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O processo de escolarização da viola caipira

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Saulo Sandro Alves Dias

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE EDUCAAO

    SAULO SANDRO ALVES DIAS

    O processo de escolarizao da viola caipira:

    novos violeiros (in)ventano modas e identidades

    SO PAULO 2010

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    SAULO SANDRO ALVES DIAS

    O processo de escolarizao da viola caipira:

    novos violeiros (in)ventano modas e identidades

    Tese apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Linha de Pesquisa - Linguagem e Educao

    Orientador: Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto

    SO PAULO 2010

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    FICHA CATALOGRFICA

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    375.75 Dias, Saulo Sandro Alves

    D541p O processo de escolarizao da viola caipira: novos violeiros (in)ventano moda e identidades / Saulo Sandro Alves Dias ; orientao Valdir Heitor Barzotto. So Paulo : s.n., 2010.

    244 p. : il., fotos. mapas.

    Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Educao. rea de Concentrao: Linguagem e Educao) - - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.

    1. Msica - Ensino 2. Viola caipira Ensino - Mtodos 3. Prtica de ensino 4. Identidade cultural 4. Escolarizao I. Barzotto, Valdir Heitor, orient.

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    FOLHA DE APROVAO

    Saulo Sandro Alves Dias O processo de escolarizao da viola caipira: novos violeiros (in)ventano modas e identidades

    Tese apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. :______________________________________________________________

    Instituio:_____________________________________________________________ Assinatura: ____________________________________________________________

    Prof. Dr. :______________________________________________________________

    Instituio:_____________________________________________________________ Assinatura: ____________________________________________________________

    Prof. Dr. :______________________________________________________________

    Instituio:_____________________________________________________________ Assinatura: ____________________________________________________________

    Prof. Dr. :______________________________________________________________

    Instituio:_____________________________________________________________ Assinatura: ____________________________________________________________

    Prof. Dr. :______________________________________________________________

    Instituio:_____________________________________________________________ Assinatura: ____________________________________________________________

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    Para

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo imensamente minha me e minha v, Dona Valdemaria e Dona Alice, por terem se colocado entre a linha do horizonte e meus olhos, e a todo carinho que recebi de minha famlia: Tio Batista, Z, Vincius, Gabriela, Carolina, Luana, Morgana, Ingrid, Cau e Geovana.

    Ao orientador Valdir Barzotto, minha sincera gratido pela amizade, orientao, entusiasmo e compromisso com que me guiou durante a pesquisa.

    Ao Mrlio Barcellos e Victor de So Jos, pessoas com quem ponteei muitas idias e harmonias, minha gratido sempre.

    constelao de amigos que tenho, s posso dizer que sou muito, muito grato pelas parcerias que formamos ao longo destes ltimos anos: Vera Gouveia, Marcelo Costa, Cibele Krause, Rita Bottega, Claudia Zanini, Patrcia Borges, Cristina Gutierrez (e toda a generosa famlia Gutierrez), Z Tarciso e Antnio, Guilherme Massara, Gilson Ianinni, Paulo Jitcoviski, Lana Carneiro, Elanir Carvalho, Fernanda Arantes, Denise Sales, Priscila Lizardo, Marcia Resende, Srgio Seabra, Katiene Nogueira, Regma Santos, Luiz Humberto, Lucilene Soares, Cleusa, Mnica, Marcia, Robson Cala, Gustavo Garcia, Michele Mabelli, Daniel Lara, Sandra Kison, Dami Glades, Rogrio Praxedes, Marcio Gamma, Juliano Catrimani, Wagner Dias, Debora Lorentz, Fausto Jacob, Marisa Mateus, Rozlia Bezerra, Silvio Diogo, Joo Soeiro, Giovanni Matarazzo, Lilia Neves, Sandro Detoni, Fernando Fialho, Diane, Luciana Paranaba, Vanir, Rafael Ramalhoso, Joo Soeiro, Lcia Sartorelli, Leandro Carvalho, Jesuna Fialho e sua famlia.

    A todos os violeiros, meus mais sinceros agradecimentos pela colaborao com a pesquisa. Assim, no posso deixar de citar: Ivan Vilela, Roberto Corra, Adelmo Arcoverde, Zeca Collares, Braz da Viola, Rui Torneze, Wagner Cruz, Eurpedes de Paula, Marco Antnio, Alexandre Bisinotto, Kleber, Paulo Santana, Marcos Mesquita, Andra Carneiro, Marcus Ferrer, Fernando Caselatto, Tinoco, Joo Paulo Amaral, Rafael Marin, Rogrio Gulim, Bira, Levi Ramiro, Marcelo Colla, Tiago de Lima, Nelson Zeferino, Ricardo Vignini, Z Helder, Abel Santos, Nuno Nicolau, Vitor Sardinha, Roberto Moniz, Rafael Costa, Ricardo Melo, Bruno Bettencourt, Pedro Mestre, Lzaro Silva, Wellington Silva, Z Guerreiro, Gabino, Milton Arajo, Valdir Verona, Sidnei Duarte, Antnio Azevedo, Bruno Costa, e Jlio Santim. Por ltimo, agradeo o apoio da Fapesp.

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    A viola infinita. A gente nunca aprende,

    mas se acostuma com ela.

    Tio Vigrio (violeiro, congadeiro e folio do reisado de Patos de Minas, MG)

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    RESUMO

    ALVES DIAS, Saulo Sandro. O processo de escolarizao da viola caipira: novos violeiros (in)ventano moda e identidades. 2010. 244 p. Tese (Doutorado), Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

    Palavras chave: Viola Caipira, Orquestras de Viola, Ensino, Escolarizao da viola, mtodo de viola, histria da educao dos cordofones

    Este trabalho estuda o processo de escolarizao da viola caipira. Considerando que se trata de um processo que vem se constituindo nas ltimas dcadas na regio centro-sul do Brasil, analisa suas dimenses e implicaes em relao ao instrumento, bem como em relao aos tocadores e s representaes identitrias que se formaram ao longo do sculo XX. A tese a ser desenvolvida a de que a formalizao de prticas musicais e a sistematizao de tcnicas de execuo do instrumento junto a diversas instncias de consagrao tm contribudo para forjar as identidades culturais de ambos, viola caipira e violeiro. Nesse sentido, afirma-se que, no mbito de instituies provedoras de cultura e instituies escolares, est sendo gerada o que se pode considerar a tcnica moderna de viola caipira. Por outro lado, mostra-se que esse processo tem se dado em funo das aes socioculturais de novos violeiros, cuja formao terico-musical sistematizada na academia ou fora dela, por meio de processos hbridos que envolvem, especialmente, a tcnica de viola caipira da tradio oral e de outros instrumentos.

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    ABSTRACT

    ALVES DIAS, Saulo Sandro. The scholarization process of the viola caipira: new players (inventing) trend and identities. 2010. 244 p. Doctoral Thesis, Faculty of Education, University of Sao Paulo, So Paulo, 2010.

    Keywords: Viola caipira, viola orchestras, teaching, scholarization of the viola, viola method, history of the education of the chordophones.

    This work studies the scholarization process of the viola caipira. Considering that this is a process, which is being constituted on the centre-south area of Brazil in the last decades; the dimensions and implications of the process regarding the instrument, as well as its relation to the players and the identitarian representations formed throughout the 20th century are analyzed. The theory to be developed claims that the formalization of musical practices and the systematisation of the instruments techniques of execution, along with several

    consecration instances, have contributed to forge the cultural identities of both, viola caipira and player. In that sense, it is asserted that, in the field of culture-provider institutions and scholar institutions, it is being generated what can be considered the modern technique of the viola caipira. On the other hand, it is shown that the process mentioned has occurred as a result of the socio-cultural actions of the new players, whose theoretical-musical formation is

    systematized inside or outside the academy, through hybrid processes that involve, especially, the technique of the viola caipira from oral tradition, and techniques of other instruments.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Teras paralelas e sextas paralelas 15 Figura 2 O rasgueado 16 Figura 3 O arraste 16 Figura 4 Altar de So Gonalo do Amarante 25 Figura 5 Escultura de So Gonalo brasileiro 25 Figura 6 Encordoamento para viola So Gonalo 26 Figura 7 Afinao em Cebolo em E 109 Figura 8 Afinao em Cebolo em D 109 Figura 9 Encordoamento Cobra (bronze 80/20) 115 Figura 10 Encordoamento Cobra (tenso leve) 115 Figura 11 Encordoamento Canrio 116 Figura 12 Encordoamento Rouxinol (R-35) 116 Figura 13 Encordoamento Giannini Acstico 117 Figura 14 Encordoamento Torelli 117 Figura 15 Encordoamento DAddario 118 Figura 16 Encordoamento Fenison (F-52) 118 Figura 17 Encordoamento Tangar 118 Figura 18 Acordes de viola para o acompanhamento de Saudade da minha

    terra 130

    Figura 19 Ritmo de toada 131 Figura 20 Capa do Mtodo Prtico para viola 142 Figura 21 Capa do Mtodo Prtico para viola 143 Figura 22 Capa do Mtodo para viola caipira 144 Figura 23 Nomenclatura da viola 147 Figura 24 Mo esquerda e mo direita 148 Figura 25 Afinao Cebolo em E 151 Figura 26 Acordes do campo harmnico de MI maior 155 Figura 27 Mtodo simples para viola 158 Figura 28 As partes da viola 163 Figura 29 Posio clssica 164 Figura 30 Posio do corpo e da viola 165 Figura 31 Posio inclinada 166 Figura 32 Posio da Mo direita 167 Figura 33 Digitao da mo direita 168 Figura 34 Unha da mo direita 169 Figura 35 Ataque da unha sobre a corda 170 Figura 36 Digitao dos dedos da mo esquerda 171 Figura 37 Posio da mo esquerda 171 Figura 38 Posio do polegar esquerdo 172 Figura 39 Partitura de viola e tablatura 173 Figura 40 Notao musical da viola 173 Figura 41 Matada percutida 175 Figura 42 Exerccios de mo esquerda - 1234 176 Figura 43 Escala duetada 177 Figura 44 Ponteio 178

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    Figura 45 Cordas soltas 175 Figura 46 Escala cromtica 179 Figura 47 Ponteio 179 Figura 48 Ritmos de cateret 180 Figura 49 Capa do Mtodo de viola-de-cocho 186 Figura 50 Oficina de Adelmo Arcoverde 191 Figura 51 A viola terceirense 195 Figura 52 A viola micaelese 195 Figura 53 Aula de viola da terra na sede Grupo de Baile da Cano Regional

