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Disputatio 2, Maio 1997 O QUE O EMBUSTE DE SOKAL NOS DEVE ENSINAR As consequências perniciosas e as contradições internas do relativismo «pós-moderno» Paul Boghossian No Outono de 1994 um físico teórico da Universidade de Nova Iorque, Alan Sokal, submeteu um ensaio à Social Text, a principal revista de estudos culturais. Intitulado «Transgressing the boundaries: Toward a transformative hermeneutics of quantum gravity» («Transgredir fronteiras: para uma her- menêutica transformativa da gravidade quântica»), pretendia ser um artigo erudito sobre as implicações filosóficas e políticas «pós-modernas» das teorias da física do século XX. Contudo, como o próprio autor revelou mais tarde na revista Lingua Franca, o seu ensaio não passava de uma trapalhada de incongruências deliberadas, disparates e non-sequiturs (raciocínios erra- dos), alinhavados de forma a ter boa aparência e a lisonjear os preconceitos ideológicos dos directores da revista. Depois de ser avaliada por cinco membros do conselho editorial da Social Text, a paródia de Sokal foi aceite para publicação como se fosse um ensaio académico sério. Foi publicado em Abril de 1996 num número especial da revista inteiramente dedicado à re- futação dos que acusam as críticas dos estudos culturais à ciência de estarem em geral repletas de incompetência. O embuste de Sokal está a adquirir rapidamente o estatuto de um succès de scandale clássico, recebendo imensa cobertura da imprensa dos Estados Unidos, e cada vez mais também da Europa e da América Latina. Nos Esta- dos Unidos, entre as que já tiveram lugar e as que estão agendadas, contam- -se mais de 20 discussões públicas dedicadas a este tópico, incluindo sessões repletas em Princeton, Duke, Universidade de Michigan e Universidade de Nova Iorque. Mas que mostra exactamente o embuste de Sokal? Acho que mostra três coisas importantes. Em primeiro lugar, que as perspectivas relativistas duvidosamente coerentes sobre a verdade e a evi-

O Que o Embuste de Sokal Nos Deve Ensinar - Paul Boghossian

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Reflexão crítica do filósofo Paul Boghossian acerca do que as consequências do embuste de Sokal (popularmente conhecido ao redor do mundo como Sokal hoax) pode nos ensinar sobre a situação acadêmica dos cursos de filosofia e de ciências humanas em geral, atualmente dominada por um pensamento construtivista/relativista irracional.

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  • Disputatio 2, Maio 1997

    O QUE O EMBUSTE DE SOKAL NOS DEVE ENSINAR

    As consequncias perniciosas e as contradiesinternas do relativismo ps-moderno

    Paul Boghossian

    No Outono de 1994 um fsico terico da Universidade de Nova Iorque,Alan Sokal, submeteu um ensaio Social Text, a principal revista de estudosculturais. Intitulado Transgressing the boundaries: Toward a transformativehermeneutics of quantum gravity (Transgredir fronteiras: para uma her-menutica transformativa da gravidade quntica), pretendia ser um artigoerudito sobre as implicaes filosficas e polticas ps-modernas dasteorias da fsica do sculo XX. Contudo, como o prprio autor revelou maistarde na revista Lingua Franca, o seu ensaio no passava de uma trapalhadade incongruncias deliberadas, disparates e non-sequiturs (raciocnios erra-dos), alinhavados de forma a ter boa aparncia e a lisonjear os preconceitosideolgicos dos directores da revista. Depois de ser avaliada por cincomembros do conselho editorial da Social Text, a pardia de Sokal foi aceitepara publicao como se fosse um ensaio acadmico srio. Foi publicado emAbril de 1996 num nmero especial da revista inteiramente dedicado re-futao dos que acusam as crticas dos estudos culturais cincia de estaremem geral repletas de incompetncia.

    O embuste de Sokal est a adquirir rapidamente o estatuto de um succsde scandale clssico, recebendo imensa cobertura da imprensa dos EstadosUnidos, e cada vez mais tambm da Europa e da Amrica Latina. Nos Esta-dos Unidos, entre as que j tiveram lugar e as que esto agendadas, contam--se mais de 20 discusses pblicas dedicadas a este tpico, incluindo sessesrepletas em Princeton, Duke, Universidade de Michigan e Universidade deNova Iorque. Mas que mostra exactamente o embuste de Sokal?

