44
Mauro Cruz O Riacho Ilustrações de Lucas França Juiz de Fora – 2000

O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

    M a u r o   C r u z  

 

O Riacho Ilustrações de Lucas França

Juiz de Fora – 2000

Page 2: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

2

C957r Cruz, Mauro. O Riacho / Mauro Cruz; ilustrações de Lucas França. – Juiz de Fora: s.n., 2000. p.45; 170x240. ISBN 85-901755-1-0 1. Literatura Infantil. I. O Riacho CDD-028,5

Page 3: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

3

Mauro Cruz revive com seu O Riacho um tempo que todos nós, meninos do interior das Minas Gerais, conhecemos de cor e salteado. Um tempo onde se aprendia a nadar nos rios, subir em árvores e fazer nossos próprios brinquedos. Nossos riachos eram mares nunca d’antes navegados, nossas árvores, enormes castelos, moradas de fadas e gigantes. E nossos brinquedos, transportes para distantes galáxias, todos movidos pelo mais poderoso dos combustíveis; a imaginação!

Mary e Eliardo França      

                                   

Page 4: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

4

   

CAPÍTULO  I      

Naquela tarde morna de primavera, as crianças não poderiam imaginar

que algo profundo e maravilhoso iria acontecer e mudar para sempre as suas vidas.

O quintal da casa era o seu mundo encantado. Cheio de velhas árvores frutíferas, goiabeiras, jabuticabeiras, ah, que delícia, cocos, mangas, ingás, laranjas, abius e mexericas, no quintal se podia brincar de Tarzan, pulando de galho em galho por toda sua extensão. Havia recantos, esconderijos, irregularidades do terreno e agrupamentos de vegetação, que faziam dele um mundo à parte. Um universo onde podiam correr livre a fantasia e o sonho. Bem ao fundo, fazendo uma curva em torno de uma frondosa mangueira, passava um riacho de águas transparentes. Perto da curva interna do pequeno riacho, havia uma grande pedra preta onde, quase sempre, as crianças sentavam-se para contarem estórias e imaginar e imaginar... Ali, naquele ponto, falavam de tudo olhando as águas correrem, pequenas folhas rodopiarem nas águas claras e as revoluções da própria água, batendo nos obstáculos do fundo, ou das margens.

Durante muito tempo, aquele pequeno rio escutara os sonhos, os anseios e as fantasias daquelas crianças e já nutria por elas um profundo e imenso carinho. Elas também, não só com o rio, mas com todo o ambiente  em  volta,    

Page 5: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

5

 sentiam   uma   intimidade   e   uma   segurança   quase   paternas.   À   sombra   da  mangueira,  no  aconchego  da  pedra  preta,  e  ao  som  e  à  companhia  daquele  pequeno   riacho,   elas   embalavam  seu  mundo  mágico   e  maravilhoso.   Seus  olhos   brilhavam   vendo   e   descrevendo   batalhas,   conquistas,   princesas,  feras   e   heróis.   Revestiam-­‐se   de   suas   personagens   e   viajavam   na   intensa  realidade  dos  sonhos.    

Eram   duas   crianças   alegres   e   felizes,   naquele   mundo   todo   seu.  Silvia  era  uma  extrovertida  e  alegre  menina,  a  quem  tudo  encantava,  desde  o  contorcer  de  uma  minhoca  na  terra  fofa  do  quintal,  até  o  belo  vestido  de  festa.  Era  travessa  e  comunicativa,  conquistava  tudo  e  todos  com  seu  jeito  fácil   de   falar   e   agir.   Tinha   um   jeito   próprio   de   liderar,   sem   magoar   os  colegas,  e  amava  simples  e  profundamente  a  vida.  Era  difícil  não  se  deixar  contagiar  pelo  seu   jeito   forte,   jovial  e  alegre.  Seu   irmão,  Gustavo,  um  ano  mais   novo,   tinha   um   personalidade   bem   definida,   que   contrastava   um  pouco  com  ela,  mais  dado  a  análises  e  posicionamentos   filosóficos.  Tinha  uma   facilidade   imensa   para   compreender   os   intricados   e   difíceis  problemas  do   relacionamento   entre   as  pessoas.   Era  um  apaixonado  pela  natureza,  plantas,  animais.  Lia  e  conhecia  tudo  que  se  referisse  aos  bichos.    

Ambos  tinham  nos  olhos  o  brilho  da  fantasia  e,  como  toda  criança,  encantavam-­‐se   com   histórias,   principalmente   aquelas   contadas   à   noite  pelo  seu  pai  ou  sua  mãe,  antes  de  dormirem,  quando  já  estavam  de  pijama  sob  as  cobertas  e  os  pais,   sentados  ao  pé  de  uma  cama  ou  outra  de  seus  quartos,  iam  desfiando  fantásticas  e  maravilhosas  histórias.    

Que   coisa   boa!   Que   delícia   viajar   ora   com   os   olhos   fechados,   ora  abertos,   nas   histórias   contadas   por   um   adulto,   quando   o   sono   está   vem,  não  vem,  vem,  não  vem!  

Naquela   tarde,   como  sempre,   foram  correndo,   após  os  deveres  da  escola,  brincar  no  quintal.  Cerca  de  uma  hora  mais  tarde,  sentaram-­‐se  na  pedra  e   começaram  a   falar  de  uma  velha  e   estranha  história  que   tinham  ouvido  na  noite  anterior:  

—Você  acha,  Silvia,  que  pode  mesmo  ser  verdade,  que  existe  aquele lugar que papai contou?  

— Não sei Gustavo, mas papai fala de um jeito que a gente fica mesmo acreditando.

Page 6: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

6

— Ele disse que até já fizeram um filme, que tem um livro e que muita gente acha que é verdade.

— Shangri-Lá... Ah! Como eu gostaria de morar lá! — É bobagem! Não existe — exclamou Gustavo. — Existe sim! — ouviram uma voz. — Quem disse isso, Gustavo? — Não sei. — Fui eu — ouviram de novo. — Eu quem? — perguntou Gustavo. — Eu aqui, ó. — Eu aqui, onde? Ah! Deve ser o Rafael, aquele danadinho escondido

por aí. — Mas não é a voz dele, Si. — Sou eu aqui, o Riacho, seus “bocozinhos”. — Uau! — gritaram já na preparação para fugirem de medo. — Não tenham medo, quero ser amigo de vocês. — Mas riachos não falam! — exclamou Sílvia. Gustavo, boquiaberto, quase não tinha condições de falar, mas já

acreditava. Ficaram os dois calados e petrificados enquanto o Riacho começava a falar sem parar.

— Há muito tempo que quero falar com vocês mas não tinha coragem. Venho há muito tempo escutando suas histórias e conhecendo vocês. Às vezes, ficava com a língua coçando de vontade de dizer alguma coisa, de acrescentar ou confirmar suas histórias, mas tinha medo. Não sei por que cargas d’água — expressão interessante para mim, não acham? — tive hoje esta coragem.

Os dois fizeram menção de sair, claramente amedrontados. — Não vão embora! Sei que vocês podem acreditar em mim. Sentem-se

aí, por favor.  Os   dois,   como   autômatos,   obedeceram   e   com   os   olhos   e   bocas  

abertas  sentaram-­‐se  para  escutar.            

Page 7: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

7

— Muito   bem  — disse o Riacho —, vamos começar do princípio: a natureza é viva, cada um tem sua linguagem, os animais, as plantas, os minerais, enfim, cada grupo comunica-se à sua maneira, mas só alguns, poucos, podem entender a linguagem de outros grupos. Eu aprendi há muitos e muitos anos a linguagem dos homens. Sabe, muitas águas percorreram todo o mundo e por isso já vi muita coisa. Já fui chuva, poço, rio, mar, caixa d’água e um montão de outras coisas como aquário, escorrega, carro pipa etc., ando por todo o mundo. Passo no fundo das casas como aqui, vejo as crianças brincando, conheço peixes de todo tipo, a Europa, a China, a Índia, o Paquistão, o México, florestas, lagoas, montanhas, vales, lugares desconhecidos pelo homem, Nova York, Disney, Loch-Ness. Ah! conheço também Shangri-Lá.

