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Um Quadro do Rio de Janeiro... - Luna Revista Diálogos – Dossiê Procadi – Out/2019 198 Um Quadro do Rio de Janeiro na Época Imperial: O poema descritivo “O Corcovado” de Manuel de Araújo Porto-Alegre Jairo Nogueira Luna - UPE 1 RESUMO: Neste artigo se analisa o poema “O Corcovado”, de Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), poeta e pintor do romantismo brasileiro, figura emblemática do processo de criação do romantismo no Brasil. O poema analisado apresenta apresenta uma confluência entre o trabalho do poeta e o trabalho do pintor. Busca-se aqui demonstrar como se constrói essa relação entre poesia e pintura em “O Corcovado”. Neste processo, a utilização das figuras hipérbole, metonímia e metáfora se destacam. Palavras-chave: Manuel de Araújo Porto-Alegre, Corcovado, Rio de Janeiro século XIX, poesia e pintura, figuras de linguagem. ABSTRACT: This article analyzes the poem "O Corcovado", by Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), poet and painter of the Brazilian romanticism, emblematic figure of the process of creation of romanticism in Brazil. The poem analyzed presents presentations a confluence between the work of the poet and the work of the painter. The purpose of this article is to demonstrate how this relationship between poetry and painting is constructed in "O Corcovado". In this process, a use of figures hyperbole, metonymy and metaphor stand out. Keywords: Manuel de Araújo Porto Alegre, Corcovado, Rio de Janeiro century XIX, poetry and painting, figures of language. 1. Introdução 1 Professor adjunto da Universidade de Pernambuco, pós-doc em Literatura Brasileira pela FFLCH/USP.

O poema descritivo “O Corcovado” de Manuel de Araújo Porto ...€¦ · transformar o Rio de Janeiro numa espécie de Paris dos Trópicos, com uma harmonização de seus jardins,

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Um Quadro do Rio de Janeiro na Época Imperial: O poema descritivo “O Corcovado” de Manuel de Araújo Porto-Alegre

Jairo Nogueira Luna - UPE1 RESUMO: Neste artigo se analisa o poema “O Corcovado”, de

Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), poeta e pintor do romantismo brasileiro, figura emblemática do processo de criação do romantismo no Brasil. O poema analisado apresenta apresenta uma confluência entre o trabalho do poeta e o trabalho do pintor. Busca-se aqui demonstrar como se constrói essa relação entre poesia e pintura em “O Corcovado”. Neste processo, a utilização das figuras hipérbole, metonímia e metáfora se destacam.

Palavras-chave: Manuel de Araújo Porto-Alegre, Corcovado,

Rio de Janeiro século XIX, poesia e pintura, figuras de linguagem. ABSTRACT: This article analyzes the poem "O Corcovado", by

Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), poet and painter of the Brazilian romanticism, emblematic figure of the process of creation of romanticism in Brazil. The poem analyzed presents presentations a confluence between the work of the poet and the work of the painter. The purpose of this article is to demonstrate how this relationship between poetry and painting is constructed in "O Corcovado". In this process, a use of figures hyperbole, metonymy and metaphor stand out.

Keywords: Manuel de Araújo Porto Alegre, Corcovado, Rio de Janeiro century XIX, poetry and painting, figures of language. 1. Introdução

1 Professor adjunto da Universidade de Pernambuco, pós-doc em Literatura Brasileira pela FFLCH/USP.

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Inserido em Brasilianas (1863), livro de poemas de Manuel de Araújo Porto-Alegre está o extenso poema descritivo intitulado “O Corcovado”. O poema está dividido em dois cantos de extensão desiguais. O primeiro mais curto que o segundo, este bem mais extenso. O canto I, subintitula-se “A Sensação” e vai da página 85 à 93 do livro, enquanto o canto II, subintitulado “O Panorama” vai da página 94 à 151. O poema foi terminado em 1847, portanto, 17 anos antes da sua publicação em Brasilianas. O poema tem como tema a descrição do cenário visto do alto do morro do Corcovado, neste sentido é um dos melhores exemplos da característica que costumeiramente se deu ao poeta de poeta-pintor. O Rio de Janeiro em 1847 ainda não possuía a estátua do Cristo Redentor no alto do Corcovado. O monumento símbolo do Rio de Janeiro só foi começado a ser construído em 1926 e inaugurado em 1931. O poeta tinha uma visão do Rio de Janeiro que ora o levava a considerar a beleza da natureza, ora o levava a considerar o que percebia de erros ou desmandos na arquitetura e na urbanização da cidade. Havia um ideal no poeta e em outros contemporâneos de transformar o Rio de Janeiro numa espécie de Paris dos Trópicos, com uma harmonização de seus jardins, passeios, praças com a Natureza local e, ao mesmo tempo, conseguir que a população carioca demonstrasse um modo de vida que fosse o resultado da união entre a cultura européia, notadamente de características francófonas, sobrepondo-se às demais, e o idealismo de valorização da cor local. Como observa Letícia Squeff:

“A preocupação com as ruas da capital chegaria ao ponto d escrever um artigo especificamente sobre o assunto. Intitulado ‘Novo Sistema de Calçadas’, o texto faz sugestões concretas para melhorar a aparência e as formas de uso dos logradouros. Sobre as construções, critica o aspecto que chamou a atenção de alguns

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viajantes da época: as calhas que projetavam as águas pluviais diretamente sobre os transeuntes, no meio das ruas.” (SQUEFF, 2004, p. 111)

Manuel de Araújo Porto-Alegre conhecia bem a paisagem vista do alto do Corcovado e no poema ele se apresenta como o eu-lírico que descreve a vista de todo o cenário do Rio de Janeiro do alto dos 709 metros do Corcovado. 2. Canto I: A Sensação O primeiro canto, denominado “Canto I: A Sensação” parece buscar descrever o estado de êxtase que o poeta experimenta ao olhar a imensidão do cenário da baía de Guanabara e a cidade do Rio de Janeiro, então, capital do Império.

“Do mundo as térreas cenas desaparecem Sobre este corucheo, que erguera a terra, Supino à meta aérea, onde se chocam Pejadas nuvens, engendrando raios. Aqui bebendo a tragos majestosos, Éter olente, saturado em lume, Um pélago da vida enche meu peito.”

Na seqüência da primeira estrofe, MAPA2 cita Magalhães e Ruy Faleiro como os primeiros navegantes a colocar no mapa a baía de Guanabara. De fato, Gonçalves de Magalhães executou sua viagem de circunavegação com base nos mapas e na cosmografia levantada por Ruy Faleiro. 2 MAPA : Manuel de Araújo Porto-Alegre, para efeito de abreviação e leitura mais dinâmica.

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A referência ao cartógrafo português soma-se aos versos que diz:

“Pairar me creio ovante sobre o mundo, Ter meu sólio num astro e ler um dia Sobre a convexa página da terra, O grande panorama, a cena insólita”

A idéia de que dali se veja uma “página” do cenário do mundo, bem como a referência ao cartógrafo Ruy Faleiro, cria em relação ao poema – escrito por um dos principais pintores do Império – a analogia de ser o poema na página uma metáfora do cenário observado. O poeta observando o amplo cenário não deixa de imaginar o quadro paisagístico que poderia ser pintado:

“A meus olhos se rasga o áureo sipário Grandioso ofertando estranhos quadros”.

