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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO SOLIDARISMO JURÍDICO NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS CONTEMPORÂNEAS E OS CONTRATOS CIVIS THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF JURIDICAL SOLIDARITY IN CONTEMPORANEOUS PRIVATES JURIDICAL RELATIONS AND THE CIVIL CONTRACTS Elida De Cássia Mamede da Costa Glaucia Fernanda Oliveira Martins RESUMO O presente artigo, no primeiro momento, discorre sobre o princípio constitucional do solidarismo jurídico, conceitua-o, busca sua origem e inter-relaciona-o ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. Assim, prova a relação existente entre o princípio da solidariedade e os direitos fundamentais. No segundo momento - situando o estudo em tema específico de relações jurídicas privadas - demonstra a influência do princípio da solidariedade no direito contratual e suas conseqüências. Vale dizer que, sendo o contrato um instituto eminentemente privado, e o mais freqüente e regulador da economia e da sociedade, a pesquisa dele vale-se como exemplo para situar o princípio constitucional do solidarismo nas relações privadas. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVE: RELAÇÕES JURÍDICO- PRIVADAS; SOLIDARISMO JURÍDICO; CONTRATOS; DIGNIDADE HUMANA; DIREITOS FUNDAMENTAIS. ABSTRACT This article, at first moment, discourses about the constitutional principle of juridical solidarity, esteems it, searches its origin and interconnects it to principle of human person dignity and to fundamentals rights. So, it proves the relation between solidarity’s principle and fundamentals rights. At second moment – situating this work ins specific theme of privates juridical relations – this article shows the influence of the solidarity’s principle in contracts’ rights and its consequences. It’s important to say that, being the contract a private institute, and the most frequent in a society, and the responsible for lots of in economy’s rules, this work studies contracts, like an example, to situate the constitucional principle of solidarity in privates juridical relations. KEYWORDS: KEY-WORDS: PRIVATES JURIDICAL RELATIONS; JURIDICAL SOLIDARITY; CONTRACTS; HUMAN DIGNITY; FUNDAMENTALS RIGHTS. 7085

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO SOLIDARISMO … · 2010-07-29 · ... sendo o contrato um instituto eminentemente privado, e ... o homem sonha com um ... vir a ser violada. Aqui se

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O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO SOLIDARISMO JURÍDICO NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS CONTEMPORÂNEAS E OS

CONTRATOS CIVIS

THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF JURIDICAL SOLIDARITY IN CONTEMPORANEOUS PRIVATES JURIDICAL RELATIONS AND THE

CIVIL CONTRACTS

Elida De Cássia Mamede da Costa Glaucia Fernanda Oliveira Martins

RESUMO

O presente artigo, no primeiro momento, discorre sobre o princípio constitucional do solidarismo jurídico, conceitua-o, busca sua origem e inter-relaciona-o ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. Assim, prova a relação existente entre o princípio da solidariedade e os direitos fundamentais. No segundo momento - situando o estudo em tema específico de relações jurídicas privadas - demonstra a influência do princípio da solidariedade no direito contratual e suas conseqüências. Vale dizer que, sendo o contrato um instituto eminentemente privado, e o mais freqüente e regulador da economia e da sociedade, a pesquisa dele vale-se como exemplo para situar o princípio constitucional do solidarismo nas relações privadas.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVE: RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS; SOLIDARISMO JURÍDICO; CONTRATOS; DIGNIDADE HUMANA; DIREITOS FUNDAMENTAIS.

ABSTRACT

This article, at first moment, discourses about the constitutional principle of juridical solidarity, esteems it, searches its origin and interconnects it to principle of human person dignity and to fundamentals rights. So, it proves the relation between solidarity’s principle and fundamentals rights. At second moment – situating this work ins specific theme of privates juridical relations – this article shows the influence of the solidarity’s principle in contracts’ rights and its consequences. It’s important to say that, being the contract a private institute, and the most frequent in a society, and the responsible for lots of in economy’s rules, this work studies contracts, like an example, to situate the constitucional principle of solidarity in privates juridical relations.

KEYWORDS: KEY-WORDS: PRIVATES JURIDICAL RELATIONS; JURIDICAL SOLIDARITY; CONTRACTS; HUMAN DIGNITY; FUNDAMENTALS RIGHTS.

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1. INTRODUÇÃO.

“Tem sentido falar de solidariedade para

reafirmá-la ou para definitivamente sepultá-la.”

(Cláudio Sacchetto)

No campo dos contratos, um novo debate vem aflorando. Atualmente, podemos definir duas concepções opostas sobre este instituto: uma tradicional, focada no liberalismo econômico, que o enxerga como um compromisso de interesses divergentes (antagônicos); e outra mais inclinada a entendê-lo como um ato de auxílio mútuo (colaboração), a partir de uma perspectiva solidarista.

Neste sentido, cumpre analisar os traços distintivos do princípio da solidariedade, diante deste novo pensar acerca da teoria contratual em nosso sistema jurídico.

