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8º Encontro da ABCP 01 a 04/08/2012, Gramado, RS AT06 – Instituições políticas O poder dos barões revisto: a (limitada) autoridade dos Estados brasileiros em perspectiva comparada Rogerio Schlegel 1 CEM/Cebrap (Centro de Estudos da Metrópole/ Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) 1 Este paper é parte de pesquisa em Pós-Doutorado financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), a quem agradeço por viabilizar o projeto e a participação no encontro da ABCP)

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8º Encontro da ABCP

01 a 04/08/2012, Gramado, RS

AT06 – Instituições políticas

O poder dos barões revisto:

a (limitada) autoridade dos Estados brasileiros

em perspectiva comparada

Rogerio Schlegel1

CEM/Cebrap (Centro de Estudos da Metrópole/

Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

1 Este paper é parte de pesquisa em Pós-Doutorado financiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São

Paulo), a quem agradeço por viabilizar o projeto e a participação no encontro da ABCP)

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Título:

O poder dos barões revisto: a (limitada) autoridade dos Estados brasileiros em

perspectiva comparada

Autor:

Rogerio Schlegel (CEM/Cebrap)

Resumo:

O estudo questiona a interpretação de que o Brasil é uma federação com extrema

descentralização da autoridade em favor dos Estados e dos governadores, hoje ou em 1988,

recorrente no trabalho de brasilianistas e autores brasileiros. Utilizando um indicador de

descentralização replicável em diferentes contextos nacionais, o Regional Authority Index

proposto por Hooghe, Marks e Schakel (2010), o trabalho conclui que os Estados brasileiros

possuem menos autoridade do que níveis de governo de status semelhante de grande parte das

federações e mesmo de países tidos como unitários, como Itália e Espanha. As esferas

intermediárias de governo do Brasil rivalizam com seus semelhantes em termos de self-rule,

mas ficam muito atrás em matéria de shared rule. São evidências contra a difundida perspectiva

que atribui grande poder de veto a Estados e governadores nas arenas centrais. O índice de

autoridade regional também revela que não houve alterações fundamentais na descentralização

em favor dos Estados desde a Constituição de 1988, colocando em nova perspectiva o aparente

movimento recente de centralização da federação brasileira.

Palavras-chave:

Federação; Centralização; Estados; Constituição de 1988; Regional Authority Index

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Introdução

A avaliação de que o Brasil é um caso extremo de federação descentralizada foi

internacionalmente difundida em estudos de autores brasileiros e comparativistas influentes,

após a promulgação da Constituição que marcou a redemocratização do país, em 1988

(Abrucio, 1998; Ames, 2001; Mainwaring, 1999; Stepan, 1999). Apesar das mudanças ocorridas

nas duas últimas décadas, essa interpretação é corriqueiramente repetida em estudos recentes

(Samuels e Mainwaring, 2004; Shah, 2006; Desposato e Scheiner, 2008). A federação brasileira

tem a singularidade de possuir também as municipalidades como entes federativos com poderes

ampliados, mas são os Estados que costumam ser apontados como nível de governo com

autoridade extremada, na comparação com outros países.

Este estudo coloca em xeque essa perspectiva, utilizando o RAI (Regional Authority

Index) para comparar o Brasil com outros 42 países. O indicador proposto por Hooghe, Marks

and Schakel (2010) – autores especialmente influentes no debate europeu sobre regionalismo e

descentralização – avalia a estrutura de governo de forma ampla e tem o mérito de ser mais

abrangente do que outros índices desenvolvidos nos últimos anos. Esforços semelhantes de

aplicar indicador sintético e comparável ao caso brasileiro são raros – um exemplo é Amorim

Neto (2009), avaliando o caráter consensual da democracia brasileira a partir da abordagem de

Lijphart (1999) – e nunca se detiveram sobre o grau de autoridade dos Estados.

O RAI enfrenta de maneira eficiente questões que estão na ordem do dia dos estudos

federativos e comparativos. O foco do índice na autoridade leva em conta um desenvolvimento

recente da análise comparada: a diferenciação conceitual entre right to decide (direito de decidir)

e right to act (direito de agir). Em resumo, o primeiro se refere a quem tem o direito de definir a

regulação das políticas (o que será feito); o segundo diz respeito a quem cabe implementá-las

(como será feito), conforme os autores que consolidaram esses conceitos (Braun, 2000; Keman,

2000). Com terminologias próprias, diferentes pesquisadores têm usado essa maneira de refinar

a compreensão sobre dinâmicas entre níveis de governo2.

A maior vantagem da aplicação do índice com o objetivo aqui proposto é seu foco no nível

intermediário de governo. O RAI é limitado para retratar as diferentes dimensões da

2 Outros autores utilizam os termos “policy decision-making” para a decisão sobre as políticas e “policy-making” para sua

implementação (por exemplo, Obinger, Liebfried e Castles, 2005; Sellers e Lidstrom, 2007; Arretche, 2009a).

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descentralização brasileira – ele não contempla a autoridade dos municípios, fortalecida pela

Constituição de 1988 –, mas aparece como ponto positivo o fato de concentrar-se nos Estados,

justamente o nível interpretado pelos estudos mencionados como decisivo para caracterizar o

funcionamento da federação brasileira. No estudo original, o RAI foi aplicado a autoridades

subnacionais intermediárias com população média superior a 150,000 habitantes. No caso do

Brasil, o nível intermediário é representado pelos 26 Estados da Federação e pelo Distrito

Federal, de poder assemelhado; eles têm população média de 6,9 milhões, variando dos 425 mil

habitantes do menor Estado (Roraima) a 40 milhões do maior (São Paulo).

Aplicados os critérios do RAI, o Brasil atinge escore de 16,5 pontos. É um nível de

descentralização inferior ao de autoridades regionais de outras federações contemporâneas,

como Alemanha (29,3 pontos), Estados Unidos (23,2), Canadá (22,6) e Austrália (19,4). O

escore nacional do Brasil chega a ser inferior ao de países considerados unitários, como Itália

(22,7) e Espanha (22,1), e o aproxima de uma federação centralizada como a Rússia (16,0).

Mesmo quando comparados com entidades regionais com status comparável de outros arranjos

federativos, os Estados brasileiros estão longe de ser as unidades subnacionais de maior

autoridade em relação ao poder central.

Importante notar que houve mudanças no funcionamento concreto da federação nas duas

últimas décadas, mas elas não tiveram abrangência suficiente para alterar a pontuação do Brasil

no RAI no período. É sinal que recomenda cautela no julgamento do aparente movimento

recente de centralização do arranjo federativo brasileiro – pode representar mais continuidade

do que ruptura, como já anotado por outra autora (Arretche, 2009b).

No todo, as evidências recomendam reavaliação do lugar ocupado pelo Brasil entre as

federações em termos de centralização do poder de decidir. Em círculos internacionais, a grande

repercussão dos estudos apontando descentralização extrema tem mostrado relativa

longevidade. É verdade que parte desses trabalhos previa que o arranjo institucional brasileiro

levaria à paralisia decisória, um prognóstico que reconhecidamente não se concretizou. Mas

outras facetas daquela interpretação, de falsificação mais complexa, igualmente merecem

revisão a partir destes achados, a exemplo do poder exacerbado atribuído a governadores e

representantes regionais como veto players nas arenas centrais da federação.

