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983 O PROJETO DE IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO DA COLONIZADORA MEYER EM IMAGENS FOTOGRÁFICAS ROSANE MARCIA NEUMANN Universidade de Passo Fundo – UPF [email protected] Cada fotografia é singular, pois apresenta um instante único. O instante fotográfico demarca o propósito da lembrança em oposição ao propósito do esquecimento, numa imbricação profunda entre presença e ausência. A fotografia seria então uma ideia de passado que se quer construir. Fotografar consiste em estabelecer uma distinção entre aquele instante e os demais, e ao mesmo tempo torná-lo passível de ser conhecido. Entendendo a fotografia como um suporte de divulgação moderno e, ao mesmo tempo, visual, esse meio foi empregado com frequência pelas companhias colonizadoras, atuantes no Rio Grande do Sul no início do século XX, com o intuito de propaganda, como a Empresa de Colonização Dr. Herrmann Meyer, ativa entre 1897 e 1932. 1 Seu proprietário Herrmann Meyer, por meio de prospectos, panfletos, anúncios em jornais, apresentava e oferecia o seu produto – um lote colonial em uma colônia no Planalto Rio-grandense –, despertando o interesse e a imaginação de seu consumidor – imigrantes alemães e seus descendentes, compradores em potencial. Postais e vistas urbanas vendiam uma imagem positiva e recorrente da colônia/núcleo urbano, tanto interna quanto externamente. Esse recurso contribuía para a constituição de uma imagem oficial da colônia. Porém, ao mesmo tempo em que revela a fotografia também oculta. No Brasil, os primeiros fotógrafos eram estrangeiros. Esse perfil se reproduziu igualmente no complexo colonial da Colonizadora Meyer. Em geral, o crescimento da demanda por mais fotografias tem relação direta com o aumento da imigração e do turismo. Os imigrantes, na ânsia de mandar notícias aos parentes que ficaram, e também preocupados com comprovar a sua ascensão econômica, vão ser grandes consumidores de fotografias. Soma-se a isso o desejo das pessoas de se verem representadas. Referente às áreas de colonização, o princípio parece ser o mesmo: a aspiração de ser eterna, comprovar o seu progresso, o crescimento, sua modernização, industrialização ou outro aspecto qualquer. A fotografia aparece então como uma nova forma de percepção do conhecer, que aproximou e tornou visíveis pessoas e lugares através da reprodução de sua imagem: uma imagem presente e um objeto ausente. Valendo-se da perspectiva de análise sobre documento/monumento de Jacques Le Goff, Ana Maria Mauad (1996: 74, 86) entende a fotografia como “uma mensagem que se elabora através do tempo, tanto como imagem/monumento quanto como imagem/documento; tanto como testemunho direto quanto como testemunho indireto do passado”. Nesse caso, a “fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro”. Logo, se ela informa, também conforma uma determinada visão de mundo, remetendo ainda ao circuito social da fotografia, nos diferentes 1 A Colonizadora Meyer era proprietária das colônias Neu-Württemberg (atual município de Panambi e parte de Condor), em Cruz Alta, e das colônias Xingu (atual Novo Xingu) e Erval Seco, e a posse Boi Preto, no município de Palmeira das Missões.

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O PROJETO DE IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO DA COLONIZADORA MEYER EM IMAGENS FOTOGRÁFICAS

Rosane MaRcia neuMann

Universidade de Passo Fundo – [email protected]

Cada fotografia é singular, pois apresenta um instante único. O instante fotográfico demarca o propósito da lembrança em oposição ao propósito do esquecimento, numa imbricação profunda entre presença e ausência. A fotografia seria então uma ideia de passado que se quer construir. Fotografar consiste em estabelecer uma distinção entre aquele instante e os demais, e ao mesmo tempo torná-lo passível de ser conhecido.