Embora a Constituição Brasileira de 1988 tenha trazido evidentes inovações à ordem jurídica, incorporando conceitos de democracia, liberdade, solidariedade, participação popular e outros temas hoje considerados de primeira grandeza, a realidade esbarra nas limitações materiais do Estado ou na própria natureza humana daqueles que deveriam zelar pelo cumprimento de tão nobres objetivos.

Contudo, estas limitações não podem se sobrepor aos preceitos e princípios da Carta Magna vigente. Devido ao seu caráter humanitário e democrático, a Lei Maior não deve ser tratada apenas como uma mera norma jurídica, mas como um ideal a ser cultivado por toda a sociedade.

É o caso da milenar aspiração por uma sociedade solidária: o homem sonha com um mundo unificado, com sociedades pacíficas onde reinem a concórdia e a felicidade. Entretanto, sua natureza parece se opor a isso, seu individualismo cego põe em risco não apenas a convivência humana, mas a própria vida no planeta Terra.

Em sendo assim, cabe ao doutrinador aprofundar-se nos caminhos teóricos do direito, construindo um eficiente arcabouço jurídico e, especialmente, estudando formas de implantação dessas teorias.

Este trabalho pretende, primeiramente, demonstrar a existência do ideal solidarista em nossa Constituição, conceituando-o e demonstrando sua recepção, pelo ordenamento, na forma de princípio constitucional. Em seguida, procura-se realizar a interligação entre o princípio da solidariedade e os direitos fundamentais previstos pela Constituição brasileira. E, por fim, será ressaltado o solidarismo jurídico no âmbito do direito contratual, enfatizando-se, deste modo, as relações jurídico-privadas.

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2. PRINCÍPIO DO SOLIDARISMO JURÍDICO.

2.1. NOÇÕES GERAIS. RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

Solidariedade, segundo os dicionários, define-se como “sentimento que leva os homens a ajudarem-se mutuamente”; outro vocábulo, bastante próximo e por vezes utilizado como sinônimo é “fraternidade”, definível como “parentesco de irmãos, convivência como de irmãos, amor ao próximo”. O termo solidariedade tem sua origem associada ao étimo latino solidarium, que vem de solidum, soldum (inteiro, compacto), que se reflete numa forma de pensar contrária ao egoísmo.

Solidariedade social trata-se de um conceito jurídico indeterminado, ou seja, norma de conteúdo incerto, vago, impreciso, cabendo ao magistrado e à doutrina a tarefa de delimitar tal conteúdo, sob a análise do caso concreto.

Maria Celina Bodin de Moraes (2003, p. 114) conceitua solidarismo jurídico da seguinte forma:

O princípio constitucional da solidariedade identifica-se, assim, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados.

A autora continua (op.cit, p. 115), dando-nos uma noção de solidariedade:

O fato social é intrinsecamente caótico, desorganizado; a liberalidade, puramente eventual. O direito, ao contrário, é exigível, e é isto que torna a solidariedade um princípio diferente. Como seria possível obrigar alguém a ser solidário? Não seria o mesmo que querer exigir o sentimento de fraternidade entre as pessoas? A dificuldade está unicamente em se continuar atribuindo à solidariedade um caráter essencialmente beneficente. Não se quer exigir que alguém sinta alho de bom pelo outro; apenas se comporte como se assim fosse.

E leciona (op. cit, 178):

A solidariedade é a expressão mais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana. No contexto atual, a lei maior determina – ou melhor, exige – que nos ajudemos, mutuamente, a conservar nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós. (grifos nossos)

Nabais (2005, p. 114-115, in ROSSO) classifica o princípio da solidariedade quanto aos seus efeitos em vertical e horizontal. A primeira visão – solidariedade vertical – seria aquela mais comumente identificada com os deveres do Estado. Por outro lado, a solidariedade em seu sentido horizontal, agora não tomada apenas como um dever do Estado, mas também como obrigação de toda a sociedade civil. Determina a solidariedade que a efetivação dos direitos fundamentais seja vista como obrigação não apenas do Estado, mas da própria sociedade. Cada cidadão é, também, vinculado à idéia de solidariedade.

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Wieacker, citado por Sarmento (2006, p. 71), leciona:

O pathos da sociedade de hoje (...) é o da solidariedade: ou seja, da responsabilidade, não apenas dos poderes públicos, mas também da sociedade e de cada um dos seus membros individuais pela existência social (e mesmo cada vez mais pelo bem-estar) de cada um dos membros da nossa sociedade. (grifos nossos).

Como se observa, o dever de solidariedade expressado pelo princípio constitucional do solidarismo jurídico, ao contrário do que se poderia pensar, não é responsabilidade unicamente do Estado, mas diz respeito a toda a sociedade civil.

Duguit entendia o homem enquanto ser social, derivando os seus direitos subjetivos das suas obrigações sociais, por isso acreditava que "a consciência de uma sociabilidade sempre esteve presente, enquanto dependência do homem em relação à comunidade; e também a consciência da sua individualidade". (p. 28, apud Ehrhardt).