— Shangri-Lá? — gritaram juntos os meninos. — Isso mesmo. Shangri-Lá. — Então é verdade! — disse Gustavo. — Que bom! — completou Silvia. — Conte-nos... A forma como o Riacho lhes falou foi tão tranquila e norma que

esqueceram-se de aquilo ser extremamente novo e diferente, e ativeram-se somente ao fato dele ter conhecido o lugar mágico da história — Shangri-Lá. Criança é assim mesmo!

— Que bom que vocês me ouviram! — o Riacho chamou-os à realidade.

— É mesmo! — exclamou Silvia. — Mas...engraçado, não tenho medo, parece que já nos conhecemos há muito tempo!

— E já mesmo! — disse o Riacho, fazendo uma cara de riso e felicidade.

— Eu adoro vocês! De tudo que já vi, como eu ia dizendo, o que eu mais gosto mesmo é de ficar ouvindo vocês dois conversando e contando histórias. Lembram-se daquela do vale dos dinossauros? Não, vocês falaram ilha dos dinossauros.

   

   

Page 8: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

8

     

Page 9: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

9

   

— Parque dos dinossauros — disse Gustavo. — Isso  mesmo,  do  filme  Parque  dos  Dinossauros.  Sabem,  quase  que  

eu   falei   com   vocês   naquele   dia,   pois   eu   conheço   um   vale   assim,   cheinho  deles.   Tem   de   tudo   quanto   é   bicho   assim,   até   as   plantas   são   diferentes  destas  daqui.  Só  nós,  as  águas,  é  que  não  mudamos,  ou  melhor,  tem  outras  coisas   também  que   são   iguais   lá,   o   céu,   a   terra,   as  pedras,  mas  o   resto   é  tudo  diferente.  É  igual  ao  filme  que  vocês  falaram.    

— Ei!   Espera   aí,   você   não   vai   parar   de   falar,   não?   Eu   quero   te  perguntar  uma  coisa!  —  interrompeu  Silvia.  

— Claro,  claro,  esteja  à  vontade,  desculpe.  É  que  fiquei  tanto  tempo  sem  falar  e  só  ouvindo  vocês,  que  agora  eu  perdi  o  freio.    

— Na  verdade  — começou ela —, eu quero mesmo é te confessar uma coisa. Eu também gosto muito de você. Sempre achei que você era diferente de outros rios e riachos por aí. Quando a gente nada em você suas águas são mais carinhosas, mais macias, e dão uma sensação de segurança. Que bom que você fala e é nosso amigo! Vou contar pra todo mundo!  

— Opa! Espera aí! Não vai contar pra ninguém, não. Se você fizer isso, vão dizer que você é louca igual àquela história do Zé Orocó e da Rosinha. Lembram-se?  

— Isso mesmo Silvia — atalhou Gustavo. — A gente não pode contar. Mas acho que pro papai e pra mamãe pode. Eles vão acreditar na gente e não nos vão achar loucos.  

— Não sei não, hein — disse o Riacho. — Adulto é tudo igual, uns descrentes. Vamos fazer assim: primeiro a gente fica sem contar uns tempos. Depois vocês podem sondar para ver se contam pra eles. Que acham?  

— Tá legal! Tá legal! — disseram mais ou menos juntos e numa excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.  

A tarde já estava terminando e as primeiras sombras da noite já escondiam os contornos das coisas. Na casa, algumas luzes já estavam acesas e uma voz gritou pela janela da cozinha em direção ao quintal.      

Page 10: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

10

  — Silviaaaa! Gustavooo! Chega de brincar! Venham para casa! Os três ouviram e sentiram um calafrio, com medo de terem sido ouvidos

pela empregada. Contra a vontade, levantaram-se da pedra e foram despedindo-se.

— Olha, Riacho, como posso chamar você? — disse Sílvia. — Ora, me chame por Riacho mesmo, eu gosto! — Mas Riacho não é o seu nome — falou Gustavo. — Você não

tem um nome? — Em cada parte do mundo eu tenho um. Nesse livro, ainda não sei. Vamos esperar para ver se o autor vai querer colocar algum. Até ele decidir, me chamem de Riacho mesmo.

— Tá bom, — disse Gustavo. — Espero que ele não seja um chato, esse autor, e se escolher, que escolha um nome bem bonito.

— Sillviaaaa, Gustavooooooo! Como é, vocês vêm ou não? — ouviram mais uma vez a voz da empregada.

— Já estamos indo — respondeu Sílvia. — Bem, Riacho, temos de ir, mas amanhã a gente volta correndo e você vai contar-nos estas duas histórias verdadeiras. Tá bom?

— Claro, vamos conversar muito, agora que já começamos. Vou contar pra vocês milhões e milhões de casos e histórias.

— Tchau! — disse Gustavo. E foram saindo e olhando pra trás e dando adeus até chegarem na escada da casa, de onde não mais se podia ver o rio.

Chegaram em casa com cara de “cachorro que quebrou a panela”, como se tivessem “culpa no cartório”. É, criança não sabe mesmo mentir, entorta a boca, vira o olho e todo mundo percebe. A sorte é que a verdade era tão absurda para os adultos, que ninguém podia nem sequer imaginar o riacho falando. Assim, eles inventaram qualquer coisa para explicar aquelas caras e foram direto para o banho.

Naquela noite, os dois eram mais amigos do que nunca, pois tinham um segredo a partilhar, e que segredo!        

Page 11: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

11

       

Não   demoraram  muito   para   fazer   tudo   e   arranjarem   um   jeito   de  falar   do  Riacho.   É   que,   após   o   retorno   à   casa,   o   banho   e   o   jantar,   o   fato  ocorrido,  da  conversa  com  o  Riacho,  deu  um  encontrão  com  a  realidade  e  ficou  ainda  mais  extraordinário.  Eles  precisavam  falar  a  respeito.  Era  uma  coisa  que  ia  crescendo  dentro  deles  e  já  estava  quase  saindo  pela  garganta.  Se   não   falassem,   iam   explodir.   Foram   para   a   varanda   e   aí   então  desabafaram.    

— Silvia, você viu que nós conversamos com o Riacho? — É  mesmo,  não  estou  nem  acreditando!  Que  maravilha.  Mas  será  

que  não  foi  sonho,  Guga?  — Que  sonho  que  nada,  é  verdade  mesmo!  Estou  doido  para  voltar  

lá  amanhã.  Vamos  dormir  para  passar  depressa.  — Vamos!  Mas,  aquela  noite  não  foi  tranquila  e,  por  todo  o  tempo,  sonharam  

com  o  Riacho.  Ele  também  não  conseguiu  pregar  o  olho  até  de  madrugada,  excitado  com  a  conversa  com  os  garotos.  Remexeu  a  noite  toda  suas  águas,  atrapalhando  o  sono  dos  peixes  e  das  plantas  ao  redor.    

Assim  terminou  aquele  primeiro  dia  na  vida  dos  três.      

     

Page 12: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

12

CAPÍTULO II

Até o sol estava preguiçoso, naquela manhã de primavera! Uma névoa

fina ainda cobria os campos quando, espreguiçando-se todo, ele esticou seus raios que começaram a invadir este mundão. O Riacho sentiu um calorzinho gostoso daqueles primeiros raios do sol e foi abrindo devagarinho os olhos, ainda pesados da noite excitada e mal dormida. Na casa, as crianças eram despertadas pelo seu pai, de uma maneira típica que ele tinha:

— Vamos, vamos acordar! Os passarinhos já estão lá fora cantando, o sol já colocou seus dedinhos de fora, o mundo já acordou. A vida tá correndo e só vocês estão dormindo. Vamos lá! Vamos lá!

E dava beijos e puxões nos dois moleques, que riam e reclamavam. Tinha de falar sério, senão levavam na brincadeira e não levantavam mesmo.

— Agora chega, é de verdade, são seis e quinze, vão chegar atrasados. Levantando, levantando!    

Page 13: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

13

E   ia,   então,   tirando   os   cobertores.   Aí   não   havia   jeito,   as   crianças  tinham  mesmo  que  pular  da  cama  e  começar  o  dia.  Quando  se  lembraram  do  que  havia  acontecido,  despertaram  de  uma  só  vez,   sem  preguiça  nem  nada.  Tiveram  uma  vontade  danada  de  contar  para  o  pai,  mas  aguentaram.  Correram   para   o   banheiro   e   subiram   no   vaso,   para   olharem   pelo  basculante  o  Riacho,  lá  no  fundo  do  quintal.  Que  sensação  gostosa!  Tinham  um   novo   velho   amigo.   Era   o   Riacho   deles,   que   agora   ganhara   vida   e  personalidade.  Foi  tão  bom  olhar  e  vê-­‐lo  lá  no  fundo,  tranquilo  e  amigo.    

