190
Giovana Fagundes Luczinski O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos na relação terapêutica Mestrado - Psicologia Clínica PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo 2005

O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

  • Upload
    others

  • View
    4

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

Giovana Fagundes Luczinski

O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos na relação terapêutica

Mestrado - Psicologia Clínica

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

São Paulo 2005

Page 2: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

2

Giovana Fagundes Luczinski

O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos na relação terapêutica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Clínica, sob a orientação da Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez.

São Paulo 2005

Page 3: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

3

Dedico este trabalho a todas as pessoas que já passaram pela minha vida, e ao mistério que faz parte da nossa existência. Mistério presente no mais belo dos acontecimentos: o encontro humano, que transforma e coloca a vida em movimento.

Page 4: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

4

AAAgggrrraaadddeeeccciiimmmeeennntttooosss

A Deus, por me presentear com a vida e com tantos encontros significativos ao longo desta, mostrando Sua presença de forma incontestável. A minha mãe, Marli, apoio constante em cada etapa da minha vida, pelo amor incondicional e inspiração diante das dificuldades, sendo exemplo de vitória e força, sempre. A minha irmã, Juliana, com quem compartilhei minha história e a quem continuo conhecendo e admirando a cada dia. Ao Du, por todos os anos de companheirismo, apoio, amor e compreensão. E por podermos compartilhar mundos e linguagens tão diferentes, que nos enriquecem e aproximam a cada dia. À Marília, pela orientação carinhosa e pelo aprendizado proporcionado pela convivência com sua forma aberta de ver o mundo, considerando a multiplicidade do real. Isso me ajudou a respeitar diferentes idéias e posicionamentos, e a me conhecer melhor. Ao Miguel, por todo o aprendizado trazido por nossa relação ao longo dos anos, de professor, supervisor, sendo hoje um grande amigo e um profissional que admiro muito. Mais que tudo, tem sido uma presença forte e marcante na minha vida. Ao Gilberto, pelo exemplo de profissionalismo extremo e sua paixão pela clínica, que me inspiram a buscar continuamente a aproximação e a compreensão da condição humana. Obrigada pelo olhar tão atento ao meu trabalho na qualificação e pelas críticas que transformaram meu olhar sobre ele, posteriormente, abrindo novas percepções. À Saleth, por ter sido uma companhia especial ao longo dos anos, sempre reavivando minha fé na clínica como oportunidade de encontros e crescimento. À Renata, pela amizade verdadeira e sincera, pelas palavras sábias nos momentos confusos, pelo sorriso radiante que iluminou tantos momentos que passamos juntas. Você também é um exemplo para mim como pessoa e profissional. À Aline, pelos momentos de encontro tão preciosos ao longo dos anos, que foram também responsáveis pelo fascínio que a relação humana exerce em mim. Obrigada pela interlocução e pela amizade. Aos colaboradores dessa pesquisa, cujos nomes fictícios são Helena, Lílian, Marina e Ronaldo. Obrigada por abrirem seus mundos internos para mim, dividindo suas vivências pessoais e profissionais. Foi um gesto de generosidade, que me ajudou a aprender muito sobre a prática clínica e sobre mim mesma. Aos amigos do núcleo de Psicologia e Religião, interlocutores constantes: Roberto, Simone, Beth, Irene, Vanessa, entre outros, principalmente Cristina, Michele, Analu e Cínthya, que se tornaram grandes amigas.

Page 5: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

5

Às novas amizades feitas em São Paulo, fora da universidade, um presente vindo como conseqüência do mestrado: Camila, Laura, Ismeir, Marcos, Gabriel, Ismênia, Bia, Rosana e Pedro. A todos os amigos de Belo Horizonte que torceram por mim e estiveram presentes ao longo dessa caminhada, compreendendo os períodos de afastamento. São tantos! Obrigada Ale, Pacífico, Carol, Fernando, Diná, Joyce, Lu, Cláudia, Cris, Achiles, Lícia, Amanda, Marlene, Sebastião, e meus queridos amigos da UFMG. Aos meus familiares, que torceram por mim e aos meus sogros, Magda e Eduardo pelo carinho e acolhimento quando cheguei a São Paulo. Ao Paulo, pela cuidadosa revisão de português, e por ter sido você, um amigo tão querido, quem a fez. Aos meus alunos e clientes, que ao compartilharem comigo momentos de suas vidas, revelaram o potencial que tem o encontro humano e me transformaram, deixando cada um a sua marca, que levarei por toda a vida. Ao MEC pela bolsa concedida pelo programa do Provão 2001, que trouxe a possibilidade de escolher a PUC-SP como o lugar desse mestrado. À CAPES, pelo apoio financeiro nos anos de 2003 a 2005. À PUC-SP, por sua diversidade, acolhimento, interlocução e pela oportunidade de conviver com grandes mestres e pensadores, dos quais jamais me esquecerei. E a todos os funcionários do Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica.

Page 6: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

6

RRReeesssuuummmooo

Luczinski, Giovana Fagundes. O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos na relação terapêutica. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil, 2005: 191f.

A observação da prática clínica de psicólogos de orientação fenomenológica permite notar uma dissonância na atitude de grande parte dos profissionais que, embora se disponham a acolher o ser humano na sua totalidade considerando todas as suas experiências, não mantêm essa postura diante do tema da religiosidade. A partir dessa observação informal, o objetivo desta dissertação é compreender quais as dificuldades com que esses psicólogos se defrontam ao atenderem clientes que apresentam temas religiosos nas sessões terapêuticas. Para atingir esse objetivo, realizaram-se entrevistas com psicólogos clínicos que trabalham com a abordagem fenomenológica, garantida a competência na área, e que reconhecem a dificuldade apontada dispondo-se a falar sobre ela. A análise das entrevistas, planejadas e desenvolvidas de acordo com as propostas metodológicas da fenomenologia, tiveram como referência teóricos que priorizam o encontro humano na clínica como via de crescimento e possibilidades terapêuticas, notadamente Buber, e estudiosos do campo da Psicologia e Religião. A análise das entrevistas permitiu evidenciar a grande interferência dos aspectos pessoais do psicólogo na sua atuação clínica, no caso principalmente aqueles que dizem respeito à sua própria religiosidade, e os impactos destes na relação terapêutica, definindo as possibilidades de encontro com o cliente e de compreensão da sua experiência de vida no momento.

Page 7: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

7

AAAbbbssstttrrraaacccttt

Luczinski, Giovana Fagundes. The Clinical Psychologist and the client´s religiousness: impacts on therapeutic relation. Master´s Thesis. Program of Graduate Studies in Clinical Psychology of the Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP, Brazil, 2005: 191f.

The observation of the clinical practice of phenomenological oriented psychologists allows us to notice a dissonance in the attitude of great part of these professionals, who, although dispose themselves to receive the human being in his totality, considering all kinds of experiences, don’t keep this attitude before the religiousness theme. Beginning from this informal observation, the objective of this master’s thesis is to comprehend what are the difficulties these psychologists meet when they face religiousness themes in the therapeutic session. In order to reach this purpose, some interviews have been made with some clinical psychologists who work with the phenomenological approach, guaranteed their competence in this field, who recognize the difficulty in dealing with the theme pointed above, and accept to talk about it. The analyses of the interviews, planed and developed according to the phenomenological method has as a theoretical reference those who prior the human encounter at the clinic as the main way for growth and therapeutic possibilities, mainly Buber, and studious of Psychology and Religion’s area. The analyses of the interviews allowed us to evidence the great interference of the personal aspects of the psychologists in their clinical work, in this case, mainly those who refers to their own religiousness, showing its impacts in the therapeutic relation, defining the possibilities of an encounter with the client and the comprehension of his life experience at the present moment.

Page 8: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

8

SSSuuummmááárrriiiooo

Introdução 10

Capítulo I O Homem na perspectiva fenomenológica 22

Capítulo II A clínica fenomenológica 28

1. A Relação Eu-Tu 29

2. A psicoterapia dialógica 33

3. A escuta no processo dialógico 36

4. O encontro 41

5. Considerações éticas da clínica relacional 42

Capítulo III Psicologia e Religiosidade 46

1. O mistério da existência humana 46

2. A religião na cultura 51

3. A pessoa diante da religião 52

4. Posicionamentos do psicólogo clínico diante dessas questões 55

Capítulo IV O caminho metodológico 59

1. Objetivo 59

2. A perspectiva fenomenológica na pesquisa 60

3. Procedimentos 64

3.1. Os colaboradores da pesquisa 64

3.2. Entrevistas 65

3.3. A análise das entrevistas 67

3.4. Apresentação das entrevistas 69

Capítulo V Helena 70

Page 9: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

9

Capítulo VI Lílian 93

Capítulo VII Marina 115

Capítulo VIII Ronaldo 134

Conclusões e considerações finais 155

Referências Bibliográficas 167

Anexo 176

Page 10: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

10

IIInnntttrrroooddduuuçççãããooo

Trabalhar com psicologia clínica impõe desafios constantes. Aproximar-se da dor e do

sofrimento humano, assumindo o papel de um profissional que pode contribuir para lidar com

eles, é tarefa de grande responsabilidade. Compreender a condição humana exige a

aproximação de esferas múltiplas, não só da psíquica, mesmo que esta seja o foco da atuação

do psicólogo. Para isso, é preciso colocar-se humildemente diante da grandeza, da beleza e da

fragilidade do homem. Quem é este que busca ajuda? O que procura? Como é sua vida? Que

contexto cultural o influencia? Como se singulariza diante de tudo o que lhe é apresentado?

Qual sua relação com a dimensão misteriosa da existência?

As teorias sobre o psiquismo, isoladamente, têm se mostrado muitas vezes

insuficientes para entender e explicar as diversas ações e reações humanas diante da vida.

Faz-se necessário partir da experiência, da prática profissional, com olhos despidos de

concepções teóricas prévias, para compreender os fenômenos na sua dinâmica de

apresentação e, assim, construir novos conceitos, mobilizados pelo impacto da relação

terapeuta-cliente. Quero enfatizar uma forma de se fazer psicologia que contemple a

complexidade do existir e acompanhe o cliente na aventura da compreensão de sua existência.

Convém, então, suspender o impulso de curar, interpretar ou ajudar rapidamente,

acompanhando cada pessoa e fenômeno no seu ritmo próprio. Na busca por uma clínica mais

humana, mais ética e criativa, procuro mergulhar na minha própria experiência e no assombro

que me causam certas questões e posicionamentos diante do ser humano. Assim, ao longo

deste trabalho, utilizo autores que me lançam no desafio de buscar esse tipo de olhar, voltado

para o homem na sua totalidade, diante do mistério do existir. Nessa busca, parto de algumas

experiências instigantes, que me colocaram frente à realidade formulando algumas perguntas

Page 11: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

11

sobre a atuação clínica, que me levaram a delinear este trabalho no campo da Psicologia e

Religião. Empreender essa intersecção é um desafio, pois se trata de enveredar por questões

que tangem o mistério e apontam constantemente para experiências humanas presentes desde

as sociedades mais arcaicas, constituindo fenômenos sociais e subjetivos. A religiosidade na

clínica psicológica revela modos de ser do cliente e aponta para a questão da busca de sentido,

do mistério, da sacralidade.

Para compreender melhor as inquietações que me levaram a desenvolver essa

pesquisa, quero dar visibilidade ao processo de formação de algumas concepções que são

fundamentais no desenvolvimento da minha perspectiva em psicologia, que se construiu no

diálogo constante entre a teoria e a prática. Dentro dessas, a dimensão do mistério no encontro

humano se fez fortemente presente, tendo sido elaborada ao longo do tempo e culminando na

presente dissertação.

Ao longo da minha formação e do meu percurso profissional, fui contemplada com

alguns encontros muito significativos, que respondiam aos meus anseios enquanto psicóloga e

apresentavam caminhos possíveis para uma prática que considerava mais humana do que

outras com as quais tive contato na graduação. Apesar da fragmentação de abordagens,

comum aos cursos de psicologia, presenciei atuações de alguns docentes que relacionavam

questões históricas, filosóficas e psicológicas, abordando o ser humano com integração e

grande vitalidade. Havia, nessa postura, lugar para a dimensão espiritual, ao lado de outras,

correspondendo ao meu desejo de olhar a pessoa na sua totalidade e complexidade. Minha

primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando

com Plantão Psicológico1, procurando me aproximar mais dessa perspectiva. O que me levou

a este estágio, no entanto, não foi uma afinidade teórica, coisa que só percebi muito tempo

1 A modalidade de Plantão Psicológico consiste em atendimentos focais esporádicos, no momento de necessidade do cliente, limitando-se a, no máximo três encontros. Para maior aprofundamento, ver: Mahfoud, Miguel (1999). Plantão Psicológico, novos horizontes. Companhia Ilimitada, São Paulo.

Page 12: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

12

depois, mas sim a força da presença do professor, que me mobilizou muito. De fato, eu fora

atraída por uma forma de ver o mundo e o outro, por uma posição clara e definida diante da

psicologia. Atendendo os jovens que buscavam o plantão, eu exercitava a capacidade e a

habilidade de ouvir verdadeiramente e de me relacionar, observando mudanças de

posicionamento, tomadas de decisão e insights, mesmo em um único encontro. Eu não sabia

ao certo o que provocava tais mudanças, mas aprendi a reconhecê-las. Percebia que certa

postura e posicionamento contribuíam para que isso acontecesse, apesar de não poder garanti-

las objetivamente.

Assim, eu convivia com um mundo inteiramente novo, no qual o contato intenso com

a vivência do outro e o impacto que isso provocava em mim, eram mais importantes do que as

referências teóricas. Ao mesmo tempo, experimentava potência e fragilidade, pois enquanto

eu constatava minha presença como desencadeadora de um processo de crescimento no outro,

como intervenção concreta, que produzia novos sentidos, eu vivia a falta de controle sobre

esse processo, que ultrapassava a mim e ao cliente, apontando para algo maior da condição

humana. A constatação da fecundidade de um atendimento único, sendo apenas um breve

recorte na história de vida da pessoa, revelava as grandes possibilidades do encontro humano.

Isso, aliado às densas supervisões em grupo, momento de reflexão conjunto e atentamente

supervisionado, que se dava de forma pessoal e visceral, nos encorajava, enquanto estagiários,

a entrar em relação entre nós, além dos clientes que nos procuravam, com toda a

perplexidade, medo e risco que isso representava. Afinal, para se relacionar, entrando no

mundo do outro, é preciso se expor enquanto pessoa, consistindo em uma oferta de si mesmo,

uma vulnerabilidade diante do inesperado.

Tais experiências trouxeram uma direção ao meu olhar, levando a uma busca por

autores e variações dessa abordagem, e a muitas elaborações teóricas a partir do contato que

comecei, então, a estabelecer com a fenomenologia, subjacente a todo este trabalho. Assim,

Page 13: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

13

encontrei a Gestalt-terapia e o aprofundamento nessa abordagem trouxe diversas

contribuições para as intervenções clínicas, para a leitura do processo vivido pelo cliente e a

teorização do encontro. Um pressuposto importante dessa corrente é o de que o homem se

constrói e se transforma na relação, sendo o contato verdadeiro, o encontro de pessoa-a-

pessoa, a única possibilidade de crescimento real. Nesse contexto, a leitura de Buber, filósofo

da relação, e Hycner que, seguindo seus passos, transpõe para a terapia a postura dialógica de

abertura ao outro, contribuíram para delinear minha prática.

A complexidade da profissão escolhida ficava mais clara à luz da teoria estudada,

apontando a presença indissociável dos seguintes aspectos necessários ao fazer clínico:

embasamento filosófico, conhecimento científico, prática terapêutica e formação pessoal2.

A esfera filosófica corresponde, para a prática clínica, entre outras, a uma teoria do

ser, uma visão mais complexa e abrangente da existência humana. O aspecto científico é o

que diz respeito ao conhecimento produzido na área e à busca por informações teóricas e

metodológicas dentro da abordagem escolhida. Uma prática clínica regular torna-se

extremamente necessária para articular tais dimensões e simultaneamente questioná-las,

possibilitando diálogos e revisões das crenças e teorias. Tal prática consiste na experiência de

uma interação que certamente suscita impactos e questões. É preciso, ainda, cuidar da

formação pessoal, através de reflexões críticas constantes, supervisões e psicoterapia,

avaliando constantemente a capacidade existencial de se oferecer ao outro.

Eu assumia essa posição a partir de diálogos empreendidos na busca por um

instrumental que me permitisse acessar o que reconhecia como verdadeiramente humano e

pudesse facilitar uma relação terapêutica e transformadora. Eu começava a compreender que a

escolha da perspectiva existencial-fenomenológica se dá como postura de vida, e não só como

forma de atuação clínica ou eixo teórico-metodológico.

2 Tais aspectos foram apontados por Saleth Sales Horta, psicóloga clínica e Gestalt-terapeuta, no grupo de formação por ela conduzido no ano de 2003.

Page 14: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

14

Na seqüência de eventos que pautaram minha formação atual, a oportunidade de

trabalhar com grupos teve grande importância, pois trazia explicitada a experiência

intersubjetiva e as elaborações surgidas nessa interação. O processo grupal trazia à tona o

aspecto relacional do humano e a construção do diálogo como abertura ao outro, com suas

diferenças e semelhanças, como presença viva mobilizadora.

O trabalho em grupos, proposto pela universidade em que eu estudava, desenvolvia-se

em comunidades carentes e apontava para a importância da contextualização na prática clínica

e para a dimensão social e histórica com toda a sua relevância. Surpreendentemente, apontou

também para a religiosidade presente nessas esferas e, ainda, como algo estruturante do modo

de ser daquelas pessoas. Isso foi uma surpresa, pois o tema da espiritualidade raramente tinha

sido abordado ou discutido no curso tanto nas disciplinas teóricas quanto ao se tratar do

trabalho psicológico.

Encontrei no campo teórico da Fenomenologia, nos seus conceitos filosóficos

principais e na sua transposição para o campo da Psicologia, a confirmação das minhas

experiências que apontavam a clínica, nas suas diversas modalidades como o aconselhamento,

a psicoterapia e o trabalho grupal, como via de crescimento real. Ela permitia compreender

meu percurso profissional, que sempre passou pela transformação pessoal a partir da

experiência de encontro com certas pessoas, dentro e fora do meio acadêmico, enfatizando a

crença no encontro como algo transformador e como a principal via, senão a única, para a

mudança e o crescimento. E essa experiência vivida, aliada a elaborações teóricas, me permite

afirmar com veemência a importância ontológica do encontro. Foi a vivência pessoal da

dimensão relacional que me abriu para o outro, para a interlocução com diversos autores e

para o exercício da atividade clínica, seguidos, posteriormente, do desejo de pesquisar,

enveredando pelo campo da religiosidade e suas interfaces com a clínica psicológica.

Page 15: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

15

Atuando na clínica individual e grupal, um fenômeno começou a saltar aos meus

olhos: a grande incidência de temas relacionados à religiosidade e as diversas reações que

estes suscitavam nos profissionais, incluindo-me entre eles. Perplexa, observei certa

dificuldade em colocar em prática os pressupostos das psicologias fenomenológicas nas

situações em que essas questões eram abordadas pelos clientes, de tal modo que, nesses

momentos, as experiências na clínica acabavam por se tornarem desalojadoras para o

psicólogo. Em contatos informais com diversos profissionais, obtive a confirmação dessa

observação: ao se deparar com o tema religioso na clínica, sentiam-se confusos e não sabiam

o que fazer. Duas situações serão descritas a seguir para ilustrar esse fato. Referem-se a

trabalhos com grupos terapêuticos, dos quais participei e que aconteciam segundo um enfoque

clínico de referencial fenomenológico.

O primeiro exemplo alude a um trabalho desenvolvido durante a graduação em centros de

saúde pública em uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, MG. A população

atendida era pouco favorecida do ponto de vista sócio-econômico e muitos freqüentavam os

postos de saúde da sua região mensalmente, em grupos coordenados por diferentes profissionais.

Um destes trabalhos referia-se ao grupo terapêutico a cargo dos estagiários de psicologia,

contratados através de uma parceria com a universidade federal. Este grupo tinha como meta

trabalhar questões objetivas relativas ao tratamento de diabetes e hipertensão arterial, partindo das

vivências pessoais e buscando ser um estímulo para facilitar a expressão das pessoas. Tinha um

papel de destaque entre os demais trabalhos segundo seus participantes e segundo a própria

equipe de saúde, já que acolhia todas as falas, ajudando na explicitação das vivências sobre os

diversos temas e apontando sua relação com o tratamento das doenças. Era visível a mudança dos

participantes: maior flexibilidade, maior responsabilidade na adesão ao tratamento, respeito às

diferenças dentro e fora do grupo, aprendizagem do diálogo e maior auto-conhecimento.

Page 16: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

16

Os grupos eram temáticos, havendo a predominância de um dado assunto durante a

reunião. O tema era escolhido de acordo com a demanda apontada no encontro anterior e

servia de substrato para a preparação de uma dinâmica de grupo que facilitasse a expressão e

a conseqüente compreensão do tema. Esse tipo de grupo acontecia em uma população

bastante diversificada em relação à religiosidade e este tema mobilizava grande parte das

pessoas, que falavam sobre ele inúmeras vezes. No entanto, a conduta profissional adotada em

relação a este assunto era diferente das adotadas quando se falava de outras questões. A

indicação que nós, estagiários, recebíamos era a de que convinha contorná-lo, evitando

dificuldades de condução, pois o tema era delicado e poderia dar margem a discussões de

cunho religioso, bem como confronto entre as diversas crenças, afastando o grupo da sua

função clínica. Era sugerido ouvir a fala religiosa, mas retomar o assunto anterior, sem

aprofundar ou abrir tal questão para o grupo. Porém, as crenças de católicos, evangélicos e

espíritas sempre apareciam quando as pessoas eram convidadas a examinar suas vivências

sobre qualquer tema proposto, o que sugeria que esse tema era algo estruturante na vida

daquelas pessoas e tinha relação até mesmo com a forma como concebiam o tratamento

médico e o auto-cuidado, focos do grupo em questão. Tais pessoas viviam em um universo

específico, pois eram pertencentes a comunidades humildes e carentes, e parecia-me que seria

interessante para o desenvolvimento do trabalho psicológico, compreender que papel a

religiosidade desempenhava em suas vidas.

Em contato posterior com os estagiários que participaram do referido projeto no

mesmo período, pude observar nestes o mal-estar provocado por essa situação. Havia uma

tensão ao se depararem com um tema que se tornara tabu e sobre o qual a orientação era evitar

intervenções. Além disso, era trabalhoso contornar o tema, que aparecia com grande

investimento vivencial. Algumas perguntas surgiam em nós, pois a abordagem teórica

utilizada, de base existencial-fenomenológica, pressupõe abertura, escuta do outro e aceitação

Page 17: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

17

do que vier, como pré-condições para o crescimento e o desenvolvimento dos clientes. A

partir do momento que a fala sobre uma vivência relevante era evitada, o que ocorria, do

ponto de vista terapêutico? E o que fazia com que este tema fosse evitado, não só nessa

situação, como em grande parte dos atendimentos clínicos, como passei a notar

posteriormente em outras experiências?

De fato, após a graduação, presenciei outra situação na qual pude observar a dificuldade

em relação ao tema da religiosidade. Tratou-se de uma atividade iniciada por uma Organização

Não Governamental de base católica, cujo trabalho era articulado com a comunidade. Os

psicólogos dessa ONG me convidaram para participar de uma proposta em andamento:

desenvolver grupos com os pais e mães das crianças atendidas. Segundo eles, as sessões

estavam “confusas”, precisando de melhor delimitação do ponto de vista teórico e

metodológico. A partir daí, marquei alguns encontros com estes profissionais participantes do

trabalho, para discutir o delineamento do grupo terapêutico e o papel do psicólogo existencial-

humanista na sua condução. Combinamos que eles me descreveriam as sessões, com as

intervenções que fizeram e as falas dos participantes, além dos sentimentos e pressupostos que

levaram às suas condutas profissionais. Iniciamos um processo de sistematização do trabalho,

que revelou um dado interessante: era clara a presença dos valores religiosos dos profissionais

diante dos temas trazidos pelos pais e mães pertencentes ao grupo, o que sugeria a existência de

uma expectativa dos coordenadores de que as pessoas passassem a ver o mundo da forma como

eles viam, a partir de uma perspectiva cristã. Tais objetivos não condiziam com a finalidade dos

grupos conduzidos no referencial fenomenológico e o impasse foi grande, pois esta abordagem

deixa claro o respeito pela autonomia da pessoa atendida e a suspensão dos juízos, na medida do

possível, para favorecer a integração das experiências vividas. Por outro lado, também enfatiza

o envolvimento do profissional enquanto pessoa, com toda a sua bagagem existencial. Após

algumas discussões buscando integrar esses aspectos e desenvolver um trabalho grupal bem

Page 18: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

18

delimitado, um grande mal-estar parecia tomar conta das reuniões que terminavam sempre com

um impasse: os limites entre uma abordagem psicológica e uma religiosa, bem como os

objetivos e competências em cada caso. Assim, gradualmente, tais encontros para discussões

teórico-metodológicas se tornaram mais escassos e o projeto foi interrompido, assim como,

posteriormente, os atendimentos grupais.

Esta experiência foi, de certa forma, oposta à primeira, pois, no caso, havia um interesse

maior pela dimensão religiosa em detrimento das demais. A postura dos psicólogos da ONG

revelava, no entanto, a mesma dificuldade apontada anteriormente: a de manter na prática os

pressupostos teóricos adotados, com abertura ao tema que os clientes traziam. Que efeito teria

esse interesse maior pelo aspecto religioso por parte do psicólogo, do ponto de vista terapêutico?

Como refletir sobre a orientação religiosa implícita na atuação clínica?

Devido a tais experiências, nas quais o tema da religiosidade gerava dúvidas e suscitava

uma série de debates, ficava evidente para mim a dificuldade dos psicólogos em tratarem a

questão religiosa, consigo mesmos e com seus clientes.

Certamente, eu poderia citar e explorar muitas outras situações na clínica individual,

porém tais exemplos do trabalho com grupos evidenciaram essas questões publicamente,

promovendo discussões e perguntas que não chegavam a soluções satisfatórias, no sentido de

trazer uma compreensão melhor das dificuldades que os psicólogos encontravam para lidar com o

tema religioso. Posteriormente, estudando o assunto, encontrei na literatura científica, dentro e

fora do Brasil, a confirmação de tais observações, mostrando as dificuldades com o tema no

trabalho clínico em geral e apontando a necessidade de desenvolver pesquisas nessa área. Estudar

este tema contribui, portanto, para a compreensão de um aspecto pouco explorado, mas

intensamente vivido por grande parte dos psicólogos (Ancona-Lopez, 1999; Giovanetti, 1999;

Amatuzzi, 2001a; Shafranske, 1996).

Page 19: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

19

Na história da Psicologia, a dimensão religiosa tem sido, em geral, bastante ignorada e

delegada a outros planos do saber, principalmente em nosso país, embora um grupo restrito de

psicólogos sempre tenha se dedicado ao tema. Nas últimas décadas, o surgimento de inúmeras

denominações religiosas e a freqüência com que o assunto é citado nos consultórios psicológicos,

provocaram maior interesse por este campo, o que tem permitido a aproximação ao tema e o

estudo das diversas formas de abordá-lo. Por ter aderido durante a modernidade ao movimento

filosófico da “morte de Deus”, a psicologia se encontra perplexa diante da nova realidade, sem

instrumental para lidar com o número crescente de pessoas religiosas (Giovanetti, 1999).

O que hoje se vê com maior intensidade é um fenômeno que vem se delineando há

décadas, no qual as religiões alternativas e mesmo as institucionalizadas vêm ressurgindo

paulatinamente. Cruz (1996) denomina este movimento de a “revanche do sagrado” e atribui

suas causas ao que denomina “Efeito Mateus II”, baseado em um versículo bíblico que

enuncia: “se você limpa a casa e expulsa seus demônios pela porta da frente, eles retornarão

sete vezes mais fortes pela porta traseira” (p. 31). Ou seja, as explicações teleológicas e as

afirmações sobre o sentido último do universo, banidas pela modernidade, voltam com força

na pós-modernidade. É um dado histórico o fato de a religião ter sido excluída da esfera

científica e acadêmica, cabendo apenas às ciências o papel de enunciar a verdade sobre a

realidade. Mas a ênfase excessiva no método científico das ciências naturais e na tecnologia,

com a exclusão das religiões, levou a uma explosão de explicações pseudocientíficas, bem

como ao surgimento de inúmeras seitas, práticas e crenças pouco elaboradas.

Cruz aponta a seriedade deste fenômeno cultural, afirmando que teólogos e cientistas

estão enfrentando o mesmo problema: ao se fecharem para os movimentos que emergem de

forma alternativa na sociedade, excluindo-os do seu campo de consideração, contribuem para

seu crescimento desenfreado. Por este motivo, propõe um diálogo entre ciência e religião, na

busca por um maior entendimento da realidade (Cruz, 1996).

Page 20: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

20

O mesmo movimento ocorre na área de psicologia, estando implícito nas suas teorias

que aquilo que é reprimido retorna de alguma forma, não podendo ser ignorado. Por isso,

torna-se urgente estabelecer um diálogo com a religião. Alguns esforços têm sido feitos nesse

sentido, inicialmente fora do Brasil, defendendo este diálogo e apontando formas de efetuar

sua inclusão na psicologia, além de trazer questões presentes nessa interface (Vergote, 1998;

Shafranske, 1996). Desde 1992, a APA (American Psychological Association) declara no seu

código de ética, que considerar a diversidade religiosa é obrigação de todo psicólogo,

buscando estar consciente de diferenças culturais, individuais e religiosas, bem como os

vieses de percepção ocasionados por essas dimensões no terapeuta.

No Brasil, pesquisadores interessados no assunto começaram a se articular e produzir

conhecimento sobre o tema. Nos últimos anos, a criação do Grupo de Pesquisa Psicologia e

Religião da ANPPEP é um marco nesse sentido, assim como a criação do núcleo de

Psicologia e Religião na PUC de São Paulo. Além disso, têm sido realizados congressos

periodicamente pelo país, originando debates e publicações. Essas iniciativas aglutinam os

profissionais interessados no tema e permitem o desenvolvimento de estudos e pesquisas na

área. Nesse sentido, muitos pesquisadores têm se empenhado, buscando explicitar a forma

como a religião aparece em diversas questões e situações em relação à psicologia (Massimi &

Mahfoud, 1999; Paiva, 2001; Amatuzzi, 2001a; Paiva & Zangari, 2004).

Assim, meu contato com as experiências anteriormente narradas e com os autores acima,

aliado ao desejo de saber mais sobre esse assunto, culminou na presente pesquisa. Porém, suas

origens estavam presentes desde o início da graduação através de vivências e sensações que só

agora puderam ser plenamente ditas e elaboradas, a partir de um processo de reflexão gradual.

Havia no meu posicionamento pessoal a valorização do encontro interpessoal e da experiência

vivida, que encontraram na fenomenologia o suporte para um modelo de clínica que aliasse meus

anseios ao rigor necessário para o desenvolvimento de uma atividade profissional que se

Page 21: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

21

mostrasse realmente humana. As situações vividas em relação ao tema da religiosidade mostraram

dissonâncias claras entre essa abordagem teórica e a sua prática.

O objetivo deste trabalho, portanto, é compreender as dificuldades vivenciadas pelos

profissionais em relação ao tema da religiosidade na clínica psicológica. Ao buscar uma maior

compreensão sobre estas dificuldades, pretendo olhá-las a partir dos efeitos que têm na ação

terapêutica, do ponto de vista fenomenológico, já que a abertura para o encontro com o outro é

condição para o trabalho nessa perspectiva.

A fim de atingir este objetivo, iniciei essa dissertação através da leitura, reflexão e

diálogo com vários autores do campo da clínica fenomenológica. Nesse enfoque, a importância

do encontro terapeuta-cliente como uma interação verdadeira, de pessoa-a-pessoa, acolhendo a

dimensão misteriosa da coexistência pode ser abordada juntamente com os passos almejados

para uma prática claramente definida. Em seguida, teci algumas considerações sobre o universo

da psicologia e religião, buscando explicitar a importância da questão religiosa para a clínica

psicológica. Na seqüência, desenvolvi uma pesquisa empírica, na qual favoreci a vivência dos

entrevistados na tentativa de compreender suas dificuldades frente a essas questões, através da

explicitação da sua experiência ao atender clientes que levam o tema religioso. A análise das

entrevistas permitiu avançar na compreensão do tema estudado.

Page 22: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

22

CCCaaapppííítttuuulllooo III

O HOMEM NA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA

A base de toda abordagem psicológica está na concepção filosófica subjacente a esta. A

concepção de homem e de realidade adotada pelo psicólogo deve ser suficientemente clara para

este, além de estar em consonância com a abordagem escolhida para nortear seu trabalho.

Diante do desafio da prática clínica, emerge uma pergunta prévia: quem é o

homem, objeto do meu interesse? Diante deste tema, é interessante recorrer à filosofia,

pois é esta que tem se ocupado do assunto, ao longo dos séculos. Segundo Augras (1986),

um posicionamento filosófico claro é fundamental para a psicologia e a importância de um

questionamento nesse nível se expressa nas perguntas “como tratar o homem, sem

questionar o que significa ser homem?” e “como avaliar as peculiaridades de um

indivíduo, sem apreender a complexidade da situação de ser no mundo?” (p. 13). Além

disso, explicitar as crenças a respeito do ser humano, em uma determinada posição

epistemológica, coloca a psicologia em diálogo com outras esferas, enriquecendo a

compreensão sobre o aspecto psíquico.

Encontro na Fenomenologia respostas a essas questões, pois ela permite o estudo dos

fenômenos propriamente humanos, com uma abordagem que se volta para o vivido,

acolhendo a totalidade do existir no mundo (Forghieri, 1984; Critelli, 1996).

Para a Fenomenologia, cada ser possui uma especificidade ontológica, que acarreta

diferentes formas de se manifestar no mundo, diferentes modalidades de realização do seu ser

(Critelli, 1996). O homem é ontologicamente diferente dos demais animais, tendo recebido,

na sua humanidade, condições específicas para dar conta da própria vida, sustentá-la e ampliá-

Page 23: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

23

la. Ele tem a chance de interferir e mudar o curso da sua existência, pois é um feixe de

possibilidades, sempre em aberto, podendo transcender e surpreender a si mesmo. É lançado

no mundo sem saber de onde vem e para onde vai, sem o controle da vida e sem certezas

sobre o seu destino. Assim, por mais que busque a estabilidade e a segurança de diversas

formas ao longo da história, o homem está sempre diante de questões existenciais que o

desestabilizam e o colocam em movimento. É um ser em constante construção, a qual se dá a

partir do contato com os outros, na coexistência. Ele é único e irrepetível, ao mesmo tempo

em que herda toda uma cultura construída ao longo do tempo por muitos, aos quais é

semelhante. Singularidade e pluralidade convivem lado a lado na difícil tarefa de habitar o

mundo e transformá-lo (Critelli, 1996; Arendt, 2002).

O homem pode ser compreendido nas dimensões que o constituem: bio-psico-social-

espiritual. A dimensão biológica se expressa na corporeidade, à qual o homem está

definitivamente atrelado enquanto vive. O corpo é um instrumento, uma morada e um limite,

algo que o conecta à concretude do mundo. É também a forma pela qual seu ser se manifesta, se

apresenta externamente de forma singular dentre os demais da mesma espécie (Arendt, 2002).

A dimensão social consiste no processo de ser com os outros no qual a pessoa

constitui a história humana e é constituída por ela. Aqui, é fundamental a herança cultural,

diante da qual o homem tem uma postura ativa, recebendo e transformando o que lhe é dado.

Cada época histórica, com suas peculiaridades, condiciona diferentes modos de responder e se

relacionar com a realidade. Nesse movimento, presente em todas as culturas e gerações, o

encontro intersubjetivo é fundamental, pois a partir deste, as pessoas são tocadas e

transformadas, sendo co-autoras das trajetórias umas das outras. Segundo Merleau-Ponty

(1999), o social existe como um campo permanente, originário, consistindo em uma

solicitação, antes mesmo da tomada de consciência em relação ao mundo.

Page 24: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

24

A dimensão psíquica, por sua vez, refere-se à forma como a pessoa vivencia sua

existência no mundo, motor de suas ações e sentimentos. Segundo Ales Bello (2004), os atos

psíquicos são atos de reação, pertencentes ao campo da afetividade e das emoções. Impactar-

se com o mundo ao redor e responder a ele é uma capacidade inerente a todos os seres

humanos, porém, a que fenômenos reagem e o conteúdo dessas reações será diferente para

cada um. Há, porém, uma estrutura comum que permite afirmar que alguém vivencia algo,

como eu, embora os conteúdos sejam singulares.

Por fim, há o nível espiritual, também presente em todas as manifestações humanas

cotidianas. Para Arendt (2002) e Ales Bello (2004), nele estão contidas todas as experiências

ligadas à razão e à vontade. São atividades que se diferenciam daquelas relativas ao

psiquismo, pois podem controlá-las através da reflexão e da decisão. “A esfera espiritual é

também uma esfera valorativa” e nela são produzidos e conferidos significados à realidade

(Ales Bello, 2004, p. 250). Para Mahfoud & Coelho (2001), a dimensão espiritual está ligada

à vivência da liberdade e da responsabilidade, pois implica um posicionamento da pessoa

diante das reações que a acometem.

O nível espiritual engloba, ainda, a questão do mistério que atravessa as experiências

humanas, apontando para a capacidade de transcendência. O homem sempre transcende a si

mesmo, por estar continuamente voltado para algo ou alguém fora de si. Nesse movimento,

busca também ultrapassar os limites do mundo sensível e relacionar-se com seres de outra

ordem, como deuses, espíritos, energias cósmicas, entre outras. Tal nível inclui o

questionamento por uma ontologia e uma teologia em cada cultura e, dentro de uma mesma

cultura, tais perguntas se voltam sobre a vida individual: “apresentam-se um passado com sua

questão originária e um futuro como pressentimento de si (Safra, 2004a, p. 84)” para cada

pessoa. São levantadas questões sobre o sentido último da existência ou a que esta se destina

dentro ou além do período de tempo que a abarca.

Page 25: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

25

Para Hycner (1995), o nível ontológico também pode ser chamado de espiritual, sendo

fundamental para a psicoterapia. Ele discorre sobre este tema, afirmando que, além das dimensões

intrapessoal e interpessoal, há o nível transpessoal, o qual se manifesta na medida em que estamos

permanentemente conectados uns aos outros também no registro espiritual. Segundo Mendonça

(s/d), esta dimensão está fortemente presente no encontro transformador na clínica:

Na terapia, a espiritualidade se dá numa postura de reconhecimento da existência de algo além do terapeuta e do cliente, que, no entanto, é originário do encontro entre os dois (p. 2).

Na perspectiva buberiana (Buber, 2001), não é através da transcendência da realidade

mundana que se chega ao nível espiritual, mas justamente estando imerso nesta, a partir da

relação com o outro.

Ao elaborar suas vivências e conferir sentidos ao mundo, singularizando-se, a pessoa

transita entre as diversas dimensões. Para que os conteúdos do psiquismo se expressem,

precisam de um lugar que veicule tais reações e as tornem visíveis e sensíveis, e este lugar é o

corpo. A própria percepção tem sua origem na corporeidade, nos sentidos. No entanto, para

que uma pessoa avalie como reais suas percepções, é preciso que exista um expectador,

alguém com quem compartilhar o fenômeno vivido. É preciso um reconhecimento, pois o

homem não se faz sozinho, e sim na coexistência. Paralelamente a este processo, a pessoa

constitui valores e crenças, exercendo a vontade, a liberdade e a responsabilidade, dentro dos

seus limites. Assim, novos sentidos são construídos e decisões são tomadas diante da vida.

Há, portanto, uma inseparabilidade das quatro dimensões humanas: o homem é de fato um ser

bio-psico-social-espiritual, construindo-se de forma integrada. O que interessa para a

psicologia, então, é como nos diferenciamos, como nos singularizamos, mesmo tendo uma

estrutura semelhante, sendo lançados no mundo com as mesmas condições ontológicas.

Importa como cada um sustenta a própria vida e coloca em trânsito seu processo de

crescimento (Arendt, 2002; Ales Bello, 2004; Safra, 2004a).

Page 26: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

26

Em todos os níveis o homem existe compreendendo e, segundo Augras (1986), “a

compreensão não é um mero instrumento de apreensão do mundo, mas uma dimensão

ontológica da existência” (p. 24). Isso é fundamental para a psicologia fenomenológica, que

privilegia essa característica inerente ao homem de elaborar continuamente sua condição. Por

isso, é importante, além de procurar ter em foco todas as dimensões do homem acima

assinaladas, considerar sua inter-relação do ponto de vista ontológico, refletindo a seu

respeito. Ao olhar o ser humano em toda a sua diversidade, abre-se a possibilidade de

perceber fenômenos para além do psíquico, mas que interferem neste, ou que simplesmente

coexistem na vida da pessoa. Safra (2004a) aponta para a importância desse tipo de reflexão,

assinalando que há sofrimentos que alcançam o registro psíquico, mas não têm sua origem

neste. Como os seres humanos são atravessados por toda a história e suas questões, a clínica

atual “exige que o profissional possa estar situado no registro ético-ontológico, a fim de que

possa ouvir a dor de seu paciente no registro de seu aparecimento” (p. 34). A elaboração

ontológica é a elaboração do ser sobre a sua origem e sua condição de existente, para além do

cotidiano e é algo passível de acontecer na clínica psicológica (Araújo, 2003). A função do

psicólogo não é responder, nesse nível, às perguntas trazidas pelo cliente, mas acompanhá-lo

nesse questionamento, permitindo sua expressão.

A escolha da fenomenologia enquanto orientação existencial, postura e método de

intervenção na clínica psicológica permite considerar todas as dimensões do humano,

facilitando o talhamento de um olhar e a consolidação de uma postura em direção ao outro.

Tal abordagem amplia a percepção do terapeuta, permitindo acolher os modos de ser daqueles

que o procuram, contribuindo para que a psicoterapia seja a possibilidade de um encontro real

e transformador.

O encontro pessoa-a-pessoa, para ser legítimo, deve abranger o ser humano na sua

complexidade, considerando todos os seus aspectos e sua condição particular no mundo.

Page 27: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

27

Assim, deve haver uma abertura para a condição de mistério presente na existência humana e

na relação com o mundo, pois esta nunca será plenamente explicada. Cabe ao homem acatar

sua ontologia, impactar-se, admirar o mistério que o envolve e se colocar em marcha,

transcendendo, crescendo, humanizando-se em meio aos paradoxos da vida. Isso, no entanto,

não pode ser feito individualmente, pois o homem é um ser-no-mundo e um ser-com-os-

outros. Nesse ponto, a psicologia pode entrar como contribuição no processo de vir a ser de

cada um. Assim, é preciso explorar mais profundamente como o psicólogo pode se colocar

diante do seu cliente de modo a ser um outro disposto a um relacionamento, mais do que um

profissional que faz intervenções. Assim, antes de empreender um diálogo com a dimensão de

religiosidade, é preciso explicitar a que clínica estou me referindo, da qual compartilham os

entrevistados que colaboraram com suas experiências para essa dissertação.

Page 28: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

28

CCCaaapppííítttuuulllooo IIIIII

A CLÍNICA FENOMENOLÓGICA

O profissional imbuído da concepção de homem descrita anteriormente buscará uma clínica

que contemple o homem em todos os seus aspectos constitutivos, para que suas intervenções

possam contribuir com o seu crescimento. É papel da clínica acolher a pessoa nas suas

dimensões bio-psico-social-espiritual, ajudando-a a elaborar suas experiências, integrando

estas esferas. Essa integração, no entanto, só possível no encontro com outra pessoa, pois o

homem se constrói na relação com os demais, sendo o terapeuta alguém que propõe um tipo

de relação que abra as possibilidades de transformação inerentes à condição humana. A

presença do terapeuta, então, se torna a primeira e talvez a sua principal intervenção ao longo

de todo o processo.

Certamente, a pessoa pode entrar em um processo de crescimento e mudança a partir

de diferentes encontros e experiências ao longo da vida, sem que haja relação com a

psicologia. Mas como o foco desse trabalho se dá no âmbito da clínica psicológica como via

para encontros terapêuticos, abarcando nesse meio a questão religiosa, faz-se necessário

aprofundar a dimensão do encontro entre terapeuta e cliente, explicitando os elementos

presentes nessa interação, clareando esta proposta clínica antes de adentrar pela dificuldade

dos psicólogos dessa abordagem em atenderem quando aparece o tema religioso.

Alguns autores específicos contribuem para a concepção de clínica que embasa este

trabalho e que é geralmente buscada por aqueles que escolhem trabalhar com a fenomenologia.

Este capítulo pretende conectar a visão de homem aqui adotada com a forma de se trabalhar

Page 29: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

29

calcado nessa perspectiva. Pretendo aprofundar a noção de encontro na clínica, tecendo

discussões sobre o papel do psicólogo e o que é considerado terapêutico dentro dessa abordagem.

Entre os pensadores que se dedicaram intensamente à questão da co-existência,

encontra-se Martin Buber, o filósofo da relação. Em toda a sua obra, Buber tem grande

preocupação com a ontologia e a antropologia na teorização da relação humana, do encontro

pessoa-a-pessoa. Seguindo seus passos, diversos fenomenólogos, entre eles autores da

Gestalt-terapia, promoveram desdobramentos das suas idéias com aplicações clínicas. Como o

homem se constrói e se transforma no encontro com os demais, a relação é anterior à

existência, a precede e recria a cada instante. É por este aspecto, então, que pretendo começar

as reflexões sobre a clínica fenomenológica.

1. A relação Eu-Tu

As idéias de Martin Buber contribuem para a integração de uma concepção filosófica

do ser humano a uma atitude diante deste. Por este motivo, sua obra me toca profundamente,

aliada às contribuições de outros autores. Segundo Zuben (2003), a atualidade da obra de

Martin Buber se deve a dois fatores: primeiramente, ao vigor provocativo de suas reflexões e,

em segundo lugar, ao compromisso com a existência concreta do homem, voltando-se para a

realidade do mundo e para a experiência vivida. Em sua obra, Buber trata do homem no

mundo, o qual tem múltiplas possibilidades de existir, dependendo de como se coloca. As

palavras-princípio EU-TU e EU-ISSO assinalam modos de ser do homem, formas de

responder à realidade, que sempre solicita um posicionamento. O Eu que se abre para um Tu

não é como o Eu que se relaciona com um Isso, ou seja, a forma de relacionamento

estabelecida fundamenta o modo de ser. Por isso, a relação é originária, produzindo diferentes

possibilidades da pessoa estar no mundo. Eu-Tu e Eu-Isso são parte do movimento humano,

Page 30: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

30

sendo inseparáveis, alternando-se constantemente a cada relacionamento. Na visão de Buber,

a vida é plenitude sendo também a união dos contrários (Buber, 2001).

Na atitude Eu-Tu, a pessoa entra em relação, deixa-se impactar, deixa-se atravessar pela

presença viva do outro, seja este outro uma pessoa, uma situação, uma obra, ou um ente

qualquer. Há nesse instante uma dimensão intensiva, não mensurável ou redutível à

temporalidade, espacialidade e questões objetivas. O mundo do Tu não tem coerência no espaço

e tempo, é um campo de forças, de presença, de vitalidade. Não pode ser apreendido ou

aprisionado em representações, sempre escapa. Não se reduz à percepção. É intenso, vivo,

pulsante. Sempre ressurge diferentemente, em contínua transformação.

A atitude Eu-Isso, por sua vez, experiencia de forma objetiva as situações. O mundo do

Isso, da objetividade, ordena o real, transformando-o em habitável e reconhecível. Para Buber

(2001), a melancolia de nosso destino é que o Tu se torna, irremediavelmente, um Isso. Há uma

brevidade. Não se consegue manter a primeira atitude, pois o homem é incapaz de habitar

permanentemente no encontro.

A experiência implica um distanciamento reflexivo. Está no âmbito do Isso, enquanto

a relação está no âmbito do Tu. Na perspectiva buberiana, relação é vivência, não experiência.

Ao encontrar alguém no modo Eu-Tu, a conseqüente perda do espaço, do tempo e

desestabilização do Eu possibilita contemplação, sensações, atravessamentos. A relação Eu-

Isso, ao contrário, situa a pessoa no mundo dos objetos, sendo extremamente necessária,

desde que não se torne a forma predominante de relação com o mundo. Para Merleau-Ponty

(1999), ao perceber o outro como um Isso, objetificando-o, afasto-me da sua presença viva.

Para este autor, “no pensamento objetivo não há lugar para outrem” (p. 468). Acessar o outro

como representação é perder a humanidade, a vida que é dada ao homem.

Ao postular sobre a relação e seus modos de acontecer, Buber (2001) considera o

homem como ação no mundo. Sua disposição para entrar em contato com um outro tem

Page 31: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

31

conseqüências na própria vida, imprimindo-se no seu modo de ser. Há uma escolha,

consciente ou não, de se deixar tocar pela presença viva da alteridade, sofrendo as

conseqüências deste impacto. Nessa perspectiva, a palavra proferida no diálogo é um gesto

que se inscreve no mundo; é ação. Por esse motivo, a palavra falante, nascida no encontro

verdadeiro, atualiza o ser do homem, transforma-o. Ao falar, uma mudança é produzida e, no

contato intersubjetivo, surgem novos modos de subjetivação. A palavra é possibilitadora de

ser e sua força transformadora se concretiza no “entre”. O “entre” constitui-se como um

espaço de trocas, algo que não pertence a nenhum dos participantes, pertence a ambos e os

ultrapassa. É a dimensão de mistério no encontro humano, que transcende os envolvidos e

aponta para novas possibilidades de ser e estar no mundo. É importante lembrar que, para

Buber (2001), nesse nível não se pode limitar ao intrapsíquico. O diálogo é algo que ocorre

entre as pessoas, e não dentro delas. É voltar-se para o outro, para o mundo e, então, poder

ver-se enquanto um Eu e ao outro enquanto Tu.

