderno obscurecido.

    A impressionante habilidade que o homem ganhou quando comeava aplicar osconhecimentos cientficos no campo do trabalho, e o imenso crescimento dos seusconhecimentos na explorao do mundo, contriburam para o esquecimento gradualmas progressivo das irrracionalidades que fundamentam e envolvem o seu fazer. Pareceoportuno nos lembrar daquilo que no est na alcance das nossas mos e dos nossosclculos racionalizantes. Lembrar-se somente possvel quando ainda tm vestgios nanossa alma daquilo que esquecemos. Um desses vestgios um conceito que ainda est

    presente no pensamento contemporneo e que nos diz ainda "alguma coisa", apesar dadecadncia dos grandes sistemas religiosos; o conceito do sagrado. Este parece estcarregando a memria da pr-modernidade, quando o mundo ainda estava coberto pelo

    cue no perambulava como planeta e sem sentido pelo espaovazio.O sagrado solitrio, fora dos grandes contextos, pode ser considerado um produto doenfraquecimento e, em parte, da dissoluo das grandes composies cosmognicas eem geral das vises religiosas do mundo. O sagrado um fragmento ainda a nossadisposio ou seria melhor dizer: a nossa espera? Como fragmento diz o sagrado"alguma coisa" sobre aquilo que fragmentou, tambm, existe a possibilidade de que ofragmento sagrado fragmenta ainda mais. O que quer dizer isso?

    O sagrado um conceito composto sempre integra um momento tico e, nas grandesreligies orientais e ocidentais, um momento racional. Atrs desta concepo madura e

    complexa do sagrado, cultivada por exemplo pelas igrejas crists, existe um outro

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    18/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 18

    momento, que uma concepo racionalizante do sagrado perde facilmente de vista.Rudolf Otto chama este momento o numinoso, que no somente foge da alcance dosconceitos como possuidor de uma srie de qualidades. Seu cerne irracional parexcelence, como tal dificilmente explicvel ou acessvel com meios da reflexo

    cientfica. Todavia existem testemunhos da experincia do numinoso, e umapredisposio no-cognitiva a princpio em qualquer criatura que possibilita e levaao sentimento do numinoso. Otto tem plena conscincia que uma considerao domomento irracional do divino foge com facilidade da comunicao usual, que no podeabrir mo da sua prpria racionalidade. Sem uma certa benevolncia do leitor, dispostoa abrir mo de procedimentos hermenuticos considerados como racionais, terminarialogo a tentativa de uma aproximao, uma melhor compreenso do numinoso. Erealmente a sua abordagem exige sentimentos comuns entre autor e leitor, sem os quaisas analogias, aproximaes literrias, exemplos e documentos histricos dificilmenteso compreensveis. E Otto quer que nos entendamos; que se trata no caso do numinosode um fenmeno irracional mesmo. Exatamente isto o tema central do livro OSagrado, resgatar atrs da cortina racionalizante da prpria teologia crist aquilo que arazo no acessa; mostrar a grandeza do no-inteligvel perante o qual osempreendimentos cientficos se tornam algo irrisrio.10

    Otto atribui ao numinoso uma vida prpria, v nele o cho da f, sem o qual todas asderivaes racionais e ticas seriam algo sem flego ou, melhor dito, sem fora eesprito. O numinoso, para Otto, no algo simplesmente no-racional, como o so osnossos sentimentos, irracional numa profundidade e fora que abraa conceitualmentea ira dei, imprevisvel, imensurvel e injusta, tanto quanto o amor dei que segura ohomem, jogado no aberto da sua existncia, quando ele menos espera. Apesar da

    constatao do numinoso como o completamente outro, Otto no desiste da tentativa e a o mrito do livro de uma melhor aproximao deste fenmeno com meiosdiscursivos. No seu empreendimento, ao inverso dos seus colegas socilogos que

    pensam o sagrado do ponto de vista da sociedade, Otto devolve ao numinoso o status defonte primria, para no dizer de um sujeito poderoso e terrivelmente estranho que independente de qualquer projeo social e perante o qual o homem treme ou se derreteem delcias mximas.

