O Poder Dos Começos (Resenha RHH_oficial)

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O Poder Dos Começos. Um estudo sobre a autoridade e reprodução simbólico-social.

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  • O poder dos comeos:uma reflexo sobre a autoridade

    The power of beginnings: a reflection on the authority

    DALLONNES, Myriam Revault. El poder de los comienzos: ensayo sobre la autoridad.Buenos Aires: Amorrortu, 2008, 256 p.Vitor Claret Batalhone Jr.DoutorandoUniversidade Federal do Rio Grande do [email protected] Silva S, 272/402 - Santa Ceclia90610-270 - Porto Alegre - RSBrasil

    Palavras-chaveAutoridade; Temporalidades; Modernidade.

    KeywordsAuthority; Temporalities; Modernity.

    Enviado em: 19/6/2011Aprovado em: 8/9/2011

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    Em Que autoridade, Hannah Arendt estabeleceu as caractersticasfundamentais do conceito de autoridade. Arendt inicia seu ensaio advertindoque a questo proposta no ttulo deveria ser outra: no o que autoridade,mas o que foi a autoridade. Segundo Arendt, a autoridade haveria desaparecidodo mundo moderno em funo de uma crise constante. Entretanto, mesmodiante dessa crise, a autora formulou uma definio do conceito de autoridadeque pudesse ser compreendido a-historicamente, ou seja, apesar de talconceito ter sido pensado sobre uma base de experincias histricasdeterminadas, ele possuiria um contedo, uma natureza e uma funo definidos,passveis de serem compreendidos ainda hoje mesmo apesar do supostofenmeno de desaparecimento da autoridade do mundo moderno.

    Segundo a autora, a crise da autoridade seria originariamente poltica,tendo sido os movimentos polticos e as formas de governo totalitrias surgidasdurante a primeira metade do sculo XX, antes sintoma de nossa perda daautoridade do que resultado das aes de governos totalitrios. A runa maisou menos geral e mais ou menos dramtica de todas as autoridades tradicionaisfoi o grande substrato possibilitador da ocorrncia generalizada de governostotalitrios a partir do incio do sculo XX. Entretanto, a crise da autoridade nopermaneceu restrita esfera dos fenmenos polticos, tendo sido justamenteo sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade,sua difuso para reas pr-polticas tais como a criao dos filhos e a educao,nas quais a autoridade sempre fora compreendida como necessria e natural.Era atravs da necessidade poltica bsica de dar continuidade a uma civilizaoestabelecida, que somente pode ser garantida se os que so recm-chegadospor nascimento forem guiados atravs de um mundo preestabelecido no qualnasceram como estrangeiros, que o fenmeno e o conceito da autoridadeadquiriam suas foras e sua capacidade de estruturao de um mundo comum(ARENDT 2007, p. 128).

    Dessa forma, a filsofa Myriam dAllonnes partiu das reflexes sugeridaspor Arendt para compor seu instigante livro intitulado O poder dos comeos:ensaio sobre a autoridade. Porm importante ressaltar que, se Arendt preocupou--se com o conceito de autoridade segundo uma perspectiva na qual o contedodo conceito recebeu ateno privilegiada, tratando das experincias histricas gregae romana, dAllonnes ampliou sua reflexo agregando tambm uma abordagemformal do conceito, a qual foi proposta pelo filsofo Alexandre Kojve.

    Em seu ensaio filosfico intitulado A noo da autoridade, Kojve, inspiradona filosofia de Hegel, partiu de suas reflexes acerca do direito e da ideia dajustia para estabelecer um estudo formal do fenmeno da autoridade,determinado alguns tipos e caractersticas essenciais. Para o autor, o estudodetalhado e aprofundado da autoridade seria um primeiro passo indispensvelpara a compreenso dos fenmenos do Estado, principalmente para que fossemevitadas as confuses entre as noes de poder e de autoridade.

    Assim como Arendt, Kojve tambm recorreu a uma compreenso dopassado clssico greco-romano e fenomenologia para estabelecer o que seria

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  • a autoridade. Em relao ao que foi a autoridade no perodo clssico, o autorcolocou que a formalizao das prticas autoritrias do mbito domstico gregofoi elaborada primeiramente na filosofia de Plato e de Aristteles, argumentando,entretanto, que o conceito da autoridade foi formulado de maneira sistematizadaapenas com o advento da fundao de Roma e com o legado do direito romano.