    Acho que mostra trs coisas importantes. Em primeiro lugar, que asperspectivas relativistas duvidosamente coerentes sobre a verdade e a evi-

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    dncia ganharam de facto uma larga aceitao na academia contempornea,tal como realmente parecia. Em segundo lugar, que este fenmeno teveprecisamente o tipo de consequncias perniciosas sobre os padres de quali-dade acadmica e responsabilidade intelectual que era de esperar. Por lti-mo, que nenhuma das duas afirmaes anteriores reflecte necessariamenteum ponto de vista poltico particular, e muito menos um ponto de vista con-servador.

    impossvel fazer justia enormidade do ensaio de Sokal sem o citarmais ou menos completamente. O que se segue apenas uma pequenaamostra. Sokal comea por estabelecer as suas credenciais ps-modernistas;escarnece dos cientistas por continuarem presos ao dogma imposto pelalonga hegemonia ps-iluminista exercida sobre a atitude intelectual ociden-tal: a ideia da existncia de um mundo exterior cujas propriedades soindependentes dos seres humanos e a possibilidade de estes obterem umconhecimento fidedigno ainda que imperfeito e hesitante destas pro-priedades conformando-se aos processos objectivos e s receitas prescri-tas pelo (chamado) mtodo cientfico. Sokal afirma que este dogma foivigorosamente corrodo pelas teorias da relatividade geral e da mecnicaquntica, tendo-se mostrado ser a realidade fsica, no fundo, uma constru-o social e lingustica. Em defesa desta ideia Sokal no apresenta mais doque um par de afirmaes dos fsicos Niels Bohr e Werner Heisenberg,afirmaes que discusses sofisticadas na filosofia da cincia dos ltimos 50anos j mostraram serem dbias.

    Sokal lana-se ento em fora em direco sua tese central, segundo aqual desenvolvimentos recentes na gravidade quntica uma teoria fsicarecente e ainda especulativa vo muito mais longe, substanciando noapenas a negao ps-moderna da objectividade da verdade, mas tambm oprincpio de um tipo de fsica que seria verdadeiramente libertadora e queestaria genuinamente ao servio das causas polticas progressistas. Nesteponto, o seu raciocnio torna-se verdadeiramente arrojado, medida queprocura gerar concluses polticas e culturais da fsica do muito, muito pe-queno. As suas inferncias so mediadas por nada menos do que uma mis-celnea lamacenta de jogos de palavras (especialmente com as palavraslinear e descontnuo), analogias foradas, afirmaes infundadas e o

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    que s pode ser descrito como non-sequiturs (raciocnios errados) de umagrosseria anestesiante (para usar uma expresso que Peter Strawson aplicoua algum que o merecia muitssimo menos: Immanuel Kant). Por exemplo,Sokal passa directamente da observao de Bohr de que na mecnica qunti-ca uma completa elucidao de um certo objecto determinado pode exigirdiversos pontos de vista para:

    Em tal situao, como pode um sacerdcio secular auto-perpetuante de cientis-tas credenciados pretender manter um monoplio na produo de conhecimentocientfico? [] O contedo e a metodologia da cincia ps-moderna fornece as-sim um apoio importante ao projecto poltico progressista, entendido no seu sen-tido mais lato: a transgresso de fronteiras, o derrubar de barreiras, a democrati-zao radical de todos os aspectos da vida social, econmica, poltica e cultural.

    O autor conclui exigindo o desenvolvimento de uma matemtica igual-mente emancipada que, por no ser baseada na teoria dos conjuntos stan-dard (Zermelo-Fraenkel), no mais constrangesse as ambies ps--modernas e progressistas da fsica nascente.

