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"O QUE É VIDA?" 50 ANOS DEPOIS

O Que é Vida? 50 Anos Depois - Michael P. Murphy e Luke a. J. O Neil

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O Que é Vida? 50 Anos Depois - Michael P. Murphy e Luke a. J. O Neil

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  • "O QUE VIDA?" 50 ANOS DEPOIS

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador

    Jos Carlos de Souza Trindade

    Diretor-Presid.ente Jos Castilho Marques Neto

    Editor Executivo Jzio Hemani Bomfim Gutierre

    Conselho Editorial Acadmico Alberto lkeda

    Antonio Carlos Carrera de Souza Antonio de Pdua Pithon Cyrino

    Benedito Antunes Isabel Maria F. R. Loureiro

    Llgia M. Vettorato Trevisan Lourdes A. M. dos Santos Pinto

    Raul Borges Guimares Ruben Aldrovandi

    Tnia Regina de Luca

  • MICHAEL P. MURPHY LUKE A. J. O' NEILL

    ORGANIZADORES

    ~

    "O QUE E VIDA4?" 50 ANOS DEPOIS

    ESPECULAES SOBRE O FUTURO DA BIOLOGIA

    Traduo Laura Cardellini Barbosa de Oliveira

    1 a reimpresso

    ...... CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS

  • Copyright 1995 by Cambridge University Press Ttulo original em ingls: What is Life7

    The Next Fifty Years. Speculations on the future of biology.

    Copyright 1997 da traduo brasileira: Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Praa da S, 108 01001-900 - So Paulo - SP

    Te!.: (Oxx11) 3242-7171 Fax: (Oxx11) 3242-7172

    Home page: www.editora.unesp.br E-mail: [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    o que vida?" 50 anos depois. Especulaes sobre o futuro da bio-logia/ Michael P. Murphy, Luke A. J. O'Neill, organizadores; traduo Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. - So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1997. - (UNESP/Cambridge) Ttulo original: What islife? The Next FiftyYears. Specula- ti-ons on the future of biology. ISBN 85-7139-168-8 1. Biologia - Filosofia - Congressos 2. Biologia - Congressos 3. Schrdinger, Erwin, 1887-1961. O que vida? -Congressos 4. Vida (Biologia) - Congressos !. Murphy, Michael, 1963-II. O'Neill, Luke A. J. III. Srie.

    97-4574 CDD-574.0106

    ndice para catlogo sistemtico: 1. Biologia: Filosofia: Congressos

    Assoclacln de Edltor1alcs Unlvcrsl1.ar1a.s de Amrica LaUna y cl Car1be

    Editora afiliada:

    Associao Brasileira de Editoras Unlvcrsll.rlas

    574.0106

  • Prefcio 7

    "O que vida?" Uma introduo sobre os prximos 50 anos 9 Michael P Murphy, LukeA.}. O'Neill

    2 O que restar da biologia do sculo XX? 13 Manfred Eigen

    3 "O que vida?" como um problema histrico 35 Stephen }ay Gould

    4 A evoluo da inventividade humana 53 }ared Diamond

    5 Desenvolvimento: o ovo computvel, ou podemos gerar tanto um anjo como um dinossauro? 71 Lewis Wolpert

    6 Linguagem e vida 83 John Maynard Smith, Edrs Szathmry

    7 RNA sem protena ou protena sem RNA? 95 Christian De Duve

  • 8 "O que vida?": Schrdinger estava certo? 101 Stuart A. Kauffman

    9 Por que a nova fsica necessria para compreender a mente 137 Roger Penrose

    10 As leis da natureza evoluem? 153 Walter Thirring

    11 Novas leis antecipveis no organismo: a sinergtica do crebro e do comportamento 159 ]. A. Scott Kelso, Hermann Haken

    12 Ordem a partir da desordem: a termodinmica da complexidade biolgica 187 Eric D. Schneider, James]. Kay

    13 Reminiscncias 203 Ruth Braunizer

    ndice remissivo 209

  • O cinqentenrio das palestras de Erwin Schrdinger sobre O que vida? foi comemorado durante um congresso no Trinity College, Dublin, realizado de 20 a 22 de setembro de 1993. Nesse evento, cientistas de diferentes reas especularam, maneira das palestras originais de Schrdinger, sobre o desenvolvimento da biologia nos prximos 50 anos. Este livro relata a maioria dessas contribuies. Juntamos a elas outras contribuies de alguns cientistas que no puderam estar presentes no congresso.

    Os editores agradecem Otago University; Wellcome T rust; Embaixada Austraca em Dublin; Biochemical Society, em Londres; A:>sociation and T rust (TCD); ao Dublin lnstitut for Advanced Studies; Royal lrish Academy; BioResearch Ireland, ao British Council; e s companhias Biotrin lnternational e Pharmacia Biotech, pelo generoso apoio. um prazer agradecer a ajuda e as sugestes recebidas, ao longo de todo o trabalho, de Dr. Joe Carroll, Decano em Cincias do T rinity College, Dublin; Dr. Tim Mantle, do Departa-mento de Bioqumica, Trinity College, Dublin; Professor John Lewis, do Dublin Institut for Advanced Studies; Professor David McConnell, do Departamento de Gentica, T rinity College, Dublin; Professor Keith Tipton, do Departamento de Bioqumica, T rinity College,

  • 8 MICHAEL P. MURPHY E LUKE A. J. O'NEILL

    Dublin; Professor Associado Merv Smith, do Departamento de Bioqu-mica, Otago University, Dunedin; Dr. Garret Fitzgerald, Dublin; e Sr. Louis le Brocquy, Carros, Frana.

  • 1

    "O QUE VIDA'?" UMA INTRODUO SOBRE OS PRXIMOS 50 ANOS

    MICHAEL P. MURPHY1 LUKE A.]. O'NEILL2

    Este livro produto de um congresso realizado em setembro de 1993 no Trinity College, Dublin, em comemorao ao cinqentenrio das palestras que Erwin Schrdinger ali ministrou sobre O que vida 1, no ano de 1943. Schrdinger, prmio Nobel de Fsica e um dos funda-dores da mecnica quntica, foi a Dublin a convite de amonn de Valera, o Taoiseach (primeiro-ministro) da Irlanda, para ocupar a Ctedra de Fsica Terica no recm-fundado Instituto de Dublin para Estudos Avanados (Moore, 1989; Kilmister, 1987). O convite seguiu-se sua demisso da Ctedra de Fsica Terica da Universidade de Grass aps o Anschluss. Dublin foi oportuna para Schrdinger, que se adap-tou bem, tornando-se uma personalidade de destaque na vida intelec-tual da cidade. Ele viveu em Dublin at seu retorno ustria em 1956, onde faleceu 5 anos mais tarde.

    Schrdinger possua interesses intelectuais amplos e durante a sua estadia em Dublin explorou reas da filosofia e da biologia, alm de dar continuidade ao seu trabalho sobre fsica terica. Neste volume, nosso enfoque so suas idias sobre a biologia; em O que e v1d,1 l ele concen-

    1 Department of Biochemistry, University of Otago, Box 56, Dunedm, New Zeland. 2 Department of .Biochemimy, Trinity College, Dublin 2, lreland.

  • 10 MICHAEL P. MURPHY E LUKE A. J. O'NEILL

    trou-se em dois temas da cincia biolgica: a natureza da hereditarie-dade e a termodinmica dos seres vivos. Suas idias sobre a hereditari-edade foram influenciadas por Delbrck, enquanto Boltzmann impul-sionou a maior parte do seu trabalho sobre a termodinmica dos seres vivos. Ele escolheu uma conferncia pblica para a primeira iipresenta-o da sua viso da biologia. A palestra pblica anual uma obrigao estatutria do Instituto de Dublin para Estudos Avanados e, em fevereiro de 1943, Schrdinger ministrou uma srie de trs aulas para uma vasta audincia do T rinity College. Essas conferncias eram populares entre os dublinenses e mais de quatrocentas pessoas assisti-ram srie completa. Sem dvida, parte da popularidade advinha do ttulo provocativo e das poucas diverses existentes durante a emer-gncia91 como era chamada a Segunda Guerra Mundial na Irlanda neutra. Mas a isso somou-se o fato de Schrdinger ser um orador talentoso capaz de cativar sua audincia.

    Ao serem publicadas num livro pela Cambridge Vniversity Press (Schrdinger, 1944), essas palestras tiveram um impacto internacional considervel. A publicao foi lida por toda parte e tornou-se uma das pequenas obras'' de maior repercusso na histria da cincia (Kilmis-ter, 1987). Surpreendentemente, apesar da sua reconhecida influncia sobre os fundadores da biologia molecular (Judson, 1979), o papel preciso de O que i vida? ainda alvo de discusses (J udson, l 979; Pauling, 1987; Perutz, 1987; Moore, 1989). Sem dvida, parte da atrao e penetrao desse livro so a sua narrativa clara e a persuasi-vidade dos argumentos. Schrodinger, apresentando-se como um ufsico inocente", deixou claro como os seres vivos podiam equivaler-se a sistemas fsicos.Tal abordagem j era difundida, mas O que i vida? no apenas a popularizou como indicou aos fsicos que havia chegado o momento de considerarem problemas biolgicos.

    Quais so as idias apresentadas nesse livro? Schrdinger discute dois temas baseados nas suas opinies sobre hereditariedade e termo-dinmica. Num deles, em geral citado como o tema da "ordem a partir da ordem", ele trata da maneira pela qual organismos transm1cem informao de uma gerao outra. Como base para a sua discusso sobre o gene, ele utiliza o famoso trabalho de T1mofeff-Ressovsky et al. (1935) a respeito das alteraes conseqentes de mutaes na mosca da fruta, onde o tamanho do gene foi esumado em aproximadamente mil tomos. A clula enfrentava o dlema de um gene de tais dimenses ter de sobreviver disrupo trmica e ainda transmitir informao s geraes futuras. Schrdinger props que, para evitar esse problema, o

  • o QUE . VIOA1' UMA INTRODUO SOBRE OS PRXIMOS ANOS 11

    gene provavelmente se tornara uma espcie de~ cristal apendico que armazenava informao atravs de um cdigo na sua estrutura. Como sabido, esta proftica afirmao foi comprovada pelo trabalho sobre a estrutura do DNA que gerou o dogma centra:I da biologia molecular. O segundo tema abordado foi a "ordem a partir da desordemn. O problema enfrentado pelos seres vivos era como manter sua estrutura organizada e altamente improvvel em vista da Segunda Lei da Ter-modinmica. Schrdinger ressaltou que os seres vivos mantm sua ordem interna criando a desordem no meio 1~xterno Entretamo, o termo "neguentropian criado por ele para denotar tal processo no foi bem recebido por outros cientistas (por exemplo, Pauling, 1987).

    Nos 50 anos que se seguiram s palestras de Schrdinger, acostu-mamo-nos questo da ordem a partir da ordem", e muito do incrvel sucesso da biologia molecular deste perodo pode ser visto como a formulao das implicaes de tal idia. ms!io que grande parte da reputao de O que vida? se baseia. A questo da "ordem a partir da desordemn tem sido geralmente considerada menos importante. Entre-tanto, agora que estudos sobre a termodinmica de sistemas afastados do equilbrio e das estruturas dissipativas esto sendo aplicados a sistemas vivos, a importncia do segundo tema pode ser reafirmada Talvez daqui a 50 anos O que l vrdal seja visto como proftico mair, pelo seu tratamento da termodinmica de seres vivos do que pela sua previso da estrutura do DNA.