A aplicação do RAI ao país revela que os Estados brasileiros se distinguem em termos de

self-rule – capacidade da unidade subnacional para exercer autonomamente autoridade sobre o

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que se passa em seu território –, mas são bastante limitados em termos de shared rule –

capacidade para co-determinar o exercício da autoridade no território do país como um todo.

Isso contraria um argumento central da perspectiva cuja revisão proponho neste artigo.

Além desta introdução, este paper tem quatro seções. Na primeira, revejo a maneira

como o nível de descentralização da federação brasileira foi descrito e avaliado negativamente

após a Constituição de 1988, assim como a literatura recente que questiona essa abordagem. A

seção seguinte descreve o Regional Authority Index e aplica seus critérios de codificação ao

funcionamento contemporâneo da federação brasileira; também compara a pontuação

encontrada aos 42 países do estudo original e a esferas de governo com status similar ao dos

Estados do Brasil. A terceira seção detalha as características da federação em 1988 e verifica se

elas justificariam mudanças no índice dos Estados. A conclusão aparece na seção final, na qual

defendo que a perspectiva comparada ajuda a entender como o Brasil é um caso moderado

mais do que extremado em matéria de descentralização de autoridade em favor dos Estados.

1 - A literatura do impasse e sua superação

Há relativo consenso nos estudos sobre o Brasil de que a Constituição de 1988

representou um grande impulso à descentralização. A ditadura militar instalada em 1964 repetiu

a lógica de outros governos autoritários e concentrou autoridade no Executivo federal. Nos

estertores do regime, no início da década de 1980, atores políticos relevantes associaram a ideia

de democratização à de descentralização. As normas constitucionais instaladas com a

redemocratização deveriam refletir esse movimento. Parte relevante do poder antes concentrado

na esfera federal foi redistribuído em favor de governos estaduais e locais – os municípios, por

exemplo, elevaram seu status, deixando de ser entes ligados aos Estados e se tornando entes

federativos com maior autonomia, recursos e competências em matéria de políticas públicas.

Na interpretação do novo desenho institucional, prevaleceu no primeiro momento a visão

de que significava “federalismo estadualista e predatório” (Abrucio, 1998), tendo a paralisia

decisória e o impasse como resultados mais prováveis (Ames, 2001). Os principais aspectos

destacados para sustentar essa interpretação eram o malapportionment do Legislativo na esfera

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federal, o comportamento predominantemente territorial atribuído aos representantes dos

Estados nessa arena e o poder de veto que isso representaria para os Executivos estaduais.

Os governadores foram descritos como barões da federação e seu centro de gravidade,

porque controlariam recursos fundamentais para o sucesso eleitoral dos políticos. A grande

autonomia dos Estados geraria um federalismo compartimentalizado, marcado por guerra fiscal,

endividamento descontrolado, necessidade de sucessivos socorros federais e dificuldade de

gerir políticas de forma cooperativa (Abrucio, 1998 e 2005; Mainwaring, 1999).

No Congresso, os representantes estaduais vocalizariam os interesses dos governadores.

Eles atuariam para manter o status quo em termos de legislação geral e, especificamente, de

arranjo federativo. Além dos incentivos representados pelas regras eleitorais via favores dos

governadores, atuaria aí também o malapportionment. Os Estados do Norte e do Nordeste do

Brasil, mais pobres e menos industrializados, são sobre-representados e foram caracterizados

por muitos autores como tendo política mais clientelista e patrimonialista, gerando bancadas

com comportamento ainda menos partidário.

O distanciamento do princípio “um homem, um voto” foi um dos fatores considerados por

Stepan (1999, 2004) para classificar o Brasil como uma das federações que mais constrangiam

o poder do demos3 no mundo. O autor propôs quatro critérios para posicionar as federações em

um continuum que vai do maior favorecimento ao demos ao maior constrangimento ao demos: o

grau de sobre-representação na câmara legislativa territorial; a amplitude de políticas decididas

na câmara territorial; o nível em que a implementação de políticas é atribuída

constitucionalmente às unidades subnacionais; e o nível em que o sistema partidário tem

abrangência para toda a polity em seu sistema de orientação e incentivos. O Brasil é localizado

no extremo do constrangimento ao demos nas quatro escalas (Stepan, 1999).

Toda essa abordagem tem dois pontos em comum: assume que há descentralização

excessiva na federação brasileira e que ela favorece os Estados. A interpretação aparecia como

uma explicação promissora para parte das dinâmicas federativas do início dos anos 1990,

quando os Estados desenvolviam políticas fiscais menos responsáveis, cujos ônus eram

posteriormente repassados à esfera federal. O relativo enfraquecimento dos presidentes do dia

3 Stepan explica a expressão afirmando que difere da simples ideia de maioria. “Ao falar em ‘demos constraining’ não estou

querendo dizer que sempre existe uma ‘maioria’, ou que isto seja certo (...) A palavra demos realmente implica a existência de

uma categoria de ‘todos os cidadãos da pólis’.” (Stepan, 1999: 241).

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pode ter contribuído para essa leitura sobre as instituições. Com a redemocratização, assumiram

um aliado dos militares eleito indiretamente (José Sarney, de 1985 a 1990), um acusado de

corrupção que renunciou para driblar o impeachment (Fernando Collor de Mello, de 1990 a

1992) e um vice que construiu seus apoios após a posse (Itamar Franco, de 1992 a 1995).

A partir do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), as características

mais evidentes do funcionamento da federação sublinharam as fragilidades da abordagem

apontando descentralização excessiva em favor dos Estados.

O comportamento das bancadas estaduais no Congresso não era exatamente o que

havia sido suposto. Estudos empíricos extensivos sobre a relação entre Executivo e Legislativo

reuniram evidências de que os representantes na Câmara tinham comportamento

predominantemente partidário, mesmo nos períodos Sarney, Collor e Franco (Figueiredo e

Limongi, 1995 e 1999). Outro estudo obteve resultados semelhantes para o período que vai de

1989 a 2006 e, assim como o anterior, atribuiu a tendência a recursos institucionais que

permitem ao governo central fazer frente às forças centrífugas do federalismo e a outras

influências institucionais (Cheibub, Figueiredo e Limongi, 2009).

Em matéria de pontos de veto, trabalho de Arretche (2007) indicou que o poder dos

governos estaduais é bastante mais limitado do que a literatura anterior sugeria. Há

centralização decisória nas arenas federais inclusive sobre assuntos federativos e a União

concentra autoridade para normatizar as competências de Estados e municípios. A autoridade

jurisdicional da União permite que parte expressiva dessas matérias seja processada como

legislação ordinária, sem necessidade de supermaiorias. Além disso, também no Senado há

baixa coesão dentro das bancadas regionais, mesmo em votações que afetam negativamente os

recursos disponíveis para os Estados (Arretche, 2007).

Na revisão da interpretação original, autores filiados à corrente da paralisia decisória

atribuíram à qualidade da liderança representada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso

papel central no entendimento das dinâmicas federativas a partir dos anos 1990. Abrucio (2005)

argumentou que a “Era do Real” determinou a crise do federalismo estadualista no Brasil. Esse

plano de combate à inflação e estabilização econômica, implementado por Cardoso a partir de

1994, teria representado uma conjuntura crítica, no sentido de, a partir de escolhas

contingenciais, redirecionar o desenvolvimento institucional em uma direção difícil de reverter,

alterando preferências e a posição relativa dos atores políticos.