Neste diapasão, Léon Duguit (1996, p. 15-17, apud Ehrhardt) sustentava que

[...] o ser humano nasce integrando uma coletividade; vive sempre em sociedade e assim considerando só pode viver em sociedade [...] o fundamento do direito deve basear-se, sem dúvida, [...] [no] indivíduo comprometido com os vínculos da solidariedade social. Não é razoável afirmar que os homens nascem livres e iguais em direitos, mas sim que nascem partícipes de uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as obrigações que subentendem a manutenção e desenvolvimento da vida coletiva. [...] Se uma doutrina adota como lógica definida a igualdade absoluta e matemática dos homens, ela se opõe à realidade e por isso deve ser prescindida.

Aqui um parêntese. Neste ponto é preciso anotar que a adoção do discurso de Duguit não serve para legitimar violações da dignidade humana sob pretexto de atendimento às necessidades do grupo social. Em sua dimensão ontológica, a dignidade é compreendida como qualidade intrínseca, irrenunciável e inalienável, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente, não podendo ser criada ou retirada, embora possa vir a ser violada.

Aqui se considera a dimensão comunicativa e relacional do princípio da dignidade humana, já que sempre se analisa a noção de dignidade partindo de relações interpessoais, vez que a intersubjetividade implica necessidade de reconhecimento pelo outro, garantindo-se o mesmo nível de consideração e respeito a todos, sem que isso sirva para legitimar a tese de que é possível sacrificar a dignidade pessoal em benefício do corpo social. Considera-se, assim, a dimensão da dignidade humana a partir da intersubjetivação, quer dizer, o homem em seu contato com o outro. Em outras palavras, uma exigência mútua para conservação da humanidade.

Sobre o aspecto social da dignidade, Cármen Lúcia Antunes Rocha (2004, p. 75) destaca:

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Não há pessoa que seja pobre, mas aquela que está pobre. O problema não lhe é exclusivo, é da sociedade, na qual ela se insere, ou busca inserir-se para superar a sua condição humana de insegurança em relação às incertezas da vida.

(...)

A pobreza frustra as vocações, emperra o espírito, torna os homens não aliados, mas concorrentes eternos, a disputar o que pode ser de todos, e que se abarrota nas mãos de uns poucos, negando a solidariedade que humaniza a convivência social.

Maria Celina Bodin de Moraes enumera quatro corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, a saber: igualdade, integridade psicofísica, liberdade e solidariedade.

No campo do direito privado é fundamental esclarecer que tal compreensão da dignidade não implica impossibilidade de se colocar alguém em situação de desvantagem em prol de outrem – dadas as desigualdades fáticas existentes - mas sim que as pessoas nunca poderão ser tratadas de tal forma que se venha a negar importância distintiva de suas próprias vidas.

Peces Barba situa a solidariedade, ao lado da socialidade, como dimensões da dignidade. Tais dimensões representam a impossibilidade de se alcançar solitariamente a dignidade, sempre respeitosa com a pessoa.

O solidarismo trata-se, concomitantemente, de um objetivo, de um princípio constitucional e de um valor:

Assim, é possível afirmar que quando a Constituição estabelece como um dos objetivos fundamentais da República brasileira “construir uma sociedade justa, livre e solidária”, ela não está apenas enunciando uma diretriz política desvestida de qualquer eficácia normativa. Pelo contrário, ela expressa um princípio jurídico, que, apesar de sua abertura e indeterminação semântica, é dotado de algum grau de eficácia imediata e que pode atuar, no mínimo, como vetor interpretativo da ordem jurídica como um todo. (grifos nossos) (SARMENTO, 2004, p. 295)

Em verdade, o princípio encontra-se tacitamente presente em toda a Constituição, servindo não apenas como mecanismo de interpretação ou reafirmação de outros princípios, mas também como fundamento da própria ordem constitucional.

Ao ingressar na esfera jurídica, o valor moral sofre, obviamente, algumas adequações: não é mais um mero sentimento íntimo ou uma regra moral. Por isso, nesse estágio, torna-se irrelevante se o indivíduo, a quem é também destinada a norma constitucional, está de acordo ou não com ela:

É óbvio que o Direito não tem como penetrar no psiquismo das pessoas para impor-lhes as virtudes da generosidade e do altruísmo. Seria terrível, aliás, se o Direito pudesse ditar sentimentos. Entretanto, se ele não pode obrigar ninguém a pensar ou a sentir de determinada forma, ele pode, sim, condicionar o comportamento externo dos agentes, vinculando-os a obrigações jurídicas. (SARMENTO, 2006, p. 297).

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Lendo-se os primeiros artigos da Constituição, vemos que ela “impôs, com certa prevalência axiológica abstrata, o dever de perseguir os ideais de dignidade e de solidariedade.” (ÁVILA, 2005, p. 68, in ROSSO)

Vários dispositivos constitucionais estão intimamente relacionados com o princípio da solidariedade, cabendo exemplificar com os artigos 40, 194, 195, 196, 203, 205, 227 e 230.[1]

Pelo exposto, fica evidente que as noções de dignidade humana e solidariedade são complementares. A partir da síntese de tais noções, através de um juízo de ponderação, é possível avançar na busca de um sentido social de contrato, vinculado às idéias de justiça social preconizadas no texto constitucional.