    Quais so, ento, os momentos caractersticos do numinoso? Sublinhamos que onuminoso o sagrado menos seu momento tico e, dizemos isso mais uma vez, menosseu momento racional. Apesar do fato de que o numinoso completamente inacessvel

    para qualquer conceituao racional apresenta o autor sete caractersticas ou momentosdo numinoso; so eles: o momento tremendum, o momento do poder superior(majestas), o momento do enrgico (org), o momento do mistrio (o completamenteoutro), o fascinans, o augustus (valor numinoso) e o terrivelmente estranho (dasUngeheure).

    A irracionalidade do numinoso, que bloqueia sua conceituao explcita, faz necessriose referir aos sentimentos que o prprio numinoso provoca. Um dos sentimentos mais

    profundos resultado da experincia do misterium tremendum.Neste misterium entra ohomem em contato com o segredo da criao, o que pode resultar nas manifestaesemocionais mais diversas como, no seu nvel mais rudimentar e cru, temor, medo ou

    pnico; mas encontramos tambm formas mais brandas de sentimentos e reaes, uma

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    19/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 19

    delas simplesmente o silncio, frente a algo indizvel e inexplicvel, silncio que querevitar que a fala do segredo do Ser torne-se falatrio. A histria dos monastrioscristos, que escolheram o silncio como parte integrante de uma maneira de viver suaf, mostra que esta atitude, muito estranha para uma pessoa moderna, era algo

    realmente existente.O Deus do velho testamento descarrega em certos momentos de forma sbita sua irasobre os homens. Nem sempre essa ira deivinculada aos atos punitivos, conseqnciada violao das normas divinas. Como diz Otto: Um aspecto curioso da ira de Jahvesempre chamou ateno. Primeiro aparece em alguns lugares do velho testamento deforma evidente, que essa irano tem nada a ver, de antemo, com qualidades ticas. Elaexplode e manifesta-se de forma enigmtica, como uma fora natural oculta, como estsendo falado comumente, como eletricidade armazenada, que se descarrega acimadaquele que se aproxima demais (Otto, 1991, p. 21).

    O sentimento da majestastransmite a sensao de anulao da prpria existncia, (o eutorna-sepoeira e cinzas) por um lado, e da onipotncia da transcendncia, por outro. Oobjeto transcendente ganha um status de uma presena plena enquanto o ego confronta-se com a experincia da dissoluo de si mesmo. menos um sentimento dedependncia, e muito mais a impresso do poder irrestrito do completamente outro.Tanto na mistica crist, com mestre Eckart, Tersteegen e outros, quanto na misticaislmica, com Bajesid Bostami por exemplo, encontram-se documentos deste momentoda majestas evocado pelo numinoso. Aspectos do mistica da majestas encontram-setambm na literatura moderna e sua mstica sem Deus, que nos vai ocupar ainda maisadiante.

    Vontade, fora, movimento, agitao, atividade e paixo caracterizam o numinoso comoalgo enrgico que mostra-se tanto no demonaco como na idia do deus vivo. Estemomento de irracionalidade da org o que mais se ope ao deus filosfico,racionalizado e moralizado. Encontramos em Lutero uma interligao entre aomnipotentia dei e essa org do deus vivo, tambm a mstica dinmica do mestre Eckartresgata o enrgico do numinoso.

    Uma cincia complicada demais ou uma mquina cujo funcionamento no entendemosno misterioso. Misterioso aquilo que subtri-se principalmente e para sempre deum acesso cognitivo, ainda mais, na experincia do misterioso fazemos a experinciado completamente outro, que nos repele e nos atrai. O nada, da mistica crist medieval,

    e o nirvana do budismo so, na interpretao de Otto, ideogramas numinosos docompletamente outro. Otto mostra o desenvolvimento histrico no entendimento domistrio, na sua qualidade de mirum. Primeiro trata-se do somente estranho, queultrapassa os limites do nosso entendimento, se transformando num segundo momentono paradoxal, perturbador e aparentemente contrrio as regras da nossa razo. Numterceiro e ltimo momento desemboca o mirumno antinmico, contraditrio em si e suaforma mais irracional, que se ope em movimentos grotescos qualquer lgica esurpreende a razo. O estranho, o paradoxal e o antinmico aparecem integrados nomisterium do numinoso na confrontao com o completamente outro. Salve ressaltarque o estranho, o paradoxal, e o antinmico encontram-se na arte e literatura do sculovinte como em nenhuma poca antes, tanto enquanto tema como enquanto meio de