Entendendo a fotografia como um suporte de divulgação moderno e, ao mesmo tempo, visual, esse meio foi empregado com frequência pelas companhias colonizadoras, atuantes no Rio Grande do Sul no início do século XX, com o intuito de propaganda, como a Empresa de Colonização Dr. Herrmann Meyer, ativa entre 1897 e 1932.1 Seu proprietário Herrmann Meyer, por meio de prospectos, panfletos, anúncios em jornais, apresentava e oferecia o seu produto – um lote colonial em uma colônia no Planalto Rio-grandense –, despertando o interesse e a imaginação de seu consumidor – imigrantes alemães e seus descendentes, compradores em potencial. Postais e vistas urbanas vendiam uma imagem positiva e recorrente da colônia/núcleo urbano, tanto interna quanto externamente. Esse recurso contribuía para a constituição de uma imagem oficial da colônia. Porém, ao mesmo tempo em que revela a fotografia também oculta.

No Brasil, os primeiros fotógrafos eram estrangeiros. Esse perfil se reproduziu igualmente no complexo colonial da Colonizadora Meyer. Em geral, o crescimento da demanda por mais fotografias tem relação direta com o aumento da imigração e do turismo. Os imigrantes, na ânsia de mandar notícias aos parentes que ficaram, e também preocupados com comprovar a sua ascensão econômica, vão ser grandes consumidores de fotografias. Soma-se a isso o desejo das pessoas de se verem representadas. Referente às áreas de colonização, o princípio parece ser o mesmo: a aspiração de ser eterna, comprovar o seu progresso, o crescimento, sua modernização, industrialização ou outro aspecto qualquer. A fotografia aparece então como uma nova forma de percepção do conhecer, que aproximou e tornou visíveis pessoas e lugares através da reprodução de sua imagem: uma imagem presente e um objeto ausente.

Valendo-se da perspectiva de análise sobre documento/monumento de Jacques Le Goff, Ana Maria Mauad (1996: 74, 86) entende a fotografia como “uma mensagem que se elabora através do tempo, tanto como imagem/monumento quanto como imagem/documento; tanto como testemunho direto quanto como testemunho indireto do passado”. Nesse caso, a “fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro”. Logo, se ela informa, também conforma uma determinada visão de mundo, remetendo ainda ao circuito social da fotografia, nos diferentes

1 A Colonizadora Meyer era proprietária das colônias Neu-Württemberg (atual município de Panambi e parte de Condor), em Cruz Alta, e das colônias Xingu (atual Novo Xingu) e Erval Seco, e a posse Boi Preto, no município de Palmeira das Missões.

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períodos de sua história, incluindo o processo de produção/o ato de fotografar, circulação e consumo das imagens fotográficas.

Assim, por intermédio das fotografias, é possível perceber como a Empresa de Colonização Dr. Herrmann Meyer imaginava as suas colônias Neu-Württemberg e Xingu e como as apresentava/representava em imagens, retratando/comprovando seu progresso e sustentabilidade.

Um prospecto fotográfico

Com o objetivo de colocar em circulação um conjunto de vistas parciais da colônia e de seus colonos, Herrmann Meyer organizou e editou pelo Instituto Bibliográfico de Leipzig um prospecto fotográfico, Ansichten aus Dr. Herrmann Meyers Ackerbaukolonien Neu-Württemberg und Xingu in Rio Grande do Sul (Südbrasilien) – [Vista das colônias agrícolas Neu-Württemberg e Xingu no Rio Grande do Sul (sul do Brasil)]. A primeira edição veio a público em novembro de 1904, contendo 31 imagens distribuídas em 18 páginas;2 e a segunda edição, ampliada para 47 imagens, com 27 páginas, em 1906.3 O acabamento dos prospectos era simples, com formato de 25x17 cm (altura x largura), capa em papel comum, sem ilustrações, estampando os dados de identificação do mesmo, e as páginas internas em papel liso, não numeradas, e as fotografias em preto e branco. Antes disso, Meyer já havia organizado seu acervo fotográfico sob a forma de álbum, disponibilizando-o para a consulta dos interessados em seu escritório. Por sua vez, em 1908, a empresa possuía um acervo de 90 slides de fotografias de Neu-Württemberg, apresentado na Alemanha em diferentes espaços para fins de propaganda; algumas imagens eram mais recentes, mas a grande maioria já tinha pelo menos 4 anos. Naquela ocasião, o material foi cedido para Hermann Faulhaber proferir a sua palestra em Cannstatt/Alemanha.4