    Como se tudo isto no fosse suficiente, Sokal condimenta o seu ensaio,em passant, com o maior nmero possvel de pequenos fragmentos de dispa-rates evidentes que cabiam numa pgina. Alguns destes disparates so denatureza puramente matemtica ou cientfica como, por exemplo, a afir-mao de que a conhecida constante pi uma varivel, ou a de que a teoriados nmeros complexos, que data do sculo XIX e ensinada s crianasnas escolas, um novo ramo especulativo da fsica matemtica, ou ainda ade que a excntrica fantasia New Age do campo morfognico constituiuma importante teoria da gravidade quntica. Outros disparates relacionam--se com as alegadas implicaes filosficas ou polticas das cincias bsicas como, por exemplo, a afirmao de que a teoria de campo quntica con-firma as especulaes psicanalticas sobre a natureza do sujeito neurtico, oua de que a lgica difusa mais apropriada para as causas polticas da es-querda do que a lgica clssica, ou a de que o teorema de Bell, um resultadotcnico na rea dos fundamentos da teoria quntica, apoia uma alegadaconexo entre a mecnica quntica e a disciplina industrial do incio dapoca burguesa. Sokal cita generosa e aprovadoramente, ao longo de todo

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    o ensaio, textos dos mais importantes tericos ps-modernos, incluindovrios redactores da revista Social Text, passagens que so muitas vezes decortar a respirao pela sua combinao de autoconfiana e absurdo.

    Os comentadores tm insistido muito na iliteracia cientfica, matemticae filosfica que a aceitao da algaraviada engenhosamente forjada porSokal parece trair. Mas falar de iliteracia esconde uma distino importanteentre duas explicaes diferentes das razes que tero conduzido a direcoda revista a decidir-se pela publicao do artigo de Sokal. A primeira que,apesar de a direco perceber perfeitamente bem o que as vrias frases doseu ensaio diziam de facto, acharam que eram plausveis, ao passo que oautor, como quase toda a gente, no acha tal coisa. Este facto pode classifi-car os membros da direco como nscios, mas no impugna os seus moti-vos. A outra hiptese a de que os membros da direco no faziam ideiado que significavam muitas daquelas frases, no estando assim logo parti-da em posio de avali-las quanto sua plausibilidade. A plausibilidade, ouat mesmo a inteligibilidade, dos argumentos de Sokal, seria coisa que purae simplesmente no teria entrado nas suas deliberaes.

    Penso ser evidente, e tambm muito importante notar, que a segundahiptese a verdadeira. Para ver porqu, considere-se, por exemplo, a se-guinte passagem do ensaio de Sokal:

    Tal como as feministas liberais se limitam frequentemente a um programa mni-mo para a igualdade legal e social das mulheres, sendo pr-escolha, tambm osmatemticos liberais (e at alguns socialistas) se limitam frequentemente a tra-balhar no hegemnico quadro conceptual de Zermelo-Fraenkel (que, reflectindoas suas origens oitocentistas, j incorpora o axioma da igualdade), complementa-do unicamente com o axioma da escolha. Mas este quadro conceptual extraor-dinariamente insuficiente para uma matemtica libertadora, tal como foi de-monstrado h muito tempo por Cohen 1966.

    muito difcil de acreditar que um membro da direco que soubesse oque os vrios termos usados significam realmente no tivesse erguido umsobrolho ao ler esta passagem, pois o axioma da igualdade (ou da extensio-nalidade) da teoria dos conjuntos fornece unicamente uma definio quepermite saber quando dois conjuntos so idnticos nomeadamente, quan-do tm os mesmos elementos. bvio que isto nada tem a ver com o libera-

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    lismo, ou, na verdade, com qualquer filosofia poltica de qualquer tipo. Deforma semelhante, o axioma da escolha afirma unicamente que, dada qual-quer coleco de conjuntos mutuamente exclusivos, existe sempre um con-junto que contm exactamente um membro de cada um desses conjuntos.Uma vez mais, evidente que isto nada tem a ver com o tpico da escolhano debate sobre o aborto. Mas ainda que algum fosse de alguma formacapaz de explicar claramente coisa que me ultrapassa a primeira frasecitada em termos do gosto ps-moderno por trocadilhos e jogos de palavras,que explicaria a frase seguinte? A publicao de 1966 de Paul Cohen de-monstra que a questo de saber se existe ou no um nmero entre dois ou-tros nmeros (transfinitos cardinais) particulares no resolvida pelos axio-mas da teoria dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Como pode conceber-seque isto conte como uma demonstrao de que a teoria dos conjuntos deZermelo-Fraenkel inadequada para os propsitos de uma matemticalibertadora, seja l o que for que isso quer exactamente dizer? No exigiriaqualquer director que soubesse o que Paul Cohen demonstrou efectivamenteem 1966 qualquer coisa mais em termos de explicao, de forma a tornar aconexo mais perspcua?

