O que é Etnomatemática

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

    1. O que Etnomatemtica A Construo do conceito Etnomatemtica Introduo Desde o fim do sculo XIX os etngrafos j utilizavam-se do termo Etnocincia (Sturtevant - 1964) e conceitos com ele relacionados como Etnolingustica, Etnobotnica, Etnozoologia, Etnoastronomia, etc., com concepes bem diferentes da que hoje utilizamos para a Etnomatemtica. Vamos tratar da Etnomatemtica seguindo sua histria, pois assim acredito possa chegar mais perto do que entendo por este termo to polmico. Em primeiro lugar o prefixo Etno se refere a Etnia, isto , a um grupo de pessoas de mesma cultura, lngua prpria, ritos prprios, etc., ou seja caractersticas culturais bem delimitadas para que possamos caracteriz-los como um grupo diferenciado. No Brasil, por exemplo, temos uma quantidade muito grande de grupos tnicos, se pensarmos somente os ndios, hoje tem-se como certo a existncia de 153 tribos diferentes, 153 culturas com lnguas prprias, ou seja 153 etnias indgenas conhecidas. Cada etnia constri a sua Etnocincia no seu processo de leitura do mundo. a construo do conhecimento para a explicao do fenmeno, e, logicamente, cada uma dessas leituras feita de forma bem diferente. Atualmente, o termo Etnocincia prope a redescoberta da cincia de outras etnias, que no a nossa cuja cincia advem da cultura ocidental. Etno, ento, refere-se ao sistema de conhecimentos e cognies tpicas de uma dada cultura. O termo Etnocincia mesmo passou por vrios significados desde o seu aparecimento. Como minha proposta vamos tentar entender todos estes significados para ento tentar conceituar Etnomatemtica. Etnocincia No dicionrio etnolgico de Panoff e Perrina (Panoff-Perrina - ) aparece duas definies de Etnocincia: a primeira diz que o ramo de etnologia, que se dedica a comparar os conceitos positivos das sociedades exticas com os que a cincia ocidental formalizou no quadro das disciplinas

  • 2

    constituldas. Chamamos a ateno para os termos positivo e extico, que caracterizam uma posio eurocentrista e, mesmo, preconceituosa, tpicas do incio do sculo passado, imbuida da corrente positivista. Quando Levis-Strauss ( Levis-Strauss - ) se refere a Etnozoologia escreveu que: o conhecimento positivo que os nativos ( da regio estudada) possuem a respeito de animais, a tcnica e rituais usados com os quais eles trabalham e as crenas que tm em relao a elas. Isto nos coloca de imediato frente as seguintes perguntas: O que so conhecimentos positivos? O que seria um conhecimento negativo? O que seria uma sociedade extica? Existe uma cincia ocidental diferente de outras cincias, digamos oriental, astral, etc.? A segunda definio de Etnocincia dada por Panoff e Perrina como sendo toda e qualquer aplicao das disciplinas cientficas ocidentais aos fenmenos naturais que so apreendidos de outra forma pelo pensamento indgena. Todas estas concepes advm dos trabalhos de Malinovisk e Boas, que foram os pioneiros na etnografia, em um contexto de uma poca colonialista. Mas continua ainda sendo um conceito aceito por muitos pesquisadores, como por exemplo o casal Acher quando se refere a Etnomatemtica explicita como sendo a matemtica de povos no letrados, reconhecendo, como pensamento matemtico, noes que de alguma maneira correspondem ao que temos em nossa cultura. Mas o que so povos letrados? Para mim no existe povos no letrados, pois o conceito de escrita que advogo muito amplo. Qualquer forma de registrar algum conhecimento chamo de letramento, assim os Guaranis registram suas vidas em seus cocares, pode-se ler um cocar guaran e saber praticamente toda a vida do seu proprietrio. Por outro lado as pinturas corporais, habito bem difundido em quase todas tribos indgenas, tambm uma forma de escrita, pois cada uma delas tem uma representao bem explicita. Todo artesanato admite um leitura quer no seu desenho, que na sua forma. Isto tudo comum no saber-fazer de quase todos povos. No conheo nenhuma etnia que no tenha alguma maneira de representar seus conhecimentos, portanto desconheo povos no-letrados neste meu sentido. Por outro lado esses autores tambm acreditam que a matemtica s passou a existir com a escrita, no sentido de representar por letras as palavras e que a Etnomatemtica no faz parte da Histria da Matemtaica ocidental. Se lembrarmos o quanto a matemtica egpcia, portanto oriental, contribuiu para a matemtica grega, teramos que perguntar como esta matemtica egpcia no estaria dentro do que para eles seria a matemtica ocidental? Isto sem deixarmos tambm de levarem conta todo conhecimento matemtico mesopotnio, que tambm foi fortemente usado na construo da matemtica grega. Gostaria de citar tambm um etnolingustico Favrod, que em seu livro tenta uma definio de sua cincia como: A Etnolingustica tenta estudar a

  • 3

    lngua ou a linguagem nas suas relaes com o conjunto da vida cultural e social. Numa das primeiras aproximao para a Etnomatemtica, Paulus Gerdes se apropria muito bem desta definio e escreveu: A Etnomatemtica tenta estudar as idias matemticas na suas relaes com o conjunto da vida cultural e social, o que tambm bem caracteriza o que Struik chamou em 1986 de Sociologia da Matemtica. O nascimento da Etnomatemtica Depois do fracasso da Matemtica Moderna, na dcada de 70, apareceram, entre os educadores matemticos, vrias correntes educacionais desta disciplina, que tinham uma componente comum a forte reao contra a existncia de um currculo comum e contra a maneira imposta de apresentar a matemtica de um s viso, como um conhecimento universal e caracterizado por divulgar verdades absolutas. Alm de perceberem que no havia espao na Matemtica Moderna para a valorizao do conhecimento que o aluno traz para a sala de aula, proveniente do seu social, estes educadores matemticos voltaram seus olhares para este outro tipo de conhecimento: o do vendedor de rua, estudado por Nunes e Caraher, das bricadeiras, dos pedreiros, dos arteses, dos pescadores, das donas de casas na suas cozinhas, etc.. Nasce, ento termos metafricos para designar esta matemtica de diferenci-la daquela estudada no contexto escolar: 1 Cludia Zalavski, em 1973, cham de Sociomatemtica as aplicaes da matemtica na vida dos povos africanos e, inversamente, a influncia que instituies africanas exerciam e ainda exercem sobre a evoluo da matemtica, sendo esta a abordagem mais significativa de seu trabalho. 2 DAmbrosio, em 1982, denominou de Matemtica Espontnea os mtodos matemticos desenvolvidos por povos na sua luta de sobrevivncia. 3 Posner, tambm em 1982, designa de Matemtica Informal aquela que se transmite e aprende fora do sistema de educao formal, isto levando em conta tambm o processo cognitivo. Neste mesmo ano iniciei um trabalho de pesquisa deste conhecimento, junto com meus alunos na disciplina Matemtica e Sociedade na UNICAMP. Tambm neste ano os Caraher e Schliemann introduzem o termo Matemtica Oral, em seu livro Na Vida Dez, Na Escola Zero, quando trata do meninos vendedores de rua no Recife. 4 Ainda neste ano Paulus Gerdes chamou de Matemtica Oprimida aquela desenvolvida em pases subdesenvolvidos, onde pressupunha a existncia do elemento opressor: sisstema de governo, pobreza, fome, etc..