As imagens que compõem os dois prospectos fotográficos foram obtidas entre 1901 e 1906. Em parte, pelo diretor da Colonizadora, Horst Hoffmann, visto que ele sabia fotografar; outras talvez pelo colono Haak, e aquelas incluídas no segundo prospecto provavelmente foram produzidas por Alfred Bornmüller, também diretor da empresa, ou por outra pessoa que soubesse manusear um aparelho fotográfico. A escolha dos ângulos das imagens e os temas a serem retratados eram ditados geralmente por Meyer – “espero em breve novas fotografias da colônia, vistas das casas dos colonos, belas fotos das roças, uma boa foto do Stadtplatz, grupos coloniais [sociedades], etc.”.5 Em outra correspondência, orientava Alfred Bornmüller sobre os enquadramentos fotográficos a serem privilegiados: “das fotografias que você vai tirar, também inclua as pequenas produções como o alambique de Schmädecke;

2 Em janeiro de 1905, Meyer comunicava a Faulhaber que no próximo número do periódico Kulturpionier estariam publicadas várias fotografias de seu álbum de 1904 e um curto artigo (Carta. Leipzig, 16/1/1905. Herrmann Meyer ao Pastor Hermann Faulhaber, colônia Neu-Württemberg. Pasta Cartas Herrmann Meyer a Hermann Faulhaber, Caixa 42, Museu e Arquivo Histórico de Panambi - MAHP ).

3 O prospecto fotográfico da edição de 1904 foi localizado pela autora no catálogo on line da Biblioteca do Instituto Ibero-Americano de Berlin, Alemanha (Bibliothek des Ibero-Amerikanischen Instituts – SPK), e fotografado por Isabel Cristina Arendt. Já a edição de 1906 foi doada, junto com um acervo particular de uma família, ao MAHP em 2006, onde foi consultada.

4 Carta. Leipzig, 8/8/1908. Walter Schimpf a Hermann Faulhaber, Stettin/Alemanha. Pasta 9 - Cartas Walther Schimpf a Kolonisations-Unternehmen Dr. H. Meyer, Caixa 45, MAHP.

5 “Mas não em papel de colódio, porque esses papéis estragam muito fácil. Se conservam melhor em bromo com prata, ou papel com platina são muito bons e aqui é facilmente possível fazer cópias de negativos novamente, no caso de você não conseguir mandar os próprios negativos” (Carta. Leipzig, 29/8/1903. Herrmann Meyer a Alfred Bornmüller e Horst Hoffmann, Porto Alegre. Pasta 1 - Cartas Herrmann Meyer a Alfred Bornmüller, Caixa 43, MAHP).

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a criação de abelhas de Stenner; o moinho de vento de Hack ou Trennepohl; e assim por diante”.6

Porém, a maior parcela das fotografias da publicação é o resultado do trabalho do imigrante Wilhelm Schäffer, eletrotécnico, chegado em Neu-Württemberg em fins de dezembro de 1902, com esposa e quatro filhos com idade entre 8 e 14 anos, permanecendo até maio de 1903, quando novamente retornou para a Alemanha. Esse imigrante trouxe consigo um moderno aparelho fotográfico, chapas e um pequeno laboratório de produtos químicos – ao que tudo indica, era fotógrafo amador, e ele próprio revelava suas fotografias.7 A instalação de uma família de imigrante na floresta virgem constituiu o tema central de suas fotografias, bem como vistas parciais de seu lote colonial número 9, na linha 15 de Novembro. Seu olhar é, ao mesmo tempo, o do imigrante diante da nova Heimat, e do colono, registrando a sua instalação na floresta e a civilização desse lugar. Em 18 de outubro de 1903, Horst Hoffmann identificou um conjunto de 56 fotografias produzidas por Schäffer, remetendo-as para Meyer.8 Parte desse acervo foi utilizada para a elaboração do prospecto de 1904, e reproduzido novamente no prospecto de 1906, embora não cite, em nenhum momento, a autoria nem os retratados das/nas imagens.

A edição do prospecto de 1906 foi apresentada com uma pequena nota no verso da capa, como “um prospecto pormenorizado sobre as colônias, gratuito; para receber: Escritório do Empreendedor, Leipzig, Bismarckstrasse, 1”. Como prospecto fotográfico, dispensava maiores explicações, limitando-se a incluir uma curta legenda para identificar o local de obtenção da imagem e o tema geral ali representado, ficando as conclusões a cargo de seu leitor.