    Terceirense 197

    Figura 54 Capa do manual de viola terra de Ricardo Melo 199 Figura 55 Tcnica de Figueta 199 Figura 56 Tcnica de Trinado 200 Figura 57 Vitor Sardinha tocando viola de arame - 4 junho de 2009 202 Figura 58 Aula de viola de arame na Associao Musical e cultural

    Xarabanda 203

    Figura 59 Aula do Pedro Mestre de viola campania 204 Figura 60 Aula da Disciplina de Cante Alentejano e Msica Tradicional 205

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    SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................................1 CAPTULO I A TRADIO E ESCOLARIZAO DA VIOLA CAIPIRA ....................10 1.1 A tradio da viola caipira..................................................................................................10 1.1.1 O ensino de viola na tradio oral ...................................................................................18 1.1.2 Promessa de violeiro........................................................................................................20 1.1.3 A f no pacto e na simpatia .............................................................................................23 1.1.4 A concepo do ensino de viola caipira refletida nas duplas ..........................................27 1.1.6 Sangue Novo ...................................................................................................................34 1.1.7 Os violeiro embruio .......................................................................................................40 1.2 A escolarizao da viola caipira .........................................................................................42 1.2.1As modalidades de educao musical: formal, no-formal e informal ............................45 1.2.1.1 Educao formal ...........................................................................................................45 1.2.1.2 O ensino no-formal: o caso das orquestras de viola ...................................................48 1.2.1.3 Quadro da distribuio geogrfica das orquestras de viola ..........................................50 1.2.1.4 A educao informal.....................................................................................................56 1.2.1.5 O incio e as dimenses da escolarizao.....................................................................57 1.2.1.6 Quadro da distribuio geogrfica dos cursos de viola caipira ....................................59 CAPTULO II AS VORTA QUE O MUNDO D ................................................................66 2.1 A Viola Quebrada do Jeca Tatu .........................................................................................66 2.2 A Viola em Disparada .......................................................................................................71 2.3 Uma andorinha s no faz vero ........................................................................................75 2.4 Em tempo de avano: o desencadeamento da escolarizao da viola caipira ....................79 2.4.1 Acerca da formao violonstica dos professores de viola..............................................81 2.4.2 Em festa de nhambu, jacu no entra: a escolarizao do violo......................................82 2.4.3 O violo e a viola: algumas analogias .............................................................................91 2.5 As novas prticas e representaes do rural .......................................................................94 2.5.1 Msica instrumental e independente: um novo segmento musical de viola ...................97 2.6 As parcerias ......................................................................................................................101 2.6.1 Os encontros de viola ....................................................................................................105 2.6.2 Os luthiers e as violas de concerto.................................................................................107 2.6.3 Os encordoamentos e a padronizao da afinao cebolo em D .................................109 2.6.4 O mercado editorial de viola .........................................................................................119

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    2.6.4.1 O mtodo das duplas caipiras .....................................................................................122 2.6.4.2 Os impressos dos professores de viola .......................................................................125 2.6.4.3 A tipologia dos impressos ..........................................................................................126 2.6.4.4 lbuns de composies ..............................................................................................127 2.6.4.5 lbuns Etnogrficos ...................................................................................................127 2.6.4.6 lbuns de acompanhamento.......................................................................................128 CAPTULO III ENTRE OS CURSOS E OS MTODOS: AS IDENTIDADES DA VIOLA CAIPIRA ................................................................................................................................133

    3.1 Os desafios da escolarizao ............................................................................................133 3.2 Dos cursos ........................................................................................................................135 3.3 Os mtodos de viola .........................................................................................................140 3.4.1 O mtodo das duplas caipiras ........................................................................................141 3.4.2 A morfologia da viola....................................................................................................146 3.4.3 Digitao das mos direita e esquerda...........................................................................147 3.4.4 O encordoamento e a afinao cebolo em E................................................................150 3.5 Os mtodos dos professores de viola................................................................................159 3.5.1 Morfologia da viola .......................................................................................................162 3.5.2 Posies do corpo e da viola..........................................................................................163 3.5.3 A mo direita .................................................................................................................166 3.5.4 Nomenclatura dos dedos da mo direita........................................................................167 3.5.5 As unhas ........................................................................................................................169 3.5.6 Mo esquerda.................................................................................................................170 3.5.7 Escrita musical...............................................................................................................172 3.5.8 A sinalizao dos efeitos ...............................................................................................174 3.5.9 Exerccios da tcnica de viola caipira............................................................................175 CAPTULO IV A ESCOLARIZAO DE OUTRAS VIOLAS.......................................183 4.1 As distncias entre as violas .............................................................................................183 4.2 A Viola-de-cocho .............................................................................................................185 4.3 A Viola Nordestina...........................................................................................................188 4.4 As Violas Portuguesas ......................................................................................................192 4.5 A Viola da Terra ou Viola de Arame ...............................................................................195 4.5.1 O Tipo Terceirense ........................................................................................................196 4.5.2 O Tipo Micaelense ou de Dois Coraes ......................................................................199 4.6 A Viola de Arame.............................................................................................................201

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    4.7 A Viola Campania ..........................................................................................................204

    5. Consideraes Conclusivas ................................................................................................207 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................216

  • INTRODUO

    A viola brasileira? Sim, brasileira, e caipira, nordestina, sertaneja, de dez cordas, de arame etc. Com qualquer uma dessas caracterizaes identifica-se o instrumento viola. Mas antes de ser o que representa simbolicamente para um violeiro, sertanejo ou urbano, ela uma viola, no sentido amplo do termo, tambm portuguesa. Ou melhor, ela veio com a cultura dos colonos e missionrios jesutas do reino de Portugal, dado histrico que, apesar de trafegar correntemente nas ltimas dcadas no Brasil, no alcanou um nvel de discusso que superasse as construes simblicas em torno do instrumento. O fato que, no seu trotear de mais de quatro sculos, de uma tradio para outra (da oral para a fonogrfica, no sculo XX), a viola abrasileirou-se, tornando-se um instrumento com nome composto: viola caipira.

    Com a alcunha que a identifica como um smbolo cultural daquele que habitava os sertes, o caipira, a viola emancipou-se de suas origens, porm, ao urbanizar-se trouxe na esteira diversos elementos da cultura ldico-religiosa e da tcnica do instrumento portugus. Com efeito, recuando no tempo, possvel perceber que a viola ibrica tambm, guardando estreitas relaes com outros cordofones ainda mais antigos. Enfim, a organologia dos cordofones forma uma trama bastante complexa, levando em conta as rotas de migrao e, consequentemente, as hibridizaes pelas quais passou (e ainda passa) medida que era introduzida em novos lugares sob novas condies socioculturais.

    Atendo-se a Portugal, lcus de onde se disseminaram vrios cordofones, a viola no se restringia a um nico tipo, havendo pelo menos seis variantes, diferentes em tamanho, forma e afinao. Com a migrao para o Brasil, manteve as nuanas oitavadas da forma, mas com algumas variaes, enquanto foi se espalhando pelo vasto territrio brasileiro. Porm, os violeiros, igualmente transplantados com o instrumento, misturados e germinados, rebatizaram a viola com diversos nomes. Alm disso, inventaram tradies, representadas pela criao de diversos gneros e pela reelaborao de outros tantos elementos musicais.

    Em razo da longevidade desse processo de gestao musical no interior de tradies caipiras e das marcas do desenvolvimento do segmento sertanejo, diante dos desdobramentos de sua escolarizao o epteto caipira reafirma sua importncia. Ainda assim, a histria particular da viola caipira no pode ser desvinculada das histrias de suas congneres, sejam as brasileiras ou as portuguesas, especialmente porque esses cordofones voltaram a confrontar dois universos musicais (o luso e o brasileiro) que estiveram separados. Nas ltimas dcadas

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    tem havido intercmbio entre alguns tocadores de ambos os pases, algo que extrapola a comunicao no espao virtual. Este intercmbio pode alcanar uma fora expressiva medida que se amplie essas trocas, em que msicas dos portugueses passem a fazer parte do repertrio de msicos brasileiros e vice-versa.

    Estudar a escolarizao da viola implica tocar em questes seculares a fim de que se tenha uma viso mais consistente desse processo. Logo, no deve se limitar o estudo ao recorte temporal de sua institucionalizao no ltimo quartel do sculo XX, pois a institucionalizao do ensino da viola marca apenas mais uma etapa de um processo recente, apesar de composto por vrias camadas. Levando em conta a dimenso deste processo, h que contemplar a heterogeneidade cultural de cada lugar em que h manifestaes que fazem uso do instrumento.

    A escolarizao da viola um processo novo em diversos lugares, ainda que a prtica do instrumento nestes lugares seja antiga. O termo novo, aplicado viola caipira, no se imputa a uma noo daquilo que substitui algo j superado, mas, neste caso, refere-se quilo que brota do antigo, a partir de infuses de elementos socioculturais diferentes. Entre as diversas definies que o dicionrio Houaiss1 (2001) traz do verbete novo destacam-se algumas que podem ser aplicadas ao contexto que se pretende abordar:

    que se encontra no incio de um ciclo, de um processo que se caracteriza pela atualidade, pela contemporaneidade; que ingressou recentemente em (instituio, empresa etc.); cuja forma, estrutura ou aparncia se mostra modificada em relao anterior;

    Ou seja, o novo, aqui, possui relao com o dar a conhecer outras categorias de tocadores buscando legitimao musical em espaos anteriormente no ocupados. Refere-se a msicos que esto estrategicamente posicionados entre a ebulio da tradio e a introduo de elementos musicais. Em se tratando da pluralidade da formao dos msicos, deve-se considerar a imensa diversidade de violeiros inseridos nesse mbito. Tratar do novo como um fato recente remete-nos, em contrapartida, ao peso da tradio sobre a histria da viola.

    No seria exagero afirmar que o contexto musical da viola jamais havia passado por transformaes to intensas quanto as que ocorrem atualmente, ainda que no sculo XX tenha se registrado muitas outras, seja a disseminao da viola no espao urbano ou o desenvolvimento do segmento musical sertanejo. Percebe-se que hoje intenso o trnsito

    1 Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Verso Eletrnica 1.0. Editora Objetiva, 2001

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    musical em torno da viola caipira em algumas regies dos estados do Paran, Minas Gerais, Gois, So Paulo, Distrito Federal, e at na cidade do Rio de Janeiro possvel encontrar ecos desse fluxo. Para a cidade de So Paulo, especialmente, convergem eventos dedicados ao ensino do instrumento, alm de uma programao cultural extensa, contnua e distribuda em diversas instituies ao longo do ano, em torno da viola.