  • 4

    5 Mais tarde, em 1987, Gerdes, Caraher e Harris utilizaram o termo Matemtica No-Estandartizada para diferenciar da standar ou acadmica. 6 Outro termo usado por Gerdes em 1985 foi de Matemtica Escondida ou Congelada, quando estudava as cestarias e os desenhos em areia dos moambicanos. 7 Mellin-Olsen, em 1986, chama de Matemtica Popular aquela desenvolvida no dia a dia e que pode ser ponto de partida para o ensino da matemtica dita acadmica. 8 Eu mesmo me utilizei em 1986 do termo Matemtica Codificada no Saber-Fazer para este conhecimento. Ubiratan DAmbrosio, se utiliza em 1985, pela primeira vez o termo Etnomatemtica, isto no seu livro: Etnomathematics and its Place in the History of Mathematics, onde o termo esta inserido dentro da Histria da Matemtica. Este autor cita que em 1978 utilizou este termo numa conferencia, que pronunciou na Reunio Anual da Associao Americana para o Progresso da Cincia, que infelizmente no foi publicada. Um fato importante foi a criao, em 1986, do Grupo Internacional de Estudo em Etnomatemtica (IGSEm) congregando pesquisadores educacionais de todo o mundo que estavam, de alguma maneira, pensando digamos nesta rea do conhecimento e, principalmente, em como utiliz-la em sala de aula. Primeiras tentativas de conceituao J no primeiro Newsletter do IGSEm de 1986, temos uma definio aproximada da Etnomatemtica como a zona de confluncia entre a matemtica e a antropologia cultural, mas ainda persistem as metforas como Matemtica-no-Contexto-Cultural ou Matemtica-na-Sociedade. Outra definio de Etnomatemtica que se tem neste mesmo jornal uma definio particular (ou peculiar): caminho que grupos particulares especficos encontraram para classificar, ordenar, contar e medir.

    Matemtica Etnomatemtica Antropologia cultural

  • 5

    O primeiro pesquisador que tentou agrupar as vrias tendncias foi Huntig dizendo que Etnomatemtica a matemtica usada por um grupo cultural definido na soluo de problemas e atividades do dia a dia. Outro pesquisador que deu uma tima aproximao foi DAmbrosio quando, em 1987, escreveu: ...as diferentes formas de matemtica que so prprias de grupos culturais, chamamos de Etnomatemtica. Ainda se discute muito este termo, para os antroplogos parte da Etnologia de um grupo, para os educadores um mtdo educacional da matemtica e para outros pesquisadores, como DAmbrosio e Gerdes um sub-conjunto da Educao, que contm a Matemtica como sub-conjunto. Toda esta polmica leva os pesquisadores a terem certa prudncia no uso deste termo, levando a explicitar sempre que usar a que conceito esta se referindo. Eu me utilizei certo tempo do expresso Matemtica Materna, numa associao com a Lngua Materna, termo j consagrado pelos lingustas, isto quando queria me referir aos conceitos matemticos que os estudantes trazem para a escola, oriundos de seus contextos sociais; conceitos estes contruidos socialmente ou de origem antropolgica, quando passados de uma gerao outra. Concepo de DAmbrosio e de Gerdes Mas, mesmo com estas trs incluses, ainda difcil precisar um conceito para Etnomatemtica, foi pensando nisto que Bishop escreveu: ... um conceito que ainda no encontrou sua definio. Em face das idias e afirmaes que temos, talvez fosse mais apropriado no usar ainda este termo na busca de um melhor entendimento ou, se optarmos por utiliz-lo, devemos precisar claramente a conceituao que estiver sendo a ele aplicada. Nesta linha prudncia, que compartilho, Gerdes chama, ento, de Acento Etnomatemtico referndo-se a pesquisa em si e de Movimento Etnomatemtico quando for utilizado pedagogicamente. Para ele Etnomatemticos salientam e analisam as influncias de fatores scio-culturais sobre o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento da

    Educao

    Etnomatemtica

    Matemtica

  • 6

    matemtica., isto para se referir aos pesquisadores nesta rea de conhecimento. Este estudo leva a ver a Matemtica como um produto cultural, e, ento, cada cultura, e mesmo sub-cultura, produz sua matemtica especfica, que resulta das necessidades especficas do grupo social. Como produto cultural tem sua histria, nasce sob determinadas condies econmicas, sociais e culturais e desenvolve-se em determinada direo; nascida em outras condies teria um desenvolvimento em outra direo. Pode-se ento dizer que o desenvolvimento da matemtica no-linear, como querem alguns matemticos. Por uma teoria da Etnomatemtica A busca de uma teoria para a Etnomatemtica hoje objeto de empenho dos educadores matemticos que se dedicam ao estudo e pesquisa desse movimento. Para dar uma viso de quando essa corrente ser definitivamente enunciada e aceita pela comunidade cientfica como teoria, temos que recorrer aos filsofos da cincia, pois so eles os responsveis por caracterizar uma corrente cientfica, ou como dizem os kuhnianos, quando se tem uma cincia normal. Um dos nomes mais citados na filosofia da cincia, Sir Kar Popper, discute a questo sem nos revelar os caminhos que deve seguir um movimento cientfico para se tornar uma teoria. Segundo Popper, a cincia um casamento entre a metafsica e a tecnologia, mas ele no explica como, onde e quando se d esse casamento: Ns inventamos nossos mitos e nossas teorias e os pomos a prova. Ainda em seu texto, lemos: Vem-se teorias como livre criao de nossas mentes, o resultado de um intuio quase potica. Tendo em mente uma teoria em contruo, como por exemplo a Etnomatemtica, evidentemente que no a Popper que devemos recorrer para estudar o nascimento de uma cincia, pois at que ponto podemos caracterizar um movimento como um mito, no sentido da crena ou saber, quando estamos trabalhando no contexto de uma intuio potica? Recorremos ento a outro filsofo da cincia que, no meu entender, responde a estas questes: Thomas S. Kuhn. Kuhn nos fornece com certa clareza os caminhos que devem ser percorridos por um acento cientfico, desde o seu nascimento at sua ruptura, atravs de uma revoluo, ...mesmo sendo a cincia praticada por indivduos, o conhecimento cientfico intrinsecamente um produto de grupo e impossvel entender tanto a sua eficcia peculiar como a forma de seu desenvolvimento, sem fazer referncia natureza especial dos grupos que a produziram. Nesse sentido, o trabalho