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Samuels e Mainwaring (2004) também chamam atenção para as habilidades de Cardoso

para ampliar o controle do governo federal sobre os estaduais, sobretudo na área fiscal. Em

seus dois mandatos, o poder central renegociou os débitos estaduais, limitou a capacidade de

endividamento dos Estados, estimulou os governadores a privatizarem os bancos estaduais,

fixou teto para seus gastos com pessoal e definiu sanções para governantes que burlassem

essas regras. Mas os autores divergem de Abrucio por considerarem que as características

fundamentais da federação brasileira não foram tocadas por mudanças introduzidas após 1994.

Para eles, o Brasil segue como um caso de “strong federalism” (Samuels e Mainwaring, 2004:

85) e mesmo as vitórias centralizadoras de Cardoso não podem ser interpretadas como

enfraquecimento definitivo dos Estados diante do poder central. As variáveis que caracterizavam

o federalismo forte “continuaram intactas durante esse período [1995-2002]”, sustentam (p. 11).

Power (2010:30) considera mais atraente a hipótese de que tenha havido um processo

cumulativo de aprendizado político, no qual Fernando Henrique Cardoso teria desenvolvido uma

espécie de “manual do usuário” para o presidencialismo de coalizão brasileiro, depois seguido

com maestria por Luís Inácio Lula da Silva. Para Arretche (2009b: 380), não houve novidades

institucionais fundamentais após 1988 no que toca à estrutura federativa, pois os formuladores

da Constituição não criaram um ambiente institucional que congelasse a distribuição original de

autoridade entre as diferentes esferas. “Há mais continuidades entre as mudanças aprovadas

nos anos 1990 e o contrato original de 1988 do que a noção de uma ruptura entre os dois

períodos autorizaria supor”, argumentou Arretche (2009b: 380).

A trajetória das interpretações sobre a estrutura federativa pós-1988 e o embate até

frontal entre as correntes tornam especialmente relevante uma abordagem comparativa do caso

brasileiro. Usando indicador quantitativo replicável para diferentes países e épocas, é possível

sustentar que o Brasil é uma federação atipicamente descentralizada? O nível de

descentralização terá mudado substancialmente entre 1988 e o arranjo institucional de hoje?

Como hipóteses de trabalho, assumi preliminarmente duas respostas negativas para

essas questões. Há bons sinais de que o papel proeminente desempenhado pelos governadores

na redemocratização e nos primeiros anos de vigência da nova ordem constitucional tenha

levado analistas a atribuírem às instituições resultados em grande medida determinados pela

dinâmica concreta entre os atores envolvidos. Além disso, o estudo de caso e o foco na

interpretação de dispositivos constitucionais constituíram o método predominante das primeiras

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análises. Estudos com dados empíricos abrangentes que se seguiram minam alguns dos

supostos do estadualismo predatório e desaconselham tomar a federação brasileira como um

exemplo extremo de descentralização em favor das unidades regionais – no caso, dos Estados.

No que diz respeito à evolução desse arranjo no tempo, a interpretação de que há mais

continuidades do que descontinuidades nas mudanças realizadas após 1988 se configura mais

promissora. Não houve reformas que alterassem os princípios constitucionais em matéria

federativa. E, ainda que tenha havido mudanças com sentido centralizador e de redução de

recursos para os governos estaduais, o fato de em geral terem ocorrido por legislação

infraconstitucional apenas reforça o argumento de que a ordem estabelecida com a

redemocratização não privilegiava fundamentalmente o poder de veto das unidades

subnacionais, condenando ao fracasso iniciativas de reforma propostas pelo poder central.

Assim, minha hipótese de trabalho é que, até onde um indicador quantitativo abrangente como o

Regional Authority Index é capaz de discriminar, não houve alterações nas características

centrais das instituições federativas estabelecidas em 1988.

Importante observar que o exercício feito por Amorim Neto (2009:110) ao aplicar o índice

de Lijphart ao Brasil tem outras ambições e pouco revela de novo em matéria de estrutura

federativa. Nesse quesito, o país ficou com 4,5 pontos para o período 1985-2006 – resultado da

média entre os 4 pontos conferidos na codificação original a países com estrutura federal e

centralizada e os 5 pontos atribuídos a federações descentralizadas.

2 – O Regional Authority Index e o Brasil contemporâneo

O Regional Authority Index, idealizado por Hooghe, Marks e Schakel (2010) se apresenta

como indicador especialmente útil na tentativa de localizar o Brasil entre outras federações e

mesmo compará-lo com países unitários. O RAI representa uma medida direta da estrutura de

governo, mais do que dos resultados produzidos por ela. Sua abrangência faz com que abarque

questões fiscais, eleitorais e relações intergovernamentais, por exemplo. Também tem ênfase

nas esferas regionais de governo, o que no caso brasileiro permite colocar em evidência o papel

dos Estados e dos governadores. Por avaliar oito dimensões diferentes com pontuação

independente, permite um ajuste fino nos escores obtidos ao longo do tempo, facilitando

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comparações em períodos inferiores a uma década4. E, entre essas dimensões, traz quesitos

relativos a auto-governo – self-rule – e a governo compartilhado –shared rule – (quadro 1).

Quadro 1 – As oito dimensões do Regional Authority Index Self-rule Shared rule Profundidade institucional – medida em que o governo regional é autônomo mais do que desconcentrado

Participação no processo legislativo – medida em que os representantes regionais co-determinam a legislação nacional

Amplitude de políticas – de políticas pelas quais o governo regional é responsável

Controle do Executivo – medida em que o governo regional co-determina as políticas nacionais em reuniões intergovernamentais

Autonomia tributária - medida em que o governo regional pode taxar sua população de forma independente

Controle fiscal – medida em que os representantes regionais co-determinam a distribuição da arrecadação nacional

Representação – medida em que o governo regional é dotado de câmara legislativa e Executivo

Reforma constitucional – medida em que os representantes regionais co-determinam mudanças constitucionais

O índice tem objetivo de ser uma medida de autoridade regional. Um governo regional é

definido como “coherent territorial entity situated between the local and national levels with a

capacity for authoritative decision making” (Hooghe, Marks e Schakel, 2010: 4). Os governos

regionais são avaliados na medida em que exercem autoridade formal, definida como “authority

exercised in relation to explicit rules, usually, but not necessarily, written in constitutions and in

legislation” (p. 5). Todos os níveis intermediários de governo entre o local e o nacional são

avaliados. É elaborada uma medida para cada nível de governo, que pode variar a cada ano, e

um escore nacional.

Os índices nacionais são calculados seguindo duas etapas:

1 – Um escore é calculado para cada nível regional – por exemplo, Estados separados de

condados, no caso norte-americano;

4 Os autores chamam atenção para o fato de que seu índice é uma medida escalar baseada na agregação de oito dimensões

com medidas ordinais. Por conta disso, a comparação entre índices nacionais ou para cada nível de governo regional assume

que as categorias ordinais das diferentes dimensões avaliadas representam intervalos iguais em termos de autoridade e de que

o erro está aleatoriamente distribuído. Isto é, há presunção de que uma unidade acrescida em dada dimensão é equivalente a

uma unidade em outra dimensão. Como não há uma unidade natural de medida para o conceito de autoridade, que é uma

criação dos estudos políticos, nem se pode saber quais seriam os “verdadeiros” escores para as dimensões observadas, não há

como avaliar a validade desse pressuposto (Hooghe, Marks e Schakel, 2010: 9/10 e 188).