    A grande diferena entre os estudos de Arendt e o de Kojve que enquantoaquela procedeu a um estudo mais ligado ao contedo conceitual, s experinciashistricas que conformaram o conceito, esse, no negligenciando taiscaractersticas, esteve mais concernido com a estrutura formal do fenmenoda autoridade. A partir da juno desses dois enfoques distintos, porm noexcludentes, partiu Myriam dAllonnes ao propor uma reflexo mais aprofundadasobre a autoridade. Como esclarece a autora, sendo a autoridade um fenmenoessencialmente social e histrico, universal quanto a seu conceito e polimorfaem relao a suas figuras, demanda para sua tima compreenso uma anlisetanto formal quanto de contedo conceitual (DALLONNES 2008, p. 26).

    Segundo a autora, comum que se diga, desde as esferas acadmica epoltica at s esferas da educao e das relaes familiares, que estamosvivendo uma crise da autoridade. Porm, a crena na perda de qualquer tipo deautoridade atravs dos tempos considerados modernos seria antes de tudo,resultado de uma m compreenso sobre o fenmeno da autoridade, que teriacomo causa fundamental a alterao que temos experimentado em nossa relaocom o tempo, uma vez que a autoridade tem a ver essencialmente com otempo. A autora argumenta que ao entrarmos na modernidade nossas formasde se relacionar com a dimenso temporal se alteraram profundamente, demaneira que se alteraram tambm nossas formas de compreender e deexperimentar a autoridade. Para dAllonnes, as sociedades modernas,especificamente as sociedades democrticas e liberais, so construdas a partirdo pressuposto bsico da autonomia do indivduo, fato que estaria estritamentevinculado experincia do rompimento com as formas antigas de autoridade etradio. Dessa forma, a crise da autoridade estaria vinculada essencialmente ruptura da tradio e a uma crise mais profunda das formas modernas deexperincia temporal:

    O movimento de emancipao crtica que caracteriza a modernidade temfeito desaparecer toda referncia ao terceiro? A provada perda dos modostradicionais de gerar sentido produziu to somente vazio e ausncia desentido? [...] No reconhece a igualdade alguma dissimetria? Nestascondies, onde radica a autoridade, se a sociedade deu a si mesma oprincpio constitutivo de sua ordem (DALLONNES 2008, p. 13-14)?

    Diante de tais questes, a autora nos props algumas consideraesbastante significativas. A primeira considerao proposta por dAllonnes que aautoridade seria intrinsecamente vinculada ao tempo, no tanto porque o conceitoe o fenmeno poderiam alterar-se conforme condies histricas e sociais,mas antes porque a autoridade existe num mundo cuja estrutura essencialmente temporal. Assim como o espao a matriz do poder, o tempo

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    a matriz da autoridade. O carter temporal da autoridade estaria vinculado sua essncia derivativa e seria uma dimenso inevitvel de todo lao social,constituindo o que a autora denominou como a durao pblica, ou seja, aquilocapaz de manter a durao de um mundo comum. Se o espao pblicopossibilita a convivncia com nossos contemporneos, a fora de ligao daautoridade, assim como da tradio, permitiria que estabelecssemos comunhocom nossos antecessores e sucessores, de forma que a durao de um mundocomum possibilitaria uma espcie de contemporaneidade em relao quelesque nos antecederam ou que podem nos suceder. Segundo dAllonnes, o queentrou em falncia no foi a autoridade, mas as cadeias tradicionais deautorizao: o fundamento da autoridade teria se alterado.

    O que a autora prope que a autoridade est vinculada essencialmentes formas de temporalidade: se o tempo que tem fora de autoridade, se aautoridade apenas existe e exercida quando as aes humanas esto inscritasnum devir histrico, a alegada crise da autoridade estaria relacionada antes detudo a uma crise das formas tradicionais de experimentao do tempo. Namodernidade, a ruptura com a tradio, ou antes, o desejo de ruptura, conduziu--nos a uma perspectiva segundo a qual a orientao das aes humanas e osvnculos sociais comearam a emanar de projetos de futuro. Assim, a autoranos questiona se o desmoronamento contemporneo das perspectivas ligadasa essa autoridade do futuro no contribuiu para levar ao seu paroxismo a criseda autoridade. Para a autora, a questo da autoridade deve ser colocada segundoa perspectiva de seu poder instituinte e de sua estrutura temporal (DALLONNES2008, p. 15-18; 75).