  • 7

    desses grupos tem profundas razes sociolgicas, mas no de uma maneira que permita separar o sujeito de espistemologia. Antes de tentar fazer uma anlise kuhniana da Etnomatemtica, procuremos caracterizar esse movimento como uma pesquisa. No meu entender, h trs vises diferenciadas da Etnomatemtica: em primeiro lugar, ela pode ser vista como uma parte da Etnocincia e, nesta viso, estaria dentro da pesquisa antropolgica que acredito ser uma cincia normal. Matemtica, muitas vezes chamada de Antropologia Matemtica. Uma segunda maneira de ver a Etnomatemtica como uma pesquisa em Histria da Matemtica. Esta concepo tem seu lugar resguardado pela comunidade cientfica e h vrios pesquisadores que estudam a Etnomatemtica neste ponto de vista. Esta viso baseada na crena de uma evoluo cultural, ento os grupos tnicos estariam em um certo estgio histrico da matemtica, deixando para o estgio mais superior a matemtica ocidental. Estudemos, ento, o seu desenvolvimento como teoria educacional, pois com este sentido que usarei o termo Etnomatemtica. Na tentatica ento de encarar a Etnomatemtica como uma teoria educacional, voltemos a Kuhn. Temos que entender primeiramente o que para ele um paradigma , pois o paradigma tem que existir antes da teoria, e nosso propsito e ver se a Etnomatemtica como teoria educacional de fato uma teoria. O que vem a ser um paradigma para Kuhn? Filosoficamente, o paradigma um artefato que pode ser utilizado como expediente na soluo de enigmas. e a cincia normal se caracteriza pela soluo de enigmas. O cientista normal um adepto da soluo de enigmas - no apenas um mero ` solucionar de problemas`, mas uma soluo de enigmas - que consiste, prototipicamente, a `cincia normal`. Cientsta normal aqui no sentido daquele que pratica a cincia normal. Ento, paradigma para ele a instrumentao da cincia para a resoluo de enigmas. Assim, para qualquer enigma que deva ser solucionado pelo emprego do paradigma, este ter de ser uma construo, um artefato, um sistema, um instrumento com seu manual de instruo - para que possa ser utilizado com xito - e um mtodo de interpretao do que esse instrumento faz. Num estudo feito sobre a obra de Kuhn por Margareth Masterman, ( A natureza do Paradigma - A critica e o desenvolvimento do conhecimento ( 1970 ) Edt. USP) , a autora encontrou 21 definies de paradigmas, que ela consegui categorizar me trs grupos: 1 - Paradigma Metafsico ou Metaparadigma - um conjunto de crenas, um mito, um modelo e um novo modo de visualizao;

  • 8

    2 - Paradigma Sociolgico - uma realizao cientificamente reconhecida, uma realizao cientfica concreta, um conjunto de instituies polticas, deciso judicial aceita e um conjunto de hbitos; 3 - Paradigma de Construo ou de Artefato - um manual ou obra clssica, um fornecedor de instrumentos ou uma instruo real. Acredito que as trs caractersticas acima sustentam, corroboram a existncia do paradigma, pois este deve ser, simultaneamente: metafsico, como crena; sociolgico, como movimento aceito e reconhecido pela comunidade; e construtivo, como manual de direcionamento de pesquisa. Sendo, pois, o desenvolvimento da Etnomatemtica estudado como teoria educacional, com seus paradigmas que, naturalmente a precedem, que enigmas se prestaro a resolver? A pergunta natural ento colocada : qual o enigma da Etnomatemtica? Poderamos responder que, para os estudiosos, o grande enigma da Etnomatemtica atualmente : como se apropriar do conhecimento tnico na sala de aula, buscando uma educao com significado? Como fazer a ponte entre este conhecimento e o conhecimento dito institucional? Para resolver este enigma, o paradigma-artefato de que dispomos a modelagem, cujo conceito se assemelha em muito concepo de modelagem de Rodney Bassanezi, quando encarada em carter espiral. A primeira fase ou o primeiro degrau desta modelagem que caracteriza o paradigma da Etnomatemtica, dentro da Educao Matemtica. O sentido de espiral da Modelagem Matemtica visa em modelar matemticamente conceitos, idias, mitos, jogos, artefatos, etc, comeando pelo saber-fazer do grupo (Etnomatemtica), seguindo depois por modelar a realidade do grupo agora influenciada por fatore exteriores a ela, como meios de comunicaoes, seguindo com a modelagem agora a comunidade vista dentro de um grupo social mais amplo, etc. , este o sentido espiral que dou Modelagem Matemtica. Voltando a Kuhn, a noo de que a cincia normal consiste na soluo de enigma ( e portanto, de que um paradigma tem que ser um artefato), levou a perguntar a si mesmo: se h soluo de enigma, onde esto as regras? Ele mesmo responde: No h regras, mas sim, preocupaes, pontos de vista estabelecidos, uma rede de semelhanas familiares imbricadas e entrecruzadas. A temporalidade do paradigma tambm abordado por Kuhn, quando ele descreve a reformulao do paradigma dentro da cincia qualitativa. Com isto, o paradigma no admite ser descrito em termos de inferncia matemtica institucional, pois isto j ocorreu na cincia normal. Quando modelamos matemticamente, usamos a linguagem matemtica, ou seja, usamos um instrumento da cincia normal para criar a semelhana ou o concretismo de que necessitamos e dispomos, mas no o paradigma em si que admite esta

  • 9

    crueza. A crueza do paradigma o modelo, todo o processo de modelagem, sendo a formulao matemtica uma parte importante desta semelhana, mas no o seu mago. No podemos descartar a etnografia, etnologia, a validao e, principalmente, a ao de retorno da modelagem comunidade. Sem esses passos teramos, sem dvida um cincia normal e no poderamos , portanto, falar em um paradigma pr-terico (antes da teoria). Podemos dizer, ento, que para Kuhn este artefato muito mais um modo de ver, uma afirmao, no sobre o seu `uso-a-saber`, no qual sendo ele a imagem de alguma coisa, usado para representar outro. Esta a concepo da qual compartilho. O paradigma a imagem concreta de uma coisa A, usada analiticamente para descrever outra coisa concreta B. Seu concretismo ento tem duas espcies, ou seja, concretismo imagem e descrio de coisas diferentes. Assim sendo, podemos afirmar que a Etnomatemtica, com seu enigma e com seu paradigma-artefato estabelecidos, um paradigma kuhniani. J deixou de ser um pr-paradigma pois, reportando-nos a Kuhn, o desenvolvimento da cincia apresenta trs fases: 1. Pr-paradigma ou cincia no-paradigma - definida pr Kuhn como um estado de coisas que se observou logo no primeiro processo reflexivo sobre qualquer aspecto do mundo, isto , na fase em que no existia paradigma. Os fatos facilmente so coligidos e, assim mesmo, na forma causal; 2. Cincia multi-paradigma - onde h um excesso de paradigmas, tcnicas to grosseiramente divergentes umas das outras que persiste a discusso sobre as questes fundamentais e o processo a longo prazo deixa de ocorrer; 3. Cincia bi-paradigma - anterior `a revoluo temos o perodo bi-paradima. verdade que o mais cru dos dois paradigmas propicia uma viso central da natureza do campo. Dessa forma, ainda que a crueza deste paradigma restrinja e torne a pesquisa mais rgida, esotrica e precisa, tm-se uma revoluo, uma ruptura epistemolgica que o faz triunfar sobre o primeiro paradigma. No pr-paradigma, na fase de coligir informaes, comum aparecerem sinnimos da cincia, tanto no reflexo imediato como na similitude de alguma coisa conhecida. Esta coisa conhecida nem sempre est ao alcance do pesquisador e, por essa razo, ele usa uma metfora para criar a similitude. Metfora, no sentido de expresso figurada, aproximao aparente impossvel de dois termos, dando-se ento a ruptura semntica, ruptura esta que cria a metfora. As metforas tambm so categorizadas em dois tipos: as mortas, que tm significado no dicionrio, e as vivas, sem significado no dicionrio, mas com significado no discurso.