    O que se nota no contexto atual que tais transformaes tm contribudo para a projeo da viola em outras cidades nas quais suas prticas musicais no estavam em evidncia. De fato, surgiram msicos profissionais, desenvolveu-se um segmento fonogrfico, constitudo por um imenso repertrio, gneros musicais foram inventados e, no terreno do ensino, rompeu-se com o paradigma calcado tradicionalmente na oralidade. Por isso, uma das consequncias dessa disseminao da prtica da viola a reconfigurao das modalidades de ensino desse instrumento.

    Tendo em vista esta mescla de elementos que atuam sobre o processo de escolarizao da viola caipira, objetivamos analisar tal processo, sua dimenso e implicaes sobre as representaes identitrias do instrumento e dos tocadores. Em outras palavras, este trabalho analisa o surgimento e as inter-relaes da escolarizao da viola caipira com as transformaes identitrias desta, a partir das prticas engendradas por novos violeiros de formao terico-musical sistematizada, juntamente com a adeso dos violeiros da tradio oral.

    Dentre os objetivos especficos desta tese, destacam-se: compreender os mecanismos que operam na construo simblica do instrumento designado por viola caipira inserido na tradio oral; identificar elementos da formao e as aes socioculturais dos novos violeiros que foram determinantes pra desencadear a escolarizao; apresentar algumas caractersticas do contexto favorveis s intervenes dos professores de viola caipira e ao mercado de bens simblicos (encordoamentos, mercado editorial, segmento musical); conhecer as principais caractersticas da escolarizao dos seguintes cordofones: a viola nordestina, a viola de cocho e as violas portuguesas (viola da terra, viola micaelense, viola de arame e viola campania); analisar alguns mtodos de viola, a fim de depreender os elementos que esto formando a tcnica de viola caipira na contemporaneidade.

    Realizar um estudo sobre o processo de escolarizao da viola caipira justifica-se diante da necessidade de se compreender suas dimenses e consequncias sobre este instrumento que emerge da tradio oral para o mbito do espao escolar, lcus em que o

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    conhecimento permeado pela cultura escrita. Para melhor compreender o significado deste momento histrico, vale reiterar que a viola caipira esteve atrelada a prticas consolidadas na tradio oral, por vezes restrita a ambientes em que estava imersa em rituais ldico-religiosos, ou limitada a ambientes em que prevalecia o gosto pela produo de msica sertaneja raiz.

    A partir do deslocamento da viola caipira em direo institucionalizao e da possvel mudana do suporte oral para o escrito, possvel vislumbrar o estabelecimento de outro paradigma para seu ensino. E, em certa medida, esta mudana torna-se passvel de ocorrer em funo de o instrumento ser marcado exatamente por um tipo de ensino que no se apia na sistematizao terico-musical semelhante da escola de msica. Embora se considere que existam prticas musicais sistematizadas no interior da tradio oral da viola, o que se quer apontar aqui para o seu lado no-escolar, sem a mediao de um professor e de um programa de ensino formal.

    O processo de escolarizao, assim, pode espelhar um momento de diversas transformaes socioculturais medida que se expande para reas em que prevalecia uma forma de se tocar e ensinar o instrumento. De fato, tal processo j est ocorrendo, e de maneira dinmica, devido ao considervel nmero de tocadores presentes na cena musical, porm, at o momento, esse contexto sociocultural no foi cotejado com o educacional. Em certa medida, o movimento cultural em torno do instrumento tem chamado a ateno da comunidade acadmica e, com isso, tem-se produzido pesquisas nas reas de musicologia, histria e antropologia.

    possvel constatar que os estudos envolvendo o ensino da viola caipira tocam nesta temtica de maneira tangencial, porm, necessrio conhecer as diversas tramas desse processo, posto que um instrumento que atravessou diversos momentos culturais no territrio brasileiro que remontam ao perodo colonial. Entre outros fatores relevantes, a viola faz parte de um vasto e complexo segmento musical que percorre a msica brasileira desde a dcada de 1930, constitudo por inmeros tocadores que se mantiveram margem do ensino institucionalizado. Assim, este trabalho que ora se apresenta, pretende se lanar em uma anlise pioneira cotejando os acontecimentos socioculturais relacionados escolarizao da viola caipira.

    Face ao fluxo do instrumento na programao cultural de diversas instituies provedoras de cultura, mais sensvel ao senso comum, preciso lanar luz para o que d suporte aos msicos em evidncia, e tambm para as escolas de msica, as quais ajudam a

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    proporcionar tais formaes. Ou seja, aqui est se considerando a escola com um espao privilegiado no qual o instrumento mantm o dilogo com outras culturas, interagindo com outros instrumentos. Ademais, em funo de a escolarizao ser ainda relativamente recente em diversas localidades, h que se observar sua importncia no sentido de agregar tocadores e professores em torno da tradio de viola caipira e, por conseguinte, na valorizao de prticas ligadas msica sertaneja raiz. Alm disso, deve-se destacar deste contexto o alargamento de suas fronteiras culturais em funo das relaes estabelecidas com outros cordofones, como a viola nordestina e a viola de cocho, que tambm esto passando por processos de escolarizao. Assim, preciso considerar a existncia de um movimento que introduz uma nova dinmica cultural no ensino desses instrumentos.

    No interior desse novo contexto educacional, a escolarizao da viola caipira permite vislumbrar um importante fenmeno que inaugura uma nova conjuntura na educao musical brasileira para os instrumentos de cordas dedilhadas que, at bem pouco tempo (cerca de vinte e cinco anos atrs), s possuam a cadeira de violo nas escolas de msica. Vale dizer que, alm da viola, hoje, possvel encontrar diversos instrumentos sendo escolarizados, cujo principal veio de expresso a cultura popular. Caminhando para o ensino escolar, percebe-se ento instrumentos incorporando novas prticas musicais e adquirindo outras linguagens.

    Assim, cumpre destacar que um dos fatos mais importantes da escolarizao da viola a perspectiva de que suas implicaes no recaem somente sobre as prticas e representaes do instrumento, mas tambm sobre aquele que o toca. Ou seja, preciso considerar um amplo quadro de mudanas que vai desde o instrumento, msica por ele produzida, e, especialmente, sobre o violeiro. Nessa perspectiva, a complexidade da escolarizao abrange vrios elementos que esto imbricados em um mesmo processo.

    Assim, diante da escassez de trabalhos sobre o ensino de viola, medida que novos dados da pesquisa vinham baila, o projeto inicial foi redimensionado. Em princpio, pensou-se em estudar somente o processo de escolarizao da viola caipira, o que j representava uma rea de insero do instrumento bastante ampla e diversificada. E, de fato, a pesquisa concentra-se sobre a escolarizao da viola caipira; todavia este estudo tambm inclui os processos de escolarizao da viola nordestina, da viola-de-cocho, alm das violas portuguesas, uma vez que tais instrumentos tambm passam por processos de escolarizao que guardam semelhanas com o da viola caipira.

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    Ao invs de realizar um estudo centrado sobre um nico instrumento ou uma regio especfica, ou ainda sobre particularidades de uma nica cultura escolar (em nvel pedaggico, metodolgico, tcnico-instrumental etc), buscou-se compreender o desenrolar do processo de escolarizao em uma dimenso mais ampla. O momento da criao dos primeiros cursos institucionalizados foi considerado o ponto de partida e o epicentro do processo de escolarizao. No entanto, para se compreender a gama de elementos mobilizados e deslocados com a escolarizao, bem como o nvel das transformaes engendradas com essas mudanas no ensino do instrumento, elegeu-se alguns tpicos para serem cotejados: o ensino na tradio oral, o mercado de bens simblicos, alguns apontamentos sobre a escolarizao do violo, e os fatores que provocaram o desencadeamento da escolarizao da viola caipira.

    Este trabalho, portanto, abarca o processo de escolarizao da viola caipira na regio centro-sul do Brasil, tendo como ponto de partida a criao dos primeiros cursos desse instrumento a partir da dcada de 1980. Apesar da delimitao temporal, o estudo aciona elementos scio-histricos correlacionados cultura da viola presentes em vrias pocas. Quando se reporta ao termo processo, prope entender como se processa ou se organiza este emaranhado da paisagem sonora e dos sujeitos histricos que participam direta ou indiretamente do fenmeno.

    O estudo abrange tanto os cursos de viola institucionalizados, como aqueles fora do espao escolar, bem como aqueles que so ministrados em oficinas no terceiro setor. Incluir os cursos das cidades circunscritas na regio centro-sul do Brasil, mas com algum destaque para o estado de So Paulo, cuja atividade e produo cultural so mais intensas, dado a influncia cultural que pode exercer sobre outras cidades em que a viola tenha insero limitada.

    Vale destacar que, diante da pluralidade da nomenclatura deste cordofone, a fim de precisar o instrumento, quando se fizer necessrio para evitar possveis equvocos, toma-se a seguinte precauo: utiliza-se o termo viola, sem especificaes, quando se referir ao instrumento de maneira genrica, abarcando a gama de cordofones situados em qualquer tempo e espaos. Por outro lado, em se tratando de um instrumento de uma cultura especfica, utiliza-se o termo que o especifica, por exemplo, viola de cocho para o instrumento tpico do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; viola nordestina para o do nordeste do pas e viola caipira para o dos Estados de So Paulo, Minas Gerais, Gois e Paran.

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    Aproveita-se, tambm, para chamar a ateno para o termo violeiro que comumente determina aquele que tange a viola no Brasil, mas que em Portugal igualmente usado para o construtor do instrumento. Como a pesquisa lana luz sobre aquele que ensina a tocar, o professor de viola, aqui se vale do termo violeiro, precedido ou no de novo; assim, novo violeiro, em referencia s novas categorias de msicos.

    O corpus da pesquisa bastante diversificado, e foi se constituindo ao longo das investigaes bibliogrficas e medida que as pesquisas de campo traziam novos elementos baila. Como dito anteriormente, em funo de no haver pesquisas sobre a histria da educao dos cordofones, foi durante o levantamento dos dados que se fez o recorte para esse estudo. No incio do trabalho, mapeou-se apenas seis escolas de msica com cursos de viola caipira, mas durante a pesquisa esse nmero se multiplicou, assim como o nmero de eventos (shows, oficinas, festivais), influenciando nos caminhos a serem percorridos neste trabalho.