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2 – Quando há mais de uma esfera que possa ser considerada regional, isto é, que

represente um nível de governo entre o nacional e o local, seus escores são somados. Dessa

forma, quanto mais esferas intermediárias um país tiver, maior será seu RAI, mantidas

constantes outras características. Quando há arranjos diferentes para a mesma esfera regional,

seus índices são ponderados pela população.

Como se nota, deixa de ser contemplada no índice parte do que se pode considerar como

a descentralização brasileira total. A medida não abrange as municipalidades.

2.1 – A pontuação do Brasil nas 8 dimensões do RAI

Na pontuação do RAI brasileiro os escores do Distrito Federal serão calculados

separados dos escores dos Estados, num paralelo com o tratamento dado por Hooghe e co-

autores a Washington, DC, nos Estados Unidos, e a autoridades semelhantes. Como se trata de

esferas com o mesmo nível de agregação, a sistemática de cálculo do RAI prescreve que a

pontuação de Estados e Distrito Federal seja ponderada pela população residente em cada tipo

de unidade subnacional. O impacto do território que abriga a sede do governo federal será de

qualquer forma reduzido: o Censo 2010 localizou 2.562.963 dos 191.732.694 de brasileiros

vivendo no Distrito Federal (1,343% do total).

A seguir, será apresentada a codificação do caso brasileiro nas oito dimensões incluídas

no RAI. Por se tratar de índice de circulação internacional recente, optei por reproduzir no

apêndice em detalhes os critérios para codificação de cada quesito (quadros A1 a A8). As

dimensões estão divididas em dois blocos: as que representam self-rule e as de shared rule.

Auto-governo

Profundidade institucional

O RAI concebe a profundidade institucional como um contínuo que vai de nenhuma

autonomia diante do governo central até a total autonomia – esta última, uma possibilidade

conceitual, mas não concreta. Nesse quesito, podem ser somados de 0 a 3 pontos. A primeira

categoria equivale a 0 ponto e é destinada a arranjos regionais em que não há administração de

caráter geral – isto é, administração não específica para uma ou mais funções. A segunda é

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descrita pelo termo napoleônico “déconcentration”5 e se refere à administração regional de

caráter geral que é subordinada ao governo central. Uma administração regional

desconcentrada tem o aparato do auto-governo – prédios, pessoal, orçamento –, mas é um

“posto avançado”6 do governo central. As duas categorias finais distinguem entre

administrações regionais que exercem sua autoridade com autonomia ou não, operacionalizadas

como aquelas sujeitas ou não a veto pelo governo central.

Trata-se de avaliar se dada região têm proteção legal contra controles ex ante ou ex post

pelo governo central. Na Rússia, desde 2000, o presidente tem autoridade para dissolver

parlamentos regionais e trocar governantes quando vê desobediência da lei federal; o Reino

Unido não é uma federação, mas um secretário de Estado da Escócia pode se recusar a

submeter uma lei à chancela real em casos especiais.

Os Estados brasileiros levam 3 pontos nesse quesito, por conta da elevada autonomia de

sua estrutura. Eles contam com serviços públicos de caráter geral organizados e mantidos pelos

Executivos estaduais, o principal critério avaliado nessa categoria. É preciso observar, porém,

que há um Judiciário mantido em cada Estado e que tem nível hierárquico inferior ao dos

tribunais da União, podendo suas decisões ser revistas mesmo por tribunais ordinários, sem

poder de corte constitucional. A Constituição também estabelece hipóteses em que o poder

federal pode intervir nas unidades subnacionais, como para garantir o exercício de qualquer dos

Poderes, combater “grave comprometimento da ordem pública” ou quando deixarem de ser

feitas as transferência legais aos municípios. Essa, no entanto, é previsão estritamente regulada,

que só pode ocorrer após solicitação expressão do Judiciário ou de outro Poder constituído –

como um Legislativo estadual sob coerção. Nenhuma das justificativas aceitáveis para a

intervenção admite questionar resultado de eleição direta para o Executivo estadual.

A pontuação máxima atribuída aos Estados segue os critérios adotados pelos autores

para países com estrutura semelhante. A marca é a mesma das províncias do Canadá, dos

Länder alemães e dos Estados norte-americanos.

Amplitude de políticas

5 Conforme aparece no original, em francês (Hooghe, Marks e Schakel, 2010: 14).

6 No original, “outpost” (Hooghe, Marks e Schakel, 2010: 14)

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Nesse quesito é avaliada a autoridade regional sobre policy making – políticas públicas.

Os autores agruparam as políticas em três áreas:

• econômicas, que incluem desenvolvimento regional, serviços públicos (como

fornecimento de água e energia), transporte (inclusive estradas) e meio ambiente;

• culturais e educacionais, que incluem escolarização, manutenção de universidades,

ensino profissionalizante, bibliotecas, esportes e centros culturais;

• sociais, que incluem saúde, hospitais, bem-estar social (cuidados com idosos,

assistência social), pensões e habitação popular.

Inicialmente são diferenciados governos regionais que exercem autoridade – mesmo que

compartilhada com outra esfera de governo – sobre nenhuma, uma ou mais de uma dessas três

áreas. Nos casos com influência sobre mais de uma área, é avaliado se o governo regional

também exerce autoridade que os autores chamam de constitutiva ou coerciva – “autoridade que

se localiza perto do cerne da soberania estatal” (Hooghe, Marks e Shankel, 2010: 16). O

governo regional controla a polícia? Exerce poder residual? É o responsável pela sua própria

estrutura institucional, como as regras eleitorais? Atender ao menos dois dos critérios dessa

etapa coloca o ente regional na terceira categoria definida pelos autores. Por fim, o maior escore

possível nesse quesito vai para governos regionais com poder sobre a cidadania formal, como

as políticas para imigração e imigrantes.

Os Estados brasileiros têm competências amplas, que incluem direito de legislar de forma

concorrente com a União sobre tributação, finanças, urbanismo, saúde, educação, previdência,

habitação e meio ambiente. As divisões de competência entre as esferas da federação estão

descritas na Constituição federal e são garantidas por tribunal constitucional – o Supremo

Tribunal Federal. Cada Estado tem Constituição própria, com status legal inferior ao da

Constituição federal, com a qual deve estar de acordo. A criação de áreas metropolitanas é

atribuição exclusiva dos Estados.

Neste quesito, os Estados somaram 3 pontos. Além das competências amplas nas três

áreas de política, essas unidades subnacionais contam com polícia organizada em bases

estaduais e poderes residuais. As normas constitucionais reservam aos Estados as

competências que não lhe são explicitamente vedadas; embora o nível de detalhamento da

Constituição de 1988 deixe poucas áreas sem descrição explícita do nível de governo

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responsável, há margem para que os Estados exerçam poderes residuais. Os Estados deixam

de chegar à nota máxima por não terem autoridade em matéria de cidadania e imigração –

prerrogativa de poucas unidades contempladas no estudo original, a exemplo dos Estados

australianos, das províncias canadenses e dos cantões suíços.