Este primeiro canto que se denomina “A Sensação” tem como destaque o sentido da visão. Não deixa, porém, o poeta de citar outros sentidos, como o tato (o vento) e o olfato (aroma): “Constante odoro, Zéfiro bafeja”. Mesmo a visão observada é, não raras vezes, com analogias sinestésicas, como em:

“No cérebro me ferve – Oh Natureza! Eu te saúdo, extático de gozo, De cima do teu trono, sobre o tope, Desta escala eternal de asp’ro granito, Esmaltada de bosques e de flores;”

O tato (asp’ro) se associa à visão (Esmaltada de bosques e de flores). De fato, o êxtase experimentado pelo poeta diante da visão de todo cenário faz com que aos poucos ele vá tentando ordenar a

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conjunção de impressões sensoriais, utilizando para isso, com relativa constância, os recursos da sinestesia e da metáfora. Na busca de organização das sensações, o poeta vai buscar na memória cenários que podem ser comparados ao que ali vê. Evidentemente, isto é uma estratégia, já que de antemão o poeta pretende exaltar o cenário do Corcovado. Como viajara pela Europa anos antes, acompanhando Debret – seu mestre – MAPA vai buscando na memória a imagem de locais que poderiam ser comparados. Tais comparações têm como pano de fundo a idéia de valorizar a Natureza local. São levantados os seguintes locais do velho mundo, para efeito de comparação:

a) Bósforo: “No Bósforo, roubada ao Mauro alfange, \ Jardim das letras, templo majestoso, \ De ilustres cinzas, de preclara raça”.

b) Genebra: “Eu te saudei, Genebra encantadora, \ Através do Simplão varando nuvens! \ Nas águas do teu lago que enobrece \ A estrutura dos Alpes gigantescos. \ Em cujos flancos serpenteia o Ródano” Cita ainda Saussure e Rosseau como nomes ilustres que celebraram a cidade de Genebra.

c) Lutécia (Paris): “Eu te saudei, Lutécia hospitaleira \ Sobre o brônzeo padrão de teus troféus \ Onde a vitória cocleara as lides \ Dos teus bravos sem par, e aos céus eleva \ No largo ábaco a portentosa imagem \ Do teu gênio invencível nas batalhas \ Sobre o teu panteão, cofre de cinzas \ De tantos sábios que dão lustre ao mundo, \ Que hão de eterna fazer a tua memória \ Vi teus parques e foros, teus monumentos \ O teu povo de mármor, tuas pontes, \ O teu crivo de estradas, e os prodígios \ Que em teu seio pujante nobre encerras”.

d) Londres: “Eu te saudei, industriosa Londres, \ Sobre a escura lanterna que domina \ Teu templo enegrecido e semeado \ De mudo túm’los, de vaidosas campas, \ De poentos troféus que cobrem, guardam \ Centos de heróis na subterrânea cripta. \ Babilônia moderna, Tiro ingente, \ Em teus úmidos plainos vi do mundo \ O ouro convertido em monumentos, \ E nas salobras águas do Tamisa \ Os pavilhões dos povos floreando. ”

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Os quatro locais citados compõem um cenário metonímico de toda a cultura do Velho Mundo. O Bósforo – região onde se deu a Guerra de Tróia e a fundação da cidade de Bizâncio – Constantinopla – Istambul. Portanto, o oriente europeu, a cultura clássica da antiguidade, e o surgimento, do domínio otomano (“ao Mauro alfange”). Genebra, na Suíça, então pertencente ao Sacro Império Romano-Germânico, representando a confluência das culturas francesa, romana e germânica no centro da Europa. Lutécia, nome latino de Paris, que significava “local de lama”, valorizando as conquistas francesas de Carlos Magno (“bravos sem par”) e Napoleão Bonaparte (“invencível gênio nas batalhas”), bem como o fato de ser a cidade luz no sentido de centro cultural do Mundo (“De tantos sábios que dão lustre ao mundo”). E, por fim, Londres, que se qualifica como “industriosa” e a riqueza do império inglês (“O ouro convertido em monumentos”), mas de clima cinzento, nevoento (“Teu templo enegrecido e semeado”). Depois de citar esses locais, MAPA conclui que já vira muitos lugares no mundo, cada deixando no seu espírito uma impressão ou uma sensação:

“No mundo visitei peregrinando, Vi as do humano engenho maravilhas, Pelas artes criadas, em mil anos. Vi esses decantados monumentos Que entalhara a Natura sobre o globo!”

Assim, tanto os locais criados pelo homem, portanto artificiais,

quanto os da própria Natureza foram do conhecimento do poeta. Mas, do outro lado do Oceano, cá na América está o lugar que efetivamente superará em termos de impressões e\ou sensações o espírito do poeta: “Meus olhos não viram quem iguale \ Divina Guanabara”.

O recurso da memória como forma de organizar a mente diante da profusão de estímulos sensoriais é um processo mental que demonstra a busca do poeta de ordenar o mundo, ou o cenário que se afigura diante de seus sentidos.

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2. O Canto II: O Panorama O segundo canto, “O Panorama”, é aonde MAPA vai organizando a

visão do cenário, reconhecendo lugares e descrevendo-os com a sua visão de pintor, destacando as impressões visuais e, por vezes, associando-a com outros sentidos, de forma a criar uma descrição sensorial:

“Que sublime visão minha alma assombra! Nos céus a imensidade, e no oceano Um páramo de luz que atermam nuvens! Douradas ilhas, espumantes sirtes, Traiçoeiro alfaques, serras, bosques, Picos, lagoas, praias, enseadas, Dimensões gigantescas, grandiosas, Em derredor me cercam, esmaltadas, De crócea luz, de tropical magia”.

Logo a seguir, o poeta define geograficamente a extensão do

cenário: “Sessenta milhas minha vista mede!” Esta extensão visual que consegue captar do alto do Corcovado vai ser então explorada numa seqüência em que se vai citando morros, bairros, lagoas, construções reconhecíveis. Evidentemente o Rio de Janeiro visto em 1874 do alto do Corcovado é bem diferente da cidade de hoje. Alguns acontecimentos daquela época podem ser aqui relembrados, para fins de contextualização:

1843\44: É inaugurada uma linha de barcas ligando o bairro de Botafogo ao Saco do Alferes, atual bairro do Santo Cristo. Outra companhia de barcos liga o bairro de Botafogo à ponta do Caju, próximo à Quinta da Boa Vista. A barca Especuladora, que fazia travessia Rio-Niterói, explode, vitimando várias pessoas. O médico francês Benoit Jules Mure funda a Escola de Homeopatia do Rio de Janeiro.

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1845: Começa a funcionar o Cassino Fluminense. 1846: Ocorre a primeira regata na praia de Santa Luzia entre as

canoas Cabocla e Lambe Água. O inglês Thomas Ewbank passa pelo Rio de Janeiro e, mais tarde, escreve A vida no Brasil: diário da visita ao país do cacau e das palmeiras.

1847: Surge o Teatro Tivoly. A Sociedade Beneficente Musical transforma-se em Conservatório Nacional de Música. É inaugurada a Biblioteca Fluminense, hoje extinta. Retorna à Europa o pintor Johann Moritz Rugendas.

Naquela época o Rio de Janeiro contava com cerca de 150 mil habitantes, dos quais, praticamente a metade, era de escravos.

Assim, o cenário visto por MAPA do alto do Corcovado difere da atual por não ter a profusão de edifícios que compõem a zona sul e o centro do atual Rio de Janeiro, nem também as favelas, que naquela época ainda não ocupavam os morros cariocas. Existiam, porém, muitos cortiços na cidade o que era considerado um problema social e urbano a ser resolvido.