    O mesmo se deu com as orquestras de viola, que se quadruplicaram num curto espao de tempo. A dimenso desse fenmeno e do nmero de msicos envolvidos obrigou-nos a rever a maneira de abordagem do processo de escolarizao. Alm disso, a viola nordestina e a viola de cocho, e mais as violas portuguesas (viola terceirense, viola micaelense, viola campania, viola de arame)2, despertaram a ateno do pesquisador, pois seus movimentos de insero no ensino comearam a se cruzar com o da viola caipira, medida que se conhecia os atores da escolarizao.

    Assim sendo, o corpus da pesquisa formado por entrevistas aos tocadores e professores de viola, preferencialmente dos que atuam em escolas de msica (algumas das entrevistas foram realizadas por meio de questionrio). Outros dados foram coletados de algumas escolas de msicas por meio do acesso aos planos de trabalho e informaes disponveis nos sites das escolas de msica. Por meio da internet ainda foi realizada constantes pesquisas para atualizar dados e informaes acerca do contexto atual. Assim, consultou-se diversos sites: de pesquisadores de cultura popular, de violeiros, professores de viola, orquestras de viola, muitos dos quais traziam informaes necessrias sobre acerca da programao cultural do instrumento (cursos, encontros e festivais de viola). Consultou-se tambm os sites da Associao Brasileira de Educadores Musicais (ABEM), da Associao Nacional de Pesquisadores de Ps-graduao em Msica (ANPPOM), Dicionrio Eletrnico

    2 Realizou-se pesquisa de campo em Portugal, nas cidades que h manifestaes de viola.

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    Cravo Albim, a programao cultural da Revista E (Arquivos contendo a programao do SESC de 2004 a 2008). Alm disso, consultou-se os impressos produzido professores.

    A fim de cumprir os propsitos deste trabalho, o texto encontra-se dividido em quatro captulos. O primeiro, dividido em duas partes, inicialmente abordar as razes do instrumento em seu amplo universo cultural, a tradio oral, sob o vis da relao ensino-aprendizagem que perpassa sua histria entre os violeiros. A viola caipira ser investigada tendo em vista as manifestaes e concepes musicais de onde afloram sua identidade cultural caipira e as formas de transmisso de seu conhecimento. Segue-se um caminho que enxerga a identidade cultural do instrumento a partir do seu carter hbrido e dinmico, ao invs de puro e esttico, por considerar que em seu bojo circulam diversas vertentes musicais.

    Em seguida, sero apresentadas as caractersticas do processo de escolarizao, introduzindo-se discusses tericas, e averiguando sua dimenso e consequncias sobre os vrios setores da cultura. Para tanto, recorre-se s prticas engendradas pelos professores de viola, momento em que sero estudadas as modalidades de educao musical, valendo-se de amostras dos cursos e das orquestras de viola mapeadas.

    Tendo como foco de estudo a formao musical e as aes dos novos violeiros, o segundo captulo destacar as aes sobre o mercado de bens simblicos, alm das parcerias com as instituies provedoras de cultura, com vistas a compreender os fatores que contriburam para o desencadeamento da escolarizao. As aes legitimadas por tais parcerias podem estar contribuindo para a afirmao desses msicos e, por conseguinte, indiretamente interferindo na escolarizao. Se por um lado, nas ltimas dcadas, o fenmeno da escolarizao comea a se disseminar, em contrapartida, tambm sero apresentadas algumas questes histricas que dificultaram sua escolarizao ao longo do sculo XX.

    Depois de situar a natureza da viola caipira inserida na tradio oral, bem como a formao e papel dos novos violeiros no processo de escolarizao, no terceiro captulo ser retomada uma das questes norteadoras deste estudo, que justamente a relao da escolarizao com a identidade cultural da viola caipira. Para discutir esta questo, foram selecionados dois elementos: em um primeiro momento, ser abordado o contedo escolar e a perspectiva dos professores de viola, e no segundo momento, os impressos (os mtodos de viola) que fazem parte dos programas de algumas escolas, pois estes so produzidos para atender demanda do ensino institucionalizado.

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    Enfim, no quarto captulo esto presentes, de maneira tangencial, aspectos do processo de escolarizao de outros cordofones que guardam singularidades em relao congnere designada por viola caipira. Essas singularidades contribuem para se refletir nos desdobramentos da escolarizao de cada um dos instrumentos, mas tambm para se observar a da viola caipira. Outro fator que motiva esse estudo relaciona-se ao fato de que, alm de estarem escolarizando a viola, comeam a haver alguns tipos de intercmbios culturais entre msicos e professores. Neste tpico, em funo do processo de ensino, essas trocas podem estreitar os vnculos e as hibridizaes entre tais instrumentos. Ser objeto de discusso a escolarizao dos seguintes cordofones: da viola nordestina, em Recife; da viola de cocho, em Cuiab. Em seguida, o foco ser a escolarizao das violas portuguesas: a viola da terra, tipo terceirense e tipo micaelense (Arquiplago dos Aores), a viola de arame (Ilha da Madeira) e a viola campania (Baixo Alentejo).

  • CAPTULO I A TRADIO E ESCOLARIZAO DA VIOLA CAIPIRA

    Voltada para um instrumento de tradio oral, a escolarizao da viola caipira se interpe em meio viso dos representantes da tradio oral e a dos novos agentes promotores do ensino institucionalizado da viola. Buscando situar a questo da escolarizao e conhecer os troncos do instrumento no universo em que brotou sua identidade caipira, o presente captulo abordar as duas vises mencionadas acima. Em um primeiro momento, ser analisada a maneira como o instrumento se insere na tradio oral, recuperando marcas pregressas ao epteto caipira, tendo como veio a concepo do instrumento e a transmisso do saber musical entre os violeiros e as duplas caipiras. Num segundo, ser abordado como esse processo, sua dimenso e seus impactos socioculturais, podem ser vistos a partir da ao dos novos agentes, aqueles envolvidos com o ensino formal da viola.

    1.1 A tradio da viola caipira

    Na sociedade rural, culturalmente denominada de caipira na regio centro-sul (Estados de So Paulo, sul de Minas Gerais, sul de Gois e sudeste do Mato Grosso do Sul), fez-se largo uso da viola em seus rituais ldico-religiosos, marcando o instrumento que veio a ser designado por viola caipira, conforme Jos de Souza Martins (1975). Como se pretende mostrar adiante, esse termo est associado msica caipira e sua onipresena no segmento sertanejo raiz, por meio das duplas3. Devido importncia que se atribui neste trabalho identidade do instrumento, bem como a sua funo social no lugar em que est inserido, torna-se importante distinguir msica caipira de msica sertaneja.

    Adota-se, neste trabalho, o conceito clssico de msica caipira de Martins (1975), para quem esta msica, levando em conta suas condies de produo e sua funo social, pertence s prticas do homem rural de forma orgnica, nunca aparecendo s, enquanto msica, porque sempre acompanhamento de algum ritual de religio, de trabalho ou de lazer. (1975, p. 105). Por sua vez, a msica sertaneja compreende os gneros musicais 3 A nomenclatura para designar a viola bastante extensa. Em A arte de pontear viola (2000), Roberto Corra,

    catalogou as diferentes maneiras de designar o mesmo instrumento, p. viola de dez cordas, viola de pinho, viola caipira, viola nordestina, viola de fandango, viola sertaneja, viola de feira, viola brasileira, viola branca, viola pantaneira, viola campeira, viola cabocla (2000, p.29). E complementando essa lista, conforme o referido pesquisador, tem-se ainda a viola de cocho, a viola de coit, viola de cabaa, viola de bambu.

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    derivados da musicalidade caipira, transformados em mercadoria e destinados ao consumo de massa, com o advento das gravaes fonogrficas. Os conceitos de msica caipira e msica sertaneja raiz tambm podem aparecer como sinnimos tanto entre os tocadores e no senso comum quanto em alguns pesquisadores, e na mdia, como sinnimos. Martha Ulha (2004) informa que o termo msica sertaneja raiz vem baila somente na dcada de 1980, o que explica em parte o uso desse binmio para um mesmo tipo de repertrio.

    Retomando a noo dos aspectos sociais, o caipira, juntamente com a viola, veio se formando culturalmente ao longo do processo de ocupao do interior do Brasil no sculo XVII, fruto da hibridizao4 de colonizadores portugueses, indgenas e negros, portanto, ambos remontam ao perodo colonial. Conforme os estudos de Antonio Candido (2003), esse tipo de sociedade foi caracterizada por pequenos sitiantes, parceiros e agregados, cujo modo de vida esteve calcado no que chamou de mnimos vitais5. Seu habitat, formado por relaes de parentesco e de redes de solidariedade (o mutiro), consiste no agrupamento de algumas ou muitas famlias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivncia, pelas prticas de auxlio mtuo e pelas atividades ldico-religiosas, conforme denominou Candido (2003, p. 81).

    Nesse lcus, abundante em msica e religiosidade, a viola foi utilizada como instrumento acompanhador do canto, das rezas, das danas e das modas de viola, integrada organicamente vida social desse homem do campo. Sobre o assunto, aludindo ao papel da msica nesse tipo sociedade, Ivan Vilela faz uma sntese:

    possvel pensarmos que a msica se portou como um elemento mediador nas relaes destas comunidades rurais. Nas festas religiosas, a msica atua como o fio condutor de todo o processo ritual. atravs dela que os homens e as mulheres do lugar se renem e se organizam para fazer com que ritos de celebrao da vida e realizaes pessoais sejam manifestos (2004, p. 175).

    dessa cultura caipira que provm os folguedos tais como a folia de reis, a festa do divino, a cana verde, a dana de So Gonalo herdados da cultura portuguesa (e da prtica jesutica) e a congada, alm do cururu e da catira. Estes so o manancial das matrizes dos

    4 A combinao dos traos culturais indgenas e portugueses obedeceu ao ritmo nmade do bandeirante e do

    povoador, conservando as caractersticas de uma economia largamente permeada pelas prticas de pesca e coleta, cuja estrutura instvel dependia da mobilidade dos indivduos e dos grupos. Por isso, na habitao, na dieta, no carter do caipira, gravou-se para sempre o provisrio da aventura. (Candido, 2003, p. 48). 5 Ver-se-, ento, que este se nutria principalmente ao modo dos sertanistas, como quem se contenta com o

    mnimo para no demorar as interrupes da jornada. Este mnimo alimentar corresponde a um mnimo vital, e a um mnimo social, p. alimentao apenas suficiente para sustentar a vida; organizao social limitada sobrevivncia do grupo. (Candido, 2003, p. 63).