No caso do Distrito Federal, há uma discrepância marcante nesse quesito. A autonomia

dessa unidade subnacional já foi descrita como “tutelada” (Silva, 2000: 634), por conta de

limitações em sua estrutura política e administrativa. Em termos de poder de legislar, o Distrito

Federal acumula as competências de Estados e de municípios. Mas, de acordo com a

Constituição, é a União que define a organização e manutenção no DF das Polícias Civil e Militar

e do Corpo de Bombeiros, além do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria

Pública. Como o Governo do Distrito Federal mantém essas divisões administrativas, mas a

autoridade para sua regulação é federal, são atribuídos 2 pontos a essa unidade subnacional.

Autonomia tributária

Avaliar a descentralização a partir dos níveis de arrecadação de impostos e de gastos de

cada esfera pode ser enganoso, porque se perde de vista onde está o poder de tomar decisões

(Rodden, 2004; Arretche, 2005). Nessa dimensão, os idealizadores do RAI optaram por adotar

esquema próximo ao da OCDE, que atenta para o poder discricionário dos governos

subnacionais sobre a arrecadação. A avaliação da autoridade das regiões em assuntos fiscais é

feita discriminando entre tributos principais e secundários7 e entre a capacidade de fixar a base

sobre a qual o tributo incide e a alíquota que é cobrada, de um lado, ou apenas a alíquota, de

outro. O procedimento avalia a capacidade de a unidade subnacional determinar sua

arrecadação unilateralmente, entendida como uma dimensão do self-rule; a capacidade de

influenciar a distribuição nacional da arrecadação será avaliada mais adiante em outra categoria,

como componente do shared rule.

No Brasil, é o poder central que define as características básicas do sistema tributário. As

regras de todos os impostos que podem ser considerados principais são fixadas na esfera

federal, como no caso dos impostos de renda e sobre produtos industrializados. Embora os

Estados possam estabelecer a alíquota de um imposto principal como o ICMS (Imposto sobre

7 No original, “major” e “minor taxes” (Hooghe et al., 2010: 19)

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Circulação de Mercadorias e Serviços, um tributo aproximado aos cobrados sobre valor

agregado em outros países), o fazem dentro de bandas definidas pela legislação federal, que

também fixa a base sobre o qual o tributo incide. Assim, Estados e DF somam 3 pontos.

Há federações bem mais centralizadas que a brasileira nesse critério. Na Austrália, 80%

da arrecadação são responsabilidade do governo federal e os governos estaduais recebem

repasses que representam metade de seus orçamentos; os impostos estaduais são todos

secundários. Na Áustria, tributação e distribuição de receitas são basicamente definidas na

arena central. Os Länder recebem mais de 95% de sua receita como repasses e podem definir a

base e a alíquota para os 5% restantes, por meio do imposto de renda – mesmo neste caso, o

governo federal pode impor um teto.

Na Alemanha, os tributos principais são praticamente divididos igualmente entre governo

federal e os Länder. O poder central define a estrutura tributária global, inclusive bases e

alíquotas, mas com grande participação das unidades subnacionais. Aos Länder, cabe a

arrecadação geral e de alguns impostos exclusivos, como sobre propriedade, herança, veículos

– os tributos exclusivos representam menos de 10% das fontes orçamentárias dessas unidades

regionais. No Reino Unido, entre as regiões com autonomia especial, apenas a Escócia tem

alguma autonomia tributária. O Parlamento escocês pode alterar a alíquota do imposto de renda

em até 3 pontos percentuais – possibilidade até agora não implementada. Todas as regiões com

diferentes níveis de poder devolvido (País de Gales, Irlanda do Norte e Escócia) dependem

totalmente de repasses do poder central.

Representação

No RAI, esse quesito é avaliado segundo a capacidade de atores regionais escolherem

autoridades com jurisdição sobre o território. Há escores separados para o Executivo e para as

câmaras legislativas – chamadas apenas de assemblies, definidas como instituições

independentes com membros fixos que usam procedimentos parlamentares para tomada de

decisões. Cada subdimensão vale até 2 pontos.

Estados e Distrito Federal brasileiros recebem 4 pontos (2 + 2) nesta dimensão, escore

idêntico ao dos Estados norte-americanos. Na Rússia, os subwsekty federacii correntemente

recebem 2 em câmaras e 1 para o Executivo. Há assembléias regionais, mas o governador é

escolhido em um sistema dual com a participação de Moscou – em 2005, o presidente Putin

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substituiu a eleição direta do Executivo regional por um sistema em que o presidente propõe um

candidato para cada Legislativo regional. Na Alemanha, o governador é escolhido indiretamente

pela assembléia diretamente eleita de cada Land.

Com isso, terminam os quesitos de self-rule, dimensões em que os Estados brasileiros

com frequência se aproximam da pontuação máxima – o que sugere que têm amplos poderes

para se auto-governar. Como se verá a seguir, o mesmo não se passa em termos de

compartilhamento do poder nas arenas centrais, cujas decisões valem para todo o país – no

cálculo do RAI, domínio entendido como shared rule. Destoando de arranjos como o do

federalismo cooperativo alemão, os Estados brasileiros mostram poder limitado nessas arenas.

Poder compartilhado

Participação no processo legislativo

O quesito leva em conta o papel das regiões na elaboração da legislação nacional. Assim,

avalia se as regiões são maioria em uma câmara da arena central – em geral, a câmara alta ou

Senado –, se os representantes regionais são maioria nessa câmara e se a câmara tem

autoridade para vetar legislação ordinária.

Mais uma vez, o sistema brasileiro contemporâneo tem semelhança com o dos Estados

Unidos. Ambos têm um Senado em que os Estados são representados como unidades

equivalentes, sem atentar para a proporção da população residente em cada um. No Brasil,

cada Estado e o Distrito Federal elegem três senadores; nos Estados Unidos, dois. Os dois

países ganham 1,5 ponto, deixando de adicionar 0,5 porque não atendem ao quesito de o

próprio governo regional designar o representante – o que acontece no sistema alemão, por

exemplo, no qual o Executivo de cada Land é quem indica o representante na câmara alta, o

Bundesrat. Essa, por sinal, é uma discriminação importante que os autores fazem: entre

representantes regionais eleitos pela população, de um lado, e indicados pelos governos

regionais, de outro. Os últimos são considerados veículo de autoridade da região com maior

intensidade – um critério que aparece neste quesito e será repetido em outros.

Controle do Executivo

Governos regionais podem compartilhar autoridade executiva com o governo central por

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conta de reuniões intergovernamentais. Para marcar pontos no RAI, seus idealizadores

definiram que é preciso que os encontros sejam rotineiros – não ad hoc – e de caráter impositivo

– as decisões obriguem as partes envolvidas. Outro critério decisivo é que nessas reuniões

intergovernamentais o poder federal deve estar representado – os cantões suíços têm

cooperação intensiva e capaz de obrigar os envolvidos, mas ela em geral tem caráter horizontal,

isto é, envolve só unidades subnacionais.

Estados e DF marcam 1 ponto. Embora não exista um órgão central de coordenação

entre União e governos subnacionais, há muitos organismos que reúnem governo federal e

governos subnacionais8 em encontros regulares para deliberar sobre políticas setoriais.

Exemplos dessas organizações são o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), a

Comissão Tripartite do SUS (Sistema Único de Saúde), as Câmaras Temáticas do Contran

(Conselho Nacional de Trânsito) e a Comissão Tripartite Nacional do Ministério do Meio

Ambiente. Ocorre que as decisões desses colegiados não obrigam os envolvidos, sobretudo o

governo central. As decisões da Comissão Tripartite do SUS, por exemplo, podem ser vetadas a

posteriori pelo ministro da Saúde.