Do alto do Corcovado, o poeta sente-se um gigante: “Se a mão espalmo, uma montanha encubro; \ Se os olhos fito, descortino um reino”. Esse aspecto hiperbólico será ressaltado na visão do cenário (“Como titâneas frontes ressonando”) e o poeta faz isso deliberadamente: “Não! Eu não exagero, aos céus juro (...) \\\\ Serás ó Guanabara, sempre e sempre \ O brilho dos meus olhos, e o sorriso \ Da terráquea beleza do Universo”.

Então a visão do poeta é bloqueada pela chegada de uma névoa ao alto do Corcovado: “Tal a névoa, roubou-me, inesperada \ Este alegre conspecto, doce enleio \ Que me minha alma vibrava acorde insólita”.

Assim, impedindo de ver, o sentido que se exalta nesse momento é o da audição:

“Como a um cego exilado em erma rocha Somente a seus ouvidos vem mesclar-se Os gemidos dos euros, e o marulho Que as ondas mugem no tenaz embate

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Sobre o bojo escabroso de seus flancos Tal agora me vejo! Tudo é névoa!”

E o poeta, perdido entre os ruídos que lhe chegam de diversas

fontes, passa também a admirar as formas voláteis que as nuvens e a neblina tecem nos céus. Logo, porém, a névoa se desvanecendo e ressurgindo o brilho do Sol, MAPA reconhece a Gávea e a Lagoa Rodrigo de Freitas, isto é, de um lado a outro do cenário: “Tal qual meus olhos ante se desdobra \ Num mágico tapir, cena indizível \ Da calma Gávea ao lagamar de Freitas!” A recuperação da visão do cenário volta a provocar no poeta um êxtase de estímulos sensoriais:

“Oh! Que cena risonha, que contrastes! Que ventura sem par me infunde nest hora! Ao través da caligem lacerada Beijar c’os olhos, ao clarão do dia, Da terra a imagem! Cantos mil tecer-lhe E ante a obra divina, ante o transunto, Transportado de glória!... Oh Providência!”

A cena da névoa tem função quase análoga aos momentos em que

profetas bíblicos são carregados aos céus, como Elias, para ver o paraíso. Essa transposição do espírito do poeta, na Guanabara é obtida pelo efeito da negação da visão do cenário, os sentidos se aguçam na busca de referências, e quando tudo retorna à claridade, tem se a recuperação do êxtase sensorial.

A partir daqui o poema modifica sua métrica por um breve momento, seguem-se nove quadras em verso hexassílabo, como se fosse a inserção de uma canção alegre para quebrar a monotonia do canto de exaltação. Nessas nove quadras se fala do vôo das gaivotas sobre o mar. Segue-se uma breve estrofe em decassílabo, de nove versos, e a seguir, mais nove quadras de hexassílabos, agora descrevendo a visão dos barcos na baía de Guanabara. O poeta assim vai compondo uma analogia entre as gaivotas, o branco dessas aves ante

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o céu azul, e a seguir nos fala do branco das velas dos barcos nas águas da baía, num processo metonímico em que o branco vai passando de um a outro elemento.

“Engrinadalda nos ares Níveas gaivotas adornam Suas fontes lapidadas Que mil regatos entornam” (...) “Brancas velas no horizonte Como cisnes alvejando Nas puras do Eurotas, A terra vem demandando.”

A seguir o poeta começa a fazer uma descrição das características da

cidade observada. Como o Rio de Janeiro, com seus 150 mil habitantes é uma cidade dominada pela Natureza, em que as ruas, estradas e praças se misturam ao cenário natural, transformando-a quase num imenso jardim, coisa que evidentemente se modificará a partir do processo de industrialização no século XX, MAPA vai pintando inicialmente pintando um retrato geral da paisagem:

“Pautados sulcos, lamedadas vias, Como em curto jardim, canteiros breves, Bairros extensos os meus olhos ferem, Ínvios trilhos, estreitas azinhagas, Lacrimosos regatos, verdes hortas, A cidade, seus templos, a baía Matizado tapete delineiam: Qual hábil virgem brosla em níveo crivo Caprichoso entrançado de arabescos, Entre mil laçarias de ouro e prata.”

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A visão do alto do Corcovado, que permite observar toda a cidade é como ver um mapa tridimensional do Rio de Janeiro. Hoje, assemelharíamos ao recurso do Google Maps em que se pode observar inúmeros locais do mundo por imagem de imagens de Satélite. Assim, mais uma vez, MAPA compara a visão com uma carta geográfica – “tapete” - em que se observam “arabescos” e iluminuras variadas (“entre mil laçarias de ouro e prata”).

Adiante, MAPA faz uma descrição da mata da Tijuca que cerca o morro do Corcovado. A proximidade da mata trás uma série de sensações olfativas:

“Das virgens matas qual rasteiro musgo Se estende o pavilhão virente e adoro; Sidéreas imbaíbas o recamam Como em noite de Julho o céu aos astros. Jaldes massas, renovos multicores Aqui e ali em mil flores simulando, Da intonsa coma o aparato explendem Como em festivo dia o sacro templo. Das séricas anteras que destilam Sobre a grenha do ipê bálsamo odoro, Douradas nuvens de amoroso pólen Sacode a viração, e sobre as baixas Em chuviscos de aroma derramando-o Vida e fragrância sobre o solo espalham.”

Mais adiante MAPA começa a tentar ordenar a grandiosa visão com

seus vários estímulos visuais. Vai agora destacando cenários específicos, partes do todo, na tentativa de organizar tudo. E seu primeiro ponto a destacar é a Lagoa Rodrigo de Freitas, que efetivamente, é um dos pontos visíveis mais próximos do Corcovado:

“De Rodrigo de Freitas guarda o nome Este belo lugar, que algum dia

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Há de moles corínthias, áureos quiosques, A mão das artes semear ufana: Qual no lado de Como, ou de Benaco, Ou nas águas tessinas de Baveno, Esses vergéis formosos e palácios, Que parecem por Fadas engendrados.”

A cidade de Como, na Itália, tem entre suas principais atrações um

famoso lago, cercado de quiosques, bares, restaurantes e vilas luxuosas. Benaco, próximo a Verona, também possui um cenário de lago cercado por construções medievais e renascentistas. Baveno, no Piemonte, localiza-se ao lado do Lago Maggiore. São, pois, três localidades italianas com cenário de lagos que servem de comparação para MAPA com o cenário da Lagoa Rodrigo de Freitas, buscando com isso dar à visão da lagoa um referencial cultural de valor europeu, que era um anseio da corte do Império, o fazer de sua capital uma espécie de cidade européia com suas alamedas, jardins e palácios.