A concepção de Buber sobre a relação me remete à prática clínica, ajudando a

compreender o fascínio que trabalhar calcada nesse tipo de concepção exerce em mim,

enquanto pessoa. Quando consigo me abrir para o cliente de forma a conseguir acessá-lo

enquanto um Tu, permitindo que ele se torne presença para mim, se institui uma forma de

relação na qual entro no modo Eu-Tu de funcionamento, ou seja, torno-me um Eu. Posso ser

um Eu porque digo Tu e, assim, meu eu já não é o mesmo, é um Eu em relação, torna-se

também gesto, acarreta uma transformação. Por isso, a relação entre terapeuta e cliente pode

ser algo tão fecundo, sendo seguida, muitas vezes, de uma sensação indescritível de

admiração e plenitude. É um sentimento fugaz, mas que tem conseqüências também para o

terapeuta. É como se fosse realmente uma ruptura do funcionamento comum e uma abertura

sutil para a dimensão ontológica que nos envolve. Por isso me corresponde trabalhar nessa

perspectiva, acreditando que o cliente possa viver algo assim, mesmo que não se dê de forma

Page 32: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

32

reflexiva ou constante. Experimentar novos modos de ser em presença de um outro se torna

uma ação, um gesto e, assim, deixa marcas.

Dessa forma, os encontros surgem como “visitas”, interpelando a pessoa, que não

pode forjá-los ou garanti-los. Porém, ao mesmo tempo em que é algo intenso e prazeroso, este

acontecimento deixa mais questões do que conforto e satisfação, abalando a segurança da

pessoa, lançando-a ao encontro de um terceiro elemento, o espaço do “entre”, que a leva ao

contato consigo mesma e com um outro, mas abala as estruturas já construídas. Mesmo assim,

segundo Buber, a relação é buscada incessantemente, como a única forma de crescimento,

apontada por ele como uma necessidade inata do ser humano. A relação Eu - Tu confronta,

provoca e remete ao paradoxo da existência. No entanto, segundo Zuben (2003), muitas vezes

a beleza da obra de Buber pode ofuscar este sentido, fascinar o leitor e impedir a visualização

desse paradoxo e da sutileza do movimento do encontro: “O estilo da obra a revela e ao

mesmo tempo a oculta” (p. 109). A visão de plenitude e beleza excessivamente colocada por

Buber, ao lado da gratuidade, aceitação incondicional, abertura completa para o outro se

situam em um nível mais teórico e idealizado, embora, de fato possam ocorrer em breves

momentos. Isso pode transmitir a falsa idéia de uma visão de mundo romântica ou um

otimismo exacerbado. Mas no diálogo verdadeiro, tanto no que é mutuamente construído e

buscado, quanto na relação espontânea, a vivência Eu-Tu pode ocorrer, abrindo e

transformando. Buber admite e explicita a fugacidade dos momentos Eu-Tu em meio à atitude

Eu-isso, mas assinala aquilo que também percebo a partir dos encontros que vivenciei:

quando acontecem, seus efeitos são inegáveis.

Como Buber é um filósofo, a transposição de seus conceitos para o campo dos

fenômenos psíquicos exige reflexões críticas e comparações com as vivências na prática.

Amatuzzi (1989), ao avaliar a importância dada por Buber à mutualidade na relação Eu-tu,

conclui que a psicoterapia não pode ser considerada uma situação de diálogo pleno, de relação

Page 33: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

33

Eu-Tu completa, pois não há igualdade de papéis. Ela é, de certa forma, unidirecional e também

não é totalmente aberta, tem suas delimitações: “Em palavras simples, a psicoterapia é também

uma forma específica e limitada de relação” (p. 59). Essa colocação questiona o alcance da

atuação do psicólogo. Para Amatuzzi (1989), a relação humana transcende em muito as

possibilidades de uma terapia, mas esta pode ser extremamente fecunda na medida em que se

aproxima de um relacionamento pessoa-a-pessoa. Pode-se observar posição semelhante em

Rogers (1983), na medida em que afirma que a terapia será mais fecunda quanto mais se

aproximar de uma relação Eu-Tu verdadeira.

Ao partilhar esta visão com os autores citados, é preciso pensar profundamente a relação

que se dá no processo de psicoterapia e em que medida esta pode facilitar o encontro verdadeiro,

apresentando resultados terapêuticos para o cliente.

2. A psicoterapia dialógica

A busca por um diálogo verdadeiro acompanha a vida humana, e este é solicitado cada

vez mais por aqueles que se dispõe a trabalhar com o psiquismo, ou mais do que isso, com a

pessoa. Hycner (1995) e Amatuzzi (1989) refletem sobre as aproximações entre a filosofia de

Buber e a psicoterapia, enfatizando a importância do diálogo genuíno. Para Hycner (1995),

criador do termo “psicoterapia dialógica”, foi fundamental perceber que, ao falar no aspecto

inter-humano, Buber referia-se a algo muito maior do que o psicológico, maior inclusive que

o interpessoal e o intersubjetivo. A concepção de homem de Buber é elaborada a partir de

uma ontologia, buscando contemplar a relação humana na sua totalidade.

Incluir essas considerações na clínica psicológica contribui no sentido de não olhar apenas

para o ato psíquico que se mostra, mas buscar apreender a pessoa na sua dinâmica existencial,

vivenciando o “entre”, ou seja, incluindo a relação como fundante no processo desencadeado.

Está pressuposto aqui que o psicólogo pode ajudar o seu cliente a se aproximar daquilo que lhe é

Page 34: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

34

mais próprio e a buscar sua singularização através do exercício da relação. Esta, conforme

postulada por Buber, não pode ser controlada e forjada de acordo com o desejo dos participantes,

ela é um acontecimento, porém certa postura e disposição diante do outro facilitam a

aproximação, abrindo caminho para o encontro real entre pessoas. Alguns passos, então, se fazem

necessários no intuito de que o exercício clínico embasado por essas crenças se dê com maior

rigor. Assim, certas condições preparam o terreno para que um diálogo possa emergir e então,

momentos de encontro ou relação Eu-Tu no âmbito da clínica psicológica.

A primeira condição para que ocorra um diálogo genuíno é a autenticidade dos

participantes, ou seja, a possibilidade das pessoas se guiarem pelo que são no momento, sem

querer parecer algo, ou produzir uma imagem de si. A este respeito, Rogers (1983) e Miller

(1997) enfatizam que agir a partir de uma imagem não corresponde à plenitude do ser e,

portanto, gera frustrações ao longo da vida. É um desafio colocar-se diante do cliente como se

é e encorajá-lo a fazer o mesmo, pois isso implica em vulnerabilidade, mesmo que possa levar

ao crescimento, amedrontando, muitas vezes não só o cliente, mas também o terapeuta.

A segunda condição é perceber o outro enquanto alteridade, na sua singularidade,

totalidade e concretude. É ter uma atitude de contemplação, e não de mera observação.

Segundo Amatuzzi (1989), a contemplação de Buber aproxima-se da observação

fenomenológica e busca captar o fenômeno naquilo que ele “fala”, pois ele “comunica” algo.

“A fala no contexto do diálogo genuíno é também uma fala proveniente da totalidade do ser”

(p. 45). Ou seja, a conversação que emerge no encontro abre para uma fecundidade, que

possibilita o surgimento da fala viva, polissêmica, com o aparecimento de novos sentidos.

Com isso, a pessoa atualiza o seu ser, colocando-se em trânsito novamente.

A terceira condição é que nenhum dos parceiros queira se impor ao outro. Há uma

confirmação da pessoa, o que pode ser definido como sua legitimação enquanto interlocutor

Page 35: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

35

do mesmo nível. Confirmar alguém é acreditar nele enquanto pessoa, sem ter que,

necessariamente, concordar com ele.

O inter-humano desabrocha nessa relação verdadeira de abertura. É grande a

responsabilidade do psicoterapeuta, que deve fazer o possível para desenvolver tal atitude.

Amatuzzi assinala que “se eu não tiver a quem falar e que me ouça totalmente, eu não me

expresso e, conseqüentemente, não atualizo o meu ser” (Amatuzzi, 1989, p. 172, grifos do

autor). A palavra, enquanto gesto fundador de mundos se reveste de fundamental importância,

apesar de não ser a única forma de dialogar. Olhares, gestos, sentimentos fazem parte da

dança rítmica construída por terapeuta e cliente durante a sessão.

O terapeuta tem sua responsabilidade no desencadeamento desse processo, mas isso

não significa onipotência ou controle. A clareza de sua proposta abre caminho para o

surgimento de uma terceira força que age na terapia, o “entre”, o que é confirmado pelas

palavras de Mahfoud (1989):

Não sou eu – por mim mesmo – que consigo que o outro faça certo caminho e mude, se abra e se centre. Não é nem o outro por si mesmo – tanto que pede ajuda. Mas cada um participa com o que é, terceiro elemento, integra e compõe um movimento (que inclusive justifica a continuidade dos encontros) (p. 574).

Tal processo é apoiado em uma escuta diferenciada para que um diálogo possa

emergir. É necessário explicitar que a noção de diálogo aqui adotada vai muito além de uma

conversa. Constitui-se em uma experiência de encontro com a alteridade, na qual o

significado de algo emerge como um novo elemento, que surge na margem relacional entre os

interlocutores. Encontrar um outro, sempre provoca existencialmente, pois envolve uma

expectativa que acaba se contrapondo ao novo que se apresenta, gerando um estranhamento

que pede um posicionamento. Simão (2004), denomina esse tipo de experiência de

inquietante, a qual exige novos contornos para ser significada e incorporada à vida da pessoa.

Para esta autora,

a importância do diálogo está, portanto, em se constituir em oportunidade para experimentar, por intermédio do outro, a possibilidade do diverso, não

Page 36: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

36

necessariamente antagônico, tanto no nível da conversa, quanto no nível da relação eu-outro, níveis em concomitância, via de regra, não consciente para os interlocutores (p. 22).

Diversos elementos estão contidos nesse processo, que ocorre na vida cotidiana e é

buscado também na clínica, com uma atenção e rigor diferenciados, começando por um tipo de

escuta que viabilize seguir com o cliente na busca de um diálogo que abra a novos significados.

3. A escuta no processo dialógico

No trabalho psicoterapêutico, a questão da escuta merece especial atenção, por ser a

primeira atitude desenvolvida pelo psicólogo. Seu papel é essencial no estabelecimento de um

diálogo e, dessa forma, no desenvolvimento da pessoa, pois é ao ouvir que começo a considerar o

outro como um Tu e, assim, me colocar como Eu na relação que se esboça gradativamente.

Algumas condições ajudam a delinear a escuta terapêutica, que, ao contrário do que se

pensa comumente, não é natural e espontânea, muito menos simples de se desenvolver. Porém,

antes de refletir a este respeito, proponho a volta a uma pergunta essencial, que deve se manter

presente para desencadear o processo de escuta: a quem se escuta? Busca-se escutar a pessoa,

inteira, em todos os aspectos que a constituem, evitando reduções, como já foi explorado

anteriormente. Ouve-se baseado em uma concepção de homem. Em segundo lugar, o que se

escuta? Não apenas as palavras, mas a não-palavra, o invisível que vibra por traz desta, o “entre”

que aos poucos se constitui: a dimensão de mistério, nunca plenamente conhecida ou revelada.

Nesses elementos estão presentes a cultura, a ancestralidade, a singularidade do que é dito e de

quem fala. Ou seja, não é apenas o conteúdo da fala que interessa, mas o movimento vivencial no

qual a pessoa está investida, os sentidos compreendidos e ao mesmo tempo velados, e o que tudo

isso diz dela, no seu processo de vir a ser.

A fenomenologia propõe uma escuta atenta, calcada na observação cuidadosa dos

fenômenos, solicitando sua descrição e enfocando nesta o vivido, a experiência da pessoa. Para

isso, é preciso muita disciplina, abertura e rigor, além da suspensão dos juízos do observador a fim

Page 37: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

37

de captar a perspectiva daquele que fala. Muitos dos pré-requisitos para um ouvir atento

coincidem com a atitude de disposição para entrar em relação anteriormente discutida. Para ouvir,

é preciso estar inteiro e totalmente presente, o que não é tarefa simples e espontânea, pois a

sociedade atual não educa as pessoas para falarem de suas experiências, fazendo com que se

distanciem delas, deixando de escutá-las; desaprendendo, assim, a ouvir os outros também

(Amatuzzi, 1989; Ribeiro, 1998). O ouvir real envolve a pessoa por inteiro, apontando a

necessidade de refletir um pouco mais sobre o ouvinte priorizado nesse trabalho: o psicólogo.

Ao escutar alguém, o psicólogo assume um olhar, uma concepção de mundo, um lugar

epistemológico. Para ouvir, é preciso confirmar o outro como ele é, legitimando-o enquanto

pessoa. Mas para ser capaz de fazer isso, é preciso acreditar de fato no ser que se encontra à

sua frente, na sua capacidade de auto-transcendência e na sua importância no mundo. Ao

considerá-lo como um Tu e entrar em relação, o Eu sofrerá impactos e mudanças. Estará

submetido à esfera do entre, “esfera da qual todos participamos quando estamos envolvidos e

verdadeiramente interessados em outra pessoa: transcendemos o senso de identidade que

normalmente conhecemos” (Hycner, 1995, p. 25). Nessa situação, a pessoa se abre, se entrega

e se expõe ao outro, mesmo na qualidade de terapeuta; por isso, existe um risco na

disponibilidade e na entrega. Hycner (1995) explora extensamente a dimensão pessoal do

psicólogo, cujo instrumento de trabalho é seu próprio ser. Enumera as dificuldades

encontradas pelo profissional ao estar diante de alguém, salientando o quanto sua história de

vida e suas idiossincrasias podem interferir na relação e na possibilidade de encontro.

Miller (1997) reúne em seu trabalho exemplos de como o despreparo emocional e a

ausência de uma relação dialógica e confirmadora na infância, interferem na forma como a

pessoa se relaciona na vida adulta. As conseqüências podem ser o desenvolvimento de um

falso self para atender às expectativas alheias e a manipulação sutil e inconsciente dos mais

fracos para que eles façam o mesmo. Para a autora, aí se encontram as origens da violência e

Page 38: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

38

da falta de diálogo que permeiam a sociedade atual e que muitas vezes impedem os

psicólogos de fornecerem um ambiente seguro onde seus clientes possam se desenvolver,

afinal, eles também foram vítimas dessa forma de educação. A partir dos trabalhos dessa

autora, Ribeiro (1998) analisa as dificuldades vividas pelos psicoterapeutas ao optarem por

uma abordagem de cunho existencial fenomenológico, pois a postura de abertura para o

encontro exigida por estas coloca o terapeuta diante do imprevisível e de si mesmo, com toda

sua bagagem existencial, estando na contra-mão do pensamento vigente.

Infelizmente, a dimensão pessoal do profissional é freqüentemente deixada de lado,

em nome de uma suposta neutralidade e da busca pela objetividade. Tal atitude impede ou

adia reflexões importantes como as que os autores acima empreenderam. É preciso reconhecer

com humildade o fato de que não existe escuta completamente descontaminada. Isso porque

somos com os outros, fazendo parte de uma rede de relações permeáveis às situações e

pessoas de diferentes formas. Mas, dentro destes limites, é possível desenvolver uma postura

crítica e cuidadosa.

Segundo Amatuzzi (1989), no decorrer de um atendimento psicológico, a pessoa pode ser

facilmente distraída da sua fala, ou do seu dar-se conta de algo, por manipulações externas,

deliberadas ou não. O terapeuta está sujeito a ter esse tipo de atitude, mas é sua responsabilidade

cuidar disso, buscando ter uma atenção vigilante aos próprios sentimentos e reações. A função do

terapeuta é bastante específica devendo estar atento aos sinais presentes na fala do cliente e ao que

este comunica enquanto pessoa inteira. Há uma escuta dotada de rigor, atenção e cuidado, sendo

formuladas as intervenções com base nessa atitude. É a relação dialógica construída que

possibilitará o surgimento de novos significados, e não a fala do terapeuta em forma de

intervenções ou interpretações, isoladamente. Por isso, deve-se contribuir ao máximo para manter

o fluxo expressivo do cliente, sem distraí-lo ou desviá-lo daquilo que lhe parece como essencial.

Aqui se faz necessário um trabalho com a dimensão pessoal do psicólogo, mantendo o foco

Page 39: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

39

também na interação que se delineia. Para este autor, é preciso estar atento à relação de poder que

pode se estabelecer no relacionamento, subjugando o cliente e não respeitando a sua autonomia e

desenvolvimento. É preciso estar atento, também, à dificuldade da pessoa dizer de si mesma e

acolher isso pacientemente. Segundo este autor, o psicólogo não tem o direito de manipular o

processo e não deve ter expectativas específicas quanto ao cliente.

Cardoso (2002) discorre sobre os obstáculos à escuta fenomenológica enumerando as

seguintes dificuldades: ausência de reflexão do terapeuta sobre sua forma de escutar, talvez

por acreditar na simplicidade e obviedade dessa atitude; inabilidade em acolher a diversidade

e as diferenças presentes no seu cliente, como escolhas muito divergentes das suas;

dificuldades emocionais do psicólogo, que em algum momento pode se ver diante de um tema

emocionalmente difícil, diante do qual se fragiliza; e por fim a ânsia do terapeuta em dar

respostas, soluções e promover mudanças no cliente.

A escuta genuína acolhe a experiência, a qual consiste em mais do que a fala ou os

sentimentos conseguem expressar. Pode, muitas vezes, estar ligada a vivências paradoxais e

situações difíceis de serem ouvidas pelo psicólogo, por causa da sua bagagem de vida. Os

diversos autores abordados nesse trabalho possuem uma crença fundamental no ser humano, o

que impulsiona seu trabalho e o fazer clínico, mas ouvir verdadeiramente é estar atento aos

problemas e paradoxos da existência, não apenas aos seus aspectos positivos. Muitos terapeutas

tendem a enfocar o lado positivo na fala do cliente, imbuídos da crença no seu potencial e na

possibilidade de uma vida melhor para ele, buscando confortá-lo, fornecer um suporte, ou

desviá-lo da dor. No entanto, esta postura excessivamente otimista, leva a uma zona de

conforto, a qual é um lugar perigoso para os terapeutas e pouco fecundo para os clientes. A

busca contínua de resolução dos conflitos impede o contato com a dimensão caótica da

realidade, que contém também grande riqueza.

Page 40: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

40

A fenomenologia procura sempre abordar os diversos lados do real, contemplando-os no

seu movimento incessante, mas a forma como se aprende a ver o mundo na tradição ocidental

torna difícil manter esse lugar de contemplação do fluxo da vida. Segundo Zuben (2003), Buber

se colocava constantemente na posição que denominava de “estreita aresta”, buscando

representar a instabilidade e insegurança próprias do existir. É difícil permanecer no lugar da

incerteza, da pergunta, da abertura ao novo. A ansiedade em dar respostas e achar soluções

muitas vezes afasta da dimensão propriamente humana e da região de mistério que envolve cada

ser. Pode afastar também as questões religiosas quando estas aparecem de forma inesperada ou

conflitante para o psicólogo.

Ancona-Lopez (1997) mostra a influência das crenças tácitas do psicólogo na prática

clínica. Ao se examinarem os seus pressupostos, na maior parte das vezes, pré-reflexivos,

pode-se re-configurar o conhecimento do profissional, abrindo-o para a experiência do cliente.

No entanto, no contato com alunos de pós-graduação, ao longo dos anos, esta autora percebeu

a evitação do exame de posições pessoais conflituosas por parte destes. A falta dessa reflexão

impede o movimento de dar-se conta da experiência de desconforto que emerge no

atendimento dos clientes diante de determinadas posturas ou temas por eles levados e,

portanto, de ultrapassar as dificuldades encontradas na ação clínica.

Para Ricoeur (1996), é importante renunciar à busca por um mundo sem conflitos. Ao

discorrer sobre a definição de pessoa, este autor aborda a noção de crise, na qual a pessoa se

percebe deslocada, sem lugar no mundo. Para ele, a existência de um momento de crise é

fundamental, pois daí surge a possibilidade de um novo posicionamento e engajamento criativo.

Só então a pessoa emerge de fato. A capacidade do psicólogo em acolher os momentos de crise

do cliente está fortemente relacionada à possibilidade de transformação e crescimento.

Safra (2004a) também aponta a necessidade urgente de sustentar o paradoxo e permanecer

com o cliente nos momentos de tensão e impasse. Isso significa acolher a pessoa na sua

Page 41: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

41

diversidade, contribuindo para uma clínica mais humana e ética. De acordo com este autor, o

psicoterapeuta contribui para o atravessamento das questões humanas, muitas delas, sem solução,

sendo possível somente fazer uma travessia a dois, encarando as desventuras do caminho.

4. O Encontro

Diante das reflexões sobre a relação e a escuta terapêutica empreendidas acima, algumas

questões se fazem presentes e pedem passagem. O desenvolvimento de uma escuta cuidadosa,

atenta e crítica, visa o estabelecimento de uma relação diferenciada, dialógica, que abra caminho

para a possibilidade de uma relação Eu-Tu, um encontro verdadeiro, mesmo que fugaz. Mas,

afinal, o que é o encontro? Qual o objetivo desse encontro numa relação profissional que é a

psicoterapia? Quais as conseqüências, para o cliente de se trabalhar nesse enfoque?

Na clínica, a questão trazida pelo cliente torna-se também uma questão para o

terapeuta que se coloca como um interlocutor real. Experiências de um outro começam a

aparecer e se descortinar diante de seus olhos e sua tarefa é acompanhá-las, acolhê-las,

contribuir para sua compreensão e ir além destas, deixando-se levar pelo cliente. A partir da

companhia verdadeira do terapeuta, a pessoa pode se arriscar a embarcar nesse processo, pois

não está sozinha. Desencadeia-se um movimento, assume-se um risco e uma tarefa. As

palavras de Mahfoud (1989) resumem o que foi abordado anteriormente:

tratam-se de certas condutas do eu que facilitam ao outro colocar-se num certo movimento de busca e de maior clareza e integração de si – e é um processo que acontece numa relação, ou seja, não é promovido por uma nem por outra pessoa, mas acontece, é facilitado naquela relação que também vai se transformando a cada movimento das pessoas (p. 547, grifos do autor).

Ou seja, o encontro não é o objetivo final da terapia. Um ponto fundamental é a sua

natureza fluida, que não pode ser tida como um fim em si mesmo. Para Safra (2004c), o

encontro não é a resposta, é o início da caminhada. Serve para que a pessoa se ponha em

trânsito, em devir. O encantamento e o envolvimento presentes na relação verdadeira

precedem o momento do encontro, no qual este encanto se rompe e algo novo é formulado,

Page 42: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

42

colocando-se em marcha. Assim, a partir do encontro, um saber é produzido e uma pergunta é

construída e apresentada.

A respeito desse movimento acarretado pelo encontro, Mahfoud (2002) assinala o

caráter da resposta que surge a partir da pergunta formulada: é uma resposta que não fecha,

que não responde simplesmente, cessando os questionamentos. Ao contrário, ela abre para

novas formulações, novas indagações. Uma resposta que surge de uma pergunta nascida do

encontro, quando corresponde à vivência da pessoa, a colocará em movimento. A

possibilidade desse movimento reflexivo e vivencial experimentado pelo cliente explicita sua

relação com o mundo e se expande, apontando para o lugar onde a pessoa de fato se situa: na

fronteira entre sua subjetividade e o mundo. Isso é fundamental na questão do encontro, posto

que ele não é um fenômeno intra-psíquico, e sim relacional. Ele ocorre na fronteira de

contato, entre o organismo e o meio, entre a pessoa e aquilo que a toca de alguma forma. Só

assim, podem ocorrer elaborações, re-significações, e a busca pelo sentido, coisas que não se

dão necessariamente no setting terapêutico, mas como conseqüência de uma relação que se

reflete na vida da pessoa também fora daquela situação específica.

Certamente, a dimensão do mistério está presente em todo este processo, que pode ser

vivido, sentido, mas não plenamente explicado. Segundo Mahfoud (1989), a chave simples e

potente para manter em marcha o movimento do cliente é admirar-se, maravilhar-se com esse

processo que se mostra, velado e revelado ao mesmo tempo. O psicólogo vive também uma

experiência estética diante da beleza e incompreensibilidade do que se revela.

5. Considerações éticas na clínica relacional

A utilização de um método de intervenção apropriado contribui para a função da

terapia de facilitação da expressão e compreensão dos significados atribuídos pelo cliente às

suas vivências. Além disso, ajuda a ter certa visibilidade e avaliação do processo terapêutico,

Page 43: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

43

mesmo que este não se mostre na sua totalidade e com clareza, posto que não acontece apenas

durante a sessão, mas desencadeia algo. Para Safra (2004a), as indagações sobre a

especificidade da condição humana e as possibilidades de se abrir para ouvir e acolher toda a

sua complexidade não são questões apenas epistemológicas, mas também éticas. Para ele, é

fundamental que a clínica se apóie em um não-saber e em uma reflexão constante sobre o seu

fazer para que a singularidade do cliente possa emergir. É uma condição ética. É preciso

voltar-se para a ontologia humana e buscar aproximar-se da pessoa também nas dimensões de

enigma e mistério que a constituem. Para este autor, a clínica não pode ser definida a partir de

procedimentos técnicos, “ela se caracteriza pelo cuidado que estabelece as condições

necessárias ao acontecer humano” (p. 27, grifos do autor).

Dessa forma, a busca pelo encontro na clínica, calcada na relação Eu-Tu postulada por

Buber, e na fenomenologia, baseia-se na possibilidade de abertura para o outro e no encontro

com ele. Isso está intrinsecamente ligado à questão de fundo: quem é o homem? Pensar a

clínica a partir dessa perspectiva é muito mais complexo do que a aprendizagem de técnicas

ou o desenvolvimento de uma postura. Trata-se da configuração de um olhar voltado para a

alteridade e a diversidade da existência, que é sempre dinâmica.

Figueiredo (2004) considera o reconhecimento do outro e das dimensões dialógica e

intersubjetiva como uma aquisição recente na psicologia, que, no entanto, tem importância do

ponto de vista ético. Para este autor, é urgente o “reconhecimento da alteridade como

elemento constitutivo das subjetividades singulares” (p. 10).

É preciso tentar diminuir os impedimentos ao desenvolvimento de uma relação

verdadeira com o outro, sejam eles teóricos, pessoais, ou epistemológicos. Uma relação se

aproxima mais do humano quanto mais o olhar dos participantes consegue captá-lo. De

acordo com a fenomenologia, a consciência é intencional e está sempre em relação com o

objeto observado. Um dado fenômeno só existe para um observador em potencial, pois algo

Page 44: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

44

só se revela para quem o pode captar. Sendo assim, a escuta segue esse processo intencional e

também o acolhimento das diversas dimensões da pessoa: bio-psio-social-espiritual. Não se

consegue captar a realidade como um todo, mas pode-se estar aberto para que esta se mostre, em

diversas nuances, no seu movimento contínuo. Quanto maior a abertura para fenômenos variados,

mais chances existem para que eles se mostrem. Segundo Critelli (1996), para haver a

manifestação de algo, é preciso haver um encontro entre o seu mostrar-se com um olhar disposto

a acolhê-lo.

A discussão sobre este tipo de clínica e uma certa postura enquanto condição ética me

remete à experiência narrada no início dessa dissertação sobre o não acolhimento da

experiência religiosa do cliente, ou sobre o fato de se direcionar sua fala para uma

determinada crença religiosa. Ela mostra a dificuldade em ouvir verdadeiramente, que

permeia toda a sociedade; dificuldade que parece acentuar-se em relação a alguns temas

específicos, estigmatizados culturalmente, ou particularmente incômodos para os psicólogos.

Algumas coisas tornam-se mais difíceis de ouvir do que outras. Como se abrir, então, para o

fenômeno que se mostra?

Facilitar o encontro dentro dos moldes tratados neste trabalho é um desafio para a

clínica psicológica, pois o principal instrumento de que o psicólogo dispõe é sua própria

pessoa. Quando o tema da religiosidade se insere aqui como mais um fator na multiplicidade

de facetas que envolvem a vida da pessoa em atendimento, o cuidado e a reflexão precisam

ser aumentados, já que se tratam de questões referentes ao sentido último da existência. O

interessante é que a prática demonstra tal necessidade, pela queixa constante de diversas

pessoas em não estarem sendo abordadas por seus terapeutas da forma como necessitam ou

gostariam. Paralelamente à evidência de que a clínica psicológica tem um grande potencial

para a transformação e o crescimento das pessoas, existe uma grande descrença por boa parte

Page 45: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

45

da sociedade. Além, disso, no campo da questão religiosa, essas questões se agravam,

merecendo maior atenção.

Por esta razão, considero necessário explorar o campo da religiosidade, buscando uma

aproximação deste, verificando sua compatibilidade e possibilidades de diálogo com a

perspectiva da clínica fenomenológica aqui apresentada. Pensar a questão da religiosidade e

acolhê-la na clínica parece ser algo difícil para os psicólogos. O que há nesse campo? O que

assusta e desestabiliza o psicólogo? Como se aproximar da dimensão misteriosa e

transcendente da existência?

Page 46: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

46

CCCaaapppííítttuuulllooo IIIIIIIII

PSICOLOGIA E RELIGIOSIDADE

1. O mistério da existência humana

Há um elemento presente na experiência religiosa, mas não apenas nesta, que é explicitado

quando se considera a dimensão espiritual da pessoa: o mistério da existência humana. Entendo

por mistério tudo aquilo que não pode ser plenamente compreendido ou explicado pelo

conhecimento científico ou filosófico disponíveis, ultrapassando a racionalidade humana. Sua

presença pode ser reconhecida e é vivida como surpresa, admiração. O mistério da existência é

experimentado como gratuidade, já que sua vivência não pode ser forjada, mas apenas acolhida.

Ele provoca interrogações, mobilizando possibilidades de significação, pois o ser humano busca

compreender a si mesmo e ao mundo. Nesse movimento, admitir o mistério da sua condição

aponta para uma característica marcante da humanidade: algo a ultrapassa; a vida é dada ao

homem, mas este não pode compreendê-la totalmente. O mistério é inerente à vida, não só no que

se refere às questões transcendentes, mas também na sua concretude cotidiana.

Na clínica psicológica, a dimensão do mistério se mantém fortemente presente, pois

por mais que se busque entender os efeitos do encontro humano, por mais que haja condições

que facilitem o atendimento, por mais que se recorra às teorias, métodos e técnicas, nada

explica seguramente a transformação vivenciada na relação. O que de fato muda? O que

produz a mudança? Cada abordagem dará uma ou mais respostas, mas cada resposta aponta

apenas um aspecto parcial da realidade. O ponto é que, ao reconhecer o ser humano como

múltiplo, singular e dotado de uma ontologia específica, na atuação clínica sempre há algo

que foge ao controle e que se passa na relação interpessoal, ultrapassando-a. No encontro

Page 47: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

47

entre terapeuta e cliente, a consideração de algo que os ultrapassa – a dimensão do mistério –

produz uma abertura frente ao fenômeno que se delineia na intersubjetividade, possibilitando

experimentar algo novo. Este mistério, perceptível na relação clínica, está presente no

cotidiano, de forma que chega a ser difícil ignorar sua existência. Sempre há situações, gestos,

sensações que rompem o habitual, acontecimentos que colocam a pessoa diante da

imprevisibilidade e movimento do existir.

Segundo Prado (1999), entre as diversas vivências humanas, duas se destacam por

colocarem a pessoa diante do mistério: são as experiências estética e religiosa. A arte e a

experiência mística buscam desvelar algo que se vive intensamente. São formas de expressão,

de vazão daquilo que pertence à ordem do inefável, pois o universo cultural muitas vezes não

tem palavras que dêem conta de tais experiências. Somente uma linguagem e um universo

fluido, como o artístico ou o religioso, permitem expressar esse tipo de vivência, que tem um

caráter totalmente singular. Além das experiências artísticas e religiosas, a experiência de

encontro verdadeiro com outro ser humano rompe as representações e mesmo a linguagem

habitual. A vivência plena de uma relação e a constatação do que ela acarreta, para mim,

também colocam a pessoa diante do mistério, exigindo formas de expressão peculiares.

Prado (1999) considera a fé e a arte os lugares da mais absoluta originalidade, nos

quais a pessoa é única e singular. Nessas situações, a pessoa é instigada a se desdobrar, se

transcender, a buscar uma forma de dar voz ao que experimenta. Ao deixar-se tocar pelo

caráter misterioso dessas experiências, cria diferentes ferramentas para lidar com elas,

produzindo um saber sobre si mesma e o mundo. Tal possibilidade também existe na

psicoterapia enquanto encontro humano. No âmbito da psicologia clínica, considero este

processo de diferenciação fundamental para o crescimento e o desenvolvimento da pessoa, do

cliente e do terapeuta.

Page 48: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

48

Safra (1999) aponta a vivência do sagrado como um caminho para a singularidade. O

sagrado pode estar relacionado à arte ou a outros universos, não estando necessariamente

ligado a crenças em um Outro Absoluto. Ele manifesta o desejo de uma potência de ser. Para

Ales Bello (2004), a busca de potência é algo marcante na existência humana, e se manifesta

mais claramente na busca religiosa. O ser humano percebe sua finitude e seus limites, mas

tem um desejo imenso de superá-los, de ir além. Busca realizar-se sempre mais, desejando a

potência, tanto no âmbito da sua vida, quanto em relação ao sentido último da existência.

Assim, quando algo novo o atravessa, indo ao seu encontro como totalmente diferente, isso se

torna indício da potência procurada. Ela pode ser inferida pelos sentidos quando a pessoa se

vê diante de algo concreto que a deixa maravilhada. Este algo, então, se torna uma

manifestação do sagrado. Em outras palavras, a experiência do sagrado se dá quando a

potência é identificada com uma realidade material, adquirindo um sentido. No contato com o

mistério a pessoa pode, então, encontrar potências.

Nesse sentido, penso que a pouca abertura para o que é imprevisível, inefável e

incompreensível na vida – o mistério mesmo – diminui a potência, no sentido do poder da

pessoa sobre a própria vida, reduzindo a sua capacidade criativa e de singularização. Para

Safra (1999), o sentimento religioso pode ser compreendido como “uma tentativa de busca do

sagrado, entendido como o anseio da potência de ser” (p. 175). Nesse ponto, crescimento

pessoal, do ponto de vista psicológico, e desenvolvimento religioso se encontram, sendo

possibilidades e caminhos diferentes na busca pela potência de ser. Mas a dimensão

psicológica jamais esgota ou substitui essa busca de potência no seu sentido pleno e mais

amplo como é apontado por Ales Bello (2004). Na dimensão religiosa, há uma busca de

aproximação por uma potência pertencente ao âmbito do divino, algo que transcende

totalmente a realidade e a condição humanas.

Page 49: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

49

Otto (1992) ressalta a força do sagrado e os aspectos vivenciais da experiência

religiosa. Suas colocações aproximam-se da dimensão hilética da religião, como apontada por

Ales Bello (2004). Ambos enfatizam as sensações trazidas pela forma física e concreta de

certas coisas que apontam para uma abertura ao transcendente. Otto analisa elementos em

diversas culturas ao redor do mundo, como paisagens exuberantes e construções imponentes,

que despertam sentimentos de maravilhamento, apontando para a existência de algo maior.

Este sentimento é algo específico que ele chama de numinoso. Segundo o autor, ele surge da

faculdade humana de conhecer, sendo solicitado pelas impressões sensíveis. Através da

descrição fenomenológica de lugares e construções humanas, Otto retrata claramente a

dimensão do mistério presente no mundo e a resposta dos homens é vista como a busca de

relacionamento com esse mistério, tido como o Absoluto, o Totalmente Outro. Para ele, as

várias tentativas de explicação e reflexões sobre essa vivência se transformaram, ao longo do

tempo, nas diversas denominações religiosas. Este momento da tentativa de compreensão e

nomeação do que se vive, para Ales Bello (2004), pode ser entendido como noético, pois aí o

aspecto racional é utilizado para conferir significados. Porém, o processo de impactar-se com

a realidade está atrelado ao ato de conferir sentidos, em um movimento simultâneo e

complementar. Na forma como Otto relata tais questões na sua obra, tal separação é acentuada

ao criticar o fato de as religiões se afastarem da vivência do numinoso e se apegarem

excessivamente a regras e doutrinas, pois é justamente o aspecto vivencial que motiva a

aderência religiosa. Sua descrição fenomenológica do numinoso e do misterium tremendum,

mostra a força viva do mistério presente desde os primórdios da humanidade e a forma como

toca o ser humano, mas apresenta uma oposição clara entre elementos racionais e irracionais,

sendo estes últimos compreendidos por ele como pertencentes ao campo do sentimento. Tal

separação pode ser observada em várias passagens da sua obra. Ales Bello (2004), por sua

vez, ressalta que o sentimento religioso não é algo meramente subjetivo e projetivo. Ele é

Page 50: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

50

produzido na relação com o mundo que, por sua dimensão misteriosa, solicita uma resposta de

outra ordem. As elaborações racionais são parte desse processo, na tentativa de conhecê-lo

melhor e se aproximar do sagrado, mas nunca são apenas e totalmente racionais, já que na

perspectiva fenomenológica, a vivência é a articulação de todos estes aspectos, é a fronteira

entre eles. Assim, na vivência do sentimento numinoso, estariam presentes os aspectos

hilético e noético simultaneamente.

Diante dessas considerações, a expressão senso religioso parece mais adequada do que

o termo sentimento religioso. A apreensão e vivência religiosas envolvem mais do que

sensação e posterior elaboração. Há um conjunto de eventos subjetivos e objetivos

acontecendo conjuntamente, envolvendo a pessoa inteira, em todos os aspectos que a

constituem. Senso religioso refere-se à exigência de significado da vida, expressando-se nas

perguntas sobre o sentido de todas as coisas, diante do mistério da realidade humana. Tal

concepção engloba um conceito de razão e experiência específicos, voltados para a totalidade

e complexidade do fenômeno religioso (Massimi & Mahfoud, 1999; Giussani, 2000).

O domínio religioso, portanto, tem características próprias, muito específicas, difíceis

de apreender em um primeiro contato com o tema. Cada estudioso desse campo, ao apresentar

sua perspectiva, aponta novos aspectos, mostrando que a dimensão religiosa é muito mais rica

e complexa do que se mostra em uma primeira aproximação. Sem o mergulho atento nessa

dimensão, deixando de lado os a priori, é fácil desenvolver uma postura cindida e

reducionista. É preciso estar atento à colocação de Otto (1992): “Se há um domínio da

experiência humana onde aparece algo que é específico deste domínio e só neste pode

observar-se, é o da religião” (p. 18).

Ales Bello (1998) enfatiza a autonomia do campo religioso em relação aos demais,

alertando para o equívoco de se reduzir a religiosidade a uma experiência psicológica ou a

qualquer coisa que caiba dentro de representações. Existe, aqui, um caráter transcendente. Ela

Page 51: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

51

também ressalta a especificidade deste campo, afirmando que a religião tem seu papel e

função no mundo, pois lida com questões que a ciência e a filosofia jamais poderiam

responder (Ales Bello, 2004).

2. A religião na cultura

As religiões existem desde os primórdios da humanidade e é evidente seu papel na

formação cultural e na construção dos sentidos no âmbito social, assim como no individual.

Paloutzian (1996) estimou que cerca de três bilhões de pessoas ao redor do mundo eram

religiosas, ou tinham suas vidas afetadas pela religião de diferentes maneiras. Se,

dialeticamente, a humanidade construiu as religiões respondendo a algo vivenciado, estas

passaram a entrar na constituição do ser humano ao longo do tempo, fazendo parte da sua

subjetividade e construções de sentido. A riqueza simbólica e cultural de uma dada religião é

uma herança recebida ao nascer, como todo o aparato lingüístico e social do contexto ao qual

se pertence. A futura aderência ou não aderência religiosa são diferentes formas de reação a

esse mesmo fenômeno que afeta todas as sociedades, repercutindo de forma diferenciada em

cada pessoa e em cada momento de sua existência (Fraas, 1997; Vergote, 1998).

O conceito fenomenológico de mundo da vida ajuda a compreender o posicionamento

da pessoa diante desses aspectos, pois relaciona o movimento intencional de cada ser humano

de dar sentido ao mundo, com a apreensão do que lhe é passado pela coletividade, pela

tradição. Todos compartilham sentidos e têm uma existência que é coletiva, mas a apreensão

da cultura se dá de forma ativa, modificando, por sua vez, o que é transmitido. Ales Bello

(1998), ao estudar a relação entre subjetividade e cultura, utiliza o método da arqueologia

fenomenológica para evidenciar os sinais históricos da importância da religião e as diversas

respostas a ela, ao longo dos séculos. Assinala que a fenomenologia se mostra adequada para

Page 52: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

52

compreender o fenômeno religioso, pois adentra a subjetividade para chegar à compreensão de

algo. Ou seja, no estudo cultural, a subjetividade deve ser considerada.

Mahfoud (2001) afirma a importância da experiência vivida, relacional, para a produção

da cultura – e vice-versa. É preciso considerar a pessoa no seu dinamismo, enfocando o

significado da sua experiência. Ao fazer parte de uma determinada cultura, de forma dinâmica, a

pessoa se posiciona continuamente. O encontro com as concepções pré-existentes mobiliza e

origina posicionamentos singulares, pois compartilhar o mundo é elaborar constantemente o

impacto suscitado no contato com os demais. Mahfoud (1999; 2003), em estudos sobre

religiosidade popular, aponta o quão fundamental é a experiência religiosa para a constituição da

subjetividade das pessoas de comunidades tradicionais. A relação entre a cultura herdada e o

posicionamento individual mostra diversos aspectos da religiosidade.

Esta ênfase na experiência é própria da perspectiva fenomenológica e se dá no campo

intencional. A experiência envolve, ao mesmo tempo, as dimensões hilética e noética do

fenômeno vivido, sendo uma apreensão global, pré-reflexiva na qual, posteriormente, podem-se

reconhecer sensações, percepções, objetos intencionais e construção de sentidos.

Giovanetti (2004) propõe uma distinção entre vivência e experiência, que complementa as

colocações acima. Para ele, a primeira é imediata, pré-reflexiva, sem um registro elaborado na

consciência. Fazer experiência é distinguir e articular sensações e percepções com sentidos,

emitindo juízos e se posicionando ativamente. Isso, certamente, envolve a participação da cultura

na qual o indivíduo está imerso, ocorrendo também quanto à sua religiosidade.

3. A pessoa diante da religião

A religião aponta para vivências intersubjetivas e é nessa fronteira que a pessoa se

situa, elaborando sua experiência e atribuindo significados, transformando a si e ao mundo.

Subjetividade e cultura estão intimamente ligadas e a psicologia se ocupa dessa interação

Page 53: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

53

quando enfoca a experiência vivida. Segundo Bergin, Payne & Richards (1996), o foco das

pesquisas sobre religiosidade mudou da questão “a pessoa é religiosa?” para “como uma

pessoa é religiosa?” (p. 303). Entender como alguém se posiciona diante da crença que adota

é importante para a psicologia clínica, principalmente para a psicologia fenomenológica, que

prioriza a experiência vivida. Na clínica psicológica proveniente dessa perspectiva, o que

interessa é a experiência religiosa do cliente e a aproximação desta na sua totalidade e

complexidade, buscando compreender seus múltiplos aspectos, inter-relações e lugares que

ocupa na vida dessa pessoa.

Segundo Amatuzzi (1997), a experiência religiosa também pode ser concebida no

plano intelectual, ou psíquico, mas ela não pode ser ignorada no seu aspecto relacional. Para

ele, “a experiência religiosa é uma forma de contato com uma realidade” (p. 32), sendo algo

que remete a pessoa para fora de si, e não algo que se passa dentro dela. É uma experiência de

encontro com o transcendente, dirigindo-se ao que é vivido como uma presença.

Mahfoud (1997) chama a atenção para o risco de banalizar ou reduzir a experiência

religiosa, considerando já saber de antemão do que se trata tal fenômeno. É preciso colocar-se

diante dele com um olhar atento, despido de preconceitos e a priori. É preciso reconhecer o

que há de próprio e específico na experiência religiosa, sem situá-la imediatamente dentro das

representações comuns já adquiridas. Este esforço é fundamental quando se busca dialogar

com um outro campo, nesse caso, o da religião. Segundo este autor, ao examinar

verdadeiramente algo, o impacto produz uma pergunta a respeito deste: “de que se trata?” e,

assim, “o horizonte no qual examinar a realidade fica maior” (p.23).

O posicionamento pessoal e a vivência de alguém diante de tudo o que lhe é

transmitido culturalmente permitirão compreender se a experiência que uma pessoa vive pode

ser considerada uma experiência religiosa. Segundo Amatuzzi (1998), esta se dá quando

Page 54: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

54

surgem indagações pelo sentido das coisas e pelo sentido último, de forma vivencial, e não só

intelectualmente, abrindo novas possibilidades de crescimento. Para ele:

Essa experiência é de natureza tão radical que traz em seu bojo a possibilidade de uma resignificação do mundo. Deve ser entendida também como um processo onde sua própria compreensão vai evoluindo e se tornando mais adequada aos olhos do sujeito que a vivencia (p. 49).

Safra (1999) considera a vivência do sagrado como algo que leva a uma transformação

interior. O fato de alguém seguir uma religião não quer dizer que ela necessariamente terá

esse tipo de vivência. Essa possibilidade existe quando a pessoa “apreende de maneira

pessoal a religião convencionada”, fazendo dela uma experiência subjetiva (p.175).

Nesse processo, considero fundamental a dimensão relacional da experiência

religiosa. Assim como na relação entre pessoas, é importante relacionar-se com o Outro

Absoluto enquanto Tu. Buber (2001) se refere à figura de Deus como o Tu Eterno, o

qual não pode jamais ser reduzido ao Isso. A relação Eu-Isso está no âmbito da

funcionalidade, não sendo aplicável à experiência religiosa, que transcende o modo

habitual de espaço e tempo, transformando quem a vive. Para Buber, a experiência

religiosa é a vivência de um encontro.

Buscar compreender o mundo da pessoa, sua visão da realidade e as crenças que

norteiam suas decisões fazem parte da tarefa da psicoterapia, em qualquer esfera das que

constituem o ser humano. Fraas (1997) considera surpreendente a atitude de desinteresse

da maior parte da psicologia pelos diversos relatos de experiências místicas e conversões

existentes na literatura. São dados da realidade, que poderiam ajudar a compreender

melhor outras dimensões do humano, inclusive a psicológica, contribuindo para a

construção de uma clínica mais humana, sem discriminações ou preconceitos quanto às

vivências do domínio religioso.

Page 55: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

55

4. Posicionamentos do psicólogo clínico diante dessas questões

O diálogo entre psicologia e religião se faz necessário, buscando uma forma de

integração deste tema à teoria e à prática. Para Ancona-Lopez (2002), tal diálogo deve

explorar aproximações e distanciamentos, pois se trata de campos distintos e específicos. Para

ela, é possível construir pontes que facilitem este diálogo, através de um trabalho

interdisciplinar, crítico e competente, que evite reducionismos. Afinal, como assinala Paiva

(2002), ambos os campos do saber têm em comum a busca pelo sentido e a produção de

conhecimento aliada à transformação pessoal. Para Ancona-Lopez (1997), o grande desafio

desse dialogo é manter o rigor exigido pela psicologia, enquanto pertencente ao campo da

ciência, mantendo a dimensão de mistério requerida pelo campo religioso.

Paiva (2002) discute a presença da religião dentro das universidades, em estudos feitos

com pesquisadores de diversas áreas. Observa que a aderência ou não a uma religião está mais

ligada a aspectos pessoais e psicológicos do que a elaborações críticas e posturas

epistemológicas. Acredita que, possivelmente, a postura dos docentes interfere na formação

dos graduandos, como se pode observar nos cursos de psicologia (Esteves, 2004).

Segundo Ancona-Lopez (1999), a grande dificuldade do psicólogo em empreender tal

integração é a falta de eixos referenciais para lidar com a questão religiosa, decorrente, em

grande parte, da falta de estudos, reflexões e interesse da psicologia pelo tema. Utiliza as

quatro categorias de desenvolvimento da experiência religiosa de Wulff (1997), a partir das

quais é possível avaliar diferentes situações ligadas à clínica psicológica.

A primeira posição é denominada negação literal. As pessoas que a adotam negam por

princípio as afirmações religiosas, compreendidas quase sempre nos seus aspectos formais e

mais racionais. No caso do psicólogo, este tende a desconsiderar a fé e a dessacralizar as

experiências trazidas pelos clientes, negando a transcendência. Tende a se fechar para

experiências de caráter simbólico e vivencial.

Page 56: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

56

Na segunda atitude, a afirmação literal, predominam fundamentalistas e religiosos

ortodoxos. Os psicólogos nessa posição costumam agir de acordo com suas crenças e

pressupostos religiosos, apoiando-se neles para o desenvolvimento do seu trabalho e não nas

teorias psicológicas. Partem de conceitos e crenças religiosas e pretendem que seus clientes

vejam o mundo da mesma maneira, compartilhando sua fé.