    Enquanto a influncia de O que vida? re:conhecida, as 1d1as ali expressas tm sido criticadas como no originais ou erradas por alguns (Pauling, 1987; Perutz, 1987) e defendidas por outros (Moore, 1987; Schneider, 1987). verdade que muito do que 1~st explcito em O qw: vida 7 estava implcito em trabalhos anteriores. Entretanto, as crticas talvez no percebam um aspecto principal da singularidade de O que i vida?: o fato de um fsico que passou da sua rea. de trabalho para outra que no era a sua especializao ter estimulado a pesquisa cientfica. Essa colocao interdisciplinar de questes provocativas no comum na cincia; em O que vida? as ponderaes df: um fsico serviram de inspirao para pesquisadores futuros. com este esprito que come-moramos as palestras ministradas h 50 anos por Erwin Schrdinger. Para tal, organizamos uma coletnea de vrios artigos onde cientistas especulam sobre o futuro da biologia. Muito do que a presentado neste livro talvez venha a ser considerado errado. Porm, acreditamos que esse esprito exploratrio seja a melhor maneira de festejar o cinqen-tenrio da publicao de O que vida?.

  • 12 MICHAEL r. MURPHY E LUKE A. J. O'NEILL

    Referncias bibliogrficas

    JUDSON,H. F. TlteEighth Dayo{Creation: Makersofthe Revoluuoninfology. New York: Simon & Schuster, 1979.

    KILMISTER, C. W. (Ed.) Schrodinger: Centenary Celebration of a Polymath Cambridge: Cam:,ridge Uruversity Press, 1987.

    MOORE, W. J. Schrdinger's entropy and hvmg organisms. Nn111rc, v.327, p.561, 1987.

    __ . Sclirodinger: Life and Thought. Cambridge: Cambridge Univers1ty Press, 1989.

    PAULING, L. Schrdinger's contribution to chemistry and b10Jogy. ln: Schrodinger: Centenary Celebration of a Polymath. KILMISTER, C. W. (Ed.) Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p.225-33.

    PERUTZ, M. F. Erwin Schrdinger's What is Llfe and molecular biology. ln: KILMISTER, C. W. (Ed.) Schrdingcr: Centenary Celebration of a Po-lymath. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p.234-51.

    SCHNEIDER, E. D. Schrdinger's grand theme short:hanged. Na111re, v.328, p.300, 1987.

    SCHRDINGER, E. \'Vliat is Lifd The Phys1cal Aspect of the Living Cell. Cambridge: Cam':>ridge University Press, 1944.

    TIMOFEFF-RESSOVSKY, N. W., ZIMMER, K. G., DELBRCK, M. Nachri-chten aus der Biologie derGesdlsd1aft der Wisse11scltafie11 G1tingc11 1, p.189-245, 1935.

  • 2

    O QUE RESTAR DA BIOLOGIA DO SCULO XX? 1

    MANFRED EIGEN2

    Quo vadis humanitas?

    Chegamos ltima dcada deste sculo, que influenciou, incom-paravelmente, a vida do homem de maneira to profunda. Talvez nenhum outro sculo tenha provocado nveis to altos de apreenso e medo, ancorando-os conscincia humana. Tornamo-nos desconfia-dos. Quando uma descoberta divulgada, nossa primeira pergunta no Que utilidade ela ter para a humanidade'?", como faramos antiga-mente, mas Quais os danos que ela vai causar e como ela ir diminuir nosso bem-estar e sader. Nosso bem-estar atual se deve principal-mente ao conhecimento cientfico, que elevou a vida mdia para 75 anos, aproximando-a do limite de idade biolgico. A expectativa de vida no incio deste sculo era de apenas 50 anos e no sculo anterior no passava dos 40. A curva de expectativa de vida tambm aumentou nos

    Notificao: A verso original desta palestra foi publicada em 1993 no livroMt.111 a11d Tech110/agy i11 thc Futurc [O homem e a 1tc110/ogi4 no (utur"], um resumo do seminno internacional realizado pela Royal Swedish Academy of Engineenng Sciences em Estocolmo, Sucia.

    2 Max Planck lnstitut fr Biophysikalische Cherrue, Postfach 2841, D-37077. Gttmgen, Germany.

  • 14 MANFRED EICEN

    pases em desenvolvimento, embora se encontre 50 anos defasada da nossa; enquanto isso, nossa expectativa de vida se aproxima de um limite mximo. E, no entanto, mais do que nunca, perscrutamos ansio-samente o futuro. Isto acontece apesar da aparente retificao, no plano poltico, de alguns dos mais graves e grotescos acontecimentos instiga-dos pela humanidade neste sculo. improvvel que, nesta ltima dcada, venha a ser definido se as mudanas foram para pior ou para melhor.

    Esta dcada no apenas significa o fim do sculo atual; ela abre as portas para o novo milnio. Sentimo-nos impelidos a refiem sobre aonde chegamos e sobre o caminho a seguir. Nosso dilema torna-se claro na pergunta: "A humanidade ir sobreviver ao fim do prximo milnio'?u. Das aproximadamente trinta gera1~s que abarcam um perodo de 100 anos, ns j temos uma experinci,a direta com duas ou trs delas. Essas trinta geraes podem ser catale>gadas em menos de uma pgina impressa; mas, apesar disso, 100 anos desafiam a nossa compreenso. Oue previses poderia Carlos Magno ter realmente feito a respeito dos nossos tempos"? Uma experincia correta do passado essencial para qualquer extrapolao sobre o futuro; mesmo assim, tudo o que realmente novo permanece uma surpresa. O mesmo se d no mundo da pesquisa bsica. Novos insights podem abrir mundos de oportunidades inexploradas. E mais, aquilo que delimita nosso coti-diano depende essencialmente de descobertas e 1sigh1s do passado mais recente.Tudo o que podemos dizer a respeito do futuro quase um trusmo: mudanas de estilo de vida sero mais radicais no novo milnio do que foram neste que est por acabar.

    A populao mundial atual cresce de modo hiperblico. De que maneira um crescimento hiperblico difere do e:xponencial normal-mente usado como referencial nas publicaes pe:rtinentes? Bem, este ltimo envolve duplicaes sucessivas em interva.los de tempo iguais, enquanto no crescimento hiperblico os intervaleis de tempo tornam-se regularmente mais curtos. Uma taxa de natalidade constante come-a a gerar um crescimento populacional exponencial, mas, e acima de tudo, uma proporo crescente de pessoas vem atingindo a maturidade sexual devido s melhores condies de higiene e atendimento mdico de bebs e crianas nos pases em desenvolvimento. A duplicao mais recente da populao mundial ocorreu h apenas 27 anos. Existem agora 5,5 bilhes de humanos na terra. Se as coisas continuarem segundo a lei hiperblica, que tem descrito de maneira precisa o aumento populacional dos ltimos 100 anos, haver 12 bilhes de pessoas no ano 2020 e a curva de crescimento ir tender assimptotica-

  • O QUE RESTAR DA BIOLOGL~ DO SECULO XX? 15

    mente ao infinito em 2040! Posso me ver sendo citado nos meios de comunicao: "Cientista profetiza ca~strofe populacional em 2040"_ Vamos com calma agora: a nica predio que posso fazer com certeza a de que isso no vai acontecer; no pode acontecer simplesmente porque os recursos do nosso planeca so limitados No sabemos em que direo o novo sculo ir nos levar. Mas o aspecto realmente estranho do nosso dilema no essa ignorncia fatalista. Muito mais desconcertante o fato de que no podemos concluir nada do padro de crescimento atual, n.em mesmo em princpio. Junto a tal singulari-dade, mesmo as menores flutuaes podem ser amplificadas e acabar tendo um efeito gigantesco. Catstrofes, sejam em pequena escala ou globalmente, iro limitar o crescimento da pop1,Jlao mundial. Essas catstrofes certamente no so uma novidade. Sabemos tambm da nossa posio indefesa, uma vez que elas so deflagradas. Existe algo inadequado na nossa tica, ainda atrelada a uma poca em que a sobrevivncia humana (ou a de pequenos centros demogrficos) preci-sava ser assegurada atravs de uma numerosa prole.

    Vocs podem querer rebater que a populao de naes industriais h muito alcanou um equilfbrio. Em alguns pases est at mesmo em declnio. Apesar disso, nossa densidade populacional to grande que se fosse espalhada por toda a superffcie de terra firme daria uma populao de 30 a 40 milhes de pessoas. Segundo um estudo de Reger Revell, esse seria aproximadamente o nmero mximo possvel de ser mantido se mobilizarmos todos os recursos imaginveis do nosso planeta. Um aumento das colheitas mundiais prximo do mximo local na poca em que Revell escreveu o trabalho (correspondendo, por exemplo, colheita de milho do estado de Iowa" nos Estados Unidos) mal daria para alimentar tal populao. No haveria perspectivas de uma prosperidade geral. O nmero calculado por Revell talvez acomo-de algumas poucas regies de ampla produo, mas na maioria das regies haveria um dficit catastrfico. Nesta anilise no mencionei os problemas ambientais que j esto ficando fora de controle. Nem tampouco foram menconados os funis na explorao de recursos e produo de energia, ou na sade pblica, ou nas emergncias mdicas_

    Isto deve ser suficiente para uma introduo. Eu quis descrever o pano de fundo do desenvolvimento da humanidade que est por vir. No devemos perd-lo de vista ao considerar o futuro da cincia e nossas associadas expectativas, medos e esperanas.

    Passando agora para meu assunto principal, 1:omearei a exposio fazendo um balano da situao atual.

  • 16 MANfRED EIGEN

    A biologia do sculo XX

    Estamos plenamente justificados ao proclamar a segunda metade deste sculo como a era da biologia molecular, assim como a primeira metade foi a era da fisica atmica. De fato, os fsicos foram os primeiros a embarcar na anlise do conceito de vida, mesmo se no incio isso levou direo errada. A obra de Pascual Jordan (1945) Physic.s 1l1i./ 1he Secret o{ Orga11ic Li(e [A (sic.1 e o segredo da vida orgni1]e1 notavelmente, o livro O que vida? de Erwin Schrdinger (1944), o qual estamos celebrando neste volume, so exemplos caractersticos. O texto de Schrdinger marcou uma poca, no porque tenha oferecido uma abordagem prtica compreenso do fenmeno da vida, mas por ter inspirado novas maneiras de pensar. Grande parte do pensamento proftico de Schrdinger j foi resolvida pelos bioqumicos, mas nin-gum at ento havia investigado to abertamente princpios bsicos. Contudo, no foram os tericos a iniciar a mudan;a de mar na biologia e estabelecer a nova cincia da biologia molecular. Esses permaneceram indefesos ante a complexidade dos seres vivos. Foram, isto sim, os fsicos que desencadearam uma nova pesquisa de maneira radical, utilizando o conhecimento bsico sobre a natun~za qumica dos pro-cessos biolgicos como trampolim. Temos o exemplo de Max Delbrck, um fsico terico da escola de Gttingen, que, inspirado pelo princpio de complementaridade de Niels Bohr, decidiu investigar os detalhes moleculares da hereditariedade. Essa foi a base da gentica de fagos. E h tambm Linus Pauling, um fsico da escola de Sommerfeld, que procurou entender em maior profundidade a natureza das protenas, os executivos moleculares de uma clula. Nesse processo ele descobriu elementos estruturais essenciais, criando, figurativamente, uma costu-ra entre a qumica e a biologia. Em destaque temos Francis Crick, um fsico tcnico que havia lidado com problemas de radar durante a guerra e que, juntamente com James Watson em 1953, reconstruiu a estrutura de dupla hlice do DNA a partir de dados de difra10 de raios X. Durante as investigaes, e isto o que toma a descoberta realmente importan-te, ele concluiu como a informao gentica poderia ser armazenada e transferida de gerao a gerao. Em Cambridge temos tambm o exemplo de Max Perutz trabalhando no laboratrio de Cavendish sob a chefia de Sir Lawrence Bragg, que aplicou o mtodo de padres de interferncia de raios X a molculas to complexa.s como a hemoglobi-na, o corante dos glbulos vermelhos, elucidando pela primeira vez,

  • O QUE li.ESTAR DA BIOLOGIA DO SCULO XX? l 7

    juntamente com John Kendrew, a organizao detalhada de uma mquina biomolecular. Esse foi o nascimento da biologia molecular.