A descrição que MAPA faz do parque Laje, situado contíguo à Lagoa Rodrigo de Freitas é de quem conhece de estar lá o parque, pois da altura em que se encontra não pode identificar pássaros como o beija-flor e o colibri:

“Viceja alamedado à dextra o parque Templo de Flora, elíseo do Universo, Onde o sábio cultor decifra arcanos, Colhe mistérios na ardorosa prole, Que na quadra ridente esmalta os campos. Mensageira do amor, zumbindo a abelha, Prende nas asas os fragrantes beijos, Que à flor à flor envia pelas auras, E no adejo sonoro vai tecendo Da primavera o tálamo melífluo. Ali ruflando as asas coruscantes O mimoso colibri se embriaga

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Do néctar matutino que lhe oferta No tenro cálix a amorosa esposa; Como régio sultão no harém florido Contempla esvoaçando gracioso As várias formas, a beleza, o cheiro, As vivas cores da colônia exótica Que ali mandara o Mundo, e representa Estável primavera, encanto estável. Nesse calmo remanso, em horas gratas, O cansado burguês repouso encontra, E a virgem folgazona entre seus parques Colhendo flores, saltitando alegre, Como inocente borboleta voa, Delirante e risonha em seu recreio.” (grifos nossos)

O trecho citado é de riqueza em sinestesia e em metáforas. O

referido “Templo de Flora” é, ao que tudo indica, uma referência ao Parque Laje, projetado pelo paisagista inglês John Tyndale, que em 1840 recebeu a incumbência de projetá-lo ao modo do paisagismo inglês, que buscava compor um cenário que misturava os jardins à natureza circundante, de forma que imitavam a irregularidade do terreno, a variedade e a aparente disposição aleatória das plantas. O “Templo de Flora” na Inglaterra fica em Stourhead, condado de Wiltshare, e foi projetado por Henry Fitcroft em 1745. Imitando um templo pagão grego, é cercado por um lago de aparência natural, bem como uma alameda cercada de flores e um bosque. O Parque Laje só recebeu esse nome em 1859, portanto, ao tempo em que MAPA escreve o poema sua denominação era incerta, aqui, supomos, MAPA usou de uma analogia para denominar o lugar, tendo em vista o paisagismo inglês. Naquela época o Rio de Janeiro se dividia entre a arquitetura francesa e o paisagismo inglês, este dominando em parques, chácaras e fazendas, ao passo que a arquitetura francesa se fazia presente nos palácios e principais avenidas da cidade.

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Na seqüência, MAPA ainda descrevendo o cenário da Lagoa Rodrigo de Freitas, destaca a “Fonte da Saudade”, que não mais existe. Uma das histórias peculiares do bairro é a da Fonte da Saudade. Essa fonte ficava localizada no fim da primitiva praia da Lagoa. Na passagem do século XIX para o século XX, as lavadeiras portuguesas que atendiam às famílias abastadas de Botafogo, se reuniam em torno da fonte lavando as roupas e compartilhando as saudades de sua terra natal:

“Lacrimosa em recanto solitário, No lago filtra o cristalino pranto, A Fonte da Saudade; prisco arcano, Amorosa legenda em sonso confusos A tradição ecoa. Ali, nos contam, Que dous entes em horas solitárias Libaram entre lágrimas saudosas Um beijo extremo que finara o exílio. Ali, perante os astros, se juraram Secretos esponsais, votos eternos, Que tirânico fado então frustrara.”

Seguindo na descrição da paisagem que MAPA vai pintando em

seus versos, como um pintor que resolve fazer uma imensa tela do cenário visto do Corcovado, cita o Morro Santa Marta e a Rua São Clemente. Àquela época o morro não era povoado pela favela homônima, sendo ainda uma região silvestre. A rua São Clemente, como hoje, continuação da Rua Humaitá, ligava a região da Lagoa Rodrigo de Freitas com a Praia de Botafogo:

“Rodando a vista à sestra, descortina Rescendente chaneza limitada Pelo Mar, e o dorso descarnado, Do monte Marta e da cadeia alpestre, Que da barra os propíleos forma e escuda

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A majestosa entrada deste empório. São Clemente se chama, pouso alegre De uma eterna verdura e de ar sadio. Em risonha Xareta as avenidas Como em áureo tecido as linhas cruzam; E a nitidez das casas salpicadas Pela vasta planície, representam Um charôneo xadrez de ebúrneas tábolas, Sobre o colo dourado de um Califa Nas margens perfumadas do Indo belo.”

Numa visão metafórica, MAPA vê o monte como o dorso

descarnado de um animal, descarnado uma vez que não povoado, ao paço que a planície circundante é toda urbanizada. Novamente, a idéia de que a vista observada pode ser comparada a um tecido ou um texto se faz presente (“Um charôneo xadrez de ebúrneas tábolas, \ Sobre o colo dourado de um Califa”). E o exotismo do lugar é comparado a uma cena do oriente.

Para além da vista da Lagoa Rodrigo de Freitas, vê quem sobe ao Corcovado, as praias de Copacabana e Ipanema. Áquela época eram regiões praticamente desabitadas. MAPA nos apresenta uma descrição de Copacabana que hoje nada tem de referente:

“Entre rolos de espuma muge e brama Na curva praia a onda buliçosa: Copacabana o nauta apelidara Esta plaga deserta e descarnada. Juncam-lhe o seio variegadas conchas, Purpúreos ostros, esmaltados búzios, E a polida muralha que a ressaca Desnuda, encapelando em fúrias as ondas.”

A seguir, pelas próximas seis páginas (113 – 118), o poeta se detém

na descrição dos morros do Pão de Açúcar e da Babilônia. São os dois

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principais morros de uma seqüência de seis morros, divididos em dois grupos, que separam a região de Copacabana da Praia de Botafogo. Primeiro o grupo formado pelos morros da Babilônia, do Uribu e do Leme. E o outro grupo formado pelos morros do Pão-de-Açúcar, da Urca e Cara de Cão. Entre esses dois grupos fica a estreita e pequena Praia Vermelha:

“Ladeando a face undosa da abra ingente, Dous monstros de granito se levantam Como egípcios colossos sobre as ruínas De antiga capital, ou sobre a campa De extinto império, mesto argamassado. Do pó do tempo e de esb’roadas moles. Sobre o mar prateado se recortam Os pardos vultos de lavradas rochas, Que ornadas de lanciz, de curvas lajes, De grisalha fuligem, representam Negras Esfinges, emborcados ídolos, Fendidos panteões, curvados templos, Pirâmides vetustas que se truncam Sobre cabos desertos e recordam, Essas ribas fecundas e alagadas Do delta fabuloso que abre o Nilo.”

A sugestão de comparar a visão desses morros do Rio de Janeiro

com ruínas de monumentos antigos não é original. De fato, a imaginação tem sido relativamente constante, chegando mesmo a encontrar escritores que se detém em tentar provar a possibilidade de tais morros terem sido trabalhados até sua forma atual por mãos humanas, como é o caso do arqueólogo Bernardo de Azevedo da Silva Ramos que em seu livro Inscrições da América Pré-histórica, vol. 1, defende que a Pedra da Gávea é um monumento de pedra com inscrições fenícias. Posição semelhante tem o arqueólogo alemão Ludwig Schwennhagen.

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Aproveitando-se do nome do morro da Babilônia, MAPA vai na medida em que descrevendo a visão que tem dos morros fazendo referências aos impérios antigos babilônico e egípcio, buscando com isso criar como que um referencial de fundo mitológico transposto para a visão desse conjunto de pedras:

“Na silhueta austera e sublimada Do teu vulto sem par encontra a mente De Memnon o colosso que achatava Da altiva Tebas, os sagrados templos. Na tua calva fronte carcomida De dia em dia o matutino raio Harmonias inspira ao plúmeo bando Como outr’ra no berço de Amenófis A estátua desferia sons canoros, Saudando a Osíris nos dourados planos.” (...) “Do filho de Buzi, ao som dos ferros O canto ouviste em Babilônia réproba; Sobre as asas dos ventos te orvalharam De Jeremias lágrimas proféticas.”