A terceira posição é a interpretação redutiva. Aqui, o psicólogo exclui a experiência

transcendente e busca explicações apenas psicológicas para o fenômeno religioso, reduzindo-

o a essa esfera. Um exemplo é a psicanálise freudiana clássica, que reduz a experiência

religiosa a questões psicopatológicas.

A quarta posição é denominada interpretação restauradora, sendo a que mais se

aproxima de uma prática psicológica ética e coerente. Nessa perspectiva, admite-se a

experiência religiosa como real e específica, mas há um exame crítico das crenças e

posicionamentos pessoais. O profissional se abre para as vivências, símbolos e metáforas,

buscando compreender e aproximar-se do fenômeno religioso. Tal atitude implica em

humildade epistemológica e clareza quanto aos próprios pressupostos e adesões religiosas.

Ao considerar a posição dos psicólogos a partir destas quatro atitudes propostas por Wulff

(1997), a autora lembra que a pessoa não se coloca de forma estática em uma delas. Pode migrar,

de acordo com a situação vivenciada. Ela ressalta que tais atitudes são posicionamentos frente ao

tema religioso, oriundos da articulação de cada profissional entre sua dimensão pessoal, teorias e

crenças. Elas ilustram uma possibilidade de categorizar e visualizar o que se passa no campo,

sendo muito úteis para a análise de textos e obras da área. O que importa, nesse trabalho, é que

Ancona-Lopez salienta a impossibilidade de separação entre as esferas pessoal, cultural e

profissional do psicólogo. Principalmente no trabalho clínico, a relação entre psicologia e religião

precisa ser incluída com mais freqüência como objeto de estudo, sendo necessário explicitar as

crenças religiosas daquele que se propõe a trabalhar com pessoas.

Page 57: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

57

Outros estudos mostram a presença de valores implícitos ou explícitos em todas as

formas de psicoterapia e mostram a sutileza e a importância desse tema para os debates

atuais. A questão da intersubjetividade surge aqui com toda sua relevância, pois é muito

fácil influenciar e mesmo manipular uma pessoa sem intenções de fazê-lo através da

transmissão de valores no setting terapêutico. Bergin, Payne & Richards (1996) apontam a

importância de se explicitar os valores do terapeuta para o cliente, não só aqueles

presentes na teoria adotada, como os religiosos. Isso evita a formação de uma “agenda

oculta” para o cliente, pois os valores do terapeuta, segundo os autores, terminam por

criar uma atmosfera para o trabalho que traz em si expectativas de como o cliente deve se

comportar, em que deve acreditar, entre outras. É, também, necessário reconhecer os

valores presentes nas teorias e como eles incidem na interação com a pessoa, sempre

lembrando que as teorias são falhas, consistem em hipóteses sobre o ser humano e não

verdades absolutas e imutáveis. Desse modo, a teoria e a prática interagem e uma atitude

de abertura permite aprender com a experiência do cliente, acarretando ajustes e mudanças

na teoria e na prática a partir dessa interação (Safra, 2004a).

Bergin, Payne & Richards (1996) alertam sobre a linha sutil existente entre

explorar e criticar valores religiosos. Assinalam também que só um respeito profundo pela

pessoa e seus valores pode acarretar uma mudança segura, respeitando sua autonomia e

seu processo. Os autores consideram uma invasão à integridade e identidade do cliente

aconselhar a desistência de algum fator da sua adesão religiosa. Isso inibe o processo

terapêutico. Acrescento que o contrário, encorajar certas práticas pode ter o mesmo efeito,

mesmo se sugerido com a melhor das intenções.

Nesse trabalho, não compartilho da indicação de autores como Tan (1996), que fazem uso

de práticas religiosas na terapia como apoio ao tratamento. Não acredito que esse tipo de inclusão

produza mudanças verdadeiras, vivenciais. Tais indicações estão em dissonância com os princípios

Page 58: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

58

dialógicos e fenomenológicos do enfoque aqui adotado. Quanto a explicitar os valores psicológicos

presentes na abordagem e mesmo no âmbito pessoal do psicólogo, considero uma indicação válida,

pois o cliente tem o direito de saber em que pressupostos as intervenções estarão calcadas. Mas

apesar de alguns autores como Tarragó (1999) sugerirem essa explicitação como parte do contrato

terapêutico, funcionando como o consentimento informado na pesquisa com seres humanos, creio

que conversar sobre isso de forma mais espontânea ao longo do processo pode ser mais interessante.

Assim, pode haver momentos de reflexão sobre a prática, diminuição de vieses e compreensão da

interferência de questões pessoais no direcionamento das intervenções. No entanto, desenvolver a

habilidade para tratar abertamente dessas questões exige esforço e investimento pessoal,

principalmente no que tange a religiosidade, exigindo um trabalho com as próprias crenças e

convicções. Todavia, a atitude de não desconsiderar uma experiência religiosa quando esta é trazida

pelo cliente, buscando compreendê-la com humildade, respeito e rigor metodológico já é parte do

processo para tornar essa aproximação terapêutica para a pessoa em atendimento.

Safra (2004a) discorre sobre essas questões que tangem a integração da teoria à

prática, assinalando a importância de se considerar a existência de um terceiro elemento entre

terapeuta e cliente: o mistério. Nas suas palavras:

Ele é o que não se formula, o que não se coloca, o que não há possibilidade de ser destinado pelo humano. Uma das grandes questões do mundo contemporâneo é a enorme dificuldade existente entre os homens de abrirem espaço para o mistério. Essa é uma situação muito grave na clínica, pois, na medida em que o conhecimento da Psicologia e da Psicanálise possibilitou algumas formulações, algum conhecimento sobre a situação humana, vemos muitas vezes que a teoria do analista lhe rouba a possibilidade de viver o mistério com seu paciente. Isto é trágico! (p. 124)

O acolhimento da experiência religiosa na clínica ou de questões relativas a este tema

exige um re-posicionamento do psicólogo. Que dificuldades o atravessam, impedindo-o de

abranger a totalidade da pessoa em atendimento com uma postura ética, que inclua rigor

metodológico e, ao mesmo tempo, respeito pelo mistério da existência humana? Essa

dificuldade, observada na prática e apontada pela literatura, precisa ser investigada, na busca

por uma maior compreensão deste fenômeno.

Page 59: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

59

CCCaaapppííítttuuulllooo IIIVVV

O CAMINHO METODOLÓGICO

1. Objetivo

O impacto da subjetividade do psicólogo na relação clínica é fato conhecido. O tema

desconcertante, que gerará dúvidas e ansiedades, interferindo nessa relação, será diferente

para cada pessoa. No entanto, a literatura mostra a freqüência com que o tema da religiosidade

provoca dificuldades para o terapeuta. O que busco compreender nessa dissertação é como

este tema afeta aqueles que são tocados de uma forma especial por ele e o que ocorre do ponto

de vista do encontro terapêutico, na clínica, quando isso se dá.

O objetivo deste trabalho, portanto, é compreender o que se passa com o terapeuta quando

uma experiência ou questão religiosa é relatada pelo cliente, verificando se o profissional vive

dificuldades que o desestabilizam ou não e como estas incidem na sua atuação.

Para atingir este objetivo em uma perspectiva fenomenológica, busquei, inicialmente,

apresentar a visão de homem e de clínica que orienta este trabalho. Em seguida, explicitei o

modo como é compreendida a clínica na visão da Fenomenologia e a importância, na mesma,

do aspecto relacional e de abertura para o cliente. Em seguida, considerei a dimensão espiritual

da pessoa humana e a importância da experiência religiosa assim como das religiões na sua

constituição. Essa reflexão permitiu apontar a necessidade de considerar o tema na clínica

psicológica e de conhecer as diferentes posturas dos psicólogos frente ao tema, sempre

lembrando que tanto as teorias, quanto as práticas psicológicas não são isentas de valores,

crenças e pressupostos. Para melhor conhecer o que se passa com os psicólogos diante do tema

religiosidade, desenvolvi, a seguir, uma pesquisa empírica sempre embasada na Fenomenologia.

Page 60: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

60

2. A perspectiva fenomenológica na pesquisa

Ao procurar conhecer um fenômeno humano, formulando perguntas sobre o que é e

como se dá tal fenômeno, é necessário um método que permita construir esse tipo de

conhecimento. Isso quer dizer que o método de investigação a ser utilizado é, em parte,

definido pelo objeto e, principalmente, determinado pelo olhar do investigador. No caso da

experiência religiosa e assuntos relacionados a esta, a fenomenologia mostrou-se para mim o

melhor caminho para a pesquisa, pois parte da experiência vivida, concreta, com um rigor

metodológico que fornece o respaldo necessário para a análise do material, preservando toda a

sua pluralidade, humanidade e riqueza.

No delineamento de uma pesquisa de cunho fenomenológico, algumas etapas se mostram

interessantes desde o início, quando o problema é delimitado. O percurso pessoal, as bases

teóricas e os pressupostos que influenciaram a escolha do tema, além dos vieses que o

pesquisador tem em relação a este, devem ser explicitados. Por este motivo, na introdução deste

trabalho, procurei tornar visíveis a motivação e o percurso teórico que me trouxeram a esta

investigação. Enquanto nas pesquisas quantitativas o rigor é buscado através do controle das

variáveis externas, na pesquisa fenomenológica, este é buscado através do trabalho com o próprio

pesquisador, com o seu olhar. Isso se deve ao pressuposto da psicologia fenomenológica de que o

fenômeno se dá na interação do sujeito com o mundo. A percepção é um ato da consciência

intencional, a partir da qual o homem atribui significados aos fenômenos. Dessa forma, não há

sujeito puro, ou objeto puro, apesar da separação sujeito-objeto ser concebida no mundo natural.

Estar imerso na atitude natural é considerar os acontecimentos como fatos, os quais existem

independentemente da pessoa que os observa (Forghieri, 1993).

Para atingir o rigor na investigação, é preciso praticar a suspensão fenomenológica,

compreendida no âmbito da psicologia. Esta não busca, ao contrário do que se pensa, a

neutralidade e a total retirada de si do mundo. Segundo Szymanski (1993), a suspensão

Page 61: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

61

consiste justamente em observar a força da presença do mundo na subjetividade do

pesquisador, para suspendê-la e entrar em contato com o fenômeno. É tomar consciência da

ligação indestrutível com o mundo para, então, colocar isso entre parênteses, procurando ver o

fenômeno como se mostra, o mais possível. Assim, um mergulho nas situações que geraram o

problema de estudo em questão e a constante reflexão e crítica em relação a este olhar fizeram

parte da confecção deste trabalho. Após um mergulho na própria história e uma aproximação

existencial do tema, é preciso ganhar distância em relação a este para suspender os

pressupostos e poder ver o que aparece.

É no movimento de refletir sobre o cotidiano, que a existência da consciência, como

doadora de sentido ao mundo, pode ficar evidente (Forghieri, 1993). Dessa forma, a principal

proposta de uma pesquisa fenomenológica é possibilitar uma reflexão que explicite os

significados atribuídos às vivências. A fenomenologia consiste em uma abertura intelectual,

que ajuda a manter a tensão entre o individual e o coletivo, buscando a descrição dessa

dinâmica humana. Busca, assim, descrever e compreender a vivência, sem nenhuma intenção

de explicá-la no sentido causal. Nessa perspectiva, pretende-se aproximar do conhecimento

experiencial que as pessoas têm do mundo, buscando participar do movimento e da sabedoria

aí existentes (Amatuzzi, 2001a).

É na existência, na relação com o mundo e com o outro que se constituem os

significados. No caso da pesquisa que busca compreender a experiência de um outro, a

interação pesquisador-entrevistado possibilita que essa compreensão surja, a partir de uma

pergunta ou tema desencadeador (Amatuzzi, 2001b).

Parte-se da idéia de que (...) ninguém melhor para entender a sua experiência do que o próprio sujeito vivente, a partir de um ‘voltar-se’ à sua própria vivência, no seio da relação intersubjetiva. Supõe-se então que (...) a Fenomenologia constitui-se no resgate da dimensão do vivido (Holanda, 2001, p. 38).

Esta investigação fenomenológica tem por objetivo principal a aproximação do

vivido. Segundo Amatuzzi (2001a), este pode ser definido como a “reação interior” imediata

Page 62: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

62

diante de algo ocorrido, antes de qualquer reflexão ou elaboração (p. 53). Acredita-se que o

vivido seja um guia para as ações e decisões da vida concreta, estando na base das concepções

construídas ao longo da vida. Daí a importância de procurar acessá-lo através da pesquisa3. Só

a disposição para examinar as vivências pode trazer à luz significados potenciais aí presentes.

Segundo Amatuzzi (2001a):

O vivido não é a reação muscular, mas a reação psicológica, mental, espiritual, antes de qualquer elaboração posterior com raciocínios. A reação psicológica imediata (...). O vivido está num plano da consciência onde o sentir e o pensar não se distinguiram ainda (...). É sentimento e pensamento potenciais. É a raiz tanto do pensamento como do sentimento (pp. 54 e 55).

Com sua inscrição na consciência, o vivido toma corpo e significado, pois a pessoa se situa

na fronteira entre seu psiquismo e o mundo. Assim, há influências sócio-culturais e da história de

vida pessoal. Desde o momento em que o fenômeno ocorre, alguma significação se agrega a ele.

A pesquisa fenomenológica pretende voltar ao vivido, não negando as elaborações que se fazem a partir dele, mas colocando-as provisoriamente entre parênteses, para revê-las depois, à luz daquela fonte primeira. Daí as coisas podem ficar mais claras (p. 55).

No caso desta pesquisa, portanto, a aproximação ao vivido é de fundamental

importância, pois busco compreender que sensações imediatas acometem o psicólogo diante

da necessidade de trabalhar, na clínica, o tema religioso, pressupondo que essa vivência gera

uma reação que direciona sua intervenção e a própria interação para um caminho diferente.

Por esta razão, a coleta de dados será conduzida através de entrevistas. A fim de poder me

aproximar do tema pesquisado, diminuindo outras interferências, escolhi psicólogos imersos

nos pressupostos da clínica fenomenológica, como apresentada neste trabalho, garantida sua

competência na área. Certamente, o profissional entrevistado já deve ter refletido sobre o

assunto e construído algum significado a seu respeito e estes aparecem ao longo das

entrevistas, mas interessava-me captar a experiência nas primeiras elaborações que acabam

3 Por este mesmo motivo, o acesso ao vivido é um ponto fundamental na clínica psicológica de base fenomenológica. É através do acesso à experiência vivida que se podem desencadear mudanças verdadeiras, através da explicitação do movimento de atribuição de sentidos ao mundo.

Page 63: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

63

por enquadrá-las dentro do “familiar” e afastar as vivências perturbadoras, que desalojam e,

muitas vezes, não conseguem ser ditas.

A função da pesquisa consiste em substituir sua significação contextual imediata, pela significação do contexto trazido pelo pesquisador, dialogicamente (Amatuzzi, 2001a, p. 55).

Os relatos dos entrevistados foram olhados naquilo que eles mostraram da experiência

intencional, vivida. Busquei uma compreensão: o que ele está comunicando? Coloquei-me na

posição de interlocutor, que sentia a necessidade de uma resposta. Para obter esse tipo de

depoimento, procurei trazer à tona a experiência vivida e estar ativa, interessada e participante

(Amatuzzi, 2001b).

O “vivido” não é necessariamente “sabido” de antemão. É no ato da relação pessoal, quando surge a oportunidade de dizê-lo, que ele é acessado. Diríamos que o vivido é surpreendido na relação, pela própria pessoa, que então o comunica, facilitada pelo pesquisador (p. 19).

Isso só é possível no tempo presente, quando a entrevista é mobilizadora a ponto de

contribuir para que algo seja dito pela primeira vez. Busquei, assim, uma relação dialógica

profunda com os colaboradores da pesquisa, que se dispuseram a pensar o tema proposto.

Esta forma de desenvolver pesquisa está em profunda conexão com a concepção de

clínica apresentada nesse trabalho. Seus objetivos são muito semelhantes, embora sejam ações

específicas dentro do âmbito psicológico. Compartilho da visão de Amatuzzi (2001a) ao

considerar muito próximos o trabalho clínico e o de pesquisa nessa abordagem. Pode-se dizer

que a explicitação dos passos e do olhar que se busca na pesquisa é o mesmo buscado na clínica

anteriormente descrita. Assim, quando abordei a clínica fenomenológica, optei por enfocá-la a

partir da relação, olhando o processo do ponto de vista dessa questão. Se eu fosse explicitar o

método fenomenológico aplicado às intervenções clínicas, além de explorar a dimensão do

encontro, a descrição seria muito semelhante a que está sendo feita aqui sobre o delineamento

da pesquisa. Os objetivos e resultados são diferentes, mas se aproximam muito na sua essência,

Page 64: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

64

pois pretendem se aproximar do vivido, mesmo sabendo que não é possível acessar o vivido

puro em nenhum dos casos, mas a sua forma já acrescida de sentidos e significações.

Dentro do que se denomina pesquisa fenomenológica, há uma vasta gama de caminhos e

maneiras para seu desenvolvimento, sendo, por essa razão, importante descrever em detalhes o

trajeto percorrido em cada investigação. Apresento, então os procedimentos para buscar

compreender a dificuldade do psicólogo de orientação fenomenológica diante do tema religioso.

3. Procedimentos

3.1. Os colaboradores da pesquisa:

A escolha dos sujeitos na pesquisa fenomenológica é regida pelo interesse do pesquisador

em acessar determinada vivência. Assim, as pessoas são procuradas por apresentarem certas

características que facilitem o acesso ao tema pesquisado.

A intencionalidade da amostra na busca de variações reflete a lógica da pesquisa fenomenológica, que se articula sobre a tensão entre universalidades e singularidades (Gomes, 2001, p. 119).

Para atingir meus objetivos, considerei que os colaboradores dessa pesquisa precisavam

preencher os seguintes critérios: serem psicólogos clínicos adeptos das abordagens

fenomenológico-existenciais, ou seja, terem como pressupostos teóricos e metodológicos os

mesmos descritos no corpo deste trabalho. Isso significa que os psicólogos sujeitos da pesquisa

foram escolhidos entre os que trabalham com ênfase na experiência vivida pelo cliente, de acordo

com a perspectiva deste, priorizando a relação intersubjetiva dialógica como promotora de

crescimento e mudanças. Os psicoterapeutas foram escolhidos também se considerando a

experiência e competência em trabalhar segundo estes pressupostos, avaliada através de seu

currículo, trabalhos publicados sobre o assunto, bem como o contato pessoal e situação no meio

profissional. Este critério foi importante, pois desejava verificar especificamente as dificuldades

em aplicar tais pressupostos, diante da necessidade de se trabalhar o tema da religiosidade quando

este era colocado pelo cliente. Os psicólogos deveriam admitir alguma dificuldade com o tema e

Page 65: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

65

se dispor a participar dessa pesquisa. No entanto, alguns profissionais contatados se esquivaram

sutilmente de ceder a entrevista, movimento que respeitei, ao passo que outros sequer deram uma

resposta, evitando me encontrar novamente em ocasiões informais. Percebi algum receio de falar

sobre essas questões e mesmo algumas pessoas que já haviam concordado, desmarcaram sem

encontrar tempo para agendar outro horário. Tal movimento me chamou bastante a atenção,

reduzindo o número de entrevistas em relação ao que eu esperava.

Assim, entrevistei seis psicólogos, dos quais cinco possuem formação em Gestalt-terapia,

abordagem que se baseia na fenomenologia e adota os pressupostos buberianos para a

compreensão da relação terapêutica, entre outros já assinalados.

Foi firmado com os entrevistados um termo de compromisso, no qual me comprometi a

utilizar nomes fictícios e alterar quaisquer dados que pudessem identificá-los, para preservar o

sigilo. As entrevistas foram gravadas e todos tiveram acesso à sua transcrição e síntese, podendo

opinar e alterar aquilo que não correspondia às suas experiências.

O número de entrevistas foi considerado suficiente a partir da compreensão possibilitada

pela sua análise. De fato, foram escolhidas quatro entrevistas entre as seis realizadas, por

expressarem melhor o tema buscado em termos de vivências. Entre as pessoas que concederam a

entrevista, duas racionalizaram e teorizaram muito, sem compartilhar suas vivências diante do

tema, o que era fundamental para a pesquisa. Assim, optei por não desenvolver as análises destas,

comunicando-os de que o número de entrevistas que eu possuía já era considerado suficiente e

fazendo uma devolutiva do que foi conversado entre nós, apresentando-lhes sua síntese.

3.2. Entrevistas

Foram realizadas entrevistas individuais focais, semi-estruturadas, as quais, segundo

Moreira (2002), consistem na apresentação de temas que permitam o fluxo de idéias, com

espaço livre para o pensamento e a fala do entrevistado, além da introdução de questões que

Page 66: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

66

se façam necessárias no decorrer da sua fala. A importância da utilização da entrevista, segundo

Martins & Bicudo (1994), reside no fato de esta se constituir um encontro social, um convite ao

diálogo com a finalidade de obter informações de relevância para pesquisador e entrevistado.

Minayo (1996) chama a atenção para o caráter histórico e social da fala, que pode revelar sistemas

de valores, normas, símbolos e condições estruturais do sujeito. Segundo esta autora, a

importância da entrevista se deve ao aprofundamento qualitativo e à possibilidade de trocas e

comparações advindas dessa estratégia. Ales Bello (2004) assinala um ponto fundamental para a

fenomenologia, que fornece respaldo ao uso da entrevista: mesmo atribuindo significados

diferentes às vivências, todos os seres humanos têm uma estrutura comum, que permite a

compreensão empática dos significados atribuídos.

Certamente, a utilização de relatos orais apresenta algumas limitações e dificuldades.

Como o vivido puro nunca pode ser acessado, a fala é sempre uma interpretação e traz em si

vários significados constituintes do fenômeno. Isso evidencia uma característica humana: o

fenômeno se constitui na interação, velando e revelando a singularidade da pessoa. A entrevista é

uma busca conjunta pela vivência circunscrita através do interesse do pesquisador. Busquei,

através do acesso a esta, compreender qual a ressonância nos psicólogos entrevistados de questões

sociais e individuais que contribuem para a forma como lidam com o tema da religiosidade na

clínica. Surgiram questões culturais, relativas à formação do psicólogo dentro das universidades,

assim como questões relativas ao contato com o sagrado e vivências de ordem espiritual. O ponto

fundamental é que elas foram amarradas de forma peculiar pela subjetividade daquela pessoa em

questão, no campo relacional estabelecido comigo enquanto entrevistadora. Segundo Mahfoud

(2003), o sentido se abre ao sujeito no movimento reflexivo de uma compreensão compartilhada.

Dessa forma, a entrevista se constitui, não apenas em momento de obtenção de informações, mas

em intervenção, na busca conjunta por compreender sua vivência diante do tema proposto.

Page 67: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

67

Tudo isso pressupõe um trabalho empreendido pelo pesquisador e por seus colaboradores,

no esforço de ir além das representações, crenças e pensamentos já instalados, na busca pela

conexão com o vivido. Para que isso seja possível, a escolha da pergunta desencadeadora na

entrevista é fundamental, pois esta deve contribuir para a aproximação da experiência. A pergunta

endereçada aos entrevistados nessa pesquisa foi a seguinte: “Como é atender uma pessoa que traz

para a sessão uma questão religiosa? Como você fica diante disso? Conte-me a sua experiência”.

Busquei, assim, a descrição da vivência em toda a sua vitalidade, tensão e movimento. Segundo

Amatuzzi (2001b), a entrevista conduzida dessa forma possui uma dimensão clínica, pois “o

vivido mobilizado é a mola propulsora do desenvolvimento individual e cultural” (p. 21). A

entrevista mobilizadora produz conhecimento, além da mudança pessoal e do crescimento dos

envolvidos no processo de pesquisa. Torna-se também uma intervenção, com todas as

implicações éticas provenientes desse fato.

3.3. Análise das entrevistas:

As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente. Em seguida, houve uma

textualização do material e a produção de uma síntese das vivências do entrevistado, que foi

mostrada a este para sua apreciação e confirmação, ou alteração do que estava escrito. No entanto,

nenhum colaborador fez alterações ou observações sobre suas entrevistas, comunicando-me

apenas que tinham lido e estavam cientes das informações por eles concedidas.

O processo de análise teve início já na reflexão conjunta mobilizada durante a

entrevista. Nessa primeira etapa, e nas que se seguiram, coloquei-me como interlocutora,

buscando captar o que estava sendo expresso no relato, qual era a experiência intencional,

vivida, daquela pessoa (Amatuzzi, 2001b). Tentei me inserir na sua perspectiva, na sua

dificuldade diante do tema.

Page 68: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

68

Durante a entrevista, já ocorreu uma análise colaborativa. Depois, na análise

propriamente dita, na qual encontrava-me sozinha, diante dos dados, percebi grande

participação da minha subjetividade no processo. As vivências e sensações que iam surgindo

eram consideradas e, na medida do possível, colocadas entre parênteses. Procurei estar na

posição de quem “responde aos dados” (Amatuzzi, 1996, p. 09). Dessa forma, a redação final

não consistiu apenas de um relato descritivo, mas sim algo acrescido de diversos significados.

O processo de análise propriamente dito seguiu o método de Forghieri (1993), de acordo

com os seguintes passos:

1. Leitura da transcrição da entrevista como um todo, para obter uma apreensão geral do que foi

colocado pelos colaboradores.

2. Nova leitura, mais reflexiva, com o objetivo de enunciar o significado em cada parte do relato.

Articulação entre os significados, buscando descrever a vivência do sujeito, elaborando uma

síntese.

3. Submissão da síntese da vivência à apreciação do entrevistado.

4. Comparação entre as sínteses finais das entrevistas, buscando elementos comuns entre elas.

5. Elaboração de um diálogo com a teoria a respeito dos significados encontrados, buscando

confirmações para o que foi percebido e peculiaridades a serem pensadas e discutidas.

O uso do modelo proposto por Forghieri trouxe algumas frustrações, pois não encontrei

pontos comuns entre as entrevistas, da forma como era esperado. Cada entrevistado se posicionou

de maneira singular diante do tema. Eu percebi a impossibilidade de formular uma experiência-

tipo a partir das vivências trazidas pelos colaboradores da pesquisa, pois, certamente, haverá

tantos tipos de vivências quanto entrevistados.

Page 69: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

69

3.4. Apresentação das entrevistas analisadas

Na apresentação das entrevistas optei por mostrar os trechos significativos destas,

separadamente para cada sujeito, entremeados com sua síntese e análise, discutindo e

dialogando com o que foi apontado por cada um. Simultaneamente, teci uma discussão com

teóricos relacionados aos temas abordados. Essa forma de apresentação foi escolhida para dar

maior visibilidade à experiência de cada pessoa e ao meu modo de compreendê-la, explorando

ao máximo as informações e vivências por eles compartilhadas.

Após a análise das entrevistas, nas conclusões, busquei articulá-las, discutindo-as de

forma mais ampla, enfatizando pontos que me chamaram maior atenção. Elaborei, também, à

guisa de considerações finais, uma discussão dos impactos causados em mim por essa

pesquisa e pelas questões que se levantaram.

Para dar maior visibilidade ao meu trabalho, apresento, em anexo, uma entrevista

completa.

Page 70: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

70

CCCaaapppííítttuuulllooo VVV

HELENA

Helena é psicóloga, solteira, tem 28 anos e reside em São Paulo, capital. Conhecemo-nos em

um grupo na universidade, onde circulam assuntos de psicologia e religião, no qual ela relatou

ter alguma dificuldade com o tema na clínica, colocando-se à disposição para participar dessa

pesquisa. Sendo assim, esta foi a primeira entrevista realizada e sua participação foi bastante

espontânea, pois ela expressava grande desejo de falar sobre a forma como se coloca frente a

esse tema. Assim, durante nossa conversa, apresentou muita disposição para examinar suas

vivências, tendo feito uma reflexão aprofundada sobre sua prática, suas crenças e seu

posicionamento clínico diante da religiosidade do cliente. A entrevista aconteceu em sua casa,

num fim de tarde. Como dispúnhamos de quase duas horas, foi uma entrevista longa e

bastante rica em detalhes e informações.

Pela forma como Helena se coloca, durante a entrevista, percebo que a religiosidade é

um tema que a interessa muito, sobre o qual tem vasto conhecimento e muitas opiniões e

posições já definidas. Fala de maneira muito segura e clara, demonstrando domínio do assunto

e disponibilidade para lidar com os clientes religiosos. Ao analisar a entrevista, percebo que,

no momento da interação, tive certa dificuldade com a forma de Helena se colocar, pois ela

falava muito depressa, apresentando inúmeras questões interessantes em uma mesma fala. A

transcrição rendeu muitas páginas e na primeira leitura percebi momentos em que não

consegui intervir para esclarecer tais questões que, agora, percebo como importantes para a

investigação em foco. Apontarei essas questões ao longo da análise, levantando algumas

hipóteses sobre suas dificuldades e seu posicionamento clínico em relação à religiosidade.

Page 71: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

71

Logo no início da entrevista, Helena deixa claro que sua vivência diante do tema

religioso está relacionada ao tipo de religiosidade vivida pelo cliente. Ela não se incomoda

com o tema em si, pelo contrário, se interessa por ele e está aberta ao seu aparecimento, mas

existem algumas posturas nos seus clientes que lhe causam maior incômodo, o que é expresso

ao longo da entrevista. Busco estar atenta, então, a quais seriam as suas dificuldades,

mencionadas por ela, antes mesmo de marcarmos o encontro. A primeira coisa que diz,

quando pergunto sobre sua experiência ao atender o cliente religioso, é o seguinte:

Depende muito do tipo de cliente que eu estou atendendo. Tem alguns clientes que são, é... comuns, que têm uma religiosidade mais típica, vamos dizer assim. Eles se enquadram mais ou menos no que acontece hoje na comunidade em geral: eles têm uma crença religiosa mais ou menos firme, fazem parte de uma comunidade, mas eles não são tão apegados a essa religiosidade. Por exemplo, uma pessoa que se considera católica, mas vai à missa uma vez por ano, ou numa missa de sétimo dia, e quando casar, vai querer casar na igreja; não faz questão de estar ali participando, de ir a igreja, de confessar uma vez por ano, essas coisas. Então, quando é uma pessoa assim, quando o tema da religiosidade aparece, ele aparece como questionamento, então fica muito mais fácil da gente lidar com esse tipo de crença e de questionamento, porque são questionamentos sobre a vida mesmo, né, que a maioria das pessoas acaba desenvolvendo.

A descrição de Helena sobre o que seria um cliente com uma religiosidade “típica”,

“comum”, me remete a uma discussão que tem ocupado vários estudiosos da área de Psicologia

e Religião: a distinção entre espiritualidade, religiosidade e religião. Apesar de não serem

conceitos claros e, na maioria das vezes, não haver um consenso entre os pesquisadores,

algumas características podem ser acentuadas. Segundo Ancona-Lopez (2005b), a

espiritualidade consiste em um potencial, uma inclinação para o transcendente, abarcando

vivências voltadas para o sentido último da existência. A religiosidade é uma conseqüência

deste movimento, que pode não ocorrer conscientemente, mas envolve crenças implícitas ou

explícitas e formas singulares de relação com o sagrado. A religiosidade pode ser vivida com ou

sem a adesão a uma religião ou doutrinas específicas. Sendo assim, a religiosidade de cada

pessoa se organiza de diferentes maneiras, com maior ou menor envolvimento em uma religião.

Page 72: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

72

Através da descrição de Helena, penso que ela se refere à religiosidade das pessoas e

não à sua religião. Apesar de terem nascido em famílias católicas, pois utiliza termos como

“missa de sétimo dia”, “confissão”, entre outros, estes clientes expressam a sua religiosidade

ou espiritualidade, sem existir um envolvimento com a prática do catolicismo.

Um ponto que me chama a atenção é o fato de Helena descrever os clientes com base

no seu comportamento, enumerando práticas sociais, e não vivências. Segundo ela, a

religiosidade da pessoa expressa em forma de questionamentos facilita sua atuação como

psicóloga. Acho interessante sua colocação e pergunto o que torna mais fácil atender esses

clientes quando mostram um questionamento religioso. A resposta a esta pergunta evidencia o

modelo de clínica adotado por Helena, presente em diferentes trechos da entrevista:

Porque quando a gente atende uma pessoa que chega na clínica, ela chega com questionamentos e com dúvidas e com problemas a serem resolvidos, ou então facilitados. Quando a pessoa chega com um problema assim: ‘ah, eu estou mudando a minha fé’... Por exemplo, eu tive uma cliente que com 14 anos ela se converteu e virou batista, ela era católica antes, não praticante. Aí ela virou batista e ficou muito presa dentro da igreja, presa que eu estou falando é assim: como o pai dela não era uma figura muito presente, o pastor fez o papel de pai, mas não de um pai comum, de um pai muito rígido, então ele não deixava ela sair, não deixava ela namorar, ela não podia conversar com pessoas que fossem de outra religião, ir na casa das amigas, que o pastor considerava errado. Quando ela chegou lá na clínica, ela chegou já com aquela postura: ‘estou questionando a minha religião e estou questionando essa crença que eu tive de que o pastor vai ser meu pai e vai me salvar’. Então fica mais fácil da gente trabalhar, porque a gente instiga essas perguntas e ao mesmo tempo a gente acalma algumas coisas da pessoa.

Helena traz um exemplo de postura questionadora, considerando importante instigar as

perguntas que o cliente traz, relativas à sua vida religiosa, e procurando “acalmar algumas

coisas da pessoa”. Não pude explorar o por quê dessa sua necessidade enquanto terapeuta,

pois ela segue seu relato, levando minha atenção para outro ponto, discutido a seguir.

Refletindo sobre essa fala no momento da análise, começo a perguntar sobre o que são tais

questionamentos para Helena na sua vivência clínica.

Giovanetti (1999) enfatiza o aspecto de questionamento presente na religiosidade,

porém, se refere a perguntas desenvolvidas pelo cliente sobre o sentido último, o significado

Page 73: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

73

da sua vida, antes do nascimento e após a morte, além do sentido da própria vida em si. No

entanto, pelo relato de Helena, penso que ela se refere a outro tipo de questionamento, mais

voltado para os valores da religião do cliente, hipótese que vai se clareado ao longo da

entrevista. Na seqüência da fala acima, na qual não houve interrupção durante nossa conversa,

Helena exemplifica outros tipos de posicionamento, mostrando que reage diferentemente, de

acordo com a forma da pessoa se relacionar com a própria religiosidade.

Agora, quando é o contrário, quando chega uma pessoa que está passando pelo processo inverso que é o processo de se inserir, de ficar inserida dentro de uma igreja, de qualquer igreja que seja, eu acho mais difícil. Acho que, em geral, a gente vai pensar que é mais difícil, porque a fé, ela deixa de lado muitas dúvidas, então a pessoa embarca nessa questão de não questionar, né? Ela vai no movimento contrário ao questionamento, ela entrega a vida dela.

Esta fala de Helena denota certa dificuldade em lidar com a experiência do cliente

quando este não questiona o que vive dentro da sua religião. Quando alguém está imerso em

sua fé e entrega sua vida à uma determinada crença, ela considera mais difícil atender. Helena

relaciona a palavra fé à postura de não questionar e parece não olhá-la como uma experiência,

da perspectiva vivida pelo cliente.

Safra (2004d) enfatiza a necessidade do acolhimento da experiência religiosa na

clínica, pois o cliente está diante de algo que o toma por inteiro e perpassa toda a sua

existência. Para este autor, o fato de testemunhar algo, estando junto com a pessoa no que ela

vivencia é o caminho para seu crescimento. As experiências religiosas dos clientes podem

abrir a possibilidade de maior conhecimento da pessoa na sua singularidade. A busca pelo

sentido da religiosidade para o cliente é, então, uma tarefa a ser desenvolvida pelo terapeuta,

pois revela o modo de ser da pessoa e as respostas buscadas por ela para a sua existência.

Mesmo que esta não seja de fato uma vivência religiosa, olhá-la pelo prisma da totalidade

ajuda a compreender o que está na base da escolha feita pela pessoa, facilitando sua

compreensão. Outros trechos da entrevista evidenciam o modelo de clínica adotado por

Helena, calcado no questionamento e na ampliação da consciência.

Page 74: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

74

Porque eu fico pensando, não é só a religião que te dá a cristalização, mas a postura religiosa que você tem. Por exemplo, eu posso acreditar que eu sou muito ruim, então eu tenho que me castigar para ficar pura pra Deus, ou então eu posso acreditar que não, que Deus é um pai bom. Isso é possível dentro da mesma crença, só que eu escolho a vertente que mais se adequa ao que eu penso, então, eu penso que na hora que a gente está atendendo, muitas vezes a gente tem que apontar pra pessoa: “Espera, não é só esse jeito de você acreditar; será que não tem jeito de você acreditar numa coisa mais flexível?”. Entendeu? Por exemplo, a pessoa falar de Deus e a gente apontar: “olha, mas será que é isso mesmo que Deus quis pra você?”. A pessoa fala assim: “foi Deus que me falou isso”. A gente colocar isso: “mas como que você tem tanta certeza que foi isso que Deus quis? Ele pode ter querido falar isso e isso”, como a gente faz nos outros assuntos, que não são assuntos de religião.

Helena faz uma diferenciação entre religião e postura religiosa, falando da

possibilidade de existirem diversas posturas dentro da mesma crença. Algumas perguntas

surgem a partir do relato acima: atender quando aparece o tema da religiosidade é questionar

sobre a crença? Para ela, a religião na clínica é um assunto, um tema a ser tratado, ou uma

experiência vivida pela pessoa? O modelo de clínica calcado em questionamentos como os

apresentados acima não favorece o acolhimento da experiência na sua totalidade, acabando

por fragmentá-la (Safra, 2003). É freqüente em diversas abordagens psicológicas, mesmo

entre profissionais que trabalham com pressupostos existenciais-fenomenológicos e que,

portanto, dispõem-se a acolher as colocações dos seus clientes. Se o questionamento é

colocado pelo profissional, ele pode adquirir contornos de confrontação, levando a

elaborações mais racionais. Isso pode promover uma ampliação da consciência sobre o

assunto, mas me pergunto sobre sua eficácia em termos de acolhimento e compreensão do

sentido da religiosidade do cliente.

Ribeiro (1991), ao refletir sobre a clínica fenomenológica na atualidade, analisa a

dificuldade cultural em se colocar ao lado do cliente sem fragmentar a sua experiência ou

construir planos e expectativas para ele. Aponta a dissonância entre a denominação clínica

adotada e a atitude prática em inúmeros terapeutas. Muitos adotam a fenomenologia como

norte, mas se dispersam do seu cerne, que é o acolhimento da experiência vivida na sua

Page 75: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

75

complexidade. Ribeiro compara o terapeuta a um chacareiro, cujo trabalho é preparar o

terreno para que algo tenha condições de florescer, o que quer que seja.

Helena deixou claro, através do seu relato, que não evita o tema religioso quando este

aparece, estando sempre aberta a ele. Se o cliente traz esse assunto, procura sempre levantar

questionamentos, explorando a questão. Mesmo assim, algumas posturas a incomodam, de acordo

com a forma como a pessoa expressa sua religiosidade. Buscando compreender melhor seu

incômodo, pergunto que impacto ela sofre quando os assuntos ligados a este tema aparecem. Em

resposta a esta pergunta, ela traz um pouco da sua história de vida, narrada da seguinte forma:

Eu tenho uma história pessoal que acho que favorece muito eu conversar sobre esses assuntos porque minha família toda é católica, todinha. Meu pai estudou para padre, largou o seminário, meu pai é muito questionador, então, quando eu tinha 12, 13 anos, eu comecei a estudar história e comecei a questionar muito. Mas isso quase todo mundo faz, pois fica sabendo das barbaridades que aconteceram e a gente fica horrorizado. Aí quando comecei o segundo grau e depois dele, o questionamento começou a me incomodar tanto que eu não conseguia mais ir à igreja. Antes eu era assídua, ia toda semana à missa. E começou a me incomodar muito, eu falava: não, isso não tem cabimento, não é coerente, então, eu abri mão. Depois, eu vi que faltava a questão da espiritualidade e eu sempre fui uma pessoa um pouco além da parte material, eu gosto de cultivar sentimentos, de pedir pelas coisas. (...) Então, eu fui construindo isso de um jeito muito próprio. Aí quando eu estava formando na faculdade eu voltei um pouco a freqüentar, ir à missa e tudo. Mas eu tenho certeza de que eu não penso nem parecido com as pessoas que estão lá dentro da igreja. É, eu tenho uma visão muito mais crítica e eu acho que não é, por exemplo, pra mim aquilo não é verdade absoluta, e isso me ajuda muito a não ter discriminação na maioria das vezes, não digo sempre porque a gente acaba tendo, acontece, mas me ajuda muito a não ter preconceito. (...) Eu cheguei num ponto agora, e tenho lido muito sobre outras religiões também, que eu acho que cheguei num ponto de tranqüilidade, de falar assim: eu acho que a religiosidade está além de qualquer fé religiosa. É muito maior do que a gente falar que a gente é cristão, que a gente é budista, que a gente é muçulmano. É uma coisa além (...) é mistério e a gente tenta responder da forma mais coerente com a nossa realidade, não com a realidade de todo mundo, então cada um vai responder de um jeito.

A história de vida de Helena, em relação a este tema, está claramente ligada à sua

concepção de clínica. O questionamento é um valor para ela muito antes da escolha pela

psicologia como profissão. No seu posicionamento frente à religião de sua família, ela

experimentou diferentes pensamentos e sensações, construindo sua forma singular de ser

religiosa. A incoerência percebida em algo que era importante para ela, na adolescência, fez

Page 76: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

76

com que abrisse mão da sua religiosidade. Houve uma ruptura, sentida posteriormente como a

falta do cultivo da dimensão espiritual. Ela resolve esse impasse, cultivando sua

espiritualidade, sem aderir a uma crença religiosa, sem uma pertença definida. Essas

elaborações e a clareza que possui da sua posição pessoal a ajudam a se colocar de forma mais

aberta diante das várias opções religiosas, o que se reflete na forma como acolhe assuntos

relacionados à religião e o interesse que tem por eles, diferente da maioria dos psicólogos, que

acabam por excluir estes temas nos atendimentos. O amadurecimento da própria escolha

religiosa e um posicionamento diante da sua espiritualidade proporcionam mais tranqüilidade

a Helena para estar frente do tema quando seus clientes o colocam. Porém, ela parece esperar

deles o mesmo tipo de postura crítica e questionadora que ela desenvolveu quanto a sua

própria experiência. De fato, a capacidade de acolhimento de Helena depende de como o

cliente vive a sua religião. Mais uma vez observa-se, como aponta Ancona-Lopez (1997), que

a atitude diante das questões religiosas do cliente está ligada à bagagem pessoal e à forma

como isso ressoa para a pessoa.

Helena está visivelmente interessada na questão religiosa, percebendo, inclusive, um

potencial terapêutico no trabalho com esta. Essa abertura pode ser atribuída à sua história de

vida, discutida anteriormente, e também ao trabalho em hospital como estagiária de psicologia

no setor de oncologia, durante a graduação.

Mas no hospital isso acontece com muito mais freqüência, a gente mostrar isso: “vai com Deus, Deus te proteja”, porque você sabe que naquele ambiente ali circula muita informação religiosa. Então também eu acho que aquilo pode ter me influenciado para a clínica, porque eu fiz dois anos de estágio, antes de me formar, em hospital. E esse ambiente é muito de fé e de questionamento e também de ouvir muita gente falar: “eu não posso fazer mais nada, está na mão de Deus”. Então, a gente acaba conversando mais sobre esse tema, né, discutindo mais.

O trabalho no hospital parece ter contribuído para a postura de abertura ao tema em Helena.

Nesse trabalho, ela exemplifica seu posicionamento e sua concepção quanto ao papel do psicólogo.

Quando eu trabalhava com os pais em hospital eu fazia muito isso de colocar o lado positivo da religião também, porque é comum pacientes que

Page 77: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

77

têm familiares com câncer olharem assim: “nossa que castigo, Deus está me punindo, eu sou um pecador”. E então, a gente falar assim: “mas será que não tem outra possibilidade? Agora você está tendo a possibilidade de refletir sobre a sua vida”... Então, colocar isso de um outro jeito também. É engraçado, porque a gente acaba intrometendo, né, na questão religiosa da pessoa, mas ao mesmo tempo, eu fico pensando que, quando a pessoa tem uma fé que está machucando ela, eu acho que a gente também tem que ajudar, a gente está nesse papel.

Nessa fala, Helena percebe que essa postura implica em uma intromissão na crença da

pessoa, mas julga importante ampliar o olhar do enfermo sobre sua vivência. Isso de fato é

importante no ambiente hospitalar, mas a clínica requer uma exploração maior do que está sendo

vivido, mesmo que seja doloroso, negativo ou cristalizado. É notória na sociedade atual a evitação

do sofrimento e essa postura generalizada muitas vezes impede as elaborações que possam surgir

a partir de experiências dolorosas. O grau de exploração dessa questão depende do papel no qual o

psicólogo se encontra. O trabalho no hospital, por exemplo, raramente se configura como uma

psicoterapia, consistindo basicamente em ações de suporte ao momento emergencial. A postura

nesse ambiente, então, será diferente da que se tem no consultório psicológico.

Trabalhar com o setor de oncologia e conviver com o sofrimento e a morte que

rondam essa especialidade médica, desenvolveram a sensibilidade de Helena para a questão

da religiosidade, que geralmente acompanha tais situações. Ela passou a valorizar esse

aspecto da dimensão humana, percebendo seu potencial terapêutico também em trabalhos nos

moldes da clínica tradicional.

Então, tem algumas vezes que surge o tema da religião, e são coisas que não dá nem pra gente trabalhar direito, mas eu acho que pode ser um pano pra manga. Acho que se a gente souber usar desse tema, a gente pode trabalhar muitas coisas, que as pessoas que são religiosas normalmente não têm muita resistência a falar desse tema, mas às vezes têm resistência de falar de outro tema. Então se a gente usa o tema de religião...porque terapia é assim né, se a gente mexe em um pontinho, o resto vai mexendo. Então se a gente mexe nesse ponto, que para ela é um porto seguro, ou é uma questão mais tranqüila, a gente consegue fazer, eu acho que a gente consegue fazer grandes modificações.

Na maior parte das falas de Helena, ela se refere à religiosidade como um assunto,

olhando-a mais como tema do que como experiência vivida. Parece-me uma concepção funcional

da religião na vida da pessoa e, ao mesmo tempo, um recurso a ser utilizado na terapia.

Page 78: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

78

Paralelamente, ao longo da entrevista, começo a identificar os incômodos existentes para

Helena em relação a este tema. Além do fato de a pessoa não questionar sua fé quando está imersa

em uma dada religião, Helena se sente incomodada quando percebe no cliente uma postura rígida

ou uma tentativa de doutriná-la. Ela cita o exemplo de uma cliente de aproximadamente 40 anos,

que é mãe solteira e que, juntamente com seus três filhos adolescentes, tornou-se evangélica.

Todos participam ativamente dos cultos, exceto o filho mais velho, por ter paralisia cerebral. Essa

cliente é bastante engajada na sua religião e acaba abordando o assunto nas suas sessões. Helena

conta um pouco do que acontecia nesses momentos:

E apesar de ter uma visão que não é tão rigorosa, ela algumas vezes falava assim: “não sei se você acredita, mas eu estou lendo um livro que o pastor escreveu, até tem muita gente que não é evangélica que lê”. Mas eram livros de doutrinamento, então tinha algumas horas em que eu ficava incomodada diante disso, porque eu não podia mostrar pra ela que eu não acreditava, mas ao mesmo tempo, eu não sabia sobre a questão do doutrinamento, então pedia para ela me esclarecer: “isso que você está me falando, do seu pastor, como é que funciona, eu nunca fui na sua igreja, como é que funciona?”. Sabe, mas eu tive um pouco de dificuldade, foi a cliente que eu tive mais dificuldade nessa questão religiosa.

Busco compreender melhor esta dificuldade, pedindo para Helena descrever o que se

passava com ela nesses momentos. Ela diz:

eu acho que o incômodo pode vir da certeza que a pessoa mostra pra você, tipo: é isso que acontece. E é como se a certeza dela não fosse só para ela, é para você também, então, a fé dela é a fé certa. E aí, você é que está errada, e quando você mostra que não conhece aquilo ali, por exemplo, uma passagem bíblica (...) ela já te coloca numa posição de: “ah, coitado!”. Então eu acho que isso pode até atrapalhar a relação terapêutica, sabe? E outra coisa que pode acontecer também, é uma pessoa que é muito religiosa, ela começar a se colocar de um jeito superior e causar até um pouco de aflição na gente, da gente falar assim: que pessoa limitada, sabe? Não consegue pensar além disso.

Helena revela novamente o incômodo que sente ao estar em situações, na clínica, nas

quais encontra uma forte pertença religiosa e percebe uma tentativa do cliente de doutriná-la.

Fica desconfortável diante da certeza demonstrada pela pessoa de que a fé dela é a única

correta, desqualificando outras opções religiosas e mesmo não-religiosas. Ela se sente

colocada em uma posição inferior, na qual é vista pela cliente como digna de pena, o que

Page 79: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

79

acaba invertendo a relação de papéis usual na interação terapêutica: o cliente quer ajudar e

contribuir para a melhoria de vida do seu terapeuta, a qual ele crê ser alcançada pela adesão à

sua religião. Helena avalia esse tipo de comportamento do cliente como uma limitação deste,

o que pode ocasionar uma inversão de papéis. Assim, o desalojamento de sua posição lhe

causa certa ansiedade.