2.2. ORIGEM.

O liberalismo acentuado que informou toda construção legislativa do início do século XIX ensejou na construção de uma teoria geral do contrato totalmente fundada na autonomia privada. Em face desta liberdade, o princípio do pacta sunt servanda foi elevado á condição de um dogma. Uma avença era firmada para ser cumprida, pouco importando se a sua execução estivesse em descompasso com a realidade fática e circunstancial que envolvesse a relação jurídica entre os contratantes.

Neste período, toda a legislação era voltada para a realização do contrato de modo a atender ao interesse individual do contratante, pouco importando se os efeitos do negócio jurídico pudessem acarretar algum prejuízo à comunidade.

Conforme Cármen Lúcia Antunes Rocha, no modelo liberal apresenta-se novas formas de tortura contra o homem; não aquela praticada pelo Estado ou por seus agentes, mas a tortura praticada pela sociedade em detrimento de uma legião de homens, que não detém as condições mínimas de sobrevivência e dignidade. Citando Habermas, a autora (200, p. 76) assevera que a tortura arrumou novo nome: exclusão social. “A fome é a tortura que se impõe socialmente”.

Verifica-se, portanto, que no Estado clássico, de orientação liberal, a solidariedade não é posta como um princípio básico de atuação estatal.

O ponto de partida da visão solidarista se deu através do modelo de Estado Social, que surge a partir do início do século XX. Configura-se diametralmente oposto ao modelo liberal implantado pelas idéias Iluministas a partir da Revolução Francesa, visto que, como já delineado acima pela jurista Cármen Lúcia Antunes Rocha, o modelo social preconizava um Estado interventor e ativo, inclusive nas relações eminentemente privadas, ou que assim foram tratadas durante séculos.

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No modelo do Estado social, existia o propósito de estimular a atuação de toda a sociedade em prol da igualdade, e não a mera pretensão de garantir a liberdade, como no Estado Liberalista. Daí a intenção de que a solidariedade deixaria de ser apenas algo “desejável” para se tornar atuação obrigatória de toda a sociedade e do Estado. O Estado Social abandonaria neutralidade, propondo-se a corrigir as desigualdades e posicionando-se como protetor do mais fraco.

Com o surgimento do Estado Social ancorava-se o desejo de se procurar estabelecer regras protetoras, de cunho notoriamente publicista, com o escopo de disciplinar as relações entre pessoas privadas para que fosse firmado um equilíbrio tão desejado pelos novos rumos do Direito e condizente com as expectativas da sociedade.

Pontua-se que juntamente com o nascimento do Estado Social, se aflui a consagração de novos direitos que demandavam prestações positivas dos Estados (em especial a partir da Carta Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919). Diferentemente dos direitos de primeira geração, esses direitos exigiam a atuação do Estado com o fito de criar condições necessárias para que fossem exercidos. No Estado Social não bastava o mero reconhecimento formal das liberdades humanas, era mister assegurar as condições mínimas de existência da sociedade como um todo.

É nesse plano de fundo que o conceito de direito de solidariedade torna-se mais delineado pela atuação do trabalhismo.

Até então a noção de solidariedade social era sempre reduzida à perspectiva da caridade, do auxílio ao próximo motivado por pura liberalidade, aproximando-se, pois, da filantropia. No entanto, não é o objetivo do presente estudo colaborar para manter a noção de solidariedade como um sentimento genérico de fraternidade.

Daniel Sarmento (2006, p. 71) destaca que a solidariedade deixou de ser apenas uma virtude altruística para se converter em um princípio constitucional apto para gerar direitos e obrigações, inclusive na esfera privada, e de fundamentar restrições proporcionais às liberdades individuais.

Inegável é a inter-relação entre os princípios religiosos e a solidariedade. É pedra angular do cristianismo o princípio “amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. (BÍBLIA, Mt 22:36-40, 2008, on line).

Inegavelmente, o princípio tem bases socialistas, podendo ser considerado um de seus fundamentos. Como afirma Farias (1998, p. 275-276, in ROSSO), “o discurso do solidarismo jurídico não é somente uma maneira de falar do direito; ele é também um olhar sobre a sociedade como um todo [...]”. O mesmo autor demonstra claramente a interligação entre socialismo e solidariedade, já que “a verdadeira essência do socialismo repousa sobre uma ‘filosofia pluralista do direito e da sociedade’”.

De fato, constituem-se projetos muito próximos, quase interligados, “solidariedade, democracia e socialismo” não se podendo entender uma sociedade como solidária que não se constitua sob o regime democrático. A solidariedade não prescinde do desejo individualista de liberdade (também acatada pela Constituição), mas, indubitavelmente, a busca da igualdade é seu maior escopo.