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    gneros musicais sertanejos que foram apropriados pela indstria fonogrfica no decorrer do sculo XX. Tomando de emprstimo a palavra de Alfredo Bosi acerca da cultura brasileira, possvel conceber como uma caracterstica intrnseca as matrizes heterogneas da viola para se compreender sua essncia plural:

    a cultura das classes populares, por exemplo, encontra-se, em certas situaes, com a cultura de massa; esta, com a cultura erudita; e vice-versa. H imbricaes de velhas culturas ibricas, indgenas e africanas, todas elas tambm polimorfas, pois j traziam um teor considervel de fuso no momento do contato intertnico. (Bosi, 1999, p. 7)

    Neste sentido, observa-se que h hibridismos da cultura caipira em relao ao uso da viola. Este hibridismo aponta para os usos da viola no perodo colonial, que est na base de um longo processo de entrelaamento de vrios elementos socioculturais. O historiador Jos Geraldo Vinci afirma que inevitvel no recorrer aos documentos deixados por Jos de Anchieta:

    Para a maioria dos pesquisadores que procuraram entender as festas religiosas populares, a tradio da combinao entre os cultos religiosos catlicos e a expresses coreogrficas e sonoras mundanas de vrios grupos tnicos est assentada, na sua primeira frmula, na ao dos jesutas, que para facilitar a aproximao e catequizao dos indgenas fundiram as celebraes religiosas com adaptao de danas e msica indgenas. (1997, p. 74)

    A historiografia convergente em relao ao momento em que ela aporta em terras

    brasileiras, sculo XVI, com colonizadores portugueses e com os jesutas6. Um dos poucos documentos comprobatrios, comumente citado pelos pesquisadores, encontra-se nas cartas endereados ao governo portugus no final do sculo XVI pelo padre Ferno Cardim. Nestas cartas, reportando-se s manifestaes dos ndios, percebe-se o modo como os indgenas utilizavam a viola: por toda a parte, foram os visitantes recebidos por ndios, uns cantando e tangendo a seu modo, outros, com uma dana de escudos portuguesa, fazendo muitos trocados e danando ao som da viola, pandeiro, tamboril e flauta. (CARDIM, Ferno, 1980, p. 145 citado por TABORDA, Marcia, 2003, p. 302).

    Outras referncias que se faz viola e aos jesutas, ligando educao, msica e religio, guisa de exemplo, pode ser encontrada no excerto do sertanista Couto de Magalhes:

    6 Dentre os precursores desses estudos, para mencionar alguns nomes, destacam-se Luiz Heitor Corra de

    Azevedo (1942), Alceu Maynard Arajo (1964), Rossini Tavares de Lima (1962), posteriormente, Jos Ramos Tinhoro (1992, 2004).

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    O padre Jos de Anchieta aproveitou-se de uma dana religiosa dos ndios, chamada cateret, para atra-los ao cristianismo; introduziu esta dana nas festas de Santa Cruz, Esprito Santo e So Gonalo. (MAGALHES, Couto apud SANTANNA, Romildo 2001, p. 91).

    Por sua vez, o professor de viola Rui Torneze, em seu Estudo Dirigido, sintetiza:

    a viola foi introduzida aqui no Brasil no perodo da colonizao portuguesa, atravs dos jesutas e colonos, no entanto, devido ao contato com as diversas culturas aqui existentes sofreu inmeras modificaes, chegando nos formatos, tipos e afinaes que hoje temos. (1998, p. 9)

    O fato que diante das pesquisas que existem sobre a histria msica no perodo colonial do Brasil, encontram-se, praticamente, os mesmos excertos sobre a presena da viola. Um dos trabalhos mais recentes sobre os ofcios de jesuta, o qual contribui para novas reflexes acerca desse perodo, especialmente acerca das prticas musicais que envolviam a viola, de Rogrio Budasz (1996)7. Em seu estudo, os documentos disponveis atestam atividade didtica de Anchieta que foi destinada aos ndios e colonos, que inclua a composio e preparao de cantigas destinadas a serem cantadas sobre melodias populares ibricas (1996, p. 2).

    De maneira geral, pode-se resumir em trs frases a maneira como a viola apresentada no meio musical: 1) a viola um instrumento de origem portuguesa; 2) a viola est no Brasil desde o descobrimento; 3) a viola foi utilizada pelos jesutas na catequizao dos ndios. Apesar de essas informaes estarem embasada em trabalhos anteriores, o que se percebe que elas do a conhecer outro marco fundante do instrumento que se engendra origem caipira da viola.

    Valendo-se desse tema, discusses sobre os hibridismos culturais podem contribuir para uma concepo mais ampla da viola caipira. Para tanto preciso no perder de vista os processos de hibridizao cultural entre as fontes portuguesas, africanas e indgenas. Em funo de coexistirem prticas musicais diversas e antigas envolvendo os violeiros numa vasta rea do territrio brasileiro, importante considerar a circularidade cultural entre os tocadores seja qual for a tradio que pertenam.

    Herom Vargas (2007), valendo-se das noes sobre hibridismo em seu estudo sobre o Mangue beat, categrico ao afirmar que o objeto hbrido se funda na instabilidade de

    7 Sobre as prticas do Padre Jos de Anchieta, ver a dissertao de Rogrio Budasz - O Cancioneiro Ibrico em

    Jos de Anchieta - um enfoque musicolgico (1996).

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    mltiplos elementos que se combinam revelia do tempo. Fato que o impede de enxerg-lo em uma trajetria retilnea e evolucionista.

    Sendo de natureza sincrtica, o hbrido desafia o prprio conceito estvel de identidade estabelecido pelo Ocidente. Este conceito restritivo, ao suprimir aspectos estranhos e englobar diferenas, corrompe a dinamicidade estonteante do produto mesclado. O hbrido pressupe, assim, uma identidade mvel e plural, acionada conforme novas situaes colocadas a eles. (Vargas, 2007, p. 21).

    Neste sentido, ao j propalado senso de que a viola caipira fruto de sucessivas interaes de elementos socioculturais que remontam o perodo colonial, deve-se olhar com ateno o seu carter eminentemente hbrido. A rigor, a viola caipira contm germes distintos, e dificilmente delineveis, tendo como ponto de partida lhe atribuir uma origem. Ulha corrobora com esta noo quando se reporta ao estado de hibridao que marca a msica brasileira:

    do senso comum a afirmao de que a msica popular (comercial) heterognea e hbrida, uma bricolagem de elementos tradicionais retirados do seu contexto. No entanto, essa hibridao esteve sempre presente na msica brasileira popular, desde os encontros tnicos que geraram as manifestaes artesanais que Mrio de Andrade chamou de danas dramticas. Essas prticas aparecem embrionrias nos autos jesuticos e depois nas festas e ocasies de folga escrava colonial. (2001, p. 350).

    Assim sendo, como se vem afirmando, algumas manifestaes culturais portuguesas teriam ento se imbricado cultura indgena e dos escravos africanos. Das tradies portuguesas, desde que chegaram ao Brasil, segundo os folcloristas, a viola ocupa a linha de frente como principal instrumento acompanhador. Enfim, desvelando-se os elementos que foram engendrados durante a catequizao, ou transplantados da cultura portuguesa, e que se encontram diludos entre prticas musicais, possvel conferir algumas caractersticas a este cordofone anteriores ao epteto viola caipira.

    As pesquisas realizadas, comparando-se as violas estabilizadas no Brasil com as de Portugal, revelam similaridades entre elas. Vale esclarecer que no se atribui aqui aos tocadores portugueses a criao de tais tcnicas, mas possivelmente que as tenham trazido para o Brasil junto com a tradio do instrumento. guisa de ilustrao, o tratado de Instrumentos musicais populares portugueses, Ernesto Veiga de Oliveira (1996) faz uma descrio minuciosa das prticas sociais e musicais da viola, sinalizando com algumas pistas que corroboram com essa hiptese.

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    Conforme as pesquisas de Oliveira (1966), as violas Amarantina, Beiroa, Toeira e Braguesa valiam-se da tcnica de rasgado (rasgueado), e as duas ltimas, do ponteado. No que tange a tcnica de viola caipira, o rasgueado e o ponteado tambm so caractersticos, sendo este ltimo realizado em teras e sextas teras paralelas (figura 1).

    Teras paralelas

    Sextas paralelas

    FIGURA 1- Teras paralelas e sextas paralelas8

    Para Joo Paulo do Amaral Pinto, os usos de teras e sextas paralelas nas composies dos solos e dos ponteados:

    envolve a utilizao das chamadas escalas duetadas, um dos recursos mais idiomticos e tradicionais da viola caipira [...]. Elas consistem nas escalas diatnicas normalmente do modo maior, executadas em duas vozes com intervalos de teras ou sextas paralelas, obtidos sempre com o uso de dois pares de cordas. Recebem a denominao duetadas, pois se comportam como as vozes duetadas das duplas caipiras que cantam tambm nos mesmos intervalos. (2008, p. 137).

    Em funo do uso intenso deste recurso estilstico ao longo da histria da msica sertaneja raiz, pode-se dizer que o paralelismo das vozes identificador de um trao do instrumento, apesar de se poder encontrar difundido em diversos gneros musicais. Sabendo disso, no mtodo A viola caipira (tcnicas para ponteio) 9, o professor Braz da Viola dedica

    8 Esta partitura, bem como as subseqentes em que no consta a referncia da fonte, foram produzidas pelo autor

    desta tese especialmente para este estudo. 9 VIOLA (1992).

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    um tpico As escalas duetadas exclusivamente para tratar do paralelismo da vozes e da execuo do solos e ponteios.

    Alm de aparecerem na introduo das msicas, parte formal da estrutura da obra, os solos aparecem recorrentemente, mas no gnero moda de viola o paralelismo bastante evidente. Segundo Eric Aversari, moda de viola quase sempre cantada a duas vozes em teras paralelas, cujos versos da letra so intercalados por pequenos interldios instrumentais normalmente executados na viola. (2005, p. 26). muito comum ainda que a viola dobre a melodia em teras (ou sextas) paralelas com a voz do cantor.

    O rasgueado, por sua vez, uma tcnica muito utilizada para se tocar gneros como o rasqueado, a guarnia, a modas de viola e o pagode (figura 2). Segundo Roberto Corra (2000), o ragueado (ou rasgado) obtido ferindo-se as cordas em um movimento rasgado, para cima ou para baixo. Pode ser com o polegar, ou com qualquer outro dedo da mo direita. Quando no h indicao do movimento realizado com os dedos q, a, m, i 10. (2000, p. 89).