A partir da visão dos morros, MAPA aprofunda a visão na direção

do horizonte marítimo, passando a fazer a descrição das impressões que tem ao observar a baía de Guanabara e as águas do oceano, buscando destacar a beleza causada pelo contraste da linha horizontal das águas com o recortado e alto das linhas dos morros e da serra que se avizinha mais ao fundo:

“Tua ampla majestade, tuas águas De eviternas pirâmides ornadas,

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Que ao de Meris prodígio sobrepujam, Teus montes, paradeiros inconcussos, Que a fúria quebram dos medonhos euros, Refletindo nos céus, deixando ilesas, Arfar nas ondas do universo as frotas, Que em teu porto ancoradas mal não temem; Aclamam-te no mundo, isentas de emulas, A rainha, o primor da Natureza.”

Não deixa passar despercebido à percepção do poeta o detalhe que a

parte significativa da navegação que se faz na baía da Guanabara é de navios ingleses, haja a dependência comercial que àquela época o país possuía com a Inglaterra:

“Ali virão fundear nas ermas águas Do seu porto magnífico mil naves, Os britanios paquetes, mil vapores, Sem azares correrem na derrota, E mais breve missão, mais curtos dias, Em seu móbil destino preencherem.”

Trazendo de volta o foco da visão, do horizonte mais longínquo para

o mirante dos morros da Babilônia e do Pão-de-Açúcar faz agora referência à pequena Praia Vermelha que separa os dois morros:

“Em tênue faixa serpejando alonga Sua margem serena entre dous montes, Essa Praia Vermelha, onde se eleva Mole romana que a desgraça ampara; Soberbo monumento que mil bênçãos De coeva gratidão conquista e tece Sobre a fronte de Pedro, o benfazejo, Laurel eterno, luminosa fama, Que irá repercutir Glória aos vindouros;

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E sobre a fronte ativa e providente De Clemente Pereira, compartindo O nobre prêmio, o caridoso esforço, Sua glória também nos evos firma. Ali ergue o alvanel sagrado adito Que a imagem guardará daquele jovem Que as mãos espalmadas, entorna, A par do riso que seus lábios orna, Indulto ao fraco, e à miséria arrimo, Primor d’arte, que a dextra sapiente De Petrich abrolhou no duro mármor.”

Destaca-se o conhecimento que Manuel de Araújo Porto-Alegre tem

dos autores de estátuas e monumentos na cidade do Rio de Janeiro. Ferdinand Pettrich, escultor austríaco é o artista que confeccionou as estátuas de Clemente Pereira e de Dom Pedro II, localizadas na região da Praia Vermelha. O escultor também é o autor do conjunto estatuário conhecido como “A caridade” que fica atualmente na entrada do campus da UFRJ da mesma Praia Vermelha. Clemente Pereira foi o principal líder do movimento popular que ficou conhecido como “O Dia do Fico”.

Seguindo no processo de composição da paisagem observada, MAPA passa a falar do conjunto de praias que se segue após o morro da Babilônia:

“Tríplice anfiteatro em margem leda Botafogo, Flamengo e a Glória ostentam Amenas quintas e jardins fragrantes, Feiticeiras mansões que a aurora acolhem E ao ciciar das auras pelos renques Das plúmeas casuarinas, riso eterno Ao íncola feliz gratas derramam.”

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A partir daí, MAPA faz uma série de comparações com praias do Oriente Médio e da Europa, colocando em posição superior de beleza as praias cariocas, senão pelo valor das construções históricas que margeiam alguns dos locais citados, mas pela beleza natural:

“Do louro Tibre, do azulado Bósforo, Da márcia Roma, de Istambul dourada, Os zimbórios, pináculos celestes Que a estranha prole levantou na campa De abatidos gigantes, nessas baías, Onde Roma em delícias se engolfava, Os palácios triunfem, vença o orgulho Marmóreo de um tirano, que no adobe Sangue humano mesclara. Sim, supere O lavrado artefato à singeleza Dos teus parques risonhos e formosos, Onde em ócio tranqüilo se deslizam Sobre o leito da paz horas ditosas, Sem ver pendente a espada de Dâmocles!”3

3 Dâmocles é protagonista de uma anedota moral que figurou originalmente na história perdida da Sicília por Timaeus de Tauromenium (c. 356 - 260 a.C.). Cícero pode tê-la lido em Diodoro Sículo. Ele fez o uso dela em suas Tusculan Disputations V.61 - 62. Dâmocles, ao que parece, era um cortesão bastante bajulador na corte de Dionísio I de Siracusa - um tirano do século IV a.C.em Siracusa, Sicília. Ele dizia que, como um grande homem de poder e autoridade, Dionísio era verdadeiramente afortunado. Dionísio ofereceu-se para trocar de lugar com ele por um dia, para que ele também pudesse sentir o gosto de toda esta sorte. À noite, um banquete foi realizado, onde Dâmocles adorou ser servido como um rei. Somente ao fim da refeição olhou para cima e percebeu uma espada afiada suspensa por um único fio de rabo de cavalo, suspensa diretamente sobre sua cabeça. Imediatamente perdeu o interesse pela excelente comida e pelos belos rapazes e abdicou de seu posto, dizendo que não queria mais ser tão afortunado. A espada de Dâmocles é uma alusão freqüentemente usada para remeter a este conto, representando a insegurança daqueles com grande poder (devido à possibilidade deste

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Assim, a beleza das praias do Rio de Janeiro também estaria

associadas à tranqüilidade da cidade, uma vez que não estariam sujeitas ao ataque constante de nações inimigas. Neste contexto é bom lembrar que a Europa vivera desde o final do Século XVIII e por toda a primeira parte do século XIX uma série de guerras envolvendo constantemente as principais nações do continente, desde a Revolução Francesa, passando pelo período Napoleônico, a Revolução de 1830 e a série de acontecimentos que redundam no que se denominou chamar a Revolução de 1848, acrescente-se o fato de que em 1808 a coroa portuguesa transfere-se para o Brasil fugindo do domínio napoleônico, dando início ao processo que culminou com a Independência do Brasil. Por outro lado, o Brasil vivera uma série de revoltas em diversas províncias e ainda viria a enfrentar a Guerra do Paraguai na década de 60 daquele século, porém, nenhuma dessas revoltas ou guerras atingira diretamente a vida cotidiana do Rio de Janeiro.

Uma vez destacando as qualidades das praias, MAPA volta à vista mais para a direção da cidade, pegando a linha formada pela Rua das Laranjeiras, fala dos bairros de Laranjeiras, Glória, Cosme e Catete:

“Que a Glória de Maria outr’ra erguera Devota destra, arrependida exangue!... Orna-lhe a base bairro rico e nobre Que seu nome conserva e abre a estrada Do pomposo Catete que há de um dia Com Moscou contender, com Hayde parque Entre glebas frondentes se aproximam, Serpeando vergéis, jardins odoros,

poder lhes ser tomado de repente) ou, mais genericamente, a qualquer sentimento de danação iminente. Entalhes em madeira da espada de Dâmocles aparecem como símbolo em manuais europeus dos séculos XVI e XVII.

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Do Cosme e Laranjeiras os subúrbios, Onde o sol derramando delineia Risonho toporama, alegre quadro.”

A comparação dos jardins do bairro da Glória, do Catete, dos Cosme e das Laranjeiras como locais como o conjunto arquitetônico de palácios de Moscou ou ainda o Hayde parque (Hyde Park) de Londres busca valorizar a então parte mais central da então capital do império. Em se considerarmos correta ou verdadeira a data de 1847 para a escrita do poema, ainda não existia o palácio do Catete, erguido apenas em 1858, mas já existiam naquelas localidades alguns palacetes de arquitetura considerável para a época.