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Não pode ser visto como solidário o cidadão que somente age em busca de seus próprios interesses sendo certo que a opção pela solidariedade implica também na renúncia de parcela de certas vantagens pessoais. É, portanto, um conceito socialista, que vê o Estado não apenas como defensor da liberdade, mas também como responsável maior pelo bem comum.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 apresenta evidentes traços solidarísticos, embora não contenha literalmente a expressão “solidariedade”. O preâmbulo menciona que todas as pessoas são “membros da família humana”, e no art. 1º dispõe que todos “devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Nas Constituições anteriores, o princípio não era tomado como fundamental, embora estivesse presente em algumas matérias, como orientador de temas específicos.

Desde a Constituição de 1934 as preocupações sociais estavam claramente presentes, em especial pelo advento do Estado Social. Entretanto, considerando-se o tema como princípio e objetivo central do ordenamento, constata-se que o assunto é relativamente recente, dizendo respeito à Constituição de 1988 que, ao alçar o princípio à categoria de fundamental, inova em relação às constituições antecessoras.

O solidarismo aparece na atual Constituição de forma expressa como um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

E, para complementar e melhor definir o inciso anterior, tem-se o disposto no inciso III do mesmo artigo:

Art. 3º. [...]

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

Mas não basta apenas que a Carta Política veicule em seu texto uma prescrição sobre o solidarismo. É essencial que esta norma possua efetividade social, isto é, tenha força operativa no mundo dos fatos.

Diante disto, o Poder Legislativo Federal, no exercício do seu Poder Constituinte derivado, criou, por meio da Emenda Constitucional n.º 31, de 14 de dezembro de 2000, o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, com a finalidade de “viabilizar a todos

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os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência”, cujos recursos serão utilizados em “ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para a melhoria da qualidade de vida”. Como se vê, o Estado brasileiro, ao promover esta política social, não só se se preocupa com os mais fracos e desamparados em busca de uma “sociedade solidária”, mas também materializa os preceitos legais do solidarismo, simbolizando, por conseguinte, a aproximação do dever-ser desta norma constitucional com o ser da realidade social.

2.3. SOLIDARIEDADE, DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS HUMANOS.

O princípio da solidariedade “explica” a existência de diversos direitos fundamentais abrangidos pela Constituição. Pode ser encarado como a contraprestação devida pela existência dos direitos fundamentais: se tenho direitos, tenho, em contrapartida, o dever de prestar solidariedade àqueles que se encontram em posição mais frágil que a minha.

O ilustre professor Daniel Sarmento destaca em sua obra “Direitos Fundamentais e Relações Privadas” a questão da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, colocando o solidarismo jurídico como um mecanismo para sua efetivação. Para ele:

(...) a dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de que tais direitos, além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma comunidade política (...) orientando a atuação do Legislativo, Executivo e Judiciário. (2006, p. 134).

Sobre os direitos fundamentais, rápida leitura sobre alguns dispositivos constitucionais a título exemplificativo comprova a direta interferência do princípio da solidariedade sobre o pensamento constitucional.

O princípio da igualdade (caput do art. 5º da Constituição Federal), por exemplo, encontra-se interligado à idéia de solidariedade, pois se constituímos um todo, somos, ao menos em direitos, iguais, não se podendo vislumbrar sociedade efetivamente solidária sem que haja igualdade.

A liberdade para criação de associações e cooperativas (art. 5º, inc. XVIII) também encontra justificativa na solidariedade existente entre os membros da sociedade, ainda mais forte quando os indivíduos encontram laços de interesse, sendo plenamente justificável, dessa forma, a possibilidade de representação judicial desses grupamentos de indivíduos pelas entidades criadas por eles (art. 5º, inc. XXI).

Ao lado do princípio de cunho individualista, que garante o direito de propriedade (art. 5º, inc. XXII) a Constituição dispõe, também, que a propriedade deve atender sua função social (art. 5º, inc. XXIII).

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Trata-se de óbvio norte socialista e solidarista, pois o indivíduo, que tem direito à propriedade, pode destiná-la para o seu benefício pessoal, mas deve também direcioná-la ao interesse dos demais membros da sociedade. Disso decorrem outros mecanismos legais e constitucionais como a possibilidade de desapropriação ou direito de uso da propriedade pelo Poder Público em determinadas circunstâncias (art. 5º, incs. XXIV e XXV).

Como não poderia deixar de ser, sendo objetivo constitucional a construção de uma sociedade solidária, a própria Constituição repudia de maneira especial atitudes anti-solidárias como a prática do racismo, tangendo-o como crime inafiançável (art. 5º, inc. XLII). No mesmo tom, o Poder Constituinte originário repudiou outras práticas tidas como graves atentados à solidariedade social como o tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (art.5º, inc. XLIII).

A solidariedade não deixa de socorrer até mesmo aqueles que foram condenados criminalmente, sendo que a Constituição prevê uma série de limites às penas legais, assegurando ao preso direitos intocáveis pelo Estado e, ao cidadão comum, instrumentos (garantias) que lhe permitam assegurar-se contra os desmandos dos órgãos estatais (art. 5º, incs. XLV a LXXII), obedecido o devido processo legal.