Comparando os dois prospectos, apesar de 28 fotografias estarem repetidas, sua distribuição interna permite duas leituras distintas. A primeira ordenação fotográfica conduz a uma leitura linear progressiva da própria trajetória de uma família em uma colônia: a chegada ao seu lote colonial na floresta e a construção do primeiro abrigo com toda a precariedade; a passagem para uma cabana [Hütte] provisória; indicando, na sequência, a infraestrutura disponibilizada pela Colonizadora Meyer, incluindo a Casa do Imigrante, assistência religiosa e escolar, moinho e serraria; e a superação das dificuldades, com várias imagens de famílias de colonos nos seus lotes, defronte suas sólidas casas, e a floresta cedendo lugar para amplas roças de milho e fumo. O próprio formato das fotografias sinalizava para isso: as primeiras cinco imagens são de página inteira – quatro verticais e uma horizontal.

Já a segunda reordenação fotográfica, com a inclusão de mais 16 fotografias, ressaltava as mudanças ocorridas na colônia Neu-Württemberg nesses dois anos e o seu desenvolvimento material e cultural. Destacava, em primeira linha, a presença da Colonizadora Meyer e a infraestrutura material e imaterial disponibilizada pela mesma; em seguida, o conjunto de imagens retratando os colonos nas suas propriedades, com suas casas e demais benfeitorias, as nascentes oficinas artesanais e casas comerciais, contrastando com as imagens da fase de instalação de uma família de imigrantes na floresta, como parte do passado. O crescimento do Stadtplatz Elsenau também era evidente, bem como a formação das primeiras sociedades culturais, indício já de uma sociabilidade embrionária.

As fotografias, no seu conjunto, exibiam, ao mesmo tempo, o caráter rústico da vida nas

6 Carta. Leipzig, 6/3/1905. Herrmann Meyer a Alfred Bornmüller, Colônia Neu-Württemberg. Pasta 1 – Cartas de Herrmann Meyer a Alfred Bornmüller, Caixa 43, MAHP.

7 As famílias de Wilhelm Schäffer e Friedrich Garn partiram juntas da Alemanha com o vapor Rosário, e chegaram em Rio Grande no início de dezembro de 1902. Eram oriundos da cidade de Kiel, estado de Schlesvig-Holstein. Garn permaneceu na colônia de Neu-Württemberg, onde adquiriu um lote colonial (Relatório 22/23. De 16/11 a 15/12/1902. Porto Alegre, 17/12/1902. Horst Hoffmann a Herrmann Meyer, Leipzig. Pasta Transcrição Livro Copiativo 44, Caixa 109, MAHP).

8 Lista de fotografias. Avulso, Caixa 43, MAHP.

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colônias, e belo, bem como as possibilidades de produção. Ainda, asseguravam que em menos de uma década, os imigrantes e colonos alemães haviam domado a selva, transformando-a em extensas lavouras de milho e tabaco, além de outras culturas, paralelo a uma criação de animais diversificada. Nesse contexto, como ressalta Gilmar Arruda (2005), a imagem fotográfica estava a serviço da venda de um produto, de uma mercadoria, naquele momento, a terra. Por isso, as primeiras fotografias eram produzidas com o objetivo de mostrar a vitalidade da terra, expondo a exuberância da natureza e, ao mesmo tempo, a viabilidade do projeto imobiliário, através de elementos urbanos já presentes no meio da floresta. Simbolicamente, comprovava que o homem podia vencer a mata fechada, dando lugar à civilização. Assim, o suporte mais preciso/próximo do real para registrar essas transformações era a fotografia.