    Em relao sensao de perda de sentido experimentada no mundomoderno, dAllonnes argumentou que tal fenmeno no significa, entretanto, aperda efetiva de sentido ou um vazio de experincias, mas a perda de umaunidade de sentido existencial comungada socialmente. Segundo a autora, jque no mais emanam orientaes do passado via tradio, o homem modernoestaria fadado a criar sentido para seu prprio mundo, vivendo sob a condiode uma pluralidade de sentidos existenciais e de autoridades capazes defundamentar as aes humanas.

    Em relao caracterstica proposta por Arendt acerca da estruturahierrquica essencial a toda relao autoritria, hierarquia que seria justamenteo elemento comum entre quem exerce autoridade e aqueles que a sofrem,dAllonnes argumentou que no se trataria de uma relao hierrquica estrita,mas antes, de uma dissimetria aceita e justificada por todos os elementosimplicados nessa relao.

    Justamente por no implicar uma relao do tipo mando/obedincia emsentido estrito que a autoridade pode ser compreendida como algo que noanula a liberdade daqueles que a sofrem, mas antes, implica uma restrio daliberdade de ao. A autoridade reconhecida e legitimada no porque aplicamaos vivos um colar de ferro do que foi e tem que seguir sendo imutvel, masporque ela aumenta a fora das aes e confirma as experincias dos indivduos.

  • A autoridade no ordena, aconselha, um conselho que obriga sem coagir,ou ainda, na clebre expresso de Mommsen, a autoridade menos que umaordem e mais que um conselho (DALLONNES 2008, p. 28-29; 66).

    Segundo dAllonnes, esse aumento, to caracterstico do fenmeno daautoridade que est presente inclusive na etimologia latina da palavra auctoritas,augere , em realidade um excesso de significao inerente a todo tipo deao humana, mas que, nos atos e eventos que fundam uma estrutura deautoridade, sobrevive ao prprio ato de fundao e possibilita uma espcie decontinuidade duradoura para a produo de novos significados relacionados aoato de fundao. Por isso necessrio ter em considerao outra distinoproposta pela autora. Segundo dAllonnes, assim como a autoridade no seconfunde com o poder, tampouco se reduz tradio entendida como depsitosedimentado, pois a essa espcie de tradio sedimentada no corresponderianecessariamente o referido excesso de significao do ato fundador, o qual,antes de sedimentar significaes, possibilita a produo continuada de umacadeia de significados. A fundao implica no reconhecimento de umaanterioridade de sentido, ou seja, em um excesso de significao oriundo dopassado em relao aos eventos de um determinado presente. E tal excessono somente possibilita a continuidade de uma cadeia de aes e experincias,como tambm determina em grande parte as significaes criadas a partir deum ato fundador (DALLONNES 2008, p. 33-34; 95; 248).

    Tal excesso de sentido das estruturas de autoridade estaria vinculado demaneira essencial ao poder instituinte dos atos ou eventos fundadores, reforandoa experincia do continuum temporal. A fora da ligao da autoridade estintimamente vinculada, portanto, a esse interesse na durabilidade por meio dainstituio. Portanto, o poder instituinte dos atos e eventos fundadores s possvel graas ao referido excesso de sentido presente no momento fundador.O potencial instituinte da fundao criaria dessa forma uma estabilidade desentidos capaz de manter um mundo de significaes comuns, de tal maneiraque se tornaria possvel a experincia de mundos tambm comuns entre sujeitosdo passado, do presente e do futuro. Mundo compartilhado o qual a autoradefine como um inter-esse, como algo referente a uma estrutura intersubjetiva.A instituio de um mundo comum possibilitaria a reprodutibilidade estrutural domundo de sentidos compartilhado assim como do fenmeno da autoridade.

    Considerando o referido poder instituinte da fundao, que possibilita osurgimento do fenmeno da autoridade, Myriam dAllonnnes sugere ainda que oreconhecimento inerente a toda relao de autoridade pressuposto essencial,uma vez que no existe autoridade sem reconhecimento , implica mtua enecessariamente, a noo de legitimidade. A autorizao, considerada sobre oeixo da temporalidade, e sem importar em que direo [seja em relao dimenso do passado, seja em relao do futuro], uma busca de justificao.E justamente a partir de tais reflexes que a autora afirma existirem trselementos essenciais que excedem a relao mando / obedincia e que caracterizam

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    o fenmeno da autoridade, a saber: o reconhecimento, a legitimidade, aprecedncia (DALLONNES 2008, p. 69-70).