Será   que   ele   falara  mesmo,   ou   era   só   imaginação?   pensaram.   Ah,  que   vontade   de   ir   lá   agora  mesmo   e   tirar   isso   a   limpo.   Hoje,   outro   dia,  depois   de   terem  dormido,   a   realidade   é  mais   real.   Se   for   verdade   agora,  será  para  sempre!  

— Gustavo, vamos passar lá, rapidinho, só para falar com dia. — Vamos   sim,   mas   temos   de   ter   alguma   desculpa,   senão   vão  

desconfiar.  — Diga   que   esquecemos   nossos   lápis   no   quintal   e   vamos   pegar  

agora.    Assim,  foram  rapidinho  para  o  café,  coisa  especial,  pois,  geralmente,  

a  mãe  tinha  de  ficar  chamando  o  tempo  todo.  Ela  não  ficou  sem  perceber,  e  foi  dizendo:  

— Eu hein! Estou sentindo cheiro de arte. Alguma coisa fez estes dois virem sem precisar chamar para o café. Boa coisa não será!

— O   que   é   isso,   mamãe?   Se   a   gente   não   vem,   reclama;   se   vem,  reclama  dobrado.  Que  coisa!  — resmungou Silvia.  

— É  mesmo,  gosta  de  pegar  no  pé,  hein?  —completou Gustavo.  Também  não  esquentaram  lugar  à  mesa,  engoliram  rápido  e  saíram  

correndo.  Mais  um  sinal,  e  Julieta,  a  empregada,  acrescentou:  — É mesmo! Tem alguma coisa no ar! Estes dois estão com algum

segredo. Quando   viram   que   não   podiam  mais   ser   vistos,   correram   para   o  

Riacho  e  foram  logo  dizendo  bom  dia.      

   

Page 14: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

14

     

Page 15: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

15

— Bom dia! — respondeu ele, o que encheu seus corações de alegria, pois era a confirmação de tudo.

O  Riacho  também  estava  feliz  e  continuou.    — Sabem, quase não dormi à noite. Fiquei só pensando na nossa

conversa. Estou muito feliz! — Nós  também!  — disse Gustavo.  — É  mesmo  — falou Silvia. —Agora seremos amigos para sempre! — Vamos  embora,  Silvia. Olha, Riacho, depois da escola a gente volta,

tá bom? Agora, vamos rápido, para não chegarmos atrasados.  E   foram   saindo   para   a   escola,   pelo   portão   do   quintal,   sem   passar  

pela  casa.    Estavam   tão   excitados,   que   o   aproveitamento   das   aulas,   naquele  

dia,   foi   baixo.   Ficavam   só   imaginando   que   bom   era   tudo   aquilo   e   como  eram  felizes.    

A  tarde  custou  a  chegar,  isto  é,  a  hora  de  poderem  estar  livres  para  brincar.   Mas   chegou,   e   eles,   como   dois   passarinhos   que,   vendo   a   porta  aberta   da   gaiola,   batem   asas   em   direção   à   liberdade,   quase   não  acreditando   que   aquilo   está   acontecendo,   saíram   para   o   quintal   em  direção  ao  Riacho.  

Já  foram  chegando  e  pedindo  para  que  ele  contasse  aquela  história  da   terra   encantada,   onde   nunca   ninguém   ficava   velho,   doente   e   nem  morria.    

O   Riacho   queria   falar   dele  mesmo,   da   amizade,   do   fato   de   terem  conversado,   saber   algumas   coisas   particulares   deles;   perguntar   alguns  detalhes  que  sempre  quis  saber,  como,  por  exemplo,  que  cor  era  a  sala  de  aula,   onde  estava  aquela  boneca  que  a   Silvia,  muitas  vezes,   tinha   trazido  para  brincar  e,  depois  nunca  mais  trouxe;  por  que  a  Gabi,  a  Cíntia,  o  Paulo  Henrique,   Dudu,   Marquinho,   Pablo   etc.   não   vêm   sempre   brincar   aqui;  enfim,  coisas  que  ele  queria  saber  quando  ouvia  os  dois  conversarem,  mas  que     não   podia   perguntar.   Agora   podia,   mas...   paciência!   Era   melhor  agradar  os  dois  agora,  matar  a  curiosidade  deles  e  depois   ir  sabendo  aos  poucos.    

Curiosidade   de   criança   é   fogo.   Não   dá   trégua,   parece   que   tem   o  “bicho  carpinteiro”,  como  dizia  minha  avó.    

Page 16: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

16

   Então, foi logo começando: — Bem, se vocês querem tanto saber, então lá vai: há muitos e muitos

anos, num país muito distante daqui, no meio de uma cadeia de montanhas, talvez as mais altas do mundo, aconteceu um fenômeno, até hoje inexplicável. Essa cadeia de montanhas é tão alta e tão fria, que seus picos são eternamente gelados, e viver nessa temperatura é somente para poucos homens, alguns animais e pouquíssimas plantas.

Em um ponto dessas montanhas, formou-se um vale completamente  

   isolado, onde a temperatura e as condições climáticas são ideais, sem frio nem calor em excesso, um clima perfeito, no qual a vida pode tornar-se também perfeita. É uma dimensão talvez diferente, em que não há o tempo, pois lá pessoas e coisas não envelhecem, não adoecem e não morrem nunca. Há também uma sensação maravilhosa de felicidade no ar. Tudo resplandece e brilha irradiando alegria e felicidade.

Pode-se chegar lá somente por uma passagem secreta entre as montanhas, uma caverna escondida entre as geleiras e abismos em volta.

— E de avião, ou melhor, de helicóptero? — perguntou Gustavo.

Page 17: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

17

— Como eu disse, parece ser outra dimensão, porque o vale está aberto para o céu, se vê nuvens, pássaros, o sol e, no entanto, não se pode ver de cima, de avião.

— Como   foi   lá,   heim?   — perguntou de novo o abelhudinho do Gustavo, tentando “pegar” o Riacho.

— Gustavo, as águas têm seus segredos, e há coisas que até eu não sei direito com acontecem, mas todas as águas sabem deste lugar, pois somos uma só e lá estivemos e ainda estamos. E veja, nós também não envelhecemos. Às vezes eu fico pensando se não é porque passamos por lá. Bem, este é Shangri-Lá, o lugar mais lindo e encantado que vocês podem imaginar, com tudo colorido e lindo, sem tristezas, nem brigas, sem doenças, sem fome, sem poluição, sem nada de ruim.

— E  tem  escola,  lá?  —perguntou Silvia. —As crianças têm que estudar igual à gente?  

— Bom,   não   é   exatamente   igual   a   aqui.   As   crianças   brincam,  cantam,   aprendem   e   estão   o   tempo   todo   felizes.   Mas   dever   de   casa   não  tem,  não.  

— Puxa,  que  legal!  — exclamaram juntos os dois.  — A gente podia ir lá um dia. Não é? Nem que fosse só um tempinho

— disse Silvia.  — É, o nosso autor podia fazer a gente ir lá! — pensou alto Gustavo.  — Ou então trazer pra gente uma varinha mágica para irmos lá! —

falou Gustavo.  — Mas como a gente vai pedir isso pro autor? — perguntou o Riacho.  — Ah! Isso eu não sei, mas a gente pode tentar descobrir. Quem sabe

até o final do livro? Afinal, estamos apenas começando. Olha, são poucas páginas até agora.  

E aquela discussão sem fim foi prolongando-se por horas, cada um dando mais asas à imaginação, libertada pela linda história verídica que o Riacho havia contado. Os três estavam tão envolvidos naquela conversa, que nem perceberam que toda natureza à sua volta os estava escutando.          

Page 18: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

18

   

 a velha mangueira havia, apesar da idade, curvado em sua direção para melhor ouvir. Inúmeros peixes do riacho estavam com a boca e os olhinhos abertos e os ouvidos atentos, sem perder uma palavra sequer. Tinham ouvido tudo e viajavam com eles na sua imaginação. Até a pedra preta acordou de seu sono pétreo e ficou na escuta. Havia umas plantinhas novinhas bem na margem do Riacho que deliciavam-se com aquilo e pareciam longe naquela viagem de sonhos. Aos poucos, os meninos foram sentindo o quanto é viva a natureza.