Nos versos seguintes, MAPA vai descrever o aqueduto da Lapa ou da Carioca, como diz MAPA, obra colonial, concluída em 1750 e depois recebendo algumas reformas, era àquela época o principal meio de distribuição de água para boa parte da capital do império, buscando água do rio Carioca. A obra fora inspirada no aqueduto das Águas Livres de Lisboa, que se construíra no século XVII:

“Em amplas curvas, flanqueando os montes Se alonga murmurando o aqueduto Que recebe o Carioca e o despeja Em tanques de granito, em brônzeas bicas, Ao feliz fluminense: mole excelsa, De alvenaria, serpe gigantesca Que a mão do Bobadela fabricara.”

A partir desse ponto do cenário observado, aprofundando a vista,

MAPA enxerga a cidade de Niterói, do outro lado da baía de Guanabara: “Se a vista arqueio sobre um mar alegre \ Onde bóiam mil fustas, mil galeras \ Contemplo Niterói”. Identifica-se no poema localidades de Niterói como o Morro da Armação, Praia de Boa-Viagem, Gravatá, São Domingos.

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A visão do morro da Armação, faz MAPA compará-lo a um vulcão, e vem à sua mente a imagem do Vesúvio em erupção:

“Quando as frágoas da areia e ferro fundem Negros jorros de fumo ao ar lançando Em retro ao monte da Armação, parece Que um vulcão de improviso rebentando Do seio do oceano, no ar estende Inflamado sudário sobre os tetos Da jovem Niterói, e ameaça, e tenta Em lava e cinzas sepultá-la inteira, Como outrora o Vesúvio fez a Stabia, Mas eis que corre no arenoso molde O líquido metal, o vulcão cessa; E da mente se esvai o novo quadro, Que beleza e horror n’alma infundia.”

Aqui a memória coloca-se dominando as sensações e\ou estímulos

sensoriais que recebe da ampla visão do alto do Corcovado, como num êxtase, a mente do poeta busca uma fuga, uma forma de controle sobre tudo que vê, uma ordenação de tantos espaços, nesse processo a mente então busca elementos comparativos na memória. No mais das vezes, busca cenários reconhecíveis e comparáveis com o que observa, porém, num momento de fuga, os estímulos sensoriais criam na mente do poeta, impressões delineadas como fuga do observado, moldando a cena com impressões falsas. Assim uma nuvem negra por trás do monte da Armação, na distante Niterói, limite de onde a vista alcança naquela direção, faz o poeta pensar num vulcão em erupção e na memória busca o Vesúvio para elemento comparativo. A sensação ambígua de beleza e horror cria-se assim por esse processo em que a memória interfere no quadro observado sensorialmente. Esse é o princípio da ilusão, porém, já a meio caminho do processo de alucinação, pelo sentimento de horror causado. O conceito foi primeiramente tratado em termos psiquiátricos por Dominique Esquirol em 1811.

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A partir dessa direção, olhando mais para o fundo novamente, MAPA identifica um pequeno conjunto de ilhas, das quais se destaca a de Paquetá:

“A linda Paquetá, delícia, orgulho Da tua capital, do Brasil todo! Onde o puro Evaristo e o egrégio Andrada Forma dias fruir de ameno pouso, Refocilar a mente atormentada Pelo moto veloz e inconseqüente Da versátil política”.

Um recurso observado neste trecho e em outros mais, alguns que

inclusive já citamos neste trabalho, é a forma como MAPA associa a cada local um acontecimento, este processo de associação tem como objetivo criar uma história, uma tradição acerca do lugar, dando ao Rio de Janeiro um passado, mas na forma poética, de modo a suspender no tempo o acontecimento, sem lhe precisar datas ou contextualizações históricas, mas citando apenas o acontecimento em si, de maneira a mitificá-lo. Assim, responde MAPA a um dos anseios da poesia e da cultura brasileira que desde a literatura colonial tinha sido uma questão colocada, qual seja da nossa falta de tradição cultural, artística e literária. Por meio desse processo de associação de um acontecimento mitificado com o local descrito, MAPA intenta, explícita ou inconscientemente, criar esse elo de tradição associado ao valor literário que busca alcançar.

Adiante no poema, trazendo o foco da visão mais para perto, encontra MAPA o morro de São Carlos: “Onde a estrela se assenta, berço ignoto \ De São Carlos, o vate cuja lira \ Fortunosa encontrou no pátrio solo \ Os prodígios do céu, e o paraíso”. O nome do morro é devido a rua que lhe dá acesso, a Rua São Carlos, mas aqui MAPA aproveita a homonímia para fazer referência ao poeta do período pré-romântico, Frei Francisco de São Carlos, cujo poema épico-sacro, A Assunção da Santa Virgem era apreciado por Porto-Alegre.

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Agora, novamente focalizando a vista para mais distante, o quanto a vista alcança, a partir do referente do morro de São Carlos, divisa MAPA nos limites do horizonte a Serra dos Órgãos onde fica Petrópolis:

“Aí entre penhascos e espessuras, A rival do Simplão flanqueia as serras (...) Suave clima amadurece os pomos Que nos vergéis da Europa e Ásia enxertara, E entre as virgens colina ora avulta A infantina Petrópolis, que hospeda Cimbrica prole do Danúbio e Reno, Prole que ao som do sacho, e de hinos pátrios, Num elísio converte essas devesas, Onde há pouco serpentes sibilavam, Onde as feras rugiam, e que hoje a regoa Traçando ruas, planteando paços, Canalizando rios, por encanto Ergue aos céus uma próspera cidade”.

O adjetivo “infantina” aplicado à Petrópolis deve-se ao fato da

cidade ter sido planejada durante o reinado de Pedro II, a chamada capital de inverno foi concluída em 1847, tendo iniciadas as obras em 1843. Na ocasião Petrópolis era um conjunto de palácios para o qual a corte se transferia durante o verão carioca, para gozar de clima mais ameno no alto da serra dos Órgãos. Faz também referência MAPA à origem européia da família real brasileira (“Cimbrica Prole do Danúbio e Reno”) como forma de garantir um sentido nobre ao que descreve e descreve o processo de construção da cidade como sendo o domínio sobre o estado selvagem anterior (“Onde há poucos serpentes sibilavam, \ Onde as feras rugiam”), domínio conseguido pela geometrização racional no processo de construção da cidade (“Traçando ruas (...) \

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Canalizando rios”). E a altura da serra é sugerida no verso final do trecho: “Erguendo aos céus”.

O poeta, a partir daqui, faz uma digressão, traz os sentidos para a subjetividade, e analisa os sentimentos causados pela visão rica em estímulos sensoriais que o alto do Corcovado lhe oferece. Conclui então que em tudo encontra a prova da existência de Deus:

“Em tudo que os sentidos meus abrangem, Nos céus, na terra, e nos mistérios d’alma, Do dedo do Senhor o selo encontro!”

Notemos que entre os picos mais altos da Serra dos Órgãos está o

“Dedo de Deus”, que se destaca não por ser o mais alto, mas pela forma sugestiva. Na seqüência dessa digressão, MAPA busca referentes artísticos que possam ter tanta beleza quanto a vista que tem daquela posição:

“Em minha alma ora sacro lume acendem, Como as relíquias da cidade eterna, Como uma mármor de Fídias ou Canova, Como o gênio de Homero, e Buonaroti, Como de Rafael os divos rasgos, Como tudo o que é belo e grandioso!”

