O percurso do reconhecimento. Resenha

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RICOEUR, P. 2006. O percurso do reconhecimento. São Paulo, Loyola, 280 p.

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  • RICOEUR, P. 2006. O percurso do reconhecimento. So Paulo, Loyola, 280 p.

    Em um mundo de diversas discusses, de inmeras teorias fi losfi cas, de conceitos, Ricoeur destaca a importncia que h em discutir a temtica do reconhecimento tal como se discute a do conhecimento. Este foi o impulso fi nal para que Ricoeur compusesse esta belssima obra: O percurso do reconheci-mento. O livro se constitui em um compndio de conferncias proferidas pelo autor, em Viena e em Friburgo, as quais foram cuidadosamente trabalhadas posteriormente. A proposta inicial do autor surge provocando surpresa e per-plexidade por no se ter visto um livro fi losfi co que tratasse diretamente do assunto reconhecimento, como tratam, em inmeros livros, as muitas teorias e discusses do tema conhecimento. Contudo, a obra lanada anteriormente, A memria, a histria, o esquecimento (Ricoeur, 2007), j tratava do tema do reconhecimento de um modo mais abrangente, na ltima parte do livro ao abordar o tema do o perdo.

    O percurso do reconhecimento divide-se em trs grandes estudos, para seguir a lgica do autor adotada em suas obras. Primeiramente, o estudo parte de uma anlise lingustica e lexicogrfi ca da palavra reconhecimento, com base em dois grandes dicionrios franceses o Dictionaire de la langue franaise, de 1859, e o Grand Robert de la langue franaise, de 1985 (in Ricoeur, 2006 p. 15 e ss.). Esse primeiro estudo elucida a ideia de reconhecimento enquanto identifi ca-o, contando com anlises de Descartes e Kant. Em instncia primria, o verbo reconhecer comporta o eu que reconhece, enquanto est ativo. Tal identifi cao parte do identifi car-se algo em geral para, posteriormente, chegar a identifi car-se algum. No segundo grande estudo, surge o agente (agency, diz Ricoeur) que revela a capacidade do homem enquanto ser capaz da ao de reconhecer. Nesse ponto, o autor liga essa capacidade noo de narratividade daquele que pode reconhecer, qual liga tambm as noes de memria e de promessa mais bem explicitadas na obra A memria, a histria, o esquecimento. Ricoeur fala do agir e do agente no mundo grego, aos quais relaciona o reconhecimento de si por outra pessoa que no o si mesmo. Nesta ocasio, existe uma bela, porm pequena, anlise do reconhecimento de Ulisses na grande obra Odissia, de Homero (in Ricoeur, 2006, p. 90-91), nos dois momentos: o primeiro, em que Ulisses reconhecido, e o segundo, o momento em que se faz reconhecer. Ricoeur tambm analisa as distines de Aristteles, no incio da obra tica a Nicmaco (in Ricoeur, 2006, p. 97). A narrativa trabalhada nesse segundo estudo com mais clareza, em que se marca o poder dizer, atrelando-o ao poder fazer e ao poder narrar-se e tambm o poder ouvir-se, pois sempre se pressupe o ser ouvido ao narrar-se. Estes temas so ligados noo jurdica de memria enquanto promessa a viso do falar de testemunhas, por exemplo, ou simplesmente a da promessa de um indivduo ao outro, um simples pacto. Posteriormente, ainda no segundo estudo, levan-tada pelo autor a ideia de esquecimento dos dados memoriais, da lembrana a

    Resenha

    Filosofi a Unisinos10(2):223-225, mai/ago 2009 2009 by Unisinos doi: 10.4013/fsu.2009.102.08

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    Filosofi a Unisinos, 10(2):223-225, mai/ago 2009

    Leonardo Marques Kussler

    famosa anamnsis grega , temas desenvolvidos mormente em sua obra, a qual trata diretamente do esquecimento.