    FIGURA 2 - o rasgueado

    O arraste (ou portamento) consiste no movimento do dedo sobre as cordas, de uma nota musical a outra, com um nico ataque sobre a corda (figura 3). Conforme o professor Rui Torneze, em seu Estudo dirigido (1998), esse tocador ensina que o arraste o efeito (ou rudo dos dedos sobre as cordas) que faz a viola chorar. Depois de atacar a corda com os dedos da mo direita, os dedos da mo esquerda deslizam sobre a mesma at a prxima nota.

    FIGURA 3 - O arraste

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    Entenda-se por p () - movimento polegar para baixo. E por i, m, a () - rasgueio para baixo dos dedos indicador, mdio, anular.

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    Percebe-se que alm do arraste, o movimento dos dedos da mo esquerda quase sempre frequente em teras paralelas (ou sextas paralelas). Embora todos esses traos (ponteado, paralelismo, rasgueado, arraste) sejam comuns linguagem musical de diversos instrumentos, o que chama a ateno que tais caractersticas ganham destaque sobre o timbre da viola caipira. Esses elementos quando observados em conjunto servem, inclusive, para demarcar (ou acentuar) o universo da msica sertaneja raiz.

    Em larga medida, ainda que hoje se difunda entre os tocadores outras dimenses sobre as origens da viola, cuja amplitude extrapolaria a noo brasilidade do instrumento, perdura entre muitos violeiros a referncia de um todo indivisvel a respeito da msica caipira. Isto , a msica caipira como uma unidade pura, brasileira, independentemente de sua herana portuguesa, ou ibrica. Para Denny Cuche a origem, as razes, segundo a imagem comum, seria o fundamento de toda a identidade cultural, isto , aquilo que definiria o indivduo de maneira autntica. (2002, p. 178).

    Da um dos motivos de brotar discursos sobre a identidade e a autenticidade dos novos violeiros e da viola caipira, pois esse epteto que forneceu a referncia esttica a todos os tocadores, juntamente com seu repertrio. Ou seja, por esta tica, o instrumento permite ao tocador a insero numa tradio musical estabelecida sem qual, por mais erudita que seja sua formao, possivelmente ficaria sem o vnculo cultural ou inventaria outra tradio.

    Contribui para isso o fato de que da relao da viola com a msica brasileira produzida no perodo colonial serem parcos os documentos. Alm do que, ao longo de 80 anos de latncia de um vigoroso segmento sertanejo, constituiu-se, entre os violeiros e a viola caipira, uma tradio carregada de smbolos que reforam a todo tempo sua identidade caipira. Esta tradio notadamente oral, transmitida de gerao em gerao, como se estudar adiante.

    preciso destacar que, apesar do Rio de Janeiro ocupar a mesma regio geogrfica que o estado de So Paulo, h singularidades regionais e temporais entre os instrumentos, pois na capital federal do imprio o instrumento esteve inserido noutro contexto sociocultural.11

    11

    Para saber mais sobre a viola no Rio de Janeiro, ver os trabalhos de Elisabeth Travassos (2006), Renato Moreira Varoni de Castro (2007). No primeiro, a autora investiga o desaparecimento da viola na capital federal do imprio no sculo XIX, escrevendo sobre alguns vestgios do instrumento. No segundo, o autor investiga o contexto do instrumento no Rio de Janeiro, apoiado na organologia e na iconografia do instrumento.

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    1.1.1 O ensino de viola na tradio oral

    Com o desmantelamento dos espaos rurais, lcus de onde emanam as prticas musicais da cultura caipira e da viola, ainda que ocorram em escala cada vez mais diminuta no interior dos estados, manifestaes como as folias de reis, So Gonalo, cururu, dana de Santa Cruz, percebe-se que elas so realizadas adaptadas realidade que as circunscreve. Conforme Jadir de Morais Pessoa, referindo-se realidade das folias de reis, e que vale para os demais folguedos, guardadas as devidas propores:

    o xodo rural ocorrido nas dcadas de 1960 a 1980, no Brasil, provocou um significativo deslocamento dessa prtica, que saiu de uma localizao predominantemente rural para uma localizao que hoje j se pode majoritariamente urbana. (2007, p. 70).

    Pode-se dizer que tais violeiros, em certa medida so os guardies dessas manifestaes ldico-religiosas, ou, de algum modo, estiveram a elas ligados por meio da msica sertaneja raiz. Mesmo que largamente difundida no espao urbano pelo disco ou pelo rdio, a transmisso do conhecimento de viola manteve, at se iniciar o processo de escolarizao, os traos de uma sociedade tipicamente de cultura oral. Conforme Pierre Lvy, nesses tipos de sociedades, a msica recebida por audio direta, difundida por imitao, e evolui por reinveno de temas e de gneros imemoriais. (1999, p. 139).

    No mbito rural, no se pode falar em uma prtica de ensino em que houvesse uma pessoa dedicada a ensinar formalmente a tocar o instrumento tal qual o concebemos, tampouco possvel precisar quando isso comeou a acontecer mediado por um professor. O que se pode dizer que se aprendia com algum, seja da famlia ou no, mas sem que esse algum estivesse a ensinar, no sentido estrito da palavra, nem com o nus de professor. Os violeiros podem ser reconhecidos como mestres, no sentido de serem os zeladores de suas tradies. No havendo um momento especial para o ensino, o aprendizado musical ocorria durante as prticas cotidianas, por isso era comum a imitao do outro, seja em famlia ou quando violeiros formam o que se entende por roda de viola.

    A roda de viola consiste numa prtica musical coletiva entre os violeiros da tradio oral, conservando um trao caracterstico da viola caipira. Na roda, toca-se em torno do

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    instrumento e se canta o repertrio tpico da msica sertaneja raiz. Nessa ocasio, os violeiros tm a oportunidade de se observarem para depois tentarem refazer o que ficou gravado naquela experincia. O detalhe que nem sempre esse fato ocorria explicitamente, por vezes olhava-se de soslaio para no ser percebido. Aqui, convm destacar o significado da memria ao cunhar a forma de articular a conservao de uma tradio musical do passado com o presente. Ou seja, entender a confluncia entre a memria e a percepo, reportando aqui Ecla Bosi (2000, p. 49) quando estuda o pensamento de Henri Bergson e Maurice Halbwachs acerca dessa temtica. Segundo Michel Pollak, Halbwachs em meados do sculo XX:

    j havia sublinhado que a memria deve ser entendida tambm, ou, sobretudo, como um fenmeno coletivo e social, ou seja, como um fenmeno construdo coletivamente e submetido a flutuaes, transformaes, mudanas constantes. (2002, p. 2).

    No caso da relao ensino-aprendizagem da viola, mister apontar para a dimenso do oral sobre o escrito como um trao distintivo, pois, at recentemente, esta forma prevalecia exclusivamente. Bosi afirma que a lembrana a sobrevivncia do passado. O passado, conservando-se no esprito de cada ser humano, aflora conscincia na forma de imagens-lembrana. (2000, p. 55). Essa concepo ento seria uma das marcas da identidade cultural caipira que o violeiro e a viola adquiriram, permanecendo quase inclume at a dcada de 1980.

    Antes do perodo em que se inicia a escolarizao, de maneira geral, os violeiros executavam suas msicas funcionalmente, ou seja, ainda que tivessem um sistema complexo de representao de suas msicas, no possuam noes tericas do sistema tonal de que faziam uso para comporem msicas e executarem seus instrumentos. Essa caracterstica pode ser atribuda, em certa medida indistintamente, tanto para aqueles violeiros egressos do meio rural, quanto para um nmero significativo de autodidatas que cultivam o instrumento no meio urbano. Com essa representao, esses msicos sempre foram vistos como quem toca sem saber msica, ou seja, operando um nmero limitado de acordes do campo harmnico, comumente entendido como posio (disposio que os dedos ocupam no brao do instrumento), e sem conhecimento e domnio da teoria musical.

    Atualmente, a maioria desses violeiros vive em espaos urbanos e congrega os amadores e uma importante frao dos msicos profissionais, inclusive as duplas caipiras que,

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    usualmente, possuem noes bsicas de teoria musical. Em sntese, esses violeiros seguem um precedente histrico, ao tocar de ouvido as msicas de seus repertrios, que remontam ao universo da msica caipira. Diante desse quadro, o ensino de viola permaneceu quase inalterado, caso se pense no momento em que a ela passa a ocupar preferencialmente reas urbanas.

    A diferena bsica na forma de aprender viola no meio urbano que, paulatinamente, o interessado passa a ter uma pessoa para dar uma orientao, seja indicando onde colocar os dedos sobre as cordas da viola, seja dando alguma noo rtmica dos gneros musicais. Ou, minimamente, reproduzindo gestos para que o aprendiz possa imitar. Embora no seja possvel precisar desde quando h algum tipo de ensino informal de viola, a partir da migrao do caipira para as cidades pode-se pensar num movimento lento de mudanas na relao ensino-aprendizagem at o surgimento dos primeiros professores particulares de viola.

    Em contraposio falta de ensino sistematizado, o saber musical na tradio dos violeiros sempre foi permeado pela noo de dom, mantendo assim alguns vnculos religiosos de onde brotou e esteve inserida a viola. No se pode esquecer que a msica caipira, tal qual nos afiana Martins (1975) quando analisa a dana de So Gonalo, est intimamente ligada atmosfera religiosa, o que vale tambm para a folia de reis. Joseph M. Luyten, estudando aspectos relacionados ao desafio e ao repentismo no cancioneiro popular paulista, atesta que esse cancioneiro est irremediavelmente ligado a manifestaes de cunho religioso. (1999, p. 80).

    1.1.2 Promessa de violeiro

    Buscando ecos desse histrico religioso da viola caipira com a tradio catlica na atualidade, e lembrando que este um instrumento transplantado para o Brasil no sculo XVI com portugueses catlicos e jesutas, no depoimento do violeiro Marco Antnio de Souza12 encontra-se latente os principais traos da tradio oral da viola caipira13. Esse violeiro aprendeu a tocar o instrumento cumprindo uma promessa, atendendo ao pedido de seu av, at ento o mais antigo remanescente de uma famlia de catireiros. No seu relato, pode-se encontrar as bases do tipo de relao que o violeiro mantm com a tradio da qual emerge o instrumento: 12

    Este violeiro membro do grupo Catira 13 de maio com sede na cidade de Frutal MG. 13

    Entrevista em 18 julho de 2008. Dentre as entrevistas com os violeiros, seleciona-se alguns recortes da entrevista com Marco Antnio, que pareceu emblemtica.