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    20/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 20

    expresso, todavia e a a especificidade histrica descoberto de qualquer mistrioreligioso. A categoria do absurdo, provavelmente, a expresso mais ntida doaparecimento do mirum, sob condies modernas. A forma nua dos elementos donuminoso na atualidade, quando eles se mostram libertados do seu contexto

    transcendental, vai nos ocupar ainda mais adiante.

    O misterium tremendumtem como complementao e oposio ofascinans. Este em vezde repelir e afastar o homem atrai e requer aproximao. No fascinans o numinoso

    promete o So, acena com algo que sempre mais ou ainda mais. Em contato com esteainda-mais o homem sente uma felicidade plena, que transcende qualquer estadoemocional comum. A impresso que o fascinans deixa na alma humana indizvel, alngua incapaz de expressar o que a alma sente. Isto, mais uma vez, sublinha o carter

    profundamente irracional do numinoso; esta vez na sua forma atraente e fascinante.

    O sentimento do enormemente estranho une, num certo sentido, momentos do mistrio,

    do tremendum, da majestas, do enrgico e do augusto. O enormemente estranhoultrapassa, como os outros momentos do numinoso, o nosso horizonte racional, e fazmais do que assustar pois coloca o homem numa posio de humildade frente adimenses tanto do universo como da nossa existncia e dos nossos feitos. Sfocles serefere ao enormemente estranho quando escreve: Muito existe que enormementeestranho. Pois nada mais estranho do que o homem.

    O numinoso possui, segundo Otto, uma fora que fundamenta finalmente qualquervalor tico. Sem o valor numinoso no existiria base slida para exigncias morais. Atica no uma construo meramente social, mas algo derivado desse valor numinoso.Ela "algo mais" do que a moral social, que expressa meramente a conscincia coletiva

    numa dada situao histrica. Diferente do que ofascinans, que representa o aspecto donumen que possui um valor para mim, significa o augustum um valor baseado emfundamentos fora do meu alcance, um valor em si e sui generisa ser respeitado peloshomens. O augustumfaz a ponte para o conceito complexo do sagrado de Otto, porqueest ancorado nas profundidades da irracionalidade do numen, embora possibilitando odesdobramento do sanctu, que abrange alm das qualidades numinosas mencionadasanteriormente, momentos racionalmente compreensveis; as obrigaes ticas fazem

    parte deles.

    Podamos ver como o sagrado contm aspectos racionais, ticos e numinosos e que osagrado como fragmento, fora do seu contexto maior, tende fragmentar ainda mais.Os fragmentos que resultam da decomposio do sagrado so a) uma racionalidade nofundamentada, que torna-se um valor em si e dispensa a f; b) uma tica nofundamentada, que tende ser construo social e resultado de processos discursivos,

    perdendo o "algo mais" que sempre destacou-a frente a mera moral social, e finalmenteresta c) o numinoso, no explicitado discursivamente e sem desdobramentos ticos.Acontece que, curiosamente, parece fragmentar o numinoso, sob condies da altamodernidade com a cincia e a tcnica no pice do seu desenvolvimento, ainda mais.Identificamos como seus elementos o misterium tremendum, o momento do podersuperior (majestas), o momento do enrgico (org), o momento do mistrio docompletamente outro, o misterium fascinans, o augustus (valor numinoso) e o

    terrivelmente estranho. Estes elementos do numinoso so profundamente irracionais,

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    21/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 21

    i.e. paradoxal, antinmico e estranho. O pensamento mstico tenta uma relao comestes elementos no seu conjunto sem tentar privar-as da sua irracionalide e torna-se, namedida em que consegue "contatar" o numinoso, consequentemente tambm irracional.Da provem a dificuldade que o racionalismo ocidental tem com a mstica. Ela, a

    mstica, visa unio e amor, e tenta abrir experincias humanas vividas como positivas.Quando o numinoso fragmenta nos seus componentes, fragmenta tambm a experinciamstica. Se aproximar sem proteo aos fragmentos do numinoso a aventura datcnica moderna e da forma tcnica de pensar. A cincia e a tcnica moderna na suatentativa de descobrir os segredos do mundo desocultam tecnicamente aquilo que .Fica despercebido que o desocultamento tcnico tanto permitido pelo Ser, e como talalgo que no exclusivamente vem do homem, como fica obscurecido o caratercontingente do desocultamento tcnico. O desocultamento tcnico necessariamentecomo , mas tambm poderia ser diferente.