Estavam todos tão distraídos que não viram a noite chegar e envolvê-los com seu manto escuro e já bem frio àquela hora.

Quando despertaram daquela gostosa conversa, levaram um susto e, despedindo-se rápido, correram para casa. Estavam todos tão felizes que é melhor nem falar mais nada e passar para o outro capítulo.

           

Page 19: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

19

 

   

CAPÍTULO  III    Aquele  riacho  era  um  contador  de  histórias  danado  de  bom,  sô!  Eta  

lugar  legal  aquele,  heim?  Assim  estavam  pesando  os  meninos  e  locos  para  chegar   a   hora   de   ouvirem   outra   história.   Hoje,   com   certeza,   iriam  mais  cedo  para  ficarem  mais  tempo.  

Assim   estava   o   clima   entre   eles   e,   tão   logo   puderam,   estavam  correndo  em  direção  ao  Riacho.  Foram  chegando,  já  cumprimentando  todo  mundo,   as   pedras,   as   flores,   os   peixes,   as   árvores   e   até   para   o   ar   deram  uma  boa  tarde.  

O   Riacho,   todo   contente,   fazia   circunvoluções   com   suas   águas,  remexendo-­‐se  todo.  Terminados  os  cumprimentos,  foi  logo  perguntando:  

Page 20: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

20

   — E aí! O que fizeram vocês? Aposto que estão doidinhos para

conhecerem aquele lugar, heim? Eu conheço vocês, são uns aventureiros, adoram essas coisas, não é? Mas hoje, se vocês quiserem, posso contar uma história muito perigosa. Um caso que aconteceu com um caçador na floresta. Mas, depois eu conto, viu? Já estou falando de novo sem parar. Nem deixei vocês responderem.

— Responder o que, mesmo? — disse Gustavo e imediatamente lembrou-se da pergunta. — Ah! Fizemos um montão de coisas, arrumamos a casa com a mamãe, estudamos e fomos ao mercado. Mas, agora você vai contar essa história.

— Espere um pouco, antes vamos conversar — disse o Riacho. — Não! Conta, conta — insistiu Sílvia. — É, conta agora e a gente conversa depois, tá bom? — disse Gustavo. Diante de toda aquela ansiedade e súplicas ele não teve outro jeito e

disse: — Tá bom! Tá bom! Então sentem-se aí que vou contar tudinho, com

todos os tin-tins. E começou: — Era uma vez um caçador que adorava passar o dia na floresta. Ele

saía cedinho de casa e à tardezinha voltava com uma porção de bichos diferentes, que ia logo entregando à sua mulher e dizendo:

— “Veja só mulher, vá preparando que vamos comer bem hoje”. Ele adorava aquilo e dizia não ter medo de nada, nem de bicho nenhum.

Gostava mesmo era de ir sozinho e dar tiros pra lá e pra cá, assustando a bicharada toda e matando alguns. Seu tio, Juquita, dizia-lhe sempre que aquela floresta era perigosa e que lá morava um monstro enorme, uma fera perigosa, metade homem, metade lobo. Tinha os olhos vermelhos que brilhavam no escuro igual a uma brasa, dentes enormes e garras afiadas. Tinha o corpo todo cabeludo e media mais de dois metros de altura.    

 

Page 21: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

21

     

Page 22: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

22

   O caçador, Chico Dodó, dava gargalhadas e dizia que era doidinho para

encontrar com esse bicho. — Arranco a pele dele, tio, e trago para o senhor ver. Não vou gastar

nem bala com o danado. Vou pegá-lo a mão mesmo. — Cuidado Chico, não ria destas coisas! A floresta é cheia de segredos

e isso pode muito bem ser verdade. Não abuse. O Chico não ligava mesmo, e continuava a caçar sem medo. Um dia,

disse a sua mulher: — Olhe, Elza, os bichos aqui por perto estão rareando. Eu vou amanhã

lá do outro lado do vale. Vou procurar caça boa. Assim falou, assim fez. Saiu bem cedinho com uma mochila de comida,

um cantil grande com água e a espingarda nas costas. Colocou ainda uma boa faca no cinto junto com seu inseparável facão de caça, que mais parecia uma espada.

Andou mais de três horas atravessando o vale, até que chegou do outro lado, onde encontrou um rio largo e fundo. Queria atravessá-lo e foi então procurando rio acima um local mais estreito onde, pudesse passar com segurança. Com isso, distraiu-se e foi distanciando-se cada vez mais. Quando conseguiu atravessá-lo já era bem tarde. Embrenhou-se então naquela floresta totalmente nova e desconhecida. As árvores eram imensas! Tão altas que já não se podia ver o céu. As folhas encontravam-se e fechavam o teto da floresta. Procura daqui, procura dali e nada de bicho.

— Que coisa estranha! — pensou. — Como é que não tem bicho nenhum por aqui? Agora é que notei isso.

E foi andando, andando, quando de repente encontrou uma velha cabana abandonada. Resolveu então entrar para examinar. Achou tudo vazio. Sentiu então que estava cansado e resolveu comer alguma coisa. Abriu a mochila e comeu gostosamente um bom sanduíche que sua mulher havia preparado. Depois do lanche, recostou-se para descansar um pouco e então dormiu profundamente. Passaram-se horas... Já era mais ou menos meia-noite quando ele acordou sobressaltado com um barulho imenso vindo  do  fundo  da  floresta.   Parecia   que   o   mundo   vinha   abaixo.   Uma   coisa   enorme   vinha  quebrando  árvores,  destruindo  o  mato  baio  e  arrebentando  os  cipós.  Chico  

Page 23: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

23

Dodó   levou   alguns   segundos   para   entender   a   situação   e   lembrar-­‐se   de  onde  estava.  Pegou  então  a  espingarda  e  preparou-­‐se  para  atirar  e  matar  o  que  quer  que  fosse.  O  barulho  era  de  assustar  qualquer  um.  Ele  lembrou-­‐se  então  da  conversa  do  tio  Juquita  e  começou  a  ter  uma  pontinha  de  medo.  

Era  exatamente  isso.  O  bicho  tinha  sentido  cheiro  de  gente  e  tinha  vindo  pronto  para  comer  o  Chico.  Ele  lembrou-­‐se  então  que  não  tinha  visto  bicho   nenhum   na   redondeza   e   que   talvez   tivessem   fugido   desse   danado  que  vinha.  Ao  pensar  nisso,  ficou  foi  com  muito  medo  mesmo  e  procurou  um   jeito  de   fechar  a  porta   e   as   janelas  da   cabana   correndo.  Ficou   com  o  olho  grudado  num  buraco  da  porta,  esperando  aquele  negócio  horroroso  que  chegava.  O  barulho  ia  só  aumentando  e  cada  vez  mais  rápido  o  bicho  chegava.    

Quando   de   repente   ele   apareceu,   a   escuridão   só   deixava   ver   um  vulto   enorme   e   os   dois   olhos   vermelhos   brilhando.   Chico   começou   a  tremer  e  a  rezar  sem  parar.  Enviou  a  arma  pelo  buraco  e  deu  um  tiro  pro  lado   do   bicho.   Aí   é   que   o   negócio   ficou   feio.   O   bicho   começou   a   urrar   e  pular   para   a   porta   da   cabana   tentando   arromba-­‐la.   Suas   garras   batiam  contra  a  porta  que  quase  vinha  abaixo.  Chico  Dodó  começou  a  chorar  e  a  pedir  a  todos  os  santos  que  os  salvassem,  e  que  se  isso  acontecesse  nunca  mais  iria  caçar,  nunca  mais.      