Cita, pois, os escultores Fídias e Canova, o primeiro, entre outras

coisas, é considerado o autor do Parthenon, e o segundo, Augusto Canova foi o maior escultor no estilo neoclássico na Itália. Assim, na composição desses dois nomes, MAPA vê a permanência do estilo clássico. Cita o poeta Homero, o único poeta citado no trecho, e que para falar da forma como o sentido da visão é aguçado ali, lembremos que Homero, se acredita, era cego. Aqui, pois, a visão ganha um sentido espiritual, no qual o poeta Homero poderia ter sido um exemplo da capacidade imaginativa do espírito. Os pintores Rafael e Michelangelo

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são citados como exemplos da capacidade humana de pintar belos cenários e cenas.

Terminando a digressão, MAPA convida o leitor a continuar observando e\ou vendo com ele, por meio de seus versos, a visão da grandiosa cena: “Prossigamos no afã, o Amor não cansa; \ Ante novas delícias n’alma infunde; \ Que um prêmio é o mais afortunado ensejo \ Do vate quanto ao som da nobre lira \ Canta o nome da Pátria e mostra ao orbe \ Que ele amou, e foi grato à mãe querida.” Refocalizando a Serra dos Órgãos e trazendo a vista mais para baixo e mais próxima, MAPA vai identificando conjuntos menores de elevações, como a próxima Serra da Madureira, na região da Baixada Fluminense: “Da Madureira a serra, intercalada, \ Rouxeando pousos, se aproxima”. Voltando a vista na direção da Baía, a esta altura, encontra MAPA a vista da Ilha do Governador: “Qual um tronco adornado de folhagens,\ Boiar parece a grandiosa ilha, \ Que do Governador conserva o nome”. Nesta ilha, MAPA identifica o mosteiro de São Bento e não perde a oportunidade aqui de fazer uma comparação:

“Alveja-lhe ali no centro o gran mosteiro Dos filhos de São Bento hospitaleiros. De seus claustros na terra americana, Mafra ilusória o Rei João fazia.”

O adjetivo “ilusória” parece ter um significado decisivo acerca de

muitas das coisas que MAPA observa, como o improvável vulcão em Niterói, o Dedo de Deus no alto da Serra dos Órgãos, aqui o mosteiro de São Bento faz MAPA pensar ver o convento de Mafra, a maior obra do barroco português, construído por Dom João V. Ali, do alto, os sentidos costumeiramente se iludem pela amplidão que mistura céus, mar e terra numa visão de 360 graus.

Após falar da Ilha do Governador, MAPA nos descreve a Ilha do Bom Jesus da Coluna. Hoje a ilha está incorporada por processo de aterramento à Ilha do Fundão. Em 1705 a ordem dos franciscanos erguera ali um convento, que fora muito visitado por Dom João VI e

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pelos imperadores Pedro I e Pedro II. Em 1868, Pedro II transforma o convento que há algum tempo estava abandonado em um asilo, inspirado no Hotel dês Invalides, de Paris. MAPA, quando escreve o poema, lamenta-se do abandono do convento: “No púlpito eloqüente e edificante \ Tece a aranha o seu leito em sujas teias; \ E onde a voz potente trovejava, \ Tíbio silêncio só se encontra agora”.

Na seqüência do poema, MAPA deixa o olhar correr pela então planície do rio Iguaçu (Aguaçu) e pelo Meriti, abarcando nessa visão um território que compreende os bairros da Pavuna, Engenho Novo, até chegar ao centro atual do Rio de Janeiro, na Ponta do Caju e já na baía, a Ilha dos Ferreiros. Esses rios, hoje, totalmente assoreados e urbanizados, mas àquela época era uma extensa planície repleta de quintas, chácaras, sítios fazendas:

“Perfilando co’a vista a costa ingente Que franjam cem regatos, e termina No florente Aguaçu, que madre serra De seu seio desliza ao mar salgado, E ao claro Merity vejo planície Onde pousa a Pavuna entre seus combros. Eu vejo o Novo Engenho florescente, De vergéis, e de quintas adornado, Como verde pelúcia sobre um tálamo: E as curvas praias, graciosas, belas, De jardins recamadas, convergindo À Ponta-do-Caju, augusto pouso, E à Ilha dos Ferreiros que insuflara N’alma pura do Dutra a flama oculta, Que o seu ser devorou, amando uns olhos! Cruel flagelo que em seu peito ardendo, Como o fogo calínico, inextinto, A vida pouco a pouco devorou-lhe.”

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MAPA termina a estrofe citando a então recente morte do poeta Antônio Francisco Dutra e Mello, que era considerado um jovem gênio da poesia romântica brasileira. Deixou-nos, porém, poesias avulsas, entre elas uma intitulada “Madrugada e Tarde na Ilha dos Ferreiros”, em que inicialmente faz uma descrição do cenário visto a partir da Ilha dos Ferreiros, descrevendo a visão do Pão-de-Açúcar, da Candelária, da Ponta-do-Caju ao entardecer. Morreu aos 23 anos, como foi típico de outros poetas românticos o chamado Mal-do-Século.

Por cinco páginas, do final da 137 até a 142, o poeta deixa a vista perder-se observando o céu, buscando olhar nas alturas até onde a vista alcança, como que cansado de detalhar os vários estímulos sensoriais da visão da terra, da vista do Rio de Janeiro e da baía de Guanabara, observa então na abóbada celeste as nuvens e o entardecer que aos poucos vai escurecendo a possibilidade de ver detalhes no cenário. Num processo de liberar a imaginação, o poeta vai deixando a observação concreta do céu para ir imaginando a distância em que estão os astros:

“Penetra a mente nos vulcões da lua, Percorre as regiões sidéreas, gira Sobre o anel de Saturno, conta e marca Em torno as fachas que circulam Júpiter Novos planetas aos Caldeus ignotos, À douta Antiguidade, ao mundo coevo Desse ilustre Pisano, honra da Itália”.

Feita essa digressão da imaginação pelos céus do Rio de Janeiro, o

poeta anuncia estar próximo do fim de seu intento, qual seja, a descrição poética da cidade do Rio de Janeiro vista do alto do Corcovado:

“Fechemos este canto: a chave de ouro És tu, vasta cidade, que te estendes Imensa e rica nesse ameno plaino, Nivelando co’as serras azuladas,

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Tuas torres e cúpulas altivas.”

O poeta então fala da sua esperança de que a capital do império continue a crescer, que os projetos de reurbanização da cidade e construção de novas obras públicas tornem a cidade uma das mais belas do mundo, coisa que na alma do poeta, ela já seria, mas muito mais por seus dotes naturais do que por mãos humanas:

“Marmóreas asas ante meus olhos O Gênio que plantou na Grécia e em Roma Palmas de acanto, e dóricas colunas, E que os ares fendendo foi suntuoso Sobre as margens do Sena e do Tamisa Transplantar seus tesouros. Vejo um século, Um século de crença e de futuro, Planejando em teu seio amenos parques, Monumentos plantando, e em tuas ruas As pontas alargar do áureo compasso. Vejo a pompa cesárea e bizantina, Do Neva e do Moscova ao sol dos trópicos Empapar-se de luz, de duplo esmalte; E do Elba e do Danúbio as maravilhas Em teu grêmio pousar, sem que o inverno Co’a mesta mão a fronte lhe polvilhe.”