Nesse quesito, o Brasil se mostra em patamar de regionalização comparável ao de

Estados Unidos e Canadá. No primeiro caso, as políticas federais usualmente são definidas nas

arenas centrais e a colaboração – em geral, facultativa – dos Estados é buscada por meio de

incentivos financeiros. Quando uma legislação federal é aprovada, os Estados podem optar por

segui-la ou não, mas o papel deles na tramitação se limita à ação de lobby junto aos

representantes nas arenas centrais. O Canadá chega ao ponto de possuir ministro de Estado

dedicado a relações intergovernamentais, no entanto os encontros e comissões

intergovernamentais costumeiramente não produzem decisões que obrigam os envolvidos.

Controle fiscal

Este quesito trata das regras de distribuição da arrecadação. Poder compartilhado em

termos de extração e alocação de tributos merece tratamento diferenciado no RAI, por conta de

sua importância. O índice leva em conta o poder de decidir sobre a distribuição da arrecadação

e não a distribuição em si. Governos regionais podem influenciar a distribuição da arrecadação,

inclusive via transferências, diretamente em encontros intergovernamentais ou indiretamente,

8 Inclusive os locais, representados pelas municipalidades.

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por meio de seus representantes nas arenas centrais. Se os governos regionais podem atuar

pelos dois canais, ganham 1 ponto. Se têm poder de veto, mais 1 ponto, o mesmo valendo para

países que têm câmara legislativa com maioria de representantes regionais com poder de veto

sobre a distribuição da arrecadação – como é o caso do Senado brasileiro.

No Brasil, a esfera regional arrecada perto de 25% do total de tributos, contra 65% do

poder central – o restante é coletado pelos municípios. Após as transferências

intergovernamentais, o nível federal fica com cerca de 55% das receitas disponíveis, os Estados

mantêm o seu quinhão próximo de 25% e os municípios acabam com pouco menos de 20%.

Os critérios definidos pelos idealizadores do RAI nesse quesito são especialmente duros

com casos como o brasileiro e o norte-americano, nos quais os integrantes do Senado são

escolhidos pela população e não indicados por governos regionais. Como observei

anteriormente, para os autores essa é uma característica decisiva: representantes indicados

tendem a vocalizar os interesses de seu governo regional e isso é entendido como maior

autoridade para a região. Acompanhando a pontuação atribuída aos Estados Unidos por conta

disso, os Estados e o DF deixam de pontuar nessa dimensão. É claro o contraste com a

Alemanha, país em que as regiões influem na definição de regras tributárias e distribuição da

arrecadação por meio do Bundesrat, mas têm membros indicados pelos governos regionais – o

que fez esse país somar 2 pontos a seu índice.

Reforma constitucional

A autoridade para mudar a Constituição é avaliada em dimensão isolada no RAI por

envolver as regras do jogo. O primeiro critério diz respeito ao tipo de ator regional envolvido: se

eleitorado ou representante, de um lado, ou governo, de outro. Se o consentimento do eleitorado

ou seus representantes é necessário para mudança constitucional, o país recebe 1 ponto.

Quando o governo regional tem poder para aumentar o quórum necessário para mudanças, são

atribuídos 2 pontos; e, quando o governo regional pode vetar mudanças, são somados 3 pontos.

Se atores regionais não elevam o quórum nem vetam mudança, a unidade deixa de pontuar.

Os Estados e o Distrito Federal brasileiro levam 1 ponto nesse quesito. O Senado

brasileiro, que é a representação dessas unidades subnacionais, tem de dar sua aprovação para

que a Constituição seja modificada. Emendas precisam ser aprovadas por 3/5 em cada câmara

do Congresso, em duas votações na mesma legislatura.

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Também nessa dimensão a diferença entre representantes escolhidos pela população ou

pelos governos foi considerada relevada pelos idealizadores do índice: é preciso que os

representantes tenham sido apontados pelos governantes regionais para que dada unidade

subnacional tenha pontuação maior do que 1. “Governos regionais devem estar diretamente

envolvidos na ação para marcarem 2 ou 3 [pontos]”, afirmam Hooghe e co-autores (2010: 27). O

Senado brasileiro pode introduzir emendas e exigir segunda votação na outra câmara, mas não

tem representantes indicados por governos regionais – razão para que o país não leve 2 pontos.

Esse, por outro lado, é o caso da Áustria, federação em que o Bundesrat tem autoridade

para vetar mudança que afete o arranjo federativo ou a forma de organização do Land. Os

integrantes do Bundesrat austríaco são eleitos pelas assembléias dos Länder, sendo

considerados representantes do governo regional para cálculo do RAI. Também na Alemanha

mudanças constitucionais dependem da aprovação pelo Bundesrat e com maioria de dois

terços. Os dois países recebem 3 pontos em mudança constitucional. Nos Estados Unidos,

mesmo minorias de Estados podem vetar alteração constitucional: 2/3 de cada câmara do

Congresso e ¾ das assembléias estaduais precisam ratificar uma emenda para que entre em

vigor. No estudo original, as assembléias estaduais foram entendidas como também constituindo

“governos regionais”, e esse país ficou com 3 pontos também.

2.2 – A pontuação geral do Brasil

O escore global do Brasil no RAI aparece na tabela 1, em que se observa que o Distrito

Federal só teve pontuação diferente em uma dimensão, relativa à amplitude de políticas.

Tabela 1 – Resumo da pontuação do Brasil contemporâneo

Self –rule Shared rule

To

tal

Profundidade institucional

Amplitude políticas

Autonomia fiscal

Representação Poder legislativo

Controle Executivo

Controle fiscal

Reforma constit.

Estados 3 3 3 2+2 1,5 1 0 1 16,5

DF 3 2 3 2+2 1,5 1 0 1 15,5

Fonte: elaboração do autor

Dada a baixíssima participação do DF na população (0,01343 do total), o índice

praticamente representa os escores dos Estados: 16,487 – ou 16,5, trabalhando-se com uma

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casa após a vírgula9. O gráfico 1 localiza o Brasil entre os 42 países avaliados por Hooghe,

Marks e Schakel. Observa-se que o país aparece com índice de autoridade regional menor do

que a quase totalidade das federações incluídas no estudo original – caso de Bósnia-

Herzegovina (30,6 pontos), Alemanha (29,3), Bélgica (28,1), Estados Unidos (23,2), Canadá

(22,6), Austrália (19,4) e Áustria (18)10. O Brasil aparece atrás inclusive de Itália (22,7) e

Espanha (22,1), países tidos como unitários.

Gráfico 1 – Índice de Autoridade Regional do Brasil e outros 42 países

0

5

10

15

20

25

30

35

Fonte: Hooghe, Marks e Schakel (2010) e elaboração própria

É possível argumentar que o posicionamento do Brasil em grande medida se deva à

forma de cálculo do índice, que soma os escores de todas as esferas intermediárias de governo

quando há mais de um nível de autoridade regional. Isso aumenta o índice de outros países e 9 O cálculo do índice nacional foi feito com a fórmula RAIn=RAIi1+RAIi2+...+RAIin, na qual RAIn é o índice nacional, RAIi1 é o índice da primeira esfera regional e RAIin é o índice da enésima esfera regional. O cálculo do índice de cada esfera regional utiliza a fórmula RAIi=(RAIr1 x Popr1) + (RAIr2 x Popr2)+...+(RAIrn x Poprn), em que RAIr1 é o escore do primeiro tipo de unidade de dada esfera regional, Popr1 é a proporção da população que vive nesse tipo de unidade em relação ao total de habitantes da esfera regional, RAIrn é o escore do enésimo tipo de unidade de dada esfera regional e Poprn é a proporção da população que vive nesse tipo de unidade em relação ao total de habitantes da esfera regional considerada. 10 É também o caso de Sérvia-Montenegro, federação cujas subunidades se separaram em 2006.