    Atualmente temos uma ampla compreenso da organizao celu-lar do ponto de vista molecular, incluindo mecanismos detalhados dos processos subjacentes s funes celulares. Sabemos sobre perturba-es e quebras de tais funes, expressas nos mais diversos arranjos de sintomas clnicos; a maneira como parasitas, na forma de bactrias, fungos e vrus, destroem o ciclo de vida de um organismo. De fato, somos capazes de regular esses processos celulares a ponto de alterar completamente sua programao gentica. A indstria farmacutica atual, mais voltada para a qumica, explora cada vez mais o detalhado conhecimento da biologia molecular e as oportunidades tcnicas rela-cionadas. essencialmente a pesquisa bsica que abraou de forma irrevogvel a chamada tecnologia do DNA recombinante. O que sabe-ramos ns sobre as estruturas moleculares do sistema imune, ou sobre os oncogenes, ou sobre a AIDS, sem essa tecnologia'?

    Mas meu desejo no bombarde-los com uma lista quase alfab-tica de todos os pontos altos da biologia molecular, nem confront-los com uma lista de nomes daqueles que, desde Avery, Luria e Delbrck at Neher e Sackmann, ajudaram a cri-la com excelncia. Tampouco quero mencionar mais especificamente a biologia da primeira metade deste sculo, a no ser dizendo que ela no foi apenas o eplogo dos grandes conceitos do sculo XIX, das idias de Charles Darwin e Gregor Mendel, das inspiraes de Louis Pasteur, Robert Koch, Emil von Behring e Paul Ehrlich. A primeira metade deste sculo essencialmente estabeleceu, por meio do trabalho de Otto Warburg, Otto Meyerhof, seus estudantesHans Krebs e Fritzlipmann e muitos outros, uma base qumica sobre a qual a biologia molecular da segunda metade do sculo pde florescer. Prefiro enfocar as questes fundamentais da biologia. Poder respond-las passou a ser possvel atravs do conhecimento molecular abrangente compilado no sculo XX. Ao faz-lo, estaremos cruzando o limiar que nos separa do sculo XXI e olharemos de relance para o futuro. Muitas das questes que podemos formular hoje sero respondidas de maneira satisfatria apenas no sculo vindouro.

    O que vida"?

    Esta no apenas uma pergunta difcil; talvez nem seja mesmo a pergunta correta. As coisas que chamamos vivasn possuem caracte-

  • 18 MANFRED EIGEN

    rsticas e capacidades excessivamente heterogneas para permitir que essa nica definio nos d a noo da variedade contida no termo. Entretanto, precisamente essa abundncia, variedade e complexidade que so uma das caractersticas essenciais da vida. Talvez no demore muito at sabermos tudo sobre a bactria Escfzenchia w/1, ou mesmo sobre a mosca da fruta Drosophila. Mas o que saberemos ento sobre os seres humanos?

    ento muito mais sensato perguntar: de que maneira um sistema vivo difere de um sistema no vivo? Quando e como essa transio ocorreu durante a histria do nosso planeta ou mesmo do universo?

    Como qumico, muitos me perguntam: qual a diferena entre um sistema qumico acoplado, embora complexo de maneira arbitr-ria, e um ser vivo onde mais uma vez encontramos, essencialmente, uma abundncia de reaes qumicas?. A resposta que todas as reaes qumicas de um ser vivo seguem um prngrama controlado, operado por uma central de informao. A meta desse programa a auto-replicao de todos os componentes do sistema, incluindo a duplicao do prprio programa ou mais precsam.ente do material que o contm. Cada reproduo pode estar associada a pequenas modifica-es do programa. O crescimento competitivo de todos os sistemas modificados permite uma avaliao seletiva da sua eficincia: "Ser ou no ser, eis a questo".

    1 Auto-replicao - sem a qual a informaio seria perdida aps cada gerao.

    2 Mutao - sem a qual a informao "in.:i.ltervein e portanto no pode sequer emergir.

    3 Metabolismo - sem o qual o sistema regrediria para um estado de equilbrio onde modificaes ulteriores no so possveis (como Erwin Schrdinger corretamente diagnosticou em 1944).

    Um sistema que contm essas propriedades est predestinado seleo. Quero dizer que seleo no um mero componente adicional a ser ativado de fora para dentro. No teria sentido perguntar quem faz a seleo. Seleo uma forma inerente de auto-organizao e como tal, como sabemos hoje, uma conseqncia fsica direta da auto-repli-cao longe do equilbrio e sujeita a erros. Estar eqiuilibrado selecionana apenas as estruturas mais estveis. A seleo - uma categoria alterna-tiva incompatvel com equilbrio - escolheu em vez uma estrutura suficientemente estvel e otimamente adaptada a certas funes, as

  • O QUE RESTAR DA BIOLOGIA DO SCtlLO XX1 19

    quais asseguram a preservao e o crescimento do organismo. Evoluo com base na seleo natural implica gerao de informao.

    Para poder fixar a informao do ponto de vista estrutural, classes definidas de smbolos so necessrias, como as letras de um alfabeto ou os smbolos binrios do cdigo de um computador. Alm disso, precisamos das conexes entre os smbolos das palavras em formao e as regras de sintaxe que arranjam as palavras criando sentenas. Facilidades para ler as sentenas so tambm necessrias; por fim, informao apenas aquilo que pode ser compreendido e avaliado. A capacidade de lidar com a informao na linguagem humana est acoplada a um sistema nervoso central.

    Que forma isso assume no caso de molculas? O armazenamento de informao nas molculas est sujeito aos mesmos pr-requisitos necessrios para que essa informao seja "legvel" e sujeita a avaliao. Foi apenas com os cidos nuclicos que as molculas aprenderam a ler. Interaes complementares, uma associao inerentemente especfica entre dois pares combinveis das unidades formadoras dos cidos nuclicos, so o fator subjacente "capacidade de leitura" desses cidos. Ento, o alicerce do processamento da informao molecular o pareamento de bases, como descoberto por Watson e Crick. Esta interao de incio meramente qumica permite transcender a qumica, pois as unidades qumicas agem essencialmente como smbolos de informao. A evoluo, primeiro molecular, depois celular e a seguir dos organismos, foi apenas possvel por meio da reproduo e da seleo. Ela no mais selecionou segundo critrios puramente qumicos mas segundo a codificao funcional da informao. O homem difere da bactria E. coli no devido a uma qumica mais eficiente, mas devido a um contedo de informao muito mais vasto (de fato, mil vez.es maior que o de uma bactria coli). Tal informao codifica funes sofisticadas e torna possvel o comportamento complexo.

    A criao de um sistema subcelular de processamento da informa-o ocorreu h 3,8 0,5 bilhes de anos, segundo nossa reconstruo atual baseada em estudos comparativos sobre os adaptadores do cdigo gentico. Portanto, a vida provavelmente comeou na terra e no em algum outro lugar do universo. No mais velha mas tambm no muito mais nova que o nosso planeta. Isto significa que a vida surgiu to logo as condies se tomaram favorveis. J existiam organismos unicelulares h 3,5 bilhes de anos. Evidentemente, o caminho para as verdadeiras obras de arte da evoluo, as plantas multiceJulares, os insetos, os peixes, as aves e os mamferos foi longo e difcil. Levou ~

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    bilhes de anos. A humanidade entrou no palco desse magnfico drama h apenas 1 milho de anos.

    A biologia molecular confirmou a idia fundamental de Daiwin por meio da sua capacidade de revelar aquilo que os genomas dos seres vivos tm em comum. A informao, neste caso informao gentica, se cria pela seleo sucessiva. Darwin props seu princpio para a evoluo de seres vivos autnomos. A extrapolao para sistemas pr-celulares como meio de responder s perguntas Como surgiram as primeiras formas de vida?"; "De onde surgiu a primeira clula autno-ma rn pareceu-lhe um passo excessivamente ousado. Em certa ocasio ele expressou um sen e imediatamente o qualificou como "oh, que enorme se!~. A excitante descoberta atual que a seleo age j no nvel molecular, com molculas replicveis como o RNA e o DNA, e portan-to passvel de derivao em virtude das propriedades fsico-qumicas das molculas. Isto acaba com a ciso que colocava a biologia de um lado e a f[sica e a qumica de outro. O que no significa que a biologia deva ser reduzida fsica ou qumica no sentido convencional. Simplesmente confirma que existe uma continuidade entre qumica, fsica e biologia. A fsica dos seres vivos tem suas prprias e caracte-rsticas regularidades. a fsica da produo da informao.

    A nova teoria da auto-organizao vai muito alm de Darwin em detalhe e responde a perguntas que permaneceram sem resposta ou como paradoxos em seu tempo. A herana de Darwin o testemunho do sculo XIX.

    Ludwig Boltzmann disse uma vez (em 1886): "Se quiserem que eu responda com sinceridade se este vai ser o sculo do ferro, do vapor ou da eletricidade, devo dizer sem hesitao que ser o sculo da captura dos mecanismos da natureza, o sculo de Darwinn. Com certeza Boltzmann assumiu uma postura um tanto modesta ao pagar seu tributo a Darwin. Somente hoje fica claro que a reduo dos fenmenos vivos a uma concepo mecnica da natureza apenas um lado da histria. As leis naturais subjacentes seleo e evoluo derrubam qualquer viso meramente causal-mecnica da natureza e descrevem um mundo com um futuro aberto e interminvel. Essa mudana de paradigma, talvez o nico da cincia natural que merea o tftulo, no est limitada biologia. Abrangeu toda a fsica nas ltimas dcadas e resolver suas conseqncias ao longo de um perodo muito mais vasto. Enquanto aprendemos como foi gerada a informao, criamos uma ponte entre a natureza e a mente.

  • O QUE RESTARA DA BIOLOGl.t\ 00 SCULO XX? '21

    Como gerada a informao (biolgica)?

    Desde a metade do sculo atual somos pos~:uidores de uma teoria que leva o nome de teoria da informao. Entreta.nto, Claude Shannon, seu fundador, ressaltou desde o incio que ela no lida com a informao em si mas com a sua transmisso. A informao como tal est excluda das consideraes; tratada como vem: uma seqncia de smbolos entre muitas alternativas, a ser mantida duranite a transmisso inde-pendentemente do seu contedo ou valor semntico. A informao nesta teoria aparece apenas como uma medida de complexidade. Uma linha feita de dois smbolos, por exemplo 1 e O, e de comprimento N, tem 2N seqncias alternativas possveis. Mesmo para seqncias relativamente curtas com um comprimento N de cerca de 300 (ocu-pando um pargrafo, ou menos de meia pgina impressa), o nmero de pargrafos alternativos maior que o nmero de tomos no um ver-so. Somente uma teoria dinmica da seleo pode levar em conta as diferenas entre seqncias com nexo e seqncias sem nexo, por me10 de critrios que avaliam seu contedo semntico ou fenotpico. Para permitir uma otimizao evolucionria do contedo, este precisa ser reproduzido com uma taxa de erro finita. De fato, existe um limiar de erro; imediatamente abaixo dele a evoluo est otimizada mas acima dele a informao torna-se vtima de uma caUistrofe. Ela se evapora como material em transio de fase.