No processo de comparação que faz com várias importantes cidades

da Europa utiliza-se da Metonímia, ao colocar o nome de rios de que banham essas cidades para falar das cidades, assim o Sena se refere à Paris, o Tamisa à Londres, o Elba que corta Hamburgo e Magdeburgo, na Alemanha e que o pequeno afluente, o Voltava, banha Praga. O Danúbio que banha Viena, Budapeste, Belgrado. Cita o rio Neva que banha São Petersburgo, então uma das cidades européias que mais crescia em obras planejadas, fundada pelo Czar Pedro, o Grande em 1703. Neste aspecto, MAPA sugere uma direção administrativa para o

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homônimo imperador do Brasil. Moscou, citada aqui por meio do rio homônimo que corta a cidade é também citada em outras partes do poema, não era àquela altura a capital da Rússia, mas sim São Petersburgo, mas mantinha toda uma legenda pela sua história e sua rica arquitetura no estilo barroco narishikin. Os rios que banham essas cidades entram metonimicamente para falar das cidades num jogo sutil de palavras, uma vez que o nome da capital do império, Rio de Janeiro, deriva de um engano dos sentidos aos primeiros navegantes que ali chegaram, confundindo a Baía de Guanabara com a foz de um rio, que por ter sido descoberto em Janeiro, foi assim denominado Rio de Janeiro pelo navegante português Gaspar de Lemos, em 1.° de janeiro de 1502. Considera-se também que não engano nenhum e que não havia distinção fluente àquela época entre os conceitos de rio e baías.

Para contrapor o Rio de Janeiro às importantes cidades européias, ricas em tradição, história e monumentos arquitetônicos, MAPA faz uma conjunção de elementos. Primeiro cita a juventude do Rio de Janeiro, no sentido de ser mais jovem que as cidades européias: “Infantil qual tu és, ainda no berço”, depois comenta como a Natureza divina proveu a cidade de beleza incomparável: “Desta tua baía a Providência \ Quebrou no espaço o molde; e no Universo \ Outro todo não há que te iguale às formas \ De tanta louçania e majestade.” Concluindo, pois, que com estas características não faz tanta falta a ausência de tradição, história e monumentos quanto tem as cidades do Velho Mundo:

“Que te importam as eras fabulosas, Extensas tradições, difusas lendas, Escuros fastos, monumentos ermos, De confusos estruscos e sclavônios? Que te importa não ter remota estirpe, Se és de fato a princesa americana?”

Com a expressão “Ainda ontem”, como que para demonstrar a curta

história do Rio de Janeiro se comparada às cidades européias, inicia

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duas estrofes citando alguns acontecimentos históricos, como a invasão francesa, os governos de Gomes Freire de Andrade, 1.° Conde de Bobadela; D. Luís de Vasconcelos e Sousa, vice-rei do Brasil quando da chegada da família real em 1808. E numa outra estrofe cita o episódio da chegada família real, que inicia o processo histórico que culmina com a independência do Brasil:

“Ainda ontem nos teus augustos braços A foragida estirpe dos Reis Lusos Carinhosa acolheste. E ouviste o brado De Independência ou Morte no Ipiranga!”

Depois passa a citar nomes de poetas que viveram no Rio de

Janeiro, querendo demonstrar a riqueza literária da cidade:

“Franquando os espaços luminosos Da sublime epopéia, vê teus filhos, Ou na lira do amor brotando assombros: Já no metro suave de um São Carlos Ressuscitar edênicas delícias; Amor e Primavera sobre os lábios Do teu douto Vilela; e na eloqüência Que em frases de ouro trovejou Sampaio, E o grave Monte Alverne, os prévios louros De uma idade maior. Brindaste à Lísia, Co’um faceto Aristófanes: Oh! Mágoa! Do horrível Torquemada um cruel filho, Novo Druida atiçando ardente fragosa, Ao som dos salmos, e sagrados cantos, O ledo vate converteu em cinzas!”

São Carlos é Francisco de São Carlos, já citado no poema

anteriormente, Sampaio e Monte Alverne se destacaram na oratória, sacra e política. No final da estrofe cita o caso de Antônio José da Silva,

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o Judeu, que tendo se destacado na comédia (“faceto Aristófanes”) foi, ao se mudar para Portugal, vítima da Inquisição. Na estrofe seguinte comenta a morte recente do poeta Januário da Cunha Barbosa (1780 – 1846): “Rola ainda em teu rosto a justa lágrima \ Que há pouco arrancou o teu Januário”. Em outra estrofe, a seguir, continuando a citar nomes de destaque na literatura, fala do Visconde de Cairu, de Dutra e Mello e de Magalhães (Domingos José Gonçalves de Magalhães), seu dileto amigo: “És tu, meu Magalhães! C’roa te um século! \ O futuro te aplaude”. Já demonstrando o final do poema, MAPA anuncia que o dia está terminando, o sol se pondo: “Descamba o Sol: a noite desenrola \ O seu manto de sombras azuladas \ No seio das florestas e dos vales.” E abrindo a última estrofe do poema, escreve:“Cansada está minha alma, estão meus olhos, \ De tanta majestade!” Termina o poema relembrando que foi dedicado ao amigo Paulo Barbosa da Silva.

4. Pintura e Poesia O poema “O Corcovado” de Manuel de Araújo Porto-Alegre pode

ser considerado o maior poema descritivo do Rio de Janeiro, produzido por um poeta que era também renomado pintor, é um dos melhores exemplos da poesia romântica na questão do diálogo entre poesia e pintura. Rico em sinestesias, metáforas, analogias, existe no âmbito da sua linguagem um embate entre a memória e os estímulos sensoriais, como já foi aqui, demonstrado. Lamente-se, porém, o completo olvidamento a que foi colocada a obra de MAPA, por razões que acredito não sejam devidas apenas à leitura crítica de suas obras, mas também a uma leitura apressada, parcial e fundada em preconceitos que originalmente se devem aos aspectos políticos do início da República, temerosa que era da volta do Império, e era MAPA um dos mais próximos à figura de Dom Pedro II. Agora, em outro século, distante daquele, suponho que devamos dar a MAPA um lugar menos localizado na penumbra do panteão literário.

Em Laocoonte, Lessinge escreve:

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“Se o artista só pode utilizar da natureza sempre em transformação nunca mais do que um único momento e o pintor, em particular, esse único momento também apenas a partir de um único ponto de vista; se ainda as suas obras são feitas não apenas para serem meramente olhadas, mas, antes, consideradas, serem longamente e repetidas vezes consideradas: então é certo que aquele momento único e único ponto de vista desse único momento não podem ser escolhidos de modo fecundo demais. Mas só é fecundo o que deixa um jogo livre para a imaginação. Quanto mais nós olhamos, tanto mais devemos poder pensar além.”

(LESSING, p. 99)

Considerando o fato de que MAPA era tanto pintor quanto poeta, o poema “O Corcovado” enquanto poesia aproxima-se da pintura no sentido de que a ampla visão escolhida, o imenso cenário visto do alto do Corcovado seria um momento único tal que demandaria ao pintor que quisesse pintá-lo todo numa tela uma arte requintada que pudesse captar na tela a sensação de altura e de grandiosidade. Porém, a bidimensionalidade do quadro e os limites naturais da técnica paisagista romântica infundiram em MAPA o sentimento de obter plenamente o que desejaria expressar. Nesse sentido o que diz Lessing: “mais devemos pensar além”, leva MAPA a buscar na poesia a possibilidade de aproximar o recurso da descrição do momento único com o auxílio da memória, imbricando assim sensações múltiplas advindas da visão do cenário e a história do lugar e, mais ainda, as comparações que pretende colocar entre o cenário visto e os que conhece de Europa. REFERÊNCIAS:

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