O   bicho   estava   já   derrubando   a   porta   quando   ele   resolveu   subir  pela   chaminé     da   cabana   e   rapidamente   saiu   no   telhado.   Foi   a   continha,  pois  o  bicho  jogou  a  porta  no  chão  e  entrou  louco  pela  cabana  procurando-­‐o.  Chico  subiu  numa  árvore,  por  um  galho  que  roçava  o  telhado,  e  quando  já   estava  no   tronco  da  árvore,   cortou  o  galho   com  seu   facão.  O  bicho,   ao  sair  da  cabana,  tentou  por  muito  tempo  subir  na  árvore  para  pegá-­‐lo.  Ele  atirou  várias   vezes,  mas  ou  não  acertava  ou  então  o  danado  não  morria,  pois  nada  acontecia.  Com  o  clarão  do  tiro  conseguia  ver  melhor  o  bicho  e  ficava  ainda  com  mais  medo,  tamanha  a  feiura  dele.  Isso  durou  toda  a  noite    

   

Page 24: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

24

 e  só    quando o dia começou a clarear é que ele foi embora. Chico Dodó ficou mais umas três horas tremendo na árvore até que ouviu vozes. Começou a gritar por socorro e viu chegar um grupo de uns dez homens liderados pelo seu tio Juquita, que tinha vindo procurá-lo. Desceu correndo da árvore e pediu para irem embora, dizendo que depois contava tudo. Queria mesmo era sair dali o mais rápido possível. Tinha visto a morte de frente. Quando chegaram em casa, contou tudo e prometeu que nunca mais iria para a floresta e muito menos caçar ou matar os bichos.

Quando o Riacho terminou, os dois meninos estavam totalmente envolvidos na história e quase nem conseguiam dizer nada. Passados alguns segundos, Gustavo perguntou:

— E o bicho, o que aconteceu com ele?      

Page 25: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

25

   

 — Não sei, mas acho que ainda está lá. Dizem por aí que muita gente já

o viu também depois disso. — E  você,  Riacho  — disse Silvia. —Não o viu? Nunca passou por lá?  — Sabe,  Silvia,  tem  coisas  que  até  eu  tenho  medo.  Prefiro  não  ver  e  

nem  saber.  Cruz-­‐credo!!!  — É,  esta  história  é  mesmo  de  arrepiar!  Eu  me  lembrei  de  uma  que  

a   Aparecida,   nossa   cozinheira,   dizia   que   um   dia   ia   nos   contar,   lembra  Silvia?   Aquela   que   só   podia   contar   depois   da   meia-­‐noite,   senão   a   gente  criava  rabo.    

— Isso  é  bobagem,  Gustavo  — disse Silvia. — Não é verdade.  — Sei  não,  heim!  Também  já  ouvi  dizer  isso  — disse o Riacho.  — Mas  você  conhece,  Riacho,  esta  história?  —perguntou Silvia.  — Conhecer,  não  conheço,  mas  já  ouvi  falar.    — Ah!  Que  pena.  Senão  podia  nos  contar.  E  outra  coisa,  podia  ser  a  

qualquer  hora,  por  que  como  é  que  Riacho  ia  criar  rabo?  — Sei   lá!   Histórias   desse   tipo   não   quero   nem   saber   —disse o

Riacho.  Assim,  ficaram  mais  um  tempo  conversando  até  que  deu  a  hora  de  

ir   para   casa.   Não   esperavam   o   chamado.   Bastou   a   noite   começar   que   o  medo  daquela  história,  ainda  fortemente  presente  neles,  fê-­‐los  correr  logo,  logo.  

— Tchau, Riacho, durma bem — disse Gustavo. — Tchau, um beijo — disse Silvia.  E foram tirando o time.      

 

Page 26: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

26

 CAPÍTULO IV

A partir daquele dia, a amizade entre os três foi só aprofundando-se.

Além das histórias maravilhosas, dos papos descontraídos, das conversas imaginando coisas e situações, o Riacho, com sua experiência e conhecimento, passou até a ajudá-los com os deveres da escola. Eles passaram a gostar de geografia, ciências, matemática etc., pois o Riacho, para cada coisa contava uma história, lembrava um fato ou dava um exemplo concreto. Faziam rapidamente seus deveres, aprendiam mais e ainda sobrava mais tempo para brincarem e contarem histórias e mais histórias. Já estavam amigos de tudo que os rodeava naquele mágico quintal. Depois que o Riacho falou com eles, começaram a perceber a vida em tudo. Sentiam-se os meninos mais felizes do mundo. Que bom é ter amigos! E amigos assim, então, nem se fala!

Mas aquela história de Shangri-Lá não saía da cabeça dos dois e um dia voltaram a carga.

— Sabe, Riacho, não consigo esquecer Shangri-Lá — disse Gustavo. — A gente podia arrumar um jeito de falar com o nosso autor. Eu lembro-me de um livro, que o papai leu, que se chamava O Mundo de Sofia.      

Page 27: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

27

       

É   um   livro  de   filosofia,   em  que   a  menina   conseguiu   comunicar-­‐se   com  o  seu  autor.  Será  que  isso  é  possível?  

— Não sei Guga — disse Silvia. — Mas se é ele quem escreve, deve saber o que a gente está pensando e querendo. Eu dizer pra ele agora: Oi, seu autor, vê se leva a gente lá, por favor.

— Silvia,  mas  que  doideira!  —disse o Riacho. — Você falando com o autor! Personagens não falam com autores de livros! Afinal, nós somos apenas a sua imaginação.  

— Espera  aí!  — disse Gustavo. — Mas você não é de verdade, Riacho? Olhe bem, suas águas molham a gente! Tem peixes e plantas vivas aqui! Tem ar, tem movimento, tem vida. Olhe a Silvia! — e cutucou a irmã com uma vara. Ela gritou e ele continuou. — Tá vendo, tem até dor! Somos de verdade.  

— É...! — concordou o Riacho.  Ficaram os três por algum tempo calados pensando. — Sabe? — disse Gustavo. —Eu também vou pedir para o autor. Olha

aqui, ô nosso autor, por favor, dê um jeito de levar-nos a Shangri-Lá! Estamos doidinhos para ir lá!

O Riacho convenceu-se e também pediu: — É, faça isso que a gente vai adorar, e aposto que os leitores também. Estavam naquilo quando de repente ouviram um estrondo forte e

levaram um susto. Era o autor, tentando colocar uma personagem de outro livro. Depois de tantos pedidos, ele resolveu atendê-los. Mas não é fácil! Tem de pedir permissão para o outro autor, perguntar se as personagens querem vir, e ainda dá este estouro quando elas tem de entrar no livro. Ah! Tem outra coisa, nem sempre acontece de dar certo. Às vezes, elas não conseguem entrar. Desta vez, por exemplo, só teve o estrondo e nada aconteceu. Os três ficaram assustados e não sabiam o que tinha acontecido. O autor, para não deixa-los igual a três bobocas, fez vir descendo pelo   Riacho uma garrafa com uma mensagem dentro, explicando o que ele havia tentado fazer.  

Page 28: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

28

A garrafa veio passando por eles, eles pegaram, leram e ficaram então

felicíssimos por dois motivos: o primeiro é que iam a Shangri-Lá, assim esperavam, e o segundo é que tinham conseguido se comunicar com o seu autor.

Depois de tanta emoção era melhor irem pra casa, comer alguma coisa, ver uma boa televisão e tirar uma boa noite de sono.

Despediram-se os três e os meninos foram embora.

 

Page 29: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

29

   

   

CAPÍTULO  V    

No   outro   dia,   lá   pelas   quatro   horas,   os   dois  meninos   ouviram   de  novo  um  forte  estrondo,  parecido  com  o  do  dia  anterior.  Todo  mundo  na  casa  também  tinha  ouvido  e  estava  comentando  o  que  poderia  ser  aquilo.  Parecia  barulho  de  trovão,  mas  não  havia  nem  sinal  de  chuva  ,  o  céu  estava  claro  e  as  nuvens  altas  e  brancas.    

Os   dois   trocaram   um   olhar   de   cumplicidade,   deram   um   jeito   de  terminar  voando  os  deveres  e  em  quinze  minutos  estavam  descendo  aos  pulos  a  escada  para  o  quintal.    

Estavam   com   o   coração   a   mil   e   a   boca   seca   de   tanta   emoção   de  poderem   encontrar   alguma   personagem   mágica,   alguém   conhecido   dos  livros,   fosse  quem   fosse.   Seria  mesmo  um  milagre,   uma   coisa   estupenda,  sensacional,  maravilhosa!   Bem,   não   havia   palavras   capazes   de   descrever  tamanha  emoção.  A  distância  da  casa  ao  Riacho  parecia  ter  triplicado  pela  ansiedade  de  chegar.        