    Aqui j emerge a mudana da viso darwin.ista do mundo. A sele-o natural no apenas a interao entre mutao ao acaso e seleo determinista e necessariamente consistente. Com um nmero to grande de alternativas, os acertos de mutaes vantajosas aconteceriam muito raramente. Hoje em dia essa interao enue acaso e necessidade pode ser facilmente simulada em um computador. Observa-se que um processo que avana de acordo com este plano progride com muita lentido. Se a seleo natural tivesse funcionado segundo tal plano ns no existiramos.

    Na realidade, a evoluo molecular prxima do limiar de erro inclui uma vasta gama de mutantes. O tipo rnais bem adaptado, o tipo selvagem que tem um papel preponderant1~ na teoria de Darwin, est presente apenas em pequeno nmero comparado com a popula-o molecular total. Os numerosos mutantes encontram-se de fato agrupados ao redor do tipo mais bem adaptado, de maneira que a seqncia mdia de "consensa1' representa a populao total. Os

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    biologistas moleculares aprenderam a determinar tais seqncias. Ex-perimentos de clonagem revelaram que o tipo selvagem na verdade corresponde mdia de um espectro de milhares de seqncias alter-nativas. Fundamentalmente, esta populao compreende apenas os mutantes capazes de uma reproduo eficiente. Esse resultado terico foi confirmado experimentalmente para populaes virais. Como exis-tem vrios bilhes, ou mais, de cpias que sofreram menos mutaes nessa distribuio molecular ou virai, a qual totalmente estvel abaixo do limiar de erro, como se um dado fosse lanado em bilhes de canais paralelos. Se um mutante melhor adaptado encontrado, a distribui-o anterior no est mais abaixo do limiar de erro. Ela toma-se instvel e seu contedo informativo vaporiza-se para condensar-se na proximidade de um novo tipo selvagem. Apesar da continuidade dos processos moleculares subjacentes, podemos ver que a evoluo avana por meio de saltos discretos. A seleo to eficiente por ser uma propriedade da populao total, representando uma enorme seqncia paralela de eventos. Se quisssemos simular este processo precisaramos de um novo tipo de computador paralelo. Realizar tal simulao em um computador em srie implicaria custos de tempo e dinheiro inviveis. A natureza nos demonstra que tipo de compu-tador o futuro precisa adquirir. Nosso crebro um desses compu-tadores, contendo muitos bilhes de clulas nervosas, e cada uma conectada com cerca de mil a 10 mil clulas vizinhas por meio de sinapses. Nosso sistema imune tambm uma rede celular com essa o~dem de complexidade.

    No fim do sculo XX, estamos cientes de que questes anlogas esto sendo formuladas em muitos ramos da biologia. Elas podem ser resumidas pergunta "Como gerada a informao?". Isto vlido para a evoluo de molculas, de clulas e tambm do processo de pensamento numa rede de clulas nervosas. Ainda mais empolgante a apreciao de que a natureza aparentemente se utiliza de prmdpios fundamentais similares nas implementaes tcnicas da gentica mo-lecular, do sistema imune e do sistema nervoso. Os anos 90 foram considerados nos Estados Unidos a dcada da pesquisa sobre o crebro. O legado da pesquisa biolgica deste sculo ser a compreenso pro-funda dos processos de criao da informao no mundo vivo.Talvez isto resulte na resposta questo "O que vida?".

    Porm, o perigo est nos mecanismos. Muito em breve conhecere-mos os esquemas de construo de inmeros seres vivos e saberemos

  • o QUE li.ESTARA OA BIOLOGTA 00 SCULO xx~ :;:3

    como se chegou a eles durante a evoluo. As rafzes histricas, entre-tanto, ainda esto totalmente envoltas numa nvoa. Os escolsticos uma vez se perguntaram o que veio antes- se a galinha ou o ovo, ou, em termos mais modernos, as protenas ou os cidos nuclicos, a funo ou a informao. O mundo do RNA, portado1 da legislatura gentica e um executivo funcional, talvez oferea uma sada para este dilema. Devo admitir que no sabemos (ainda) como as primeiras molculas de RNA "ingressaram no mundo". De uma perspectiva histrica, as protenas deveriam ter aparecido "primeiro", mas a prece-dncia histrica no necessariamente idntica precedncia causal. A organizao evolucionria exige armazenamento de informao auto-replicvel e ns apenas conhecemos os cidos nuclicos como capazes de assumir tal papel. Portanto o RNA, ou um precursor, tena sido necessrio para colocar o carrossel da evoluo em movimento,

    Encontramo-nos agora na posio de observar, em expenmentos de laboratrio, o processo de gerao de informao em sistemas que contm ambos os componentes: protenas (como enzimas) e cidos nuclicos (como armazns de informao). Os vrus so sistemas-mo-delo inigualveis. Entretanto, os vrus no podem ter se formado no mundo pr-bitico. Eles precisam de uma clula hospedeira para sobre-viver e evoluram com sua ajuda, provavelmente fazendo-o apenas no perodo ps-bitico. E, no entanto, existe uma forte analogia com o RNA do tipo virai em um ambiente semelhante a um hospedeiro.

    A intensificao do conhecimento sobre o processo de gerao de informao que alcanamos nos ltimos 20 anos j est comeando a dar frutos. Utilizando mtodos laboratoriais, seremos capazes de pro-duzir novos tipos de remdios e drogas naturais. Essas habilidades no se restringem ao nvel molecular. Do mesmo modo, iremos compreen-der o nvel ontognico dos seres vivos e seremos capazes de, por exemplo, intervir na eliminao de tumores causando sua degenerao. Iremos aprender como conhecer e modelar nosso sistema nervoso e seu modo de operao. A vida artificial e os computadores pensantes no sero mais relegados ao mundo da fico cientfica. quase impossvel avaliar o impacto que tudo isso ter nas nossas vidas.

    Mas haver limites, tanto naturais como normativos.Teremos de determinar quais partes do nosso conhecimento devemos aplicar, quais partes teremos de aplicar apesar da conscincia de possveis efeitos colaterais, e quais aspectos devemos deixar de lado, muito menos aplic-los. Uma onda cega de aplicaes to perigosa quanto a proibi-

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    o severa. Ns, a comunidade humana, temos de descobrir racional-mente o que poderia ou no ser feito, o que deve ou no ser feito. Precisamente neste contexto vejo o maior problema no resolvido que nos deixar ocupados no prximo sculo.

    Que problemas permanecem no resolvidos no fim deste sculo?

    Algumas questes foram levantadas nos pargrafos antenores; mas mesmo que eu fizesse uma lista contendo apenas aquelas defin-veis com preciso, a lista seria desconfortavelmente comprida Assim, posso apenas proceder com exemplos e escolhi duas questes centrais da minha prpria rea de pesquisa: um problema cientfico de grande impacto na sociedade e um segundo problema onde a sociedade gera o grande impacto sobre a cincia.

    A AIDS um problema ainda no resolvido, apesar da mais intensa pesquisa cientfica. O que a AIDS? A palavra um acrmmo de "Acquired Immunodeficiency Syndromen (Sndrome da lmunodefic1-ncia Adquirida). A doena inicia-se com um vrus, ou, colocado de uma maneira mais cautelosa, est causalmente ligada a uma infeco virai. A questo de o v[rus ser ou no necessrio e suficiente para a deflagrao dos sintomas da doena hoje muito debatida. H dois subtipos conhecidos do vrus da imunodeficincia humana: HIV-1 e HIV-2. Alm desses, um grande nmero de vrus de macaco tem sido isolado; e, embora no demonstrem ser patognicos nos seus hospedei-ros naturais, esses vrus o so ao serem transmitidos para outras populaes de macacos. O Centro de Controle de Doenas dos Estados Unidos estabeleceu que h, em mdia, um intervalo de 10 anos entre a infeco viral e o aparecimento dos sintomas da doena. Mais preci-samente, observamos que aps 10 anos cerca de 50% dos indivduos infectados mostram sintomas da doena e uma rpida e total paralisia do sistema imune. Portanto, a doena AIDS sempre resulta em morte devida, basicamente, infeco causada por um patgeno que normal-mente seria controlado pelo sistema imune. Muitos pacientes morrem de pneumonia causada por uma bactria (Mycobacteri11111 wl1eri:ulos15) que detectamos em estado latente, virtualmente a cada dois indiv-duos. Durante o perodo assintomtico, o vrus da AIDS existe coma populao muito pequena no organismo hospedeiro. Este, por sua vez,

  • O QUE RESTAR DA BIOLOGIA DO SCllLO XX? 25

    produz anticorpos em grandes quantidades, os quais auxiliam na deteco do vrus em testes de diagnstico da doena. Nos Estados Unidos, o nmero de casos registrados de AIDS j passou dos 100 m1l. Em termos mundiais, o nmero de pessoas infectadas com o vrus da AIDS estimado em aproximadamente 10 milhes, com uma concen-trao de casos na frica Central e Ocidental e no sudeste Asitico Nenhuma terapia durvel conhecida.

    De onde vem a AIDS? Oual a idade do vrus? Quando ele apareceu pela primeira vez numa populao humana? As hipteses mais mira-bolantes tm sido ventiladas para responder a essas perguntas. A ltima foi a alegao de que o vrus foi ufabricado" em um laboratrio do exrcito dos Estados Unidos e escapou por acidente para a ecosfera. Isso um total absurdo! A anlise seqencial dos genes deste vrus resolve sua histria evolucionria, ou pelo menos a restringe quantita-tivamente. E os resultados so os seguintes:

    Os subtipos humanos HIV-1 e HIV-2, juntamente com os vrus de macaco atualmente conhecidos, tm um ancestral comum que pode ser datado em cerca de 1.000 anos.

    Todas as seqncias dos vrus HIV e SN (vrus da imunodeficincia smia) apresentam posies pareveis (cerca de 20%) de ntida homo-logia com seqncias de retrovrus de mamferos. O patgeno da AIDS portanto a prognie de uma antiga famlia de vrus cuja origem remonta a milhes de anos.

    A maioria das posies variveis tem um tempo mdio de substituio de aproximadamente 1.000 anos. O comportamento especial do retrovrus, principalmente sua patogenicidade, pode mudar de ma-neira radical nesse intervalo de tempo. Portanto, pragas como a AIDS podem ir e vir. Elas podero ser mais patognicas para algumas espcies e menos para outras.

    Uma pequena poro das posies do genoma virai (cerca de 10%) hipervarivel, com um tempo mdio de substituio de aproximada-mente 30 anos. Essas posies so, no entanto, suficientes para gerar um enorme nmero de combinaes de mutantes distmtos. Entre estes, mutantes evasivos no suprimidos pelo sistema imune so repetidamente encontrados. No final isso esgota o sistema e prova-velmente a principal causa da patogenicidade do vrus.

    O vrus da AIDS certamente no apareceu nos Estados Unidos, Europa ou Japo antes dos anos 60. Na Africa, a presena de formas relacio-nadas remonta ao sculo passado. Ao longo dos ltimos 100 anos,

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    transmisses horizontais entre macacos e o homem tm ocorrido. O foco do subtipo HIV-1 a frica Central e o do HIV-2 a frica Ocidental. Estes subtipos, como a maioria das espcies de virus macaco-especficos, separaram-se h centenas de anos.

