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O presépio Ibero-americano na coleção do Museu de Arte Sacra de São Paulo: um estudo tipológico Dr. Luciano Migliaccio* FAU / USP Doutoranda Eliana Ambrosio** UNICAMP Esta apresentação é parte de uma pesquisa sobre os usos e as práticas vincula- das à escultura na América colonial, em particular na América portuguesa. Tais usos e práticas referem-se ao cotidiano, à devoção, ao culto doméstico, às festas religiosas ou populares e seu estudo visa colocar em discussão as categorias histo- riográficas, estilísticas e as periodizações normalmente utilizadas na abordagem da escultura monumental em pedra ou retabular através da comparação com obras que não possuem autoria determinada e são replicadas a cada ocasião conforme uma contínua reinterpretação da tradição aberta a contaminações com outras cul- turas locais e com as práticas de camadas sociais diversas. O objetivo do presente trabalho é apresentar algumas possibilidades tipologias de presépios que circularam na América latina durante os séculos XVIII e XIX e que também influenciaram a produção do século XX. Partindo do acervo de presépios do Museu de Arte Sacra de São Paulo, levantaremos algumas hipóteses relativas à transferência cultural de modelos europeus e às adaptações realizadas em algumas regiões do continente americano que levaram à criação de tipos regionais próprios. Esta abordagem será feita através da análise comparativa da circulação dos mode- los iconográficos e das técnicas utilizadas. O acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo é formado em sua maioria por peças pertencentes ao antigo Museu do Presépio, criado na década de 50, a partir da doação de uma importante coleção de peças de Presépio Napolitano do século XVIII e XIX por parte de Francisco Matarazzo Sobrinho. Em 1985, após a sua des- montagem do Parque do Ibirapuera, o acervo foi transferido para a reserva técnica *Departamento de História da Arquitetura e Estética do projeto da FAU/USP. **Doutoranda em História da Arte pela UNICAMP.

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O presépio Ibero-americano na coleção do Museu de Arte Sacra de São Paulo:

um estudo tipológico

Dr. Luciano Migliaccio*FAU / USP

Doutoranda Eliana Ambrosio**UNICAMP

Esta apresentação é parte de uma pesquisa sobre os usos e as práticas vincula-das à escultura na América colonial, em particular na América portuguesa. Tais usos e práticas referem-se ao cotidiano, à devoção, ao culto doméstico, às festas religiosas ou populares e seu estudo visa colocar em discussão as categorias histo-riográficas, estilísticas e as periodizações normalmente utilizadas na abordagem da escultura monumental em pedra ou retabular através da comparação com obras que não possuem autoria determinada e são replicadas a cada ocasião conforme uma contínua reinterpretação da tradição aberta a contaminações com outras cul-turas locais e com as práticas de camadas sociais diversas.

O objetivo do presente trabalho é apresentar algumas possibilidades tipologias de presépios que circularam na América latina durante os séculos XVIII e XIX e que também influenciaram a produção do século XX. Partindo do acervo de presépios do Museu de Arte Sacra de São Paulo, levantaremos algumas hipóteses relativas à transferência cultural de modelos europeus e às adaptações realizadas em algumas regiões do continente americano que levaram à criação de tipos regionais próprios. Esta abordagem será feita através da análise comparativa da circulação dos mode-los iconográficos e das técnicas utilizadas.

O acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo é formado em sua maioria por peças pertencentes ao antigo Museu do Presépio, criado na década de 50, a partir da doação de uma importante coleção de peças de Presépio Napolitano do século XVIII e XIX por parte de Francisco Matarazzo Sobrinho. Em 1985, após a sua des-montagem do Parque do Ibirapuera, o acervo foi transferido para a reserva técnica

*Departamento de História da Arquitetura e Estética do projeto da FAU/USP.

**Doutoranda em História da Arte pela UNICAMP.

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do Museu de Arte Sacra de São Paulo, aonde permaneceu guardada até inicio dos anos 2000, salvo exibições esporádicas de alguns exemplares durante o período natalino. Atualmente, parte da coleção está exposta no espaço situado abaixo do Presépio Napolitano. Dentre as peças expostas, algumas serão o objeto de nossa análise, conforme o indicado na listagem abaixo:

1) Título: Presépio Português

n0 de tombo: 7

Autor: desconhecido

Período: Séc. XVIII

Técnica: Caixa em madeira policromada e peças em terracota policromada

2) Presépio Português

n0 de tombo: 35

Autor: José Rabelo

Período: Séc XVIII (1757/1760)