Observo isso ao analisar a entrevista e noto que poderia ter explorado mais esse

aspecto, pois me vejo diante de duas interpretações possíveis do relato de Helena quando ela

diz que essa situação pode atrapalhar a relação terapêutica. Ela pode estar se referindo à

dificuldade da pessoa em se abrir para a terapia, assumindo o papel de evangelizadora como

resistência à relação terapêutica, ou pode estar se referindo à sua dificuldade pessoal com esse

tipo de postura do cliente, o que, certamente, limita sua escuta e sua disponibilidade. Observo,

posteriormente, que esta é uma dificuldade bem específica e de cunho pessoal, pois para ela,

pessoalmente, é difícil estar com pessoas aderidas firmemente a uma religião. Na seqüência

deste diálogo, ela cita um exemplo dessa postura na avó do seu namorado, que dá grande

importância à questão da virgindade de Maria. Helena se assusta com tal posicionamento, no

qual alguém dá demasiada ênfase ao fato bíblico, à doutrina em si, limitando-se a ele, sem

explorar as possibilidades de diferentes significações.

Então eu fico muito preocupada quando a pessoa cristaliza muito o que é dito, então, quando a gente está trabalhando com essas questões na clínica, acho que um dos motivos de a gente acabar mexendo nesse ponto, além de ele fazer parte da verdade humana, da condição humana, é você entrar em contato com essa questão da cristalização, porque quanto mais a pessoa se encontra cristalizada, mais neurótica a gente vai vendo que ela vai ficando, então a gente tem que trabalhar com isso. E é delicado, porque a pessoa se sente ameaçada se está mexendo na fé dela, então, é muito difícil.

Helena considera importante trabalhar a dimensão religiosa na terapia, olhando para a

mesma a partir de uma perspectiva funcional. Assim, procura trabalhar questões como a falta

de flexibilidade da pessoa em relação à sua crença e a coerência entre aquilo em que esta

acredita e a forma como emprega tais questões na própria vida. Para isso utiliza, inclusive,

Page 80: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

80

alguns pressupostos religiosos no diálogo com o cliente, buscando um canal de comunicação

mais efetivo para trabalhar o modo como o cliente os aplica na vida cotidiana. Pergunto a

Helena como escolhe e utiliza as referências religiosas no seu trabalho clínico.

Mas é claro que a gente acaba escolhendo os pressupostos que para a gente são válidos, não é? Por exemplo, você vai olhar os dez mandamentos, se você for apontar, você não vai apontar o primeiro mandamento. Por exemplo, isso é uma coisa que a gente não precisa apontar: “ah, você deve amar Deus acima de todas as coisas”. Se a pessoa fala alguma coisa, que não está acreditando em Deus, você não vai falar: “ah, você não está cumprindo o primeiro mandamento!”. Não, isso aí não. Por exemplo, o segundo mandamento. Tem muita gente que faz tudo pelos outros e esquece de si mesmo, aí você fala assim: “você lembra” – quando a pessoa é religiosa, né? Não vou falar isso para qualquer um – “você lembra do segundo mandamento, qual é mesmo?”. A pessoa fala: “amar o próximo como a ti mesmo”. “Ah, e você acha que está se amando tanto assim?”. Pra pessoa ver também que ela tem que se valorizar. Então, a gente conseguir usar também a religião para amparar algumas coisas para ela ter essa possibilidade de mudança, mas não uso tudo não. Eu uso só as coisas que eu acho que vêm a calhar.

Nesse trecho, uma intervenção é feita utilizando um pressuposto religioso ao qual a pessoa

dá importância, para transmitir uma mensagem. O auto-cuidado é valorizado em psicologia

praticamente em todas as suas abordagens, mas a forma como é apresentado pelo terapeuta ao seu

cliente, pode dar, algumas vezes, a impressão de cobrança ou repreensão. Como o psicólogo fica

diante de posturas que considera cristalizadas e enrijecidas? Que caminhos pode utilizar para

facilitar a promoção do auto-cuidado na pessoa atendida, sem desconsiderar seu momento atual e

as razões para o descuido consigo mesma?

Beisser (1973), ao postular a Teoria Paradoxal da Mudança, amplamente valorizada e

estudada na Gestalt-terapia, mostra que o caminho inverso ao utilizado por muitos terapeutas

nessa situação poderia ser aquele que produziria melhores resultados do ponto de vista

terapêutico. Quanto mais uma posição é aceita, mais condições a pessoa tem de mudar, ao

passo de que quanto mais é impelida em outra direção, mesmo que carinhosamente

incentivada, mais estagnação se produz. Isso acontece pelo motivo já mencionado nesse

trabalho, de que encarar um fenômeno como se mostra, no momento presente, é a única forma

Page 81: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

81

de compreender a estrutura da vivência. A mudança, então, ocorre naturalmente, como

conseqüência, pois o ser humano está ontologicamente em movimento, segundo Beisser:

a mudança ocorre quando uma pessoa se torna o que é, não quando se converte no que não é. A mudança não ocorre através de uma tentativa coercitiva por parte do indivíduo ou de uma outra pessoa para mudá-lo, mas acontece se dedicarmos tempo e esforço a ser o que somos – a estarmos plenamente investidos em nossas posições correntes. Ao rejeitarmos o papel de agente de mudança, tornamos possível a mudança significativa e ordenada (p. 110, grifos do autor).

De fato, esta é uma perspectiva paradoxal, mas está presente na concepção

fenomenológica da existência. A condição humana traz em si uma contradição, pressupondo

mudança e movimento quando não há obstrução do fluxo da vida. Porém, muitas vezes, na

situação clínica, a pessoa se desloca entre o que julga que deveria ser (ou o que o psicólogo

acredita que ela deve ser) e aquilo que realmente é no momento. Quanto mais o cliente

“briga” com essas duas posições, mais estagnação e sofrimento são produzidos, pois a

mudança não ocorre por vontade e esforço conscientes, mas através de condições pessoais,

desenvolvidas gradualmente, na relação com o mundo. A maneira de resignificar algo é

mergulhar fundo naquilo, em um ambiente seguro, na companhia de um outro.

O trecho abaixo possibilita maiores reflexões e indagações a respeito da postura

clínica de Helena e os pressupostos que a norteiam. Na fala a seguir, ela parece colocar a

demanda do terapeuta como foco, sendo este quem decide o que é urgente ou prejudicial na

vivência da pessoa e, assim, o que deve ser trabalhado na terapia.

Por exemplo, tem gente que fala assim: ah, a pessoa tem direito de suicidar. Eu acho que a pessoa tem o direito de se suicidar sim, mas ao mesmo tempo, às vezes ela está suicidando, porque é a única opção que ela está vendo, que ela está sofrendo muito. Então ela precisa estar saudável, para ter esse poder de decisão. Oh, estou super feliz, estou super realizada, mas eu quero morrer, não quero fazer mais nada. Tá, aí tudo bem, mas a pessoa que fala que está triste, péssima, sofrendo dores e diz: ‘então eu quero morrer’ é uma situação diferente, então eu acho que da mesma forma, quando a pessoa está de um jeito saudável na religião, a gente não vai querer entrar nisso, pelo menos eu acho que um psicólogo bom, ele não vai querer entrar nesse assunto falando assim: “pense, reveja seus valores”, se é uma coisa que não está prejudicando a pessoa. Agora, quando está prejudicando, a gente acaba tendo que esbarrar nisso.

Page 82: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

82

Pergunto, então, como é sua avaliação de que algo está prejudicando a pessoa.

É...normalmente, a gente vê que está prejudicando, eu vejo, por exemplo, a pessoa, quando ela começa a, por exemplo, quando é uma visão negativa, pejorativa mesmo, da religião. Uma religião que proíbe muitas coisas ou que coloca um conceito de maldade muito extremo (...) por exemplo: isso é pecado, você é ruim, você não merece ter Deus para te amar. Então a pessoa vai e se pune. Quando essa idéia de punição está muito grande, eu acho que já está passando da conta. Então normalmente isso é trabalhado.

Pergunto se este olhar sobre a religiosidade da pessoa está referido à abordagem

psicológica, às noções de psicopatologia, pois ela parece ter um conceito pessoal bastante

claro do que seria a conduta correta de um homem religioso saudável ao colocar as opiniões e

posições acima. Ela confirma e resume sua visão de homem:

Eu acho que não tem jeito, a gente atende usando o que acredita no homem, né? Então, sempre está embasado, na teoria ou no que a gente acredita que seja, a gente está ali para ajudar, mas eu não acho que seja possível a gente acertar sempre também não. Mas eu fico vendo assim: tem uma visão de um homem saudável, tá? Um homem que tenha uma religião, que questione mais ou menos, ou que acredite na religião mas aceite muito bem os outros, porque o que acontece, às vezes, a pessoa está fechada na religião....por exemplo, uma pessoa que tem uma vivência muito boa dentro da igreja, tem uma visão muito ruim das outras pessoas (...) Então, eu imagino que, tudo bem, a pessoa está vivendo bem aquela religião ali dentro, mas como é que ela vai sair pro mundo? (...) Então, às vezes a pessoa se fecha mesmo, então, o fato dela se fechar já é uma possibilidade da gente agir, terapeuticamente. Porque não é saudável. A gente tenta ajudar de outra forma, né? Colocando outras opções.

Juntamente com essa visão, imbuída do intuito de levantar questionamentos, Helena se

sente fortemente impelida a ajudar a pessoa no campo da religiosidade. Procura apontar outras

formas de enxergar o assunto, levantando questões acerca do que a pessoa está relatando. Julga

ser este o papel do psicólogo, no caso de considerar que a pessoa está sendo prejudicada pelo

modo como vive a sua crença. Isso traz à tona uma questão que surge e ressurge na Psicologia:

afinal qual é o papel do psicólogo? Ele deve propor uma revisão dos valores do cliente quando

considera que algo é prejudicial na sua vida? Como articula as questões teóricas à prática?

Há uma visão de saudável e patológico em cada teoria psicológica, mas o modo de lidar

com estes conceitos pode ir de encontro ou contra a própria teoria adotada. Quando eu

lecionava em curso de graduação em Psicologia a disciplina Ética Profissional, os alunos

Page 83: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

83

colocavam dúvidas muito pertinentes quanto às abordagens existenciais: perguntavam como era

possível desenvolver uma aceitação real da pessoa, se a própria abordagem tem sempre

embutido um parâmetro do que é saudável e do que é prejudicial. Nesse caso, diziam eles, está

implícita a expectativa de que o cliente deve atingir aquele ideal de flexibilidade, autonomia,

crescimento, entre outras características. Minha resposta era e continua sendo a de que existe

uma referência teórica, mas quem se encontra à minha frente é uma pessoa, a quem busco

conhecer, sabendo que é única e articula seu mundo de uma maneira própria, a melhor possível

para ela no momento. Aceitá-la não significa concordar com o que ela diz ou faz, mas acolhê-la,

confirmá-la como um ser humano no seu processo de dar conta da própria existência. Só há

possibilidade de ajuda para essa pessoa se ela for vista como se apresenta, no momento

presente, pois assim ela pode se desvelar, no seu ritmo. Compará-la a um padrão me impede de

vê-la como realmente se mostra e cria expectativas que podem gerar ansiedade e frustração,

pois tal padrão é captado pela pessoa, que, para atingi-lo naquele momento teria de saltar

algumas etapas, o que não é possível em um processo psicoterápico. Dessa forma, acredito que

as teorias e suas noções de saúde e desequilíbrio não devem se colocar entre o terapeuta e o

cliente, se inserir no espaço do “entre”, no momento de encontro. Segundo Hycner (1995):

O terapeuta precisa ter uma quantidade substancial de conhecimentos sobre os seres humanos em geral; porém, precisa sempre se esforçar para apreciar profundamente a experiência única da pessoa à sua frente. Ambos os aspectos são essenciais para a empatia e a compreensão das experiências do outro ser humano. Ainda assim, há entre eles uma forte disputa pela dominância (p. 28).

As noções de normal e patológico são uma referência, mas não um objetivo a ser

atingido. Por causa desse delicado equilíbrio, Hycner (1995), em sua obra, aponta a psicologia

como uma profissão paradoxal. A fenomenologia busca, no seio da sua concepção, acolher

esse paradoxo da realidade, presente em todas as coisas, evitando posições redutivas e

dualistas. Na prática, porém, há o risco de se concentrar apenas em um pólo da realidade.

Page 84: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

84

Para Hycner, as dimensões objetiva e subjetiva estão sempre presentes no atendimento

e no terapeuta como pessoa, que deve estar constantemente refletindo sobre este “estar com”.

Isso significa observar os aspectos apresentados pela pessoa, mas ir além destes, sabendo que

ela é muito mais do que o terapeuta consegue apreender naquela situação.

Certamente, por trás dessa atitude, há uma profunda crença na capacidade de auto-

regulação da pessoa, além de sua aceitação. Este ponto, porém, requer maiores esclarecimentos,

pois são freqüentes os equívocos em torno da noção de aceitação. Na verdade, prefiro evitar essa

palavra, pois acredito que ela traz um certo ranço de autoritarismo, já que pressupõe uma

superioridade do terapeuta, que então aceita o outro. No Dicionário Aurélio (1986), encontramos

as seguintes definições da palavra “aceitação”, já internalizadas na nossa cultura e que confirmam

a necessidade de precaução quanto ao seu uso: “consentir; estar de acordo com; conformar-se;

admitir, tolerar, suportar; assentir em alguma coisa; anuir” (p. 25). Todas essas palavras trazem

em seu cerne a necessidade de um agente, colocado em um patamar superior, que então aceita

alguém, passivamente posicionado. Isso acaba por marcar a posição de autoridade já existente na

relação psicoterápica, pela forma como esta se constitui, sendo o caminho para que o terapeuta se

veja como “transformador”, termo utilizado por Beisser, apontado como aquilo que o psicólogo

não é, mas muitas vezes assume como verdade.

No entanto, entre os vários significados apontados pelo dicionário para a palavra

aceitação, estão também os que confirmam a visão buscada nesse trabalho: “dar crédito a;

admitir, reconhecer”. Mesmo assim, prefiro o termo confirmação a aceitação, pois ele traz os

significados acima, evitando o sentido comum de que o outro termo está revestido. Assim,

quando se fala em aceitação na Teoria Paradoxal da Mudança é a essa atitude que se está

referindo: considerar a pessoa no que se mostra sabendo que ela é sempre possibilidade de

algo mais, o que, no entanto, é um mistério. Diminui-se, assim, o risco de formular projetos

para o cliente a todo o momento.

Page 85: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

85

Na seqüência do relato de Helena, ela traz outras informações sobre a sua forma de

conceber o atendimento clínico e suas implicações. Ela justifica a necessidade de se trabalhar

as questões religiosas nas suas intervenções.

- Então você acaba tendo que acordar a pessoa para algumas coisas da vida que ela está percebendo de um jeito muito afunilado. Como você acorda para outras coisas da vida, essa ampliação de consciência acaba afetando também a parte da crença religiosa. Giovana: - E que movimento você vê acontecer quando afeta? - Eu imagino, não sei se eu vejo acontecer, pois foram poucas vezes que eu vi acontecer de um jeito muito efetivo. Mas o que acontece mesmo nessa ampliação da consciência é a pessoa começar a respeitar mais o outro (...) Eu já acho muito positivo, porque em geral, tem uma melhora nas relações muito grande e, além disso, as pessoas começam a questionar dentro da própria igreja que elas freqüentam, não é questionar, começam a perceber que elas também acreditam de um jeito diferente que as outras pessoas. Dentro da mesma igreja, a fé delas não é igualzinha.

O foco de Helena parece ser o comportamento observável e a percepção consciente da

pessoa. Para ela, o objetivo da clínica é questionar, para acordar algumas coisas na pessoa, o

que evita seu fechamento e aumenta o respeito pelo outro. Ao mesmo tempo, foram poucas as

vezes em que ela pôde observar essas conseqüências ao trabalhar a questão religiosa na

clínica. Pode-se observar, de fato, tais efeitos do trabalho clínico, mas será esta forma útil

também no trabalho com as questões religiosas? Este é um tema que exige outro tipo de

tratamento, ou deve ser visto e abordado como os demais?

Em meio a essas questões e muitas colocações de Helena sobre o que pensa a respeito

dessa questão e de certas posturas religiosas, sua dificuldade em relação ao tema começa a

aparecer de forma mais clara. Em certo momento, quando ela retorna a este assunto, pergunto

o que mais a incomoda quando atende clientes que se apegam de forma rígida a uma crença

religiosa. Ela, então aponta esta situação como a mais difícil de lidar para ela.

Eu acho que talvez seja a hora em que eu tenho mais dificuldade essa postura muito rígida. É uma coisa que eu me policio muito para não mostrar meu preconceito, que eu acho que é o que acaba acontecendo. A pessoa ter alguma crença não me incomoda em si... eu acho que o que incomoda é...não é nem a rigidez. É como ela lida com os que estão aparecendo, que estão fora dessa crença. Por exemplo, uma pessoa que é a discípula

Page 86: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

86

verdadeira de Nossa Senhora, e aí ela começa a subjugar as outras pessoas porque elas não acreditam naquilo que ela está vivendo, eu acho muito difícil lidar com essa fé dessa pessoa. Então, primeiro eu trabalho meu preconceito e depois eu vou tentando trabalhar com essa pessoa as outras possibilidades de crença.

Ela continua a falar, de maneira enérgica, contra certas posturas e religiões não

pacíficas, que cometem atos violentos em nome do bem comum, como homens-bomba, entre

outras coisas. Acha mais fácil lidar com religiões pacíficas.

- Tem algumas coisas que eu acho que elas causam menos angústia na gente como terapeuta, porque a gente sabe que não é só a pessoa estar querendo o bem, ela não vai matar ninguém pelo bem da pessoa. Ela tem mais consciência de que o outro é diferente, então...

Giovana: - Então, te causa uma certa angústia perceber que a pessoa possa estar querendo algo pro outro... que possa prejudicar esse outro? - É, algo que possa prejudicar, porque querer algo pro outro a gente sempre quer, né? Mas às vezes a postura é tão enrijecida...

Após essa fala, mais genérica e que expressa preocupações de cunho social e não

situações vividas na clínica, Helena relata uma situação específica, que a incomodou muito:

Por exemplo, há pouco tempo eu atendi uma família que era evangélica, eles não falavam qual religião que eles eram. Eles criavam um menininho, que era da família deles, mas não era filho deles, porque a mãe dele era mendiga e sumiu, então eles pegaram ele, mais duas irmãzinhas. E aí, eu atendia esse menino porque eu trabalhava na creche, ele tinha três anos e não conseguia fazer várias coisas próprias para sua idade. A tia dele veio falar comigo, com uma visão completamente assim: “Ah, foi Deus que o colocou no meu caminho, eu vou fazer tudo para abençoar esse menino”, com uma visão bastante positiva da fé dela, sabe? Aí eu fui ver que não estava acontecendo nada daquilo com a criança, ela não estava sendo bem tratada e eu fiquei me perguntando...A mulher nunca mais voltou para conversar comigo. Fiquei até me perguntando em que lugar estava entrando essa fé dela, que na hora que ela faz esse discurso fica tão bonito assim e, na hora do contato mesmo com a criança, ela não estava dando conta, então eu não sei se aquela criança para ela era uma perdida, porque não tinha a mesma fé, ou ainda não estava doutrinada, mas me pegou muito, porque essa família era muito radical, o jeito deles pensarem era muito radical e há algum tempo, eles não tratavam o menino do mesmo jeito que o resto da família, as outras crianças eram tratadas de um jeito melhor, eram limpinhas, este menino não. Não cortava cabelo, estava sempre sujinho, então, eu senti uma certa discriminação, sabe?

Helena aponta uma dissonância na postura da tia do menino, dizendo que seu discurso

era belo, mas que, na prática, não devia estar dando conta da relação com a criança. Seu foco,

Page 87: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

87

porém, de desvia dessa percepção, centrando-se no incômodo que sente enquanto psicóloga.

Procuro entender melhor seus sentimentos nessa situação, pois sua voz expressava certo

sofrimento em relação a isso.

Pessoalmente, é incômodo, é triste, eu fico incomodada, tem umas horas que eu fico indignada, mas eu não falo isso nem pra pessoa, eu nunca falo, nem compartilho isso com muitas pessoas. Eu procurei ver o que eu poderia fazer para ajudar essa criança. Nesse caso, eu saí do papel de psicólogo.

Nesse momento, não explorei a questão de não compartilhar seus sentimentos a

respeito da situação narrada. Não sei se Helena valoriza a supervisão e a própria terapia como

uma ajuda nesses casos. Ela relata que abandonou o papel de psicólogo, pois comprou xampu,

entre outros produtos de higiene pessoal para o garoto, cortou seu cabelo, buscou estar sempre

com ele no colo, ensinava coisas, tudo com a intenção de ajudá-lo. Julgou importante

estabelecer uma relação diferenciada com o menino, de apego e confiança, e acredita ter

conseguido, mas interrompeu o trabalho, pois se mudou para outro estado e não teve mais

contato com ele. A seguir, Helena continua a descrever seu incômodo:

- Mas é difícil a gente lidar com essa indignação, porque é difícil mesmo. Porque tem muita gente que relaciona religião com bondade, né? (...) mas você não sabe como a pessoa vive aquela religião dela. Como a tia desse menininho. Não acho que ela estava propagando a fé que ela estava vivenciando. E quando acontece isso da pessoa mostrar uma religião, às vezes ela mostra uma religião, mas não está com o coração aberto para receber as pessoas e para perdoar. Para fazer as coisas que as religiões pregam. Então, há uma incoerência.

Giovana: - O que te incomoda é essa incoerência? - É, também. Eu acho que a rigidez me incomoda muito, essa coisa de que tem que ter existido Adão e Eva, que senão não vale nada, Jesus tem que ter subido aos céus, se não nada funciona, sabe?(...) É uma coisa que, eu tento trabalhar, porque se a pessoa é assim na religião, eu acho que ela vai ser assim em outras coisas também, ela vai ter uma dificuldade de flexibilidade que pode atrapalhar tudo e, outra coisa que me incomoda é a própria maldade também, essa dificuldade da pessoa em ser boa.(...) Essa maldade que a pessoa não conseguiu elaborar, a ponto de ela conseguir ser boa com as outras pessoas gratuitamente. Então, quando chega nesse ponto eu tento trabalhar mesmo: “Espera, será que você está sendo bom com as pessoas, você acha que tem que ser desse jeito, com essa religião, com essa crença, é a única possibilidade?”.

Page 88: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

88

Fico surpresa em perceber o quanto Helena fica incomodada com a incapacidade das

pessoas de aplicarem na prática os ensinamentos da sua religião, embora se esforcem para

isso. Afinal, essa é uma dificuldade universal, comum a todas as pessoas, em todas as

religiões e também na vida cotidiana. É algo da condição humana a busca contínua por algo

que não se consegue alcançar completamente. Mesmo o conhecimento de Helena sobre

religiões e seu interesse pelo tema não a ajudaram a aceitar essa dificuldade. Ela usa a palavra

indignação e, ao falar, estava realmente indignada, o que era visível na sua expressão e no seu

tom de voz. Ela tem uma intuição interessante do ponto de vista clínico ao perceber a

incoerência e as dissonâncias nos clientes, mas abandona a exploração da situação presente e

sua compreensão, buscando a mudança de valores em relação à crença da pessoa. Parece-me

que nessa e em outras situações, seu incômodo se torna um critério, indicando o que é

necessário trabalhar com a pessoa na sessão.

Mais uma vez, tenho a sensação de que Helena exige muito do cliente. Eu mesma

fiquei um pouco incomodada durante a entrevista, pois me pareceu muito forte a postura de

modificar o comportamento da pessoa, ampliar sua visão sobre o tema, contribuir de alguma

forma para que o cliente tenha outro tipo de experiência, buscando trabalhar o tema a partir de

uma mudança de valores. Afinal, é papel do psicólogo trabalhar no âmbito dos valores

adotados pelo cliente?

Segundo Ribeiro (1998), a proposta das abordagens existenciais caminha na contra-mão

do pensamento predominante, sendo dificilmente entendida e, menos ainda, digerida pelos

profissionais da psicologia. Prevalece o impulso de ajudar a pessoa a romper barreiras, ampliar

seus potenciais, entre outras premissas, sem levar em consideração o tempo e esforço por ela

empreendidos para se tornar o que é no momento em que vive. Nas palavras desse autor,

somos os ajustes, a integração criativa de nossas idiossincrasias em confronto com as forças e as possibilidades externas (...) utilizamos toda a nossa gama perceptiva, toda a nossa sabedoria e nossa criatividade para sobreviver o melhor que pudermos e, assim, nos distorcemos, nos alienamos o quanto for necessário para nos adaptar da melhor forma possível a esses

Page 89: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

89

processos relacionais. Não é demais lembrar que estes ajustes, quando ocorrem, são sempre criativos e até “saudáveis”, tanto se os ambientes forem favoráveis ou desfavoráveis. Saudáveis porque foram o melhor dos possíveis naquele momento e naquele contexto (p. 30).

Certamente, a forma que a pessoa encontra para viver a sua religião assim como

qualquer outra dimensão da sua vida é a que mais se adequa às suas condições no momento.

Como o ser humano é possibilidade, devir, movimento, há sempre a chance de mudanças,

aprendizados e crescimento. Mas não se pode chegar a eles sem reconhecer que as

dificuldades e os aparentes erros dos clientes são fruto da sua sabedoria interior e do seu

ajuste criativo ao próprio contexto.

Em diversos momentos da entrevista, o incômodo de Helena se transforma em uma

necessidade de ação, em urgência de trabalhar o tema com a pessoa ou fazer algo concretamente.

Nas situações em que nenhuma dessas alternativas é possível, fica em dificuldade, sentindo-se

sem referências. Na seqüência da entrevista, Helena cita algumas situações de trabalho no

hospital, que revelam esse tipo de incômodo. Relata momentos em que surgem falas religiosas em

meio a grupos de sala de espera, ou diante de situações de morte. Em todos os exemplos, não se

tratava de clientes em terapia, mas de outras modalidades de atendimento psicológico, vetando, na

sua opinião, a possibilidade de trabalhar o tema.

Houve uma vez em que a gente estava num grupo, um grupo de adultos, de pais, e tinha uma menininha, que estava morrendo de câncer, com seis anos. Ela estava como terminal há muito tempo já, e não morria, não morria, aí a mãe dela nem foi nesse grupo. Mas tinha uma mulher lá que era muito radical também e ela era evangélica, daquelas evangélicas mais arraigadas. Ela começou a trazer pro grupo que ela e a mãe da menina estavam preparando a criança para morrer. Eu e o outro psicólogo que estava coordenando o grupo nos olhamos e falamos: como você está preparando? “Perguntando para a menina como ia ser a morte dela”. Perguntando pra menina! Isso me causou muita aflição. (...) Outra situação foi quando a gente chegou no hospital e uma criança tinha acabado de falecer no CTI. Era uma operação cardíaca, e nessas operações normalmente as crianças não morrem. (...) Então, a criança tinha morrido, uma criança super alegre, uma gracinha, de dez anos, e a mãe estava chorando de fora, assim, enquanto eles arrumavam o corpinho e tal, e chegou uma outra mãe e citou de cor uma parte da bíblia: “não acreditas que seu filho está vivo? Vá, Jesus salvou o seu filho, está vivo”. E a gente tendo o maior trabalho para conversar com essa mãe sobre a morte da criança e essa outra queria convencer essa mãe que se ela tivesse fé, seu filho teria ressuscitado. Então, ela, tipo, avacalhou o nosso trabalho de psicólogos, sabe? E assim,

Page 90: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

90

estavam juntas lá, elas eram amigas, as crianças estavam no mesmo quarto, ficavam juntas e tal, eram amigas. E, ela, tudo bem, eu acho que ela estava com uma angústia grande de ela mesma falar: “ah, se meu filho morrer, ainda tenho essa chance de pedir a Deus para ele ressuscitar”. Mas ao mesmo tempo, ela atrapalhou muito essa mãe.

Pergunto o que ela vivencia quando isso acontece, quando está desenvolvendo seu

trabalho e alguém o atravessa com uma pregação ou alguma questão religiosa.

Num primeiro momento, eu me senti assim mesmo, desestruturada. Agente fica, mais ou menos com...aflição, com raiva, tipo “sai daqui, você está prejudicando o trabalho, essa mãe está sofrendo, olha o que você está fazendo”. Mas ao mesmo tempo, depois a gente consegue entender que aquilo ali é a dificuldade dela mesmo, igual a gente acaba entendendo na clínica comum, né? Mas pelo menos nesse primeiro momento me deu muita aflição.

Helena, quando esse tipo de situação acontece, tem reações de raiva e aflição.

Racionalmente, chega a perceber que a pessoa se comportou do único modo que pôde no

momento, mas sua emoção a atravessa, tornando-se mais forte inicialmente. Parece-me que há o

desejo de controlar os acontecimentos em torno da mãe que sofre, evitando influências externas,

que não sejam parte do suporte psicológico. Helena, implicitamente, considera que ter fé, nesse

momento, não ajuda a encarar o que está acontecendo, prejudicando o trabalho, e não leva em

conta que isso não ocorre necessariamente. Devido à necessidade de Helena, de sempre trabalhar

a questão com a pessoa, pergunto se, diante desse tipo de situação, que acontece fora do

consultório, ela se sente também impotente. Ela não usa essa palavra, mas esta me vem à mente

em vários momentos durante a entrevista, porque sinto na sua fala uma necessidade de ordenação

e controle enquanto psicóloga, para poder trabalhar o tema religioso, da forma como acredita ser a

mais eficaz, todas as vezes em que se depara com ele. Ela responde:

- É, não deixa de ser impotência também, igual numa situação, um exemplo, você está com uma criancinha, de três anos, trabalhando. É muito mais fácil do que se você estiver com dez. Se você estiver com dez crianças, imagina, correndo atrás de você, é muito difícil você dominar o ambiente e conseguir estabelecer um certo controle, mesmo. Então, realmente, elas (as mães citadas acima) estavam tendo momentos muito diferentes, então estava difícil da gente controlar aquilo.

Giovana: - E você citou o trabalho com grupos, não é, que no grupo isso acontece muito. Você não sabe o que a pessoa vai falar, e ela não está falando pra você, está falando para outras também.

Page 91: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

91

- É... É, mas a vantagem do grupo é que o grupo...as pessoas estão numa situação mais parecida, por exemplo, nessa hora, não. A mãe tinha acabado de perder o menino. Acabou de ficar sabendo. Era um momento de extrema dor. E a outra estava apavorada, porque eu acho que ela também pensou: ah, podia ser minha filha. Então, eram momentos muito críticos. Agora, no grupo não. Podem estar passando por uma situação desagradável, mas não estavam naquele momento crítico. Você fala assim: “espera aí, fulano de tal está falando, o que você acha disso?”. Então você consegue estabelecer uma certa ordem na participação, as pessoas conseguem se respeitar. Agora, naquele momento crítico ali, estava mais difícil.

Quando busco verificar se existe a sensação de impotência por não poder trabalhar o

tema religioso no momento e da forma como gostaria, penso também na situação de grupos, à

qual ela já se referira em algum momento da entrevista. A concepção de Helena sobre o

trabalho grupal prioriza o ordenamento do que acontece na sessão e certo controle por parte

do profissional daquilo que está sendo falado e explorado. Para ela, nas sessões grupais, é

possível estabelecer certa ordem, o que não se dá em outros momentos como o citado a

seguir.

É, porque como você vai trabalhar a questão religiosa na hora da morte da criança? Você tem que trabalhar assim, você tem que dar apoio, suporte para aquela mãe, da forma mais tranqüila possível, para que ela consiga expressar a dor que ela está sentindo, ou elabore de alguma forma. Você não vai falar assim; “Não, não preocupa com isso não. Isso que ela está falando é a maior balela”. Não tem jeito, você não entra nessa questão, né?

Na maioria das vezes, mesmo na clínica individual, há inúmeras situações que fogem

ao controle do terapeuta. Acredito que seja precisamente nesses momentos, não esperados e

imprevistos, que a dimensão pessoal do psicólogo aflora e ele se comporta a partir de suas

características mais pessoais, em detrimento da referência teórica adotada. O reconhecimento

desses momentos é muito importante, principalmente nas abordagens existenciais que são, na

sua base, relacionais. Tais situações sempre surgirão. O que observo na prática clínica de

Helena é que o modo como o cliente mostra a sua relação com a religião pode provocar

reações que a levam a dissonâncias com a teoria escolhida, apesar de ela criticar as

dissonâncias das pessoas ao viverem sua fé. A grande contribuição da entrevista de Helena é,

ao compartilhar seus sentimentos, crenças e expectativas comigo no momento da entrevista,

Page 92: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

92

evidenciar as sutilezas e dificuldades de lidar com o tema em uma abordagem

fenomenológica. É uma contribuição para todos nós psicólogos, na busca por uma maior

integração e maior aproximação da experiência vivida pelo cliente.

Page 93: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

93

CCCaaapppííítttuuulllooo VVVIII

LÍLIAN

Lílian reside em Belo Horizonte, é solteira, tem 27 anos e trabalha com a perspectiva

existencial-fenomenológica. Eu já a conhecia há algum tempo, desde a época da faculdade e

sabia, através de conversas informais, que considerava difícil atender quando o cliente

enveredava pelo campo da religiosidade. Meses antes, quando perguntei se gostaria de fazer

parte dessa pesquisa, demonstrou grande interesse pelo tema e por investigar o desconforto

que sentia diante dele.

Lílian marcou a entrevista no seu consultório, onde estaria atendendo naquela tarde.

Dispúnhamos de uma hora e meia para a entrevista e conversamos, de início, sobre outros

assuntos. Então, combinei as condições de sigilo e as etapas que teríamos nesse trabalho, pois

nos encontraríamos novamente para uma devolutiva, na qual eu apresentaria a síntese da

entrevista para sua apreciação e alteração, ou complementação, se necessário. O clima de

interesse se manteve por todo o tempo, com grande cumplicidade e generosidade de sua parte,

pois investigou suas vivências de forma muito profunda e sincera. A simples transcrição das

falas não é capaz de revelar a densidade daquela conversa, na qual predominava o tom

pausado, reflexivo, com muitos momentos de silêncio, buscando acessar a sensação e

descrevê-la da melhor forma possível. A impressão causada em mim pelo clima dessa

entrevista certamente está presente no processo de análise, e tento dar visibilidade à parte não-

verbal da interação, descrevendo o movimento presente no diálogo, as expressões e o tom de

voz da entrevistada. Muitas vezes, nos vimos diante da impossibilidade de compreender os

comportamentos relatados, mas surpreendeu-me a capacidade de Lílian em ficar diante desse

Page 94: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

94

não-saber, admirando a complexidade e especificidade do fenômeno religioso e tudo o que diz

respeito a ele. Parecíamos estar lidando com algo para o qual as palavras adequadas não

existiam. Eu observava seu esforço para dar voz ao incômodo que sentia, mas ambas ficamos

com a sensação de que isso nos escapava. Houve mais perguntas do que respostas.

Lílian se preocupa com o tema da religiosidade do cliente na clínica a partir das suas

implicações terapêuticas, pois percebe que não consegue atender da mesma maneira quando

esse assunto aparece. Ela não é uma pessoa religiosa, no sentido de que não adere ou pratica

uma religião, mas dá valor e importância à religiosidade.

Quando começo a entrevista, percebo que a reação de Lílian em relação ao tema

religioso não depende da forma como o cliente expressa sua religiosidade ou adere a uma

crença. O tema se apresenta para ela, de modo geral, como uma dificuldade. Seu simples

aparecimento, com ou sem aprofundamento por parte do cliente, acarreta diversas sensações,

o que fica mais claro ao longo da entrevista.

Olha, eu já estive diante desse tema de várias formas. Pessoas contando ou expressando, assim, sentidos católicos, tenho uma cliente que é espírita e é médium, e às vezes fala dessas coisas também, e pessoas que têm parentes evangélicos fervorosos. Então, eu acho que já experimentei um pouquinho de... já tive um contato com cada uma dessas religiões. Eu acho muito difícil, eu fico assim, pisando em ovos.

Lílian tem a sensação de que precisa ter muito cuidado e este permeia toda a sua

narrativa. Considera que este cuidado vem do medo de ferir a crença do cliente.

- Como se fosse proibido. Eu não posso entrar, e se eu entrar, tenho que ir muito de levinho, com muito cuidado, eu fico com medo de, às vezes... acho que esse cuidado vem porque eu fico com medo de... sei lá, de repente, fazer uma pergunta ou algum comentário, alguma coisa assim, que vá ferir a crença da pessoa, ou vá bater de frente com a crença da pessoa. Giovana: - É um medo de estar falando alguma coisa que atrapalhe? - Que fira, mesmo, ou que vá de encontro àquilo que é sagrado. Então, assim, não sei, eu fico sempre com muito, muito, muito cuidado e, às vezes eu prefiro...na dúvida, eu prefiro não falar nada (...) É estranho, não é?

Page 95: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

95

A partir da pergunta acima, compreendo que seu medo não é o de atrapalhar o processo

terapêutico e sim, o de ferir a pessoa em algo que é importante para ela. Parece temer uma

aproximação ao sagrado e prefere evitá-la, escolhendo não dizer nada, sem fazer intervenções.

Porém, esta não é uma decisão tranqüila para ela, que fica inquieta e desconfortável, “pisando em

ovos” e avaliando como estranha a própria posição.

Em outro momento da entrevista, fica mais claro como o medo da aproximação das

questões religiosas aparece na relação com o cliente. Calcada em entrevistas anteriores4, nas

quais apareceu um incômodo grande das psicoterapeutas no contato com posturas rígidas ou

fanáticas dos pacientes religiosos, investigo se Lílian compartilha dessa sensação. Ela

descreve seu incômodo frente a pessoas em situações de fechamento, que não querem olhar a

própria experiência e se trabalhar em terapia. Nesses casos, sejam relacionados à religiosidade

ou não, muitas vezes se surpreende tentando tirar a pessoa da situação ruim, ou apressando o

seu processo, empurrando-a para fora daquela vivência. Pergunto se ela tem esse tipo de

sensação diante dessas posturas, por causa da questão religiosa ou devido a este tipo de

movimento do cliente, que se expressa em outras áreas também. Na verdade, tento

compreender se o incômodo diante do tema se dá por causa da maior incidência de rigidez e

pouca flexibilidade dentro de certas posturas religiosas. Mas sua resposta mostra serem

questões totalmente distintas para ela, sendo que lidar com a religiosidade inspira sentimentos

e reações específicas. Ela começa falando de como se sente diante de posturas rígidas e, em

seguida, diferencia este incômodo do que vive em relação ao tema religioso.

Em uma situação, é como se me desse uma ansiedade, assim, sabe? Na situação em que eu estou vendo que a pessoa está fechada, então eu quero ou fazer ela ver o que eu já vi, ou então, tirar ela de uma situação que está ruim. Acho que é uma ansiedade, sabe, como se a ansiedade, aquele mal-estar da pessoa contaminasse. Aí eu quero sair daquilo logo, quero tirar a pessoa daquilo logo. Então, é como se fosse uma ansiedade, para ver a pessoa fora daquela situação ruim logo. Agora, a outra situação, do contato com essa religião dos clientes, aí é diferente. Porque não é uma ansiedade (silêncio). Não é. É mais medo do que

4 Para a confecção dessa dissertação, foram realizadas seis entrevistas, porém, apenas quatro foram escolhidas para serem apresentadas aqui, devido ao seu conteúdo e o preenchimento dos critérios apresentados anteriormente.

Page 96: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

96

ansiedade. Medo de entrar numa área desconhecida. E que eu sei que são valores, assim...bastante fortes, bastante preciosos para a pessoa. Para qualquer uma, né, a religião, ela é um valor que... ela é diferente.

Nessa fala, Lílian mergulha no seu incômodo. Sua postura torna-se introspectiva, seu

olhar volta-se para dentro de si mesma, tentando descrever o que sente, diferenciar sua

vivência em cada uma dessas situações. Diversos autores, como Hycner (1995), discutem a

dificuldade do psicólogo em acompanhar o cliente no seu momento presente, principalmente

em situações de sofrimento ou estagnação. Lílian confirma essa dificuldade no encontro

terapêutico, acrescentando que esta aparece mais claramente em contatos pessoais, fora do

trabalho no consultório, porém a distingue totalmente da sua vivência frente ao tema religioso.

Nesse caso, as palavras usadas por ela ressaltam a especificidade desse momento e seu medo

de entrar em uma área desconhecida.

A partir da sensação de que está lidando com um campo proibido, no qual não deveria

estar adentrando, o cuidado com o que vai dizer é apontado por Lílian como a principal coisa

que lhe ocorre quando o cliente relata algo da sua religiosidade.

É, é uma diferença bem nítida. (silêncio) Dá mesmo uma sensação...a sensação que dá é muito essa, assim, de ter muito, muito...pisar em ovos para abordar esse tema. É essa sensação que me dá muito clara. Ter muito, o dobro, o triplo do cuidado, pra poder perguntar.

Diante disso, pergunto:

Giovana: - O que tem na religião? - Não sei, parece que é essa dimensão assim, de alguma coisa sagrada e inquestionável mesmo, que se eu for questionar, não pode. É proibido.

Durante toda a entrevista, procuro verificar se as vivências diante do tema religioso são

específicas dessa área, ou semelhantes a algo mais que Lílian já tenha experimentado. Mas em

todos os momentos, obtenho a confirmação de que se trata de algo singular. Essa “coisa sagrada”

aponta para a existência de algo além da existência cotidiana, mas é concreta e presente.

- É como se fosse maior. (Silêncio) Como se fosse uma coisa maior, um valor maior, ou... mais importante, não sei. Que é uma coisa sagrada, né? Que não está aqui, só (fez um gesto indicando a área ao nosso redor).

Page 97: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

97

Giovana: - Como é isso? - Ah, uma coisa sagrada que... eu acho que é uma coisa muito, assim, esse valor religioso – a religião – é uma coisa que não está só aqui, que eu quis dizer, é que não está...que tem a ver com o que a pessoa acredita, assim, de Deus, com essa ligação com o mundo espiritual... com esse transcendente aí. (Silêncio) E ao mesmo tempo é uma coisa tão íntima, da pessoa, tão... acho que é íntima mesmo a palavra, que é como se eu não pudesse questionar.

Na primeira análise da experiência de Lílian diante do tema religioso, comparei suas

reações com o sentimento numinoso descrito por Otto (1992). Mas uma leitura mais acurada de

sua obra, aliada a uma tentativa de mergulhar na experiência de Lílian na busca pelo seu vivido,

trouxe maior clareza e algumas distinções importantes em relação ao sentimento descrito por este

autor e aquele relatado por ela na sua prática clínica.

O sentimento numinoso é apresentado por Otto como o elemento primordial na vivência

do sagrado. É a reação diante da dimensão de mistério, fascínio, terror e poder presentes no objeto

religioso. O sentimento numinoso envolve um estado de maravilhamento da alma, o curvar-se

ante a uma realidade transcendente. Isso está ligado a um envolvimento com o mistério. Otto

define da seguinte maneira a dimensão de mistério na vivência do sagrado:

O objeto realmente misterioso não é inacessível e inconcebível apenas porque o meu conhecimento relativo a este objeto tem limites determinados e inultrapassáveis, mas porque me debato com algo “totalmente outro”, com uma realidade que, por sua natureza e essência, é incomensurável e perante a qual recuo, tomado de estupefação (p. 41).

Otto se refere ao temor como um elemento presente no sentimento numinoso, mas este

não se assemelha ao medo comum, é algo de outra ordem, um estremecimento diante de um

Outro, pertencente a outra realidade, tomando a pessoa por inteiro. Esta pessoa, então, se

sente uma “criatura”, estremecida diante de algo inefável, de um poder. Frente a essa

potência, surge um sentimento de dependência absoluta. Alguns objetos, pessoas, fenômenos

e lugares trazem uma impressão numinosa, sentida como uma experiência do sagrado. Trata-

se, de fato, de uma experiência que envolve a pessoa por inteiro, a qual Lílian observa nos

seus clientes, mas com a qual não tem nenhuma intimidade.

Page 98: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

98

Embora exista algo que a amedronta e afasta do que é vivido pelo cliente, não se pode

dizer que este medo seja da ordem da estupefação e estupor diante de uma experiência do

sagrado. Apesar de demonstrar grande respeito e admiração por este fenômeno em diferentes

partes da entrevista, Lílian tem dificuldades em se manter diante dessa dimensão

desconhecida para ela. Não se produzem na sua pessoa modificações ou sentimentos

religiosos a partir dessas interações, mesmo que existam preocupações de cunho religioso na

sua vida pessoal, como será evidenciado ao longo da entrevista. Na verdade, parece que, para

Lílian, o tema religioso tornou-se um tema tabu.

Pode-se pensar que o medo sentido por Lílian ao se deparar com experiências religiosas

ou mesmo o indício destas nas falas dos seus clientes, tenha produzido uma dificuldade em levar

adiante seus sentimentos e reações pré-reflexivas, que parecem ser uma intuição do sentimento

numinoso. Talvez essa reação tenha impedido que isso se tornasse uma experiência de sagrado

para ela, transformando-a, então, em uma vivência de tabu, pois sua conseqüência é o afastamento

daquilo que está presenciando e o sentimento de paralização.

Van der Leeuw (1964) ajuda a compreender a experiência de tabu, definindo-o da

seguinte forma:

Tabú es uma espécie de advertencia: ¡cuidado!, ¡alta tension! El poder se ha acumulado y ahora conviene ser precavido. Tabú es plenitude de poder, expressamente comprobada; el contramovimiento del hombre debe tomar en cuenta que ha de reconocer la abundancia de poder, por asi decirlo, apreciar la distancia dada y ponerse a cubierto (p. 34).

Para este autor, o tabu impõe uma proibição ao contato com algo em diferentes

situações, determinadas culturalmente. Implica uma distância tida em relação a alguma coisa

a qual se atribui propriedades misteriosas. Ele considera tabu a evitação de atos ou palavras

em virtude do temor a um poder, porém, assinala também seu caráter de irracionalidade. Não

se pode afirmar que Lílian esteja em relação com esse poder, ou com a potência presente na

dimensão religiosa, mas ela se coloca diante disso, admitindo sua existência, mencionando a

presença do transcendente no mundo.

Page 99: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

99

Isso é confirmado no trecho abaixo, no qual mais uma vez Lílian reconhece sua

dificuldade em lidar com este tema no exercício da sua profissão. Atribui este fato à

especificidade do fenômeno religioso, à sua ligação com o “além”.

É uma realidade diferente, assim, né? Porque ouros tipos de assunto, eu consigo ir adiante com essa investigação sem tantos problemas, né? Ou com problemas de outra ordem. Mas... esse é diferente e acho que é diferente por conta dessa ligação, desse além. Além da nossa vida aqui, e que é uma coisa que eu também acredito, mas não sei bem como eu acredito.

Ao procurar compreender como ela enxerga o fenômeno religioso, começo a perceber

que a dimensão religiosa tem um peso e um valor diferentes para Lílian, em relação aos

demais fenômenos. Ela não consegue se manter neutra ou indiferente diante dessa questão. No

campo da Psicologia e Religião, existe um princípio bastante utilizado, chamado “princípio da

exclusão da transcendência”. Diversos autores adotam essa posição, que não afirma, nem nega

a existência de uma dimensão transcendente, considerando apenas o fenômeno do ponto de

vista do cliente, sem admiti-lo para fora dos limites da psicoterapia (Vergote, 1998). Lílian

não vê dessa forma. A existência do transcendente, tido como algo para além da dimensão

material, é admitida, embora ela não saiba bem o que fazer com isso, provocando reações

ainda pouco elaboradas.

Para Lílian, a existência das religiões, da dimensão sagrada no mundo não é um fato

qualquer, é algo que tem conexão com uma outra realidade. É algo paralelo e presente ao seu

redor, mas “maior” e “mais importante” do que as outras questões da vida, causando nos seus

clientes e aparentemente, nela mesma, um impacto peculiar. Coloca-se diante disso de forma

respeitosa, mas ao mesmo tempo temerosa. Não sabe com o que está lidando, mas tem a

intuição de tratar-se de algo grande.

Que é muito maior do que outros assuntos.... Eu não estou sabendo explicar, nem sei se tem explicação, assim. Mas acho que é por conta dessa dimensão sagrada mesmo. Agora, o que mais assim, eu não consigo dizer, o que mais, né? (silêncio) É diferente...dos outros temas. É diferente.

Page 100: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

100

Todas essas falas permitem uma maior compreensão do posicionamento de Lílian.

Considero que, nesses momentos, ela se coloca diante do mistério. Mesmo não tendo experiências

religiosas na sua vida, ou talvez justamente por isso, ao entrar em contato com as vivências dos

seus clientes, ela percebe que eles estão diante de algo grande, de uma potência. Ela também

acredita nesse poder para além do mundo material, mas ainda não sabe como se relacionar com

ele, ou como aderir a uma crença, mas reconhece sua existência. Segundo van der Leeuw (1964),

o homem que se encontra frente a uma potência, se sabe em presença de algo que tem uma

qualidade diferente das demais coisas que conhece, que só pode derivar do que se denominaria de

santo ou numinoso. Estes termos têm em comum uma alusão a um pressentimento do totalmente

outro, do que é absolutamente diferente. Para este autor, o primeiro movimento da pessoa diante

disso, é a evitação, mas ao mesmo tempo, há uma busca por essa potência. Há medo e desejo,

temor e atração. Para van der Leeuw, frente ao que se reconhece como totalmente outro, a conduta

humana é sempre ambivalente.