    A alta patogenicidade do vrus da AIDS tem trs causas: 1 Sendo o HIV um retrovrus, seu genoma integrado ao programa

    gentico da clula hospedeira aps a infeco. Uma vez infectada, a clula no consegue mais livrar-se da informao virai. No mXImo ela consegue inibir sua expresso.

    2 O alvo do vrus o sistema imune, cujo controle ele acaba paralisando.

    3 Devido sua alta taxa de mutao, que, a propsito, encontra-se bem no limiar de erro, o vrus consiste de uma gama de mutantes amplamente distribudos e que contm um grande nmero de mutan-tes evasivos.

    O vrus evolui sem descanso sob a presso seletiva do sistema imune do hospedeiro. O indivduo infectado torna-se eventualmente vulnervel a parasitas normalmente incuos.

    A dificuldade de combater este vrus reside no seu grande potencial adaptativo. Ele consegue driblar os mecanismos de defesa do hospedei-ro com a ajuda de mutantes "secundriosn. Como agora conhecemos a estratgia virai, existe a perspectiva de encontrarmos uma estratgia antivira! capaz de lidar com o comportamento "mutante secundaria'', eliminando as chances de sobrevivncia do vrus. Para procurar tal estratgia precisamos no apenas da tecnologia gentica mas tambm de experimentos em modelos animais. Qualquer que seja nossa posio quanto a isso, a realidade so 10 milhes de indivduos infectados com o vrus HIV, dos quais a maioria ir desenvolver os sintomas da AIDS na virada do sculo. Quase nenhum ir sobreviver - a no ser que encontremos uma terapia efica~.

    Meu segundo problema apresenta exatamente a polaridade inver-sa, direcionada da sociedade para a cincia. H j vrios anos foi implementada na Alemanha uma lei sobre o gene. de fato a lei mais severa do mundo inteiro. Ela tem comeado a frear a pesquisa e o desenvolvimento industrial. Por outro lado, devemos dar crdito ao fato de no terem acontecido desgraas ou acidentes graves no mundo. Propostas mais recentes vo ao extremo de exigir uma prova da total segurana de um procedimento. Mas o que "absolutamente seguron? Mesmo agora, antes de qualquer aplicao de um procedimento, todo

  • O QUE li.ESTAR DA BIOLOGIA DO SCULO XX1 27

    teste concebvel realizado e um longo perodo probatno respeitado. Atualmente surgiu a exigncia de excluumos coisas que ainda no so compreendidas. Isto levaria a pesquisa a uma parada total e, conse-qentemente, tornaria impossvel o desenvolvimento de novos medi-camentos. (As proposies sobre a proteo de animais tambm esto indo nessa direo.) Vou agora citar um exemplo. Antes do incio dos anos 60 a paralisia espinhal infantil, a poliomielite, era uma terrvel praga em nossas latitudes. Manifestava-se tanto em casos isolados como em epidemias mundiais, criando muitas vtimas e deficientes permanentes. Somente em 1950, 30 mil casos foram registrados nos Estados Unidos. Hoje em dia esses casos desapareceram quase total-mente graas a um rigoroso programa de vacinao profiltica. Apenas em pases em desenvolvimento a poliomielite ainda representa um problema srio, e mesmo assim devido a um programa de inoculao inadequado. O patgeno neste caso um picornavrus. Existem atual-mente duas vacinas, uma mistura do vrus morto (a vacina Salk) e a chamada vacina do vrus "atenuado" (vacina Sabin), a qual consiste de um mutante do vrus selvagem que no patognico mas capaz de induzir uma reao imune mais forte que a desencadeada pelo vrus morto. principalmente graas a esta vacina aplicvel por via oral, de fcil manejo e alta eficcia, que o vrus pde ser quase completamente erradicado no mundo ocidental. Episdios da doena, porm de gravi-dade reduzida, so ocasionalmente observados.

    Tudo bem at aqui. Muito inesperada foi a elucidao, h alguns anos, da seqncia de RNA de uma das vacinas Sabin (tipo B). Ela mostrou tratar-se de um mutante do tipo selvagem gerado por muta-o em dois pontos. Tal mutante pode reverter para o tipo selvagem em 48 horas. Ao que parece, este perodo de cerripo suficiente para provocar uma resposta eficiente do sistema imune. Na medida em que mutaes so eventos ao acaso, uma ocasional mutao reversa mais rpida concebvel, o que poderia explicar os episdios isolados da doena. No caso da AIDS uma vacinao deste tipo certamente levaria a uma desastrosa epidemia.

    Qual a diferena entre o vrus da plio e o da AIDS? O genoma de ambos consiste de uma nica molcula de RNA. As respectivas taxas de mutao so consideradas parecidas em magnitude. Com a ajuda de um novo mtodo de anlise comparativa de seqncias, chamado geometria estatstica, descobrimos que existe uma vasta heterogenei-dade na fixao de mutaes em diferentes posies de cdons do gene codificador das protenas de superfcie virais. Cada unidade de constru-

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    o de uma protena determinada por um cdon que contm trs posies. As duas primeiras determinam o tipo especfico de amino-cido a ser incorporado durante a traduo, enquanto trocas na ltima posio geram principalmente aminocidos sinnimos, isto , elas no tm efeito sobre a seqncia de aminocidos da protena traduzida. No caso do vrus da AIDS as trs posies do cdon so substitudas com taxas altas de mutao que so semelhantes, criando assim uma ampla gama de diferentes molculas proticas (algumas das quais evadem o sistema imune). J no caso do vrus da plio, praticamente as nicas mutaes fixadas so as da terceira posio do cdon. Elas so co numerosas que h quase uma substituio total, enquanto a primeira e segunda posies permanecem via de regra inalterveis em todos os mutantes. Isto significa que as protenas na superfcie do vrus da plio mudam muito pouco_ No existem portanto mutantes evasivos neste caso. O sistema imune pode ento uposicionar-se e dar duro", isto , desenvolver uma resposta de defesa eficaz em um curto espao de tempo.

    Mas vamos agora moral da histria: se tivssemos sabido que o vrus atenuado era um parente to prximo do tipo selvagem, certa-mente o uso da vacina Sabin teria sofrido grandes restries. Segundo a viso atual isso no poderia acontecer, na medida em que se tornou comum produzirmos esse tipo de mutantes por mutagnese direta, ou seja, atravs da engenharia gentica. Estaramos agora Mcirculando um agente patognico geneticamente manipulado". De qualquer for-ma, nosso estado atual de conhecimento no excluiria um risco que na verdade real, demonstrado pela incidncia ocasional da doena aps a vacinao oral. Nada disto era sabido quando a vacina Sabin foi introduzida. Procedeu-se, de forma legal, ao teste emprico do vrus atenuado.

    Entretanto, um mutante gerado pela engenharia gentica no difere de um mutante natural. No primeiro caso estamos manipulando e sabemos o que fazemos. No segundo caso a Natureza quen'I manipula mas ns no sabemos qual ser o resultado e podemos a penas testar empiricamente o que vai acontecer. Um mtodo tachado de mau, o outro aceito como natural, embora seja sempre mais fcil controlar um risco por aes conscientes do que por manipulaes inconscientes. Lendo o texto da lei alem do gene, deparamo-nos repe-tidamente com esse tipo de absurdo; deseja-se excluir em 100% qualquer possibilidade de risco enquanto se aceitam outros imponderveis sem consideraes. Por exemplo, o trabalho de pesquisa que poderia um dia

  • O QUE RESTARA DA BIOLOGIA DO SECULO XX? 29

    repelir um perigo totalmente suprimido. No caso da plio, teramos com certeza evitado o caminho nada isento de riscos da manipulao gentica; isso teria significado de fato a morte de muitas crianas. A vacina Sabin salvou essas vidas porque confiamos cegamente na natu-reza e aceitamos inconscientemente os riscos inerentes.

    Neste contexto, uma pergunta deve ser feita: o quanto deveria ceder a maioria indiferente da sociedade aos a:rgumentos ideolgicos de uma minoria emocionalmente motivada contra o conselho de espe-cialistas?. O que significa, em ltima instncia, liberdade de pesquisa segundo garantido pela Constituio alem? No quero interpretar liberdade como a falta total de restries. No podemos pr em prtica tudo o que sabemos nem devemos fazer tudo que somos capazes. Que outra maneira existe de tomar decises seno ra.cionalmente? No caso de Hiroshima no houve suficiente juzo polco e militar, e no caso de Chernobil houve um parco senso tcnico. O conhecimento no pode ser "velado", precisamos aprender a conviver com ele. Para tal, preciso ter uma estrutura legal sensata de impacto internacional. Mais do que tudo, temos o dever tico de utilizar todo o conhecimento alcanado pelo bem da humanidade, seja para reduzir o sofrimento de indivduos, seja para assegurar a sade e a alimentao da populao mundial. Volto ao cenrio do futuro da humanidade que descrevi na minha introduo. Uma proteo ambientalmente ju:sta da produo de ali-mento destinado a uma populao mundial de multibilhes; um siste-ma sanitrio e de sade pblica adequado para tamanha umassa de indivduos": estas so coisas possveis hoje apenas se utilizarmos todo o conhecimento conquistado. Isso inclui toda uma leva de novos seres geneticamente manipulados a fim de gerar alimento, assim como tambm o uso da tecnologia nuclear para gerar eletricidade.

    O futuro: o objeto de estudo da humanidade o prprio homem

    Vivemos em uma sociedade que se esquivai do risco. Chegar um momento em que, por esta razo, ela fechar as portas para a cincia e especialmente para a pesquisa bsica. Mesmo agora no me surpreen-deria ver um adesivo no vidro de trs de um carm com o dizer: "Pesquisa bsica-no, muito obrigado!", enquanto um g1s cinza azulado emana do seu escapamento. O que alguns membros do movimento de prote-

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    o aos animais esto fazendo pode ser no mnimo rebaixado a esse nvel. Os oponentes da energia nuclear esto feliz.es com a eletricidade que flui das tomadas de suas casas. No podemos fazer nada til sem, simultaneamente, assumir riscos. Deixar de fazer qualquer coisa pode ser muito mais prejudicial a longo prazo. Precisamos aprender a pesar as probabilidades, e lemas como os do adesivo do carro no ajudam muito nesse sentido.

    Quando falo sobre o futuro da pesquisa biolgica, o importante vai ser discutir os crescentes problemas da avaliao de riscos, da responsabilidade e da conduta tica. Porque o principal objeto de estudo da pesquisa biolgica o homem e seu ambiente, este "seu significando relativo ao homem. Conseqenteme:nte, os resultados da pesquisa so relevantes para todo mundo.

    No quero tentar fazer previses gerais do sculo que est por comear e muito menos do prximo milnio. Segundo Friedrich Or-renmatt, os problemas so totalmente resolvidos apenas quando ima-ginamos os piores resultados possveis. Os futurologistas, claro, so capazes de descrever apenas as possibilidades mai1s promissoras.