    Uma vez que poderiam citar-se dzias de passagens semelhantes Sokal excede-se manifestamente, deixando pistas claras sobre as suas verda-deiras intenes , a concluso inescapvel esta: a direco de Social Textno sabia o que queriam realmente dizer muitas das frases do ensaio deSokal, mas no se importaram com isso. Como pode um grupo de acadmi-cos que dirigem o que supostamente uma das mais importantes revistas deuma dada rea permitir-se tal sublime indiferena ao contedo, verdade eplausibilidade de uma submisso acadmica aceite para publicao?

    Numa tentativa de explicao, os co-directores Andrew Ross e BruceRobbins afirmaram que enquanto revista de opinio poltica e anlise cultu-ral sem referees [especialistas que julgam a qualidade das submisses] pro-duzida por um colectivo editorial [] Social Text tem-se colocado semprena tradio das pequenas revistas, tanto quanto no domnio acadmico.No entanto, difcil ver isto como uma explicao adequada; presumivel-

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    mente, at mesmo uma revista de opinio poltica deve interessar-se pelaquesto de saber se o que publica inteligvel.

    Parece-me que Ross e companhia deviam ter dito antes que Social Text uma revista poltica num sentido mais profundo e radical: sob certas cir-cunstncias, est preparada para deixar que a concordncia com a suaorientao ideolgica ultrapasse qualquer outro critrio de publicao, in-cluindo uma coisa to bsica como a pura inteligibilidade. A perspectiva depoder apresentar nas suas pginas um cientista nada mais nada menos doque um fsico , emprestando todo o peso da sua autoridade sua causa, foisuficientemente compulsivo para em funo disso terem desprezado o factode no fazerem ideia sobre que tipo de apoio estavam exactamente a receber.E isto parece-me ser o que est no mago da discusso levantada pelo em-buste de Sokal: no se trata da mera existncia de incompetncia na acade-mia, mas antes daquela sua forma especfica que surge quando se permiteque critrios ideolgicos tomem completamente o lugar de padres acadmi-cos, de tal forma que nem mesmo simples consideraes quanto sua inteli-gibilidade so encaradas como relevantes para a aceitabilidade de um argu-mento. Como possvel, dada a histria recente e deplorvel das concepesideologicamente motivadas do conhecimento o lysenkoismo na UnioSovitica de Estaline, por exemplo, ou as crticas Nazis cincia judia ,que este tipo de comportamento se tenha tornado outra vez aceitvel?

    A resposta histrica completa muito longa, mas no restam muitasdvidas de que um dos seus componentes cruciais foi o alastrar instantneo,em vastos sectores das humanidades e das cincias sociais, de um conjuntode perspectivas relativistas simplrias sobre a verdade e a evidncia, geral-mente identificadas como ps-modernistas. Estas perspectivas autorizama, e na verdade costumam insistir na necessidade da, introduo de critriospolticos em substituio da avaliao historicamente mais familiar em ter-mos de verdade, evidncia e argumentos.

    A maioria dos filsofos aceita que um investigador completamente de-sinteressado coisa que no existe, isto , um investigador que enfrente oseu tpico sem quaisquer assunes, valores ou preconceitos prvios. Mas ops-modernismo vai muito para alm desta observao historicista, como

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    explica (sem necessariamente sancionar) a acadmica feminista Linda Ni-cholson:

    A afirmao historicista tradicional segundo a qual toda a investigao inevita-velmente influenciada pelos valores do investigador fornece pouqussima resis-tncia norma da objectividade [] [A] manobra mais radical da viragem ps--moderna consistiu em afirmar que os prprios critrios que demarcam o verda-deiro e o falso, assim como as distines associadas entre cincia e mito ou factoe superstio, so internas s tradies da modernidade, no podendo ser legiti-madas fora dessas tradies. Alm disso, argumentou-se que o prprio desenvol-vimento e uso de tais critrios, assim como a sua aplicao a outros domniosmais vastos, tinha de ser descrito como algo que representa o crescimento e de-senvolvimento de regimes especficos de poder. (Da introduo sua antologiaFeminism and Postmodernism)

    Tal como Nicholson percebe, o historicismo, por mais lato que seja, noimplica que a verdade objectiva seja coisa que no exista. Conceder queningum acredita em algo somente por ser verdade no negar a existnciada verdade objectiva. Alm disso, conceder que nenhum investigador nemnenhuma investigao so completamente imparciais no implica que nopossam ser mais ou menos imparciais, ou que os seus preconceitos nopossam ser mais ou menos prejudiciais. Conceder que a verdade nunca anica coisa que algum procura no negar que algumas pessoas ou mto-dos sejam melhores do que outros nessa procura.