Identifico tal ambivalência em Lílian, na forma como se refere aos fenômenos que

presencia nos seus clientes. Sua história de vida em relação ao tema religioso, também traz esse

movimento. Ela tem uma busca por algo, mas não sabe bem como empreendê-la. Ao mesmo

tempo em que se aproxima de sua religiosidade, há também elementos que a afastam.

Muitas vezes, eu considero como sendo – deixa eu ver que palavra eu vou usar aqui – como se eu fosse assim, é...criança, ainda, no desenvolvimento religioso, como se eu fosse um bebê no desenvolvimento espiritual e religioso e que, como muitas vezes, não é por conhecer, ou conhecer profundamente ou praticar uma religião, isso não significa que a pessoa tenha ou não um desenvolvimento espiritual ou religioso na vida (...). E que a pessoa que não faz isso, não quer dizer que não tenha um desenvolvimento religioso. Mas ainda assim, eu sinto que meu desenvolvimento espiritual e religioso é pequeno. É pouco. E acho que, além de estar entrando num campo, assim, desconhecido, e até de certa forma por ser sagrado, né, e o sagrado a gente não questiona, além disso, eu sinto que eu tenho essa, esse, assim, esse lado pouco desenvolvido e eu me sinto como se fosse assim, incapaz, ou...isso me atrapalha também na hora de entrar em contato com a questão religiosa da pessoa, principalmente se é a mesma da qual eu tenho afinidade. Eu acho que aí dá para entender um pouco melhor isso.

Page 101: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

101

Suas dificuldades com este tema a mobilizaram de tal forma, que buscou a ajuda de

outro psicólogo, um supervisor, para compartilhar essas questões. No trecho abaixo, ela revela

ambivalências e contradições no contato com o tema.

- E eu acho que para mim foi – eu não sei se é porque já tinha trabalhado isso em supervisão ou se é porque é diferente mesmo – mas o contato que eu tive com ...com... a cliente de uma religião diferente da minha, eu acho que foi mais fácil. Eu me senti um pouco mais livre, assim, para investigar com ela as coisas, com a pessoa, inclusive, falando, né, explicitamente, desse meu receio, do que com a religião católica, que é onde eu tenho uma influência maior na minha vida. Que estranho... Giovana: - É bem interessante. Quando você diz que é a sua religião, você diria que a religião católica é a sua, que você adota e vive essa religião? - Eu não vivo, não pratico, (risos) eu não exerço a religião. Mas, quando eu penso em religião, eu penso na religião católica. Eu tenho uma origem muito forte, de avós paternos e maternos, de pais; até que meus pais não têm uma prática religiosa freqüente, nem constante. Meu pai teve, durante muito tempo e saiu. Meu pai foi seminarista. E minha mãe bebe de outras fontes também. Ela lê outros livros, livros espíritas, mas a predominância é muito mais forte da religião católica. E hoje, estou num momento em que estou sentindo a necessidade de buscar mais esse lado religioso, espiritual. E sempre quando eu penso isso, eu penso em fazer na religião católica. Não me vejo em outra.

Lílian reconhece sua afinidade com a religião católica e percebe, também, uma

dificuldade maior em lidar com esta religião, enquanto psicóloga, do que com outras. Mas

começa a compreender que tal dificuldade se deve a uma posição pessoal, a qual vê como

insuficiente: não conhece bem a sua religião, falando desse desconhecimento em outro

momento. O fato de conhecer pouco sobre as religiões se constitui, para ela, em um entrave.

Por isso, tem um cuidado ainda maior com o que vai dizer ao cliente.

Não sei se é porque eu conheço pouco das religiões, então eu fico pensando assim: eu não conheço, então, cuidado dobrado. Porque eu não sei, assim, por exemplo, o que é importante para cada religião, e que é assim, sagrado para cada religião, então, aí, a chance de eu me atrapalhar e bater de frente, ou alguma coisa assim, com a religião daquela pessoa, é maior.

Em outro momento, quando pergunto o que considera mais difícil em trabalhar com

questões relativas à religião, o tema do conhecimento reaparece.

- Eu não sei onde que eu posso, até onde eu posso entrar. Por isso que eu te falo, que eu acho que é, às vezes, me dá a sensação de que é por uma ... como é a palavra? Por uma ignorância, por um não saber. Porque eu sei

Page 102: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

102

muito superficialmente sobre as religiões, sobre como elas são, de onde elas vêm. (Silêncio) Mas aí eu fico com o pé atrás. Giovana: - O mais difícil é você não saber sobre as religiões? - É, mas... mesmo na religião católica que é a que eu sempre tive criação e hábito, também fico assim. Mas também não sei se eu posso dizer que eu conheço, a fundo. Conheço mais que as outras, mas mesmo assim, eu fico com um pé atrás.

Diante dessa questão do conhecimento, trazida por Lílian, fico me perguntando se o

não saber sobre as religiões é realmente uma experiência determinante na forma como aborda

e reage ao tema. Pelo que ela tinha falado até então, não me parecia ser uma questão racional,

mas muito mais vivencial. Procuro ouvir atentamente, verificando isso em outro momento

quando tenho a oportunidade. Então, comento sobre algumas religiões desconhecidas, com

adeptos em nossa cidade, além de mencionar as várias religiões conhecidas. Pontuo que não é

possível conhecer todas.

Pois é, então, eu fico com essa sensação, uma cobrança comigo mesma, de que eu tinha que, se eu conhecesse, isso seria mais fácil. Mas isso não é só nessa ordem de conhecer, essa dificuldade, porque esse contato que eu tive com a pessoa espírita, eu tive mais facilidade.

Lílian reconhece, aqui, um paradoxo, pois tinha comentado anteriormente que tem

maior dificuldade com a religião católica, na qual foi criada, do que em outras que não

conhece bem. Isso fica evidenciado quando relata, acima, que ao atender uma cliente espírita

mais recentemente, conseguiu acompanhá-la de maneira mais satisfatória.

Continuo me perguntando sobre o papel que o conhecimento racional sobre as religiões

tem no seu contato com o tema. Pergunto como se dá essa questão com outros temas, se ela se

sente incomodada quando atende uma pessoa que traz um assunto desconhecido para ela. Busco

verificar se é isso o que está atrapalhando seu contato com o tema. Ela relata o seguinte episódio:

Estou lembrando aqui de uma pessoa que trouxe uma questão com drogas. E aí eu não tive tanto impasse, porque, peguei, fui...eu disse que não sabia direito, eu sabia algumas coisas, mas não sabia ao certo, o que ela estava perguntando, pesquisei e da outra vez a gente voltou a conversar sobre isso. Não foi tão difícil. (Silêncio) Não foi tão difícil dizer que eu não sabia e pesquisar. Agora, da religião, não sei. É como se eu não pudesse assumir isso também. Sabe, principalmente das minhas origens, de família católica,

Page 103: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

103

ambas, de tradição de colégio católico. Estudei durante dez anos em colégio católico. De já ter feito Crisma, passado por todos esses estágios, tem umas coisas básicas que eu não sei, e é como se eu não pudesse admitir isso, como se fosse uma vergonha.

Lílian compreende, nesse momento, que a questão do conhecimento não está ligada

apenas à falta de informações sobre algo, mas sim, ao modo como ela se coloca diante disso.

Normalmente, admite que não sabe sobre um assunto e procura se informar, sem que isso

cause desconforto ou mal-estar, mas no caso da religião é diferente. Relata sentir-se em falta

por não conhecer as diversas religiões, mas, mais do que isso, não conhecer bem aquela na

qual foi criada e possui afinidade é apontado por ela como uma vergonha. Mesmo a

convivência forte com o catolicismo não possibilitou o aprofundamento do seu conhecimento

sobre este, a respeito do qual ela diz:

Parece que, sabe, você ouviu falar um monte de coisas e...sabe que o galo cantou, mas não sabe onde, e aí então, como é que você vai querer correr atrás desse galo?

Lílian já tinha mencionado, em momentos anteriores na entrevista, que se sente engasgada

quando o cliente traz o tema religioso, pois ela não sabe o que fazer com este. Após considerar

que a exploração deste tema se constitui um tabu para ela, percebo também os pontos que a

incomodam, como a falta de informação sobre o assunto. O problema do desconhecimento das

religiões para Lílian não se dá apenas no nível das informações gerais sobre as diversas crenças,

mas o desconforto maior é gerado por não conhecer a religião na qual foi criada e freqüentou

durante certo tempo. Na fala abaixo, ela evidencia outro aspecto dessa questão: ela não conhece

sua própria forma de acreditar no transcendente:

particularmente, eu não sei bem como eu acredito e, aí, eu não sei o que é que pesa mais na hora do engasgar. Se é o não conhecer sobre as religiões, de forma mais racional, se é o não conhecer direito o que é que eu acredito, se tem esse medo assim, esse receio de estar afrontando uma crença que é muito...porque as – eu estou pensando aqui agora – as demonstrações de religiosidade que eu vejo são coisas assim, muito, fortes. As pessoas acreditam de uma maneira inteira, assim. Eles vivem aquilo ali, não simplesmente acreditam, como acreditam em outras coisas, elas vivem aquilo ali de forma inteira (...).

Page 104: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

104

Lílian percebe que a dimensão espiritual, naqueles que aderem a uma religião,

perpassa todos os níveis da sua vida, não consistindo apenas em uma crença racional.

Pergunto a ela como é ficar diante disso, dessas manifestações de religiosidade.

Não sei. É um não sei mesmo, porque, para falar a verdade, eu nem sei em que acreditar. Assim, eu vejo pessoas que têm uma crença muito segura, do que é esse além-vida. E eu não tenho, então, fica difícil, né? Eu não sei assim, muito bem.

Como Lílian aponta o desconhecimento do próprio posicionamento religioso como um

possível dificultador no seu contato com o tema, pergunto se ela imagina que seria diferente

caso tivesse uma crença definida. No entanto, ela responde que ter um posicionamento claro

quanto à religião não é sinônimo de maior compreensão diante da opção religiosa do cliente.

Pelo contrário, pode existir o risco de maiores problemas, o que é expresso na seguinte fala:

Acho que se tivesse bem claro, bem seguro, poderia ser diferente...mas aí, eu fico com medo de, sendo uma coisa muito clara, muito segura, de cair naquele outro ponto, de sutil ou explicitamente, acabar passando esse valor para o outro. Eu estou num extremo ou outro, né, não sei como seria, assim, o meio. Que eu estou no extremo de cá, não sei em que eu acredito, mas no outro extremo de acreditar muito, aí eu fico pensando que a gente corre esse risco, de acabar passando, transmitindo para a pessoa esse valor.

Diante de tudo isso, Lílian não sabe ao certo como se posicionar em relação à

religiosidade. Algo do fenômeno religioso a toca, tanto que tem uma série de reações e

elaborações sobre este, não só do ponto de vista terapêutico e da forma como lida com as

experiências do cliente, mas também no aspecto pessoal, pois não sabe como se posicionar

religiosamente na própria vida. Segundo Giussani (2000), o senso religioso faz parte da

experiência humana, tornando-se visível quando há questionamentos sobre o significado da vida,

da realidade e de tudo o que acontece ao ser humano. As questões são despertadas pela realidade,

que se impõe com sua dimensão de mistério. Lílian percebe o aspecto de transcendência da

realidade e convive com muitas pessoas que se colocam frente a ele aderindo a uma determinada

crença, a qual é vivida intensamente, “de forma inteira”. Acha isso muito bonito, mas não sabe se

daria conta aderir a uma religião dessa forma. Por toda a sua vida, em sua história pessoal, buscou

Page 105: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

105

se aproximar da religiosidade, cumprindo todos os requisitos do catolicismo. No entanto, sente

não saber o suficiente sobre esta religião e, tendo se afastado dela, hoje tem a necessidade de

cultivar a dimensão espiritual, parecendo estar insatisfeita com seu movimento atual. Diante

dessas considerações, coloco o questionamento de Giussani (2000):

Ora, que tipo de fenômeno é a experiência religiosa? É um fenômeno que diz respeito ao ser humano; por conseguinte, ela não pode ser tratada como se fosse um fenômeno geológico ou meteorológico. É algo que se relaciona com a pessoa. Então, como agir? Em se tratando, pois, de um fenômeno que se passa em mim, que interessa à minha consciência, e ao meu eu como pessoa, é sobre mim mesmo que devo refletir. Faz-se necessária uma investigação sobre mim mesmo, uma investigação existencial (p. 22).

Essa perspectiva está em consonância com os pressupostos fenomenológicos, pois se

acredita que a formação pessoal e existencial do psicólogo é tão importante quanto sua

preparação teórica, metodológica e técnica. Nesse sentido, o papel da supervisão é

extremamente importante para qualquer de psicólogo. Quando falo em supervisão, não me

refiro a orientações, sugestões de intervenção ou análise do “caso” em questão, mas a uma

troca dialógica, um momento de reflexão conjunta. A constituição de tal espaço é fundamental

para que o terapeuta se dê conta do impacto sofrido por ele nas interações clínicas,

explicitando suas sensações e impressões. Isso não impede a interferência dessas questões na

relação terapêutica, mas evita vieses e confusões, mantendo o profissional na direção de sua

abordagem, trabalhando as dissonâncias surgidas.

Segundo Ancona-Lopez (2005a), as supervisões na universidade, principalmente nessa

abordagem, se afastaram do enfoque na pessoa do terapeuta e passaram a enfocar o caso, as

intervenções. Felizmente, muitos psicólogos existenciais têm estado atentos para esse

processo, como pontua Yontef (1993). A reflexão nas supervisões, nesses casos, vai sempre

na direção da pessoa do terapeuta, e não apenas na situação vivida pelo cliente.

Sei, através da convivência com Lílian, que suas supervisões seguem o estilo descrito

acima, pois também fiz supervisões com o mesmo profissional, percebendo a diferença de

estar voltada para o processo de interação como um todo, e não apenas para o agir terapêutico.

Page 106: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

106

A forma como Lílian tem se colocado frente a este tema tem mudado, a partir desse tipo de

supervisão. Procuro, então, entender melhor o que se passou nesses momentos.

Giovana: - Você trabalhou em supervisão estar... - A dificuldade de entrar em contato com... de trabalhar com o cliente nesse tema, da religião. Como é que é isso, né... Giovana: - O que você encontrou, fazendo esse trabalho em supervisão? - Eu vi, assim, não sei se foi exatamente nesse dia ou em outro que isso apareceu, como é essa diferença de trabalhar com a pessoa sem precisar questionar, necessariamente ter que questionar esses valores religiosos que são dela. Não tem que mexer neles, mas tem como questionar sem questionar esses valores.

Ao falar dos seus medos e dificuldades, ela revela seu modelo de clínica, priorizando,

dentro da abordagem escolhida, o questionamento do que é vivido pelo cliente. Lílian se

divide entre duas posições: a possibilidade de desenvolver um trabalho sem ter que questionar

os valores da pessoa e a crença de que questionar é o principal papel do psicólogo. Assim, se

atrapalha quando se depara com o tema.

É como se fosse uma coisa proibida, assim, de questionar, né, que eu acho que é o principal papel nosso, na clínica. É ir questionando as coisas com a pessoa para ir abrindo campo para ela conseguir clarear um pouco a situação que ela está vivendo e que está difícil. Mas é como se isso não pudesse questionar. Então, quando, por exemplo, uma cliente vira pra mim e diz: “cada um tem sua cruz que tem que carregar”, sabe, assim, eu fico meio engasgada, porque ela está trazendo uma situação que ela está vivendo, seja ela qual for, e ela fala isso, como se ela tivesse que suportar essa situação. Como se ela tivesse que se conformar com isso e suportar. Assim, cada um tem sua cruz, para carregar. E aí eu não sei. Tá, mas, se eu for questionar, é como se eu questionando a conduta da pessoa, ou o jeito que ela está lidando com isso, eu estivesse questionando a religião e...será que eu posso questionar, assim um valor religioso? Não sei.

Quando ouve algo que remete a ensinamentos religiosos, ou experiências espirituais,

Lílian muda a forma como normalmente conduziria a sessão, pois é tomada pela sensação de

medo de ferir a pessoa e adentrar por uma região desconhecida, além de se armar de todo o

cuidado possível. Pergunto como agiria em tal situação se não se sentisse “engasgada”.

Eu acho que eu ia questionar assim: será que tem mesmo, que carregar a cruz? Será que tudo o que a gente, assim, que é como se a gente recebesse essa situação e aí eu tenho que suportar até o resto da vida. Será que eu tenho mesmo que suportar isso? Será que tem que ser desse jeito que eu

Page 107: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

107

recebi, ou eu posso fazer alguma coisa com isso que eu recebi? Eu tenho que carregar do jeito que eu recebi? Sou eu mesmo que tenho que carregar isso, ou será que eu não posso dividir...o peso dessa situação? Por isso que... agora, como eu vou questionar isso de um valor que é...sagrado, assim? (...) São perguntas comuns para outras... para ajudar a pessoa a entender aquilo ali. (Silêncio).

Lílian coloca uma pergunta interessante quanto à atuação do psicólogo: será seu papel

questionar um valor religioso? Questionar a fala da sua cliente como faria normalmente em

outros temas, a levaria a questionar a crença subjacente a esta, no âmbito da religiosidade?

Isso seria uma ajuda para a pessoa?

Mesmo vinculada a uma abordagem fenomenológica, Lílian enfatiza a dimensão de

questionamento da clínica como o papel primordial do psicólogo. De fato, a clínica envolve

uma postura investigativa, principalmente nessa abordagem, a qual busca se aproximar do

sentido do fenômeno. Porém, segundo Safra (2004d), a utilização de questionamentos para

clarear uma certa situação não está ligada ao fato de enfatizar e colher a experiência do

cliente, o que, para este autor, é o papel primordial do psicólogo nessa abordagem. Mais uma

vez fica clara nossa dificuldade (pois me incluo nesse meio), enquanto psicoterapeutas

fenomenológico-existenciais, em manter uma postura de acolhimento da experiência sem

fragmentá-la, ou reduzi-la, sendo testemunha e companheiro de um percurso singular. Em

outro momento, ela reflete novamente sobre essa postura:

Da mesma forma como a gente levanta questionamentos sobre a forma da pessoa agir com um, com outro, né, sobre as relações delas com as pessoas, comportamento nas várias áreas da vida, quando entra nessa área da religião, aí é como se fosse inquestionável, então não posso mexer.

Muitos psicoterapeutas se referem ao questionamento como se fosse a única forma de

entrar em contato com o cliente e desenvolver um trabalho com ele. Segundo Yontef (1993),

na busca pela cientificidade, a Psicologia se constituiu calcada no paradigma moderno,

buscando a objetividade. Essa idéia permanece presente mesmo nas abordagens que tentam

propor uma forma diferente de abordar o homem, o que mostra a seriedade e a dificuldade

dessa tarefa. Este autor discute um termo muito utilizado pelos psicoterapeutas: “trabalhar” o

Page 108: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

108

tema com o cliente. O que é isso? De que se trata? Para ele, trabalhar algo nas abordagens

existenciais consiste em experimentação. É esta a proposta fenomenológica: explicitar o

vivido. Nas terapias dialógicas, o terapeuta precisa facilitar que o cliente experimente o que

está dizendo. Isso inclui, além de explorar a vivência da pessoa no ritmo dela, dar feedbacks

ao cliente do que está sendo percebido e explicitar os sentimentos que surgem durante a

sessão. Sendo assim, há outras vias de diálogo em terapia que não passam pela ampliação da

consciência no nível racional sobre um determinado assunto.

Este exemplo trazido por Lílian possibilita refletir sobre as intervenções clínicas nessa

abordagem, levantando perguntas acerca do que é de fato terapêutico. Para ser coerente com a

visão de homem proposta pelas abordagens fenomenológico-existenciais, acolhendo a

totalidade da pessoa e centrando o olhar sobre sua experiência vivida, algumas atitudes e

posicionamentos são requeridos. Porém, é fácil desviar-se dessa raiz de pensamento e

concepção da realidade, pelo motivo já exaustivamente apresentado: o paradigma da cultura

na qual estamos imersos segue em outra direção, dificultando uma atuação que não se torne

dissonante. É preciso, então, mais que qualquer coisa, ter consciência desse fato, da

dificuldade de se trabalhar nessa perspectiva e dos erros nos quais certamente todos vamos

incorrer. É uma busca constante e infindável pelo encontro terapêutico.

O diálogo é interação, é envolvimento existencial. É um encontro que prepara o

terreno para a possibilidade de acontecer uma relação Eu-Tu, o surgimento do novo, uma

experiência inquietante, que abra novos sentidos. Deve-se mais a uma postura, do que a falas

e atitudes específicas. O “engasgo” de Lílian frente a uma fala de origem religiosa mostra-se

também como um engasgar-se entre um modelo clínico calcado em questionamentos, muito

valorizado na Psicologia de forma geral, e sua intuição de que não deveria questionar esse

tema dessa maneira. Considero sábia sua cautela e a opção pelo silêncio, mesmo com tantas

Page 109: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

109

perguntas na sua mente, pois representa cuidado e respeito por uma dimensão ainda

desconhecida para ela. Segundo Safra (2004a):

O dizer ao revelar também vela. O viver humano não pode ser plenamente dito; entre o dizer e o indizível emerge o falar poético. No fluir da situação clínica testemunha-se o aparecimento da possibilidade desse falar poético, em que a palavra não se fecha, mas se abre para o não-dito (p. 25).

A abordagem fenomenológica na clínica psicológica pressupõe a colocação das próprias

impressões e sentimentos entre parênteses, na medida do possível. O cuidado com as próprias

dificuldades assumido por Lílian a coloca no caminho para se disponibilizar verdadeiramente ao

outro. No momento da interação descrita acima, todas as questões que passam por sua cabeça,

aliadas ao medo indefinido que sente diante do tema, fazem com que a frase da cliente que diz ter

uma cruz para carregar se torne figura para ela, podendo gerar um afastamento da experiência

relatada pela pessoa. Segundo Amatuzzi (2001a), é preciso um silêncio interior para escutar

realmente o que alguém tem a dizer. Em meio a impactos, dúvidas e medos, fica mais difícil

alcançar a compreensão de algo.

Ouvir não é um ato de inteligência ou do pensamento, mas uma participação existencial em um movimento de gestação ou parto no plano do sentido. É pelo conjunto de minha resposta interativa que mostro que ouvi. Ela será a elaboração de meu silêncio face ao outro que me dirige a palavra (p. 41).

O diálogo nessa perspectiva, não está buscando necessariamente a palavra, mas também o

que há por trás dela, pois a pessoa se comunica de diversas formas e cresce, também, a partir de

diferentes possibilidades. Para isso, o terapeuta precisa silenciar suas inquietações, para que se

faça o silêncio necessário ao surgimento do significado. Os poetas ajudam a compreender essa

posição. Lispector (1998) traz a seguinte reflexão sobre o pensamento:

Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas num caleidoscópio (p. 14).

O estar-com é mais que ver e ouvir. É presenciar. É testemunhar e compartilhar um

momento de expressão, geralmente através da fala, mas que contém em si toda uma

Page 110: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

110

ancestralidade, toda uma cultura, uma ontologia humana específica, um pedido de escuta para

além do visível e sensível. O ser humano quer e precisa ser acolhido como uma unidade, um

todo, em constante movimento e compreensão de si e do mundo. Freitas (1985) compara este

movimento ao giro de um caleidoscópio, complementando a imagem poética acima. Para este

autor, terapeuta e cliente seguem juntos na relação estabelecida como peças em um

caleidoscópio, o qual é a metáfora da vida da pessoa em atendimento. As pedrinhas dentro

desse instrumento são comparadas aos traços hereditários, sensações, vivências, bagagem de

vida. O momento de encontro, na terapia, possibilita o giro desse caleidoscópio, rearticulando

seus elementos, mostrando novas figuras, outras perspectivas sobre a situação vivida.

No entanto, a dificuldade em acompanhar o cliente em determinado tema, ou momento

da sua vida, pode provocar uma ruptura nesse movimento. No caso de Lílian, sua grande

dificuldade se dá em relação ao tema religioso, o qual explicita para ela a quebra na busca por

este tipo de posicionamento. Ela tem consciência da ruptura que ocorre na relação quando se

atrapalha diante desse tema, sabendo que isso impede a pessoa de ir mais a fundo, explorar

mais de perto a dimensão religiosa na própria vida. A mudança de conduta, em relação à

forma como interviria frente a outros temas, é evidenciada pela fala a seguir.

Algumas vezes, até algumas coisas que vêm, espontaneamente, eu, não, sabe, eu barro, eu freio. Por exemplo, a pessoa está conversando de alguma coisa e sempre surgem perguntas, questionamentos, ou algum comentário, mas quando é, o assunto é religião, parece que eu já entro em alerta para barrar esse movimento. Não sai, assim, espontaneamente, como saem as outras falas. Tem que passar pelo crivo, assim, do medo, de como a pessoa vai ouvir isso, será que isso não vai ferir essa crença da pessoa?

Durante toda a entrevista, me pergunto sobre as implicações das suas reações no processo

do cliente, do ponto de vista terapêutico, pois tanto ela quanto eu, percebemos que isso traz

interferências. Diante desses relatos, pergunto sobre seus efeitos, do ponto de vista

terapêutico, se ela acredita que o momento de “engasgo” pode atrapalhar o trabalho em

desenvolvimento na sessão.

Page 111: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

111

Eu acho que atrapalha. Atrapalha porque a gente está em movimento, né? Durante a sessão também a sessão acontece num movimento e as coisas vêm na nossa cabeça, as perguntas ou intervenções, isso vem, flui. Flui num movimento e na hora que engasga, pára. Então eu acho que tem uma quebra, e aí a gente começa a prestar atenção é nesse engasgo, ou então fica querendo arrumar uma, um jeito, assim, né, para perguntar aquilo que a gente sentiu, naquela fala e aí, se a gente pára para pensar e elaborar como a gente vai perguntar, a gente já perde esse movimento, então acho que tem uma quebra aí.

Nos momentos em que “engasga”, Lílian percebe a alteração no movimento da sessão,

pois acaba saindo do contato com o cliente. Fica mais centrada no assunto em questão, do que na

pessoa diante dela. Como este assunto lhe causa um impacto peculiar, seu incômodo acaba se

destacando em meio a quaisquer outras sensações. Esse movimento de Lílian, enquanto psicóloga

em atuação, interfere na relação terapeuta-cliente, pois um pressuposto para o encontro e,

conseqüentemente o crescimento da pessoa atendida, é uma escuta atenta, procurando

compreender o mundo da pessoa. Como a própria Lílian assinalou, quando se está voltado para o

outro, verdadeiramente, perguntas emergem e o diálogo se inicia. Nesse caso, não há necessidade

de pensar no que dizer, ou como intervir da melhor forma, pois a sintonia, aliada ao preparo

teórico-metodológico adquirido e continuamente aprimorado, permite o surgimento da fala

autêntica e de novos sentidos (Amatuzzi, 1989).

Tomada por um tema que a toca de forma diferente, pensando na melhor forma de

intervir, Lílian não negou ou desconsiderou o tema na sua atuação clínica, decidindo fazer algo

com o incômodo que sentia, buscando compreendê-lo através de supervisões, sabendo que suas

reações são indício de algo sobre si mesma. Isso mostra que reflete, não só sobre o seu trabalho

em psicologia, mas sobre suas próprias vivências, levando-as a sério, principalmente quando são

mobilizadas por um dado tema. Lílian mostra como todas as questões levantadas acima de ordem

mais racional e também práticas estão ligadas à sua vida pessoal e seu posicionamento diante do

tema.

O que eu comecei a pensar, a partir de supervisão, foi que...a gente não precisa trabalhar com o assunto da religião. Isso daí é inquestionável, é de cada um mesmo. Mas a gente trabalha com a pessoa, que tem essas crenças e tudo. (...) É... eu consegui... Não, porque não sou eu que consigo. Mas, assim,

Page 112: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

112

através de outros assuntos também, né, esse da religião menos, por incapacidade minha, por engasgo, assim. Mas a pessoa conseguiu colocar limite para as outras pessoas, e se relacionar melhor, dentro daquelas questões dela. Agora, eu acho que, assim, o que me ajudou um pouco, a lidar com essa questão foi isso, assim, diferenciar, quando a pessoa traz o tema da religião, eu não preciso entrar no tema da religião, mas sim procurar ver como é a pessoa com aquilo. E acho que isso ajudou um pouco.

Neste trabalho, Lílian percebeu a diferença de enfocar sua atenção no assunto trazido,

ou na pessoa como um todo, vivenciando diversas reações. Percebeu que pode ter um

questionamento sem questionar os valores religiosos da pessoa, se aproximando mais da

postura enfatizada por Safra (2004) de ser testemunha em um processo de crescimento.

Porém, segundo Ribeiro (1998), é necessário um período de elaboração e integração de algo

novo aprendido à postura existencial da pessoa. Apesar de compreender racionalmente a

necessidade de manter em foco a pessoa como um todo, isso leva tempo para ser apreendido

de forma visceral. Este autor enfatiza a grande contribuição de Perls (1951) a este campo,

quando este afirma que os erros dos psicoterapeutas são, na sua maioria, caracterológicos.

Isso não exclui o cuidado teórico-metodológico, mas acrescenta a este uma dimensão tão

importante quanto esta, a pessoal, já que o terapeuta é seu próprio instrumento de trabalho.

Nesse ponto, mais uma vez, evidencia-se o papel da supervisão no talhamento de um

olhar e de uma concepção de clínica que, tornando-se mais fenomenológica, possibilita outras

formas de interação e acolhimento da vivência.

No entanto, é importante salientar que, no caso específico de Lílian, a interferência do

seu posicionamento pessoal quanto à religiosidade na forma como interage com o cliente

consiste para ela em uma preocupação de cunho profissional. No momento da interação, o

foco para ela, não é a resolução dessas questões, ou o aparecimento de questionamentos sobre

o transcendente na sua vida. Quando ouve o cliente, o que ocorre é certo temor, permeado

pela dúvida sobre a melhor maneira de abordar o assunto, de forma a contribuir para a

vivência deste. Na entrevista, ela fala da sua história de vida, mas durante o atendimento,

preocupa-se com essa questão na perspectiva do cliente. Suas dúvidas e questionamentos

Page 113: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

113

pessoais sobre a espiritualidade não se tornam figura para ela em detrimento do que é trazido

pelo cliente, mas sim a melhor forma de abordá-lo.

Quando termino a entrevista, Lílian se sente muito incomodada. Comento que já

considero suficiente o que conversamos, e ela teria um atendimento em seguida. Ainda

teríamos algum tempo, e a sua sensação era a de não ter conseguido dizer muito daquilo que

estávamos investigando. Eu, ao contrário, estava muito satisfeita por termos conseguido nos

manter envolvidas na busca pelo entendimento de um tema assim. Eu me sentia diante do

mistério, com uma sensação muito boa de falta de respostas, mas excesso de vivências. A

entrevista termina com o seguinte diálogo, iniciado por mim:

Giovana: - Eu estou achando muito interessante que a gente está aqui com o não-saber, mesmo. - Só não sei o que a gente faz com isso....É tão misterioso, né? É mistério mesmo. Pelo menos estamos reconhecendo a existência disso. Estamos diante disso. Giovana: - É. (Silêncio) E eu acho que deu. - Deu? Estou com a sensação muito ruim de que não deu. Parece que espremeu, espremeu e não saiu nada.

Lílian diz isso com uma expressão de frustração no olhar. Como colaboradora dessa

pesquisa, estava realmente empenhada em compreender o incômodo que sente diante do tema

religioso. Mas ao longo da nossa conversa, o não-saber, a não-linearidade, as pausas, as

dúvidas sobre a própria vivência mostraram uma figura difusa, amorfa, diferente da que

esperávamos encontrar.

Penso, agora, nas nossas expectativas costumeiras em relação ao encontro, como se

algo tivesse que se produzir ali, naquele momento, que fosse inteligível e compreensível. Eu

também não tinha nada de concreto e elaborado na minha mente, mas tinha certeza de que

este momento da análise traria muitas reflexões. Mas fico pensando nessa mesma expectativa

que temos também para a clínica e os momentos de atendimento. Isso me remete a uma

reflexão de Clarice Lispector (1998):

Page 114: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

114

Não quero perguntar por que, pode-se perguntar sempre por que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim (pp. 13 e 14).

Acredito que assim seja a clínica de base fenomenológica: exercitar a capacidade de se

colocar diante do mistério da existência, envolva esta questões religiosas ou não. O encontro é o

desencadeador de um processo, no qual as elaborações e vivências entram em curso, muitas

vezes, fora do setting terapêutico, em outros momentos. O desenrolar dessa entrevista e as

posteriores elaborações apontam a necessidade de se entregar ao encontro, baixando as ansiedades

e expectativas, com abertura ao que vier, mesmo que seja aparentemente confuso e inconclusivo.

Page 115: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

115

CCCaaapppííítttuuulllooo VVVIIIIII

MARINA

Marina é solteira, tem 28 anos e reside em Belo Horizonte. É psicóloga clínica e professora

universitária em um curso de psicologia. Comunicávamos-nos por e-mail e telefone, através

do contato de pessoas ligadas a grupos de estudo em Fenomenologia e Gestalt-terapia, mas

não nos conhecíamos pessoalmente. Quando, ao telefone, falei sobre o meu trabalho e

perguntei se gostaria de fazer parte da pesquisa, concedendo uma entrevista, ela aceitou,

comentando que certamente tinha algo a dizer sobre este tema. Assim, nos encontramos pela

primeira vez na ocasião da entrevista, marcada em sua casa, no horário da manhã.

Ela me recebeu de forma calorosa e bastante descontraída. Conversamos um pouco antes de

começar e ela se mostrou muito disponível durante todo o tempo. A entrevista foi densa e

transcorreu em um tom tranqüilo e alegre. Durante todo o tempo, ela se referiu aos seus sentimentos

e dificuldades no passado, pois hoje considera lidar bem com o tema. Talvez, por isso, tenha havido

mais leveza e descontração no seu relato. A entrevista durou cerca de uma hora e meia. Acabamos

ultrapassando o horário estipulado, pois o assunto nos mobilizou e envolveu muito.

Durante a entrevista, sob a circunscrição do tema, pude conhecê-la melhor. A primeira

informação relevante para essa pesquisa, da qual eu não tinha conhecimento, é o fato de

Marina ser católica. Isso está diretamente relacionado com as dificuldades que vivenciou, para

as quais buscou saídas no cuidado consigo mesma, em suas questões existenciais e espirituais,

e na busca por um maior aprimoramento teórico no campo da psicologia fenomenológica. Seu

relato explicita este movimento, colocado cronologicamente, fazendo uma reflexão sobre um

processo que vem acontecendo há alguns anos e que se encontra já bastante elaborado.

Page 116: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

116

No momento da entrevista, Marina já não vivenciava as mesmas dificuldades sentidas no

início da sua prática clínica, cerca de três anos atrás, no qual tinha uma série de reações, as quais

foram sendo compreendidas ao longo de um processo reflexivo e vivencial. O contexto atual é

outro, mas ela se coloca bastante disponível para falar sobre o assunto no seu momento mais

crítico. Durante esse período, foi necessário empenho para dar voz ao incômodo que sentia, antes

difuso e pré-reflexivo, o que revelou a incoerência existente entre os ensinamentos do seu grupo

religioso e a teoria psicológica por ela adotada. Porém, ela não se dispunha a abrir mão da

abordagem fenomenológica ou da sua religião e buscou um caminho que a ajudasse a integrar este

aspecto da sua vida à sua prática clínica. Assim, quando se refere às suas dificuldades com o tema

religioso, Marina fala do passado, fazendo uma retrospectiva do seu processo de mudança.

Ao começar a entrevista, quando perguntei sobre sua experiência em atender pessoas

que levam este tema à clínica, Marina apontou a necessidade de falar dela enquanto pessoa,

inicialmente, para que eu pudesse entender como este tema a afeta. Durante muitos anos,

desde a adolescência até seus vinte e quatro anos, participou de um grupo religioso católico

no qual era muito engajada. Considera a linha religiosa em questão bastante firme nos seus

propósitos, princípios e regras, acabando por exercer certa pressão sobre seus membros. Ela

cresceu e formou sua concepção religiosa dentro desse meio, mas, após quase dez anos de

envolvimento, começou a se sentir desconfortável em algumas situações e a questionar o

comportamento das pessoas desse grupo.

E por uma série de motivos, eu já não estava dando conta mais da forma como aquilo ali era trabalhado, não tanto pelas coisas que eram faladas, mas pelo grupo religioso em si. Era muita pressão, aquela coisa de “você não foi à missa, então eu não te ligo”, porque tem que ir à missa para ser amigo. Uma coisa assim, em outras palavras. Então, isso começou a cansar um pouco e, hoje, eu participo, vou à missa do mesmo jeito, mas em outra igreja, não dentro desse grupo. Então, eu tenho essa vivência religiosa muito forte em mim.

Ela viveu tudo isso durante a faculdade, cursando psicologia, mas as constatações

acima surgiram apenas no final do curso. Nessa época, ela começou a questionar algumas

idéias desse grupo religioso, cuja implicação refletia na forma de estabelecer contato com os

Page 117: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

117

outros. Ela percebeu outra dimensão além do incômodo gerado pela cobrança e pela rigidez

das pessoas com quem estava convivendo: o reflexo daquelas idéias poderia atingir a relação

com seus futuros clientes.

E uma das coisas que essa comunidade religiosa me passava é uma questão assim: “se um dia você tiver que conviver com alguém espírita, cuidado, porque você pode ser contaminado”. E eu, quando formei – e foi mais ou menos nessa época, que eu comecei a questionar as coisas de lá – eu ficava pensando: “então, como eu vou atender alguém espírita?, como eu vou atender alguém protestante? Então, eu não posso conviver com esse tipo de pessoa, que de alguma forma eles vão estar me fazendo mal?”. Porque, querendo ou não, era essa a mensagem que era passada.

Marina começou a perceber os efeitos dessa mentalidade na prática de outras pessoas,

pertencentes ao seu grupo religioso, e tinha medo de que isso refletisse na sua atuação

profissional da mesma forma.

E eu tinha muito medo de como isso ia refletir na prática. E, na verdade, eu acho que reflete, não na minha, mas nas pessoas que eu ando convivendo que são de lá. Então, eu conheço uma pessoa de lá que não atende pessoas espíritas no consultório. Não atende, simplesmente não recebe, sabe? Ou se recebe e a pessoa traz algo da religião, de alguma maneira tenta fugir desse assunto pra não ouvir sobre a religião que era contrária.

Depois de contextualizar seu posicionamento religioso na época em que se formou,

Marina começa a contar suas experiências quando iniciou sua prática clínica. A primeira frase que

diz, chamou minha atenção e reagi com uma expressão de surpresa, sem interromper sua fala:

A primeira cliente que eu tive era espírita. Então, já foi uma prova de fogo (risos). É impressionante!

Esta frase me chamou a atenção, no momento, por explicitar a imprevisibilidade e o

desafio que constituem a clínica psicológica. O aparecimento da cliente espírita poderia ser

interpretado como uma coincidência, ou mero fruto do acaso, mas tal situação me remete a

uma colocação de Hycner (1995) sobre a dimensão relacional da terapia:

A disciplina da psicoterapia coloca grandes exigências na pessoa do terapeuta. O terapeuta é constantemente confrontado com aquilo que não quer encarar. Sempre digo aos meus alunos que a questão que estiverem querendo evitar em si mesmos, provavelmente será trazida pelo próximo cliente! Em última instância, não é possível a evitação em terapia. A pessoa do terapeuta está sendo incessantemente forçada a lutar com suas fragilidades e seus pontos cegos (p. 30, grifos do autor).

Page 118: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

118

Por já ter me deparado com esse fato na clínica – ser confrontada com uma questão

existencialmente difícil para mim naquele momento, como aconteceu com Marina, que temia

atender uma cliente espírita e foi procurada justamente por esta – desde os meus primeiros

atendimentos, comecei a me interessar pelo aspecto relacional e misterioso da interação na

terapia. Penso que é interessante observar como esse tipo de situação de fato acontece, e até

mesmo com certa freqüência, insinuando a existência de uma ligação muito sutil entre

terapeuta e cliente, para além do que é dito, expresso, ou percebido conscientemente. Parece

haver um tipo de comunicação não-verbal e inconsciente, mesmo antes do primeiro encontro,

antes de se estabelecer qualquer vínculo. Este fato aponta para uma dimensão fundamental da

psicoterapia: a dimensão intersubjetiva, o ENTRE, como preconizado por Buber, que é o

tecido no qual o processo terapêutico se desenvolve, modificando ambas as partes envolvidas

e não só o cliente. Assim, a vinda da cliente espírita faz com que Marina não pudesse evitar

esse confronto. Aqui se revela uma outra condição da clínica psicológica: na sua concretude,

ela depara o psicólogo com demandas que ultrapassam os aspectos contidos no enquadre

daquele atendimento propriamente dito e fazem com que ele se defronte com questões

teóricas e de ordem pessoal, que devem ser pensadas e avaliadas. Dessa forma, delineiam-se

possibilidades de aprendizagem e crescimento também para o terapeuta.

Marina continua o seu relato, contando como foi essa experiência de se deparar

justamente com o tipo de cliente para o qual não se sentia preparada, entrando em contato

com a vivência que a incomodava.

E a vivência espírita era a que mais me metia medo, assim, exatamente por causa dessa, do que foi falado, né? E foi muito interessante, porque, no começo, eu me sentia incomodada de ficar ouvindo. A primeira cliente, nem tanto, porque ela trazia a religiosidade mais como um suporte na vida dela e ela não chegava a falar de vivências mesmo, religiosas. As outras vieram contar, então traziam questões assim, de participar de centro espírita e de relatar como tinham sido essas experiências, relatando. E aquilo, no começo, me incomodava. Era difícil escutar. Hoje, depois de três anos – que isso já tem três anos e essa cliente até continua comigo – é muito mais fácil, mas foi um exercício interno meu.

Page 119: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

119

O aparecimento do cliente que apresenta justamente o tema mais delicado para o

terapeuta naquele momento específico da sua vida consiste em uma provocação existencial. É

um fato que mobiliza e obriga o terapeuta a se posicionar diante de si e do outro. Muitas

vezes, a única possibilidade, quando o tema é um impedimento muito forte à interação, é o

encaminhamento para um outro psicólogo. Quando não é este o caso, a situação pode ser vista

como uma forma de aprimoramento pessoal e crescimento, buscando-se, inclusive, ajuda de

outro profissional, como um supervisor ou terapeuta, se necessário. Uma saída menos

apropriada do ponto de vista ético, mas muito freqüente, é o fechamento consciente do

profissional para aquele assunto específico, por não se dispor a lidar com a sua dificuldade

interna de entrar em contato com ele.

Marina percebe que, além da dificuldade com o espiritismo em si, enquanto opção

religiosa, ouvir a descrição das experiências espíritas era muito difícil para ela. Como pode ser

observado também em outras entrevistas, a reação de Marina mudava de acordo com a forma

como o cliente expressava sua religiosidade. Ela sentia menor dificuldade quando a pessoa falava

sobre a função da religiosidade na sua vida, do que quando se referia a experiências ou práticas

ritualísticas. Como o olhar aqui é sobre a interação na clínica, eu me pergunto por que motivos a

primeira cliente não falava de experiências religiosas: este realmente não era o seu foco, ou era

necessário um tempo para que Marina cuidasse de si e do tema, e pudesse ser estabelecido um

campo relacional no qual a sua dimensão experiencial fosse acolhida?

Como Marina havia mencionado claramente o incômodo que sentia nessas situações,

procurei explorar melhor sua vivência. Assim, explicita-se o tipo de influência que sofreu do

ponto de vista religioso, possibilitando maior compreensão das suas dificuldades.

Ah, era uma coisa ainda meio contaminada por essa vivência que eu tive, de pensar: “meu Deus, eu estou escutando isso e isso vai afetar minha vida espiritual”, digamos assim. “Vai contaminar”. Era essa a imagem que era passada. (...) Mas era aquele incômodo de... “ai, isso vai... de alguma maneira...”. Era ruim escutar porque... parecia que ia me fazer mal. Era essa a sensação que eu tinha, completamente contaminada pela vivência que eu tinha, sabe? (...) Dava até um certo... não sei se é medo, mas dava um

Page 120: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

120

meio medo, aquela coisa: “ah, então será que eu acredito nisso, será que isso existe, que é tão contrário àquilo que eu sempre vivi e que falavam: ‘não pode acreditar’”. Parece uma coisa bem imatura, sabe? Tinha uma questão bem de imaturidade, mesmo. Aquela coisa assim: “nossa, a pessoa está me falando que aquilo acontece. Será que aquilo acontece?”. Então, eu começava até a questionar aquilo que eu acreditava. Indiretamente. Não passava isso racionalmente. Hoje eu percebo que era um pouco isso.

Nesse momento, penso na questão da “verdade”, que está por trás de todas as religiões.

Fico pensando em como é ouvir uma experiência religiosa significativa para a pessoa, cheia de

sentidos e integrada à sua vida, quando se é religioso e se tem uma outra fé. Sempre me instigou

essa questão. Diante desses pensamentos, que surgem rapidamente, faço a seguinte pergunta:

Giovana: - É como se fosse assim: se aquilo que ela está dizendo é verdade, se aquilo acontece, então como fica a minha escolha, a minha fé? - Exatamente.

Giovana: - Será que eu escolhi certo? É mais ou menos por aí?

- Isso. Exatamente. Batia alguma coisa assim, sabe? Eu não tinha consciência disso na época, mas era incômodo. Eu olhando depois, para isso, que foi um processo que eu fiz no meu processo de terapia, bem pessoal, que eu fui percebendo uma coisa bem assim: “uai, mas não tem disso não”, sabe? (risos) “não é assim que as coisas acontecem”. O que eu acredito não precisa ser um... um... não precisa ser contraditório a isso. É diferente. Então, aí deu uma acalmada. Hoje, é mais fácil.

A questão da verdade está presente em todas as religiões. Como ouvir experiências

diferentes da sua, sem desqualificar uma das duas, se há o pressuposto de que existe apenas uma

verdade? Marina precisou se re-posicionar diante da sua crença, vendo-a como uma verdade

para ela e assumindo a possibilidade de existirem outras verdades, para outros, também.

Isso é algo que se passou em Marina, internamente, e é uma questão sua. No entanto,

do ponto de vista da relação terapêutica, o que chama a atenção é que, diante da questão

religiosa, o relato da cliente deixa de ser o foco para Marina, momentaneamente. Há um

deslocamento: ela não consegue mais estar disponível para o outro, porque é atravessada por

questões de ordem pessoal. Ela é colocada diante de questionamentos existenciais de grande

importância, que demandam sua energia, afastando-a da experiência do cliente.

Page 121: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

121

Percebo que, nessas situações, a vivência relatada passa a ser tomada por Marina na

sua existência real e concreta: se aquela religião existe, quais são suas implicações? A

experiência religiosa do cliente não é olhada mais como um fenômeno para ele, mas como um

fato, cuja existência independe da subjetividade de quem o vive. Sendo assim, Marina fica

deslocada diante dos relatos de vivências de outras religiões e se pergunta como fica a sua fé

frente a esta outra realidade. Tenho percebido que este é um questionamento comum em

relação ao tema religioso. Normalmente, o terapeuta não se pergunta se é verdadeira a

imagem que o cliente traz da sua mãe ou do seu cônjuge, mas trabalha com ela da forma como

se apresenta para a pessoa. Quando se trata da religião, no entanto, ela evoca uma dimensão

coletiva, intersubjetiva e provoca as crenças do próprio terapeuta, como já foi discutido em

um capítulo anterior. Assim, este tema acaba por ter uma implicação diferente, como que para

ambas as partes envolvidas. Aponta para o transcendente e suas manifestações.

Por outro lado, no trecho acima, Marina traz um assunto fundamental para a

psicologia: a questão da diferença. Lidar com o diferente tem sido um problema generalizado

na nossa cultura, durante séculos. O conceito de tolerância e suas implicações do ponto de

vista ético, também faz pensar nessa questão. Guerras foram e são travadas, com populações

inteiras dizimadas ou escravizadas por causa das diferenças de raça, cor e religião. No âmbito

privado, dentro das famílias, nos relacionamentos interpessoais, continua sendo difícil lidar

com as diferenças. No caso da opção religiosa, o problema da verdade agrava essa questão.

Muitas pessoas não conseguem pensar a partir da perspectiva apresentada por Marina,

considerando que a sua fé é sua, mas para outros há outras crenças, outras possibilidades de

ligação com o transcendente.

Ribeiro (1998) discorre sobre essa questão, explorando as raízes da dificuldade em

acolher o diferente. Desde o seu surgimento, o ser humano luta continuamente pela

sobrevivência, buscando uma certa segurança e desconfiando do que lhe é estranho. Segundo

Page 122: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

122

este autor, esta estratégia foi muito útil em uma certa época, mas continua determinante na

vida das pessoas atualmente, mesmo diante de outras condições objetivas. A necessidade de

estabilidade e certeza está presente social e individualmente, dificultando a abertura para o

novo, pelo medo de abalar aquilo que foi arduamente conquistado. Do ponto de vista

psicológico, isso tem várias conseqüências. Deparar-se com o novo, sempre gera uma tensão,

um desconforto, que pede uma elaboração, acabando por transformar quem o vive. Este seria

o processo de crescimento ao qual o ser humano está ontologicamente atrelado e que envolve,

necessariamente, certo sofrimento. Porém, o medo da mudança e a tentativa de evitar o

sofrimento, acabam por paralisar as pessoas. Segundo Ribeiro (1998), este é um outro

paradoxo existencial: certas atitudes são saudáveis em situações emergenciais, mas tornam-se

perigosas quando transformadas em posturas gerais e estagnadas.