    No terceiro grande estudo, o autor procura mostrar a relao do eu que reconhece ou se faz reconhecer com o tema do reconhecimento mtuo. Nele so discutidas as teorias de Hobbes, por exemplo, em sua temtica da organiza-o social que, indiretamente, parece relacionar-se com o reconhecimento de si, pois se trata, como explica Ricoeur, no estado de natureza, de todos contra todos, de uma busca de reconhecimento de cada indivduo pelo outro. Nesse estudo, tambm reservado um grande espao para as anlises de Hegel sobre o reconhecimento. Existe uma boa relao, nos escritos hegelianos da poca do livro Fenomenologia do esprito (in Ricoeur, 2006, p. 178), por exemplo, entre servo e senhor, que, explica, na mesma linha, paralela ao reconhecimento de cada indivduo em Hobbes, de forma diferente, a relao dialgica, por assim dizer, do servo com o senhor tambm assinalada por Ricoeur como a luta de classes sociais e econmicas, embasadas em Thvonot e Boltanski (in Ricoeur, 2006, p. 237-238). Vale ressaltar que, nessa relao, como se sabe, um deles se faz reconhecer, e o outro se submete a sua posio por no ter se arriscado tanto quanto o outro; oprimido, portanto, e tem seu reconhecimento compro-metido. Partindo desse reconhecimento em Hegel, no perodo de Iena, Ricoeur relaciona o reconhecimento com o sentimento de amor, por exemplo, nessa temtica de reconhecimento mtuo, em que se busca a reciprocidade, a alteri-dade nesse reconhecer. Nesse terceiro estudo, trabalha-se, junto temtica do amor propriamente dita, o conceito de agpe na tentativa de reconciliao, de mutualizao desse reconhecimento. Tambm se discute o tema da relao de equidade ou equivalncia no plano jurdico que, de certa forma, trata de uma igualdade, de uma mutualidade, de uma respeitabilidade. Nessa tentativa de se mutualizar o reconhecimento importante ressaltar o papel da discusso do desconhecimento, caro Ricoeur, pois mostra a difi culdade de se reconhecerem mutuamente os indivduos, sem que ningum seja desconhecido, esquecido, transpassado. A parte fi nal do livro reserva a temtica de dom, entendido como a possibilidade de se reconhecer algum e trocar dons. Com isso, surge a ideia de gratido, trabalhada de acordo com a tendncia de retribuir o reconhecimento que se recebe, reconhecendo de volta o outro indivduo. Essa mutualidade, equidade, respeitabilidade, alteridade so possveis em um dito estado de paz, diz Ricoeur. Para o pensador francs, somente esse estado de paz que pode, de fato, possibilitar essa troca de reconhecimentos enquanto dons, que tm sua expresso mais forte na troca sem compromisso, ou seja, no doar-se sem esperar o reconhecimento de gratido de volta algo um tanto cristo, como bem aponta o autor. Ricoeur tambm desenvolve, em parte, as teses de Lvinas (in Ricoeur, 2006, p. 74 e ss.) sobre o reconhecimento do outro, que retratam a dissimetria entre o eu e o outro para um reconhecimento recproco, de uma tica primordial que assegure esse tratamento mtuo.

    Por fi m, de suma importncia ressaltar que, por se tratar de um livro recente, e uma das ltimas obras de Ricoeur, alguns temas esto a indexados com pressuposies de leituras anteriores, algo mais refi nado, por assim dizer, posto que o livro traz temas de algumas de suas obras anteriores. A obra apresenta-se, portanto, como uma sntese de determinadas teses, compactadas nesse belo volume. Entretanto, isso no reduz a importncia, a novidade e o compromisso do autor ao trabalhar um tema de especulao constante como o reconhecimento que, como ele mesmo diz em sua anlise, no foi tomado com a devida seriedade at o presente momento. A leitura do livro altamente vlida, uma vez que se mostra como uma tendncia forte na atualidade e, por

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    Filosofi a Unisinos, 10(2):223-225, mai/ago 2009

    O percurso do reconhecimento de Paul Ricoeur

    ser um livro composto sistematicamente por Paul Ricoeur, prima pela qualidade das anlises desenvolvidas, resultando em um timo referencial terico nesse mbito pouco discutido.

    Referncias

    RICOEUR, P. 2007. A memria, a histria, o esquecimento. Campinas, Editora da UNICAMP, 535 p.

    Leonardo Marques KusslerUnisinos

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