    O historicismo deixa portanto intactos quer a afirmao de que o nossoobjectivo deve ser alcanar concluses que so objectivamente verdadeiras ejustificadas, independentemente de qualquer perspectiva particular, quer aafirmao de que a cincia a melhor ideia que algum teve para alcanaresse objectivo. O ps-modernismo, ao procurar despromover a cincia daposio epistmica privilegiada que tem vindo a ocupar, esbatendo assim adistino entre ela e outras formas de conhecer o mito e a superstio,por exemplo precisa de ultrapassar decisivamente o historicismo, parapoder negar que a investigao possa ter como objectivo coerente a verdadeobjectiva. Na verdade, de acordo com o ps-modernismo, o prprio desen-volvimento e uso da retrica da objectividade, longe de incorporar umametafsica e epistemologia srias da verdade e da evidncia, representaapenas uma maneira de procurar o poder, silenciando essas outras formas

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    de conhecer. Dado este ponto de partida, segue-se que a luta contra a ret-rica da objectividade no primariamente uma questo intelectual, maspoltica: a retrica tem de ser derrotada e no apenas refutada. Contra estepano de fundo, torna-se muito fcil explicar o comportamento da direcode Social Text.

    Apesar de ser difcil compreender como poderia algum professar efecti-vamente doutrinas to extremas como estas, a sua ubiquidade nos temposque correm um facto angustiante familiar. Um artigo de primeira pgina doNew York Times de 22 de Outubro de 1996 fornece-nos um caso recente eilustrativo. O artigo era sobre o conflito entre duas perspectivas sobre aorigem das populaes americanas nativas a explicao cientfica ar-queolgica e a que oferecida em alguns mitos dos nativos americanossobre a criao. De acordo com a primeira perspectiva, largamente confir-mada, os seres humanos entraram pela primeira vez na Amrica vindos dasia, atravs do Estreito de Bering, h mais de 10 mil anos. Em contradiocom esta perspectiva, em algumas narrativas sobre a criao, os nativosamericanos sustentam que os povos nativos vivem nas Amricas desde queos seus antecessores emergiram na superfcie da terra, vindos de um mundosubterrneo de espritos. O Times observava que muitos arquelogos, divi-didos entre o seu compromisso com o mtodo cientfico e o seu apreo pelacultura nativa, tm sido praticamente conduzidos a um relativismo ps--moderno, no qual a cincia apenas mais um sistema de crenas entreoutros. Roger Ayon, um arquelogo britnico que trabalhou com os povosZui, disse: A cincia apenas uma das muitas maneiras de conhecer omundo [] [A viso do mundo dos Zuis ] to vlida como o ponto devista arqueolgico sobre a realidade da pr-histria.

    Como devemos entender isto? (O prprio Sokal mencionou este exemplonuma discusso pblica em Nova Iorque e foi repreendido por Andrew Rosspor pr os povos nativos em tribunal. Mas a questo no sobre a visodo mundo dos povos nativos; sobre o ps-modernismo.) A afirmao deque o mito Zui pode ser to vlido como a teoria arqueolgica pode serentendida em qualquer uma de trs maneiras diferentes, que os tericos ps--modernos tendem a no distinguir suficientemente: como uma afirmaoacerca da verdade, da justificao ou da finalidade. Como veremos, contudo,nenhuma destas hipteses chega sequer a ser remotamente plausvel.

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    Interpretada enquanto afirmao acerca da verdade, a sugesto seria a deque a perspectiva Zui e a arqueolgica seriam igualmente verdadeiras. primeira vista, no entanto, isto impossvel, uma vez que se contradizemmutuamente. Uma delas afirma, ou implica, que os primeiros seres humanosdas Amricas vieram da sia; e a outra afirma, ou implica, que eles novieram da sia, mas antes de outro stio, de um mundo subterrneo de esp-ritos. Como poderiam uma afirmao e a sua negao serem ambas verda-deiras? Se digo que a terra plana, e o leitor afirma que redonda, comopodemos ter ambos razo?