Ao longo da história humana, a estabilidade, a certeza e o controle passaram a ser

buscados como ideais, afastando tudo o que possa ser contrário a isso. Porém, a própria condição

humana, na qual o contato entre as pessoas é vital, acaba por abalar tais convicções, pois é

extremamente impactante. Merleau-Ponty (1999) aborda a existência dos outros como algo do

qual não se pode escapar. O outro, o diferente, o estranho a mim me interpela, pois “existir é ser

no mundo” (p. 484). Este autor aborda o movimento constante a que os seres humanos estão

expostos, o qual os lança em seu devir. Para isso, é necessário entregar-se ao fluxo que se

desencadeia com a presença de um outro, que é sempre singular e sempre provoca mudanças.

(...) a questão é sempre saber como posso ser aberto a fenômenos que me ultrapassam e que, todavia, só existem na medida em que os retomo e vivo como a presença a mim mesmo, que me define e condiciona toda a presença alheia, é ao mesmo tempo uma des-presentação e me lança fora de mim (pp. 487 e 488, grifos do autor, termos em alemão suprimidos).

Lidar com a presença viva de outros e, dessa forma com a diferença, é um dado da

condição humana, que precede cada pessoa e lhe dá a chance de transcender a si mesma e

transformar o mundo. A tentativa de negar este movimento, calcada na ilusão de conseguir

Page 123: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

123

uma estabilidade, evita um certo tipo de sofrimento, mas acarreta outros, por tolher a

capacidade humana de criar e crescer.

Stern (1990) discorre sobre este assunto especificamente na clínica psicológica, apontando

a importância de se conferir a devida atenção ao incômodo diante de algo desconhecido. O

contato com o diferente e a tensão gerada nesse encontro possibilitam a construção de novos

conhecimentos acerca do que se está vivenciando. As lacunas na experiência, que rompem com o

habitual e provocam sentimentos desconhecidos e inesperados devem ser encaradas, pois a tensão

gerada nesse processo revela os pressupostos implícitos do terapeuta.

Por tudo isso, a clínica relacional e dialógica torna-se oportunidade para a pessoa rever

hábitos e preconceitos arraigados, a partir da abertura do terapeuta ao diferente, como passo

inicial. O medo do novo e do que é estranho existe, tem suas razões culturais e individuais e

precisa ser abordado com cuidado e respeito, partindo de uma postura acolhedora.

Marina continua seu relato, apresentando outra dificuldade vivenciada na clínica, de

certa forma, oposta à que acabo de apresentar. Trata-se de presenciar uma experiência

parecida com a dela. Diante de uma cliente que tem a mesma religião, o mesmo engajamento

e apresenta questionamentos parecidos com os seus, Marina experimenta outro tipo de

desafio. Ela não traz exemplos concretos, como falas dos seus clientes, mas expõe sua

dificuldade com esse contato, no passado.

... e, por outro lado, teve a vivência do parecido, do que é igual. E, aí, foi uma vivência diferente. É muito interessante, uma das minhas clientes tinha – tem ainda, porque ela ainda está comigo, foi uma das minhas primeiras clientes também – e ela sempre trazia a questão de como estava sendo a vivência dela na religião e trouxe muitos questionamentos parecidos com os que eu tive, e segurar isso foi difícil. Não intervir nisso aí foi muito difícil. Claro que isso é um exercício que a gente faz com tudo, mas no aspecto religioso, como era uma coisa que me mobilizava muito na época, muito mais do que hoje por estar exatamente questionando, foi muito difícil segurar. Aquela coisa dela trazer: “ah, não sei porque essas coisas funcionam assim”. Eu pensava: “Ah, eu também não sei”. Mas eu tinha que segurar, sabe?, aquilo, para poder lidar com a vivência dela. E foi um exercício muito grande meu de separar. Eu consegui, até mais do que com a cliente espírita, mas foi, era assim, aquela coisa de contar até dez e pensar: “opa, olha a pessoa aqui e deixa o que eu estou sentindo pra lá”, sabe? Interferia muito, com certeza.

Page 124: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

124

Nesse momento, ao relatar sua vivência frente ao questionamento da cliente, Marina

aponta uma questão fundamental nas abordagens de cunho fenomenológico: o exercício de

suspender os próprios juízos acerca do fenômeno observado para entrar em contato com ele

como se mostra. Naquele momento da sua vida, Marina estava justamente questionando a

postura do grupo religioso ao qual pertencia, seus ensinamentos em relação ao contato com

pessoas de outras religiões, além de estar sendo tomada por diversas sensações diante do

contato com vivências e crenças religiosas diferentes das suas. Deparar-se com uma cliente

também católica, também engajada, que tinha questionamentos parecidos, acabou colocando-a

em uma situação delicada. Através desse relato, Marina aponta a dificuldade de colocar entre

parênteses suas impressões. Quando se consegue fazer isso, certamente há a constatação de que

a experiência do outro se aproxima da sua, mas nunca é idêntica. Cada vivência é única,

totalmente singular, pois envolve a subjetividade de cada pessoa, que também é única. A

capacidade de suspender as próprias posições, aliada à abertura para o diferente, permite o

aparecimento da presença real do outro, contribuindo para o seu processo de crescimento. Com

a ajuda do terapeuta assim posicionado, o cliente pode descobrir aspectos novos na própria

experiência e fazer as conexões de sentido necessárias para compreender o que vive e como

vive. Ao relatar sua dificuldade em manter essa postura no caso da experiência semelhante à

sua, Marina evidencia o quanto suas emoções influenciam na percepção de algo e na forma de

acompanhar a experiência de alguém. Nesses momentos, mais uma vez é a experiência do

terapeuta que emerge como figura no atendimento, direcionando seu olhar e suas intervenções.

Essa vivência de Marina e sua percepção do que está experimentando mostram o

delicado equilíbrio entre a subjetividade do terapeuta e o exercício das suas habilidades

relacionais na clínica. Segundo Hycner (1995):

O terapeuta precisa entender a experiência do cliente e, ao mesmo tempo, ser capaz de estar em contato com a própria experiência. É uma tarefa extremamente difícil determinar (o) que focalizar e quando fazê-lo (p. 31).

Page 125: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

125

A abertura do psicólogo na terapia não se restringe ao que surge no relato e na

experiência do cliente, mas inclui o que experimenta subjetivamente. Quando o tema em foco

se torna uma questão muito grande para o terapeuta, demandando sua energia, ele não

consegue manter o equilíbrio descrito acima durante o atendimento. Tal capacidade reflexiva é

adquirida com o exercício consciente de se transitar entre esses dois universos. Porém, quando

essa atitude não é desenvolvida na formação do psicólogo, a clínica pode se tornar o lugar da

evitação e do desconhecimento. As questões mal resolvidas dos psicólogos, as expectativas

implícitas, as reações inesperadas e mesmo desconhecidas, acabam ocorrendo no espaço

terapêutico, sem que se tome consciência delas e sem que recebam o cuidado necessário. Stern

(1990) enfatiza a necessidade de dar a devida importância aos pensamentos e reações inesperadas

que acometem o terapeuta. Deve-se resistir à tentação de interpretá-los imediatamente e alocá-los

nas representações, vivências e concepções pré-existentes, evitando o contato com o novo e

reduzindo o fenômeno presenciado a algo previamente conhecido. Segundo este autor, a abertura

para o surgimento do inesperado está diretamente ligada à capacidade de perceber as expectativas

implícitas e examiná-las, procurando captar o que se mostra e não aquilo que se deseja encontrar.

Voltando ao relato de Marina, busco compreender seu olhar sobre o processo do cliente

em relação a este e outros aspectos. Penso nas entrevistas anteriores, em que a religiosidade na

vida da pessoa foi pensada em termos da sua função e pergunto se, ao ouvir uma experiência

religiosa, durante o período em que essa escuta era difícil para ela, Marina fazia uma avaliação

sobre os seus efeitos na vida do cliente, como sendo algo patológico, prejudicial, ou não. Ela

responde de forma geral, tentando se lembrar das suas vivências na época.

É, às vezes...Eu tenho que parar e pensar o que eu trabalhei comigo, na época, sobre isso. Mas eu acho que tinha uma sensação sim, de que a vivência da pessoa era errada, sabe?, tinha. Eu acho que tinha sim, porque já tinha essa visão ruim. Talvez fosse melhor para ela se ela estivesse vivendo outra coisa. Eu acho que isso passava, sim. E de quando ver uma pessoa igual, falar: “isso, você está no caminho certo”. Lá no fundinho, isso falava.

Page 126: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

126

Abordando a questão de forma mais genérica, Marina conclui que tinha o movimento

de considerar mais correto e benéfico para a pessoa aderir a uma religião parecida com a sua,

sendo este o melhor caminho a ser seguido. Admite, também, ter avaliado de forma negativa

religiões diferentes da sua e considera tais pensamentos um efeito da mentalidade à qual

estava atrelada. Pergunto se, atualmente, ela vê algum efeito dessas sensações no processo do

cliente e como ela avalia essa postura:

Ah, eu acho que tem efeito sim. Eu acho que de uma forma ou de outra, a gente acaba passando isso. Eu não sei te falar, acho que, na época, eu não fiz também um exame cuidadoso de como isso estava acontecendo. Mas, provavelmente, isso tem um efeito. Acho que a pessoa pode trazer menos a questão religiosa, por exemplo. A forma como a gente se coloca, até muda o assunto, faz a pessoa não trazer o assunto mais. Acho que não passa uma coisa de acolhimento. E, querendo ou não, você passa isso. Acho que não tem jeito da gente não passar isso. O que eu não sei dizer é como eu via que isso era passado, porque, na época, eu não fiz uma coisa cuidadosa, não prestei atenção, mas eu acho que passa. Eu acho que é passado mesmo, Giovana, como as outras coisas são também. Igual a pessoa está contando lá: “porque eu bati na minha mulher”. De alguma maneira você passa. Se você não está segurando aquilo ali, você passa o julgamento. Eu acho que passa sim e que a gente tem que ter muito cuidado. É muito delicado.

Marina mostra que a comunicação na terapia vai muito além de conteúdos verbais.

Inclui expressões, gestos, respiração, ritmo corporal, temperatura, tom de voz, entre outros

aspectos. O preconceito, as dificuldades pessoais do psicólogo e a não-aceitação de algo

relatado são sentidos e percebidos pelo cliente. Não há como evitar isso. A única

possibilidade é um trabalho constante do terapeuta com sua própria pessoa, buscando

abertura, flexibilidade e maturidade para se relacionar com os outros.

Depois de explicitar as dificuldades que já viveu frente à religiosidade, Marina fala de

como é hoje, para ela, estar diante do tema. Dessa forma, mostra possíveis formas de

integração do ponto de vista teórico e pessoal.

Olha, hoje, é bem mais fácil, Giovana. Acho que foi tão difícil no começo, que hoje, eu até perdi a noção de: “nossa, é um tema delicado!”. Porque, no começo, foi tão delicado, que agora está mais tranqüilo. Eu não acho que ele toma um status diferente de outros não. No começo, tomou muito, mas hoje eu acho mais tranqüilo mesmo. Ainda não passei, sei lá, nos últimos um/dois anos em que isso ficou mais fácil de lidar, depois desse processo que eu tive de repensar isso, eu não tive nenhuma situação em que eu senti

Page 127: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

127

assim: “nossa, e agora?”, sabe? Incomoda em alguns momentos, como incomodam outros temas, porque a gente está mais sensível, mas não como uma coisa que toma como tomava. De chegar a ter que fazer um movimento de: “espera aí, deixa eu... segurar minha onda aqui, deixar a pessoa”... (...) É bem mais fácil. Inclusive, teve uma vez que eu fiquei pensando, quando a cliente relatou a sessão no centro espírita, ela relatou com muitos detalhes, até mais do que a outra relatava, e as coisas que ela estava sentindo, que ela estava vivendo com isso, e tudo. No final é que eu fui me dar conta. Na hora, eu não me percebi, sabe?, de que era um tema tão pesado antes. Depois da sessão, que eu fui escrever, que é um costume que eu tenho, é que eu fui perceber: “olha, foi fácil”. Não foi nada de outro mundo lidar com isso. Porque antes, eu tinha uma tendência a mudar o assunto, sabe?, a não deixar aquilo render. Além de fazer mal, eu fazia uma coisa que é completamente anti-fenomenológico, anti-Gestalt-terapia, que é mudar o assunto, mudar o foco daquilo. Inclusive, é uma coisa que eu trabalhei em supervisão, que eu trabalhei em terapia. Eu não dava conta de trabalhar com aquilo. E hoje, não. Hoje, é normal, assim.

Marina observa a diferença entre estar ou não disponível para o cliente. Relata uma

situação em que esteve imersa na vivência, sem ser tomada pelas próprias reações a respeito

do tema. Por ser uma experiência diferente das anteriores, se surpreende com sua escuta.

Penso na disponibilidade do terapeuta na clínica psicológica em suas reais

possibilidades e em quanto é importante para o psicólogo clínico perceber a qualidade da sua

presença. Refletir sobre critérios para avaliar a própria vivência, de forma crítica e atenta,

pode facilitar esse processo. Rogers (1983) reflete sobre a sua capacidade de se oferecer ao

outro como interlocutor inteiro e totalmente presente, partindo da própria experiência em ser

ouvido, percebendo os efeitos que isso tem para ele, bem como a experiência contrária.

Acho que tive mais sorte do que a maioria, por ter encontrado (...) pessoas que foram capazes de me ouvir e assim resgatar-me do caos dos meus sentimentos. Pessoas que foram capazes de perceber o significado do que eu dizia um pouco além do que eu era capaz de dizer. Estas pessoas me ouviram sem julgar, diagnosticar, apreciar, avaliar (p. 7).

Rogers (1983) mais uma vez enfatiza a fecundidade da escuta atenta e disponível.

Porém, relata inúmeros casos de atendimentos e mesmo da sua vida pessoal, que ilustram a

dificuldade em se manter nessa postura. Assim, ele expõe sua fragilidade e percebe a

diferença do que experimenta internamente nas situações em que está presente de fato, e

quando não está. No último caso, relata sentir-se mal e este passa a ser um critério para avaliar

Page 128: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

128

sua própria disponibilidade. Assim, Rogers mostra que se capacitar enquanto terapeuta inclui

o desenvolvimento da sensibilidade para perceber os momentos de não-disponibilidade e

confusão, bem como o que contribui para que ocorram.

Quando começa a atuar como psicóloga, Marina logo se vê insatisfeita com a sua

forma de escutar as experiências religiosas de clientes cuja crença é diferente da sua. O mal-

estar trazido por essas situações a mobilizou para buscar formas de lidar com o assunto, até o

momento em que se percebeu verdadeiramente em interação. Diante dessas colocações de

Marina, pergunto o que mudou.

Olha, foi interno. Foi uma coisa de... de saber que a vivência do outro não vai atingir a minha. Porque eu acho que foi essa a sensação que eu tinha, que a vivência que o outro estava me contando ali ia mudar a minha, ou ia me fazer questionar a minha, entendeu? Então, mudou essa perspectiva de: “não, a minha é minha, a dele é dele”. Essa coisa de saber distinguir que não tem problema ser diferente. Porque isso era muito, Giovana, muito colocado na nossa cabeça, na vivência religiosa que eu tive: de que o diferente é ruim. O diferente do católico, disso aqui, bonitinho, é ruim. O protestante nem tanto, mas o espírita, o umbandista, ou o que quer que seja, é ruim, não é diferente. Por mais que você tenha aquele discurso bonitinho de falar que todos são iguais diante de Deus, no fundo tem aquela coisa de... inclusive de orações que falam assim: “renuncie a isso, porque isso é do mal, é do diabo”. Aquela coisa bem pesada, sabe? Então, tinha uma coisa dentro de mim muito contaminada com isso, ainda. Que era ligado à vivência mesmo.

Fico me perguntando se realmente a vivência do cliente não “atingiu”, não foi de

encontro à vivência de Marina, como ela pontua no início dessa fala. O encontro com o

diferente sempre transforma, sempre provoca uma revisão de valores, ou sensações e rupturas

que pedem uma elaboração posterior. Isso aconteceu com Marina. Provavelmente, dar conta

disso, paralelamente a uma vivência religiosa muito forte, fez com que ela tivesse de

reafirmar para si mesma o que vivia no âmbito espiritual, junto com o exercício de não

desqualificar outras formas de religiosidade. Em outras palavras, não atingiu sua crença, mas

deu a ela um outro status, resignificando o lugar dessa vivência no mundo, como pode ser

verificado em outro momento da entrevista descrito a seguir.

Giovana: - E foi esse processo reflexivo que te ajudou a estar encarando isso hoje?

Page 129: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

129

- Sim, sim, sem dúvida. Antes eu não conseguiria, não. Sem esse processo, que foi assim, difícil separar, eu acho que ficaria contaminada ainda. Giovana: - E você vê alguma relação disso com a sua crença pessoal, com o caminho que você tomou? (silêncio) - Sim, acredito que sim, porque à medida que eu fui pensando e refletindo, a crença que eu tinha antes mudou. Nem tanto a crença religiosa em si, mas a forma de ver isso. O meu acreditar naquilo que eu acredito mudou um pouco. Como vou colocar isso na minha vida, que lugar isso ocupa, isso é meu ou isso está entre eu e o outro, sabe?

Quando pergunto se isso não atrapalhou a sua aderência religiosa, o faço por ver inúmeros

casos de pessoas que não conseguiram fazer essa integração e acabaram abandonando, ou a

psicologia, ou a sua religião. No primeiro caso, as pessoas abandonam a profissão, por perceber

total incompatibilidade entre os campos ou por temerem que o curso, na graduação, as deixe

descrentes. Em outros casos, observo um abandono da psicologia enquanto campo de

conhecimento, pois seu corpo teórico-metodológico é deixado de lado, por ser considerado

incompatível com a crença religiosa do profissional. Assim, há pessoas religiosas que seguem

trabalhando na clínica após se formarem, mas com pouca ou nenhuma referência a teorias

psicológicas, utilizando-se apenas de algumas técnicas e relacionando, sem nenhum rigor,

elementos da Psicologia e da sua religião. Ancona-Lopez (1997) aponta essa atitude de ecletismo

pragmático, muito freqüente entre aqueles que não conseguem conciliar sua crença às visões de

homem apresentadas nas diversas abordagens psicológicas. Apesar de ser uma pessoa religiosa,

Marina, pelo contrário, procura não usar a sua religião em suas intervenções na psicoterapia. Por

apoiar-se na abordagem existencial-fenomenológica, não vivencia um choque entre os conceitos

da teoria e as suas convicções pessoais, o que permite que atue harmonicamente na clínica.

No processo de compreender o que estava acontecendo e buscar recursos para lidar com

isso, Marina aponta uma disciplina da universidade, sobre psicologia e senso religioso, como um

marco nesse sentido, despertando-a para uma série de questões que antes não havia percebido.

Então, foi muito bom fazer um processo reflexivo antes, pessoal, de como eu ia lidar com isso na prática. Eu fiz isso, eu fiz uma matéria, durante a

Page 130: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

130

graduação, “Psicologia e Senso Religioso”, que me ajudou a refletir muito, exatamente para saber distinguir entre aquilo que era meu e aquilo que era do outro nesse aspecto religioso, de que a vivência religiosa ia aparecer, e que ia ser diferente muitas vezes, e então de ter um respeito com isso.

Em outro momento da entrevista, ela diz:

- Então, o atuar na clínica e o desligar do grupo foi muito perto. Então, as coisas estavam muito misturadas ainda. Por isso, eu precisei de um tempo para poder elaborar isso, para poder entender o que estava acontecendo. A minha sorte é que, por causa da disciplina “Senso Religioso”, eu já estava atenta para isso, porque senão, eu acho que eu nem ia perceber. Como eu tinha feito a disciplina um pouco antes de formar, quando eu fui para a clínica, e como eu já estava questionando, eu cheguei na clínica atenta: “nossa, se isso acontecer, como vai ser?”...

Giovana: - Então você identifica essa disciplina como uma coisa que te ajudou? - Sim, porque a gente não tem nada de religião na universidade, né? Isso é fato, então, eu acho que a gente não se prepara para esse tipo de coisa. Na verdade, a universidade não prepara a gente para um caso de suicídio, sabe? Para um caso de, sei lá, casos mais pesados assim. A religião não é um tema tratado e é um tema muito presente, sem dúvida. É difícil um cliente que não traga isso de alguma maneira. Mesmo que não seja mais significativo, de alguma forma aparece. Então, eu acho que é um tema muito mal tratado, e que devia ser mais bem tratado. Exatamente por essas vivências que eu vejo, dessas pessoas que eu conheço, que trabalham não atendendo pessoas espíritas. Então, olha a dimensão que isso toma, de misturar ali a vivência dela com o trabalho, com a vivência da pessoa, não tem essa separação. Então, a disciplina foi um marco sim, com certeza.

Nesse trecho, Marina ressalta a importância de se abordar o tema religioso no meio

acadêmico. Sem isso, talvez tivesse demorado um tempo maior para perceber as implicações

de tudo o que estava vivenciando no seu trabalho clínico. Ela atribui a este fato toda a

percepção crítica que veio depois e que permitiu a constatação das dificuldades e incômodos

narrados acima. Tudo isso confirma a observação de muitos autores da literatura especializada

em Psicologia e Religião sobre os prejuízos em se excluir este tema das discussões em sala de

aula, no meio acadêmico (Paiva, 1995; Ancona-Lopez, 1997).

As discussões no nível racional, circulando dentro do campo e se aproximando do assunto,

aliadas ao processo pessoal de psicoterapia permitiram a melhor integração entre sua concepção

clínica e sua postura pessoal, provocando mudanças inclusive na sua forma de aderir à sua fé.

Page 131: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

131

Ao relatar um caso presenciado na sua prática clínica, Marina coloca claramente como

vê essa questão hoje, ilustrando sua postura reflexiva e integrativa e também a postura

contrária, de uma psicóloga que não conseguiu a separação necessária entre sua crença

religiosa e o trabalho psicoterapêutico:

(...) eu tive uma cliente que assumia que estava com uma terapeuta de casal. Eu a atendia e ela fazia com o marido com essa outra pessoa. E, um dia, essa outra pessoa falou com ela que o único jeito que tinha para ela e o marido dela era ir numa igreja, tal e tal, e deu até o endereço para ela. Então, está no entre, está aí. A questão religiosa está entre os dois. E não pode, acho que isso não pode acontecer. Acho que isso não é ético, não só por ser religião, mas como eu não poderia falar com ela para ir lá, fazer o curso tal, que tem que ser feito para melhorar. Não é por aí. Então, eu acho que é complicado. No dia que a cliente chegou com o papelzinho na mão, olhou assim e falou: “e agora, o que eu faço?”. E a gente teve que trabalhar esse: “ah, e agora, o que eu faço?”, pois essa cliente era espírita e a terapeuta era protestante, então, o incômodo que eu senti, acho que ela também sentiu. Nem aponto o dedo não, acho que ela não deu conta de lidar com isso. Inclusive, ela falou com a minha cliente: “olha, o problema é essa religião que vocês têm”, sabe?, falou, literalmente. E, aí, ela chegou:” e agora, o que eu faço?”. E a gente foi pensar. Eu não podia falar com ela: “não vai”. Então, vamos pensar: “Como vai ser isso?, será que é isso mesmo?, como foi quando ela te falou?”. Trabalhar a vivência dela. Até ela poder fazer a opção dela. Foi difícil também fazer esse de: “não vai, não, porque ela está errada”. Mas, “vamos pensar junto, aqui”. Então, eu acho que se a gente não percebe que a crença é nossa e que está aqui dentro da gente, e tira do meio aqui, é muito complicado.

Nesse relato, a psicóloga do casal misturou sua postura profissional com a sua religião

e acabou fornecendo o que seria uma orientação espiritual, o que não foi buscado

intencionalmente pela cliente. Condenar alguma religião e atribuir a esta o sofrimento de

alguém consiste em fazer um julgamento de valor que interfere na relação terapêutica. Marina

evita tais atravessamentos o máximo possível, buscando manter-se imersa nos pressupostos

existenciais-fenomenológicos ao trabalhar com a cliente essa questão. Consegue se manter

centrada, inclusive sem condenar a postura da outra terapeuta, tentando compreender sua

dificuldade. Esse tipo de atitude fica mais evidente a partir do trecho a seguir, no qual procuro

compreender como é seu olhar sobre o processo do cliente. Assim, Marina acaba mostrando

sua concepção de clínica com clareza. Faço essas perguntas, calcada nas entrevistas anteriores

e nos aspectos funcionais da religião. Elas não estão necessariamente voltadas para o tema em

Page 132: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

132

foco, mas trazem muitos dados sobre a forma de trabalhar e as crenças fundamentais do

psicólogo entrevistado, mostrando se há, de fato, uma integração dos pressupostos teóricos à

prática diante do tema religioso.

Giovana: - E quando as pessoas vão colocando essas questões religiosas, você olha essas vivências também em termos de elas estarem prejudicando as pessoas, ou não? Como é quando alguém traz uma vivência que você vê que está de alguma forma atrapalhando a vida dela ao invés de ajudar? - É, eu tento segurar a onda, porque eu acho que eu não tenho como fazer esse julgamento de que está sendo ruim. Acho que, no máximo trabalhar com ela como trabalharia outras coisas, no sentido de como está sendo isso: “dentro dessa escolha que você está fazendo, o que tem de bom e de ruim?, como é essa vivência?, como é fazer isso?”. E se ela continuar achando bom, eu acho que não tem como a gente interferir que é ruim. Às vezes, é difícil, a gente tem que ter um cuidado, mas eu acho que não tem jeito de entrar para poder: “olha, está ruim, isso não é certo, não faz isso”. (...) Eu acho que é abrir à reflexão. Se ela conseguir enxergar além disso, que ótimo. Eu acho que é um risco muito grande você apontar aquilo ali como: “olha, isso aqui não está legal, já viu esse outro lado?”, sabe? Acho que isso até cabe, fazer ver o outro lado, “você já pensou de outra maneira? É isso mesmo? Isso em que você está acreditando está bom, está legal? É isso mesmo que você está me falando?, você já viu de outra perspectiva?”. Talvez até sim, mas apontar como um erro, como: “isso não vai te fazer bem”, eu acho complicado. Principalmente, porque, quando a pessoa age totalmente em função da religião, é porque eu acho que está muito mergulhada nisso, então é muito complicado. É, acho que abrir até pode, até cabe dentro do trabalho, mas mostrar que é errado, eu já acho meio difícil. Agora, é angustiante. Eu acho angustiante, de ver a pessoa, às vezes, fazendo alguma coisa e a gente... mas também, que julgamento é esse nosso, né? Como é que você vai saber até que ponto isso é realmente totalmente ruim para ela? É muito difícil julgar isso, mas a gente acaba pensando. Às vezes, mostrando, falando algo, a pessoa pode até largar a terapia. Às vezes uma palavrinha que a gente fala, a pessoa vai ter a sensação de que a gente está condenando aquilo. Principalmente, se aquilo estiver numa situação de conflito, em que ela mesma está sem saber, se toma uma decisão, ou se vai para outro caminho. E essa decisão está movida pela religião. Então, qualquer coisa que você deixar escapar pode fazer a pessoa falar: “olha, você está julgando e tal”. Eu acho muito delicado esse ponto. (...) Eu acho que trabalhar nessa perspectiva fenomenológico-existencial é trabalhar com a vivência, trabalhar com aquilo que a pessoa acredita, sem estar fazendo julgamento de valor o tempo inteiro, né? Que eu acho que é uma tentativa, acho que a gente não consegue o tempo inteiro, plenamente, né? Não tem jeito, a gente tem as nossas coisas. Então, este tentar tirar é muito difícil, é um exercício danado, assim.

Aqui Marina compartilha sua angústia diante da fragilidade e tensão do encontro

terapêutico considerado na perspectiva da psicologia fenomenológica. Há uma linha tênue entre

invadir o cliente e abandona-lo (Ribeiro, 1998). No primeiro caso, o cliente é invadido quando sua

experiência é julgada por parâmetros externos e ele é impelido, sutil ou claramente, para outro

Page 133: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

133

tipo de vivência. No segundo caso, o abandono seria não considerar o que é vivido como algo

legítimo, digno de consideração e importância. A prática clínica de cunho fenomenológico sempre

traz uma tensão e a não-aceitação da pessoa em qualquer aspecto pode incorrer em um desses

caminhos. Trabalhar nessa perspectiva torna-se, então, um exercício constante e um eterno

desafio. Nesse percurso, é fundamental aprender com o cliente sobre seu tempo e seu ritmo,

acolhendo suas escolhas com humildade, atenção e cuidado.

Na sua fala, Marina começa a falar na sua angústia, aparentemente frente a uma

decisão “errada” do cliente, mas recua e se pergunta que julgamento é esse, feito pelos

terapeutas, a respeito do que é bom ou ruim para o outro. Assim, ela evidencia e experimenta

a tensão, a contradição em acolher a experiência alheia, tarefa na qual todos os psicólogos

avançam e recuam na sua prática cotidiana, em constante aprendizado. É a constatação de que

a pessoa que mais sabe sobre sua vida é o cliente, que convida o psicólogo a entrar em parte

desta por um período, sendo seu companheiro de viagem. No entanto, o trajeto será feito no

trecho escolhido e apontado pelo cliente, a partir da sua perspectiva singular.

Bowen (s/d), ao refletir sobre o trabalho do terapeuta, traz uma questão muito presente

na entrevista de Marina, a qual é preciso ser sempre lembrada e avaliada seriamente.

Ter condições de identificar nossos próprios sentimentos e desejos, de reconhecer quando estamos fora de equilíbrio, ou quando algo importante está nos faltando, torna-se importante na aprendizagem do terapeuta, permitindo-nos, como terapeutas, separar nossas próprias necessidades das do cliente e reconhecer quando nossos sentimentos e ansiedades estão interferindo no processo do cliente (p. 4).

Assim, essa entrevista despertou inúmeras questões sobre a prática clínica e o

aprendizado constante ao qual todos os psicólogos estão submetidos nessa profissão.

Page 134: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

134

CCCaaapppííítttuuulllooo VVVIIIIIIIII

RONALDO

Ronaldo é psicólogo clínico, tem 35 anos, é solteiro e reside em São Paulo. Na sua formação

profissional, fez diversos cursos de extensão e atualização na abordagem existencial e em

Gestalt-terapia, além de uma especialização em psicoterapia existencial-fenomenológica. Eu o

conhecia há certo tempo, nos encontramos em diversos congressos da área e acabamos nos

tornando amigos ao longo dos anos. Eu não sabia, porém, se tinha alguma religião, ou

cultivava o aspecto espiritual em sua vida. Como eu procurava terapeutas imersos nos

pressupostos das abordagens por ele adotadas, e que tivessem mencionado em algum

momento maiores dificuldades com o tema da religiosidade, perguntei a Ronaldo se

concederia uma entrevista para minha dissertação. Ele concordou e marcamos um encontro

para a semana seguinte, no seu consultório, à tarde.

Quando ouvi a gravação da entrevista pela primeira vez, cerca de duas semanas após

sua realização, para transcrevê-la, me surpreendi com uma série de detalhes que me

escaparam no momento da interação. Era um dia chuvoso e o barulho da chuva forte

acompanha toda a entrevista, que se dá de maneira um pouco tensa. Logo no início, percebo o

desconforto de Ronaldo, por estar naquela situação e me pergunto se ele concordou em ser

entrevistado apenas em consideração a nossa amizade. Fico um pouco desconfortável

também, pois já havia percebido, através das transcrições e análises das entrevistas anteriores,

que nessa situação, a pessoa acaba se expondo e talvez diga mais do que gostaria de revelar,

sem perceber. Procurei, então, explicitar para ele os passos da pesquisa, como o acesso que

teria à transcrição e à síntese, podendo acrescentar ou retirar informações se assim o

Page 135: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

135

desejasse. Informei ainda todas as condições de sigilo e alteração de dados que seriam feitas

para preservar sua identidade, de forma que não pudesse ser reconhecido. Em seguida

apresentei o termo de consentimento livre e esclarecido, o qual deixava clara a possibilidade

de desistência em qualquer momento do processo. Assim, procurei colocar entre parênteses a

sensação de desconforto que senti ao perceber certa tensão e gravidade na sua voz, dando

prosseguimento à entrevista, norteada pela minha pergunta diretora.

Tais aspectos serão discutidos ao longo da análise, pois percebo que meu comportamento

durante a entrevista mudou, tendo se desviado da forma como eu normalmente a conduziria.

Assim, me vejo em diversos momentos cortando ou complementando a fala de Ronaldo, tentando

diminuir seu desconforto e ajudá-lo a dar voz ao que sentia. Como cada uma das entrevistas, esta

também foi totalmente singular e trouxe novos dados e novas reflexões a respeito do tema.

Começo a entrevista como as demais, pedindo a Ronaldo que me conte um pouco da

sua experiência ao atender pessoas que levam para a sessão o tema religioso. Ele pergunta se

quero saber como é para ele, ou como ele lida com isso clinicamente. Respondo que pode dar

o enfoque que quiser, que é apenas uma conversa sobre o tema, no qual ambos os aspectos me

interessam. Então, ele começa sua fala da seguinte maneira:

Giovana, eu procuro deixar a pessoa bem à vontade para ela falar. Normalmente, são experiências e vivências importantes para a pessoa. Então, eu sou bem aberto a qualquer tipo de – claro, principalmente dentro dessa abordagem – de fala a respeito desse tipo de experiência e procuro me preservar também. Muitas vezes a pessoa pergunta que religião eu tenho, e tal, eu procuro, de certa forma, não responder esse tipo de indagação. (...) Então, não sei se é isso que você me perguntou também mas, normalmente, eu me sinto muito à vontade, para estar ouvindo e muitas vezes trabalhando, aprofundando as vivências e experiências. E posteriormente até explorando mesmo as vivências, né, da pessoa. Raramente eu me senti incomodado, eventualmente, com alguma posição muito radical que ficava até difícil...entrar ou aproveitar o tema, explorar do ponto de vista psicológico, mas eu acho que isso foi uma minoria das vezes que aconteceu, de o cliente estar trazendo temas a respeito de religião.

Ele pergunta, então, se me refiro à religião ou a experiências religiosas. Digo que

ambas me interessam e pergunto como ele avalia a incidência desse tema na clínica, se é

Page 136: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

136

freqüente na sua prática, ou não. Percebo que, ao fazer essa pergunta, não exploro a questão a

qual ele se referiu, de que procura se preservar, nem uma outra questão importante, que foi

retirada desse trecho, referente aos efeitos que ele vê em responder às perguntas dos clientes,

tais como identificações que podem surgir. Talvez eu tenha optado por essa pergunta, mais

racional e genérica, instintivamente, por ter percebido que havia certa tensão na situação.

Procurei deixar a conversa mais leve e explorar tais questões em outros momentos, nos quais,

felizmente, elas reapareceram de forma espontânea. Ele responde o seguinte sobre a

incidência do tema na sua prática:

É comum. Eu acho que é comum. Estou aqui lembrando de algumas pessoas agora que eu... na verdade, quando você me falou que queria me fazer umas perguntas a respeito disso...mas como ficou uma coisa assim, você não tinha me falado do que a gente iria conversar, eu não preparei nada, não fiquei olhando, mas eu estou lembrando agora de algumas pessoas e eu acho que é comum. Eu poderia até assim...não sendo muito preciso, mas da minha experiência, talvez quase 50% das pessoas. Quase, não estou sendo muito preciso, talvez uns 35, 40, 45 por cento talvez. Mesmo que tenha sido uma coisa mais eventual. Ou seja, algumas pessoas trazem esse tema com mais...mais vezes e outras numa sessão ou outra trazem e depois não voltam mais a trazer. Mas eu acho que é comum, falar em um momento ou outro de como é para ela...a experiência, o significado disso para ela, né?

Esta fala de Ronaldo mostra, mais uma vez, como é freqüente o aparecimento do tema

religioso na clínica, o que foi reforçado também pelos demais entrevistados. No entanto, o que

mais me chama a atenção nesse trecho da entrevista, que se dá logo no seu início, é o incômodo

de Ronaldo por eu não ter adiantado detalhes da nossa conversa, apenas o tema e um breve

resumo do meu trabalho. Ele sentia a necessidade de ter preparado algo, de forma mais objetiva,

ter lido ou pesquisado algo a respeito. O tom da sua voz e sua expressão corporal confirmam que

essa situação imprevisível e sem diretrizes pré-estabelecidas lhe causa certo desconforto. Porém,

como me interesso principalmente por sua vivência, considero adequada a forma ampla com que

apresentei o tema, pois pretendia colher os resultados de uma interação.

Na seqüência, procuro compreender se ele vê o tema religioso de forma diferente de outros,

que são levados por seus clientes. Pergunto se ele acha mais delicado lidar com essa questão.

Page 137: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

137

Eu acho que é um tema, que é muito próximo daquilo que a gente imagina que é sagrado para a pessoa. Porque, se ela tem uma identificação com...tem vivências ou experiências religiosas, ou ligação com alguma religião, aquilo comumente é uma coisa importante, significativa, que tem todo um sentido, então eu acho que, na minha experiência pessoal com clientes que já trouxeram essa temática, que não é uma coisa como outra qualquer. Talvez seja por isso que algumas pessoas que fazem um processo mais breve, que às vezes não fazem uma psicoterapia mais extensa, um processo mais longo, talvez não tenham... tratem desse assunto uma sessão ou outra, e tal, por conta disso também. Porque, para a pessoa estar falando disso, ela vai entrar, não só na intimidade, mas em crenças, em identificações profundas, de sentido de vida, de...daquilo que seja espiritual na vida.

Nesse momento, Ronaldo demonstra respeito pela vivência religiosa da pessoa e intui

que essas experiências, quando refletidas na clínica, levam à exploração de identificações e

crenças em um nível mais profundo. De fato, segundo Safra (2004d), ao se aproximar das

vivências da pessoa, pode-se perceber a existência de uma ontologia e uma teologia pessoais

subjacentes às suas experiências, formuladas ao longo da vida e nem sempre conscientes. No

caso de temas religiosos, tais dimensões ficam mais evidentes.

Ao longo dos anos fui observando que cada pessoa formula uma ontologia sobre o mundo e sobre o seu si-mesmo e também formula uma perspectiva teleológica sobre a sua existência. Subjacente à perspectiva teleológica do paciente pode-se perceber que está presente, de forma inconsciente, uma concepção teológica. A ontologia e teologia inconscientes do paciente são os princípios sob os quais se assentam as significações que compõe o idioma do paciente. As grandes questões da existência humana encontram-se assinaladas pelo idioma pessoal, entre o ontológico e o teológico. O sentido de religiosidade do paciente encontra suas representações e significações nesse idioma pessoal (p. 44).

Assim, para Safra (2004a ; 2004d), a busca pelo idioma pessoal da pessoa em atendimento

é fundamental para se explicitarem os sentidos construidos por esta ao longo da vida. Essa

posição está em consonância com o pressuposto fenomenológico de buscar o sentido constituído

pela pessoa nas suas vivências, a partir da sua perspectiva, e não do ponto de vista do psicólogo.

Pergunto a Ronaldo se, diante dessas considerações de que o tema religioso “não é como

uma coisa qualquer”, sua conduta ou sua percepção mudam durante a sessão quando se depara

com esse tema. Ele diz:

Talvez...Não sei se muda, Giovana, mas assim, eu acho que se deve ter um cuidado especial, mas ao mesmo tempo eu me pergunto: que horas a gente não tem um cuidado especial também com o cliente, não é?

Page 138: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

138

Ronaldo se depara com uma contradição na sua própria fala. De imediato, responde que se

deve ter um cuidado especial com o tema, mas reflete em seguida sobre como a postura de

cuidado está presente em toda a psicoterapia de base fenomenológica. Essa posição, com uma

retomada reflexiva em seguida, aparece também em uma entrevista anterior. Ele dá continuidade

na fala acima da seguinte forma, explicitando em que situações este tema repercute de forma

diferente para ele, gerando um incômodo ou uma dificuldade no atendimento.

Então...a não ser nos momentos em que a posição é muito radical, como eu falei anteriormente e que às vezes me incomoda. Às vezes me incomodou em uma experiência, nas minhas vivências, em algum momento ou outro, quando uma pessoa trouxe esse tema, que não foi muito confortável para mim estar lidando em determinado momento, por causa disso, de posição muito radical, ou às vezes muito introjetada e que a pessoa não tem muita clareza daquilo que ela está falando, como se fosse uma coisa muito inflexível, muito pouco refletida. Aí talvez eu não, eu não tenha, não aproveitasse para aprofundar ou ...pra não gerar uma confrontação. Talvez eu não desse tanto crédito a uma fala desse tipo, quanto eu daria para um outro cliente que eu me desse conta de que aquilo era uma coisa mais integrada na vida da pessoa, uma coisa mais refletida, que a pessoa tivesse condições de estar refletindo, né? Ao invés de tomar uma atitude muito rígida e polarizada em relação a isso. Mas, de modo geral, acho que foram poucas vezes em que aconteceu isso, essa dificuldade. Na maioria das vezes, sempre foi um tema bem-vindo, assim. Até falar bem-vindo fica estranho, mas é mais ou menos isso mesmo que eu quero dizer. Um tema que fosse proveitoso estar explorando, até relacionando com outros aspectos positivos da vida da pessoa, com outros aspectos assim integrados mesmo, que tivesse um potencial positivo, terapêutico, que fosse uma coisa positiva para a pessoa. Não sei se eu estou conseguindo ser claro.

Vários pontos me chamam a atenção nessa fala de Ronaldo. Ele vê um potencial

terapêutico em trabalhar o tema da religiosidade, achando proveitoso enveredar por esse

campo e explorar essas vivências do cliente. Porém, sente-se incomodado diante de posturas

rígidas e radicais, o que apareceu também em outras entrevistas. No entanto, seu relato traz

um diferencial interessante dessa postura, sendo algo que tenho observado informalmente em

vários terapeutas existenciais, principalmente em gestalt-terapeutas, que é uma leitura

específica sobre a rigidez da pessoa como algo necessariamente negativo.

Isso entra em dissonância com alguns conceitos teóricos e pressupostos básicos dessa

abordagem. Lembrando da articulação da Gestalt com a Teoria Paradoxal da Mudança, de

Page 139: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

139

Beisser (1973), e da atenção dada por essas teorias à existência de uma auto-regulação da

pessoa, que faz o melhor possível nas situações de vida com os recursos de que dispõe, não

deveria haver esse julgamento. Já tive essa mesma sensação de estranhamento em conversas

informais com profissionais em congressos, ou ouvindo palestras e mesmo lendo obras de

autores renomados. Parece haver uma crença implícita dos terapeutas de que a pessoa deve

funcionar de uma forma específica, e este modelo acaba sendo o foco de atenção do

profissional. Parece haver uma exigência subjacente ao atendimento, de que a pessoa deve

estar sempre refletindo, questionando criticamente, aprofundando tudo o que leva à terapia.

Tenho a sensação muito clara, nesses momentos, de que para esses profissionais, falar apenas

no cotidiano, ou de uma perspectiva fixa, sem ampliação dos horizontes sobre aquele assunto,

é um sinal de estagnação, visto como algo negativo. E mesmo se fosse, soa como se a pessoa

não tivesse o direito de funcionar assim na terapia, havendo uma cobrança de mudança e

movimento constantes. É evidente que uma pessoa, ao buscar uma terapia, o faz com o intuito

de mudar em algum aspecto da sua vida. Mas como já foi discutido anteriormente, a aceitação

e compreensão de seu estado atual são fundamentais para que isso ocorra. O cliente tem todo

o direito de almejar a mudança, afinal esta é uma exigência social muito forte. O que

considero delicado é o terapeuta ceder a essa idéia, pretendendo que a pessoa queira mudar

sempre e em tudo, formulando expectativas implícitas para ela, considerando momentos de

aparente imobilidade do cliente como negativos.

Como gestalt-terapeuta, Ribeiro (1991) aponta esse tipo de dissonância mesmo na obra

mestra da Gestalt, o Gestalt Therapy, de Perls, Goodman & Hefferline (1951). Ele se refere ao

livro na seguinte passagem:

O livro todo defende a tese do desenvolvimento individual, da capacidade de integração criativa de todas as pessoas, etc., taxando de neuróticas todas as adaptações. Mas com freqüência (como no capítulo III, ao dizer que “a awareness do cliente é ociosa...”) revela o projeto do terapeuta em relação ao cliente. Ociosa em relação ao que? Não leva em consideração o fato de que a

Page 140: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

140

awareness5 é um processo ativo e que o cliente naquele momento pode estar diligentemente bloqueando a sua awareness porque não quer ou não pode entrar em contato com aquilo que o projeto do terapeuta considera desejável. O que poderia sugerir a outro terapeuta menos “pedagógico”, que aquela ociosidade não colaborativa poderia ser uma “resistência” que, vista pelo prisma do contexto existencial global daquela pessoa, seria uma integração criativa num campo percebido por ela como difícil e potencialmente perigoso. Não cabendo, portanto, ao terapeuta impor padrões determinados pela sua própria percepção do cliente, o que pressuporia uma superioridade perceptiva impensável em nossa abordagem (p. 5).

Essas reflexões de Ribeiro demonstram o cerne da mentalidade que guia este trabalho

e o meu olhar sobre as entrevistas. Se o próprio Perls caiu em contradição e expressou

claramente uma dissonância dentro da sua teoria, como podemos pretender estar imunes a isso

e acertar sempre? Faz-se necessária uma humildade e atenção vigilante a cada pressuposto, a

cada intervenção, à forma como, realmente, concebemos o ser humano e o processo

terapêutico. Afinal, mesmo as referências teóricas podem apresentar antagonismos que

dificultam a busca por uma atuação mais harmônica.

Ronaldo diz que as vivências religiosas mais rígidas o deixam desconfortável, pois são

posições radicais ou, às vezes, mais introjetadas, das quais a pessoa não tem muita clareza.

Nesses casos, ele prefere não aprofundar. Fico me perguntando se não seria exatamente esse o

caso, numa situação em que a pessoa refletiu pouco sobre o assunto, de acompanhá-la nessa

reflexão, sem expectativas de mudança ou julgamentos prévios. Outra fala de Ronaldo que me

chama a atenção, é a declaração de que ele talvez dê menos crédito a esse tipo de fala do que

daria ao relato de um cliente que tivesse as vivências religiosas mais integradas à própria vida

e que, então, tivesse mais condições de estar refletindo. No entanto, uma pergunta emerge:

será a não reflexão o efeito da não-integração? Não poderia ser, pelo contrário, algo tão

integrado à vida da pessoa que não chega a provocar questionamentos? Só a aproximação

dessas experiências poderia dar indícios do que de se passa com o cliente naquele momento.

5 Na Gestalt-terapia, o conceito de awareness pode ser entendido como um contato contínuo e vigilante da pessoa com o evento mais importante de seu contexto. Engloba os aspectos sensório-motores, emocionais, cognitivos e energéticos. Através desta conscientização plena, a pessoa volta-se para si mesma, num processo de autoconhecimento, podendo vislumbrar novas perspectivas e reavaliar suas escolhas (Yontef, 1993).

Page 141: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

141

Observo aqui uma dissonância em relação aos pressupostos fenomenológicos

aplicados à situação terapêutica e fico pensando o quanto a atuação do psicólogo está mais

relacionada, na mentalidade dos profissionais, a um fazer, agir, intervir, explorar determinado

tema ou vivência. Isso aparece sutilmente na fala de Ronaldo e está amplamente enraizado

entre as terapias existenciais. Ribeiro (1991) critica tal posição, bastante arraigada e

generalizada, apontando a importância de reconhecer esse impulso de agente transformador

quando ele aparece no terapeuta durante sua interação com o cliente. Este autor aponta as

dificuldades em lidar com essas dissonâncias e cita a obra de Miller (1997), já mencionada no

início dessa dissertação, que chama a atenção para o papel pedagógico e verticalizado

assumido pela maioria dos psicólogos. Ele dá seu depoimento a respeito dos grupos de

discussão em torno de tal obra e tais questões, mostrando que há muitos profissionais

reconhecendo e trabalhando suas dificuldades, apesar de ser uma árdua tarefa:

Tenho visto o entusiasmo com que é lido nos grupos, mas quando passamos da teoria á prática, fica visível o ranço pedagógico que há em todos nós; resíduo e ranço obviamente provenientes da insuficiência de crença nas potencialidades humanas, bem como na capacidade de desenvolvê-las quando e sempre que o ambiente for propício. Des-crença arraigada e endêmica, uma vez que começou a ser-nos transmitida desde o primeiro momento de nossas relações (p. 2).

Segundo Ribeiro (1991), o terapeuta deveria ser exatamente aquele capaz de

compreender que os “desvios” do seu cliente são o resultado de uma construção gradual e,

portanto, necessitam ser encarados, respeitados e acompanhados para que a viagem através

das próprias experiências e a própria história entre em curso, mesmo que isso represente

atravessar momentos de dor ou de sábia falta de reflexão sobre determinado assunto, o qual

geraria uma quantidade de sofrimento insuportável naquele momento.