Ao mesmo tempo, esse conjunto fotográfico consistiu em um primeiro balanço para o público da colonização, após nove anos de investimentos na colônia Xingu e oito na colônia Neu-Württemberg. Mostrava esse espaço como dinâmico, em constante transformação, criado e recriado a cada dia, próspero e moderno, um convite explícito para a emigração. Muitas vezes, porém, estava em questão “parecer moderno, mais do que ser moderno. A modernidade se apresenta, assim, como a máscara para ser vista” (MARTINS, 2000, p. 39-40). Essa seleção de fotografias, além de estar marcada pela primeira mediação realizada pelo fotógrafo no ato fotográfico, sofreu ainda uma segunda mediação, por parte de Herrmann Meyer, o qual, dentre as opções disponíveis no seu acervo, selecionou aquelas que considerou mais significativas para o seu propósito, colocando-as em circulação.

O formato de apresentação das imagens era semelhante: na edição de 1904, havia 5 fotografias de página inteira, aumentando para 7 na edição de 1906. Todas as imagens retratavam a colônia Neu-Württemberg, com a exceção de duas, repetidas em ambos, obtidas na colônia Xingu, possivelmente por Horst Hoffmann, em 1902. Reforçavam mais uma vez, a concentração de todos os investimentos por parte da Colonizadora na colônia Neu-Württemberg, cujos resultados eram mais visíveis do que na colônia Xingu. Quanto aos temas, é possível classificá-los, grosso modo, da seguinte forma, na edição de 1906: natureza/recursos hídricos 4; agricultura/criação 9; construções/casas dos colonos 16; igreja/escola/sociedades 6; vistas 3; oficinas/casas comerciais 3; derrubada da mata/instalação provisória 6. Predominam, em larga escala, as fotografias das casas dos imigrantes, no modelo retrato, sendo estas em sua totalidade construções em madeira, geralmente com seus moradores pousando em frente às mesmas.

Ao longo do prospecto, percebe-se uma clara diferença entre as construções dos colonos e as construções de propriedade da Colonizadora, ainda que todas fossem em madeira. As casas dos colonos eram simples, pequenas, ao rés-do-chão. De acordo com Horst Hoffmann, tanto os imigrantes suabos quanto os alemão-russos que já estavam em Neu-Württemberg construíam casas de madeira, visto serem as mais baratas e rápidas para serem concluídas, e por não disporem de recursos para construir casas como aquelas de sua terra natal.9

Referente ao modelo arquitetônico predominante, as construções em estilo enxaimel10

9 Relatório 1-4. De 1°/1 a 18/2/1903. Porto Alegre, 15/03/1903. Horst Hoffmann a Herrmann Meyer, Leipzig. Pasta Transcrição Livro Copiativo 44, Caixa 109, MAHP. Os custos de construção de uma casa eram extremamente variáveis. Geralmente, do primeiro até o segundo ano o colono morava em um rancho, período no qual ele mesmo cortava as árvores, secava e serrava à mão as tábuas para a construção da casa, que ele mesmo fazia com a ajuda dos filhos ou parentes. Mas, o imigrante da Alemanha queria ter em três meses a sua casa pronta e, para isso, precisa comprar madeira seca e cortada. Já para a construção, só com a ajuda da família era pouco prático, daí precisar engajar outros colonos, mas as diárias cobradas por eles eram extremamente elevadas, e o imigrante tinha pouco dinheiro para arcar com isso. Citou como um caso distinto a casa da família Panzenhagen, a qual foi construída com madeira comprada, empregando toda a família, ressaltando que ele era um velho colono experiente e sabia trabalhar melhor com a madeira brasileira do que um imigrante alemão. Sua casa abrigava a venda e quatro gerações da família (cf. Relatório 18/20. De 16/9 a 31/10/1903. Porto Alegre, 3/11/1903. Horst Hoffmann a Herrmann Meyer, Leipzig. Pasta Transcrição Livro Copiativo 44, Caixa 109, MAHP).

10 Sobre o estilo enxaimel e as suas variações na Europa e no Rio Grande do Sul, há o estudo de Günter Weimer (2005).

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foram minoria nas colônias de Meyer. Em Neu-Württemberg, foram mais comuns em algumas linhas coloniais, mas numericamente insignificantes na área urbana, onde as construções rústicas em madeira evoluíram para construções em alvenaria, atendendo aos padrões arquitetônicos modernos do início do século XX. Inclusive, em meados de 1903, Herrmann Meyer enviou para Horst Hoffmann “um caderno com modelos de casas em madeira da Noruega, os quais poderiam ser usados nas construções”, desde que se conseguisse um carpinteiro para executá-las.11 Até que ponto esse material serviu de modelo para as construções das casas dos colonos não é possível precisar.12 Assim, as maneiras de habitar próprias de sua pátria são adaptadas nesse e a esse novo meio, e com essa combinação de elementos, “cria para si um espaço de jogo para maneiras de utilizar a ordem imposta do lugar”, instaurando a pluralidade e criatividade (CERTEAU, 2007: 92-93).