    Poderemos explorar a natureza gentica do homem mais do que nunca sonhamos, porque existiro mquinas capazes de leros3 bilhes de letras da herana humana em 1 ms. Isto permitir, em particular, a realizao de estudos comparativos. Da mesma forma, poderemos determinar a seqncia gentica de muitas outra!i formas de vida para ento sermos capazes de desvendar a nossa prpria origem evolucion-ria. Poderemos sondara crebro humano e constru:ir computa dores que de longe superam o crebro em muitas tarefas. No acredito que algum dia teremos nas mos um computador que sequer se aproxime do crebro humano em todas as suas capacidades, mas um crebro e computador conectados mostraro habilidades "s:uper-humanas". No poderemos cristalizar um homnculo, mas rob:s sero investidos de poderes at agora encontrados somente no reino biolgico. Chamar a isto de Nvida artificial" apenas uma questo de gosto. Poderemos curar o cncer, porque estamos descobrindo um nme:ro cada vez maior de suas causas. Alm disso, quanto s doenas cardacas, seremos capazes de fazer diagnsticos precoces, permitindo que a interveno mdica se realize a tempo. Porm, no fim, ser irrelevante de que doena vamos morrer, porque acredito que futuramente a nossa idade mal exceder os 100 anos. No precisamos realmente nos perguntar se as cidades de amanh estaro ou no sob uma cpula de vidro e tero uma atmosfera artificial. Mas hoje deveramos, com certeza, nos preocupar com o

  • O QUE RESTAR DA BIOLOGIA DO SCUtO XlO SI

    seguinte: onde vamos conseguir toda a energia eventualmente neces-sria para manter uma economia de reciclagem'? Manter o ar e a gua limpos urna tarefa limitada pela alta produo de entropia. Uma precauo oportuna para o futuro essencial aqui. Evidentemente, existiro muitas descobertas e invenes que neste momento desafiam a nossa imaginao. exatamente por essa razo que qualquer previso detalhada sobre o futuro ser incorreta. Estamos na mesma posio em que Carlos Magno se encontraria se os seus contemporneos tivessem feito perguntas sobre o mundo no sculo XX.

    Apesar disso, um prognstico razoavelmente certo; se a huma-nidade se encaminha para o melhor ou para o pior vai depender do homem finalmente aprender o que ele no conseguiu aprender nos cinco milnios da sua histria cultural, ou seja, agir racionalmente e sensatamente no interesse da humanidade e elaborar normas de con-duta bem definidas.Tais normas so anlogas a um programa gentico e precisam ser estabelecidas valendo para todos ns.

    O homem se encontra no mais alto degrau da escada da evoluo. Digo isto no porque no consiga imaginar outra criatura mais perfeita mas porque, com o homem, a evoluo atingiu uma nova plataforma fora do alcance de qualquer outro organismo, de onde a evoluo precisa continuar de maneira radicalmente nova. Operando com base na seleo, a evoluo exige a contnua reproduo, sujeita a mutag-nese, da informao fixada nos nossos genes como tipos de impresso. Novas vias de comunicao entre clulas surgiram com a formao de estruturas e redes celulares. Estas foram inicialmente mediadas por sinais qumicos interceptados por receptores especficos e finalmente por sinais eltricos recebidos por sinapses e passados para a prxima clula. Desta forma, um comportamento geral correlato de um sistema celular diferenciado pde se desenvolver, pr-programado no genoma apenas no seu leiaute. a seleo que assegura que o leiaute opere a favor do organismo como um todo. Isto incompatvel com clulas individuais ou rgos funcionando uns contra os outros. Tal antago-nismo somente pode assumir a forma de degeneraes patolgicas como o cncer. No sistema nervoso central, a comunicao intercelular deu origem a uma linguagem interna que controla nossos comporta-mentos, emoes, disposies e sentimentos. At mesmo esta habili-dade tornou-se geneticamente ancorada e tem sido selecionada para no agir contra a espcie. desta maneira que o homem surgiu durante a evoluo; esse comportamento geneticamente programado, indivi-dualista e espcie-especfico inerentemente egosta, baseado na com-

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    petio e auto-afirmao. Em casos onde aparece como altrusta ele acaba sendo, a longo prazo, vantajoso para a espcie ou cl, o que, por sua vez, de alguma forma vantajoso para o indivduo.

    Foi dessa forma que o homem desenvolveu uma faculdade espec-fica, diferente da de outros primatas, que lhe permite alcanar a formalizao da linguagem interna codificada primeiramente nas des-cargas das clulas neNosas. Essa formalizao no apenas facilita a comunicao entre membros de uma espcie mas tambm a base da nossa capacidade de pensar, de registrar resultados para benefcio da humanidade e leg-los s geraes seguintes por escrito. Isto implica um novo plano de transferncia de informao, parecido com o plano original da informao gentica que deu uma qualidade totalmente nova qunica. No plano da mente humana, uma nova forma de evoluo pode acontecer: a evoluo cultural da humanidade.

    Entretanto, aqui reside o problema-chave. A humanidade no algo como um organismo multicelular onde cada clula leva sua vida individual mas assumiu um compromisso, por meio da legislatura gentica, para o bem da coletividade celular.A informao cultural no herdada pelo indivduo, assim como tampouco o comportamento socialmente aceitvel. Apesar da evoluo cultural da humanidade, que vem durando milhares de anos, as pessoas ainda fazem guerras e no menos cruis que as do passado. Iludimo-nos ao pensar que o compor-tamento socialmente aceitvel algo natural e que o comportamento anti-social, ao contrrio, algo patolgico. O socialmente aceitvel a norma apenas no sentido original da palavra em Latim, 11ornw, que significa regra ou regulamento.

    Estamos enfrentando um verdadeiro dilema, porque as tentativas anteriores de submeter a liberdade individual a imposies, rebaixando o indvduo para um status semelhante ao de uma clula sem vontade dentro de um todo orgnico sob controle central, tm apenas prejudi-cado a humanidade a longo prazo e at resultaram na aniquilao de partes da coletividade humana. Esses experimentos falharam em parte porque o novo organismo no era a humanidade inteira mas apenas um certo grupo, representante de interesses especficos que freqente-mente violaram os direitos humanos bsicos. Em parte falharam por-que as "clulas lderes", as uclulas-crebro" desse grande organismo eram na maioria indivduos incapacitados, auto-obcecados ou egosLas, essencialmente interessados em exercer o poder. O resultado foi um sofrimento incomparvel.

  • O QUE RESTAR DA BIOLOGIA DO SECULO XXI :'i:'i

    Ideologias no podem substituir a razo. Todos os grupos polticos que defendem a disciplina partidria deveriam dar-se conta disso Eles, claro, defendem ideais que tm um fundamento vlido, chamem-se socialistas -quem no apoiaria uma conscincia social? - ou partidos verdes - quem no gostaria de manter o ambiente saudvel?. - ou cristos-quem desejaria um mundo sem compaixo ou caridade? Isto se aplica igualmente a todos aqueles que querem colocar a liberdade individual acima de tudo. Cada um desses motivos, elevado ao pedestal de doutrina, vai contra nosso bom senso, que, a propsito, envolve no apenas nosso intelecto mas tambm nosso sistema lmbico, nossos sentimentos e emoes. Mesmo no futuro, no poderemos de maneira alguma delegar nossas decises a um computador.

    Um olhar de relance para o estado atual do mundo provavelmente nos deixar pessimistas. A primeira metade deste sculo confrontou-se com duas guerras terrveis. E que lio aprendemos? Nada ir mudar se no basearmos nossas decises na razo, aceitando a humanidade como um imperativo moral. O futuro da humanidade no ser decidido no nvel gentico. Precisamos de um sistema tico de ligao entre todas as pessoas. :t. aqui que a evoluo, uma evoluo do indivduo para a humanidade, aguarda sua consumao.

  • 3

    11 0 QUE VIDA"?" COMO UM PROBLEMA HISTRICO

    STEPHEN ]AY GOULD 1

    "O que vida?" como um manifesto modernista

    Definir o bvio pode ser terrivelmente difcil - como bem exem-plificou Louis Armstrong quando, encontrando um f incondicional que ingenuamente pediu-lhe para definir o jazz, respondeu com a famosa frase: "Amigo, se voc precisa perguntar porque nunca vai saber". igualmente inegvel que o livro O que vida? de Erwin Schrdinger faz parte das obras mais importantes da biologia do sculo XX, mas as razes da sua grande influncia parecem estranhamente fugir do nosso alcance. A brevidade pode ser a alma do saber (como o velho e loquaz Polonius nos disse), e trabalhos concisos so raras bnos em uma profisso que com freqncia julga o mrito segundo a prolixidade. Mas O que vida?, nas suas noventa folhas, parece ser um livro um tanto elptico e econmico em palavras para ter esse peso intelectual (embora, em um sentido estritamente prtico, a brevidade possa definir as diferenas fundamentais entre o interesse e o esqueci-

    1 Museum of Comparative Zoology, Harward University, 26 Oxford Street, Cambridge, MA 02138, USA.

  • 36 STEPHEN JAY COULO

    menta em um campo dominado mais por escritores do que por leito-res). Por exemplo, acho que podemos sentir-nos confiantes quanto resposta correta, e se necessrio conjectura!, para a antiga charada histrica do tipo uE se ... ": que diferena faria para a histria da cincia se Wallace nunca tivesse nascido e Darwin tivesse tido o tempo livre de escrever uma obra de muitos volumes, como intencionava, em vez do apressado uresumon conhecido por A origem das espeoes? A resposta - na medida em que o mundo intelectual estava claramente preparado para aceitar a evoluo -deve ser: absolutamente nenhuma diferena, exceto que Darwin teria tido o mesmo impacto com um nmero muito, muito menor de leitores. E mais, grande parte da base intelec-tual de O que vida?- as idias iniciais de Delbrck sobre as causas da estabilidade do gene- resultou ser bastante incorreta (ver Crow, 1992, p.238). Neste caso, por que estamos celebrando, muito justamente, este semicen tenrio "?

    Em primeiro lugar, impossvel negar a importncia germinal do testemunho de muitos dos fundadores da biologia molecular moderna. Jm Watson considerou o livro de Schrdinger a influncia decisiva que o persuadiu a estudar a estrutura do gene (ver Judson, 1979). Francis Crick atribuiu-lhe impacto semelhante, mas com a mesma perplexida-de que muitos outros demonstraram: u um livro escrito por um fsico que no sabe qumica. Mas ... sugeriu que os problemas biolgicos poderiam ser pensados em termos da fsica e portanto deu a impresso de que coisas empolgantes nessa rea no estavam muito longe de acontecer" (citado em Judson, 1979, p.109). (Sobre a questo da per-plexidade, pensem no recente comentrio de Jim Crow (1992, p.328): "Assim como Cunter Stent, tambm no sei por que o livro teve tanto impacto, s sei que me impressionou muito na poca")

    Crow em seguida nos d um excelente resumo do livro quanto s suas principais alegaes e insights - a segunda razo de sua influncia:

    Talvez tenha sido a caracterizao que Schrdmger fez do gene como um "cristal apendico". Ou talvez a sua viso do cromossomo como uma mensagem escnta em cdigo. Talvez tenha sido sua frase de que a vida "se alimenta de entropia negativa. Ou sua noo de que a indeterminao quntica no nvel do gene transformada em mdeterm1 nao molar pela multiplicao celular. Talvez tenha sido sua nfase na estabilidade e habilidade do gene de perpetuar a ordem Ou talvez a crena de que as muito bvias dificuldades de interpretar a vida segundo pnncpios fsicos no implica que precisamos de uma lei suprafsica, embora algumas novas leis possam ser necessrias nesse campo.

  • QUE VIDA1' COMO UM PROEILEMA HISTRICO 37

    No gostaria de prejudicar esta oportuna celebrao negando de qualquer forma a importncia de O t/tu! vida?, mas quero sugerir que a alegao-chave de Schrdinger, de uma univc~rsalidade quase auto-evidente na sua abordagem da biologia, exces!;iva, do ponto de vista lgico, e socialmente condicionada, um produto da sua poca. E vou alm, dizendo que estas caractersticas limitantes podem nos ajudar a compreender por que uma grande parcela dos bilogos, incluindo meus companheiros de paleontologia e estudcS evolucionrios, tem sido menos influenciada, menos impressionada1 pelos argumentos de Schrdinger e continua convencida de que a resposta a "o que vida?'' exige que voltemos nossa ateno para mais coisas na terra do que so sonhadas na filosofia do nosso homenageado.