Assim como foi acentuado na análise da entrevista de Helena, não se trata de uma

crítica a Ronaldo, que busca claramente uma clínica voltada para estes pressupostos, mas

reflexões sobre crenças que estão embutidas na sua fala e dentro da própria abordagem. Desde

a infância, adquirimos valores e modelos de como as pessoas deveriam ser e constituímos

Page 142: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

142

modos de ver o mundo. É difícil conciliar tudo isso com uma teoria psicológica, que também

propõe valores e modelos, mas que, no caso da perspectiva fenomenológica, pretende

justamente colocá-los entre parênteses, para ir ao encontro da pessoa na sua singularidade.

Dentre todas essas questões contidas na fala de Ronaldo descrita anteriormente,

naquele momento, escolho explorar um outro ponto, que se torna figura para mim. Ele relata

que evita trabalhar o tema com pessoas cuja postura é muito radical para evitar uma

confrontação. Pergunto o que ele imagina que aconteceria se explorasse o tema nesses casos.

A impressão que eu tenho é assim: por vários motivos, em muitos momentos, a pessoa pode estar, se agarrar, por exemplo, a crenças, em que ela não tem ou não teve ainda a capacidade para estar refletindo e tendo uma postura mais flexível e não simplesmente estar repetindo algo que está na Bíblia por exemplo, para ficar um exemplo assim mais claro. E eu acho que seria, pelo menos na minha experiência, seria se precipitar entrar em determinadas, esse tipo de situação, para não estar gerando assim, muitas vezes estar tirando o suporte da pessoa, que aquilo é uma coisa que dava um suporte para ela naquele momento e eu não estava querendo questionar aquilo. Eu achava que não seria naquele momento adequado, interessante, por exemplo, mas pode ser que em outro momento seria. Mas nos momentos em que eu tive oportunidade de lidar, eu julguei naquele momento que não fosse interessante. Entendeu? Então, é mais ou menos isso, assim.

Já ouvi colocações semelhantes de outros psicólogos, inclusive na coordenação do

trabalho com grupos mencionada no início dessa dissertação. Há uma crença em grande parte

dos psicólogos de que explorar temas ligados à religião, principalmente se o cliente é

fortemente aderido a ela, gera uma confrontação indesejada. Porém, Ronaldo utiliza a palavra

questionamento, provocando em mim todas as reflexões decorrentes desse modelo na nossa

prática, conforme discutido em entrevistas anteriores. A confrontação deriva de um tipo de

postura, com certa concepção de homem e de clínica subjacentes. Como Ronaldo tem grande

afinidade com a Gestalt-terapia, e esta em alguns momentos enfatiza este tipo de postura,

dependendo do autor e do momento cultural em que sua obra foi escrita, imagino que essa

idéia possa vir dessas influências (Ribeiro, 1998). Na Gestalt-terapia, durante muito tempo,

principalmente quando ganhou força no Brasil, na década de setenta, foi enfatizada a

importância de usar questionamentos e confrontações para que o cliente se movimentasse,

Page 143: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

143

abandonando a sua estagnação. Essa ênfase era reforçada pelos enfoques de Perls nos grupos

desenvolvidos por ele nos Estados Unidos. Com estes modelos em mente, compreendo os

motivos de Ronaldo para evitar aprofundar o tema em pessoas com a crença mais rígida. Ele

busca evitar tais confrontos, pois assim como eu, prioriza a vertente dialógica e

fenomenológica da Gestalt-terapia que seguem em outra direção, enfocando o diálogo e a

relação. Modelos de clínica calcados na confrontação e frustração do cliente, grande parte das

vezes, podem tirar o suporte da pessoa, construído ao longo de sua história de vida. O apoio

em uma religião compreendida de forma rígida e radical pode estar justamente mantendo um

equilíbrio diante de aspectos nos quais o cliente tem maior dificuldade. Porém, como já foi

discutido ao longo deste trabalho, existem outras vias para explorar essas questões junto com

a pessoa em atendimento, sem passar pelas técnicas de confronto e questionamento, mas sim,

dando crédito a sua vivência e se interessando por sua pessoa inteira, inserida no mundo de

forma singular. As falas de Ronaldo mostram uma ambivalência, pois ele parece estar certo da

forma como não quer trabalhar em psicologia, no entanto suas observações acabam revelando

um afastamento da posição buscada, como Ribeiro (1998) aponta em inúmeros

psicoterapeutas, inclusive em si mesmo em alguns momentos da sua prática. É uma tarefa

difícil integrar concepção clínica e prática em alguns momentos, o que é demonstrado através

da minha própria condução e reação a esta entrevista.

Shafranske & Malony (1996) enfatizam a necessidade de atenção aos vieses pessoais,

respeitando a autonomia da pessoa em atendimento e suas influencias sócio-culturais. Eles

pontuam ainda, a existência de uma linha sutil entre explorar os valores religiosos e criticá-

los, com base em pressupostos pessoais ou mesmo teóricos. Ronaldo vivencia esse conflito ao

falar na dificuldade de abordar tais questões na clínica. É uma decisão a ser tomada

constantemente e ele opta, nos casos citados, por não aprofundar o tema, temendo seus efeitos

negativos. Essa postura evidencia cuidado com o cliente e respeito por sua religiosidade.

Page 144: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

144

Na fala acima, outra expressão usada por Ronaldo me chama a atenção: ele diz que não

julgou interessante estar trabalhando aquilo naquele momento. Aqui se revela outro ponto

delicado na psicoterapia: escolher o que explorar com a pessoa durante a sessão, entre todos os

temas que ela traz. É preciso estar atento a cada gesto, olhar, respiração, maneira de falar, para

tentar captar onde está investida sua energia e mesmo perguntar a ela, se ela quer falar mais

sobre aquele assunto, se há algo que gostaria de compartilhar e pensar a este respeito. Deve

haver uma atenção constante para tentar colher a experiência entre tudo o que é levado à sessão.

Pelo que tenho ouvido dos entrevistados, essas dúvidas que se passam na cabeça de

Ronaldo e que acontecem também com eles, surgem menos freqüentemente em relação a

outros temas. Geralmente, no ritmo da sessão, o diálogo flui espontaneamente em uma

seqüência de perguntas e respostas. Mas, quando se trata de temas referentes à religiosidade

do cliente, a espontaneidade é atravessada por um julgamento e uma decisão sobre intervir ou

não, explorar ou não aquela vivência. Há uma interrupção e uma reflexão sobre o que seria

mais adequado do ponto de vista terapêutico.

Frente a este tema, Ronaldo é acometido, ainda, por um outro tipo de dificuldade, a

qual ele menciona no início da entrevista, em seguida à sua primeira colocação:

Então, eu sou bem aberto a qualquer tipo de – claro, principalmente dentro dessa abordagem – de fala a respeito desse tipo de experiência e procuro me preservar também. Muitas vezes a pessoa pergunta que religião eu tenho, e tal, eu procuro, de certa forma, não responder esse tipo de indagação. Primeiro, porque eu não tenho uma posição definida mesmo, não é? E se eu tivesse, talvez agiria de outra forma. E, segundo, para não interferir, não causar nenhum tipo de polarização, de...de tensão em relação a esse tipo de tema, de vivência da pessoa.

Naquele momento, aguardo a seqüência da sua fala e deixo esse ponto para explorar

posteriormente, pelos motivos já apresentados. Quando a questão reaparece em outra hora,

procuro entender melhor como isso acontece, pois há vários pontos interessantes contidos nessa

fala. Em certo momento da entrevista, desenvolvemos um diálogo no qual o relato acima é

Page 145: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

145

esmiuçado e pode ser melhor compreendido. Começo perguntando se ele acha necessário um

cuidado especial com o tema religioso.

- Depende, né? Eu acho que depende. Tem muitos temas também que são delicados. É um tema, eu acho que tem que se ter um cuidado especial, com certeza. Então assim, eu já ganhei, por exemplo, crucifixo de pedra de presente para por no consultório e não coloquei, entendeu? Para não gerar nenhum tipo de identificação, embora pudesse não ter problema, mas eu preferi não por, pra não demarcar uma identificação. Giovana: - Que efeito você acha que tem para o cliente, por exemplo, marcar assim, colocar um crucifixo? (silêncio) - Giovana, eu ...é como se fosse, não sei. Eu estou sendo muito, assim, estou falando o que está me vindo aqui agora. A impressão que eu tenho, por exemplo, é como se fosse criado um vínculo artificial, entendeu? Ou, quer dizer, não é nem que fosse artificial, assim, é...como se diz...é anteriormente a um vínculo mesmo. Então – não estou conseguindo me expressar – mas assim, é como se eu colocasse uma possibilidade da pessoa se sentir, por exemplo...deixa eu ver uma palavra aqui...como se fosse um aliado, um... Giovana: - ... que a pessoa visse em você, este aliado. Vamos supor que ela tenha aquela fé e ela vê aquele símbolo... - ... identificasse. É como se eu fosse mais um da religião, ou isso também poderia, assim, precipitar um...precipitar o assunto. A pessoa poderia ver um crucifixo aqui e daí começar a falar disso, então eu queria que não fosse assim. Se ela quisesse trazer, por ela mesma, mas é como se fosse um convite...para estar falando daquilo, ou buscando se aliar a minha pessoa pela questão religiosa. Isso talvez me colocaria numa dificuldade também, entendeu? Que, como eu te disse, eu prefiro...é claro que nada é...pode ser que em algum momento eu tenha falado com algum cliente meu a respeito de alguma crença minha, mas depois, não no primeiro momento, em que a pessoa vem perguntar a religião, né? Então assim, eu acho que não seria interessante para mim, me apresentar como...identificado com alguma religião, assim. Apesar de ser um assunto que é muito caro pra mim, que é uma coisa que eu, pessoalmente, tenho uma busca espiritual, que é muito importante pra mim, desde novo, desde bem pequeno. Então, pra mim, isso foi muito importante e continua sendo muito importante na minha vida, essa busca espiritual da qual as experiências religiosas fazem parte, não é? Mas eu não gostaria de estar demarcando, até porque eu tenho uma ética que eu acho que é cristã, que tem muita convergência com a ética cristã, e tudo. Mas eu preferiria não estar denominando isso aqui, principalmente aqui.

Durante esse trecho da conversa, me vejo completando o pensamento, a fala de

Ronaldo. Ele parece desconfortável quando diz que está falando o que lhe vem à cabeça,

então tenho a reação de ajudá-lo a falar o que não está conseguindo. Mobilizada por essa

interação, acabo, também, entrando em dissonância com a condução fenomenológica, como

Page 146: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

146

se não acreditasse na sua capacidade de compreender por si mesmo o que vivencia, ou como

se fosse necessário confortá-lo, ampará-lo, diminuir seu desconforto causado por minhas

perguntas inesperadas. Em meio a essas sensações, das quais só tive consciência durante a

transcrição da entrevista, continuo buscando entender essa dificuldade específica, o medo de

gerar identificações e polarizações com o cliente.

Giovana: - E como é pra você quando alguém te pergunta isso então, se o cliente chega e te pergunta qual é a sua religião? - É como eu falei. Eu prefiro – e é uma coisa que eu aprendi com a experiência também – porque, talvez num primeiro momento eu não tivesse muita consciência da repercussão disso, né? E era ingênuo em relação a isso, mas eu, hoje, a minha posição é que eu acho que não é produtivo, num primeiro momento, estar respondendo esse tipo de questionamento dessa forma. Pode ser que com determinada pessoa, e tal, seja possível isso, né? Mas eu acho que seria mais interessante estar trabalhando com a pessoa essa necessidade dela, ou até a curiosidade, o que é isso.

Giovana: - Então, normalmente, você devolve para ela ver nela isso? - É. Eu busco isso, apesar de que eu não gosto de estar fazendo isso, esse movimento de não estar respondendo. Muitas vezes, pode parecer antipático, pode ser mesmo, mas pela minha experiência, eu vejo que, realmente, não sobram muitas alternativas. Abre uma discussão que eu acho que foge ao objetivo de uma psicoterapia. Mas é o tal negócio, para algumas pessoas, e mesmo para outras pessoas que em determinado momento não fosse possível, acho que pode ser possível também. Isso vai depender muito do nosso julgamento a cada momento, daquilo que a gente acha que seja pertinente ou não, terapêutico ou não.

Não há um consenso, dentro da psicologia, sobre os efeitos da exposição da vida

pessoal do psicólogo e dos seus valores para o cliente. A avaliação do que é terapêutico ou

não, nesses casos, filia-se a uma abordagem teórica específica ou a um julgamento pessoal,

momentâneo, como é colocado por Ronaldo. Bergin, Paine & Richards (1996) falam da

importância de se explicitar valores religiosos e convicções pessoais para os clientes, posto

que estas interferirão no processo. Eles relatam pesquisas nas quais dados empíricos mostram

a mudança de valores dos clientes para os do terapeuta. Diante disso, defendem a informação

clara e explícita dos valores pessoais e teóricos do psicólogo no primeiro contato com o

cliente ou ao longo da terapia. No caso de Ronaldo, explicitar sua indefinição religiosa e suas

Page 147: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

147

crenças a respeito desse assunto, seria válido segundo estes autores. Para eles, os valores devem

ser colocados na sessão com total abertura e respeito, de forma que o cliente possa concordar ou

não com os mesmos. Acrescentam que, no caso da vivência religiosa e questões ligadas a esta, é

preciso treino e competência para lidar com o tema respeitando a autonomia do cliente e

contribuído para seu crescimento.

Na Gestalt-terapia, a ênfase dada à relação interpessoal permite tais esclarecimentos a

partir da constante atenção aos impactos causados em ambas as partes, cliente e terapeuta, na

interação. Isso pode incluir conversas sobre os pressupostos e crenças do profissional, mas

sem desviar o foco da experiência do cliente, que é o mais importante na terapia.

Alguns estudiosos do campo da Psicologia e Religião propõem uma integração mais

direta entre estas esferas, desenvolvendo um diálogo entre elas no âmbito da psicoterapia,

durante a interação, utilizando recursos religiosos além dos psicológicos como apoio

terapêutico. No entanto, considero essa proposta delicada pelos valores envolvidos em cada

religião. Conseguir cumprir os objetivos terapêuticos estando diante do tema da religiosidade

já parece ser um desafio para a maioria dos psicoterapeutas. Incluir pressupostos e práticas

espirituais nessa relação como técnicas de apoio, torna ainda mais difícil manter a clareza e o

rigor necessários para estabelecer condições favoráveis ao crescimento da pessoa. Tan (1996)

trata da integração entre psicologia e religião, propondo dois modelos: integração implícita ou

explícita. No primeiro caso, os psicólogos podem manter-se fieis aos seus pressupostos

religiosos, ao atender, e mesmo rezar por seus clientes, mas não farão isso abertamente

durante a sessão. Esse posicionamento inclui também o respeito pela religião do cliente e a

abordagem e interpretação de questões nesse campo quando elas aparecem. No outro pólo, o

da integração explícita, o terapeuta lida aberta e sistematicamente com assuntos religiosos do

cliente, utilizando para isso, textos, passagens bíblicas, orações em conjunto e mentalizações

durante a sessão, podendo, inclusive, iniciar o assunto. Tan é adepto deste modelo,

Page 148: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

148

principalmente no caso de clientes filiados a uma religião. Porém, alerta sobre alguns perigos

do ponto de vista ético, como impor os próprios valores, fazendo mau uso das técnicas e recursos

religiosos na sua condução. Este autor não discute, entretanto, um ponto fundamental: como o

terapeuta pode trabalhar de forma explícita ao atender um cliente de uma religião diferente da

sua?

O uso de técnicas além do diálogo na psicoterapia é amplamente utilizado na vertente

da Gestalt-terapia que segue o posicionamento de Perls, incluindo diversos experimentos na

sessão terapêutica. Estes consistem em exercícios propostos aos clientes como fantasias

dirigidas, conversas com um personagem imaginário, expressão física de sentimentos, como

socar almofadas, entre outras técnicas (Stevens, 1988). No entanto, há uma outra vertente

dentro dessa abordagem que prioriza o diálogo, estando apoiada nos pressupostos buberianos

de encontro e no método fenomenológico, buscando o vivido e as experiências da pessoa, seu

modo se ser no mundo, compartilhado com o terapeuta. Nesse caso, a fala da perspectiva do

cliente é enfatizada e nenhum experimento é proposto, a menos que o cliente explicite

claramente seu desejo por algo desse tipo.

Tan (1996) afirma o grande potencial no uso de recursos religiosos durante a terapia,

mas conclui suas reflexões falando da necessidade de se desenvolverem pesquisas que

avaliem e validem a eficácia de intervenções terapêuticas de natureza religiosa. No entanto,

segundo Bergin, Payne & Richards (1996), a maioria das teorias psicológicas contém

implícitas visões de mundo e valores que entram em conflito com as crenças religiosas. Como

toda relação envolve troca e transmissão de valores, é preciso estar atento às formas como

isso é feito no âmbito da Psicologia, consciente das suas implicações para as pessoas

envolvidas. As dúvidas de Ronaldo diante de todas essas considerações são muito pertinentes.

Há pouca discussão sobre o assunto fora da literatura especializada em Psicologia e Religião,

a qual o acesso ainda é restrito no meio acadêmico. Qual a melhor postura, então? Quais os

Page 149: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

149

efeitos de se colocar imagens religiosas no consultório, ou expor ao cliente o próprio

posicionamento religioso?

Shafranske & Malony (1996), estudiosos da articulação entre Psicologia e Religião,

estendem essa discussão afirmando que o terapeuta vai para o atendimento com duas fontes de

valores: os pessoais, idiossincráticos, provenientes de sua história de vida, na qual há implícita

uma crença sobre o transcendente e o tema religioso; e os valores da teoria, de desenvolvimento,

normalidade, patologia e diretrizes de tratamento. Ambos os aspectos estão tão entrelaçados, que

não é possível separá-los no momento do atendimento e a própria opção teórica do psicólogo terá

sido feita com base em suas convicções pessoais. Essa posição se assemelha com a de Hycner

(1995), gestalt-terapeuta apontado diversas vezes ao longo deste trabalho.

Assim, é preciso ter consciência do papel da intersubjetividade e das influências mútuas

que ocorrem na terapia. Para Shafranske & Malony (1996), tanto a psicoterapia, quanto a

religiosidade consistem em caminhos para o crescimento, mas é no setting terapêutico, território

no qual circulam crenças ontológicas, teorias e estilos pessoais, que religião e psicologia mais

claramente convergem ou entram em conflito. Por este motivo, uma abordagem explícita como

sugerida por Tan (1996), na minha opinião, torna-se mais delicada e mesmo perigosa.

De acordo com Shafranske & Malony (1996), partindo do ponto de que é importante

incluir a religião na clínica psicológica, é preciso pensar criteriosamente como fazer isso. Cada

abordagem priorizará uma forma de encarar e abordar a questão sendo que, nas suas palavras:

Terapeutas existenciais-humanistas podem enxergar a experiência religiosa como oferecendo o mais profundo potencial para a experienciação e para a elucidação de significados (p. 575)6.

Fica claro, a partir das considerações desses autores, que a forma de incluir a

religiosidade na clínica psicológica está diretamente ligada à abordagem adotada e a posições

pessoais. Volto à dúvida de Ronaldo, sobre responder ou não às perguntas do cliente sobre seu

posicionamento religioso, à luz dessas discussões, e penso que é possível responder de forma 6 Tradução minha da edição em inglês.

Page 150: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

150

a não desconsiderar o desejo de saber da pessoa e, ao mesmo tempo, explicitar o posicionamento

pessoal e crenças que interferem na relação psicoterapêutica. A forma de fazer isso dependerá da

clareza do profissional sobre suas próprias crenças e pressupostos, apresentando-os sem perder de

vista o foco principal da terapia que é o cliente e sua relação com essas informações que lhe são

apresentadas.

Quando Ronaldo fala do seu desconforto quando o cliente pergunta sobre sua posição

religiosa, ao mesmo tempo em que declara não ter uma crença definida, sugere a possibilidade de

agir diferente caso a tivesse. Então, faço a seguinte pergunta:

Giovana: - E você acha que isso seria diferente se você tivesse uma adesão religiosa, uma crença em que você se vê dentro dela e adota? (silêncio) - Olha Giovana, está meio difícil para eu te responder assim de supetão. Eu nunca tinha me deparado com essa questão, sabe? Agora, o que eu tenho horror, assim, e já aconteceu comigo é, às vezes, estar em um ambiente, por exemplo, e como eu me interesso por religião, eu já fui participar em vários tipos de rituais, de cerimônias religiosas, de várias religiões. E, às vezes, um conselheiro, que é uma autoridade naquela religião, querer... sabe, esse tipo de relação, de que a pessoa se sente...como é que se diz...se sente...balizada para te dar um conselho que você não pediu. Por exemplo, essa é uma coisa que eu acho muito complicada. O que me vem na memória é isso, que...eu acho que mesmo que a pessoa tenha uma posição, ela tem que tomar muito cuidado para não misturar as coisas, né? Por que uma coisa é ela. Então, é complicado, mesmo com as melhores intenções. Então, eu já me senti muito invadido, às vezes. Eu estou lembrando de uma pessoa aqui que foi até muito amável, eu vi que a pessoa tinha boas intenções, mas ela atropelou, sabe. Ela veio me dar um conselho que eu nem pedi e desmereceu a minha capacidade reflexiva, dessa forma. Então, não era a questão, mas seria completamente anti-terapêutico uma posição dessas, me desagradou muito, eu me senti muito invadido, não era absolutamente o caso, não cabia, sabe?

Nessa fala, Ronaldo compartilha muitos pensamentos interessantes, evidenciando o

incômodo que o acompanha durante toda a entrevista, que é o de não saber anteriormente

sobre o que iríamos conversar. Fazia parte dos meus objetivos que a interação fosse uma

construção a dois, a partir da interação e não a apresentação de elaborações prévias. Ronaldo

acha difícil responder “de supetão” e admite nunca ter pensado nesses assuntos. Ancona-

Lopez (1997), após anos de docência no Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica

da PUC-SP, desenvolve uma pesquisa exploratória em cursos ministrados aos alunos de

Page 151: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

151

mestrado e doutorado, surpreendendo-se com os resultados. Cada pessoa tinha crenças

religiosas implícitas, que incidiam em seus conceitos sobre o homem, sobre a psicologia e

mesmo a religião, mas estas permaneciam em um nível pré-reflexivo, influenciando sua

prática e suas produções teóricas. Quando ela propõe a estes profissionais o exame mais

detalhado deste conhecimento tácito, eles próprios se surpreendem e encontram diversas

dissonâncias entre sua teoria de apoio e suas práticas clínicas. Ronaldo nunca tinha pensado

mais a fundo nessas questões, assim como eu e os demais entrevistados, durante a graduação.

E a cada pergunta minha com a qual ele se depara, parece haver certa surpresa.

A resposta de Ronaldo a minha pergunta traz lembranças que fazem com que ele se

coloque no lugar do cliente, ao relembrar experiências pelas quais passou, no seu percurso por

uma busca espiritual. Ele diferencia essas situações da clínica, mas o cerne da questão pode ser

aplicado a ambos os casos: ele se sente desconsiderado e desqualificado na sua capacidade

reflexiva quando alguém tenta ajudá-lo com um conselho pelo qual não pediu. É comum entre

pessoas espiritualizadas a postura de ajudar outros a encontrarem o caminho que para elas é o

mais correto, mais próximo do transcendente. Ronaldo se sente invadido nessas situações.

Mesmo com a melhor das intenções, a tentativa de empurrar alguém para determinado caminho

não respeita o ritmo e a escolha de cada um e pode gerar no cliente, no caso da relação em

psicoterapia, uma sensação de incompetência, de incapacidade para gerir a própria vida.

Sendo assim, Ronaldo não sabe se ter uma posição religiosa definida o ajudaria a lidar

melhor com a religiosidade do cliente, temendo exatamente o contrário, pois considera

grandes os riscos de misturar a terapia com uma orientação espiritual. Ele sintetiza esse

momento da nossa conversa com a seguinte colocação:

Então, essa pergunta que você me fez leva a essa questão, mesmo que tiver, e mesmo se for a mesma religião, do terapeuta e do cliente, eu acho que uma coisa é como um vivencia essa realidade e outra é como a outra pessoa vivencia. Então, não estar fazendo disso um canal, até porque sairia de uma posição assimétrica. Queira ou não queira, apesar de na minha abordagem e na minha forma pessoal de trabalhar, eu me coloco como um igual, mas ao mesmo tempo, a relação não é de igual. Ela é unilateral e tem que ser,

Page 152: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

152

né, porque senão... não tem sentido. Eu não sei se eu estou sendo muito...criterioso, mas eu acredito nisso.

Assim, Ronaldo segue explicitando sua visão de clínica. Buber (2001) já assinalou que a

psicoterapia não é uma relação de mutualidade. Há sempre uma assimetria, podendo ser rompida

em alguns momentos pela vivência de uma relação Eu-Tu, mas continua sendo uma intervenção

profissional, calcada em conhecimentos científicos e filosóficos. Observo que Ronaldo valoriza

uma clínica psicológica baseada no rigor metodológico, buscando isso através da formação

pessoal em terapia e supervisões, além da teórica, nos cursos que faz. Talvez por isso tema a

identificação com objetos como mencionada acima, o que segundo Tan (1996), seria uma

integração explícita entre psicologia e religião na psicoterapia. O risco de perder o rigor e se

perder no processo da pessoa nessas situações é maior. Ele relata casos que ouviu de atendimentos

que fugiam aos pressupostos por ele buscados e adotados, sentindo-se aparentemente indignado

com tais posicionamentos.

- Eu acho que a terapia é você resgatar, junto com a pessoa, a capacidade dela de gerir a própria vida, de decidir por si mesma, de dar o significado. Então, qualquer tipo de interferência, eu acho que é anti-terapêutico, sabe? E aí sim, aí eu acho que tem que ter muito cuidado com isso, porque pode parecer sutil, mas eu já ouvi relatos de interferências desse tipo dentro de consultório de psicoterapia, que eu achei, eu arrepiei, assim. Eu achei que não tinha o menor cabimento uma coisa do terapeuta estar influenciando ou até se posicionando em relação a isso com o cliente. Giovana: - na questão religiosa? - É, na questão religiosa. Eu já ouvi alguns casos, alguns relatos assim de gente que interfere completamente, o que eu acho que foge completamente ao trabalho e aí, acaba sendo uma atitude totalmente anti-terapêutica. Por mais que se tenha boa intenção. E tem muito psicólogo que trabalha em cima disso, infelizmente. É impressionante, até pessoas que tem uma boa formação teórica, em várias abordagens...bom, eu não sei, eu posso estar sendo até injusto assim, mas eu acho que as pessoas que trabalham com fenomenologia existencial, Gestalt, elas têm um cuidado diferenciado, mas não é garantia, também até uma das pessoas de que estou te falando trabalha nessa abordagem e se for verdade o caso que eu ouvi, aí não tem o menor cabimento esse tipo de postura, de chamar a atenção de cliente, de...seria a postura mais de um padre, ou algo assim. Por incrível que pareça, né?

Ronaldo tem clareza de que a simples adesão às abordagens existenciais e

fenomenológicas não garante o bom desempenho do terapeuta. Há muito mais questões

Page 153: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

153

envolvidas no processo de atendimento do que a afinidade a uma determinada posição e a adoção

de suas técnicas.

Uma expressão utilizada por Ronaldo nesse trecho me chama a atenção, por fazer parte do

senso comum e aparecer muitas vezes nas falas de psicólogos: boa intenção. Ronaldo se ressente

de muitos profissionais trabalharem calcados nisso, o que me remete a alguns conceitos presentes

na bioética, apresentados por Garrafa (1998). Entre eles, está o conceito de beneficência,

apropriado também pela psicoética. Segundo o autor, há vários equívocos em torno dessa palavra,

sendo compreendida na maioria das vezes como o desejo e a necessidade de fazer o bem pelos

outros. Porém, na perspectiva ética, o princípio da beneficência alega que se deve fazer o bem, ou

pelo menos, não prejudicar. Mas o bem deve visar a totalidade da pessoa, não se limitando a

responder uma demanda específica. Isso significa, para o autor, trabalhar para aumentar as

relações das pessoas com os demais e a capacidade de viver consciente e livre de acordo com as

decisões tomadas. Lembro-me de alguns ditados e falas de origem cristã que se popularizaram

como “só faça aos outros o que gostaria que fizessem a você” ou “faça o bem, sem olhar a quem”.

Nessas referências, a noção de bem é muitas vezes colocada apenas em quem o pratica e não em

quem recebe a ação, terminando por estabelecer uma relação assistencialista, de caráter autoritário

e, muitas vezes, invasivo, como Ronaldo demonstrou através da sua experiência. O impulso de

ajudar e a crença de que boas intenções em relação ao cliente contribuem para seu crescimento,

não são suficientes para levar adiante um processo terapêutico, podendo, inclusive, afastar-se dos

seus objetivos.

Todos os assuntos tratados acima mostram a sutileza e a importância de questões muitas

vezes pouco discutidas ou ignoradas durante a formação e a atuação do psicólogo. Mostram

também a dificuldade em se lidar com os valores religiosos e psicológicos na busca pelo

crescimento do cliente.

Page 154: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

154

No final da entrevista, pergunto a Ronaldo se ele gostaria de acrescentar algo sobre este

tema. Ele defende o posicionamento de Jung em relação à religiosidade, falando da importância

deste autor ao valorizar as experiências religiosas. Fala um pouco das suas opiniões sobre Jung,

autor ao qual tem se dedicado recentemente, e das possíveis articulações deste com a

fenomenologia. Depois, conclui falando da importância de considerar o aspecto espiritual e

compreender melhor as diversas religiões.

Então, agradeço sua colaboração, e ele diz a seguinte frase:

Estou com a sensação de que eu não disse nada de útil, que não ajudei nada.

Digo, então, que as coisas que ele me disse vão ajudar muito a refletir e a pensar sobre o

assunto, agradecendo sua colaboração. No final da sua entrevista, assim como Lílian, ele tem a

sensação de que não contribuiu com o meu trabalho. Seu olhar e sua expressão são de frustração.

Agradeço mais uma vez e após desligar o gravador digo que seus comentários em diversos

momentos me fizeram pensar muitas coisas interessantes. Ele se surpreende e encerramos nossa

conversa por causa do horário. O fato de Ronaldo se sentir dessa forma me faz pensar que mesmo

refletir sobre o tema não é fácil, dando uma sensação de falta de referências, de não-linearidade,

que gera desconforto. É como se estivéssemos adentrando um terreno totalmente incerto e tudo o

que se diz a respeito fosse insuficiente e, de certa forma, obscuro.

Os impactos dessas sensações quando se está diante do cliente serão vários, como já

foi discutido em outros momentos deste trabalho, provocando em mim muitos pensamentos

ainda não completamente elaborados sobre a complexidade dessa questão, da qual sinto ter

me aproximado muito em relação à forma como eu estava antes das entrevistas, mas pouco

diante do vasto universo que se descortinou ante meus olhos. A confirmação da existência de

um impacto e desconforto, mesmo ao se falar sobre o tema, ficou evidenciada para mim nessa

interação, na qual Ronaldo e eu fomos atravessados por diversas sensações.

Page 155: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

155

CCCooonnncccllluuusssãããooo eee cccooonnnsssiiidddeeerrraaaçççõõõeeesss fffiiinnnaaaiiisss

O objetivo deste trabalho foi compreender as dificuldades vividas por psicólogos clínicos de

orientação fenomenológica, ao atenderem clientes que levam à sessão o tema religioso. Ao

mesmo tempo, eu pretendia observar como tais dificuldades se inserem na relação entre terapeuta

e cliente, o que fez com que meu olhar flutuasse entre estes dois aspectos nas análises

apresentadas. Através de uma discussão teórica sobre a clínica de base fenomenológica,

explicitando-a, aliada a uma aproximação da esfera da religiosidade, pude perceber que não há

uma discordância ou distanciamento entre tais âmbitos do saber. As dificuldades com o tema,

então, não têm origem na dimensão teórica. Por esse motivo, foi necessário recorrer aos

profissionais dessa abordagem para compreender quais seriam os entraves ao acolhimento deste

tema na clínica da forma como preconizada pelos pressupostos fenomenológicos.

Quero, então, tecer algumas considerações sobre o processo metodológico e suas

conseqüências para a dissertação e para mim, enquanto pesquisadora, pois ao longo deste

processo, pude perceber mais claramente o impacto da minha subjetividade na pesquisa. Em

alguns momentos, durante e logo após a primeira entrevista, experimentei certa frustração, pois

antes da realização da mesma, eu tinha a expectativa de que a colaboradora me dissesse aquilo

que eu desejava saber, fornecendo respostas às minhas inquietações. Apenas posteriormente

compreendi este equívoco, comum ao se desenvolverem pesquisas fenomenológicas, pois é o

pesquisador que tenta colher a vivência nos relatos apresentados. É o meu olhar que vai de

encontro a algo que se mostra no contexto da entrevista, algo que escapa e perpassa

entrevistador e entrevistado. Felizmente, a dimensão vivencial sempre se faz presente, mesmo

quando há a sensação de predomínio da racionalidade. Esta experiência serviu para aprimorar a

Page 156: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

156

condução das demais entrevistas e possibilitou um grande exercício na busca pelo vivido

expresso naquele primeiro encontro e nos demais.

Outra compreensão que tive sobre as entrevistas na pesquisa é o quão determinante é a

forma de se perguntar algo. Assim, ao longo do processo, a pergunta dirigida aos

colaboradores sofreu pequenas modificações, bem como meu olhar sobre o que era relatado.

Comecei a perceber que certo tipo de condução, centrada em compreender posições gerais,

opiniões e crenças, acabava direcionando a fala para um nível mais racional, distanciando-nos

da experiência vivida. A realização da primeira entrevista, então, ajudou a definir melhor

minha postura, na busca pela vivência do psicólogo, servindo de base para as seguintes. Cada

entrevista passou a ser o fundo no qual a próxima se desenharia, modificando meu olhar.

Após o mergulho na vivência dos colaboradores que, generosamente compartilharam

suas vivências relativas ao tema religioso, trazido para a clínica psicológica, novos mundos e

perspectivas se apresentaram, permitindo conhecer seus posicionamentos pessoais e teóricos.

Como a entrevista se constitui em um momento de interação e diálogo, o que surge nela

depende de diversos fatores envolvidos, principalmente o encontro das subjetividades.

Falando de suas experiências ou opiniões sobre o tema religioso, as pessoas mostraram muito

mais do que isso.

Através da leitura e análise das entrevistas, pude perceber que cada pessoa vive

dificuldades específicas em relação ao tema. Isso evidencia a complexidade do campo, que se

mostrou maior do que eu acreditava ser anteriormente. Eu via um mundo novo quando

adentrava em cada uma das entrevistas: complexo e rico, impossibilitando a formulação de

uma experiência-tipo, mas permitindo tirar algumas conclusões de todo este processo, tecendo

considerações a partir das vivências desencadeadas pela confecção deste trabalho. Ao mesmo

tempo em que tal processo foi frustrando minhas expectativas quanto à possibilidade de

chegar a uma estrutura essencial da dificuldade vivida diante do tema, ele mostrou outras

Page 157: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

157

possibilidades da pesquisa fenomenológica, como evidenciar a complexidade e diversidade de

um fenômeno. Estes movimentos reposicionaram minha visão, tendo como primeiro efeito a

mudança do título, que antes buscava o impacto da religiosidade no terapeuta, mas precisou

ser colocado no plural, já que foram se delineando impactos diversos e diferenciados. Assim,

empreendi uma busca por significados ao invés de um significado comum a todos. Houve,

então, um deslocamento da minha posição diante da Fenomenologia, que se tornou menos

essencialista e dirigiu meu olhar para a infinitude de possibilidades de significações que se

abrem para o ser humano e do caráter único e singular de cada pessoa.

Dessa forma, entremeada à análise de cada entrevista, foi feita uma discussão teórica,

buscando explicitar as dificuldades da pessoa, como isso se insere na sua vida e de que forma

pode estar interferindo no processo do cliente. Pude observar que as dificuldades vividas

frente ao tema da religiosidade são, na sua maior parte, devidas a aspectos pessoais dos

psicólogos, aliados à pouca discussão sobre o tema no âmbito acadêmico. O fato de a

religiosidade ser um tema pouco tratado na psicologia e na ciência, de forma geral, além de

ter sido banida para a esfera individual, faz com que o contato com esse tema revele aspectos

muito pessoais do psicólogo. Cada pessoa fará a sua própria articulação sem uma discussão

mais crítica e reflexiva com o meio, ou sem uma articulação com a própria abordagem. O

profissional fica só, sem referências, e sem ter com quem discutir tais questões, pois após sua

saída do meio acadêmico, as oportunidades de trocas se tornam mais escassas. É como se o

tema fosse tão pouco falado, pensado e comentado no âmbito científico, que dá margem ao

surgimento das abordagens, crenças e reações mais diversas. Os significados vão sendo

tecidos à margem da psicologia, das suas abordagens e ramificações, no silêncio e no

isolamento dos consultórios. Então, os aspectos mal elaborados insistem em reaparecer,

acarretando a volta do tema que é reprimido e evitado. Ficou claro, porém, que a dimensão

pessoal e a forma como o tema ressoa para cada um é mais determinante do que a falta de

Page 158: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

158

informações sobre o assunto. A influência da subjetividade do psicólogo no processo

psicoterápico, amplamente discutida e apontada pela teoria, mostrou-se em toda a sua

concretude nas análises das entrevistas. Embora eu soubesse da importância de tal aspecto, a

sinceridade com que os colaboradores falaram de suas dificuldades e opiniões, deu

visibilidade a essa questão tão importante para a clínica.

Tornou-se um grande desafio observar a prática clínica e, dentro desta, o tratamento

dado ao tema da religiosidade por profissionais competentes e bem posicionados

profissionalmente, mas para os quais tal questão reverberava de uma maneira diferente de

outros temas. Ao mesmo tempo, a confecção deste trabalho constituiu-se em uma busca

existencial para mim, norteada pela interlocução entre a clínica fenomenológica e o campo da

religiosidade. Passei, então, por um processo de desconstrução de várias crenças a respeito

dos dois campos. Assim, o trabalho mostrou mais do que os objetivos pretendiam encontrar,

sem chegar ao certo a pontos essenciais que eu imaginava esclarecer.

As dificuldades vividas pelos entrevistados diante do tema religioso se manifestaram de

diferentes maneiras. Assim, para Helena, sua reação depende da forma como o cliente expressa

sua religiosidade. Ela tem maior dificuldade com pessoas mais firmemente aderidas a uma

crença, que não apresentam uma postura questionadora quanto à própria religião ou não

conseguem aplicar seus ensinamentos à vida cotidiana. Por outro lado, Lílian apresenta uma

dificuldade com o tema de forma geral, independentemente da maneira como aparece nas

sessões. Sente-se “engasgada” frente aos assuntos religiosos, tendo reações de medo, tensão e

extremo cuidado com suas intervenções. Marina, a única psicóloga declaradamente religiosa,

católica praticante, hoje não considera ter maiores dificuldades com este tema do que com

outros, mas no início da sua prática julgava muito difícil atender pessoas com uma religião

diferente da sua. Ao ouvir seus clientes, começava a pensar nas próprias experiências e no

impacto que aquele contato teria para ela, deixando de ter a vivência do cliente como foco e sim

Page 159: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

159

as próprias questões. O último entrevistado, Ronaldo, declarou ter dificuldades quando o cliente

se posicionava de forma radical, com pouca reflexão e clareza sobre as próprias vivências, ou

quando o questionava sobre sua crença religiosa. Ele se sentia extremamente desconfortável,

enquanto terapeuta, com esse tipo de pergunta, sem saber a melhor forma de lidar com ela.

Como efeito das dificuldades vividas, o afastamento do encontro com o cliente e a

dificuldade maior em acolher suas experiências nesses momentos ficaram evidentes,

comprovando toda a discussão anterior sobre a clínica preconizada nessa dissertação. Na

verdade, esta era uma hipótese subjacente a todo o trabalho, que se confirmou.

Assim, os entrevistados revelaram que suas dificuldades estão fortemente relacionadas

às suas histórias de vida e à forma como elaboraram as suas próprias questões religiosas. Uma

posição que se repetiu nas entrevistas de Helena, Lílian e Ronaldo foi a de não aderir a nenhuma

religião. Apesar de todos valorizarem, buscarem e cultivarem o aspecto espiritual nas suas

vidas, parecem acreditar que não aderir a uma crença definida pode contribuir para uma postura

mais aberta diante do outro, enquanto psicólogos, com menos preconceitos e menor risco de

imposição, mesmo que involuntária, dos seus valores para o cliente. Porém, o interessante é não

observarem que tal postura relativista também é um valor e uma opção. Confesso que antes da

realização deste trabalho, eu tinha a mesma opinião e sensação, buscando me manter o mais

“neutra” possível quanto a uma adesão religiosa na minha vida pessoal, apesar de cultivar a

religiosidade. Essa postura apareceu claramente em Helena, pelo fato de ela considerar

importante que seus clientes adquiram uma postura crítica quanto à religião adotada e os valores

que a norteiam, colocando isso como uma condição para o não preconceito e a aceitação do

outro. No entanto, ao mesmo tempo em que ela não adere a nenhuma religião, se incomoda

diante de pessoas com uma pertença religiosa clara e definida, admitindo ter preconceitos em

algumas situações. Outro exemplo: as dificuldades relatadas por Lílian e Ronaldo em conduzir a

sessão quando suas dificuldades com o tema os atravessam. Será, então, a evitação consciente

Page 160: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

160

de aderir a uma religião aliada a uma postura crítica, algo que facilita o trabalho com essa

dimensão na clínica? Percebo essa suposição nas posturas de Helena, Lílian e Ronaldo, assim

como em mim mesma, antes da realização deste trabalho.

A entrevista de Marina, por sua vez, mostra o movimento contrário. Ela tem uma adesão

clara ao catolicismo e sua fala revela grande atenção aos pressupostos da sua abordagem

psicológica, sendo capaz de colocar sua religião entre parênteses ao entrar em contato com o

cliente. Como se pode notar, isso acontece hoje à custa de muito trabalho e reflexões nos níveis

teórico e pessoal empreendida ao longo dos anos. Porém, antes desse processo reflexivo, ela

tinha dificuldades com sua escuta devido à sua religião e acabava misturando as esferas

psicológica e espiritual em certos momentos. Certamente, isso pode acontecer ainda hoje, pois

ela assinala a dificuldade de trabalhar na abordagem fenomenológica, pois admite estar mais

sensível a determinados temas, em certas ocasiões, comentando sobre a tentativa constante em

suspender os juízos durante o atendimento – um trabalho árduo.

Depois de compartilhar com essas pessoas as suas vivências, começo a me dar conta

da crença implícita em muitos terapeutas, me incluindo entre eles, de que quanto maior a

neutralidade diante da religiosidade, maior a maturidade e capacidade de acolhimento das

experiências religiosas dos outros. De alguma forma, essa postura parece sustentar a

possibilidade do psicólogo manter-se neutro e objetivo diante do seu cliente. Isso é

interessante, porque estas pessoas, assim como eu, acreditam na opção por uma abordagem

teórica como algo fundamental à prática, buscando sempre se aprimorar e se aproximar cada

vez mais dos seus pressupostos. Não há um relativismo ou ecletismo quanto à psicologia, mas

sim quanto à religiosidade. Porém, toda abordagem traz uma série de valores, pressupostos e

direcionamentos, delimitando uma posição, criando uma opinião definida sobre o homem e

uma pertença. Acontece algo muito semelhante a uma adesão religiosa, havendo uma espécie

de “conversão” a determinados valores éticos e maneira de ver o mundo. Além disso, a

Page 161: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

161

postura fenomenológica mostra claramente a impossibilidade da neutralidade ou objetividade

em qualquer esfera da vida humana. Porque, então, no caso da religiosidade, existe essa

indefinição do psicólogo e a busca por certa neutralidade?

Foi muito impactante perceber minhas próprias crenças em relação à religiosidade,

pois assim como os entrevistados, sempre me empenhei muito no estudo e compreensão da

psicologia fenomenológica, mas sem saber ao certo como lidar com o tema religioso na

clínica. Após a confecção deste trabalho, percebo quais eram minhas crenças implícitas,

modificando-as. Ao estudar o campo da religiosidade através de leituras, discussões, contato

com religiosos e cursos específicos oferecidos pela PUC–SP, comecei a adentrar um universo

muito mais amplo e rico do que eu poderia imaginar. Aprendi a respeitar, admirar e mesmo

reverenciar os movimentos em direção a religiosidade, percebendo estes como uma busca

humana autêntica e cheia de significados. Assim, vários mitos se romperam, como a crença

que eu possuía de que psicólogos firmemente aderidos a uma religião tivessem

necessariamente maior dificuldade em lidar com essa questão e atender de forma coerente

dentro da fenomenologia. Percebi que as barreiras para o encontro entre terapeuta e cliente

situam-se principalmente no aspecto pessoal de cada profissional e na forma como ele articula

a teoria e a prática, aliadas à busca por preencher lacunas existentes, compreendendo a si

mesmo. Essa percepção produziu uma maior abertura em mim, permitindo rever meus

posicionamentos pessoais a respeito da minha forma de ser religiosa. O preconceito e o medo

que eu tinha quanto à adesão a uma religião, temendo a forma como isso pudesse se inserir

nos atendimentos clínicos, se dissiparam. Ainda não tenho um posicionamento claro quanto a

este aspecto, mas me sinto mais confortável e segura para uma aproximação de tal dimensão,

certa de que é possível integrar em nós, terapeutas, as dimensões bio-psico-social-espiritual e,

no atendimento clínico, acolher todas essas esferas na vida do cliente.

Page 162: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

162

Não ter claro para si mesmo a própria posição religiosa ou o que levou a optar por

determinada postura, leva a uma outra discussão: a clínica se baseia numa visão de homem,

concretizando-se em uma proposta teórica e metodológica, incluindo, mesmo que

implicitamente, como o fenômeno religioso será tratado. Dentro disso, há também uma

concepção de como deve ser o terapeuta, o qual busca estar inteiro no contato com o cliente,

sendo autêntico, congruente e coerente com a abordagem adotada ao trabalhar na clínica. As

entrevistas acabaram evidenciando os poucos recursos de que dispomos, enquanto psicólogos,

para lidar com a própria experiência na sua totalidade e, assim, cuidar desta na relação com o

cliente. Porém, um ponto fundamental explicitado nas análises é a dificuldade em se trabalhar

na abordagem fenomenológica de forma coerente. A clínica nessa perspectiva é extremamente

paradoxal, pois ser terapeuta é estar presente enquanto pessoa e fazer isso de forma congruente

significa ter valores, crenças e expectativas. Ao mesmo tempo, deve-se estar aberto para o seu

cliente, o que pressupõe a não interferência dessas posições pessoais no atendimento. Desse

modo, o aparecimento do tema religioso agrava e explicita essas questões, parecendo questionar

a teoria, quando provoca o terapeuta colocando-o diante desse paradoxo. Frente a este tema,

aparecem as dissonâncias dos psicólogos na sua articulação entre teoria e prática.

Cada profissional terá a sua concepção de clínica um pouco diferenciada dentro do

campo existencial-fenomenológico, atribuindo um tom pessoal e fazendo uso de certos autores e

não outros. Porém, dentro dessa escolha, é preciso haver uma sintonia com as intervenções

adotadas, as quais devem estar em consonância com a visão filosófica de mundo e a teoria

adotada. Se as pessoas escolheram a fenomenologia como modelo para sua clínica, quer dizer

que aceitaram alguns princípios básicos como norteadores do seu trabalho. As posturas dos

entrevistados, no entanto, revelam a dificuldade e a fragilidade do terapeuta diante da tarefa de

ajudar o outro no seu processo de crescimento pessoal. Certamente, a sintonia e harmonia

almejadas pela teoria nunca serão plenamente alcançadas. Este é um fato na clínica: a

Page 163: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

163

dificuldade de se manter coerente, congruente com pensamentos, conceitos e ações. O ser

humano cai sempre em contradições e incorre em erros. É preciso reconhecer isso e estar atento.

Tais dissonâncias rompem com a congruência e coerência buscadas, obrigando o terapeuta ao

trabalho consigo mesmo. A análise das entrevistas mostrou concretamente a importância do

diálogo com outros profissionais a respeito de temas pessoalmente difíceis, apontando a

supervisão e a própria terapia como fundamentais para qualquer psicólogo.

Com a contribuição dos entrevistados, como colaboradores, posso dar visibilidade a isso,

que foi se desenhando com clareza, se transformando numa constelação por mim observada. A

constelação é um fenômeno que se mostra para quem o vê, não existindo objetivamente. O que há

são estrelas em planos diferentes, que acabam se revelando como figuras para quem busca algo

mais significativo no céu. Minha busca por uma clínica com mais rigor, mesmo dentro das minhas

limitações de tempo, experiência e conhecimento teórico, me permitiram vislumbrar algumas

coisas e constatar muito sobre a aplicação prática da psicologia.