  • 10

    Quando Paulus Gerdes, na introduo Sobre o conceito de Etnomatemtica de seu livro Estudos Etnomatemticos (1988) descreve como os pesquisadores tentam dar um sinnimo Etnomatemtica, estes o fazem atravs de metforas. Assim algumas das expresses metafricas que aparecem na literatura para Etnomatemtica foram: Zaslawsky (1973) - Sociomatemtica (metfora morta); DAmbrosio (1982) - Matemtica Espontnea ( uma metfora viva, pois

    para o Aurlio - espontnea a que se desenvolve ou vegeta sem interveno humana);

    Posner (1982) - Matemtica Informal (metfora morta, pois j est bem caracterizado o que formal, apesar da temporalidade da forma matemtica);

    Caraher(1982), Kane (1987) - Matemtica Oral (metfora morta); Gerdes (1982) - Matemtica Oprimida (metfora viva); Caraher (1982), Gerdes (1982), Harris (1987) - Matemtica No-

    Estandartizada (metfora morta, se soubermos o que estandar ou padro para a matemtica, mesmo a matemtica dita ocidental temporal, sua forma depende da poca);

    Gerdes (1982 - 1985) - Matemtica Escondida ou Congelada (metfora viva);

    Mellin-Olsen (1986) - Matemtica Popular ou do Povo (metfora viva); Sebastiani (1987) - Maatemtica Codificada no Saber-Fazer (metfora

    viva). Todas estas linguagens metafricas caracterizam um pr-paradigma, pois, o paradigma precisa ser uma `imagem` concreta, usada analogamente, porque precisa ser um `modo de ver`. Hoje temos o paradigma Etnomatemtica, pois Gerdes no seu livro j citado, nos fornece uma caracterizao da Etnomatemtica, este modo de ver ao salientar e analisar as influncias dos fatores scio-culturais sobre o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento da matemtica. O termo matemtica aparece na literatura quase sempre no sentido de produto cultural, universal e linear, os pesquisadores em Etnomatemtica buscam dar um sentido de construo humana, ento, dependente temporalmente e culturalmente para a matemtica. Minha afirmao de que a Etnomatemtica tem o estatus de paradigma kuhniano vem pela afirmao de Kuhn o paradigma precisa ter a propriedade do concretismo ou `crueza`, isto quer dizer que ele precisa ser literalmente, um modelo, uma imagem, uma seqncia analgica (desenho de usos de palavras na linguagem natural), ou alguma combinao destas trs coisas. Uma concepo assemelhada leva-nos a afirmar que a Etnomatemtica um paradigma para a Educao Matemtica, pois apresenta

  • 11

    estas trs caractersticas: um modelo, uma imagem e tem uma seqncia analgica na linguagem natural. Se, por um lado, podemos falar em um acento etnomatemtico, um movimento etnomatemtico e mesmo uma filosofia etnomatemmtica , garantindo sua caracterizao como paradigma, ainda no temos uma definio do que vem a se a Etnomatemtica, ou seja, ainda no uma teoria. Concordo mais uma vez com Kuhn, o paradigma j existe quando a teoria ainda no existe. Compartilho tambm das idias de Alan Bishop que, em seu Mathematical Enculturation (1988), alerta sobre a necessidade de uma certa prudncia no falar deste conceito, por este ainda no ser uma teoria; mas, por outro lado, como modo de ver, a Etnomatemtica j possui sua garantia como paradigma. Tentativas atuais de conceituao No ICME de Budapeste (1988) Nebres, em sua conferncia, num desafio aos educadores matemticos para a dcada de 90, falou especificamente de trs elos de uma corrente ainda no delineada na poca: (i) Etnomatemtica, (ii) Matemtoca Escolar e (iii) Matemtica Pura Superior. Disse ele que nos anos 60 buscava-se estabelecer vnculos mais estreitos entre (ii) e (iii), trans portanto os objetos e estruturas de (iii) para (ii), e que no ano de 1988 iniciou-se um grande esforo no sentido de vincular (i) e (ii). No ICME seguinte, que aconteceu em Quebec (1992), na reunio do ESGEm, DAmbrosio levantou a necessidade de se buscar a homogeneizao conceitual, a prpria definio de Etnomatemtica, sendo construda atravs da investigaes emprica e teorizao. Mas isto no seria primordial, uma vez que o mais importante seria chegarmos todos a um consenso. Isto mostra a preocupao dos pesquisadores em Educao Matemtica em encontrar um denominador comum para a Etnomatemtica, isto porque esta corrente j estava tomando seu estatus na educao, com pesquisas importantes aparecendo em todas revistas especializadas. Outro pesquisador em Educao Matemtica, Powell, escreveu que existem duas vertentes de Etnomatemtica: a de DAmbrosio e a de Ascher, que, apresar de diferentes, no so conflitantes. Isto aparece claramente j nos primordios da Etnomatemtica, para o primeiro era a Matemtica Espontnea e para Ascher a Matemtica dos Povos no Letrados. Na falta de uma teoria e de uma definio precisa, DAmbrosio propos um Programa Etnomatemtico; para ele, um programa no sentido de Lakatos, isto , como ele mesmo escreveu: A metodologia do programa de pesquisa denominado Etnomatemtica deve ser muito amplo. Ele focaliza a