    Por fim, devemos ter em mente que a autoridade est estritamentevinculada a uma temporalidade divergente daquela na qual estariam situadosos sujeitos que a exercem. dentro desta temporalidade outra que um sujeitoou grupo de sujeitos pde estabelecer uma fundao qualquer. Justamentepelo fato de que toda autoridade implica uma dimenso temporal outra queno necessariamente aquela dos sujeitos que a exercem que tal fenmenoimplica de forma necessria uma exterioridade, uma alteridade, ou seja, umadimenso transcendente que lhe assegura continuidade derivativa ao longo dotempo. Assim, a autoridade pode ser considerada como sendo um sempre ja, uma obrigao herdada e um recurso para a ao que se inicia, poisapenas se aumenta o que j existe (DALLONNES 2008, p. 72-73; 190).

    Entretanto, isto no elimina o fato de que possa haver autoridades cujafonte emanadora esteja relacionada s dimenses temporais do presente oudo futuro. Tais modulaes temporais apenas alterariam a forma como aautoridade adquire seu lastro. Segundo Franois Hartog, esse processo deinstituio de autoridades ligadas ao futuro a uma dimenso do no aindaem contraposio ao j a do passado e da tradio , seria essencialmenteconstituinte das formas como a civilizao ocidental moderna lidou com o grandeprocesso de laicizao operado em um primeiro momento a partir da Europa.Tal autoridade do futuro estaria relacionada criao dos inmeros projetos defuturo elaborados pelas filosofias da histria a partir do sculo XVIII e queganharam fora ao longo do sculo XIX: as utopias modernas do progresso. Jem relao ao tipo de autoridade lastreado no presente, Hartog escreveu queessa a forma tpica da espcie de temporalidade na qual a tenso fundadoraentre um no ainda futuro e um j a pretrito seria permanente (HARTOG2007, p. 29-33). Nessa situao, a autoridade estaria ora baseada noselementos do passado, ora nos nas projees de futuro, capazes deestabelecerem ligaes significativas em relao a uma determinada realidadedo presente. Por isso existiria nas sociedades contemporneas, tal qual afirmoudAllonnes, um grande espao entre o que as sociedades postulam e reclamame aquilo que elas realmente so ou fazem.

    Destarte, segundo Myriam dAllonnes, toda autoridade considerandoque toda autoridade um fenmeno histrico e social por natureza exige umato ou evento fundador cuja instaurao est situada em uma dimensotemporal transcendente ao prprio fenmeno de seu exerccio. Assim, afundao seria essencialmente marcada por um excesso de sentido queultrapassaria o momento especfico da fundao e emanaria tal potencial designificao em relao aos sujeitos pertencentes estrutura do fenmenoautoritrio. Tal excesso de significao, reapropriado, remanejado com liberdaderestrita por parte dos elementos pertencentes cadeia da autoridade, implicarianecessariamente no reconhecimento da autoridade daqueles que a exercem,uma vez que seria atravs desses indivduos que o excesso de significao da

  • fundao chegaria aos demais elementos. Enquanto houvesse a possibilidadede existir o reconhecimento da autoridade, a continuidade de um determinadocorpo social estaria estabelecida e garantida ao longo de um continuum temporal,pois estariam institudos os parmetros de significao segundo os quais o referidocorpo social se configurou e se reconfigura continuamente.

    Entretanto, o surgimento de novas fundaes no estaria eliminadoenquanto possibilidade. Uma vez que novas fundaes surgem, novos significadose novas estruturas temporais e de autoridade so conformadas, reorganizandoo corpo social. Ou, como colocou a autora, o que a autoridade seno opoder dos comeos, o poder de dar aos que viro depois de ns a capacidadede comear por sua vez? Quem a exerce mas no a possui autoriza assimaos seus sucessores a empreender por sua vez algo novo, isto , imprevisto.Comear comear a continuar. Mas continuar , tambm, continuarcomeando (DALLONNES 2008, p. 253).

    Por aliar as abordagens de Arendt e Kojve e avanar a discusso, creioque Myriam dAllonnes tornou seu El poder de los comienzos fundamental atodos aqueles que se dedicam a estudar o que a autoridade, tornando-seconsequentemente, uma autoridade sobre o tema.

    Referncias bibliogrficas

    ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2007.

    KOJVE, Alexandre. La notion dautorit. Paris: ditions Gallimard, 2004.

    HARTOG, Franois. Ouverture : autorit et temps. In: FOUCAULT, Didier; PAYEN,Pascal (Orgs.). Les autorits : dynamiques et mutations dune figure derfrence lAntiquit. Grenoble: ditions Jrme Millon, 2007, p. 23-33.

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