O momento de realização das entrevistas e da redação desse trabalho, também revelou

dissonâncias na minha prática, evidenciando mais uma vez a dificuldade enraizada em nós de

acolher a experiência na sua totalidade. Existe uma cisão, estabelecida também culturalmente,

como já foi mencionado ao longo deste trabalho. Em vários momentos da confecção dessa

dissertação, percebi também meus incômodos diante das posturas apresentadas pelos

entrevistados frente ao tema religioso. No caso de Helena, por exemplo, fiquei incomodada

com a postura dela, que considerei a “menos fenomenológica” quando inserida na prática

frente ao tema abordado. No caso de Ronaldo, sua tensão e desconforto também provocaram

reações em mim que interferiram no momento da entrevista. Em relação a Lílian e Marina, a

maior afinidade com suas formas de atender e conceber o tema religioso despertou reações

diferentes em mim, que se refletiram nas análises. O contato com todos os entrevistados foi

muito rico e dialógico, mas me intrigava perceber que eram tão diferentes, assim como o

Page 164: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

164

impacto deles em mim. Gradualmente, comecei a perceber que eu tinha expectativas

implícitas e não-conscientes quando comecei a realização das entrevistas. Com base nessas,

julguei e avaliei a forma de trabalhar desses profissionais, desconsiderando seus motivos para

ter as dificuldades que apresentavam. Assim, emiti juízos de valor, me afastando, muitas

vezes da sua experiência e perspectiva singulares, sem conseguir manter a abertura

fenomenológica frente a alguns relatos que me incomodaram de forma especial. Esse

movimento se expressa também em meu próprio objetivo de analisar a forma de outros

trabalharem, baseada em um ideal de clínica, que esteve presente em todo o trabalho. Muitas

vezes, intui este posicionamento, questionando minhas exigências de rigor e competência,

taxando-a de radicalismo, mas percebi tratar-se, na maioria das vezes, de ser radical no

sentido de raiz, de fidelidade a uma perspectiva e a um ideal, e não uma militância ou

apologia da fenomenologia. Mas há sempre o risco de se cair em um extremo em algum

momento. Isso aconteceu e estava gerando sensações de desconforto que só agora, no

momento final deste trabalho consigo compreender.

Dessa forma, durante a confecção dessa pesquisa, houve a desconstrução de uma prática

idealizada que pudesse ser coerente e harmônica a maior parte do tempo. Vi-me diante de um

grande incômodo ao concluir o trabalho, que através de momentos de interlocução muito

profundos, pude começar a compreender. Como parti de um ideal de clínica e entrevistei

pessoas imersas na mesma corrente teórica, eu esperava mais consonância e congruência na sua

prática. Na verdade, eu tinha certa exigência quanto aos colaboradores e os psicólogos

fenomenólogos de forma geral. Ao mesmo tempo, me sentia desconfortável pelo impulso

incontrolável de apontar essa falta, aliado a uma obrigação ética de dar visibilidade a isso. Só

posteriormente, comecei a compreender que meu incômodo vinha das dissonâncias presentes,

também, na minha atuação. Através de um processo de reflexão gradual, compreendi porque me

incomodavam tanto certos posicionamentos de Ronaldo e Helena. Eu estava vendo sua prática

Page 165: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

165

clínica com os mesmos olhos com os quais eles viam a prática religiosa dos seus clientes:

avaliando como inadequada, como se houvesse uma maneira melhor e mais correta de se

vivenciar aquilo. O espanto diante de tal constatação me remete a uma colocação totalmente

banalizada na psicologia, mas que se revelou com toda a veracidade: em geral, aquilo que mais

nos incomoda nos outros é algo que temos em nós mesmos, intuímos no nível da sensação, mas

não conseguimos enxergar claramente na interação.

Eu não esperava me deparar com tantas dissonâncias e paradoxos e a percepção de que

os vivo de forma muito semelhante aos entrevistados foi uma grande surpresa. No entanto, o

que analiso agora é minha dificuldade de me colocar diante do tema ao qual propus uma

investigação, sabendo que eu também tinha dificuldades com ele, mas sem saber quais eram.

Percebi, nas entrelinhas, que também revelei mais sobre minhas próprias crenças do que eu

tinha consciência e aprendi muito, ou melhor, estou em processo de reconstrução e

aprendizagem. Muita poeira foi levantada e estou em meio a um tornado de vivências.

Estando no seu centro, sinto muitas coisas com grande intensidade, mas tenho dificuldade em

descrevê-las ao passarem por mim e me atravessarem.

Uma conseqüência deste trabalho foi, após explicitar a teoria, tão importante para o

trabalho do psicólogo, sair do mundo das idéias e mergulhar na prática, nas vivências dos

entrevistados e também na minha. Tive a percepção clara de que um bom domínio da teoria é

essencial como norte, mas que se dá muita ênfase a este aspecto, ou no outro pólo, nenhuma.

Pergunta-se demais como se faz, entendendo como se faz, mas isso não resolve os problemas

da clínica na concretude dos atendimentos, com os quais sempre nos deparamos enquanto

profissionais. Encarar o vivido diante do cliente e perceber as reações nem sempre

conscientes que atravessam a relação, ajuda a cuidar da parte mais importante do trabalho

clínico: lapidar a pessoa do psicólogo para que este possa se oferecer existencialmente ao

outro e entrar em relação, pois é esta que transforma.

Page 166: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

166

Percebi que conviver com tais antagonismos é difícil para mim, trazendo certa dor. Outra

percepção estonteante foi estar diante do paradoxo da clínica psicológica, constatando com tanta

clareza que sua ação é realmente limitada, e ao mesmo tempo tão rica em possibilidades. Por isso

faz-se importante a visão de processo, encarando os erros com humildade. Muitas vezes, nos

distanciamos do vivido, rompemos o momento da relação por questões existenciais que a

atravessam, mas ao longo das sessões, na qual o profissional se permite enxergar estes percalços,

há espaço para lidar com isso, se reposicionando continuamente e compreendendo o impacto

daquela relação para ambos os envolvidos. Se o lado pessoal não estiver bem cuidado, enganchará

com algum tema, mas isso não invalida a ação do profissional empenhado, mas sim evidencia seu

caráter humano. Aprendi, através dessas reflexões a aceitar mais os erros, as dificuldades minhas

e dos outros psicólogos existenciais, pois a tarefa a que nos propomos é ambiciosa, árdua e deve

ser encarada humildemente. Os momentos de encontro verdadeiro, de relação Eu-Tu podem ser

escassos, mas existem e surgem como um presente, renovando a fé nessa profissão. Ao mesmo

tempo, é preciso reconhecer a limitação e complexidade do ser humano, incluindo-nos entre eles,

estando sempre diante do mistério que é a clínica, do mistério que é a vida e, principalmente, a

pessoa que se encontra diante de nós. Tal processo não tem fim, seguido de elaborações e

construção de novos significados por toda a vida. Assim, ao concluir essa dissertação, me coloco

de forma aberta para outras percepções que certamente surgirão, sentindo-me em devir, em

movimento e, ao mesmo tempo, perplexa diante das compreensões possibilitadas por essa

aventura, em busca do conhecimento.

Page 167: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

167

RRReeefffeeerrrêêênnnccciiiaaasss bbbiiibbbllliiiooogggrrráááfffiiicccaaasss

ALES BELLO, Angela. Culturas e religiões: uma leitura fenomenológica. Bauru: EDUSC,

1998

ALES BELLO, Angela. Fenomenologia e ciências humanas. Bauru: EDUSC, 2004.

AMATUZZI, Mauro Martins. O resgate da fala autêntica: Filosofia da Psicoterapia e da

Educação. Campinas: Papirus, 1989.

AMATUZZI, Mauro Martins. Apontamentos acerca da pesquisa fenomenológica. Estudos de

Psicologia, Natal, vol. 13, nº. 1, pp. 5-10, 1996.

AMATUZZI, Mauro Martins. A experiência religiosa: uma pesquisa em andamento. In: I

SEMINÁRIO: PSICOLOGIA E SENSO RELIGIOSO, 1997, Ribeirão Preto. A Psicologia

e o Senso Religioso - Anais do Seminário. Ribeirão Preto: Salus, 1997, pp. 29-39.

AMATUZZI, Mauro Martins. Experiência religiosa: busca de uma definição. Estudos de

Psicologia, Natal, vol. 15, n°. 1, pp. 49-65, 1998.

AMATUZZI, Mauro Martins. Desenvolvimento psicológico e desenvolvimento religioso: uma

hipótese descritiva. In: MASSIMI, Marina e MAHFOUD, Miguel (Orgs.). Diante do

Mistério: Psicologia e Senso Religioso. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp. 123-141.

AMATUZZI, Mauro Martins. Pesquisa fenomenológica em psicologia. In: BRUNS, Maria Alves

de Toledo e HOLANDA, Adriano Furtado (Orgs.). Psicologia e Pesquisa

Fenomenológica: reflexões e perspectivas. São Paulo: Ômega Editora, 2001a, pp. 15-22.

AMATUZZI, Mauro Martins. Por uma Psicologia Humana. Campinas: Editora Alínea, 2001b.

Page 168: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

168

ANCONA-LOPEZ, Marília. A experiência religiosa na prática clínica. In: I SEMINÁRIO:

PSICOLOGIA E SENSO RELIGIOSO, 1997, Ribeirão Preto. A Psicologia e o Senso

Religioso - Anais do Seminário. Ribeirão Preto: Salus, 1997, pp. 5-16.

ANCONA-LOPEZ, Marília. Religião e psicologia clínica: quatro atitudes básicas. In:

MASSIMI, Marina e MAHFOUD, Miguel (Orgs.). Diante do Mistério: Psicologia e

Senso Religioso. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp. 71-86.

ANCONA-LOPEZ, Marília. Psicologia e Religião: recursos para construção do

conhecimento. Revista Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, Campinas, vol. 19, nº.

2, pp.78-85, mai/ago 2002.

ANCONA-LOPEZ, Marília. Produção do conhecimento na prática clínica II. São Paulo:

Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, 2005a. Notas de aula.

ANCONA-LOPEZ, Marília. Entre psicologia e religião: possíveis diálogos. São Paulo,

2005b. Conferência proferida no III Congresso Brasileiro de Espiritualidade e Prática

Clínica, em São Paulo, em 09/06/2005.

ARAÚJO, Renata Amaral. O sagrado no humano: a elaboração da experiência ontológica diante

de Nossa Senhora de Nazareth em uma comunidade tradicional. 2003. Dissertação

(Mestrado em Psicologia Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. 5 ed. Rio de Janeiro:

Relume Dumará, 2002.

AUGRAS, Monique. O Ser da compreensão: fenomenologia da situação de psicodiagnóstico.

Petrópolis: Vozes, 1986.

Page 169: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

169

BEISSER, Arnold R. A Teoria Paradoxal da Mudança. In: FAGAN, Joe e SHEPHERD, Irma

Lee (Orgs.). Gestalt- terapia: Teoria, Técnicas e Aplicações. 4 ed. Rio de Janeiro:

Zahar, 1973, pp. 110-114.

BERGIN, Allen E.; PAYNE, I. Reed & RICHARDS, P. Scott. Values in Psychotherapy. In:

SHAFRANSKE, Edward P. Religion and the Clinical Practice of Psychology.

Washington, DC: American Psychological Association, 1996, Cap. 11.

BOWEN, Maria Constância Villas Boas. Psicoterapia: o processo, o terapeuta e a

aprendizagem. Salvador: mimeo, s/d.

BRUNS, Maria Alves de Toledo e HOLANDA, Adriano Furtado (Orgs.). Psicologia e

Pesquisa Fenomenológica: reflexões e perspectivas. São Paulo: Ômega Editora, 2001.

BUBER, Martin. Eu e Tu. 8 ed. São Paulo: Centauro, 2001.

CARDOSO, Cláudia Lins. A escuta fenomenológica em psicoterapia. In: VIII ENCONTRO

DA ABORDAGEM GESTÁLTICA, 2002, Goiânia. Revista do VIII Encontro da

Abordagem Gestáltica. Goiânia, 2002, nº. 8, pp. 61-69.

CRITELLI, Dulce Mára. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real de

orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC/ Editora Brasiliense, 1996.

CRUZ, Eduardo Rodrigues. Revanche do sagrado, Parte II: A Ciência. In: QUEIROZ, José J. (Org.).

Interfaces do Sagrado em véspera de milênio. São Paulo: Olho d’Água, 1996, pp. 30-44.

ESTEVES, Maria Cristina Soares (2004). O significado da religião na formação do psicólogo:

um estudo em andamento. In: V SEMINÁRIO NACIONAL DE PSICOLOGIA E

SENSO RELIGIOSO, 2004, Campinas. Anais do V Seminário Nacional de Psicologia

e Senso Religioso: religião e espiritualidade. Campinas: PUC-Camp, 2004.

Page 170: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

170

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aceitação. In. FERREIRA, Aurélio Buarque de

Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2 ed. 11 impressão. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1986, p. 25.

FIGUEIREDO, Luís Cláudio e COELHO JÚNIOR, Nelson Ernesto. Figuras da intersubjetividade

na constituição subjetiva: dimensões da alteridade. Interações – Estudos e Pesquisas em

Psicologia, Rio de Janeiro, vol. 9, nº. 17, pp. 9-28, jan/jun 2004.

FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Fenomenologia e Psicologia. São Paulo: Cortez, 1984.

FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia Fenomenológica: fundamentos, método e

pesquisa. São Paulo: Pioneira, 1993.

FRAAS, Hans-Jürgen. A religiosidade humana: compêndio de Psicologia da Religião. São

Leopoldo: Sinodal, 1997.

GARRAFA, Volnei. Bioética e ciência: até onde avançar sem agredir. In: FERREIRA, Costa

Sérgio; OSELKA, Gabriel & GARRAFA, Volnei (Orgs.). Iniciação à bioética.

Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998.

GIOVANETTI, José Paulo. O sagrado e a experiência religiosa na Psicoterapia. In:

MASSIMI, Marina e MAHFOUD, Miguel (Orgs.). Diante do Mistério: Psicologia e

Senso Religioso. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp. 87-96.

GIOVANETTI, José Paulo. A vivência religiosa no mundo (pós)moderno. In: ANGERAMI,

Waldemar Augusto (Org.). Espiritualidade e prática clínica. São Paulo: Pioneira

Thompson Learning, 2004, pp. 111-126.

GIUSSANI, Luigi. O Senso Religioso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

Page 171: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

171

GOMES, William Barbosa e cols. Revelar ou não revelar: uma abordagem fenomenológica

do abuso sexual com crianças. In: BRUNS, Maria Alves de Toledo e HOLANDA,

Adriano Furtado (Orgs.). Psicologia e Pesquisa Fenomenológica: reflexões e

perspectivas. São Paulo: Ômega Editora, 2001, pp. 109-142.

HYCNER, Richard. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MAHFOUD, Miguel. O eu, o outro e o movimento em formação. In: XIX REUNIÃO

ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOLOGIA, 1989, Ribeirão Preto.

Anais da XIX Reunião Anual da SBP. Ribeirão Preto: SBP, 1989. pP. 545-549.

MAHFOUD, Miguel. Uma concepção fenomenológica de experiência religiosa. In: I

SEMINÁRIO: PSICOLOGIA E SENSO RELIGIOSO, 1997, Ribeirão Preto. A Psicologia

e o Senso Religioso - Anais do Seminário. Ribeirão Preto: Salus, 1997, pp. 17-28.

MAHFOUD, Miguel. Encomendação das Almas: mistério e mundo da vida em uma

tradicional comunidade rural de mineira. In: MASSIMI, Marina e MAHFOUD,

Miguel (Orgs.). Diante do Mistério: Psicologia e Senso Religioso. São Paulo: Edições

Loyola, 1999, pp. 57-67.

MAHFOUD, Miguel. Necessidade, desejo e exigências: cultura como âmbito da experiência.

In: PAIVA, Geraldo José de (Org.). Entre necessidade e desejo: diálogos da psicologia

com a religião. São Paulo: Loyola, 2001.

MAHFOUD, Miguel. Escola de Comunidade. [comunicação pessoal], 2002.

MAHFOUD, Miguel. Folia de Reis: Festa Raiz – psicologia e experiência religiosa na estação

Ecológica Juréia-Itatins. São Paulo/Campinas: Companhia Ilimitada/Centro de

Memória, 2003.

Page 172: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

172

MAHFOUD, Miguel & COELHO JÚNIOR, Achilles Gonçalves. As dimensões espiritual e

religiosa da experiência humana: distinções e inter-relações na obra de Viktor Frankl.

Psicologia USP, São Paulo, vol. 12, nº. 2, pp. 95-103, 2001.

MARTINS, Joel & BICUDO, Maria Aparecida. A pesquisa qualitativa em psicologia:

fundamentos e recursos básicos. 2 ed. São Paulo: Editora Moraes, 1994.

MASSIMI, Marina & MAHFOUD, Miguel (Orgs.). Diante do Mistério: Psicologia e Senso

Religioso. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

MENDONÇA, Marisete Malaguth. Dimensão espiritual. Mimeo, s/d.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2 ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1999.

MILLER, Alice. O drama da criança bem dotada. São Paulo: Summus, 1997.

MINAYO, Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4 ed.

São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1996.

MOREIRA, Daniel Augusto. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira

Thomson Learning, 2002.

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.

PAIVA, Geraldo José de. Ciência e religião na academia. Ciência hoje, Rio de Janeiro, vol.

19, pp. 25-45, 1995.

PAIVA, Geraldo José de (Org.). Entre necessidade e desejo: diálogos da psicologia com a

religião. São Paulo: Loyola, 2001.

PAIVA, Geraldo José de. Ciência, religião, psicologia: conhecimento e comportamento.

Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, vol.15, nº.3, pp. 1-7, 2002.

Page 173: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

173

PAIVA, Geraldo José de & ZANGARI, Wellington (Orgs.). Representação na religião:

perspectivas psicológicas. São Paulo: Loyola, 2004.

PALOUTZIAN, Raymond F. Invitation to the Psychology of Religion. 2nd Edition.

Massachusetts: Allyn and Bacon, 1996.

PERLS, Frederick S.; GOODMAN, Paul & HEFFERLINE, R. Gestalt Therapy: excitement

and growth in the human personality. New York: A Delta Book, 1951.

PRADO, Adélia. Arte como experiência religiosa. In: MASSIMI, Marina e MAHFOUD,

Miguel (Orgs.). Diante do Mistério: Psicologia e Senso Religioso. São Paulo: Edições

Loyola, 1999, pp. 17-32.

RIBEIRO, Walter. O gestalt terapeuta e o chacareiro. Porto Alegre, 1991. Palestra proferida

no III Encontro Nacional de Gestalt-Terapia, em Porto Alegre. [mimeo]

RIBEIRO, Walter. Existência-Essência. São Paulo: Summus, 1998.

RICOEUR, Paul. Leituras 2: a região dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996

ROGERS, Carl R. Um jeito de ser. São Paulo: EPU, 1983.

SAFRA, Gilberto. Sacralidade e fenômenos transicionais: visão winnicottiana. In: MASSIMI,

Marina e MAHFOUD, Miguel (Orgs.). Diante do Mistério: Psicologia e Senso

Religioso. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp. 173-182.

SAFRA, Gilberto. Clínica winnicottiana. São Paulo: PUC-SP, 2003. Notas de aula.

SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida: Idéias & Letras, 2004a.

SAFRA, Gilberto. Silêncio. São Paulo: Laboratório de Estudos de Transicionalidade – LET,

2004b. Notas de aula [05/06/2004, mimeo].

SAFRA, Gilberto. Santa Tereza D’Ávila. São Paulo: PUC-SP, 2004c. Notas de aula.

Page 174: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

174

SAFRA, Gilberto. Religiosidade e representação na clínica do self. In: PAIVA, Geraldo José

de & ZANGARI, Wellington (Orgs.). Representação na religião: perspectivas

psicológicas. São Paulo: Loyola, 2004d, pp. 73-78.

SHAFRANSKE, Edward P. Religion and the Clinical Practice of Psychology. Washington,

DC: American Psychological Association, 1996.

SIMÃO, Lívia Mathias. Semiose e diálogo: para onde aponta o construtivismo semiótico

cultural? In: SOUZA, Maria Thereza Costa Coelho (Org.). Os sentidos de construção:

o si mesmo e o mundo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, pp. 13-24.

STERN, Donnel B. Courting surprise: unbidden perceptions in clinical practice. Journal of

Contemporary Psychoanalysis, Hanover, Vol. 26, nº. 3, pp. 452-478, 1990.

STEVENS, John. O tornar-se presente: experimentos em Gestalt-terapia. São Paulo:

Summus, 1988.

SZYMANSKI, Heloísa. Fenomenologia: bases epistemológicas. São Paulo: PUC-SP, 1993. 1

fita de vídeo (115 min.), son., color [Palestra proferida para os alunos do programa de

“Pós-graduação em Psicologia da Educação”, na disciplina “Fundamentos do

Conhecimento Cientifico”].

TAN, Siang-Yang. Religion in clinical practice: implicit and explicit integration. In:

SHAFRANSKE, Edward P. Religion and the clinical practice of psychology.

Washington, DC: American Psychological Association, 1996.

TARRAGÓ, Omar França. Ética para Psicólogos: Introducción a la Psicoética. Bilbao:

Editorial Descleé de Brouwer, 1999.

VAN DER LEEUW, Gerardus. Fenomenologia de la Religion. México/Buenos Aires: Fondo

de Cultura Económica, 1964.

Page 175: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

175

VERGOTE, Antoon. Psychoanalysis, Phenomenological Anthropology and Religion.

Amsterdam/Atlanta, GA: Leuven University Press, 1998.

WULFF, David M. Psychology of Religion: classic & contemporary. New York: John Wiley

& Sons, 1997.

YONTEF, Gary. Processo, diálogo e awaress: ensaios em Gestalt-terapia. São Paulo:

Summus, 1993.

ZUBEN, Newton Aquiles von. Martin Buber: cumplicidade e diálogo. Bauru: EDUSC, 2003.

Page 176: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

176

AAAnnneeexxxooo

TRANSCRIÇÃO COMPLETA DA ENTREVISTA DE MARINA

Data: 23 de fevereiro de 2005

- Eu queria que você me contasse um pouco da sua experiência em atender, em como é estar

diante de temas religiosos, e o que te acomete quando se depara com a religiosidade do cliente.

- Então, antes, eu vou falar um pouquinho de mim para poder entender como isso me afeta. Eu

tive uma experiência religiosa muito grande. Ainda tenho, mas é porque ela foi diferente há uns

anos atrás. Dos quinze até os vinte e quatro anos eu participei de um grupo de jovens e eu era

muito engajada nele. Então, eu fiquei por muito tempo; era um grupo católico, de uma linha

religiosa um pouco mais – como eu vou dizer? – mais firme nos propósitos, nos princípios;

então, aquela coisa completamente: “isso tem que ser desse jeito”. E eu meio que cresci durante

a adolescência e formei a minha concepção religiosa dentro disso. E, por uma série de motivos,

eu já não estava dando conta mais da forma como aquilo ali era trabalhado, não tanto pelas

coisas que eram faladas, mas pelo grupo religioso em si. Era muita pressão, aquela coisa de

“Ah, você não foi à missa, então eu não te ligo”, porque tem que ir à missa para ser amigo. Uma

coisa assim, em outras palavras. Então, isso começou a cansar um pouco e hoje eu participo,

vou à missa do mesmo jeito, mas em outra igreja, não dentro desse grupo. Então, eu tenho essa

vivência religiosa muito forte em mim. E uma das coisas que essa comunidade religiosa me

passava é uma questão assim: se um dia você tiver que conviver com alguém espírita, cuidado,

porque você pode ser contaminado. E eu, quando formei, e foi mais ou menos nessa época que

Page 177: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

177

eu comecei a questionar as coisas de lá, eu ficava pensando: então, como eu vou atender alguém

espírita, como eu vou atender alguém protestante? Então, eu não posso conviver com esse tipo

de pessoa, que de alguma forma eles vão estar me fazendo mal? Porque, querendo ou não, era

essa a mensagem que era passada. E eu tinha muito medo de como isso ia refletir na prática. E,

na verdade, eu acho que reflete, não na minha, mas nas pessoas que eu ando convivendo que

são de lá. Então, eu conheço uma pessoa de lá que não atende pessoas espíritas no consultório.

Não atende, simplesmente não recebe, sabe? Ou se recebe e a pessoa traz algo da religião, de

alguma maneira tenta fugir desse assunto pra não ouvir sobre a religião, que era contrária.

Então, essas coisas ainda reforçaram mais e mais a minha vontade de: “espera, isso não é bem

assim, as coisas não são”...sabe? Então, foi muito bom fazer um processo reflexivo antes, pessoal,

de como eu ia lidar com isso na prática. Eu fiz isso, eu fiz uma matéria, durante a graduação,

Psicologia e Senso Religioso, que me ajudou a refletir muito, exatamente para saber distinguir

entre aquilo que era meu e aquilo que era do outro nesse aspecto religioso, de que a vivência

religiosa ia aparecer, e que ia ser diferente muitas vezes; e então de ter um respeito com isso.

E aí – beleza! – começou a prática. A primeira cliente que eu tive era espírita. Então, já foi

uma prova de fogo. (risos) É impressionante! E eu te falo que hoje eu tenho, por coincidência,

dois clientes muito engajados na religião católica, e não vieram de lá, vieram de outros meios.

E tenho vários clientes espíritas e católicos, sendo que dois têm uma vivência muito parecida

com a que eu tive. E a vivência espírita era a que mais me metia medo, assim, exatamente por

causa dessa, do que foi falado, né? E foi muito interessante, porque, no começo, eu me sentia

incomodada de ficar ouvindo. A primeira cliente, nem tanto, porque ela trazia a religiosidade

mais como um suporte na vida dela e ela não chegava a falar de vivências mesmo, religiosas.

As outras vieram contar, então traziam questões assim, de participar de centro espírita e de

Page 178: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

178

relatar como tinham sido essas experiências, relatando, né? E aquilo, no começo, me

incomodava. Era difícil escutar. Hoje, depois de três anos, que isso já tem três anos – e essa

cliente até continua comigo – é muito mais fácil, mas foi um exercício interno meu.

- Como era nesse começo? Como era esse incômodo que você sentia?

- Ah, era uma coisa ainda meio contaminada por essa vivência que eu tive, de pensar: “meu Deus,

eu estou escutando isso e isso vai afetar minha vida espiritual!”, digamos assim. “Vai

contaminar”. Era essa a imagem que era passada. E, hoje, eu vejo assim: gente, que absurdo!

Sabe?, depois que eu consegui parar e pensar... “nossa, nada a ver!”. Mas era aquele incômodo

de... “ai, isso vai... de alguma maneira...”. Era ruim escutar, porque ... parecia que ia me fazer mal.

Era essa a sensação que eu tinha, completamente contaminada pela vivência que eu tinha, sabe?

- E você tinha a sensação de que ia te fazer mal, mas fazia? Quando você ouvia, era uma coisa que

te parecia ruim, a experiência da pessoa?

- Bom, não parecia ruim a experiência dela. Eu não entendia a experiência dela como ruim. Eu

conseguia até fazer essa distinção, mas batia em mim, era difícil escutar aquilo. Dava até um certo...

não sei se é medo, mas dava um meio medo, aquela coisa: “ah, então será que, que eu acredito

nisso? será que isso existe? que é tão contrário àquilo que eu sempre vivi, que falavam: “não pode

acreditar”. Era – nossa! – parece uma coisa bem imatura, sabe? Tinha uma questão bem de

imaturidade, mesmo. Aquela coisa assim: “nossa, a pessoa está me falando que aquilo acontece...

Será que aquilo acontece?”. Então, eu começava até a questionar aquilo que eu acreditava.

Indiretamente: não passava isso racionalmente. Hoje, eu percebo que era um pouco isso.

Page 179: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

179

- Como se fosse assim: se aquilo que ela está dizendo é verdade, se aquilo acontece, então

como fica a minha escolha, a minha fé?

- Exatamente.

- Será que eu escolhi certo? É mais ou menos por aí?

- Isso. Exatamente. Batia alguma coisa assim, sabe? Eu não tinha consciência disso na época,

mas era incômodo. Eu, olhando depois, para isso, que foi um processo que eu fiz no meu

processo de terapia, bem pessoal, que eu fui percebendo, uma coisa bem assim: “uai, mas não

tem disso não!”, sabe? (risos). Não é assim que as coisas acontecem. O que eu acredito não

precisa ser um... um... não precisa ser contraditório a isso. É diferente. Então, aí, deu uma

acalmada. Hoje, é mais fácil. Eu tenho duas clientes que, uma delas, inclusive, perdeu a mãe

e, por causa disso, ela teve um surto e tudo, e ela procurou um hospital espírita e nesse

hospital tem assistência psiquiátrica e tem assistência espiritual; então, ela traz muito de como

são essas conversas, o que foi dito, com relação a onde a mãe dela está. Hoje, é muito mais

fácil para mim escutar isso, muito mais. Eu não tenho mais essa sensação de que... “ai, que

aflição escutar, que ruim escutar isso!”, sabe? Não. É mais tranqüilo. Agora, por outro lado,

no começo, enquanto eu não tinha isso muito claro...

(o telefone tocou e interrompemos a conversa, na volta, perguntou onde parou e retomou)

...e por outro lado, teve a vivência do parecido, né?, do que é igual. E, aí, foi uma vivência

diferente. É muito interessante, uma das minhas clientes tinha – tem ainda, porque ela ainda está

comigo, foi uma das minhas primeiras clientes também – e ela sempre trazia a questão de como

Page 180: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

180

estava sendo a vivência dela na religião e trouxe muitos questionamentos parecidos com os que eu

tive e segurar isso foi difícil. Não intervir nisso aí foi muito difícil. Claro que isso é um exercício

que a gente faz com tudo, mas no aspecto religioso, como era uma coisa que me mobilizava muito

na época, muito mais do que hoje por estar exatamente questionando, foi muito difícil segurar.

Aquela coisa dela trazer: “ah, não sei porque essas coisas funcionam assim”. Eu pensava: “Ah, eu

também não sei”. Mas eu tinha que segurar, sabe, aquilo, para poder lidar com a vivência dela. E

foi um exercício muito grande meu de separar. Eu consegui, até, mais do que com a cliente

espírita, mas foi, era assim, aquela coisa de contar até dez e pensar: “opa, olha a pessoa aqui e

deixa o que eu estou sentindo pra lá”, sabe?. Interferia muito, com certeza.

- Você falou que é mais ou menos o mesmo exercício que a gente faz com outros temas, né?, com

outras coisas que a gente viveu, mas que com o tema religioso era diferente. Você vê alguma

diferença da vivência religiosa na vida da pessoa em relação a outras vivências ou não? Como é

isso?

- Ah, nem sempre. Se a gente fosse falar de espiritual, até acho que, de sentido de vida, de

coisas assim, eu até que acharia uma coisa mais parecida. Mas o religioso, eu não vejo que é

sempre mobilizador não, sabe? Não é todo cliente, toda pessoa que traz isso como uma

vivência forte, pra trazer isso para a terapia. Então, eu acho que não tem o mesmo peso não.

Agora, pra mim tinha pela vivência que eu estava tendo, assim como poderia acontecer se eu

estivesse separando do meu marido e alguém estivesse separando, isso seria mobilizador,

tanto é que, hoje, já não é tanto, nem posso considerar que é, já é muito mais fácil.

Page 181: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

181

- Mas quando uma pessoa tem uma experiência religiosa, uma coisa que mobiliza, quando ela

vive aquilo, você acha que isso tem um estatuto diferente na vida das pessoas em relação a

outras vivências, que isso é vivido de uma outra forma ou é como as outras vivências?

- Olha, não. Às vezes, eu acho que toma um estatuto diferente sim; inclusive, um dia desses,

eu estava pensando, até como um princípio organizador, de essa vivência religiosa meio que

organizar a vida. Tinha uma cliente minha, essa que eu te falei primeiro, que ela, durante os

primeiros anos de terapia, estava indo ao centro espírita e tudo. Depois, ela se afastou e ela

associa vários fatos que aconteceram de ruim na vida dela com esse afastamento. E quando

ela retomou, ela conseguiu reorganizar de uma maneira a vida dela, de uma forma que até me

espantou. Parece que aquilo ali era um chão para ela. Então, tomava algum significado

diferente. Era algo maior do que outras coisas. Isso, com certeza! Essa outra cliente que tem

uma vivência católica, que era parecida com a minha, até hoje, a vivência religiosa tem um

status diferente sim. Ela, inclusive, pensa em ser freira, sabe?; então, até a opção de vida, do

que ela vai seguir, tem a ver com isso. Então, toma sim: é um tema sempre recorrente, que, às

vezes, pesa mais do que outros. Era isso?

- Sim. É que eu queria entender como você via a experiência religiosa em relação a outras

experiências, a experiência afetiva, de sexualidade, qualquer outra...

- É, mas eu acho que é em casos específicos, porque eu vejo, pensando em um caso específico

aqui, de uma outra pessoa, que a experiência afetiva, por exemplo, tem um status muito

maior. O religioso até perpassa, mas o afetivo, as questões afetivas, são maiores. Então, eu

acho que vai muito de cada um, mas em algumas pessoas eu acho que toma sim.

Page 182: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

182

- Então, hoje, como é para você, quando você vai atender e a pessoa leva esse tema?

- Olha, é bem mais fácil, Giovana. Acho que foi tão difícil no começo, que hoje, eu até perdi a

noção de: “nossa, é um tema delicado!”. Porque, no começo, foi tão delicado, que agora está

mais tranqüilo. Eu não acho que ele toma um status diferente de outros, não. No começo,

tomou muito, mas, hoje, eu acho mais tranqüilo mesmo. Ainda não passei, sei lá, nos últimos

um/dois anos em que isso ficou mais fácil de lidar, depois desse processo que eu tive de

repensar isso, eu não tive nenhuma situação em que eu senti assim: “nossa, e agora?”, sabe?

Incomoda em alguns momentos, como incomodam outros temas, porque a gente está mais

sensível, mas não como uma coisa que toma como tomava. De chegar a ter que fazer um

movimento de: “espera aí, deixa eu... segurar minha onda aqui, deixar a pessoa...”

- Não é mais uma coisa que aparece e você tem que se ver com ela quando aparece.

- Não, de forma alguma. É bem mais fácil. Inclusive, teve uma vez que eu fiquei pensando,

quando a cliente relatou a sessão no centro espírita, ela relatou com muitos detalhes, até mais

do que a outra relatava, e as coisas que ela estava sentindo, que ela estava vivendo com isso, e

tudo. No final, é que eu fui me dar conta. Na hora, eu não me percebi, sabe?, de que era um

tema tão pesado antes. Depois da sessão, que eu fui escrever, que é um costume que eu tenho,

é que eu fui perceber: “olha, foi fácil!”. Não foi nada de outro mundo lidar com isso. Porque

antes, eu tinha uma tendência a mudar o assunto, sabe?, a não deixar aquilo render. Além de

fazer mal, eu fazia uma coisa que é completamente anti-fenomenológico, anti-Gestalt-terapia,

que é mudar o assunto, mudar o foco daquilo. Inclusive, é uma coisa que eu trabalhei em

supervisão, que eu trabalhei em terapia. Eu não dava conta de trabalhar com aquilo. E hoje,

não. Hoje, é normal, assim.

Page 183: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

183

- E o que mudou?

- Olha, foi interno. Foi uma coisa de... de saber que a vivência do outro não vai atingir a minha.

Porque eu acho que foi essa a sensação que eu tinha, que a vivência que o outro estava me

contando ali ia mudar a minha, ou ia me fazer questionar a minha, entendeu? Então, mudou essa

perspectiva de: “não, a minha é minha, a dele é dele”. Essa coisa de saber distinguir, que não tem

problema ser diferente. Porque isso era muito, Giovana, muito colocado na nossa cabeça, na

vivência religiosa que eu tive: de que o diferente é ruim. O diferente do católico, disso aqui,

bonitinho, é ruim. O protestante nem tanto, mas o espírita, o umbandista, ou o que quer que seja, é

ruim, não é diferente. Por mais que você tenha aquele discurso bonitinho, de falar que todos são

iguais diante de Deus, no fundo, tem aquela coisa de, inclusive de orações que falam assim:

“renuncie a isso, porque isso é do mal, é do diabo”. Aquela coisa bem pesada, sabe? Então, tinha

uma coisa dentro de mim muito contaminada com isso, ainda. Que era ligado à vivência mesmo.

- Isso, mesmo quando você já não estava participando desse grupo?

- O desligar do grupo foi um pouco coincidente com a formatura. Então, o atuar na clínica e o

desligar do grupo foi muito perto. Então, as coisas estavam muito misturadas ainda. Por isso,

eu precisei de um tempo para poder elaborar isso, para poder entender o que estava

acontecendo. A minha sorte é que, por causa da disciplina “Senso Religioso”, eu já estava

atenta para isso, porque senão, eu acho que eu nem ia perceber. Como eu tinha feito a

disciplina um pouco antes de formar, quando eu fui para a clínica, e como eu já estava

questionando, eu cheguei na clínica atenta: “nossa, se isso acontecer, como vai ser?”.

- Então, você identifica essa disciplina como uma coisa que te ajudou?

Page 184: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

184

- Sim, porque a gente não tem nada de religião na universidade, né? Isso é fato! Então, eu

acho que a gente não se prepara para esse tipo de coisa. Na verdade, a universidade não

prepara a gente para um caso de suicídio, sabe? Para um caso de – sei lá! – casos mais

pesados, assim. A religião não é um tema tratado e é um tema muito presente, sem dúvida. É

difícil um cliente que não traga isso de alguma maneira. Mesmo que não seja mais

significativo, de alguma forma aparece. Então, eu acho que é um tema muito mal tratado, e

que devia ser mais bem tratado. Exatamente por essas vivências que eu vejo, dessas pessoas

que eu conheço, que trabalham não atendendo pessoas espíritas. Então, olha a dimensão que

isso toma: de misturar, ali, a vivência dela com o trabalho, com a vivência da pessoa... não

tem essa separação. Então, a disciplina foi um marco sim, com certeza.

- E você falou um pouco da sua vivência. Quando você atendia, você pensava na implicação que

ouvir aquilo teria para você. Você pensava na implicação daquilo para a pessoa? Você pensava

em termos de saudável ou não, de ser bom ou ruim para ela aquilo que ela estava vivendo?

- É, às vezes... Eu tenho que parar e pensar o que eu trabalhei comigo, na época, sobre isso.

Mas, eu acho que tinha uma sensação, sim, de que essa vivência dela era errada, sabe?, tinha.

Eu acho que tinha, sim, porque já tinha essa visão ruim. Talvez, fosse melhor para ela se ela

estivesse vivendo outra coisa. Eu acho que isso passava, sim. E, de quando ver uma pessoa

igual, falar: “isso, você está no caminho certo”. Lá no fundinho, isso falava.

- Você vê algum efeito disso, dessas sensações? Como você avalia, hoje?

Page 185: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

185

- Ah, eu acho que tem efeito, sim. Eu acho que de uma forma ou de outra, a gente acaba passando

isso. Eu não sei te falar, acho que na época eu não fiz também um exame cuidadoso de como isso

estava acontecendo. Mas, provavelmente, isso tem um efeito. Acho que a pessoa pode trazer

menos a questão religiosa, por exemplo. A forma como a gente se coloca, até muda o assunto, faz

a pessoa não trazer o assunto mais. Acho que não passa uma coisa de acolhimento. E, querendo

ou não, você passa isso. Acho que não tem jeito da gente não passar isso. O que eu não sei dizer é

como eu via que isso era passado, porque, na época, eu não fiz uma coisa cuidadosa, não prestei

atenção, mas eu acho que passa. Eu acho que é passado mesmo, Giovana, como as outras coisas

são também. Igual a pessoa está contando lá: “porque eu bati na minha mulher”... De alguma

maneira, você passa. Se você não está segurando aquilo ali, você passa o julgamento. Eu acho que

passa, sim, e que a gente tem que ter muito cuidado. É muito delicado.

- E este tema, você acha que ele é mais delicado do que outros, hoje?

- Não. Não acho, não. Mais delicado?, não. Eu vou ser sincera, às vezes, para mim, o tema de

perda de sentido da vida, sem estar ligado, não necessariamente a uma religião, às vezes, é

bem mais pesado e delicado do que a religião em si. Trazer a religião como uma coisa

presente, de vivência, que influencia decisão, que influencia a vida da pessoa... uma questão

de perda de sentido... eu acho mais delicado do que a questão religiosa em si.

- E quando as pessoas vão colocando essas questões religiosas, você olha essas vivências também

em termos de elas estarem prejudicando as pessoas, ou não? Como é quando alguém traz uma

vivência que você vê que está de alguma forma atrapalhando a vida dela ao invés de ajudar?

- Ai, é difícil, né? Você fala no sentido de a pessoa tomar uma atitude em função da religião...

Page 186: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

186

- ... que você considere que esteja prejudicando.

- É... eu tento segurar a onda, porque eu acho que eu não tenho como fazer esse julgamento de

que está sendo ruim. Acho que, no máximo, trabalhar com ela como trabalharia outras coisas,

no sentido de como está sendo isso: “dentro dessa escolha que você está fazendo, o que tem

de bom e de ruim?, como é essa vivência?, como é fazer isso?”. E, se ela continuar achando

bom, eu acho que não tem como a gente interferir que é ruim. Às vezes, é difícil! A gente tem

que ter um cuidado, mas eu acho que não tem jeito de entrar para poder: “olha, está ruim, isso

não é certo, não faz isso”.

- Então, você não apontaria para ela, por exemplo, que ela poderia estar fazendo diferente, que

tem outras formas...

- Aí, eu acho que não, Giovana. Nunca aconteceu uma situação assim. Não me recordo de

nenhuma, mas eu acho meio complicado a gente apontar, sabe? Eu acho que é abrir à

reflexão. Se ela conseguir enxergar além disso, que ótimo! Eu acho que é um risco muito

grande você apontar aquilo ali como: “olha, isso aqui não está legal! já viu esse outro lado?”,

sabe? Acho que isso até cabe, fazer ver o outro lado, “você já pensou de outra maneira? É isso

mesmo? Isso em que você está acreditando está bom, está legal? É isso mesmo que você está

me falando, você já viu de outra perspectiva?”. Talvez até sim, mas apontar como um erro,

como: “isso não vai te fazer bem”, eu acho complicado. Principalmente, porque quando a

pessoa age totalmente em função da religião, é porque eu acho que está muito mergulhada

nisso, então é muito complicado. É, acho que abrir até pode, até cabe dentro do trabalho, mas

mostrar que é errado, eu já acho meio difícil. Agora, é angustiante. Eu acho angustiante de ver

a pessoa, às vezes, fazendo alguma coisa e a gente... mas também, que julgamento é esse

Page 187: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

187

nosso, né? Como é que você vai saber até que ponto isso é realmente totalmente ruim para

ela? É muito difícil julgar isso, mas a gente acaba pensando. Às vezes, mostrando, falando

algo, a pessoa pode até largar a terapia. Às vezes, uma palavrinha que a gente fala, a pessoa

vai ter a sensação de que a gente está condenando aquilo. Principalmente, se aquilo estiver

numa situação de conflito, em que ela mesma está sem saber, se toma uma decisão, ou se vai

para outro caminho. E essa decisão está movida pela religião. Então, qualquer coisa que você

deixar escapar pode fazer a pessoa falar: “olha, você está julgando e tal”. Eu acho muito

delicado esse ponto.

- Até porque, os pressupostos com os quais a gente trabalha são de estar com a pessoa e não

outra coisa.

- Exatamente. Então, se torna ainda mais difícil. Eu acho que trabalhar nessa perspectiva

fenomenológico-existencial, trabalhar com a vivência, trabalhar com aquilo que a pessoa

acredita, sem estar fazendo julgamento de valor o tempo inteiro, né? Que eu acho que é uma

tentativa, acho que a gente não consegue o tempo inteiro, plenamente, né? Não tem jeito, a

gente tem as nossas coisas, né? Então, este tentar tirar é muito difícil, é um exercício danado,

assim. Mas é uma coisa engraçada, eu não acredito que a religião tome tanto mais do que

outras mesmo não, sabe? Porque, por exemplo, uma opção de uma mulher que fica com um

marido que bate nela, que bate e ela opta por continuar com ele. Eu acho isso tão difícil como

uma opção movida por algo religioso, sabe? É tão difícil de lidar quanto. Então, não vejo uma

coisa tão diferente assim não. Hoje. Não vejo... acho que fica no mesmo, não é no mesmo

lugar, difícil falar isso. Mas acho que tem o mesmo peso.

- O mesmo peso para você enquanto está atendendo.

Page 188: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

188

- Sim. Eu não vejo que eu ia ficar: “nossa, a pessoa optou por... sei lá... um executivo que

ganha um tanto e resolve viver sem nada, dar tudo o que ele tem”. Eu podia ficar assim: “meu

filho, presta atenção!”. Ou alguém que me fala que bate, ou alguém que faz a opção de ficar

com um marido porque não pode separar, porque a religião não deixa, sabe?, ou isso. Eu não

colocaria como uma coisa diferente porque tem a religião.

- E foi esse processo reflexivo que te ajudou a estar encarando isso hoje?

- Sim, sim, sem dúvida. Antes eu não conseguiria, não. Sem esse processo, que foi assim,

difícil separar, eu acho que ficaria contaminada ainda. Acabaria que eu daria um peso maior

pra religião aqui do que em outra situação.

- À primeira vista, então, depois de formar, por não ter nenhum contato com essa questão, não

pensar, não refletir, não ter essa experiência pessoal, o primeiro contato foi mais difícil e com o

tempo você foi elaborando e conseguindo lidar com isso de uma forma bem mais tranqüila.

- Sim, com certeza. Não tenho mais aquela sensação de: “nossa, e agora?, o que eu faço com

isso?”. Não tem mais. No começo, era muito. Era incômodo, tanto é, que eu tive que cuidar.

Agora, hoje não. Hoje, é mais sereno.

- E você vê alguma relação disso com a sua crença pessoal, com o caminho que você tomou?

(silêncio)

Page 189: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

189

- Sim, acredito que sim, porque à medida que eu fui pensando e refletindo, a crença que eu

tinha antes mudou. Nem tanto a crença religiosa em si, mas a forma de ver isso. O meu

acreditar naquilo que eu acredito mudou um pouco. Como vou colocar isso na minha vida,

que lugar isso ocupa, isso é meu ou isso está entre eu e o outro, sabe? Porque acho que esse

foi o grande passo, assim, tirar do entre, saber que é meu. Que não pode, no trabalho clínico,

terapêutico, como a gente possa chamar, o trabalho em si, acho que não pode estar no entre,

porque se estiver, vai dançar tudo, sabe? Num momento ou outro, eu vou chegar de alguma

maneira pra ela, igual eu conheço situações assim, como eu tive uma cliente que assumia que

estava com uma terapeuta de casal. Eu a atendia e ela fazia com o marido com essa outra

pessoa. E, um dia, essa outra pessoa falou com ela que o único jeito que tinha para ela e o

marido dela era ir numa igreja, tal e tal, e deu até o endereço para ela. Então, está no entre,

está aí. A questão religiosa está entre os dois. E não pode, acho que isso não pode acontecer.

Acho que isso não é ético, não só por ser religião, mas como eu não poderia falar com ela para

ir lá, fazer o curso tal, que tem que ser feito, para melhorar. Não é por aí. Então, eu acho que é

complicado. No dia que a cliente chegou com o papelzinho na mão, olhou assim e falou: “e

agora, o que eu faço?” E a gente teve que trabalhar esse: “ah, e agora, o que eu faço?”, pois

essa cliente era espírita e a terapeuta era protestante, então o incômodo que eu senti, acho que

ela também sentiu. Nem aponto o dedo não, acho que ela não deu conta de lidar com isso.

Inclusive ela falou com a minha cliente: “olha, o problema é essa religião que vocês têm”,

sabe?, falou literalmente. E, aí, ela chegou: “e agora, o que eu faço?”. E a gente foi pensar. Eu

não podia falar com ela: “não vai”. “Então, vamos pensar. Como vai ser isso?, será que é isso

mesmo?, como foi quando ela te falou?”. Trabalhar a vivência dela. Até ela poder fazer a

opção dela. Foi difícil também fazer esse de: “não vai, não, porque ela está errada”. Mas

“vamos pensar junto, aqui”. Então, eu acho que se a gente não percebe que a crença é nossa e

que está aqui dentro da gente, e tira do meio aqui, é muito complicado.

Page 190: O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: impactos ... · primeira experiência clínica consistiu em um estágio na abordagem humanista, trabalhando com Plantão Psicológico1,

190

- E quer dizer, nesse processo todo, você não precisou abrir mão da sua crença, não é?

- Não, de jeito nenhum, de forma alguma. Foi esse trabalho, aí, que eu fui fazendo, de tirar

isso, de que as coisas não são assim, de ter uma outra percepção do que é o estar. O acreditar

naquilo que eu acredito e conviver com pessoas que não acreditam. Isso foi bom até fora do

trabalho, pra outras coisas também.

- Então, hoje, mesmo tendo sua crença e considerando, ouvindo outras, que são

completamente diferentes, você tem lidado com isso como com outros temas que pra nós,

clínicos, é diferente do cliente, não é?

- Com certeza, e que pode ser difícil. Não tem um status diferente, porque não tem um

significado diferente para mim mais. Porque, antes, a religião tinha um significado diferente

no trabalho. Era aquela coisa de: “ai, meu Deus, o que eu faço com isso?”. Hoje, não é, então,

é como outra questão, que pode um dia também travar, mas não vai ser porque tem um status

assim, mas porque em algum momento pode mexer. Se uma mulher falar para mim que não

vai se separar do marido, mesmo ele batendo nela, porque a religião não deixa, eu vou ficar

incomodada, mas não é porque é religião só, entendeu? Não só por isso.

(silêncio)

- Legal.

- É isso.