Embora o Stadtplatz Elsenau ainda fosse uma pequena sede rural, já oferecia momentos de sociabilidade, através da realização de festas – como a “festa das crianças” [Kinderfest] –, tema de uma fotografia; e a formação das primeiras sociedades, como o coral e o grupo de lanceiros – respectivamente, Gesangverein e Stechklub –, temática de outra fotografia, onde os integrantes das duas sociedades pousaram juntos, com as suas bandeiras, para serem retratados.

Nesse ponto, o prospecto era sintomático, ao sinalizar para as mudanças ocorridas na sede Elsenau em questão de dois ou três anos: o aumento do número de edificações era indiscutível, e, caso o crescimento urbano continuasse nessas proporções, logo todos os terrenos estariam ocupados. Na vista urbana produzida em 1903 (Figura 1), no sentido norte-sul, em primeiro plano está parte do açude do moinho e uma vegetação rasteira. Na parte superior direita da imagem, e como tema central, o Barracão dos Imigrantes, com o cercado do potreiro, além de mais duas construções à direita, e na diagonal, a casa pastoral e a escola. Nota-se ainda a presença da floresta, limitando esse pequeno espaço central da colônia, com as ruas e quadras por construir. A sede urbana Elsenau foi a área mais fotografada de Neu-Württemberg, sob todos os ângulos, produzindo várias vistas parciais e panorâmicas. As lentes dos fotógrafos acompanharam o seu gradual crescimento, até assumir os contornos de uma cidade.

Figura 1 – Stadtplatz Elsenau, 9,5x13 cm. Foto de Wilhelm Schäffer, Neu-Württemberg, 1903. Fonte: MEYER, 1904, fl. 7

11 Carta. Leipzig, 8-10/1/1903. Herrmann Meyer a Horst Hoffmann, Porto Alegre. Pasta Carta Herrmann Meyer a Horst Hoffmann, Caixa 42, MAHP.

12 A construção da casa do colono era uma preocupação central da Colonizadora. Em maio de 1903, Meyer solicitou a Horst Hoffmann para que lhe mandasse os preços de uma casa bem simples, ou seja, a primeira a ser construída pelo colono, pois o valor que lhe repassou de M 1000 era muito elevado para um emigrante. Alegou que era perguntado com frequência sobre os custos de uma casa bem simples. “Se ao menos houvesse uma serraria no local para fornecer as tábuas, mas se precisavam ser trazidas de fora, isso implica em elevados custos também. Assim, quero uma previsão de custos e com as referidas medidas da mesma, e ainda uma fotografia das casas já construídas com tais dimensões. Isso porque os emigrantes não conseguem imaginar o que é uma casa simples na colônia” (Carta. Leipzig, 12/5/1903. Herrmann Meyer a Horst Hoffmann, Porto Alegre. Pasta Carta Herrmann Meyer a Horst Hoffmann, Caixa 42, MAHP).

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Distanciando-se mais da área central da sede, provavelmente colocado na residência do diretor, no mesmo sentido norte-sul, o fotógrafo conseguiu ampliar o espaço fotográfico, representando com mais realismo ainda as mudanças ocorridas naquele lugar, desde 1903 até início de 1906 (Figura 2). As edificações, pequenas e rústicas construções de madeira, multiplicaram-se, com seus cercados. Sua distribuição ordenada pelas ruas e quadras, então já definidas, diferencial em relação à área rural circundante. Nesse espaço, não havia mais vestígios da mata, restando somente uma vegetação rasteira e uma considerável quantidade de troncos a serem serrados. Para além das casas, a mata se confundia com o terreno ondulado.