Principal executor dos atos de solidariedade, o Estado “prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem insuficiência de recursos” (art. 5º, inc. LXXIV). Trata-se de preocupação de acesso à justiça, de forma que todos, indistintamente, possam recorrer ao Judiciário visando assegurar seus direitos.

Também o princípio da solidariedade determina que certos documentos essenciais sejam gratuitos para os reconhecidamente pobres (art. 5º, inc.LXXVI).

Cabe destacar, ainda, que o princípio em questão é inspirador até mesmo das relações internacionais, constando do art. 4º da Constituição que a República Federativa do Brasil que tem como princípio de suas relações internacionais, o de “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.

É de chamar atenção ainda ao fato de que o solidarismo, a solidariedade ou o mutualismo pode ser considerado um postulado fundamental do Direito da Seguridade Social, previsto de maneira implícita na Carta Magna Nacional.

O princípio do solidarismo na Seguridade Social implica na participação de todos, tanto nas obrigações quanto nos direitos reconhecidos para a conformação e utilização dos recursos.

A solidariedade se faz presente na Seguridade Social na medida em que as contingências sociais são distribuídas igualmente a todas as pessoas, bem como os benefícios, pois quando uma pessoa é atingida por alguma contingência da vida as demais continuam a contribuir para a cobertura do benefício do necessitado.

Constata-se que o princípio da solidariedade tem importância grandiosa quando a preocupação e a intenção do jurista se referir à efetivação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.

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No entanto, apesar de toda essa importância, ensina Fábio Konder Comparato em “Fundamentos dos Direitos Humanos”, que as contradições sofridas no século XX (denominado por ele como “era dos extremos”), trouxeram como conseqüência a precariedade do Princípio da Solidariedade Social, base dos direitos humanos de segunda geração, em razão da ressurreição universal das idéias individualistas, graças a neoliberalismo.

Diante das contradições sofridas na “era dos extremos”, indica Comparato que no momento histórico atual seria de grande valia se retomar a reflexão acerca dos fundamentos ou razão de ser dos direitos humanos, qual seja, o princípio da dignidade de pessoa humana. Pois de acordo com o citado jurista, a dignidade do ser humano - enquanto ser singular da natureza, dotado de uma série de capacidades e dimensões existenciais - o tornam especial e digno de respeito em si mesmo tanto pelo Estado quanto pelos demais cidadãos.

3. SOLIDARISMO CONTRATUAL

O "solidarismo" é uma expressão polissêmica no campo do direito. Pode referir-se, por exemplo, no campo das obrigações, à solidariedade ativa ou passiva, em que duas ou mais pessoas se obrigam ao cumprimento integral da prestação. No campo dos contratos quer significar a obrigação imposta aos contratantes de colaboração mútua, sobretudo para melhor deslinde de relações cada vez mais complexas entre os entes privados. Não se trata de uma pluralidade de deveres, mas de uma obrigação recíproca entre as partes, a ser observada durante toda a vida do contrato.

O contrato privado constitui, ainda hoje, um dos pilares fundamentais do Direito Privado, por ser a principal forma de inter-relação entre os cidadãos. O local de liberdade e autonomia do indivíduo, apesar de ser espaço privilegiado, deve obediência ao ordenamento jurídico. FOUCAULT, citado por Staut Jr. (2002, p. 273), afirma que o poder encontra-se difuso nas relações recíprocas entre os indivíduos - dentre elas o contrato – pois o poder, como se pretende, não está concentrado, mas assume várias formas no seio social. Os indivíduos, ao contratar, criam sua própria normatividade.

O solidarismo contratual pode ser descrito como a doutrina que erige como princípio do direito dos contratos a exigência de lealdade, solidariedade ou boa-fé e impõe aos contratantes a obrigação de colaborar. Como se viu, há pouco tempo é que a doutrina e a jurisprudência a respeito do solidarismo contratual reconheceram a socialização da relação contratual.

Com efeito, o abandono do individualismo excessivo nos termos do Código Civil de 1916 e sua substituição pela solidariedade social prevista constitucionalmente, produziu uma significativa alteração no âmago da própria lógica de todo o Direito Civil, inclusive da leitura do Direito Contratual.

A concepção dogmático-formalista de contrato vigorou durante o Estado Liberal, permeado pelo liberalismo e pelo individualismo, em que o contrato visa tão somente

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garantir o patrimônio e interesses individuais. Com o advento do Estado Social, o contrato passou a ser vislumbrado a partir da concepção ético-jurídica, segundo a qual o contrato deve ter por escopo a justiça social e a equidade. Agora, o Estado deixa de ser mínimo e passa a percorrer os caminhos que levam à igualdade e liberdade, que passam a ser materiais, ou jurídicas. Com a constitucionalização do Direito Civil - a publicização do direito privado - passa-se a valorizar a boa-fé contratual, a função social do contrato, cria-se institutos como a cláusula rebus sic standibus, dentre outros. E uma das políticas por ele adotadas chama-se solidarismo jurídico.

As violações mais intensas ao princípio do solidarismo jurídico encontram-se nos danos causados aos consumidores e ao meio ambiente.