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desfavorece a pontuação do Brasil, que só possui uma esfera intermediária de governo. Mas

também o cotejamento com unidades subnacionais de status comparável em outras federações

indica que os Estados e o Distrito Federal brasileiros possuem atualmente autoridade que está

longe de configurar um caso extremo. Na verdade, apenas os subwekty federacii da Rússia e

algumas regiões belgas apresentam autoridade regional menor que a dos Estados brasileiros,

considerados os critérios do RAI (gráfico 2).

Gráfico 2 – RAI de unidades regionais de federações, por self-rule e shared rule

1512

1513 14 15

12 13

9 9

7

95

6,5 5,5 4,5

6 3,5

7 6

0

5

10

15

20

25

Fonte: Hooghe, Marks e Schakel (2010) e elaboração própria Obs.: A comparação envolve Estados (Brasil, Austrália e Estados Unidos), Províncias (Canadá), Cantões (Suíça), Länder (Áustria e Alemanha), Regiões (Bélgica), Entidades (Bósnia-Herzegovina) e Subwkty federacii (Rússia) * As cinco regiões em que se divide a Bélgica possuem autoridades assimétricas; aqui está registrada a menor pontuação obtida por essa esfera de governo, relativa à Comunidade Francesa e ao Deutsche Gemeinschaft ** Aqui são descritos os poderes das duas entidades que compõem a federação, que configuram a esfera regional mais abrangente; uma delas, a Fedracija Bosne i Hercegovine, possui ainda subdivisões regionais chamadas cantões

Proporcionalmente, o Brasil acumula mais pontos no bloco de self-rule do que no de

shared rule – no gráfico, a parte inferior das barras representa a pontuação no primeiro grupo de

quesitos e a extremidade superior apresenta os pontos no segundo grupo. Esse é o

comportamento geral para as federações observadas, mas não com a intensidade que ocorre no

caso brasileiro. Enquanto os Estados e o Distrito Federal têm pontuação equivalente à mediana

em self-rule, o país apresenta o menor valor em termos de shared rule. A Alemanha,

reconhecido exemplo de grande influência dos Länder nas esferas nacionais, aparece com 9

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pontos, enquanto o Brasil tem 3,5.

Isso indica que o arranjo federativo brasileiro dá amplo poder de auto-governo às

unidades subnacionais, mas não é tão generoso em matéria de lhes conceder autoridade nas

arenas centrais. Parte dessa constatação pode ser atribuída aos critérios do RAI, que dão peso

a representantes de governos subnacionais mais do que a representantes das populações

estaduais. É questão empírica apurar se no Brasil os representantes dos Estados nas arenas

centrais têm comportamento territorial, mas a pesquisa recente têm indicado que seu

comportamento é predominante partidário, com já mencionado (Figueiredo e Limongi, 1995 e

1999; Cheibub, Figueiredo e Limongi, 2009; Arretche, 2007). É um motivo para aceitar a

fotografia oferecida pelo RAI como consistente para o desenho federativo brasileiro do presente.

Importante salientar que houve alterações marcantes no arranjo institucional brasileiro

desde a promulgação da Constituição de 1988, sobretudo com sentido de centralização da

autoridade no nível federal (Abrucio, 2005; Almeida, 2005; Arretche, 2007). No entanto, essas

mudanças não tiveram magnitude suficiente para alterar a pontuação de Estados e DF no RAI.

Os pontos são os mesmos, seja o Brasil observado em 2011 ou em outubro de 1988.

3 – Brasil de 1988 x Brasil de 2012

Por fim, o Regional Authority Index permite comparar a autoridade dos Estados brasileiros

em 1988 e no contexto contemporâneo, de forma a produzir mais uma evidência para discussão

das eventuais mudanças no arranjo federativo a partir da década de 1990. Considerado a partir

do contexto brasileiro, trata-se de período retratado como tendo alterações marcantes (Abrucio,

2005; Almeida, 2005; Arretche, 2007). A questão aqui é ter parâmetros mais abrangentes para

avaliar a magnitude dessas mudanças. O uso de um indicador desenvolvido para medir em

largos traços as singularidades institucionais entre países de diferentes partes do globo, em

princípio não contaminado por vieses ad hoc, acena com a possibilidade de colocar as

mudanças brasileiras em perspectiva mais ampla. Na operacionalização dessa análise, o maior

desafio é traduzir com precisão as alterações no funcionamento concreto da federação de forma

a localizá-la corretamente nas graduações que cada dimensão do RAI oferece.

Os limites deste paper não permitem discussão exaustiva das alterações institucionais

ocorridas entre 1988 e 2012. Há novidades em várias dimensões do arranjo institucional, mas

vou me concentrar em três quesitos nos quais aparecem sinais de que as mudanças poderiam

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afetar a localização das unidades regionais brasileiras no RAI. Nas demais, não há alterações

dignas de nota que pudessem modificar a pontuação de Estados e Distrito Federal.

Todos os quesitos com mudanças de peso dizem respeito ao self-rule. O primeiro deles é

a profundidade institucional. Nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso

(1995-1998 e 1999-2002), a regulação dos gastos de Estados e municípios veio para o centro da

agenda do governo federal e há sinais de redução da autonomia decisória das unidades

subnacionais sobre suas próprias despesas. A legislação federal passou a regular em detalhes

regras para os patamares de gasto com educação, saúde, funcionalismo, regime previdenciário,

além de estabelecer limites para a expansão de gastos e endividamento (Arretche, 2007).

No entanto, essas alterações não chegam a representar mudança na pontuação das

unidades regionais brasileiras em termos de profundidade institucional. Para que isso ocorresse,

seria preciso considerar que introduziram veto do governo central sobre a estrutura

administrativa dos Estados que antes não existia; não é o caso, considerando, por exemplo, que

a previsão legal de intervenção da União nos Estados se manteve a mesma, assim como a

hegemonia dos tribunais federais sobre os estaduais. Estados e Distrito Federal já possuíam em

1988 o que pode ser considerado estrutura administrativa geral não desconcentrada e não

sujeita a vetos por parte do governo central, merecendo os mesmos 3 pontos de 2012.

No segundo ponto, relativo à amplitude de políticas, cabe interpretação semelhante. Após

1995, foi aprovada nas arenas centrais extensa produção que normatizou as competências dos

Estados. Na área educacional, por exemplo, entrou em vigor a Lei de Diretrizes e Bases, que

definiu a jornada escolar mínima dos professores, as condições de exercício da atividade, a

carga horária mínima, a duração do ano letivo e de cada nível de ensino. Também foi aprovada

reforma administrativa ampla, que incluiu a Lei de Concessões e disciplinou os regimes

previdenciários dos Estados, criou parâmetros para salários e subsídios dos cargos eletivos de

todos os níveis de governo, regulou os termos para concessão de serviços públicos e

padronizou regras para contratações e licitações.