  • 12

    gerao, organizao e difuso dos conhecimentos, e no difundir que entra a parte da Educao. Estes quatros ramos correspondem ao que usualmente estudado como: cognio, epistemologia, histria e sociologia do conhecimento, incluindo a Educao. O mesmo autor, fazendo um estudo etimolgico da palavra Etnomatemtica, d uma aproximao do seu pensar sobre seu programa: a arte ou tcnica (techn = tica) de explicar, de entender, de se desempenhar na realidade (matema), dentro de um contexto cultural prprio(etno). Por outro lado, o seu conceito de etno tem uma abrangncia muito grande, refere-se a grupos culturais identificveis, seus exemplos mostram o que ele entende por estes grupos: sociedades nacionais, sociedades tribais, grupos sindicais e profissionais, crianas de uma certa faixa etria, etc. e inclui memria cultural, cdigos e smbolos. Outra vertente apontada por Powell a Etnomatemtica no ponto de vista de Marcia Archer. A autora se restringe ao conhecimento de povos no-letrados, retirando o termo primitivo, por este estar carregado da conotao evolucionista, que pode ser to complexa como a das idias matemticas ocidentais. Para ela existem idias matemticas de povos no-letrados mas no existe matemtica, pois esta nasce no pensamento ocidental. Marcia Ascher no d ao seu trabalho um carter explicitamente pedaggico. Temos que citar o trabalho de Gelsa Knijnik, no Brasil, que teve repercusso internacional. A autora, em sua tese com os Trabalhadores Sem-Terra do Brasil, desenvolveu o que chamou de uma Abordagem Etnomatemtica, o que tem para ela o significado de : A investigao das concepes, tradies e prticas matemticas de um determinado grupo social, no intuito de incorpor-las ao currculo como conhecimento escolar. Crticas Etnomatemtica As maiores crticas Etnomatemtica vm dos seguintes autores: Milroy, Dowlling e Taylor. O primeiro fala do paradoxo da Etnomatemtica quando pergunta: Como pode algum que foi escolarizado dentro da Matemtica Ocidental convencional `ver` qualquer outra forma de Matemtica que no se parea com esta Matemtica, que lhe familiar? O autor tem razo em parte na sua preocupao, existe muitas pesquisas em Etnomatemtica com a preocupao somente de traduzir o saber de um grupo social para a Matemtica Institucional. Tive contato com vrias pesquisas de tribos indgenas brasileiras onde os ndios contam muito pouco, at trs, quatro ou cinco e depois dizem muito e o pesquisador afirmar que tm um sistema de numerao de base trs, quatro ou cinco. Isto para mim um abuso do que o Milroy chama a ateno, e tentar transplantar dentro do cultural do outro a

  • 13

    cultura do pesquisador. Por outro lado, meu trabalho com algumas tribos brasileiras tem me mostrado que com algum esforo se consegue desvencilhar de algum maneira do poder desta Matemtica Ocidental e poder ver a matemtica do outro com um olhar mais abrangente. Quando se consegue fazer isto todo um mundo de surpresas nos aguarda, e a reside, para mim, todo o grande valor da Etnomatemtica. Cito como exemplo algumas tribos indgenas brasileiras onde a unidade o dois e no o um, como chegou para ns atravs dos gregos. Para eles tudo se relaciona com essa paridade, tudo deve ter seu companheiro. bem a construo social de uma matemtica pois esses ndios so monogmicos, onde o ncleo familiar se faz com o casal. Apesar de meu mundo girar entorno de uma concepo onde o um a unidade, pude ver em outros sociedades onde o dois desempenha esse papel. Por outro lado, as crticas de Dowling se referem ao discurso da Etnomatemtica que, segundo ele, uma manifestao ideolgica. Diz ele que a sociedade heteroglssica, composta de uma pluralidade de comunidades culturais, e as comunidades so monoglssicas; e como a Etnomatemtica faz falar estas comunidades, ento ela tem um discurso ideolgico monoglssico, onde o falar de um subgrupo privilegiado em relao ao falar de toda a sociedade que o contm. Talvez eu possa rebater essa argumentao dizendo que o Proposta Pedaggica da Etnomatemtica no se restringe ao trabalho com um grupo fechado em si, como se fosse um geto, mas pensa tambm numa educao global, principalmente nos dias de hoje onde os meios de comunicao transforma rapidamente os grupos culturais, incorporando conhecimento com grande dinamismo. Da Modelagem Matemtica, no sentido espiral, na Educao de hoje ser, pelo menos para mim, o que consegue a formao plena do cidado. Taylor, por sua vez, critica a Etnomatemtica afirmando que ela tem um discurso poltico pedaggico, mas no epistmico. Diz ele que ela tenta discutir epistemologicamente, mas seu discurso fica somente na relao poltica-pedaggica, isto , a Etnomatemtica no se preocupa com o ato de aprender, esquece da cognio e privilegia to somente o ato de ensinar. Essa critica se pode fazer mais apropriadamente, no meu entender com outros paradigmas educacionais da matemtica, como a Matemtica Moderna por exemplo. Mas um dos princpios fundamentais da Etnomatemtica , no trazer para a sala de aula o conhecimento social do aluno, fazer com que a matemtica tenha significado para o aprendiz, isto para mim uma preocupao cognitiva. Quando se procura em dar significado a um conceito, isto faz com que o ato de apre-ender este conceito seja mais pleno e o aprendiz se aproprie dele, incorporando-o na sua realidade subjetiva. Dowling faz um crtica especfica ao trabalho de Gerdes, crtica esta nos seguintes pontos: primeiro, diz que Gerdes projeta o modelo europeu de

  • 14

    matemtica sobre a cultura moambicana e, com isto, coloca a cultura moambicana como inferior a europia. Uma segunda crtica que Gerdes descongela o saber artezanal moambicano com a matemtica ocidental, ou seja, uma espcie de traduo simplesmente, mas Dowling afirma que ao fazer isto no respeita a matemtica do cesteiro, por exemplo, isto , cai no paradoxo de Milroy. Acredito que esta critica poderia ser aceita se olharmos friamente os primeiros trabalhos de Gerdes, sem conhecer todo seu empenho no desenvolvimento econmico de seu pais, usando para isto seu conhecimento matemtico e sua sensibilidade, todo seu empenho poltico-pedaggico no crescimento da nao moambicana. Hoje todos os pesquisadores educacionais conhecem o artesanato daquele pais e o conhecimento matemtico que esta envolvido no seu fazer. A Etnomatemtica como modelo pedaggico. Uma primeira pergunta que se coloca : Porque se ensina Matemtica? Ou mais precisamente: Porque a Matemtica aparece em todos os currculos escolares do mundo? Acho que todo Educador Matemtico tem sua prpria resposta para essa indagao, eu acredito que isto se deve ser esta cincia a que permite mais rapidamente chegar a abstrao. Por outro lado, o avano cognitivo do ser humano passa necessariamente pela abstrao. evidente que temos outras disciplinas que aprofundam mais a abstrao, como por exemplo a filosofia, mas a matemtica chega mais rpido, uma criana de 7 anos j se solicita que abstraia nmeros, por exemplo. A matemtica, ento, um componente cultural muito importante, solicitado no desenvolvimento da inteligncia humana. Por outro lado, se pretendemos, por esta componente, conduzir uma criana abstrair conceitos, isto ter que ser feito numa pedagogia adequada para essa finalidade. Creio que a mais adequada partindo do saber-fazer do estudante, chegar com ele na construo do conceito abstrato.