Page 30: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

30

   De longe já avistaram alguém sentado na sua pedra preta conversando

com o Riacho. Aí mesmo é que criaram asas nos pés e em questão de segundos já estavam lá. Foram chegando e freiando, quase batendo na pedra. Ficaram com cara de bobocas, com a boca aberta, os olhos esbugalhados e com a respiração ofegante quando se viram cara-a-cara com um duende, de botas, chapéu, olhos amendoados e uma bela capa vermelha bordada de flores douradas. O Riacho, já todo dono da situação, pois havia ficado conversando bom tempo com ele, foi logo fazendo as apresentações.

— Olhe Zaap, aí estão eles, Sílvia e Gustavo. São dois meninos daqui ó! — e fez um gesto pegando na pontinha da orelha. Continuou: — E este é o Zaap. Ele acabou de chegar. Veio neste estrondo e agora está aqui no nosso livro, ou melhor, no nosso mundo.

Os dois apenas balançaram as cabeças concordando e nada disseram. Zaap, já mais experiente em livros e histórias, começou:

— Olá pessoal! É um prazer estar aqui. Sabe, viajar de um livro pra outro é tão legal quanto viajar pela imaginação. Só é mais barulhento.

Com isso, eles despertaram e Sílvia foi a primeira a falar: — Olá Zaap! Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu nunca

podia imaginar que um dia fosse ver um duende de perto. Muito prazer! — e foi estendendo a mão.

O duende, muito sapeca, como é comum nos duendes, apertou a mão dela daquele jeito de garotão. Sabe, dando um tapa, uma rodada com a mão e depois apertando a ponta dos dedos.

Foi aí então que ela sentiu firmeza mesmo e foi ficando à vontade. Gustavo adiantou-se e também o cumprimentou com a mão. Sua

intenção era tocar no duende para ter a certeza de que aquilo tudo não era um sonho.

— Muito prazer! — disse e da mesma forma Zaap respondeu. Assim começou aquela amizade que não ia acabar mais entre eles,

Zaap, Gustavo, Sílvia e o Riacho.

Page 31: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

31

   

Zaap   quis   saber   de   tudo,   pois   seu   autor   só   lhe   havia   dito   que  alguém   pedira   sua   presença   em   outro   livro,   e   que   ele   ira   lá,   onde   seria  informado  pelo  outro  autor  ou  pelas  personagens  o  que  precisavam.  Ah!  e  que   levasse   também   o   seu   anel   mágico   para   fazê-­‐los   viajar   para   outras  terras.  E  era  só  isso.  Agora  esta  ali  e  queria  saber  de  tudo,  tudinho  mesmo,  pois  estava  curioso.  

Gustavo  foi  logo  perguntando:  — De que livro você é? — Sou   de   vários,   meus   amigos,   cada   hora   estou   num.   Vivo   mil  

aventuras   de   milhares   de   autores.   Eu   estava   distraído   hoje   na   floresta  quando  ouvi  uma  voz  me  mandando  vir  para  aqui  ajudá-­‐los,  peguei  meu  anel,   senti   um  puxão   forte   e   um   grande   estrondo   e   num   instante   estava  aqui.    

— E você tem alguma coisa que possa levar-nos a Shangri-Lá? — perguntou Guga.

— Meu anel mágico, meu amigo! — e todo vaidoso mostrou o belo e reluzente anel com uma pedra que mudava de cor, do azul mais profundo ao vermelho mais encarnado. — Com este anel voaremos a qualquer parte do mundo.

— Que bom! — exclamaram juntos. Silvia e o Riacho. Os três então começaram a contar tudo, desde o dia em que o Riacho

falou com eles. Contaram sobre suas vidas, a amizade nascida entre eles e Shangri-Lá.

Zaap também ficou entusiasmado com a viagem e vibrava igualzinho aos três com a ideia de ir lá, pois era uma aventura nova para ele também. Alertou, porém, quanto a necessidade de preparativos, pois os meninos já queriam partir naquela hora. Advertiu-os quanto às possibilidades de caírem fora do lugar, das condições da volta e muitas outras coisas. Disse que talvez tivesse que voltar ao seu livro e aguardar um dia quando tivessem mais tempo, para não partirem., Quando falou no livro, os meninos perguntaram pelas outras personagens. Zaap foi descrevendo e nomeando – tinha Willow, Alice, a Fera, uma Cuca etc. O Riacho queria saber  de  tudo.  Queria  a  história  inteira.  

Page 32: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

32

Page 33: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

33

   Sem  essa  de  pedaços    de  história,  ou  só  insinuações.  Ele,  quando  contava,  contava  tudo,  do  princípio  ao  fim,  e  os  meninos  ainda  queriam  mais.  Agora  que  eles  tinham  uma  história  que  ele  não  conhecia,  queriam  ficar  falando  nomes  e  lugares  sem  lhe  explicar!  

— Assim não dá! Vamos contar tudo! — falou nervoso. Os   três   riram   e   Zaap   decidiu   contar   pra   eles   toda   a   história.  

Passaram  assim  todo  o  resto  da  tarde,  o  Riacho  e  os  meninos  deleitando-­‐se  com  cada  detalhe,  cada  palavra.    

No  final  do  dia,  depois  de  muitas  explicações  e  detalhes,  voltaram  a  falar  da  viagem.    

Zaap  decidiu  voltar  ao  livro  e  esperar  pelo  próximo  sábado,  quando  teriam  tempo  de  sobra  para  viajarem  a  Shangri-­‐Lá.  Esfregou  o  anel,  disse  uma   palavra  mágica   e   num   segundo   desapareceu,   deixando   os   três   com  cara  de  espantados.  

Eles  ficaram  ainda  mais  um  pouco  fazendo  planos  e  comentando  o  ocorrido  quando  sua  mãe  gritou  da  janela  chamando-­‐os.    

Despediram-­‐se  do  Riacho  e  voltaram  para  casa.    Era   emoção  demais!  Puxa  vida!  Encontrar  um  duende  em  carne  e  

osso!  Que  inveja  que  a  D.  Tina,  a  professora,  ia  ter  se  soubesse!  Ela  era  fã  deles!   Com   a   cabeça   cheia   de   ideias   e   o   coração   rebentando   de   emoção,  estavam   confusos,   sem   saber   o   que   era  mais   legal,   planejar   a   viagem  ou  conhecer  Zaap.  

Neste  clima  de  emoção  intensa  fizeram  as  coisas  de  rotina  e  foram  dormir.        

             

Page 34: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

34

CAPÍTULO VI

No outro dia era quarta-feira e, até chegar sábado, seus corações não iam aguentar. Até o Riacho estava impaciente e ansioso. Seu coração de água era mole e mais mole estava. Passaram aqueles dias numa agonia sem fim, torcendo para chegar a hora de viajarem. Na sexta-feira à noite, estavam tão excitados que todos perceberam.

— O que há com estes meninos? — perguntou a avó Zezé. — Não sei — disse a mãe. Eles estão assim há bastante tempo. Andam

cheios de segredinhos um com o outro, nem brigam mais, graças a Deus! — É, parecem mesmo muito felizes, nunca os vi assim! — exclamou a

avó. Eles haviam pedido à mãe para, no outro dia, almoçar no quintal, pois

estavam arrumando sua “caverna”, que ficava lá no fundo do quintal. Era um grande buraco entre umas pedras enormes, que a gente tinha de passar abaixado, mas lá dentro dava bem para ficar em pé e até cabiam umas cinco

Page 35: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

35

pessoas. Às vezes passavam horas na “caverna” ou “cabana”, como chamavam. Era um lugar também mágico para eles. Porém, depois da amizade com o Riacho, ainda não tinham voltado lá. Naquele dia, no entanto, essa era uma boa desculpa para ficarem fora de casa muito tempo e terem comida, sem ninguém notar. Estavam naquela hora na cozinha, preparando eles mesmo uns baitas sanduíches, biscoitos, doces, etc. que iam levar na viagem.

A espera da viagem era ao mesmo tempo difícil e deliciosa. Sabe, às vezes, os lugares são mais bonitos e interessantes quando pensamos neles, imaginamos antes de irmos, do que quando realmente lá estamos. Não sei se é o caso de Shangri-Lá.

Terminaram todos os preparativos e foram dormir. Estavam excitadíssimos! Sonharam toda a noite com a viagem e acordavam todo o tempo, com medo de perder a hora.