    Notas1Hlderlin, obras completas, F. Beissner, ed, Stuttgart, vol. III, p. 2492Genesis, 1.28: "Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei e subjugai a terra! Dominai sobre ospeixes do mar, sobre as aves do cu e sobre tudo que vive e se move sobre a terra."3Albert Camus.Hochzeit des Lichts. Zrich 1954, p.454Plato, Fdon(Phaidon) Em: Os pensadores.So Paulo: Nova Cultural.1996, p.1895Martin Heidegger (1943, 1998) Herclito. (A origem do pensamento ocidental e Lgica. Adoutrina heracltica do lgos.) Rio de Janeiro: Relume Dumar. Traduo: Marcia SCavalcante Schuback. A prlio Herclito de 1943 foi publicado parcialmente por Heideggerem 1954:Martin Heidegger (1954, 1994) Logos (Heraklit, Fragment 50); em: ibd. Vortrge undAufstze, Stuttgart: Neske, p. 199-222

    Martin Heidegger (1954, 1994) Aletheia (Heraklit, Fragment 16); em: ibd. Vortrge undAufstze; Stuttgart: Neske, p.249-274sobre Parmnides: Martin Heidegger (1954, 1994)Moira(Parmenides, Fragment VIII, 34-41),em: Vortrge und Aufstze, Stuttgart: Neske, p. 223-248sobre Anaximandro: Martin Heidegger. Der Spruch des Anaximander.Em: ibd., (1950, 1994)Holzwege. Darmstadt: Vittorio Klostermann, p.321-3746 Meister Eckart. Deutsche Predigten und Traktate. Ed. Por Josef Quint, 1963, Zrich:DiogenesMeister Eckart.Alles lassen - Einswerden. Mystische Texte. Ed. Por Gnter Stachel. Mnchen:Ksel, 1992Herbert Wackerzapp (1962) Der Einfluss Meister Eckarts auf die ersten philosophischenSchriften des Nikolaus von Kues. Mnster.Diethmar Mieth (1979)Meister Eckart. Gotteserfahrung und Weg in die Welt. Olten e FreiburgKurt Ruth (1985)Meister Eckart. Theologe, Prediger, Mystiker.Mnchen (biografia)7Bulle de Joo XXII. de 27.03.1329, em Meister Eckart. Deutsche Predigten und Traktate.Orgs. Por Josef Quint.Zrich: Diogenes, 1963, p.4498Norbert Elias (1939, 1994) O processo civilisador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor9Gershom Scholem (1957)Die jdische Mystik in ihren Hauptstrmungen. Frankfurt am MainMartin Buber (1963) Jdische Mystik. Em: ibd. Obras, vol. III, Schriften zum Chassidismus,Mnchen, Heidelberg10 Rudolf Otto (1917, 1985) O sagrado: um estudo do elemento no-racional na idia dodivino e sua relao com o racional. So Bernardo do Campo: Imprensa Metodista. Traduopor Prcoro Velasques Filho do original: ibd.Das Heilige. ber das Irrationale in der Idee desGtttlichen und sein Verhltnis zum Rationalen. Mnchen: Beck, 1991; 1. ed. 1917

    reas de conhecimento:

  • 7/26/2019 o Pensamento Mstico

    22/22

    Franz Josef Brseke: Formas irracionais de pensar - o pensamento mstico 22

    Filosofia, Sociologia, Histria, Teologia, PsicologiaAutores mais citados:Rudolf Otto, Martin Heidegger, Mestre Eckart, Martin Buber, Jean-Paul

    Sartre, Albert Camus, Plato