    O execesso de trabalho com materiais concretos acaba por desfazer essa funo primordial da matemtica, que levar a criana abstrao. Logicamente, a criana necessita partir do concreto, isto , daquela realidade com a qual est impregnada. O trabalho com vrios concretos diferentes leva a criana a abstrao, que queremos com esses concretos. O concreto para a criana aquilo que ela sabe fazer; o abstrato aquilo que se configura e que, a qualquer momento, ela possa se servir. A pedagogia, que deve propiciar o ato cognitivo da criana na sala de aula, tem necessariamente que levar em conta todas essas premissas. verdade que muitas vezes, para se chegar ao abstrato, o professor tem que demonstrar, isto , desenvolver encadeamentos lgicos, to comum na matemtica acadmica, mas isto feito dentro de uma metodologia que inicia com o concreto da criana, passando por outros

  • 15

    concretos, que sero incorporados por ela, uma postura bem diferenciada da de demonstrar por demonstrar. A importncia da pesquisa de campo. No meu entender, a Etnomatemtica, como recurso pedaggico, segue alguns passos que a caracterizo como passos na aprendizagem. Estes passos so, para mim, necessrios para se incorporar a Etnomatemtica no currculo escolar, currculo no sentido mais amplo possvel, como muito bem descreve DAmbrosio. No quadro abaixo tento resumir esses passos: Contexto social realidade A escola est fisicamente inserida num contexto social ( bairro, regio, aldeia, etc.) mas, na maioria das vezes, no faz parte deste contexto. Seus professores e diretor vm de outros lugares, somente para cumprir o horrio de trabalho, no participando do ambiente social de onde seus alunos vm. Isto leva estes alunos a considerar a escola e seu discurso como totalmente fora de suas realidades. A proposta, que apresento aqui, pretende de fato inserir esta escola no contexto social e no s estar l fisicamente, havendo uma troca recproca de saberes e fazendo com que ambas, a escola e o contexto, cresam culturalmente. Para isto, necessrio, pelo menos, um envolvimento do professor, pois ele quem vai dirigir o processo e, para isto, deve conhecer o contexto social onde seus alunos freqentam. Conhecer no significa, necessariamente, morar perto da escola, mas saber dos anseios e das representaes culturais mais importantes da sociedade envolvente. Isto, porque ele quem vai nortear as pesquisas de campo, que sejam mais significativas para esta comunidade. Quando este professor propor a pesquisa de campo aos seus alunos, e junto com eles

    Etnografia ou pesquisa de campo

    Etnologia ou anlise da pesquisa

    Modelo

    Tcnicas e estratgias matemticas

    Soluo, Solues ou No-soluo

    Ao

    Validao

  • 16

    buscarem temas para tal pesquisa, o professor que poder levar a escolha para temas que possam ter um significado importante sociedade. Ele no deve ser quem vai determinar os temas, estes devem partir dos alunos, mas a orientao do professor importante no sentido de uma escolha, que propicie uma ao comunidade, visando um crescimento desta. Escolhida o tema, ou temas, o professor deve preparas seu alunos para a etnografia (pesquisa de campo). Quais so os requisitos mnimos que fazem com que uma pesquisa de campo possa trazer subsdios significativos, tanto para o pesquisado como para todo o grupo social a que ele pertence? A etnologia (anlise da pesquisa) ser feita em sala de aula com a participao de toda a turma e o professor. neste momento que aparecem varias perguntas, os porques devem ser pensados como parte do processo. As respostas destes porques vai exigir estratgias as vezes diferenciadas. Muitas vezes a volta a campo se faz necessria na resposta as indagaes, mas estamos interessados aqui nos porques onde a matemtica pode servir como linguagem na sua resposta. Ento a modelagem matemtica solicitada neste momento, ela, como leitura do mundo, propicia de maneira clara e concisa a soluo de problemas interrogatrios. Mas a soluo destes modelos requer a utilizao de tcnicas e estratgias matemticas, que na maioria das vezes no esto ainda disponveis aos alunos. Neste momento o professor o instrumentalizador, que vai fazer com que a classe adquira esses novos instrumentais, necessrios na soluo do seu modelo. Pode aparecer uma soluo, vrias solues ou mesmo nenhuma soluo, todas as alternativas so importantes. Continuando o processo, uma validao da resposta encontrada deve ser feita em todos os passos, tanto no campo, na etnografia, na etnologia e tambm no modelo empregado. Finalmente uma ao de reformulao cultural deve ser proposta a comunidade. Da ao - o retorno da pesquisa comunidade A ao deve vir de uma proposta do processo, com a finalidade de alterar de alguma maneira o contexto cultural, no sentido de crescimento cultural do meio. No meu entender, toda pesquisa etnogrfica tem que ter, necessariamente, um retorno de seus resultados comunidade - objeto da pesquisa. Esta proposta de retorno `a comunidade , a meu ver, uma das aes imprescindvel do processo. Compete a comunidade decidir de aceit-la ou no. Acredito que um ensino com estas caractersticas , sem dvida, crtico e significativo. Crtico, pois os alunos, quando modelam sua prpria realidade, devem fazer uma leitura crtica da mesma (a etnolonogia). Nesse momento, cada aluno faz uma anlise poltica dessa realidade, refletindo sobre seu contexto, usando para isso, toda sua histria de vida. A matemtica

  • 17

    aparece ento com mais significado, pois se mostra como ferramenta importante na leitura do mundo, podendo ajudar bastante o aluno nesta leitura crtica. Com isto estaremos ajudando esse aluno na sua formao como cidado participante da comunidade. Por outro lado, a escola passa ser parte integrante dessa comunidade, recebendo e dando contribuies no crescimento cultural e muitas vezes mesmo no crescimento econmico da comunidade. Por tudo isto, creio que o Programa Pedaggico da Etnomatemtica um dos mais completo paradgma pedaggico existente. 2. A formao do Professor/ndio Waimiri-Atroari Sobre a educao matemtica Waimiri-Atroari A tribo Waimiri-Atroari do tronco lingstico Karib e seu territrio abrange parte dos estados do Amazonas e Roraima, ao norte de Manaus. Sua populao hoje estimada em aproximadamente 600 ndios, distribudos em 12 aldeias. Com a construo da Usina Hidroeltrica da Balbina (1988), parte de seu territrio foi inundado e em consequncia deste fato a Eletronorte e Funai firmaram um convnio assistencial, onde um dos programas a Educao. Este programa visa, alm da criao e manuteno das escolas de aldeia, a formao do professor/ ndio, professor esse escolhido sempre pela prpria comunidade. Sou responsvel na rea de Matemtica deste programa e venho trabalhando com estes professores h 6 anos. Alm de sua formao em matemtica, minha preocupao tambm que eles sejam os pesquisadores de campo de seus conhecimento tnicos, conhecimentos que possam ser modelados na matemtica institucional ou no, mas conhecimentos categorizados matemticos. Como fruto deste trabalho tenho j alguns dados da evoluo lingstica no sistema de numerao, nomes de algumas figuras geomtricas e conceitos topolgicos, que so construes sociais, refletindo o dinamismo cultural da tribo. Isto caracteriza a construo de conceitos matemticos como fruto social, mostrando tambm que tm significados historicamente localizados. Mais de 300 anos de luta A histria das incurses portuguesas na regio do Rio Negro iniciou por volta de 1663 com a instalao de misses, provocando revolta entre os Waimiri-Atroari, que acarretou a morte de um missionrio. Inicia-se a guerra entre ndios e brancos desta regio. Como represlia o governador da Amazonas (Rui Vaz de Siqueira) enviou uma tropa regio, que queimou trezentas aldeias, setecentos ndios foram mortos e quatrocentos levados priso. Aps este fato, temos poucos registros sobre os Waimiri-Atroari, H