    Schrdinger (1944, p.vii) comea seu prefcio identificando a uni-ficao com o inquestionvel sonho e meta da cincia:

    Herdamos dos nossos antepassados o grande desejo pelo conhec1-mento unificado, abrangente. O prprio nome dado s mais importantes intituies de ensino nos lembra que desde a antigidade e ao longo de: muitos sculos o aspecto universal tem sido o t1n.ico a ser completamente valorizado ... Percebemos com clareza que somente agora estamos adqui-rindo o material confivel para poder soldar as vrias partes do conheci-mento em um todo.

    Schrdinger apresenta a sua meta da unificao como o anseio inquestionvel e quase logicamente necessrio de todo cientista em qualquer poca. A verdade bem o contrrio. A unificao foi um propsito categrico de um movimento explcito enraizado nas cir-cunstncias sociais da juventude de Schrdinger: as esperanas de uma universalidade racional logo aps a matana nacionalista da Primeira Guerra Mundial. Ao captarmos que esta crena fundamental na unificao uma contingncia social entenderemos por que a res-posta de Schrdinger questo uo que vida?'' no possui um sttttus geral e deve ser considerada o produto transitrio de uma fase da histria do sculo XX.

    O autoproclamado "movimento pela unid.:tde da cincian surgiu como a faceta principal do positivismo lgico, de:senvolvido pela escola de filsofos de Viena durante os anos 20. Relacionado principalmente com Rudolf Carnap e Otto Neurath, ambos membros de destaque do Wiener Kreis (Crculo de Viena), este movimento sustentou que todas as cincias compartilham as mesmas leis, mtodos e linguagem, e que

  • 38 STEPHEN JAY COLPLD

    no existem diferenas fundamentais entre as cincias da fsica e as biolgicas, ou (na verdade) entre as cincias naturais e as cincias soCiais devidamente constitudas.

    O movimento pela unidade da cincia teve grande influncia sobre a biologia, uma rea que muitos antes consideraram excessivamente idiossincrtica ou descritiva para poder ser englobada na teoria c1entf-fica geral (ver Smocovits, 1992, a respeito do papel desta doutrina na sntese evolucionria dos anos 30 e 40). Schrdinger ocupou uma posio ideal para transpor as metas do movimento biologia Ele nasceu e cresceu em Viena e matriculou-se na Universidade de Viena. Ganhou o prmio Nobel de Fsica - a cincia "central" ou ''de mais alto nveln, ao redor da qual todas as outras se agrupariam dentro da viso essencialmente reducionista do movimento pela unidade cientfica e do positivismo lgico em geral. Como Schrdinger poderia deixar de ancorar seu livro na busca pela unificao baseada nas leis da fsica i

    Se a convico de Schrdinger na unificao reducionista emergiu do movimento pela unidade da cincia, este, e suas bases filosfcas, estava entranhado em foras culturais ainda mais abrangentes e a seguir denominadas o modernismo", que marcou to profundamente esferas como a arte, a literatura e a arquitetura. O moderntsmo procu-rou, acima de tudo, a reduo, a simplificao, a abstrao e a univer-salidade. Nas mos de um mestre como o arquiteto Mies van der Rohe, as construes modermstas (do "estilo internacional", assim chamadas pela sua meta de universalidade) podem ser elegantes e imponentes, mas os milhares de derivados de produo infenor que atualmente mostram suas rachaduras e se desintegram por todo o planeta so ho1e a praga das cidades do Terceiro Mundo e a anttese do verdadeiro regionalismo e orgulho locaL

    Em geral, O q11e vida? tem sido visto como um depoimento atemporal sobre a imutvel lgica da cincia. Eu sugiro uma leitura oposta, ou seja, um documento social que reflete os objetivos do "movimento pela unidade da cincia"; uma mani..festao da perspec-tiva mais abrangente denominada modernismo. Sendo assim, as falhas e qualidades do livro de Schrdinger esto ligadas aos fracassos e sucessos do modernismo em geral_ Posso aprovar grande parte do esprito modernista, especialmente seu otimismo e compromisso com a inteligibilidade mtua baseado na unidade de princpios. Mas tam-bm lamento sua nfase na padronizao em um mundo to belo em sua diversidade e no aceito o reducionismo subjacente procura de leis gerais de abstrao mxima.

  • ''O QUE VIDA?" COMO UM PROllLEMI\ HISTRICO ~9

    Na nossa gerao, essas amplamente reconhecidas falhas sociais do modernismo (particularmente a tendncia a1 outorgar a hegemonia a um modismo em detrimento de outros competidores legitimas) gerou um contramovimento chamado (com certa falta de imaginao) de "ps-modernismo". E embora eu considere que muito da produo ps-modernista uma tristeza (desde as incom;eqncias arquitetni-cas falta de clareza na literatura), embora os ~avanos" ps-moder-nistas devam ser considerados no como verdades mais elevadas, porm marcas sociais dos nossos tempos (assim como o modernismo foi o reflexo de dcadas anteriores), tambm ccinsidero extremamente valiosa a rejeio ps-modernista da caracterfstica busca do modernis-mo por solues nicas e abstratas. E particularmente apio a nfase ps-modernista no aspecto ldico e no pluralismo, o fato de ela defen-der a incontestvel importncia dos detalhes locais e sua convico de que, embora a verdade possa ser unitria (muitos ps-modernos nega-riam esta alegao, mas no fao parte dessas tendncias ao niilismo), nossas perspectivas sobre a verdade podem ser to multiplamente v-lidas quanto nossas vises socialmente condicicinadas. Um ps-moder-no mal poderia atribuir uma resposta unitria questo uo que vida?" - particularmente uma resposta, como a de Schrdinger, enraizada no cerne modernista da reduo s partculas constituintes bsicas.

    Em resumo, admiro a maior parte do livro de Schrdinger mas considero que suas falhas so expresses de problemas gerais da filoso-fia modernista que permeia seu trabalho. Como bilogo evolucionista dedicado ao estudo dos organismos inteiros e suas histrias, no considero a resposta de Schrdinger incorreta mas apenas aflitivamen-te parcial e mal tocando alguns dos tpicos mais profundos da minha rea.

    Dificilmente poderiamas propor uma forma de reducionismo mais agradvel ou conciliatria do que o argumento que Schrdinger apre senta como ponto central de O que vida? - pc1rque ele no ultrapassa a pretensiosa e antiga alegao newtoniana de que seres biolgicos "so meros objetos ffsicos de grande complexidade: e portanto redutveis, em ltima instncia, a conceitos convencionais desenvolvidos pela rainha das cinciasn. Schrdinger admite que objetos biolgicos so diferentes e nicos. Eles precisam eventualmc~nte ser explicados por princpios da fsica mas no necessariamente o:s j conhecidos. Portan-to, a biologia ser to til para a fsica (na medida em que levar descoberta destas novas leis) quanto a fsica para a biologia, porque ela finalmente fornecer uma explicao unificada para todas as matrias:

  • 40 STEPHEN JAY GOULO

    O quadro geral de Delbrcksobre o material hered1tno d origem noo de que a matria viva, embora no fu1a s "leis da fsica". provavel-mente ir envolver outras leis da fsica" at agora, desconhecidas que, no entanto, uma vez reveladas, faro parte integral desta cincia tanto quanto as anteriOres. (Schrdinger, 1944, p.69)

    Schrdinger tenta ento deduzir a natureza do material heredit-rio pela sua impossibilidade de funcionar segundo as leis vlidas para as menores partculas da matria inanimada:

    Com tudo o que aprendemos sobre a estrutura da matria viva, temos que estar prontos para descobrir que ela opera de uma forma no redutvel s leis comuns da fsica. No porque exista uma "nova fora" ou se1a l o que for direcionando o comportamento dos tomos em um organismo vivo, mas porque a construo dessa matria diferente de tudo o que j testamos em um laboratrio de fsica. (Schrdmger, 1944, p.76)

    Neste novo mundo quntico, o "mecanismo probabilstico da fsica" (Schrdinger 1944, p.79) constri a ordem macroscpica a partir da desordem molecular - "nossa maravilhosa teoria estatstica de que, justificadamente, nos sentamos to orgulhosos porque permitiu olhar por trs da cortina e vislumbrar a magnfica ordem ou lei fsica precisa que emerge da desordem molecular ou atmica" (Schrdinger, 1944, p.80). A complexidade do material hereditrio exigir um novo princ-pio da ordem a partir da ordem:

    A ordenao com que nos deparamos no d1:sdobramento da vida nasce de uma fonte diferente. Ao que parece existem dois "mecanismos'' distintos segundo os quais eventos ordenados podem ser gerados: o "mecanismo estatstico que produz a ordem a partir da desordem" e um novo mecanismo, que produz a "ordem a partir da ordem" Os fsicos sentiram-se muito orgulhosos por estarem associados com ... o princpio "da ordem a partir da desordem", que atualmente seguido na natureza_., Mas no podemos esperar que as "leis da fsica" que dele derivam sejam suficientes para explicar de imediato o comportamento da matria viva, cuias caractersticas mais notveis visivelmente se funda-mentam, e em grande medida, no princpio da "ordem a partir da ordem. Vocs no esperariam que dois mecamsmos totalmente distintos geras-sem o mesmo tipo de lei - no esperariam que a chave de cada um tambm abrisse a porta do vizinho. (Schrdmger, 1944, p.80)

  • o QUE E VIDA~ COMO UM PROBLEMA HISTRICO 4 I

    Estes argumentos levaram Schrdinger sua inferncia mais co-nhecida, a que garantiu tamanha influncia histrica ao seu pequeno livro - o conceito de gene como um "cristal aperidico"

    "0 que vida?", uma pergunta para o pluralismo

    Um problema de. ttulo

    Dentro do contexto do que expus anteriormente, acredito que no vo me julgar excessivamente intolerante ou trivial se disser que meu princpal problema com O que vida? a alegao implcita no ttulo. Logo na primeira pgina, Schrdinger expe a questo que seu livro tentar responder:

    A questo ampla, importante e extremamente discutida a seguin-te: como a fsica e a quimica podem explicar os a1:ontecimentos no espao e no tempo que ocorrem dentro dos limites espaciais de um ser vivo! (Schrdinger, 1944, p.l)

    (Esta formulao pelo menos fornece um cenrio to abrangente quanto um ser vivo inteiro, embora O que vida? logo a seguir discuta, quase exclusivamente, a natureza fsica do matierial hereditrio.)

    Resumindo,. e dentro do esprito do modernismo reducionista, Schrdinger argumenta que obteremos a resposta a "o que vida" quando soubermos do que so feitas as menores unidades da heredita-riedade e como elas funcionam de maneira universal. No nego o valor inestimvel de aprender qual a natureza e cconstruo do material gentico. Mas este conhecimento nos leva a uma resposta adequada de uo que vidan? No haver mais, muitssimo mais, que qualquer conceito coerente razovel dessa questo precise incluir? De um ponto de vista parcial como paleontlogo, devo rejeitar a limitada formula-o de Schrdinger, pois sua aceitao torna min.ha rea irrelevante ou, na melhor das hipteses, totalmente secundria. Se o conhecimento da natureza fsica do material hereditrio responde pergunta "o que vida", ento por que minha especialidade tenta arduamente delinear a histria filtica na grande escala de tempo de~ bilhes de anos? No mximo, a terra seria apenas um palco onde documentar meros deta-lhes da histria especificada por uma teoria qui~, por sua vez, nasceu

  • 42 STEPHEN JAY GOULD

    exclusivamente de uma compreenso da natureza da matna a partir dos seus menores componentes. Segundo esta viso, paleontlogos no tm como desenvolver uma teoria a partir do seu macromundo, nenhu-ma contribuio a dar no sentido de fornecer uma resposta completa a uo que vida?n. Podemos apenas docu'mentar uma histria real e esta atividade torna-se banal se no d origem a nenhum i11s1f.lr1 terico.