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    meu av tocava, e dos netos ningum tocava, havia o desejo de que eu tocasse , antes de morrer, ele me pediu para tocar ao menos para apresentar o catira. Se ele no pedisse, eu no tocaria, aprendi para pagar uma promessa para ele. (Marco Antnio de Souza, 2008).

    Aqui, percebe-se o sentimento devocional que existe entre os violeiros e a tradio, o qual reforado pelo lao familiar e pelo desejo de manter o que foi celebrado por seus antepassados. Esse testemunho, que no um episdio isolado em nosso tempo, talvez anacrnico o episdio ocorreu em 1996 , ilustra bem o ambiente tradicional dos violeiros. Tal qual prometido, Marco Antnio tornou-se o violeiro do grupo. Para Ulha,

    a matriz cultural da msica sertaneja est centrada em valores catlicos patriarcais tradicionais, que enfatizam uma sociabilidade em torno da famlia extensa, da solidariedade comunitria e da obrigao religiosa herdada e vitalcia. (2004, p. 61)

    Vivenciando desde a infncia, entre os membros de sua famlia, a tradio dos folguedos, Marco Antnio (2008) compe Vov Querido, em homenagem a seu av, Geraldo Jos de Souza (1926-1996). Em seu texto, amarrado pela viola e pela crena religiosa, encontram-se as referncias histria de sua tradio musical e familiar. Como esclarece Bosi, o instrumento decisivamente socializador da memria a linguagem. Ela reduz, unifica e aproxima no mesmo espao histrico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da viglia atual (2000:56).

    Vov Querido

    Tenho pouca experincia no brao de uma viola Por isso, peo licena pra contar uma histria Nunca escrevi uma letra, por isso de corao Pra toda minha famlia, eu quero pedir perdo Pra fazer uma homenagem a algum que deixou saudade e tambm sua lio.

    Mostrando muita cincia, do catira fez escola Ensinou filhos e netos, tambm quem veio de fora Todos que nele chegavam, jamais vov disse no Fazendo da sua vida zelador da tradio Santo Reis ele cantava, bandeira que carregava, mestre do seu folio.

    Tenho em minha conscincia, desde que vov foi embora; Me pediu em confidncia pra aprender tocar viola; Quando eu lembro deste dia meu corao vem na mo; Mas hoje com alegria, aprendi sua lio; Toco viola folgado e o, catira Treze de Maio, d show em qualquer salo.

    Meus parentes pacincia, eu me despeo agora;

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    Peo perdo novamente, pela homenagem simplria; "Geraldo Chico" um nome, carregado de beno; Que nos olha l de cima, nos dando a proteo; Pro Catira no parar, famlia vamos danar, com Vov no corao.

    A partir dos versos de Vov Querido, clara a posio e o comprometimento afetivo de Marco Antnio (2008) de empunhar a bandeira de violeiro da famlia. Na condio de zelador da tradio herdada de seu av, desvela aos seus que cumpriu sua promessa de aprender a tocar o instrumento para dar continuidade histria do catira dentro de sua famlia.

    So diversas as aluses figura soberana do av, representadas na experincia de mestre de ofcio que a todos ensina a zelar pela tradio do catira (Ensinou filhos e netos, tambm quem veio de fora). Este verso torna-se emblemtico porque d sentido ao tempo, do conhecimento que passado de gerao a gerao, que se guarda na memria do que se vive e experimenta seja nos ensaios do grupo, seja na vida cotidiana. Bosi explica que a memria recebe do passado no s os dados da histria escrita; mergulha suas razes na histria vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte da sua socializao. (2000, p. 73).

    Com o orgulho de perpetuar a tradio de um saber musical, Marco Antnio (2008) exclama: eu aprendi a tocar sozinho, tudo de ouvido, de paixo, de sentimento. Vale frisar que essa frase , acima de tudo, uma concepo e um valor que rege muitos violeiros antigos, incluindo tambm os modernos. O sentido de "sozinho" deve ser contemporizado como uma condio em que no h a mediao de professor ou escola durante o processo de aprendizagem. Na verdade, tal frase deve remeter a um sentido mais amplo, inclusive no sentido inverso, pois jamais se aprende sozinho numa tradio oral. Nela, a construo do conhecimento um processo que no prescinde da interao e pertencimento a um grupo social.

    Para Marco Antnio, assim como para boa parte dos violeiros que se identificam com a viola caipira, o pensamento de Stuart Hall sobre identidade e tradio elucidativo:

    Possuir uma identidade cultural nesse sentido estar primordialmente em contato com um ncleo imutvel e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordo umbilical o que chamamos e tradio, cujo teste o de sua fidelidade s origens, sua presena consciente diante de si mesma, sua autenticidade. , claro, um mito com todo o potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nosso imaginrio, influenciar nossas aes, conferir significado s nossas vidas e dar sentido nossa histria. (2006, p. 29).

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    Por outro lado, conforme Bosi, apoiada em Halbwachs, a tradio amarra a memria da pessoa memria do grupo; e esta ltima esfera maior da tradio, que a memria coletiva de cada sociedade (2000, p. 55). Assim, sozinho, talvez, somente no momento em que o tocador se retira da cena para o exerccio da prtica instrumental, quando se tenta reproduzir o vivido, o experimentado, e aquilo que est gravado em sua memria.

    Um dos aspectos relevantes do processo de aprendizagem na tradio oral a sua pluralidade em oposio homogeneidade de um programa escolar. Na ausncia de escola, professor ou mtodo de ensino sobressai a capacidade individual de pr em prtica aquilo que se assimilou do outro. A escola o prprio mestre aquele que ensina no somente a msica, mas os valores que regem o tempo, o de aprender e ensinar aos seus sucessores. Mas como a memria no retm todos os detalhes vivenciados de maneira integral, o que se grava na retina o que serve de mote para o seu processo de aprendizagem que no possui regras nem teorias. A tcnica de um violeiro, portanto, seria a somatria de vrias tcnicas individuais e, igualmente, no sistematizadas.

    A tcnica de viola caipira, em funo das circunstncias do aprendizado, cercada pelo ambiente mtico-religioso, que ditava as condies de aprendizado, nem sempre foi permevel ao aprendiz de violeiro. Durante as prticas musicais, era comum a situao na qual o aspirante a violeiro devesse no se deixar notar pelo outro que estivesse tocando se quisesse aprender alguma artimanha. Sozinho significa em contato com o grupo, um contato que no o oficial, do professor, mas da convivncia e de um atendimento a uma vontade de aprender com o outro numa situao em que esta vontade impera. Trata-se de um autodidatismo que vai compor a diferena entre o que se aprende sozinho e no sozinho (na escola, com professor).

    Porm, o que tornava o contexto musical ainda mais complexo diz respeito aos pactos e rituais aos quais os violeiros recorriam a fim de aprimorar suas habilidades tcnicas, conforme ser mostrado adiante.

    1.1.3 A f no pacto e na simpatia

    Por outro lado, para se tornar um bom instrumentista, o violeiro no escapava inclume de atmosferas msticas que, ainda que incompatveis com a f catlica, compunham a paisagem do universo rural. Para todos os efeitos, quando o violeiro no tinha o dom, no se

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    dispensava pactos, simpatias e crendices populares. O professor de viola Roberto Corra, em seu livro Arte de Pontear viola (2000), dedica uma parte de seu trabalho para mostrar os artifcios do violeiro para tocar viola. Dentre os casos, ele elenca a simpatia do cemitrio, o pacto-com-o-outro-lado, a simpatia da cobra coral (Corra, 200, p. 45- 53), recolhidos entre os violeiros da tradio oral distribudos em diversos pontos distintos da regio centro-sul. importante destacar que para cada um destes temas, h diversas verses disponveis e testemunhos, variando conforme o violeiro.

    Para outro professor, Ivan Vilela, o violeiro mantm um trnsito do profano para o sagrado, e vice-versa, como nenhuma outra pessoa da comunidade consegue. Ele toca nas festas da igreja e faz o pacto com o tinhoso para tocar melhor e nem por isso rechaado do meio onde vive (2004, p. 181). Embora menos recorrentes, o fato que essas particularidades que remetem a viola a prticas muito antigas persistem entre alguns violeiros correntemente at os dias de hoje. No raro, seguindo um costume, encontra-se o guizo de cascavel no bojo das violas dos tocadores, pois atestam os antigos que este artefato melhora a qualidade do som do instrumento.

    Num estudo antropolgico realizado com os cururueiros em Piracicaba (SP), Allan de Paula Oliveira (2004) informa-nos que essa crena encontra-se em descrdito entre os violeiros, ocupando um lugar no folclore do instrumento, o que, pode-se supor, no constitui exceo entre os tocadores. Segundo as palavras de Oliveira, (...) nas pouqussimas referncias que ouvi a este tipo de narrativa entre os violeiros do cururu, alguns disseram j ter ouvido falar deste tipo de coisa, mas, rapidamente, diziam que no acreditavam em nada disto (2004, p. 46-47).

    Oliveira (2004) traz ainda outra prtica dos violeiros piracicabanos que consiste no uso de objetos de proteo junto ao instrumento como medalhinhas do Divino e de Nossa Senhora Aparecida penduradas na mo da viola. (2004, p. 51). Esta prtica seria fundamentada, segundo o autor, para a manuteno da boa sonoridade do instrumento, mas tambm intimamente vinculada proteo espiritual do violeiro por um santo. Entre esses violeiros, no entanto, a devoo mais forte dedicada a Nossa Senhora Aparecida e no a So Gonalo do Amarante14, que tido como o protetor dos violeiros.

    14

    No captulo II, ser apresentado um levantamento dos diversos tipos de encordoamento.

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    Por outro lado, o culto a So Gonalo uma manifestao restrita a poucos lugares no Brasil, podendo ser encontrada em algumas cidades do Estado de So Paulo (Atibaia, Cajamar, Barra do Turvo, Bom Jesus dos Perdes, Itapetininga, Lagoinha, Mairipor, Piracaia)15. Atualmente, se tem realizado eventos como o Revelando So Paulo em que alguns grupos apresentam uma performance, mas passando ao largo do ritual. A representao da imagem de So Gonalo no Brasil e em Portugal pode ser examinada tendo-se como referncia o altar destinado ao santo da igreja localizada na cidade de Amarante (Portugal), como mostra a figura (4) e, em seguida, sua imagem no Brasil (figura 5).