Nada disso, porém, configura mudança na codificação das unidades regionais brasileiras

nas escalas do RAI quando observado o arranjo de 1988. Os Estados já tinham e continuaram

tendo competência para tomar decisões sobre ao menos duas das três áreas de políticas

observadas (econômicas, culturais/educacionais ou sociais), assim como poderes residuais e

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força policial regional. Os 3 pontos que tiveram nesse quesito valem para 1988 e para 2012, da

mesma forma que os 2 atribuídos ao DF– que já não tinha autoridade para regular sua polícia.

O terceiro ponto diz respeito à autonomia tributária dos Estados. A questão foi objeto

indireto da Lei Kandir, de 1996, que se notabilizou por desonerar as exportações do ICMS, mas

também unificou todas as outras normas de arrecadação desse imposto. Essa lei complementar

votada no Congresso definiu as regras que os Estados devem seguir na devolução da parcela

do ICMS que cabe aos seus municípios, por exemplo. Ainda assim não se pode considerar que

os Estados brasileiros mudaram de posição na escala do RAI, pois o governo regional não tinha

liberdade para definir a base de incidência desse tributo principal já em 1988 – um critério para

obter maior pontuação nesse quesito. Os Estados somam 3 pontos nos dois momentos.

Em resumo, nessas três dimensões com novidades institucionais marcantes nos últimos

20 anos houve centralização decisória, mas que não alterou ou contrariou fundamentalmente os

princípios da Constituição de 1988. Como ressaltou Arretche (2007), as alterações representam

mais continuidade do que descontinuidade em relação aos dispositivos centrais da Constituição

da redemocratização. A pontuação obtida para a autoridade regional utilizando o RAI está em

linha com essa interpretação, não apresentando alteração entre o final dos anos 1980 e hoje.

4 - Conclusão

O escore dos Estados e do Distrito Federal brasileiro no Regional Authority Index

desaconselha interpretar o país como uma federação com excessiva descentralização da

autoridade em favor dos governos regionais, seja em 1988 ou em 2012. O Brasil está longe de

ser um caso extremo, quando a descentralização é medida dessa forma. Sua pontuação é

menor do que a de países que formalmente não se apresentam como federação, como a Itália.

Mesmo quando os Estados são cotejados apenas com entes de status semelhantes de

outras federações, o caso brasileiro aparece como tendo autoridade regional no máximo

moderada. O índice ainda revela que os Estados brasileiros se destacam em matéria de

autoridade para se auto-governar mais do que em termos de influenciar decisões nacionais nas

arenas centrais. É mais uma peça para explicar por que não se cumpriu a previsão de paralisia

decisória e baixa governabilidade feita na primeira década de vigência da Constituição.

As evidências trazidas pela aplicação do RAI à realidade do país recomendam rever

conceitos amplamente difundidos no Brasil e no exterior sobre a federação brasileira.

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APÊNDICE

Quadro A1 – Critérios para profundidade institucional 0 Sem estrutura administrativa geral no nível regional

1 Estrutura administrativa geral desconcentrada

2 Estrutura administrativa geral não desconcentrada, sujeita a veto do governo central

3 Estrutura administrativa geral não desconcentrada, não sujeita a veto do governo central

Quadro A2 – Critérios para amplitude de políticas 0 O governo regional não tem competência para decidir sobre políticas econômicas, culturais e educacionais ou

sociais.

1 O governo regional tem competência para decidir em uma das três áreas de políticas (econômicas, culturais e educacionais ou sociais)

2 O governo regional tem competência para decidir sobre ao menos duas das três áreas de política (econômicas, culturais e educacionais ou sociais)

3 O governo regional atende aos critérios para os 2 pontos e ainda possui ao menos 2 dos seguintes: . poderes residuais . força policial regional . autoridade sobre seu próprio desenho institucional . autoridade sobre o governo local

4 O governo regional atende os critérios para os 3 pontos e ainda tem autoridade sobre imigração e cidadania

Quadro A3 – Critérios para autonomia tributária 0 O governo central define a base e a alíquota de todos os tributos regionais

1 O governo regional define a alíquota de tributos secundários

2 O governo regional define a base e a alíquota de tributos secundários

3 O governo regional define a alíquota de ao menos um tributo principal: de renda, corporativo, sobre valor agregado, sobre operações comerciais

4 O governo regional define a base e a alíquota de ao menos um tributo principal: de renda, corporativo, sobre valor agregado, sobre operações comerciais

Quadro A4 – Critérios para representação

Câmaras

0 A região não tem câmara regional

1 A região tem uma câmara regional eleita indiretamente

2 A região tem uma câmara regional eleita diretamente

Executivo

0 O Executivo regional é indicado pelo governo central

1 O Executivo misto é indicado pelo governo central e pela câmara regional

2 O Executivo regional é indicado pela câmara regional ou eleito diretamente

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Quadro A5 – Critérios para participação no processo legislativo 0,5 é adicionado para cada uma das características seguintes; escore agregado vai de 0 a 2

• Região é a unidade de representação em uma câmara legislativa11 – ou seja, a distribuição da representação é determinada pelos pesos regionais mais do que pelo princípio “um cidadão, um voto” no país inteiro

• Governos regionais designam representantes em uma câmara legislativa

• Regiões detêm representação majoritária em uma câmara legislativaa • Uma câmara legislativa com representação regional tem autoridade legislativa extensiva – ou seja, ela pode vetar

legislação ordinária ou pode ser superada apenas por uma supermaioria na outra câmara a

Nota: a Avaliada se ao menos uma das duas primeiras condições é satisfeita

Quadro A6 – Critérios para controle do Executivo 0 Não há encontros regulares entre o governo central e os governos regionais para negociar políticas

1 Há encontros regulares entre o governo central e os governos regionais sem caráter legalmente impositivo

2 Há encontros regulares entre o governo central e os governos regionais com deliberações de caráter impositivo

Quadro A7 – Critérios para controle fiscal 0 Governos regionais ou seus representantes na câmara legislativa não são consultados sobre a distribuição dos

tributos arrecadados

1 Governos regionais ou representantes dos governos regionais na câmara legislativa negociam a distribuição dos tributos arrecadados, mas não têm poder de veto

2 Governos regionais ou seus representantes na câmara legislativa têm poder de veto sobre a distribuição dos tributos arrecadados

Quadro A8 – Critérios para reforma constitucional 0 O governo central e/ou o eleitorado nacional pode unilateralmente mudar a Constituição

1 Uma câmara legislativa baseada no princípio da representação regional deve aprovar a mudança constitucional; ou a mudança constitucional exige um referendo baseado no princípio da representação regional igualitária (por exemplo, aprovação por maioria de regiões)

2 Governos regionais são uma maioria diretamente representada em uma câmara legislativa que pode tomar uma ou mais das seguintes medidas: • adiar reforma constitucional • introduzir emendas • elevar o quórum na outra câmara • exigir segunda votação na outra câmara • exigir referendo popular

3 Maioria de governos regionais pode vetar reformas constitucionais

11

No original, os autores utilizam a expressão “legislature”, aqui traduzida como câmara legislativa, uma vez que a expressão

legislatura em português tem relação com o período do mandato de determinada casa ou com o conjunto de poderes a que se

atribui a faculdade de legislar – nessa última acepção servindo como sinônimo de Legislativo.