Figura 2 – Parte do Stadtplatz Elsenau, 9,5x13cm. Foto de Alfred Bornmüller, Neu-Württemberg, 1906. Fonte: MEYER, 1906: fl. 20

Circulou também no mesmo período um cartão-postal reproduzindo uma vista parcial da sede da colônia com um enquadramento semelhante, obtida de um ponto mais afastado (Figura 3). O efeito colorido, simulando casas com cores claras, telhados de telhas, extensos gramados, alguns resquícios da floresta circundante, e, para além desse núcleo colonial, os campos, ocupando as colinas. Comparando esta fotografia com a anterior, é possível afirmar que a primeira primava pelo real, marcada pelo seu caráter informativo, enquanto a segunda, dentro de sua própria função como cartão postal, explorava a imaginação, apresentando um lugar idealizado e esteticamente belo. Pelas informações contidas no verso, o cartão-postal foi produzido ou pelo menos distribuído pela Casa das Novidades, em Santa Maria/RS.

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Figura 3 – Nova-Württemberg. Cartão Postal, 8,5x13,5 cm. Foto de Alfred Bornmüller, Neu-Württemberg, 1907. Fonte: Acervo do MAHP.

Contrastando com esse espaço já civilizado, estava a floresta ou Urwald, onde se localizavam os lotes coloniais. Após uma curta estada no Barracão do Imigrante, o recém-chegado estabelecia-se, provisoriamente, no seu lote colonial, principiando a abertura de uma clareira para a construção do rancho ou cabana, e a instalação da primeira roça. Essa simplicidade, apesar de retomada em vários momentos nos prospectos de Herrmann Meyer, era mais penosa do que os imigrantes imaginavam, e foi o tema central das tomadas fotográficas do imigrante Wilhelm Schäffer, que registrou, detalhadamente, a chegada e instalação de sua família e das famílias Garn e Uhr nos seus respectivos lotes coloniais, a derrubada das primeiras árvores, o trabalho na formação de uma pequena roça e várias outras simplesmente denominadas de “vida de colonos”.13

Dentre as representações, a mais emblemática da simplicidade e das dificuldades da vida na colônia, foi a chegada de uma família de imigrantes em seu lote colonial (Figura 4). A família improvisou um pequeno abrigo com estacas cobertas de palha, para proteger seus pertencentes e alimentos. Além do núcleo central – uma mulher em pé, segurando uma panela, onde provavelmente pretendia improvisar nas estacas à sua frente um fogo de chão para fazer a comida; atrás dela, sentados no tronco de uma árvore dois meninos maiores, um menor em pé, e outra mulher sentada em uma cadeira, o único indício de conforto nesse meio. A ausência do patriarca na imagem deve-se ao fato dele próprio ser o fotógrafo, ou seja, Wilhelm Schäffer. Contornando e limitando o cenário, a floresta.

13 Lista de fotografias. Avulso, Caixa 43, MAHP.

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Figura 4 – Instalação de um imigrante em seu lote colonial, 15,8x13 cm. Foto de Wilhelm Schäffer, Neu-Württemberg, 1903. Fonte: MEYER, 1904: fl. 3; MEYER, 1906: fl. 17

Esse registro fotográfico talvez fosse o mais emblemático desse primeiro contato do imigrante com o seu lote colonial, visto que no século XIX predominaram as gravuras e pinturas, mas as fotografias eram raras. Também é uma das mais conhecidas, por estar publicada na obra de Jean Roche (1969).

Apesar da rusticidade representada nessas imagens, o imigrante/colono era proprietário de suas terras, de sua produção, e de tudo o mais que ali houvesse. Um lote colonial de 25 hectares era uma área considerável para os parâmetros de propriedade de pequenos camponeses na Alemanha, na época. Outro indício de que valia a pena migrar e se submeter a essas dificuldades era a quantidade de animais para o trabalho que uma família possuía, enquanto na Europa o cavalo era de posse restrita da alta elite. E mais: se na Europa a obtenção de lenha era problemática após o cercamento dos campos públicos, na nova Heimat havia uma mata inteira para ser explorada.