    Os ps-modernistas gostam de responder a este tipo de argumento dizen-do que ambas as afirmaes podem ser verdadeiras porque ambas so ver-dadeiras relativamente a uma perspectiva qualquer, no podendo falar-se deverdade independentemente de qualquer perspectiva. Assim, de acordo coma perspectiva Zui, os primeiros seres humanos das Amricas vieram de ummundo subterrneo; e de acordo com a perspectiva cientfica ocidental, osprimeiros seres humanos vieram da sia. Uma vez que ambas so verdadei-ras de acordo com uma perspectiva qualquer, so ambas verdadeiras.

    Mas dizer que uma afirmao verdadeira de acordo com uma perspec-tiva parece ser unicamente uma maneira enviesada de dizer que algum, ouum grupo de pessoas, acredita nela. A questo crucial diz respeito ao quedevemos dizer quando aquilo em que acredito o que verdade de acordocom a minha perspectiva entra em conflito com o que o leitor acredita com o que verdade de acordo com a sua perspectiva. O que certamente nopode dizer-se, ao que me parece, sob pena de completa ininteligibilidade, que ambas as afirmaes so verdadeiras.

    Isto devia ser bvio, mas pode tambm verificar-se ao aplicar a perspec-tiva a si prpria. Considere-se o seguinte: se uma afirmao e a sua negaopodem ser ambas igualmente verdadeiras desde que existam duas perspecti-vas quaisquer em relao s quais ambas as afirmaes sejam verdadeiras,ento, visto existir uma perspectiva o realismo , relativamente qual verdade que uma afirmao e a sua negao no podem ser ambas verdadei-ras, o ps-modernismo ter de admitir ser ele prprio to verdadeiro quantoo seu oposto, o realismo. Mas o ps-modernismo no pode permitir que seadmita isto; presumivelmente, o que est em causa precisamente a falsida-

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    de do realismo. Vemos assim que a prpria formulao do ps-modernismo,se for construdo como uma perspectiva acerca da verdade, se autodestri; aprpria perspectiva ps-modernista pressupe a existncia de factos acercada verdade independentes de perspectivas particulares.

    Como se comporta o ps-modernismo quando considerado enquantoafirmao sobre a evidncia ou a justificao? Construdo desta forma, asugesto que a narrativa Zui e a teoria arqueolgica esto ambas igual-mente justificadas, dada a informao disponvel. Em contraste com o casoda verdade, no incoerente que uma afirmao e a sua negao estejamambas justificadas, como acontece, por exemplo, nos casos em que h pou-cos dados a favor de qualquer dos lados. No entanto, pelo menos primafacie, no este o tipo de caso que est em discusso, pois, de acordo comos dados disponveis, a teoria arqueolgica est muitssimo melhor confir-mada do que o mito Zui.

    Para obter o resultado relativista desejado o ps-modernista teria deafirmar que ambas as perspectivas esto justificadas, tendo em conta as suasregras prprias quanto aceitao de dados, acrescentando ainda que noexiste verdade objectiva que determine que conjuntos de regras devem serpreferidos. Dada esta relativizao da justificao s regras de aceitao dedados caractersticas de uma certa perspectiva, a teoria arqueolgica estariajustificada relativamente s regras de aceitao de dados da cincia ocidentale a narrativa Zui estaria justificada relativamente s regras de aceitao dedados usadas pela tradio relevante de construo mtica. Alm disso, umavez que no h regras de aceitao de dados independentes de perspectivasque permitam decidir a favor de um destes dois conjuntos de regras, ambasas afirmaes estariam igualmente justificadas, no existindo escolha poss-vel entre elas.

    Uma vez mais, contudo, h um problema no apenas com a plausibilida-de, mas com a auto-refutao. Suponha-se que concedemos que qualquerregra de aceitao de dados to boa como outra qualquer. Nesse caso,qualquer afirmao poderia contar como justificada, bastando para tal for-mular uma regra de aceitao de dados apropriada em relao qual elaestaria justificada. Na verdade, segue-se que poderamos justificar a afirma-

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    o de que h regras de aceitao de dados melhores do que outras, forandoassim o ps-modernista a conceder que as suas opinies sobre a verdade e ajustificao so to justificadas quanto as dos seus oponentes. Presumivel-mente, contudo, o ps-modernista precisa de sustentar que as suas opiniesso melhores do que as dos seus oponentes; caso contrrio, que tm elas derecomendvel? Por outro lado, se pode dizer-se que algumas regras de acei-tao de dados so melhores que outras, ento tm de existir factos indepen-dentes de perspectivas que as tornem melhores e um relativismo consumadosobre a justificao falso.