  • 18

    um dirio de viagem de Francisco Xavier Ribeiro Sampaio, que entre os anos 1774 e 1775, registrou a presena de ndios na regio. A colonizao da regio ocupada pelos Waimiri-Atroari inicia-se propriamente por volta de 1852, foi economicamente usada para explorao extrativista como: castanha, palmito e madeira; produtos da floresta levados para exportao. Volta, ento, as relaes conflituosas entres os ndios e agora os habitantes das pequenas vilas como Moura, Airo e Pedreira. Tem-se noticia de que em 1873 a vila de Moura foi saqueada pelos ndios, depois de ter sido abandonada pelos sues habitantes com medo do ataque dos ndios. Antes disto em 1865 os Waimiri-Atroari foram vtimas de um ataque sangrento por parte de uma expedio militar. A luta continuou por muito tempo, sempre como represlia a alguma ao localizada. Uma primeira tentativa de contato amistoso foi feita em 1881 pelo botnico Barbosa Rodrigues, que deixou relatado seu trabalho de contato e da tentativa de criar condies de cordialidade entre ndios e brancos. No inicio do sculo XX os Waimiri-Atroari eram amigveis a todo visitante eu se aproximava pacificamente. As tentativas de escraviz-los ou us-los como mo-de-obra barata no extrativo da borracha foram inteis. Eles lutavam at a morte sem se deixar aprisionar, e qualquer invaso de sua regio era respondida com ataques mortferos. Durante o governo militar as estratgias de exterminar ou ento reduz-los a uma populao que no poderia representar riscos aos brancos, foram: a construo da rodovia BR - 174, que liga Manaus Boa Vista e corta a reserva Waimiri-Atroari; a construo da Hidroeltrica de Balbina, que inundou grande parte do territrio indgena e finalmente a Minerao Paranapanema, que instalou um projeto de extrao de minrio na divisa com o territrio Waimiri-Atroari. Isto fez com que a populao que era em 1974 de 1500 pessoas, em 1987 chegou a 374. Na Folha de So Paulo de 12 de fevereiro de 1995, o jornalista Janer Cristaldo, denunciou o documento de diretrizes do I Simpsio Mundial sobre Divergncias Inter-tnicas na America do Sul, dirigido aos missionrios, numa tentativa de criar, segundo ele, uma teocracia no Amazonas. O jornalista escreveu neste artigo que: Res-Publica Christianas Europia planeja uma rplica teocrtica na America do Sul, constituda pelos cleros europeus e norte-americanos, cortando territrios do Brasil, Peru, Colmbia e Guiana. Isto porque ... os ndios brasileiros vivem sobre uma subsolo riqussimo. Quando defensores incondicionais das culturas nativas falam em Waimiri-Atroari, leia-se cassiterita. A escolarizao Waimiri-Atroari A escolarizao na tribo Waimiri-Atroari, escolarizao aqui no sentido ocidental, pois para eles a transmisso de conhecimentos tnicos

  • 19

    sempre se processou, mas a transmisso de conhecimentos, ditos ocidentais, teve vrios momentos: iniciou pelo que sabemos em 1986 por um casal missionrios do Conselho Missionrio Indgena (CMI), por pouco tempo; no mesmo ano outro casal retoma a educao e continua at 1987, estes agora eram da Misso Evanglica da Amazonas. Apesar de ambos os casais serem missionrios, tinham uma viso diferente de escola de aldeia, onde a catequese no fazia parte do currculo escolar, mas as disciplinas ditas curriculares como a matemtica eram ensinadas de modo professoral. Um segundo momento foi quando o antroplogo Marcio Silva, quando fazia seu trabalho etnogrfico, foi solicitado pelos prprios ndios assumir a escola, isto durante o anos de 1987. Finalmente o Programa Waimiri-Atroari iniciado em 1988, financiado pela Eletronorte, para ressarcir as terras inundadas pela Hidroeltrica de Balbina, tem como subprograma a parte educaional. Ento, as escolas da aldeia so implantadas, um total de 12. Assumem essas escolas primeiramente professores brancos, na sua maioria leigos, e que foram aos poucos sendo substitudos por professores ndios. Estes professores ndios esto sendo de alguma maneira preparados para esse oficio. Primeiramente tm uma orientao continuada pela equipe educacional, que periodicamente esta a campo dando subsdios pedaggicos a eles, e acompanhando de alguma maneira o desenvolvimento curricular nestas escolas. Por outro lado eles tm reunies anuais com especialistas nas reas curriculares, onde so tratados, alm da formao acadmica destes professores, so tambm discutidos mtodos pedaggicos, onde o especialista tenta fazer a ponte entre o conhecimento acadmico e a melhor metodologia, que eles trazem de suas experincias didticas e seu viver dirio de aldeia. A escola de aldeia, ento, de alguma maneira diferenciada da escola urbana e mesmo rural que conhecemos, primeiramente o calendrio escolar respeita as festas tradicionais, o fazer o roado, as caadas e as pescarias coletivas; por outro lado, a alfabetizao inicia pela lngua materna e depois pelo portugus, continuando todo o processo escolar nestas duas lnguas. As cincias so trabalhadas de forma transdisciplinar, onde o conhecimento tnico trabalhado como programa, juntamente com a cincia institucional, e quando permitido, faz-se a ponte entre os dois conhecimentos. Hoje as escolas esto com aproximadamente 400 alunos, divididos em 145 crianas, 233 adultos com menos de 50 anos e 22 com mais de cinqenta anos. A Matemtica Waimiri-Atroari Encontrei pela primeira vez referncia a numerao Waimiri-Atroari no livro de Joo Barbosa Rodrigues (p.49), onde aparece algumas frases dita pelos ndios, com :

  • 20

    Tupar ainam naem? Tupanican anamei, que o autor traduziu como: Quantas naes h neste rio? S h uma, a nossa. Na mesma pgina do livro o autor pergunta ao informante quantas malocas havia, este responde anci ean, mostrando os dedos das duas mos, que o autor traduziu por dez. No final do livro ele transcreve a numerao Waimiri-Atroari: 1 - tuim 2 - sananobur 3 - sarenu 4 - saqueroba 5 - tupaique 6 - turincabon 7 - saquene 8 - seranorneabunan 9 - saquerormeabanan 10 - taparenon 20 - tiuimtemongonon 30 - sarcicamongen 40 - iepor 50 - tuparmonongonon 100 - soroparetuparo. Hoje todos os ndios com quem trabalhei, desconhecem estes termos e no acreditam que sejam da lngua Waimiri-Atroari. Eles consultaram o velhos das aldeias e nenhum deles conhecia este tipo de numerao. Provavelmente o autor uso como interprete ndio de outro etnia, e este deu a ele numerao de sua tribo. O que se sabe esses nmero no so conhecidos de nenhuma tribo brasileira. O que temos hoje nominao para os trs primeiros nmeros: awenini - um, typytyna - doi e takynynapa - trs; acima destes usam wapy, que significa muitos ou warenpa, cujo o significado de grande quantidade. Os mais velhos ainda usam termos como akynmy e pitymy para designa um. Estes termos j esto em desuso. A palavra awenini tambm tem o significado de sozinho e pitymy de solteiro. As formas geomtricas que tive conhecimento na lngua foram: itaktyhy para quadrado e mixop itaktyhy para retngulo. A palavra mixop significa comprido, mas a palavra itaktyhy no achei significado, fica mais prximo de ipake que porta. O losango tem um nome bem especfico maia pankaha waty, que significa: igual a ponto da lana da flecha. Para o crculo abermyhy, que quer dizer redondo. Permetro foi dito por eles