Portanto, essa fase pioneira era provisória, e fazia parte da epopeia da colonização (cf. SANT’ANA, 1993-94), superada em dois ou três anos, quando então já conseguia acumular capital suficiente para construir uma casa para abrigar a sua família, bem como galpões, estábulos, currais. Novas áreas de matas haviam sido incorporadas às roças, aumentando a produção agrícola, paralela à criação de gado e porcos, além da manutenção de cavalos e mulas para o trabalho. Os prospectos narravam, visualmente, a conquista do território e sua transformação, apresentando, já em 1904, uma sequência de residências de colonos. No prospecto de 1906, já foram incluídas imagens de pequenas oficinas artesanais – moinho e serraria, ferraria, venda, engenho de cana-de-açúcar. A orientação de Herrmann Meyer era mais uma vez retomada, ou seja, preocupar-se primeiro em cultivar as suas roças e prover o seu sustento, revertia em acúmulo de capital suficiente para prover as demais necessidades, como as construções e a ampliação da área de cultivo.

Concluindo o prospecto, apresentava então a conquista do território, com extensas plantações de milho, tabaco e mandioca dominando o cenário, com a floresta recuando cada vez mais (Figura 5).

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Figura 5 – Plantação de milho de um colono, 9,3x13 cm. Foto de Wilhelm Schäffer, Neu-Württemberg, 1903. Fonte: MEYER, 1904: fl. 16; MEYER, 1906: fl. 25

Analisando a colonização sob o viés da história ambiental, Marcos Gerhardt (2002: 116) lembra que

as mudanças ambientais, como a retirada do mato para formar áreas de cultivos e a construção de estradas e pontes significaram, ao menos para colonos e administradores, o progresso, a vitória do trabalho humano civilizando a natureza; um olhar característico dos séculos XIX e XX, orientado pela crença na tecnologia e no progresso, um modelo de desenvolvimento que utilizou intensamente os “recursos naturais” mas, que esgotou-se nas décadas seguintes.

Enfim, a narrativa do prospecto seguia uma linha construtiva, ou seja, acompanhando a ocupação e construção de um espaço colonial, em todos os seus pormenores, representando o modo de vida mais primitivo na floresta até os aspectos que a caracterizavam como uma proposta de colonização distinta – assistência escolar e religiosa, vida social, espaço urbano. Herrmann Meyer, como colonizador, reafirmava, visualmente, a sua concepção de colonização, indicava o perfil do indivíduo apto a integrar seu projeto, e as condições de vida nas colônias. Pela primeira vez, apresentou na Alemanha resultados mais palpáveis e visíveis de seu projeto de colonização no Rio Grande do Sul, assegurando a condição de bem-estar e prosperidade dos imigrantes alemães e seus descendentes ali estabelecidos. Para os camponeses havia os lotes rurais, e para os imigrantes urbanos e de ofício, a sede urbana. Contudo, importava que se tornariam, independente da escolha, proprietários. Na

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organização dos dois prospectos, Meyer deixou bem claro que o seu modelo de colônia e cartão-postal era Neu-Württemberg, enquanto Xingu era uma colônia agrícola, sem maiores atrativos. Assim, eram produções em busca do espelho, retirando/ocultando tudo aquilo que perturbava a imagem desejada. Isto é, o invisível, aquilo que existe, mas não é privilegiado como tema fotográfico.

Portanto, se o fotógrafo atua como um filtro cultural, o seu leitor também olha para a fotografia a partir de sua cultura, selecionando o que deseja ver ou não. Kossoy (2002) ressalta que a imagem fotográfica entendida como documento/representação, contém em si realidades e ficções, o que a torna ambígua. Apesar dessas particularidades, a imagem fotográfica fornece provas, indícios, e funciona sempre como documento iconográfico acerca de uma dada realidade, um testemunho que contém evidências sobre algo que em algum momento existiu. Ou, como reitera Ulpiano T. B. Meneses (2003: 142), “a imagem não mente jamais, o discurso dos homens sobre ela ou por seu intermédio é que pode ser mentiroso. Como diz o ‘social photographer’ americano do começo do século passado, Lewis Hine, fotógrafos não podem mentir, mas mentirosos podem fotografar”.

REFERêNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Gilmar. Monumentos, semióforos e natureza nas fronteiras. In: ______. (org.). Natureza, fronteiras e territórios: imagens e narrativas. Londrina: Eduel, 2005.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 13 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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