    Fontes locais da reduo

    O que a vida, ento, alm do funcionamento dos seus menores componentes? Por que deveramos ser capazes de responder correta-mente a uma pergunta to vasta dentro de um domnio to restrito; - e por que existem tantos de ns completamente satisfeitos com respostas parciais como a de Schrdinger7 Em parte, a culpa de uma srie de tradies e fatores sociais externos paleontologia e outras subdisciplinas da biologia de organismos inteiros" A inveja pela fsica tornou os pronunciamentos de grandes cientistas neste campo, parti-cularmente os ganhadores do prmio Nobel (pois nossas disciplinas no so honradas com esse tipo de premiao) merecedores de respeito especial (e em grande medida imunes s cerradas crticas) A populari-dade do modernismo impulsionou indevidamente os velhos equvocos reducionistas. A falta de orgulho em relao a nosso prprio material (outra conseqncia do reducionismo e da inveja pela fsica) tornou-nos mais receptivos a gurus de outras paragens.

    Mas um outro conjunto de fatores emerge das nossas prprias tradies e explicaes convencionais - e portanto podemos culpar apenas a ns mesmos pela aceitao excessivamente rpida do reduci-onismo e o pronto adandono dos nossos fenmenos como fontes ncas de teorias para muitos aspectos da resposta completa pergunta "o que vidar. O prprio darwinismo clssico no apenas aceita, mas na verdade promove um estilo de pensamento reducionista que tornou o palco geolgico teoricamente irrelevante, mesmo antes que a gentica molecular fornecesse uma verso ainda mais radical

    Duas caractersticas da viso do mundo darwinista encorajaram a reduo do cortejo geolgico da histria da vida no mfnimo s maqui-naes temporrias dos organismos, se no prpna natureza fsico-qumica do material gentico. Primeiro, a teoria da seleo natural identifica como Jorns unitrio de mudana causal o organismo lutando pelo sucesso reprodutivo-e explicitamente nega um status causal ativo

  • "O QUE VIDA?" COMO UM PROBLEMA HISTRICO 43

    a qualquer unidade biolgica "superior", como uma espcie ou um ecoss1stema. A beleza e o radicalismo do sistema de Darwin residem em grande parte na sua negao de princpios de ordenao abrangen-tes (como a ao Divina nas teorias mais antigas) e sua atribuio da fenomenologia de ordem superior (como a harmonia dos ecossistemas ou o bom projeto da arquitetura orgnica) a conseqncias ou subpro-dutos da causalidade de nvel inferior.

    Segundo, sob a grandiosa viso da uniformidade, apregoada to eficazmente por Charles Lyell, guru de Darwin, todas as escalas do tempo e todas as ordens de grandeza dos eventos fluem suavemente para cima, como somatrias e extrapolaes dos observveis aconteci-mentos causais de efeito mnimo ocorrendo em instantes no tempo -o Grand Canyon como um acmulo de eroses, gro a gro, durante milhes de anos; as tendncias evolucionrias como somas graduais de alteraes mnimas, de gerao a gerao, incontavelmente.

    Percebemos esta suavidade causal que parte das mnimas escalas na elaborao da seleo natural do prprio Darwin como uma analogia dos processos observveis e de escala ainda menor da seleo artificial na domesticao e na agricultura. Se os humanos, com seu conheci-mento to imperfeito, forjaram mudanas durante sculos, pensem no que uma natureza implacavelmente eficiente pode fazer em uma extrapolada vastido:

    Na medida em que o homem pode produzir e certamente tem produz.ido grandes resultados atravs de suas formas de seleo incons-aentes e metdicas, o que a natureza no poderia faze.r7 O homem capaz de agir apenas sobre caractersucas externas e v1Sve1s; a natureza no liga para as aparncias ... Ela age em qualquer rgo mterno, em qualquer indcio de diferena constitucional nrurna, em todo o maqu1-rusmo da vtda ... Corno so passageiros os dese1os e esforos do homem! Como curto o seu tempo! E, conseqentemente, como sero pobres as realizaes humanas comparadas s acumuladas pela natureza ao longo de inteiros perodos geolgicos. (Darwin, 1859, p.84)

    Alm disso, o palco da natureza amplifica pequenos eventos para qualquer escala de grandeza que se queira, simplesmente atravs do recurso ao tempo. No precisamos de novas foras para as escala:> maiores, nem de catsrrofes de propores globais. O reducionismo funciona porque toda a estrutura causal da histria da terra e da vida encontra-se completamente exposta nos mnimos eventos dos instan-tes observveis.

  • 44 STEPHEN JAY GOULD

    Essa crena na uniformidade causal estabelece um credo gradua-lista, responsvel por uma gama de falcias na nossa compreenso da histria natural - desde as reconfortantes iconografias (ver Gould, 1989) da histria da vida como uma escala de progressos (para a morfologia) ou um cone de base cada vez maior (para a diversidade) at dogmas sobre o curso constante da mudanc;a geolgica, to bem capturado no prlogo da recente reviso do livro pstumo de Derek Ager sobre o neocatastrofismo, escrita por Davies:

    "Fascista!. Entre os polticos da rua, este o insulto mximo voci-ferado como preldio de uma ao esquerdista ainda mais violenta. "Catastrofista!". Nos meus tempos de juventude, esse era o pior xinga-mento que poderia ser dirigido a um cientista d:as cincias da terra que parecia se afastar do dogma prevalente da uniformizao ... Achvamos melhor acreditar que o importante na geo-histna eram os processos gradualistas a longo prazo da natureza ... Os esitratos sedimentares for-mados em um ambiente marinho eram interpretados como acmulos muito graduais de partculas, depositadas sobre o fundo do mar ao longo de eternidades de tempo. (1993, p.l 15)

    "0 que vida?" como um problema na hierarquia e na histria

    Dentro do esprito pluralista do ps-modernismo, a teoria evolu-cionria contempornea atualmente se afasta dia reducionismo limi-tante tanto do tipo de Schrdinger (segundo o qual a questo "o que vida?" poderia ser respondida conhecendo-se a natureza fsica dos menores componentes) como do tipo de Darwin (segundo o qual os processos e escalas de tempo de nveis superiores podem ser explicados como extrapolaes causais de processos que operam no organismo individual no presente observvel). Dois temas, a hierarquia e a con-tingncia histrica, ajudam-nos a perceber que a:s resolues tanto no nvel de Schrdinger como no de Darwin fomecem apenas respostas parciais pergunta 110 que vida?", e que muitas questes legtimas e vitais deste emaranhado secular exigem um corpo terico - no a penas fenomenolgico -operando em, e sendo apenas 1~xtravel de, processos da macroescala do tempo e das grandes transformaes evolucionrias.

  • o QUE li VIDA?' COMO UM rROBLEMA HISTRICO 45

    Hierarquia

    Dois temas separados, baseados no conceito geral de nveis de organizao nos tempos e magnitudes, impedem uma resoluo ade-quada de "o que . vida?" na escala dos genes e sua formao.

    A hierarquia 11a (orm11lt1io de. uma teoria evolucio11ria da sdeiili. Os fundadores da teoria evolucionria moderna (ver Dobzhansky, 1937, e o comentrio de Gould, 1982) sempre reconheceram um tipo de hie-rarquia descritiva, mas estes cientistas geralmente aceitaram uma reduo causal para mudanas de freqncias de genes em populaes. Propostas de uma r_ierarquia causal explcita dentro da teoria da seleo inspiraram um grande debate desde a dcada de 1970 A forma mais suave de hierarquia afirma que acontecimentos da macroevoluo, embora totalmente coerentes com a teoria m1croevolucionria, no poderiam ser previstos a partir dos princpios do micromundo e por-tanto exigem um enfoque direto nos fenmenos em grande escala (Stebbins & Ayala, 1981).

    A forma mais drstica de hierarquia se afasta da alegao central de Darwin de que os organismos so o locus exclusivo da seleo natural (ou do argumento ainda mais reducionista de Dawkins, 1976) e outros, de que genes podem ser esses prprios "ind1vduosn em ltima instn-cia). A teoria hierrquica da seleo natural afirma que objetos biol-gicos em vrios nveis crescentes de uma estrutura hierrquica de incluso - genes, organismos e espcies destacando-se entre eles -podem todos agir (simultaneamente) como os legtimos stios de ao da seleo natural. (As espcies so objetos naturais, no abstraes, e mantm todas as propriedades-chave - individualidade, reproduo e hereditariedade- que permitem que uma entidade biolgica funcione como uma unidade de seleo.) Se as espcies so unidades de seleo importantes por si mesmas, e se grande parte da evoluo deve ser entendida como um sucesso seletivo diferencial em vez da extrapolada predominncia de genes favorecidos em uma populao, ento o pa-dro evolucionrio - um importante componente de "o que vida" -precisa ser estudado no contexto da durao de espcies, isto , direta-mente na escala de tempo geolgica (ver Stanley, 1975; Vrba & Could, 1986; Lloyd & Gould, 1993; Williams, 1992).

    O comportamen ro d a terra. Mesmo que a seleo natural fosse capaz, em princpio, de gerar evoluo em todas as escalas por simples acu-mulao, a terra deveria se comportar de uma maneira condizente para permitir essa produo gradualista. Se a terra to desregrada que

  • 46 STEPHEN IAY GOULD

    seqncias acumulando-se lentamente so desviadas ou restabelecidas por catstrofes ocasionais de grande significncia, ento as causas do padro evolucionrio global so complexas-e oco m ponen te atribuvel a raras ocorrncias de peso em um dado mom1!nto no podem ser percebidas pelo estudo uniformitrio tradicional de eventos atuais comuns.

    A prova virtual (Krogh et al., 1993) da hipte:se de Alvarez sobre a extino em massa devida ao impacto de um meteorito no fim do perodo do Cretceo (Alvarez et ai., 1980) vem induzindo uma recon-siderao geral e uma disposio a admitir o p.apel importante dos eventos e processos que ocorrem em nveis superiores de hierarquias de tempos e magnitudes. Davies (1993, p.115) contmua sua crtica do uniformitarismo clssico:

    Agora tudo mudou. Estamos reescrevendo a geo-lustna. Onde an-tes percebamos uma esteira transportadora, agora vemos uma escada rolante. Nesta escada, as superfcies horizontais dos degraus so longos perodos relativamente quiescentes em que poucci acontece. As elevaes so episdios de mudana um tanto repentina, onde a paisagem e seus habitantes so transportados para um novo estado. Mesmo os gelogos modernos mais rgidos esto invocando surtos sedimentares, fases explo-sivas de evoluo orgnica, blecautes vulcnicos, colises continentais e aterrorizantes impactos de meteoros. Vivemos ern uma era de neocatas-trofismo.

    Vamos considerar apenas trs exemplos de fcmmenos macroevo-lucionrios, todos muito discutidos durante os kimos vinte anos; eles devem constituir grande parte de qualquer resposta satisfatria pergunta uo que vida?" e no entanto no podenn ser adequadamente resolvidos pela compreenso da estrutura do ma teria! gentico, ou de qualquer extr