De madrugadinha, quando ainda nem tinha clareado, os dois ouviram o estrondo, pularam da cama, arrumaram-se rapidinho e desceram correndo as escadas rumo ao Riacho. Este também estava completamente transtornado. Até os peixes de suas águas, que de tudo sabiam, partilhavam aquela excitação. Ou melhor, todo o quintal sabia da interessante viagem. A galinhada toda, que já acorda mesmo cedo, naquele dia estava em peso na beira do Riacho e de olhos arregalados para ver a partida.

Zaap, que já havia chegado, conversava com o Riacho sobre como ele iria, pois sendo água não podia sair dali. Ao chegarem, inteiraram-se da conversa e ficaram tristes com este aspecto que não haviam pensado. Já iam desistindo da viagem quando o autor do livro interferiu, tendo uma ideia e mandando-a pela garrafa.

— Olhem, outra garrafa! — gritou Gustavo. — Traga-a pra cá — disse Zaap para o Riacho. E ele movimentou as suas águas para que a garrafa fosse até o alcance

das mãos deles. Eles imediatamente a pegara e leram: “Caros amigos, como seu autor, vou transformar o Riacho num menino.

É só ele se concentrar que parte de suas águas vai adquirir esta forma, um menino de água. Sua roupa será de água bem azul. Suas botas de água marrom escuro, e um belo chapéu de tirolez verde brilhante. Assim, sempre que ele for

Page 36: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

36

sair do seu leito poderá ter esta forma. O resto de suas águas continuará aqui dando vida às plantas e peixes. Aproveitem!”

Quando terminaram de ler, os três deram um grito de satisfação e olharam para o Riacho. Ele estava mudo, com a boca aberta e a cara de espantado. Foi mudando a expressão até cair na gargalhada. Nunca tinha ficado tão feliz. Apesar de percorrer o mundo todo, nunca tinha podido andar igual aos humanos. Começou a balançar toda a sua água numa alegria nunca vista. Tinha uma mamãe peixe, que acabara de dar a luz a uns trezentos peixinhos, que olhou para ele com a cara feia, pois ele estava espalhando seus filhos para todos os lados. O Riacho recompôs-se e conservando o sorriso pediu:

— Vamos logo pessoal, vamos partir já! Vou mostrar a vocês a terra dos sonhos, o paraíso. Vamos, vamos!

A animação era geral. Os três chegaram bem perto do Riacho e Zaap disse:

— Todos preparados? Vamos concentrar nossa imaginação em Shangri-Lá. Você, Riacho, pense mais forte, pois já esteve lá, e esfregou com força o anel.

Num instante, sentiram uma vertigem e tudo começou a rodar. Era como se tivessem entrado num túnel colorido que girava, girava e girava. De repente, tudo parou e os quatro viram-se num lugar totalmente diferente. A primeira coisa que olharam foi para o Riacho. Ele estava lindo. Era um belo menino todinho de água, tão diferente, parecia uma estátua de cristal, só que se mexia. Ele também ficou se olhando e se experimentando, mexeu com as pernas, os braços, tirou o chapéu, pegou em si mesmo e começou a pular de alegria. Ficaram ali entretidos com o novo Riacho e nem perceberam que uns meninos os estavam olhando. Um deles falou:

— Quem são vocês? Ainda não os conheço. Levaram um susto e o Riacho respondeu.

Page 37: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

37

— Somos do meu livro — O Riacho —, viemos conhecer Shangri-Lá. E vocês, quem são?

— Sou Luíza, este é o Vinícius, esse o Michel, aquela a Lívia, Antônio, Raquel e Leonardo. E este maior é....

— Fernando, eu sou o Fernandinho — falou o garoto. — Bem, e que lugar é esse? — perguntou o Riacho. — É Shangri-Lá? — É sim. Mas por que você assim? Parece uma estátua de cristal. Você

é de cristal? — quis saber o garoto maior. — E por que estão com este brilho em volta de vocês?

— Ei, espera aí! Uma pergunta de cada vez — disse Silvia. — Ele é o Riacho, nosso amigo que foi transformado num menino de água para poder vir aqui conosco.

— Riacho? — perguntou Leonardo com cara de espanto. — Como pode ser isso?

— É uma longa história —disse o Riacho. — Vamos contar pra vocês. E sentaram-se todos em uma grama macia e verde. Acima, um céu

resplandecente, e, em volta, uma sensação de leveza e felicidade que embriagava. Distraíram-se todos contando e ouvindo toda a história até aquele momento.

Page 38: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

38

CAPÍTULO VII

O Capitão sentiu naquele momento uma sensação estranha. Olhou para um lado, para outro e não conseguia definir aquela inquietação. Gritou pelo seu assistente:

— Rotondo, venha rápido aqui. Rotondo era um pobre diabo que adorava as maldades que seu patrão

fazia. Realizava-se em ajudá-lo a maltratar os outros e, juntamente com Dragão, o cachorro do Capitão, um buldogue feio e também maldoso, aprontavam mil e uma com meio mundo. Chegou ofegante e subalterno perto do capitão que, sentado na sua velha cadeira de encosto alto, batia na bota com o seu inseparável chicote de cabo de prata, onde havia esculpida uma cara de demônio com os dentes grandes saindo da bocarra.

O Capitão, com o vozeirão que fazia tremer a casa toda, foi dizendo: — Traga aqui o meu globo mágico, que alguma coisa está acontecendo. Rotondo trouxe cuidadosamente o globo de puro cristal e o colocou

numa mesa à frente do Capitão. Ele disse umas palavras mágicas e de repente uma fina névoa começou a envolver todo o ambiente. Ao mesmo tempo,  uma    

Page 39: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

39

   luz   começou  a  brilhar  no  globo  e  aos  poucos  a   imagem  dos  garotos  e  do  Riacho   sentados   na   relva   foi   aparecendo.   O   Capitão   deu   um   grito   de  entusiasmo  e  ficou  pulando  em  volta  do  globo.  

— Hoje é meu dia! Hoje é meu dia! — e continuou: — Miranda, Miranda, venha cá!

Miranda era sua mulher. Ela não gostava das maldades do Capitão, mas o que fazer? Quando podia tentava atrapalhar, ou melhor, ajudar as suas vítimas.

— Veja só aqueles garotos! Eles vieram com um duende e um anel mágico! Agora ele será meu. Vou toma-lo daqueles panacas.

O capitão era um homem grande com uma cara feia, sobrancelhas enormes e grossas entrando no olho. Tinha um nariz pontiagudo, como um bico de tucano. Uma cicatriz, feita por golpe de espada quando ele era mais novo, dava-lhe uma expressão de maldade. Vivia há mais de cento e cinquenta anos em Shangri-Lá e seu grande sonho era sair dali, e andar pelo mundo à caça de ouro e outras riquezas. A única forma de fazer isso e voltar era com algum tipo de mágica.

Em Shangri-Lá havia uma pedra enorme igual àquela do anel, uma pedra mágica que irradiava tudo aquilo, que dava aquele ar encantado e aquela felicidade sem igual. O diabo é que ninguém sabia onde ela ficava escondida. Só uma pessoa, o guardião da pedra, conhecia seu esconderijo, mas ninguém sabia quem era o guardião.

O Capitão já havia tentado descobrir inúmeras vezes com o seu globo mágico, mas a mágica da pedra era muito, mas muito maior que a de seu globo, e ele nunca nem chegou perto. Porém, agora que tinha visto aquele brilho mágico em volta dos meninos e por fim o anel com a pedra, iria toma-la deles, custasse o que custasse.

Chamou seu cão e o criado, pegou suas armas e saiu à procura dos meninos.  

       

Page 40: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

40

     

CAPÍTULO VIII

Terminada a história, os meninos já tinham ficado amigos. Gustavo, curioso e lembrando-se da chegada, perguntou às crianças:

— Por que vocês falaram que a gente está com um brilho estranho? — Olha, não sei se vocês estão vendo, mas nós podemos ver um ligeiro

brilho em vocês, como se tivessem usado a magia da pedra? — falou Fernandinho.