  • 21

    asapanpankwaha, que se pode traduzir por toda a beira, diagonal = epakytyhy e mesmo para ngulo encontraram asa panta pankwaha, isto beira ponta dobrada Outros termos que coletei foram: kawy - alto kyby - baixo taha - grande bahnja - pequeno mie - longe kypy - perto tydapra ou taha - grosso bakinja - fino mixop - comprido tkwa - curto natme ou natahme - frente agytyhy ou apytylmy - atrs djapma najapy - direita makma najapy - esquerda eixyknaka - em cima kytany - embaixo. No primeiro encontro que tive com eles construimos juntos uma cartilha de matemtica. Eles resolveram dar nome aos nmeros de 4 9 usando a adio. Assim: 4 - takynynnapa awenini = 3 e 1 5 - takynynapa typytyna = 3 e 2 etc. 9 - takynynapa takynynapa takynynapa = 3 , 3 e 3. Quando levaram esta proposta s aldeias, os jovens acharam muita graa e aceitaram imediatamente. A grande reao foi dos mais velhos, que no aceitaram e me pareceu com uma reao contraria muito forte, no sentido de no se brincar com a lngua. Meu trabalho de assessoria matemtica Todo ano passo com os professores Waimiri-Atroari uma semana, isto desde 1994, com trabalho dirio de mais de 8 horas. Geralmente pela manh me preocupo com a formao matemtica, ento, conceitos matemticos so ensinados de uma maneira, quando possvel, com exemplos da realidade deles. J foi trabalhado as quatro operaes, fraes, regra de trs, juros e porcentagem, permetro e rea das figuras geomtricas mais conhecidas e medida de ngulo. Cada ano tenho que retomar alguns conceitos pois na aldeia muito difcil eles estudarem, mas tenho notado um crescimento

  • 22

    grande na aquisio dos conceitos estudados. Na parte da tarde trabalhamos cada ano temas diferentes: a planificao da construo da molca-escola no Ncleo, o uso da calculadora, entrevistas para modelao matemtica, modelar matematicamente notcias de jornal, a modelagem de conhecimentos tnicos e neste ltimo ano trabalhamos com jogos que so teis no ato pedaggico. Geralmente a noite eles reservam para estudar e fazer o que chamo de tarefa para casa, que so problemas e exerccios onde so utilizados os conceitos desenvolvidos em sala de aula. Este trabalho tem-se mostrado muito promissor, no sentido de formao do professor/ndio como: em primeiro lugar um conhecedor dos conceitos que esto estudando. Normalmente a Histria da Matemtica solicitada no intuito de mostra a criao do conceito e dando a viso de uma cincia construda pelo homem, sem verdades absolutas. Em segundo lugar a formao deles como pesquisadores de campo, etngrafos mesmo, com minha solicitao todo ano de um trabalho de pesquisa de campo, eles j esto razoavelmente dominando o processo da etnografia, o que geralmente muito difcil para um professor no-ndio sem experincia. Iniciaram a aprendizagem de construo de um projeto pedaggico, fruto da pesquisa de campo. Eles, como detentores melhor do seus conhecimentos tnicos, so as pessoas mais apropriadas para este trabalho. Conhecem e vivem suas realidades, detm o conhecimento dos valores culturais importantes, que devem ser transmitidos na escola e juntamente com a matemtica acadmica so capazes de fazer uma leitura mais profunda de sua realidade. Alm disso, esto aptos tambm a compreender melhor o mundo do no-ndio e de todo o papel que a matemtica institucional exerce neste mundo, conseguem ler, analisar e criticar notcias jornalsticas que usam a matemtica como ferramenta de compreenso. Sei que um trabalho logo e que falta ainda muito na formao destes professores, isto , quando eles podero sozinhos desempenharem suas funes na aldeia na formao do ndio, seus alunos, valorizando seus conhecimentos e sabendo compreender e criticar o mundo do no-ndio. Espero poder continuar contribuindo nesta formao.

  • 23

    Referncias Bibliogrficas Acher, M. - Ethnomathemtics - Brooke&Cole - (1991) Caraher, T.;Carahes, D.; Schliemann, A - Na vida dez, na escola zero - Cotez - (1988) Cristaldo, J. - Uma teocracia na Amaznia. Ponto Crtico - Jornal a Folha de So Paulo. (12/02/95) DAmbrosio, U. - Ethnomatematics and its place in the History of Pedagogy of Mathematics - For the Learning of Mahthematics - (1985) 5#1 DAmbrosio, U. - Etnomatemtica : Um Programa - Educao Matemtica em Revista - SBEM (1993) n 1, 5 - 11 DAmbrosio, U. - Scio-Cultural Basis for Mathematics Education - UNICAMP - (1985) Hemming, J. - mazon Frontier - the Defeat of the Brazilian Indias - MacMillan - Londo (1987) Gerdes, P. - Ethomathematics and Education in Africa - Stockholms Universitet - (1995) Gerdes, P. - Sobre o conceito de Etnomatemtica - Estudos em Etnomatemtica - ISP/KMU - (1989) Knijnik, G. - O saber popular e o saber acadmico na luta pela terra - Educao Matemtica em Revista - SBEM - (1993) n 1 28 - 42 Knijnik, G. - "Excluso e Resistncia - Eduacao Matemtica e Legitimidade Cultural"- Artes Mdicas - (1996) Lima, F.J.Q. - A contruo da Maloca na Adeia Xeri - rea Indgena Waimiri-Atraori - Programa Waimiri-Atroari - (1994) Monte, P. P. - Etno-histria Waimiri-Atroari (1663-1962) Tese de mestrado PUC/ So Paulo - (1992) Programa Waimiri-Atroari (1993) Rodrigues, J. B. - Pacificao dos Crichamas. Imprensa Nacional (1885) Sebastiani Ferreira, E. - Cidadania e Educao Matemtica - Educao Matemtica em Revista - SBEM - (1993) n1 12 - 18 Sebastiani Ferreira, E. - Por uma teoria de Etnomatemtica - Bolema n7 (1991) Sebastiani Ferreira, E. - Etnomatemtica - Uma proposta metodolgica Srie Reflexes em Educao Matemtica - USU - (1997) v. 3 Sebastiani Ferreira, E. - The teaching of Mathematics in Brazilian Native Communities - Int. J. Math. Ed. In Sc and Tec. - (1990) v. 21 f. 4.- 545 - 549

  • 24

    Sebastiani Ferreira, E. - A importncia do conhecimento etnomatemtico indgena na escola dos no-ndios. - Em aberto - temas: Tendencias na Educao Matemtica - MEC (1994) v. 62 - 89 - 95 Silva, A ; Loureiro, C. ; Velouso, M. - Calculadoras na Educao Matemtica - Associao dos Professores de Matemtica de Portugal (1989) Vale, M.C.R. - Educao Indgena - Uma experincia entre os Waimir-Atroari - Programa Waimiri-Atroari - (1994)