    Sugere-se por vezes que o que se pretende dizer quando se afirma que omito Zui igualmente vlido nada tem a ver com verdade ou justifica-o, mas antes com a finalidade visada pelo mito, diferente da finalidade dacincia. De acordo com esta linha de argumentao, a cincia tem por ob-jectivo fornecer um relato descritivamente preciso da realidade, ao passo queo mito Zui pertence ao domnio da prtica religiosa e da constituio daidentidade cultural. Deve ser encarado como algo que tem fins simblicos,emocionais e rituais, para alm da mera descrio da realidade. Como tal,pode servir muito bem esses objectivos melhor, talvez, do que o relato doarquelogo.

    O problema disto enquanto leitura do igualmente vlido no tanto oser falsa, mas o ser irrelevante para a questo em causa; mesmo que fosseconcedido, no poderia ajudar a causa do ps-modernismo. Se no se pre-tende que o mito Zui seja uma alternativa teoria arqueolgica enquantorelato descritivamente preciso da pr-histria, a sua existncia no tem qual-quer possibilidade de lanar dvidas sobre a objectividade do relato forneci-do pela cincia. No possvel que se levantem questes profundas sobre aobjectividade do que qualquer de ns afirmou ou fez, se eu afirmar que aterra redonda e o leitor no fizer qualquer assero, contando-me ao invsuma histria interessante.

    Existir ento, porventura, uma tese mais fraca que, sendo mais defens-vel do que estes relativismos simplrios, sustente no entanto um resultadoanti-objectivista? difcil ver o que seria uma tal tese. Stanley Fish, porexemplo, ao procurar desacreditar a caracterizao que Sokal apresenta dops-modernismo, oferece o seguinte (Artigo de opinio, New York Times):

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    O que os socilogos afirmam que claro que o mundo real e independentedas nossas observaes, mas que os relatos do mundo so produzidos por obser-vadores, sendo portanto relativos s suas capacidades, educao, treino, etc. No o mundo ou as suas propenses mas os vocabulrios em cujos termos os conhe-cemos que so construes sociais []

    A restante discusso de Fish deixa cuidadosamente na obscuridade aquesto de saber o que pensa ele que esta observao mostra; mas afirma-es semelhantes a estas so frequentemente apresentadas por outros autorescomo algo que constitui mais uma base para argumentar contra a objectivi-dade da cincia. Os argumentos que daqui resultam no so convincentes.

    Nem preciso dizer que os vocabulrios com os quais procuramos co-nhecer o mundo so construes sociais e que reflectem por isso vriosaspectos contingentes das nossas capacidades, limitaes e interesses. Masda no se segue que esses vocabulrios so portanto incapazes de estar deacordo com as exigncias da adequao relevantes para a expresso e desco-berta de verdades objectivas.

    Podemos mostrar por que razo isto assim atravs do exemplo do pr-prio Fish. No h dvida que o jogo de basebol, tal como existe, com a suaconcepo particular do que conta como uma batida e do que conta comouma bola, reflecte vrios factos contingentes sobre ns enquanto criaturasfsicas e sociais. Se h conceitos que sejam construdos socialmente, bati-da e bola contam-se sem dvida entre eles. Contudo, uma vez definidosestes conceitos uma vez definida a zona da batida passam a existirfactos perfeitamente objectivos sobre o que conta como uma batida e o queconta como uma bola. (O facto de o rbitro ser o tribunal de ltima instnciano significa que no possa cometer erros.)

    De modo semelhante, a nossa opo por um esquema conceptual emdetrimento de outro, com o fim de fazer cincia, reflecte provavelmentevrios factos contingentes sobre as nossas capacidades e limitaes, demaneira que um pensador com capacidades e limitaes diferentes, como ummarciano, por exemplo, poderia achar natural que se usasse outro esquemaconceptual. Isto em nada mostra que o nosso esquema conceptual incapazde expressar verdades objectivas. O realismo no est comprometido com a

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    ideia de existir um nico vocabulrio no qual as verdades objectivas possamexprimir-se; est comprometido unicamente com a afirmao mais fraca deque, uma vez especificado um vocabulrio, a questo de saber se as afirma-es expressas nesse vocabulrio so verdadeiras ou falsas tem uma respostaobjectiva.