— O que? — disse Zaap. — Como você sabe da minha pedra? Agora foi a hora das crianças contarem esta história para eles. Falaram

também do capitão e do perigo que corriam todos se ele tomasse - lhes o anel. Eles não se assustaram, pois não conheciam o Capitão, e pediram para ver Shangri-Lá. Saíram então felizes olhando tudo em volta. Tudo era lindo, resplandecente, com uma força de vida indescritível. As flores eram tão belas que davam até tonteira. O vento, o chão, o céu, tudo, tudo transmitia uma paz e uma sensação maravilhosa. Era impossível que ali houvesse alguém capaz de fazer alguma maldade. Mas havia o capitão...

Visitaram tudo, examinaram tudo, encontraram muita gente. Todos gentis, simpáticos e alegres.

Ficaram encantados com uma festa a que foram nos jardins do palácio do governador.

 

Page 41: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

41

 Era   inacreditável!  Balas,  bombons  e  pirulitos  de  todas  as  espécies,  

cores   e   gostos   e   ainda   um   sorvete   que   ficava   com   o   gosto   que   a   gente  queria.  Era  só  fechar  os  olhos,  imaginar  firmemente  e,  quando  abrisse,  ele  já  tinha  a  cor  e  o  gosto  desejados.  

Nossa!   Isso   era   demais!   Os   meninos   comeram,   lamberam   e  empanturraram-­‐se   de   tudo.   O   Riacho,   que   experimentara   pela   primeira  vez   todas   estas   guloseimas,   não   queria   sair   dali.   Já   estava   ficando   até  deformado,   com   a   barriguinha   estufada   de   tanto   comer.   Estava   com   o  rosto   todo   lambuzado   de   chocolates,   cremes,   açúcar   e   etc.   Os   meninos  riam  dele,  mas   também  estavam  da  mesma   forma.  Eles  queriam  de   todo  jeito  levar  o  sorvete  mágico,  mas  isso  era  impossível.  Ele  só  funcionava  em  Shangri-­‐Lá.    

Ficaram  na  festa  um  tampão.  Roda-­‐gigante,  carroussel,  barcos  com  pedalinhos,   e   até   um  minissubmarino   tinha   no   lago   para   se   brincar.   Ah!  Não   havia   mesmo   nada   igual!   Só   Shangri-­‐Lá.   Estavam   felizes   e  maravilhados.  Passaram  algumas  horas  em  êxtase.    

Foram  conhecer  o  governador  Clóvis,  que  os   recebeu  e  quis  ouvir  toda   a   história.   Ele   contou   também   uma   história   interessante   de   sua  infância  e  ficou  preocupado  com  o  Capitão.  Esqueceu-­‐se  porém  de  guardar  para   eles  o   anel   e   assim  protegê-­‐lo  do  malvado.  Após   saírem  do  palácio,  estavam   passeando   pelo   campo   em   volta   quando   ouviram   um   grito   e  deram  falto  do  Gustavo.  Ao  mesmo  tempo,  ouviram  uma  voz  forte  e  atrás  deles  apareceu  o  Capitão,  dizendo:  

—  Entreguem-­‐me  o  anel,  ou  não  verão  mais  o  seu  amigo.    Tentaram   correr,   mas   Rotondo   e   o   cão   não   deixaram.   Zaap,  

passando  rápido,  tirou  o  anel,  estendeu-­‐o  e  disse:  — Eu te dou, se você nos entregar o Gustavo agora. Caso contrário, vou

jogá-lo no rio. — Espere — disse o Capitão, fazendo um sinal para o criado trazê-lo. Quando Gustavo chegou, Zaap fez um sinal para ele, jogou o anel

dentro do rio e todos saíram correndo. O Riacho deu uma piscada para o rio e imediatamente as águas  

 

Page 42: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

42

   

esconderam o anel mágico. O Capitão, gritando, entrou no rio à procura dele: — Diabos! — esbravejava e, atolando-se na lama, procurava em vão. — Vai ver eles não jogaram. — disse Rotondo. — Foi só ilusão. Estes

pestinhas são espertos! — Pode ser — respondeu o Capitão. — Vamos atrás deles. Saíram correndo os três, o Capitão, Rotondo e Dragão. Os meninos

entraram numa cabana onde estavam outros meninos de Shangri-Lá. O Capitão, vermelho de raiva, gritou:

— Se não saírem agora, vou botar fogo nesta cabana. Eles, já sabendo de sua maldade, começaram a tremer de medo e

responderam que não tinham mais o anel. O Capitão não quis nem saber e começou a por fogo na cabana. A fumaça começou a sufocar as crianças e os pequenos começaram a chorar. Viram que iam mesmo morrer. De repente, o Riacho teve uma ideia. Chamou a todos e disse:

— Não tenham medo que vou tirar vocês daqui. Antes, porém, vamos enganar o capitão para ele pensar que morremos e não nos perseguir. Fiquem em silêncio.

Assim fizeram. Quando o Capitão não ouviu mais vozes nem choro, entrou na cabana enquanto os meninos saíam pelos fundos, protegidos por um túnel de água, que o Riacho fizera com seu corpo. Foi a continha de saírem. A cabana, com todo aquele fogaréu, desabou sobre o Capitão e virou uma fogueira só. Os meninos escaparam sem nenhum ferimento e emocionados abraçaram o Riacho, que estava morninho de tanto cercar o fogo. Foram para a cidade, contaram tudo ao governador, que mandou um monte de guardas ao local para prenderem o Capitão, se ele estivesse vivo.

De repente, aquela sombra de maldade que pairava sobre Shangri- Lá desapareceu e o encantamento e a felicidade aumentaram ainda mais.

Os meninos olharam as horas e viram que deviam voltar. Mas não queriam voltar tão cedo. Zaap deu a solução:

—Vamos fazer assim: eu vou deixar com vocês a metade do meu anel          

Page 43: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

43

   

e,  sempre  que  quiserem,  poderão  voltar  a  Shangri-­‐Lá.   — Por falar nisso — disse Silvia —, temos de busca-lo. — E se ele sumiu no rio? — perguntou Gustavo, preocupado. — Não se preocupem — disse o Riacho. — Ele está com as águas, isto

é, comigo. Emocionados, despediram-se de todos e foram para o rio pegar o anel. As crianças suas amigas e muitas outras foram acompanha-los até lá.

Eles foram os heróis do dia. Pegaram o anel e preparam–se para voltar. Zaap decidiu voltar dali mesmo para o seu livro. Dividiu o anel ao meio, deu uma parte para as crianças e ficou com a outra metade. Ensinou-lhes duas palavras mágicas e como usar o anel, e então esfregou o seu par ir embora. O estrondo aconteceu de novo e foi maior ainda, pois ele tinha de mudar de livro duas vezes.

As crianças assustaram-se e ficaram olhando admiradas. Agora era a vez dos três: Silvia, Gustavo e o Riacho. Firmaram o pensamento no quintal da casa, disseram as palavras e

esfregaram o anel. Deram adeus às crianças e sentiram de novo aquele turbilhão, como se estivessem rodopiado, rodopiando. Num segundo estavam no quintal e o Riacho com sua forma normal.

Haviam voltado!

     

Page 44: O Riacho montagem - clinestpq.com.br · excitação nova e maravilhosa; sentiram que aquele era mesmo um dia muito especial e que o que estava acontecendo era algo mágico.! A tarde

44

       

CAPÍTULO IX

Que aventura, aquela! Puxa vida, nunca mais iriam esquecer, tinha acontecido tanta coisa em tão pouco tempo que eles estavam até abobados. Até o Riacho estava meio tonto. Shangri-Lá, os meninos, Zaap, o Capitão, o fogo, o desabamento, nossa, era muita coisa!

A volta de Shangri-Lá, com a realidade do seu mundo, fez ainda mais espetacular o acontecido. Ficaram os três conversando sobre tudo até que a noite chegou e, mais uma vez, ouviram os seus nomes:

— Sílviaaa! Gustavooo! Vocês não enjoam deste quintal? Venham tomar banho. O jantar já vai ser servido. Vocês passaram o dia todo aí. Será que não se cansam de ficar neste quintal sem fazer nada? — chamava, da casa, Lena, sua mãe.

Os três deram uma risada gostosa e acharam que era mesmo hora de descansar.

Os meninos deram um beijo no seu grande amigo e ele lhes deu um abraço macio e molhado.

Subiram as escadas correndo para o banho. Assim foi por anos e anos a história dos três e, até hoje, se você

procurar, vai encontrá-los em algum lugar brincando, viajando e contando histórias maravilhosas.

FIM.