    FIGURA 4 - Altar de So Gonalo do Amarante, na Igreja de So Gonalo em Amarante (Portugal)16

    FIGURA 5 - Escultura de So Gonalo brasileiro

    A relao da viola com o santo da Igreja de Amarante, segundo Vinci observa,

    adquiriu um papel to importante na dana de So Gonalo que aqui no Brasil a imagem do santo modificou-se, de acordo com sua funo de protetor dos violeiros; colocaram um chapu e uma viola no lugar do cajado, lembrando a figura de qualquer caipira paulista. (1997, p. 102)

    Por sua vez, no encordoamento de viola caipira (figura 6), cuja marca So Gonalo, h uma imagem que em nada se parece com a de So Gonalo, tampouco com a do caipira,

    15

    Disponvel na programao do XIII Revelando So Paulo (2009). 16

    Esta fotografia, bem como as posteriores em que no consta a referncia da fonte, foi produzida pelo autor desta tese especificamente para este estudo.

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    pois o figurino do violeiro aparece bastante estilizado em relao figura de ambos. Pode-se notar que somente o nome do santo ainda se associa viola.

    FIGURA 6 - Encordoamento para viola So Gonalo

    Fonte: Distribuidora Izzo

    As menes religiosidade singular do santo tambm so referendadas pelos novos violeiros e professores de viola, Roberto Corra, Braz da viola, Tavinho Moura, entre outros. Como exemplo, a cano So Gonalo do Rio Preto17 (Tavinho Moura) traz no texto parte de como a histria est sendo lida no Brasil.

    So Gonalo do Rio Preto

    No Rio Preto tem um santo interessante Fiel parceiro da alegria Se os outros santos querem que reze So Gonalo quer que dance O So Gonalo

    As mulheres no escondem seus encantos Em reza em prece em orao Vo desfilando seus cetins de tons brilhantes So Gonalo quer que dance O So Gonalo

    Uma devota num requebro delirante Fazendo inveja a So Joo Rodando a saia rodopia insinuante So Gonalo quer que dance O So Gonalo

    17

    CD Cruzada (2001).

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    As marcas de religiosidade na viola tambm podem ser encontradas inclusive nas afinaes da viola, como o caso da afinao So Joo, em referncia ao apstolo cristo, cuja festa celebrada no calendrio junino. Segundo Roberto Corra (2000), ela corresponde afinao cebolo e oitavada; a afinao para-reza, por sua vez, como o prprio nome sugere, foi encontrada por Alceu Maynard de Arajo em Ubatuba SP. Outra afinao bastante utilizada entre tocadores a rio-abaixo, especialmente no norte de Minas Gerais. Segundo os violeiros, o que implica considerar variaes sobre o tema, esta afinao decorrente de um canoeiro muito bom, que encantava a todos, tinha o hbito de tocar sua viola indo com sua canoa rio acima (o que sugere o nome de outra afinao, o rio acima). O diabo, desejoso de atrair mais pessoas para o pecado, aprendeu a tocar viola, mas sempre que pegava a canoa, ia com ela rio abaixo, da o nome da afinao.

    Segundo o ponto de vista dos referidos cururueiros entrevistados por Oliveira, embora o ambiente musical no qual a viola caipira tenha brotado seja bastante religioso, em oposio, o bom violeiro tem muito a ver com a funo mais importante da viola na prtica musical do lugar: violeiro bom aquele que acompanha, de ouvido, qualquer cantor em qualquer ritmo caipira. (2004, p. 47). Para este pesquisador, a representao da religiosidade pode vir mais por meio das medalhinhas em homenagem santa do que da participao em cultos religiosos com frequncia.

    Em consonncia com as referidas tradies da viola caipira, quando transportadas para as produes fonogrficas sertanejas, muitas composies procuram enaltecer o vnculo da viola caipira com o sagrado. Deste modo, os temas das letras relacionados ao dom germinaram concepes apoiadas na tradio que sustentou o saber musical de vrias geraes de violeiros. Essa concepo foi hegemnica at o desencadeamento da escolarizao, quando comea a se instituir um lugar de se aprender a tocar viola caipira e uma pessoa capacitada a ensinar.

    1.1.4 A concepo do ensino de viola caipira refletida nas duplas

    Diante desse quadro que, adornado de religiosidade, sempre margeou o ambiente musical da viola caipira, e considerando ainda a distncia da instituio escolar, no de se estranhar que as duplas caipiras sejam devotas de uma concepo arraigada no sistema tradicional de aprendizagem. Ou seja, um contexto apoiado no dom e no fazer (pelo ver-fazer,

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    que mediado na prtica pela linguagem verbal e pela expresso corporal, sem a necessidade de explicao).

    Para tanto, basta observar o repertrio. Na msica, Violeiro18, de Z Mulato e Cassiano, encontra-se parte do discurso de que a viola caipira se aprende seno dentro de uma tradio, com o dom, concepo que se harmoniza com a do catireiro Marco Antnio (2008).

    Viola pode chorar mas v se o seu som no muda Vou agradecer a deus, preciso de sua ajuda

    pra mim um dom de deus cantar moda-de-viola19 Isso dinheiro no compra e nem se aprende na escola Quem nasce para ser violeiro um privilegiado No tapinha da parteira ele j grita entoado (...)

    Violeiro escolhido muito antes de nascer Ele vem com uma misso, cantar o seu dever (...)

    Em outra moda-de-viola, Viola divina20 (Lourival dos Santos - Tio Carreiro), gravada por Craveiro e Cravinho, a letra credita f e ao trabalho a relao inviolvel entre Deus e a viola. na ligao com o sagrado que o violeiro ergue uma de suas singularidades musicais

    (...) Com essa viola divina um pedido eu vou fazer Para Deus matar a morte pro cantador no morrer Enquanto existe viola cantador tem que viver

    Minha viola divina da mo de Deus que vem Quem no gosta de viola no gosta de Deus tambm21

    A legitimidade da escola, no sentido de dar ao violeiro o sentimento matuto, tambm contestada em Rei sem coroa22 (Tio Carreiro - Sebastio Victor), moda lanada pela dupla Tio Carreiro e Pardinho:

    18

    CD Meu Cu (1998). 19

    Os grifos so nossos. 20

    LP Viola Divina (1980). 21

    Os grifos so nossos. 22

    LP Casinha da Serra (1963).

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    Rei sem coroa

    (...)

    No se aprende nas escola o tocar da viola, os desembarao Veja s quanta beleza por natureza o cantar dos passo Voc diz que cantador, teve professor, mas tu um fracasso J tenho visto peo com fama de bo, mas ser ruim no lao

    Quem canta seus males espanta, a tristeza vai alegria vem No seja assim to gavola pegue na viola e cante tambm Violeiro meia-pataca da sua marca j vi mais de cem Amigo cante direito e veja os defeito que voc tem

    (...) Voc canta, mas no entoa, rei sem coroa afirme seu p

    Neste pagode, temos outra amostra do peso da tradio e da representao da escola para os violeiros. Esta posio est bem clara no verso No se aprende nas escola o tocar da viola os desembarao, pois o cantar para o violeiro est no mesmo patamar do que o cantar tido como natural para os pssaros (Veja s quanta beleza por natureza o cantar dos passo). Por outro lado, aquele que aprende com outrem, desqualificado e sem credibilidade para exercer o ofcio de tocador, contestao que aparece bem marcada no texto: Voc diz que cantador, teve professor, mas tu um fracasso, Violeiro meia-pataca da sua marca j vi mais de cem, Amigo cante direito e veja os defeito que voc tem, Voc canta, mas no entoa, rei sem coroa afirme seu p.

    Em sntese, Denny Cuche, reportando-se a Michel de Certeau (1980), explica que a cultura popular a cultura comum de pessoas comuns, isto , uma cultura que se fabrica no cotidiano, nas atividades ao mesmo tempo banais e renovadas a cada dia. (2002, p. 150). As prticas musicais de viola, sejam rurais ou urbanas, estabilizaram-se empiricamente no interior de tradies orais, o que constitui trao distintivo na formao dos violeiros, apesar de no ser um trao exclusivo.

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    1.1.5 O serto dentro da viola

    Dentre as temticas da msica sertaneja raiz, constituindo boa parte do imaginrio dos violeiros, torna-se representativa a fala de um dos ltimos remanescentes das primeiras duplas caipiras, Jos Prez (1920), o Tinoco23, violeiro da dupla Tonico e Tinoco:

    Existe o sertanejo que trabaia no interior, matria prima pra fazer msica raiz. C vai buscar tudo do interior, as mensagem, a vida, o modo de viver. C traz tudo na viola pra tocar e cantar a vida do interior. Existe o sertanejo do Brasil e do mundo que d (...) c v a natureza e pega tudo l no interior. (Tinoco, 2007)

    Na exposio de Tinoco surge uma concepo que partilhada por inmeros tocadores e que serve para reforar a identidade cultural da msica sertaneja raiz e da viola caipira com o serto. Segundo ele, os temas de suas modas sempre foram retirados de suas experincias no cotidiano sertanejo. Para ilustrar essa concepo, Tinoco canta a primeira quadra da composio, de sua dupla com Tonico, Boi de Carro (Tonico, Tinoco e Anacleto Rosas Jr.)24:

    Na mangueira da fazenda do Lajado Conheci um boi maiado descado como o qu Tempo de moo quando eu era candieiro Boi maiado era ligeiro trabaiava como eu

    Na sequncia, relembrando a poca em que a dupla viajava em estradas de terra e em que no dispunha de estrutura alguma, como restaurantes, por exemplo, para se alimentarem, Tinoco recorda que tinham de negociar as refeies nas casas da comunidade rural. Numa das viagens, gravaram Velho pai25(Chiquinho e Z Tapera), com um enredo forte (nas palavras do prprio Tinoco):

    O meu pai j veinho, no pode mais trabai Cuidando do seu netinho Passa o tempo a record Quando pega na viola Pra tristeza disfar Canta moda do passado

    23

    Entrevista em 25 de junho de 2007. 24

    LP Tonico e Tinoco (1964). 25

    LP Data Feliz (1965).

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    Depois pega a chor

    (...)

    Tomando como referncia essa concepo temtica de Tinoco sobre a msica sertaneja raiz, seguro afirmar que esta noo norteou a produo de diversas duplas caipiras e violeiros amadores que vieram na esteira. inconteste que foi com este rep