Técnica: Caixa de madeira e peças em terracota policromada

3) Presépio Português

n0 de tombo: 91

Autor: desconhecido

Período: Séc. XVIII

Técnica: Terracota policromada

4) Presépio da Ilha da Madeira

n0 de tombo: 15

Período: Séc. XVIII

Técnica: Terracota policromada

5) Presépio Boliviano

n0 de tombo: 14

Autor: desconhecido

Período: Séc. XVIII

Técnica: madeira policromada

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6) Presépio Equatoriano

n0 de tombo: 38

Autor: Escola Quitenha

Período: Séc XVIII/XIX

Técnica: mista – madeira policromada, flores metálicas, objetos de porcelana

7) Lapinha Baiana

n0 de tombo: 17

autor: Freira do Convento dos Humildes - Bahia

Período: Séc XVIII/XIX

Técnica: madeira policromada, conchas, folhas de papel metálico, animais em pedra sabão

8) Lapinha Baiana

n0 de tombo:126

Autor: Freiras do Convento dos Humildes - Bahia

Período: Séc. XVIII/XIX

Técnica: madeira policromada, conchas, folhas de papel metálico, animais em pedra sabão

9) Lapinha

n0 de tombo: não consta em sua ficha técnica o número de tombo

Autor: Freiras do Convento dos Humildes - Bahia

Período:Séc XVIII/XIX

Técnica: madeira policromada, conchas, folhas de papel metálico, animais em pedra sabão

10) Oratório Mineiro

n0 de tombo: 13

Período: Séc. XVIII

Técnica: madeira policromada e talcita

11) Oratório Mineiro:

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n0 de tombo: 60

Autor: Desconhecido

Período: Séc. XVIII

Técnica: madeira policromada e talcita

12) Oratório Mineiro:

n0 de tombo: não consta em sua ficha técnica o número de tombo

Autor: Desconhecido

Período: Séc. XVIII

Técnica: madeira policromada e talcita

13) Presépio peruano:

n0 de tombo: 94

Autor: desconhecido

Período: Séc. XX

Técnica: madeira e massa colorida

14) Presépio de Sorocaba

n0 de tombo: 3

Autor: Freira do convento de Santa Clara

Período: Séc. XIX - 1842

Técnica: madeira policromada

A escolha revela duas tipologias básicas diferentes tanto do ponto vista icono-gráfico, como funcional e formal:

1) o presépio narrativo ligado a uma ambientação cenográfica com intuito peda-gógico, relacionado com a tradição do teatro sacro introduzida pelas ordens religiosas, especialmente pelos franciscanos e jesuítas. Em sua maioria, estes presépios desenvol-vem-se dentro de um cenário que articula toda a narrativa da infância de Cristo1.

1 Anunciação, Sonho de São José, Visita a Santa Isabel, Adoração dos Magos, Circuncisão, Apresentação do Menino no Templo, Fuga para o Egito, Ordens de Herodes, Matança dos Inocentes e Jesus entre os doutores.

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Deste deriva o presépio fomentado pelas cortes católicas de Nápoles, da Espa-nha e de Portugal, da Áustria e da Alemanha Meridional que difundiu a iconografia incluindo a descrição dos costumes regionais e das cenas populares.

2) o presépio oratório ligado ao culto doméstico e especialmente à devoção feminina dos conventos e às práticas do cotidiano, em que a cena narrativa é limi-tada à Natividade com a presença de um número restrito de figuras. Ali prevalece a idéia da oferta votiva, ornamentada por flores, frutas, miniaturas de objetivos, pequenos animais, dentro de um esquema piramidal, cujo ápice é normalmente constituído pelas figuras sagradas. Na maioria dos casos apenas a sagrada família, outras vezes os magos, alguns anjos e pastores; nos exemplares das chamadas lapi-nhas a figura do Menino Salvador.

No caso do presépio narrativo, o que prevalece é a intenção didática relaciona-da explicitamente com o teatro e o uso público da escultura efêmera, tais como o teatro de marionetes, as máquinas festivas, a exposição em ambientes públicos, os conjuntos de escultura religiosa, como o retábulo ou as vias sacras. Uma das finali-dades do projeto é tentar entender as recíprocas influências entre estes tipos de escul-tura, refletindo sobre a facilidade de circulação da escultura de presépio e as suas semelhanças iconográficas e estilísticas com exemplos monumentais quais as escul-turas de Congonhas do Campo e outros exemplos do barroco latino-americano.

No outro caso, há relações com as práticas domésticas vinculadas aos ex-vo-tos, aos oratórios, à escultura procissional de vestir e à manipulação concreta da imagem sacra dentro do âmbito do culto familiar ou da devoção privada. Tudo isto dentro das práticas domésticas promovidas pela Igreja Católica a partir do século XVII, com o intuito de educar e promover o hábito constante da oração e da devo-ção. De fato, muitas vezes tais práticas abrem espaços a contaminações de práxis religiosas anteriores ao próprio Cristianismo.

Essas duas tipologias na América acabam se influenciando reciprocamente, fazendo com que não seja possível colocar uma distinção rígida. No entanto, uma divisão é útil para melhor entender a função e a prática relacionadas com as res-pectivas tradições.