Para Nelson Rosenvald (apud EHRHARDT, 2007):

(...)o direito de solidariedade se desvincula de uma mera referência a valores éticos transcendentes, adquirindo fundamentação e a legitimidade política nas relações sociais concretas, nas quais se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, à procura do bem comum (...) Longe de representar uma simples carta programática, ou um vago programa político, a solidariedade será padrão interpretativo-integrativo do sistema, referência de leitura para as outras normas constitucionais e o ordenamento. O art. 3º [CF/88] enceta na solidariedade a teleologia da justiça distributiva com referência à igualdade substancial. O princípio da solidariedade provoca a transposição do indivíduo para a pessoa. A liberdade absoluta que permitia a cada um atingir o máximo de suas potencialidades cede espaço para a projeção da pessoa que coexiste em sociedade.

Daniel Sarmento aduz que (2004, p. 338):

Ela [a solidariedade] significa que a sociedade não deve ser o locus da concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo, cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais.

No sistema jurídico brasileiro, a perspectiva solidarista contratual encontra fundamento no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil e no artigo 5º, inciso XXIII de nossa Constituição Federal, que torna imperiosa a tentativa de conciliação entre duas idéias aparentemente antagônicas: individualidade e dimensão social, que num processo dialético devem orientar o conteúdo e a direção das normas que regem as relações privadas.

É interessante notar que durante a vigência do Estado Liberal, o contrato adotava como diretriz a autonomia da vontade, em que a liberdade individual prevalecia em todas as circunstâncias, daí a obrigatoriedade dos contratos, que significavam lei entre as partes (pacta sunt servanda). Hoje, tal regra fora flexibilizada. O princípio da autonomia da vontade que fora, outrora, ilimitado, passou a sofrer a influência da longa manus do Estado. Por meio da aplicação das normas de ordem pública nas relações privadas e da interferência estatal na liberdade de contratar, surge o fenômeno do dirigismo contratual , ou seja, a intervenção do Estado na economia do contrato.

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Assim, de “autonomia da vontade” o princípio apresenta nova roupagem, nova leitura, passando a ser denominado pelos autores modernos de “autonomia privada”, consistindo na liberdade de as pessoas regularem, através dos contratos, seus interesses, desde que respeitados os limites legais.

O contrato apresenta basicamente três funções: econômica (o contrato é veículo de circulação de riqueza), pedagógica ou regulatória (o contato é instrumento para harmonizar interesses divergentes, antagônicos) e social (o contrato é um instrumento que torna viável a realização de interesses sociais).

Sobre a função social do contrato, vale lembrar que o contrato deve promover o bem-estar e a dignidade dos homens, devendo compatibilizar e harmonizar interesses sociais e individuais. Em outros termos, o contrato não pode lesar o exercício de direitos por terceiros e pela coletividade, já que existe no seio de uma sociedade.

O contrato estará conformado à sua função social quando as partes se pautarem pelos valores da solidariedade e da justiça social, quando for respeitada a dignidade da pessoa humana, dentre outros valores da sociedade. Neste sentido, cabe transcrever a lição de Nelson Nery Junior (2006, p. 411) sobre o tema:

O contrato tem de ser entendido não apenas com as pretensões individuais dos contratantes, mas como verdadeiro instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade. Interessa a toda a sociedade, na medida em que os standards contratuais são paradigmáticos para outras situações assemelhadas. Tudo o que ocorre relativamente a um contrato terá, forçosamente, repercussão em outros casos que digam respeito ao mesmo tipo de contrato. Essa é apenas uma das conseqüências da nova socialidade do contrato. Além de útil, o contrato tem de ser também justo.

Como se observa, a existência do contrato não depende apenas e tão-somente do consentimento, mas também de uma expectativa de confiança entre as partes, que significa a adoção de um comportamento que possa ser previsível à outra parte, estando assim apto a concretizar o princípio da função social previsto no texto constitucional. Presente, portanto, o princípio da confiança, sob a égide do solidarismo jurídico.

No entanto, o cuidado que devemos ter é para que tal doutrina não se torne uma justificativa ideológica a um intervencionismo desorientado. Sobre esse aspecto, há duas correntes de pensamento. Há quem defenda um solidarismo voluntário, e outra que coloca o solidarismo como um imperativo social, competindo ao magistrado até mesmo reescrever cláusulas contratuais. Ora, se se trata de princípio jurídico, o solidarismo é cogente, imperativo, de observância obrigatória ao Estado e à coletividade.

O Direito civil que se desenha hoje é pautado pela "colaboração intersubjetiva no tráfego negocial" – característica inerente ás relações jurídicas privadas contemporâneas.

Para que seja melhor visualizada a aplicação do princípio do solidarismo jurídico no ordenamento jurídico brasileiro, sob os aspectos da função social e da boa-fé, citar-se-á, a título de exemplo, algumas decisões do STJ - Superior Tribunal de Justiça, no que tange a direito contratual.