    Ficamos com dois enigmas. Uma vez especificadas as doutrinas bsicasdo ps-modernismo, como conseguiram elas ser identificadas com umaperspectiva poltica progressista? E dado o facto de tais doutrinas serem toclaramente refutveis, como conseguiram ganhar uma aceitao to genera-lizada?

    Nos Estados Unidos o ps-modernismo est estreitamente ligado aomovimento conhecido por multiculturalismo, concebido em termos geraiscomo o projecto de dar o crdito apropriado s contribuies das culturas ecomunidades cujas realizaes tm sido historicamente negligenciadas ousubvalorizadas. em relao a estes aspectos que o ps-modernismo temsido apelativo para certas sensibilidades progressistas, uma vez que forneceos recursos filosficos necessrios para impedir que algum acuse culturasoprimidas de sustentar opinies falsas ou injustificadas.

    Contudo, mesmo em termos puramente polticos, difcil perceber comopde o ps-modernismo parecer uma boa maneira de conceber o multicultu-ralismo. Se os poderosos no podem criticar os oprimidos porque as catego-rias epistemolgicas centrais esto inexoravelmente associadas a perspecti-vas particulares, tambm os oprimidos no podem criticar os poderosos. Anica soluo que eu consigo vislumbrar para o que ameaa ser uma conse-quncia fortemente conservadora aceitar um padro abertamente duplo:permitir que uma ideia questionvel seja criticvel se for defendida pelosque detm o poder o criacionismo cristo, por exemplo , mas no sefor defendido por aqueles que o poder oprime o criacionismo Zui, porexemplo. Apesar de este estratagema se ter tornado familiar, como pode eleser apelativo para algum que tenha o mnimo de integridade intelectual? Ecomo pode este estratagema no parecer profundamente ofensivo para assensibilidades progressistas, cuja causa suposto promover?

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    Quanto segunda questo, relativa aceitao generalizada do ps--modernismo, a resposta rpida esta: os problemas relativos verdade, aosignificado e objectividade esto entre as questes mais difceis e espinho-sas com que a filosofia se confronta, sendo por isso facilmente maltratados.Uma resposta mais detalhada envolveria a questo de saber por que razo afilosofia analtica, a tradio dominante no mundo de lngua inglesa, foiincapaz de exercer uma influncia correctiva mais eficiente. Afinal de con-tas, a filosofia analtica conhecida sobretudo pela sua discusso detalhadae subtil de conceitos da filosofia da linguagem e da teoria do conhecimento,os mesmssimos conceitos acerca dos quais o ps-modernismo est torudemente equivocado. No seria razovel esperar que a filosofia analticativesse exercido maior impacte nas exploraes filosficas dos seus vizinhosintelectuais? E se no exerceu, poder isso ser porque a sua fama de insula-ridade pelo menos parcialmente merecida? Uma vez que a filosofia seocupa das categorias mais gerais do conhecimento, categorias que se apli-cam a qualquer rea de investigao, inevitvel que outras disciplinasreflictam em problemas filosficos e que desenvolvam posies filosficas.A filosofia analtica tem uma responsabilidade especial em assegurar que osseus insights sobre matrias de interesse intelectual geral estejam facilmente disposio de todos, e no apenas de um pequeno grupo de especialistas.

    Seja qual for a explicao correcta para a actual malaise, o embuste deAlan Sokal constituiu o momento crtico para o que tem sido o princpio deuma tempestade de protestos contra o colapso nos padres acadmicos e deresponsabilidade intelectual de que sofrem actualmente vastos sectores dashumanidades e das cincias sociais. Algumas das crticas mais penetrantestm vindo, significativamente, de distintas vozes da esquerda, mostrandoassim que quando se trata de transgresses to bsicas quanto estas, as alian-as polticas no oferecem proteco. Quem estiver ainda inclinado a duvi-dar da seriedade do problema s tem de ler a pardia de Sokal.

    (Traduo de Desidrio Murcho)Paul BoghossianDept. of Philosophy100 Washington Sq.New York UniversityNY, NY 10003, [email protected]