Exposto um panorama geral que situa as tipologias básicas a serem abordadas, passaremos agora à análise de cada um dos presépios escolhidos citados anterior-mente para que possamos compreender suas peculiaridades.

Inicialmente, trataremos de dois exemplos de cenas narrativas: o presépio por-tuguês (fig. 1) e presépio boliviano (fig. 2). Aqui cabe uma distinção quanto ao tipo de cenário. Enquanto no presépio português a narrativa desenvolve-se dentro de um cenário fixo, desenvolvido em função dos grupos escultóricos trabalhados como conjunto, no presépio boliviano ela se desenvolve em uma caixa-baú (co-nhecida por bargueño), em que a cena fixa nas paredes da caixa é desmontada ao ser fechada2 para ser transportada em uma viagem. Este tipo de caixa remonta ao

2 Este Presépio abre e se fecha conforme as circunstâncias: as partes laterais são levantadas do

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retábulo doméstico que após o momento do culto é fechado, reservando os objetos em seu interior apenas para os momentos introspectivos que envolvem a oração.

Passando ao Presépio (oratório) equatoriano (fig.3), percebemos que a cena narrativa é influenciada pelo modelo dos oratórios de convento, a renda, pássaros e outros animais, as flores em papel, as miniaturas de objetos reenviam ao mundo feminino e ao universo da miniatura e do brinquedo.

A lapinha baiana (fig. 4) pode ser vista como um exemplo de contaminação entre os grandes presépios de caixa pedagógicos e o presépio oratório conventual. Se anali-sarmos atentamente a estrutura de sua parte inferior, perceberemos como esta se asse-melha a estrutura do cenário dos presépios de caixa portugueses. Se removermos des-tes últimos os personagens e se reduzirmos a ambientação cenográfica restante, teremos a estrutura da parte inferior da lapinha. Associados a estes cenários miniaturizados, quase em forma de gruta, aparecem elementos do universo dos oratórios de convento e de culto doméstico, tais como conchas, flores de papel, pequenos animais, além de anjos e em alguns casos, o menino deitado na manjedoura.

O oratório mineiro poderia ser visto como uma variação das lapinhas baianas que propagam o culto de devoção ao menino na parte superior e a cena da nativida-de na parte inferior. Na lapinha baiana, a figura do menino alude à majestade divina e a cena abaixo lembra a pobreza das origens terrenas de Cristo, enquanto nos ora-tórios mineiros, os santos de devoção e o cristo crucificado ficam na parte superior e a natividade ocupando a parte inferior coloca o culto ao presépio como uma prática cotidiana, resumindo os mistérios da encarnação e da morte de Cristo como síntese do desenho providencial da salvação. Uma variação interessante seria o caso dos presépios peruanos. Estes também possuem uma dupla divisão como os oratórios mineiros, mas sua influência vem de uma leitura dos presépios de corte. Na porção superior desenvolve-se a história da natividade, ao passo que na parte inferior apre-senta uma cena de vida contemporânea. Aqui cabe uma comparação entre o orató-rio/presépio mineiro e o presépio peruano com cena da natividade ao nível superior e cena quotidiana na parte inferior. Enquanto o primeiro representa um estímulo a reflexão sobre o significado universal da figura divina, o outro sobre a concreta his-tória terrena de Cristo comparada com a vida de todo o dia.

Do exposto, percebemos a permeabilidade que envolve as questões vincula-das a este tipo de escultura colonial americana que muitas vezes ultrapassa e rom-pe com a periodização tradicional da Historia da Arte. Nesse sentido, abordar este tipo de objetos exige do pesquisador uma revisão constante das concepções tradi-cionais rumo a conceitos mais elásticos a fim de uma melhor compreensão dos fenômenos estéticos estudados.

Um Historia da Arte pautada pelas praticas culturais ligadas aos objetos reen-viaria ao conceito de Historia das Coisas elaborado pelo historiador George Kub-

chão, em seguida, fecham-se os lados, depois a frente e, finalmente, o teto que desce sobre o todo, formando uma espécie de arca, pintada de verde com desenhos dourados e fecho de latão.

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bler; sendo este o instrumento mais útil para trabalharmos, no caso da arte colonial e de suas sobrevivências, as continuidades, ultrapassando modelos da periodiza-ção e dos conceitos de autoria, concebidos dentro do contexto europeu.

Fig. 2 – Presépio Boliviano – Museu de Arte Sacra de São Paulo (n0 de tombo: 14)

Fig. 1 – Presépio Português – Museu de Arte Sacra de São Paulo (n0 de tombo: 7)

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Fig. 3 – Presépio Equatoriano – Museu de Arte Sacra de São Paulo (n0 de tombo: 38)

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Fig. 4 – Lapinha Baiana – Museu de Arte Sacra de São Paulo (n de tombo: 17)