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RECURSO ESPECIAL Nº 437.607 - PR (2002/0061089-9) - STJ

RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DISTRATO. DEVOLUÇÃO DOS VALORES NA FORMA DE CARTA DE CRÉDITO. UTILIZAÇÃO PARA A AQUISIÇÃO DE OUTRO IMÓVEL NA MESMA CONSTRUTORA. ART. 53, CAPUT, C/C ART. 51, II, DO CDC. RECURSO NÃO CONHECIDO.

1. A análise da abusividade da cláusula de decaimento "é feita tanto frente ao direito tradicional e suas noções de abuso de direito e enriquecimento ilícito, quanto frente ao direito atual, posterior à entrada em vigor do CDC, tendo em vista a natureza especial dos contratos perante os consumidores e a imposição de um novo paradigma de boa-fé objetiva, eqüidade contratual e proibição da vantagem excessiva nos contratos de consumo (art. 51, IV) e a expressa proibição de tal tipo de cláusula no art. 53 do CDC".

2. Ao dispor o contrato que a devolução dos referidos valores ao adquirente se daria por meio de duas cartas de crédito, vinculadas à aquisição de um outro imóvel da mesma construtora, isso significa, efetivamente, que não haverá devolução alguma, permanecendo o consumidor-adquirente submetido à construtora, visto que, o único caminho para não perder as prestações já pagas, será o de adquirir uma outra unidade imobiliária da recorrente.

3. Recurso especial não conhecido.

RECURSO ESPECIAL Nº 476.649 - SP (2002/0135122-4) - STJ

Consumidor. Contrato de prestações de serviços educacionais. Mensalidades escolares. Multa moratória de 10% limitada em 2%. Art. 52, § 1º, do CDC. Aplicabilidade. Interpretação sistemática e teleológica. Eqüidade. Função social do contrato.

- É aplicável aos contratos de prestações de serviços educacionais o limite de 2% para a multa moratória, em harmonia com o disposto no § 1º do art. 52, § 1º, do CDC.

Recurso especial não conhecido.

4. CONCLUSÃO

De mero valor moral, o princípio da solidariedade ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio da Constituição de 1988. Este postulado deve ser visto mais como dever do que propriamente direito, sobressaindo-se como força antagônica ao individualismo exacerbado. Hoje é dever de toda a sociedade prestar auxílio aos fracos e desamparados, ainda que esse desejo possa inexistir no íntimo de alguns ou muitos cidadãos.

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O princípio da solidariedade tem juridicidade, devendo ser visto como basilar da ordem constitucional (no sentido criativo e interpretativo) além de servir como justificador de direitos fundamentais.

De certa forma, o princípio da solidariedade serve para explicar “por que razão” devem ser materializados os direitos fundamentais, constituindo, além de princípio, um sentimento fundador de todo o arcabouço legal.

A adoção de um novo paradigma de sociedade, chamada integradora, passa a ser pensada e buscada, vislumbrando-se a necessidade de adoção de políticas públicas e decisões sócio-econômicas que incluam todos os homens na convivência harmoniosa. Seres humanos integrados são os que têm garantia de elementos educacionais, culturais, econômicos e políticos para que possam viver como membros participantes ativos da sociedade brasileira.

Segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha (2004, p. 78):

O remédio jurídico, político e econômico contra a exclusão social é a solidariedade com o outro. A dignidade há que se ver pensada em sua condição de humanidade e interatividade. Há que ser digno com o outro para ser digno de si. (p. 78)

Uma concepção excessiva do princípio da solidariedade, vazada na idéia de que o indivíduo deve servir ilimitadamente à sociedade, pode conduzir ao autoritarismo, como já ocorreu com os regimes nazista e fascista que apresentavam exatamente esse pensamento. Por essa razão, o princípio da solidariedade deve ser adotado e efetivado, mas em plena harmonia com os demais princípios constitucionais. Direitos humanos não podem ser postos de lado sob o argumento da solidariedade.

Independentemente do resultado, o embate entre as supramencionadas visões antagonistas de contrato faz renascer as discussões em torno do assunto. Para a doutrina solidarista, o que deve dirigir as partes na celebração do negócio, durante sua duração e mesmo após o término da mesma, são a boa-fé, a lealdade e a solidariedade. A solidariedade repousa num único dever que gera uma multiplicidade de deveres de conduta exigíveis de qualquer das partes.

Vivemos novos tempos na teoria contratual pátria, que certamente exigirão dos operadores jurídico especial cuidado com a interpretação das disposições contratuais em atenção ao ideário de justiça material extraído das noções de dignidade humana e solidariedade social que promanam do texto constitucional. Há que se criar uma história de solidariedade justiça e respeito.

Cortiano denuncia:

Na história da humanidade não se logrou fazer a justiça vencer, e não haverá jamais vitória se não houver discussão e crítica. Se não aprendermos com nossos erros, não haverá justiça. Se não reinventarmos o direito, não haverá justiça. Se não houver respeito à pessoa humana, não haverá justiça. Haverá escuridão.

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Ditas estas palavras, encerra-se o presente estudo.

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[1] Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, [...].

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, [...].

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, [...].

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, [...].

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, [...].

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, [...].

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Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, [...].

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, [...].

7102